Você está na página 1de 25

A Revolução Francesa

Orlando Fedeli

A REVOLUÇÃO FRANCESA

Introdução
Quando se estuda a Revolução Francesa, é impossível não
ficar impressionado com a flagrante contradição entre sua
trilogia mágica – Liberdade, Igualdade, Fraternidade – em
nome da qual se fez a Revolução, e os fatos que dela
resultaram.

Até mesmo o leitor mais hipnotizado pelos slogans


revolucionários se perturba ao ver o paladino da igualdade,
Robespierre, praticamente fazer-se adorar na festa do Ser
Supremo, em 1794. O mais cego liberal tem que fazer
restrições aos crimes de terror, e fica estupefato ante a
intolerância absoluta gerada pelo triunfo da Tolerância e da
Liberdade. Como não ver que a Fraternidade romântica e
sonhadora de Rousseau e de seus adeptos, a sociedade
perfeita, pacífica e amorosa, finalmente realizada em 89,
produziu o ódio e a guerra?

Liberdade… Em seu nome se combateu a pretensa tirania de


Luiz XVI, se levantou o povo contra a disciplina
inquisitória da Igreja Católica, se destruiu a Bastilha e a
prepotência dos nobres.

Esta, a lenda.

Liberdade… que criou a lei dos suspeitos, que suprimiu a


defesa dos réus nos tribunais, e que estabeleceu a
escravidão da Lei, e a tirania de Robespierre e de Napoleão.
São bem filhos dessa liberdade e dessa tirania as ditaduras
de Lenin, de Hitler, de Mussolini e de Fidel Castro…

São realmente filhos legítimos da liberdade de 89 a anarquia


de Bakunin e a anarquia dos hippies, o hippie esse “bom”
selvagem de Rousseau, que finalmente aparece na História.
Esta é a verdade histórica.

Igualdade… O preconceito histórico diz que, em 1789, o povo


se rebelou contra a desigualdade e contra o privilégio para
estabelecer, finalmente, a sociedade em que todos seriam
iguais perante a lei, em que todos teriam as mesmas
oportunidades. De novo, esta é a lenda.

A História mostra, entretanto, que a sociedade da igualdade


estabeleceu o mais injusto dos privilégios. Que sátrapa
antigo teve mais poder do que Carrier, nas prisões de
Nantes, escolhendo moços e moças para suas orgias, antes de
enviá-las à morte, sem julgamento? Quem teve um governo mais
arbitrário do que Robespierre? A igualdade guilhotinou a
nobreza para fazer reinar o “mauvais plaisir” dos jacobinos,
e sua grosseria.

Augustin Cochin bem demonstrou que a igualdade leva ao mais


injusto dos privilégios, pois que, se os
homens são iguais, por que um deles teria o poder?

Antes de 1789, dizia-se que, sendo os homens diferentes, os


que são superiores devem ter a autoridade. O ser determina o
ter. Assim como Deus é o Ser por excelência, assim quem é
mais em alguma virtude ou qualidade, deve ter mais poder.

Mas se estabelecermos o dogma da igualdade, e se dissermos


que todos são iguais, aquele que tem o poder, o possuirá
injustamente sobre os outros. Exigir que se lhe obedeça é
exigir a pior obediências, é criar o mais injusto dos
privilégios, aquele que não se baseia no ser.

A Igualdade de 89, além do mais, é contraditória porque


estabeleceu como único critério de classificação social, o
dinheiro.

Os homens passaram a ser iguais, exceto na fortuna. É claro


que a crença no dogma da igualdade levaria a desejar
destruir esta última desigualdade. E foi o que fizeram os
comunistas de 1793.

A igualdade política de 89, devia levar – e levou – à


igualdade econômica, e dela é que nasceu o comunista atual.

Fraternidade… Sem admitir que todos tem um Pai comum, Deus,


a Fraternidade é uma grande mentira. Iguais e livres os
homens seriam todos irmãos, viveriam pacificamente em
Concórdia, Justiça, Paz, Amor.

Os homens, bons por natureza, isto é, sem inclinação para o


mal criariam uma sociedade feliz onde não haveria mais
opressão, nem guerra, pela ciência e a educação, extirpariam
a pobreza e o crime, e nessa sociedade não haveria mais
prisões, nem quartéis. Nessa sociedade fraterna, todas as
religiões seriam livres e todas adorariam – obrigatoriamente
– a natureza, seu único deus, e cultuariam a Rousseau, seu
pseudoprofeta…

Humanidade, Beneficência, Paz, Concórdia, Razão,


Fraternidade, foi tudo isto que produziu o Terror, que
destruiu as igrejas e pretendeu destruir a Religião, fazendo
adorar a Razão representada por uma meretriz- no altar
de Notre Dame, em Paris. Fraternidade… Foi ela que ergueu a
guilhotina na praça da Concórdia.

Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Palavras mágicas que


enfeitiçaram os franceses do século XVIII. Palavras
mentirosas que continuam até hoje a iludir os homens.
Palavras criminosas que fizeram correr injustamente tanto
sangue… Esta é a História.

Liberdade, Igualdade, Fraternidade…


Escravidão, Tirania, Ódio, Mentiras.

Como se levou o povo francês em nome da igualdade a aceitar


a ditadura sangrenta de Robespierre, em nome da liberdade
aceitar a lei dos suspeitos, e em nome da fraternidade, a
aplaudir as execuções da Praça de Concórdia e as “noyades”
de Nantes?

Que magia tem essas três palavras? Que fraqueza há no homem


que o leva a se deixar iludir estupidamente por esses três
talismãs doutrinários? Que impulsos e vibrações más
despertaram na alma revolucionária estas três mentiras do
mundo moderno?

O pecado original tornou o homem inclinado para o mal e para


o erro, e desregrou suas paixões. O amor desarrazoado por si
mesmo leva o homem a suportar com dificuldade a
superioridade alheia. Se o homem se deixar se dominar pelo
orgulho, acabará por detestar toda superioridade e toda
autoridade. Sonhará abolir toda hierarquia, e consentirá
mesmo que seus inferiores sejam elevados ao seu nível,
contanto que seus superiores sejam também rebaixados ao seu
escalão. Ele chegará assim a querer estabelecer a igualdade
na sociedade. Odiará tudo o que lembra hierarquia, e tudo
que reflete a desigualdade dos homens: os modos distintos,
as palavras nobres, a arte refinada, os costumes superiores.
Ele amará a igualdade como um bem em si mesmo.

É isto que explica o fanatismo igualitário da Revolução


Francesa, que pretendeu tudo igualar, os homens e os
edifícios, as religiões e as propriedades, os nomes e os
povos.

Enquanto a palavra igualdade lisonjeia o orgulho humano, a


palavra liberdade acaricia sua sensualidade.

Entregando-se aos prazeres ilícitos, o homem se irrita


contra tudo que se antepõe como obstáculo a seu prazer. Ele
se ergue contra a lei que lhe diz: “não pecarás”. Ele
detestará o muro e a cerca, que proclamam: “não passarás”.
Ele aspira abolir toda lei, e fazer a si mesmo, o senhor da
Lei. Ele quer ser arbitro do justo e do injusto. Ele quer
ser totalmente livre. Com a palavra Liberdade, a Revolução
promete satisfazer toda sensualidade, e todos os
desregramentos.

I- A Lenta Preparação para a Igualdade e a Liberdade no


século XVIII

As grandes revoluções são preparadas longamente por uma


lenta aceitação das inclinações desregradas da alma humana
arruinada pelo pecado original. Estas inclinações revelam um
desejo inconfesso de romper com a ordem natural, e
estabelecer um novo modo de vida, o triunfo de uma nova
mentalidade libertada de qualquer coação e qualquer lei.

Inicialmente, esses desejos inconfessos não se proclamam


diretamente contrárias à antiga maneira de viver, mas
criticam e atacam abusos reais ou imaginários. Pouco a
pouco, a força das paixões desregradas, não coibidas, vai
afrouxando os laços da disciplina e da moral. Logo, então,
aparecem pensadores que, por meio de falsas filosofias,
procuram justificar as novas maneiras de ser e de viver.

As filosofias falsas que buscam justificar as inclinações


más da alma humana, podem aparecer concomitantemente e
essas mesmas tendências, embora logicamente pretendam ser a
sua justificativa.

O movimento pela destruição da ordem natural cresce, e


acaba, afinal, eclodindo numa revolução, cruenta ou não.

Destes processos, posto em pouca evidência pelos


historiadores, como causa da Revolução de 1789, daremos
alguns exemplos.
Veremos, primeiro, como se manifestaram os desejos
pecaminosos para viver de modo igualitário e sensual, e,
depois, os novos sistemas ideológicos dos “filósofos”, que
buscavam justificar esses desejos maus.

Sintomas da Nascedoura Mentalidade Igualitária


O igualitarismo se manifestou de modo lento e crescente, no
século XVIII.

Ele transparecia numa nova moda, numa canção, nas propostas


políticas, em atitudes nos salões, nas modas, nos penteados,
no mobiliário, nos sermões, nas leis, nas festas, nos
sapatos e nas carruagens, nos teatros e nos desaparecimentos
das librés dos lacaios das casas nobres.

Seus sintomas eram tão variados que dificultavam perceber a


unidade de fenômeno. Uns pediam a igualdade nas leis, outros
só a queriam no trato, outros, nas religiões, outros, nas
riquezas. O resultado final era a implantação de uma
igualdade completa.

Para impedir a Revolução, teria sido necessário combater


a ideia de igualdade em si mesma, e fazer oposição a todos
os sintomas que manifestassem a mentalidade igualitária.

Isto não se fez, e o igualitarismo se alastrou como uma


epidemia.

Eram, em geral, os membros das classes privilegiadas –


nobreza e clero – que se revelavam os mais contaminados pela
febre igualitária. Era então de bom tom o nobre e o clérigo
renunciarem a seus privilégios de honra e, com prazer,
muitos se nivelavam ao povo. Luiz XVI e Maria Antonieta não
foram isentos dessa culpa, e, com seu apoio ao
igualitarismo, ajudaram a destruir os degraus da hierarquia
social e, ao mesmo tempo, construíram a escada que os levou
ao patíbulo.
Os livros de História, no Brasil, e o preconceito geral,
ensinam que, antes de 1789, o povo vivia aspirando o
estabelecimento da igualdade, que o povo detestava os
títulos e os privilégios da nobreza. Por sua vez, os nobres
são apresentados como cheios de preconceito, e exigindo
vaidosamente que se lhes prestasse um verdadeiro culto de
honrarias, e que eram extremamente ciosos de seus títulos e
privilégios.

Ora, quando se consultam os documentos se tem a surpresa de


verificar o contrário: o democratismo e o igualitarismo
quase não existiam no povo mais simples. Luiz Madelin diz
que Napoleão foi obrigado a criar uma nova nobreza, porque,
apesar do triunfo da Revolução, os títulos tinham guardado
todo seu prestígio popular, e era preciso aviltá-los fazendo
de lavadeiras, duquesas.

Eram os grandes, nobres e eclesiásticos, que sonhavam em


estabelecer a igualdade. Eram eles que tinham prazer em se
rebaixar e de se nivelar aos inferiores, e que se alegravam
com a destruição dos privilégios de etiqueta, assim como
hoje são os ricos burgueses de hoje – verdadeiros matarazos
– que defendem o socialismo, e certos bispos renunciam a
seus títulos, aos paramentos ricos, e trocam cruzes
peitorais de ouro por outros de madeira, como o fez Dom
Helder Câmara, e o faz Dom Casaldáliga…

“Esta cruzada de reformas não tinha apóstolos mais


fervorosos do que os grandes senhores; o horror dos abusos,
o desprezo das distinções hereditárias formava o tema
favorito dos mais privilegiados”
(Buffenoir, Madame la Comtesse d’Houdelot, p.76). “Eles
foram os primeiros a denegrir a Corte: ridicularizavam a
etiqueta, escarneciam do Rei e difamavam desavergonhadamente
a Rainha” (G. Lenôtre, La Vie à Paris pendant la Révolution,
pg. 20-21).

A falta de respeito dos nobres levava-os a chamar Luiz XVI


de o “grande porco”, e nem a honra da Rainha Maria Antonieta
os cortesãos poupavam.

Aliás, Luiz XVI e Maria Antonieta eram culpados por essa


falta de respeito. Maria Antonieta detestava a etiqueta,
primeira muralha do respeito. Ela a violou constantemente.
Ela corria pelos jardins, cantava e ria alto. Ela mesma,
numa caçada, filantrópica ou demagogicamente, cuidou de um
criado ferido, e cedeu a sua carruagem a lavradores para
levar o pai deles, ferido, quando lhe era bem fácil arranjar
outro veículo. Essa atitude que fazia a propaganda de sua
bondade, não alcançou, para a Rainha, nem a recompensa dos
céus, nem o prestígio na terra: hoje ninguém se lembra ou
conhece os gestos de filantropia da Rainha, mas se acredita
que ela pouco se importava com a fome do povo.

Maria Antonieta se ria de Mme. De Noailles, que lhe ensinava


a etiqueta francesa, e a apelidara de “Mme. L’Etiquette”.
(Weiss, vol. XV, pg. 254), e violava afrontosamente as
regras da etiqueta, e até as da prudência que toda mulher
casada deve guardar, o que comprometeu a sua honra e motivou
calúnias.

O pobre Luiz XVI, “não tinha nem o brilho que impõe, nem a
graça que seduz, nem a firmeza que mantém o respeito… Mas,
por uma estranha fatalidade, o aparato da corte, a etiqueta,
que parece tão pueril aos espíritos superficiais e que é,
entretanto, o único meio de impedir a confusão das classes,
nunca foram mais necessários do que sob o reinado do
príncipe que os aboliu”. (Le Duc de Levis, apud
Valmigêre, Enquête sur la Révolution, Nouvelles Éditions Lat
ines, Paris 1956, pp. 71-72).

Era a juventude nobre que mais entusiasmo tinha pelas


maneiras igualitárias e mais desprezo manifestava pelo
“espírito aristocrático”:

“A jovem nobreza, a primeira a ser invadida pelo contágio do


espírito filosófico, mostrava-se disposta a renunciar
facilmente ao preconceito de nascimento e a seus outros
privilégios. Da Inglaterra, ela trazia um gosto entusiasmado
pelas formas do governo representativo e pelas liberdades da
tribuna.

“O horror dos abusos, o desprezo das distinções


hereditárias, todos estes sentimentos de que as classes
inferiores se apropriaram por seu interesse, deveram o seu
primeiro brilho ao entusiasmo dos grandes, e os mais ativos
discípulos de Rousseau e de Voltaire eram, mais ainda, os
cortesãos do que os letrados”
(Daniel Marnet, Les Origines Intellectuelles de la Révolutio
n Française, Vrin, Paris, pg. 274).

Esse igualitarismo foi o fruto das inclinações más,


favorecidas e mesmo cultivadas por uma educação errada. Para
combater o orgulho dos grandes, tanto se lhes falou de
humildade, de condescendência, de brandura, que eles caíram
no defeito oposto.

Madame de Chastenay conta que as novas idéias igualitárias


tinham penetrado até mesmo nos conventos onde eram educadas
as filhas da nobreza.

“Nós todos fomos educados na idéia da igualdade dos homens,


no desprezo das distinções vãs, e da obrigação de se tornar
dignos dela… Essas idéias, inculcadas entre nós mais vezes
talvez do que em qualquer outro meio, não eram entretanto
estranhos a nenhuma educação dessa época; quase todos os
preceptores das crianças estavam imbuídas delas; as freiras
nos conventos nutriam com elas as jovens; e a cidade
de Coblentx [cidade para onde fugiram os nobres que
emigravam por causa da Revolução Francesa] ficou atulhada de
pessoas que não queriam mais que seus tabeliães lhes dessem
o tratamento de muito altos e muito poderosos senhores”
(Daniel Marnet, op cit. pg. 274)
Embora não houvesse dez republicanos de verdade, em Paris em
1789, como disse Camilo Desmoulins, que era certamente um
desses dez, era “chic”, em Versalhes, dizer-se republicano,
à moda americana. Foi por isso que muitos jovens nobres
seguiram Laffayete à América, para ajudar a causa dos
rebeldes democráticos yankees
(L. Madelin – Les Hommes de la Révolution, pg. 8).

“O entusiasmo pela jovem América se manifestou inicialmente


em panfletos, canções, libelos contra a monarquia caduca;
mas não parou lá; toda a jovem nobreza, de repente enamorada
pela democracia, embarcou e atravessou o Oceano para
contemplar de perto a aurora dos novos tempos”
(G.Lenotre, En France, jadis – pg. 190).

A mania democrática chegou a tal ponto que se deixou de


jogar o whist, jogo inglês, e se passou a jogar o “Boston”,
jogo cujo nome dava ao jogador um “que” de insurreto.
(Hugues de Montbas, La Police Parisienne seus Louis XVI,
pg.169).

Outro testemunho do espírito igualitário que dominava a


nobreza é dado pelo conde de Montlosier:

“Deste modo eu me tornei o que se chamava então filósofo. Eu


considerava a independência como o primeiro direito da
natureza, a igualdade como o direito natural das sociedades.
Toda obediência me pareceu uma servidão, toda ação contra a
liberdade, uma tirania. O feudalismo se tornou, a meus
olhos, um banditismo, a cavalaria uma extravagância, o
nascimento um preconceito (…) a natureza pareceu-me a única
divindade de mundo” (Daniel Marnet, op.cit. 405).

Esse igualitarismo dos nobres não impedia que,


paradoxalmente, eles manifestassem um desejo enorme de
aparecer e de brilhar, quer pelo luxo, quer pela
simplicidade. O importante era destacar-se, de onde se vê
bem, que o igualitarismo era fruto do orgulho. “Gostava-se
de fazer arder sua luz em público até a última chispa” (Juan
Bautista Weiss, História Universal, Tip. La Educación,
Barcelona, 1931, vol. XV, pg.22).

Era preciso brilhar, chamar a atenção, ser aplaudido, ainda


que para se destacar, fosse preciso defender a igualdade e
combater toda distinção, prejudicando os seus próprios
interesses.

“À altivez que outrora inspirava quase geralmente o


nascimento, tinha sido sucedida, nos grandes nobres, pela
ambição de agradar através do mérito pessoal, e, sobretudo
pela pretensão de ter ‘espírito’ [graça]: eles buscavam mais
o aplauso do que o respeito” (Duque de Levis Mirepoix,
Enquêtes, pg. 66).

Era natural que o mau exemplo desses nobres fosse imitado,


em primeiro lugar, pelos grandes burgueses e pelos
ambiciosos das classes inferiores. Só que estes pretendiam a
igualdade com os nobres, passavam a querer destruir a
nobreza. Tanto quanto subir, queriam abater os superiores.

Essa tendência igualitária da burguesia no séc. XVIII se


comprova pelo crescente número de pessoas enobrecidas pela
compra de cargos e títulos, às vezes a muito baixo preço.
Com 2.000 escudos ficava-se nobre
(Lavisse et Rambaud, Histoire Génerale dela Civilization,
vol. VIII, pg. 10).

Os próprios Reis de França foram também culpados por isso,


pois que, para aumentar o seu poder, combateram os
privilégios da nobreza, afastaram-na de todos os cargos
efetivos no Estado, entregando-os aos burgueses. Luiz XIV
começou esta política de aliança da Coroa com a Burguesia
contra a Nobreza.

Luiz XV e Luiz XVI fizeram o mesmo, mas, arruinando a


Nobreza, eles destruíram a própria Monarquia. Luiz XIV não
quis ser como S. Luiz, um rei de príncipes e se tornou um
rei de lacaios. Luiz XV, por sua vida corrupta, acabou sendo
desprezado por esses mesmos lacaios. E Luiz XVI, por fim,
foi guilhotinado.

E depois vieram os ambiciosos frustrados, os que sonhavam


com os títulos e não os alcançaram, e, por isso passaram a
odiá-lo.

Assim, Marat – o infame, o fanático e criminoso


revolucionário Marat, ao pretender entrar para o serviço do
Conde de Artois, irmão do Rei, redigiu o seguinte
requerimento:

“Espero que não recusareis meus brasões, vendo como está


assegurada a nobreza de minha família nas Espanha, como na
França. A posição que ocupo agora, e que só pode crescer
pela confiança que me concede Monsenhor, coloca esse assunto
no interesse da sociedade. É honroso para o Estado que a
origem de um servidor dos Príncipes seja estabelecida por
documentos certos como não deixei de
fornecer”. (J. Castelneau, Marat-l’Ami du Peuple, Hachette,
Paris, 1935 – pg.35).

A republicaníssima Madame Roland, antes da Revolução, andou


pelas repartições da Monarquia, rogando a concessão de
cartas de nobreza a seu marido, “Roland de la Platière.
(Miss Wilcocks – Mme. Roland – pp.99-100).

E quantos não assinavam o nome com o famoso “de”


nobiliárquico, mais tarde proibido pela Revolução!

O democrático girondino Brissot assinava-se Brissot de


Warville por ter nascido na fazenda de Warville, onde seu
pai tinha o humilde mister de cozinheiro (Daniel Marnet, op.
cit., pg. 406) (J. B. Weiss, História Universal, vol. XVI,
pg. 2 )

Danton chegou a assinar seu nome como D’Anton, para fazer


acreditar que ele era nobre, e Robespierre, antes de 1789
era Maximilien de Robespierre. Os tempos mudam…

Não exprime bem profundo orgulho ferido, o ódio


que Brissot contava ter pelo rei e pela desigualdade ao
escrever:

“Eu detestei os reis muito cedo; desde minha mais tenra


juventude eu me deleitava com a história de Cromwell; eu
pensava que tinha a mesma idade que o rei (isto é, o
Delfim), e nos meus sonhos de criança eu não via porque ele
estava no trono, enquanto eu tinha nascido filho de um
cozinheiro. Eu previa com alguma complacência que eu poderia
vê-lo cair do trono, e que eu poderia contribuir para isso”
(Daniel Marnet, op. cit., pg. 408).

O orgulho e a inveja, eis os pais da igualdade


revolucionária.

Brissot exprimia o seu orgulho com ódio, outros o


manifestavam com espírito de bufão.

O padre Beuisset em conversa com a duquesa d’Harcourt disse


que entre o Duque o e ele só havia umas letras de diferença:
o Duque era filho de um Marechal de França, e ele era filho
de um ferreiro (maréchal-ferrant) na França. (Daniel Marnet,
op. cit., pg. 279).

Esta mentalidade igualitária tinha que transparecer nos


costumes, nas modas, nas atitudes. Pouco antes da
Revolução, Mercier notava que as mulheres tinha passado a
usar o traje masculino.
(Charles Kunstler: La Vie Quotidienne sous Louis XVI, pg.
243).

Não só os trajes refletiam o desejo de igualdade entre o


homem e a mulher, como também mudavam o desejo da igualdade
entre as classes sociais. No antigo Regime, as classes
sociais eram bem diferenciadas: cada uma tinha modas bem
caracterizadas. Os nobres usavam “culottes” de cavalgar,
enquanto os homens do povo usavam calças compridas
(pantalons) como os que se usam hoje… Às vésperas da
Revolução, alguns nobres, a pretexto de simplicidade, e
democratismo, deixaram de usar culottes. Esta tendência
cresceu tanto, que o uso de culottes passou a ser o símbolo
de ideias aristocráticas e contrarrevolucionárias, enquanto
que os “pantalons” se transformaram em símbolo de
mentalidade revolucionária e igualitária. Daí a denominação
de “sans culottes “dada aos revolucionários.

Jean Robiquet, no seu livro


“La Vie Quetidienne au Temps de la Révolution” afirma que:

“Foram os pantalons e os coletes curtos que fizeram a


Revolução – escreveu Norvins no século XIX… Passaria, alguma
vez pela cabeça à geração de Luis XV que, um dia, alguém
ousasse apresentar-se nos salões de outra forma que não de
casaca bordada, calções curtos e meias brancas? Tal é porém
o exemplo horroroso que hoje dá a juventude. Veem-se os
elegantes ostentar não só o chapéu redondo e a sobrecasaca à
inglesa, mas ainda a calça de casimira, muitas vezes
agravada por botas. “Que impudência – pensam os velhos.
“Sans culottes! Ils vont sans culottes!” [Sem culottes! Eles
andam sem culottes!] (Jean Robiquet, ob. cit, pg. 53).

Várias causas favoreceram o igualitarismo nos trajes. Entre


elas convém salientar, em primeiro lugar, o exagero ridículo
a que tinham chegado as modas antes da Revolução, e que, por
seu próprio excesso, levaram a moda a cair no erro oposto.
Em moda, sempre que um elemento é exagerado, ele está
prestes a ser destruído. Em moda, o que se exagera,
agoniza.

Uma segunda causa pode ser encontrada na ideia de


simplicidade e volta à natureza difundida por Rousseau. Em
terceiro lugar, o exemplo dos Quakers americanos,
representados em Paris por Franklin.
No século XVIII, o traje social obrigatório para os homens,
incluía o culotte até os joelhos, meias de seda, sapatos com
fivelas, cabelos empoados, espadas e tricórnio sob o braço.
As mulheres usavam grandes decotes, penteados altíssimos e
complicados, saias rodadas imensas, e caudas majestosas.
Tudo isto dava um tom aristocrático á moda, forçava a ter
maneiras finas.

“Era-se forçado a cuidar da toilette, não se podia manter,


com tais roupas, os ares e modos que se tinha pela manhã,
quando se levanta”.

Georges Lenôtre diz que, pouco antes da Revolução, a


sociedade lançou “a batina [dos Padres] às urtigas”

“Nos meses que procederam a reunião dos Estados Gerais,


houve entre os elegantes dos sexos uma competição para ver
quem afetaria ser mais negligente de tal modo que
escandalizasse as pessoas antigas” (G. Lenôtre, La Vie à
Paris, pg.25).

As mulheres deixaram de usar saltos altos e adotaram o


“pierrot”, um novo tipo de saia, mais simples, uma forma de
protesto contra as antigas saias rodadas e as grandes
caudas. E isto fazia as pessoas graves dizerem:

“En paniers, la coquette la plus légère a l’air d’une


matrone; en pierret, la matrone la plus sévère; en
‘pierrot’, la matrone la plus sevère a l’air d’une linotte”
(Com saias rodadas a mocinha mais exibida tem o ar de uma
matrona a mais severa, vestida com a moda “pierrot”, a
matrona mais severa tem o aspeto de uma estouvada) (G.
Lenôtre, La Vie à Paris, pg. 25).

Alguém poderia dizer que isto se fazia sem pensar, sem


perceber os princípios revolucionários implícitos nos novos
símbolos de moda. Certamente, nem todos percebiam, de modo
claro, o que havia de revolucionário na nova moda. Mas
muitos o sabiam, e é o que escreverá o revolucionário
Theodore Lameth em suas memórias, citadas por Georges
Lenôtre: “Os saltos altos das damas, testemunhos de sua
posição social, iam desaparecer” (apud G. Lenôtre op. cit.,
pg. 24).

Além disto, é nos pequenos gestos semiconscientes, que mais


autenticamente se manifestava o fundo da mentalidade de uma
pessoa. As damas da alta sociedade eliminaram os saltos
altos para se rebaixar.

Os homens, de sua parte, aderiram também às


modas antiaristocráticas e igualitárias. Começaram a
usar culottes apertados, chapéus redondos, coletes, e
deixaram de usar perucas empoadas.

As primeiras manifestações da nova moda produziram escândalo


e revolta. Depois, o escândalo diminuí pela sua
multiplicação. As pessoas iam se habituando, e a nova moda
triunfava, o que não seria possível se as tendências
profundas da sociedade correspondessem aos princípios
aristocráticos vigentes.

“O primeiro temerário que apareceu com os cabelos cortados


“à la Tito”, e sem serem empoados – era, dizem, Monsieur. de
Valence, genro de Madame de Genlis e despertou cóleras.

“Está tudo perdido, prognosticavam os peruqueiros: os homens


se apresentam nus, nada disfarça mais as suas formas”. Mas
foi com o primeiro “pantalon” – a calça masculina atual –
que a revolta explodiu; foi um “tolle” de reprovações.
“Sans culottes”! Ousar se apresentar sans culottes,
resmungavam as velhas damas espantadas, e tal foi a origem
do sentido pejorativo deste termo destinado a ter um êxito
tão próximo e tão durável, do qual os demagogos iam logo se
honrar como de um título” (G. Lenotre- La Vie à Paris, pg.
25 )

Franklin, embaixador da nova república americana, fez furor,


ao se apresentar sem cabeleira postiça nos salões de Paris e
Versalhes. Um publicista, citado por Pierre Gaxotte, dizia
dele:

“Tudo nele anunciava a simplicidade e a inocência dos


antigos costumes. Tinha se despojado da cabeleira emprestada
(postiça)” (Pierre Gaxotte, A Revolução Francesa, pg. 50).

O igualitarismo triunfante não poderia se coadunar com a


espada, símbolo por excelência da nobreza. Os novos tarjes
eram por demais vulgares e desprovidos de símbolos
superiores para suportar estarem juntos com a espada. O
espírito revolucionário igualitário, grosseiro e pacifista,
substituiu a espada pelo guarda-chuva.

“Na casa da marquesa de Pastoret, uma tarde, se viu chegar o


Marquês de Condorcet, sem espada, de braço com a mulher, e,
levando, sob o outro braço, um desses enormes guarda-chuvas
que havia naquele tempo, e isto com uma “gaucherie” e uma
vulgaridade burguesas que contrastavam estranhamente com a
distinção de seu espírito e de sua posição social”. (Norvins
I , 68 apud G. Lenôtre, La Vie à Paris, pg. 26).

A moda pegou. Nas vésperas da Revolução, os nobres deixaram


de levar espada à cinta, quando saíam à rua e, usando
casacos simples, eles mesmos queriam dirigir os cabriolés
para repudiar a antiga maneira de ser, que anunciava
gravidade, dignidade e espírito de mando. (J. B.
Weiss, História Universal, vol. XV, pg. 246).

E como os nobres deixaram de usar a espada, ao


chegar a Revolução, a maioria não soube usar a espada:
deixaram-se prender e guilhotinar sem reação, como
conta Rivarol

Dos adultos, a moda igualitária passou imediatamente para as


crianças, e com novas ousadias. Até então, o traje infantil
revelava a condição social de uma família. As primeiras
crianças que usaram a nova moda revolucionária foram os
filhos do Marquês de Girardin, um fanático das novas ideias,
e hospedeiro de Rousseau em sua propriedade de Ermenonville,
onde o “filósofo”, advogado da barbarização, e da renúncia à
inteligência, morreu e foi enterrado. (E escrevo isso de
Rousseau, porque ele escreveu; “Renunciando à razão e
deixando falar apenas o coração”).

Os filhos do Marquês revolucionário apresentaram-se, um dia,


no jardim dos Tulherias, onde costumavam reunir-se as
crianças nobres, de cabeça raspada, como marinheiros
ingleses, chapéus redondos, casacos curtos e “pantalons’ de
tecido grosseiro.

Como sempre, a primeira reação foi violenta e ineficiente.


Eles foram vaiados, ridicularizados e, a seguir… imitados.
Depois de três semanas, no jardim das Tulherias, só se viam
meninos de cabelos curtos, jaquetas grosseiras e sapatos
ferrados. (G. Lenôtre, La Vie à Paris, pg. 27).

O sapatão ferrado, o chapéu redondo, substituíram, pois, o


sapato fino, e o tricórnio elegante. Essa preferência pelo
mais grosseiro devia se refletir também nas maneiras e no
vocabulário. Com efeito, as maneiras polidas, o vocabulário
nobre são sinais de distinção e de hierarquia, que o
espírito igualitário da Revolução não pode tolerar. O
espírito evolucionário gosta dos modos populacheiros, e das
palavras vulgares, antes de se entregar ao calão. Um modo de
ser e de comportar-se… “à vontade” se introduziu com as
novas modas. Fazia-se questão de afetar modos grosseiras,
como sinal de que se desprezavam as antigas fórmulas de
etiqueta e, com elas, as antigas tradições e ideias.

“Não mais etiqueta, nem incômodos, e sim gosto de vida


cômoda e egoísta”.

Entre os homens, a camaradagem imperou, e se deixaram de ter


fórmulas respeitosas no trato com as mulheres. Ia-se com
botas ferradas aos bailes, e fazia-se questão de permanecer
sentado, quando uma senhora entrava na sala. Afinal, homens
e mulheres não eram iguais?… (G. Lenôtre, La Vie à Paris,
pg. 26)

Antes, respeitava-se em tudo a hierarquia social. Nos


jantares, as pessoas se sentavam à mesa, segundo sua
importância social, como em qualquer lugar civilizado se
faz. O igualitarismo triunfante antes de 1789, levou a
abandonar este hábito sábio: as pessoas passaram a sentar-se
à vontade, e sem ordem na sala de jantar. (Charles Kunstler,
La Vie Quotidienne sous Louis XVI, pg. 263).

Para demonstrar espírito democrático, os grandes nobres e as


senhoras da alta sociedade, nos dias de festa e aos
domingos, iam aos bailes populares de Paris (Charles
Kunstler, La Vie Quotidienne sous Louis XVI, pg. 323).

Nos salões filosóficos, os nobres de espírito revolucionário


estadeavam seu igualitarismo com alegria. Eles faziam
questão de frequentar os salões dos chamados “filósofos”
iluministas.

“D’Alembert mantinha ‘três vezes por semana assembleias sob


o nome de conversações; e tudo o que há de mais ilustre ia
lá. Não é raro ver de vinte e cinco a trinta carruagens
paradas, à sua porta’. O almoço do Abbé Raynal reunia, todas
as semanas, ‘tudo o que há de mais ilustre em Paris entre
embaixadores e os senhores viajantes’. Lá, e em outros
lugares, não só se defendia a igualdade, ela era posta em
prática, pelo menos com relação aos plebeus, que ‘sabiam
pensar’”. (Daniel Marnet, op. cit., pg. 276).

Aproveitava-se tudo para estabelecer a igualdade social.


Assim, os grandes senhores se envaideciam de frequentar as
Academias junto com os burgueses. Na Academia de Montauban,
procura-se estabelecer a igualdade, suprimindo os lugares
honoríficos, e se lia uma ode sobre a igualdade acadêmica.
(Daniel Marnet. op. cit., pg. 151)

Na sociedade literária de Agen, os estatutos previam que não


haveria distinções de honra e de classe. (Daniel Marnet, op.
cit., pg. 308).

Nas lojas maçônicas, se dava a mesma coisa: na loja União de


Toul-Artilharia, o Venerável, um sargento, era superior ao
Marechal de Campo, Marquês d’Havincourt, que provavelmente
se orgulhava dessa situação aviltante a que a Maçonaria o
reduzia. (Louis Madelin, La Révolution, Hachette, Paris,
1911, pg. 24).

Toda revolução tem suas expressões próprias, seu vocabulário


particular, sua gíria, que exprime sua filosofia. No
feudalismo a expressão “servir” era altamente honrosa, pois
expressava bem a missão própria de homem, e a hierarquia
social. O criado servia o amo, este servia ao Rei e todos
serviam a Deus. Um homem que não servisse, não servia para
nada. Para a igualitarismo, todo serviço supõe uma
injustiça, pois que implica em desigualdade.

Por isso muito facilmente se trocou a expressão “servir ao


Rei” por “servir ao Estado” que era impessoal, e que não
implicava em desigualdade social. (Daniel Marnet, op. cit.,
pg. 402).

Por isso, o termo súdito começou a ser substituído pelo de


cidadão.

O “filósofo” Mably escreveu a obra Os deveres e os direitos


dos cidadãos. publicada em 1789, após sua morte (Daniel
Marnet, op. cit., 239).

Já antes fora publicado um Catecismo do Cidadão, e o Abbé


Saury escrevera uma obra intitulada Moral do Cidadão do
Mundo, ou a Moral da Razão (Daniel Marnet, op. cit., 260).

Em Bordeaux, havia padres que se intitulavam “patriotas e


cidadãos”, já antes de 1789. Daniel Marnet, op. cit., 158) e
nos Cahiers de 1789, a nobreza já se declarara “citoyenne”.
(M-463).
Outra palavra que igualitarismo não suporta é “caridade”,
porque ela também supõe desigualdade. Era natural, pois, que
os igualitários dos séc. XVIII substituíssem a palavra
caridade por outra.

“A beneficência, escreve em ‘Amigo Sincero’ (jornal de


então), se tornou uma palavra de moda. Não faz muito tempo
num ‘Club’, lugar de reunião em Paris, destinado a aliviar a
humanidade, alguém que propunha uma boa obra a estabelecer,
deixou escapar, por um velho hábito, a palavra caridade. Um
clubista se ergueu contra este termo e, sob pretexto de que
ele humilhava aqueles a quem se fazia o bem, sustentou que
doravante, só se devia falar em beneficência”. “A honradez,
a retidão, a integridade, escreve de Boismont, todas essas
palavras tão velhas que inquietam e desolam a natureza,
felizmente foram substituídas pelas palavras beneficência e
humanidade” (Daniel Marnet, op. cit., pg. 262).

O resultado foi péssimo para os pobres. Hugues de Montbas,


em seu livro sobre a polícia parisiense, nota que, no fim do
reinado de Luís XV, diminui sensivelmente a caridade para
com os pobres. É verdade que Saint-Foix aponta as teorias
dos economistas como causa desse resfriamento da caridade,
pois, para eles, só o trabalho seria fonte de riqueza e por
conseguinte, diziam, que as esmolas prejudicavam o bem
público. (Hugues de Montbas, op. cit., pg. 190).

Mas a troca da palavra caridade pelo termo beneficência não


era isenta de responsabilidade pela decadência das obras de
caridade, porque ela supõe o abandono de amor de Deus.

É sintomático que o grande divulgador do termo beneficência,


– tão maçônico -, tenha sido Voltaire. Mas mais sintomático
ainda, para nós do século XX., tempos da justiça social
progressista e do “amor”, é que Voltaire não inventou o
termo. O criador da palavra beneficência como substituta da
palavra caridade foi Abbé de Saint Pierre, em quem Voltaire
se inspirou…
Já dissemos que, comumente, o exagero de algo leva ao
extremo oposto. A oposição ao luxo e à simplicidade, no
século XVIII, comprova esse princípio. Passou-se do extremo
do luxo à simplicidade mais espartana, até mesmo à
austeridade quaker. A educação de então unia Plutarco e
Fénélon, na defesa da frugalidade e da simplicidade, e no
combate do luxo. De outro lado, os excessos de luxo de
alguns vinham confirmar o acerto dos “filósofos” e
moralistas defensores da austeridade da vida. Madame Roland,
aos 8 anos, lia Plutarco, na Igreja (L.
Madelin, Les hommes de la Révolution, pg. 129). Ela mesmo
escreveu: “Assim concebi, em meus estudos de História, um
amor apaixonado para com os homens que se esforçavam por
remediar a desigualdade; fazia-me Ágis e Cleómenes em
Esparta, Gracos em Roma,…”

E quantos não atacavam a riqueza, senão porque “amavam-na


tanto que não podiam suportar que outros a possuíssem’, como
dizia Rivarol? (Enquêtes, pg. 25).

Foi esse mesmo amor à simplicidade que, entre outras causas,


levou a admirar o exemplo dos Estados Unidos e os Quakers,
que melhor representavam o espírito igualitário da nova
república yankee. Essa admiração pelos Quakers, e pelos
jansenistas, levou bom número de franceses, e dos mais
distintos, a defender as doutrinas dessas seitas, embora sem
filiar-se a elas. As doutrinas Quakers seriam a panaceia
para os males da humanidade: “ proscrever o luxo, vestir-se
de burel, viver de frutas e de laticínios, renunciar ás
fórmulas banais de polidez, socorrer os infelizes, ajudar
seus semelhantes, nunca matar, mesmo em defesa própria,
adorar Deus sem intermédio de nenhum sacerdote, nem de
cerimônias de qualquer culto; eis o que parecia admirável
aos espíritos teóricos daquele tempo. Não era nivelar todas
desigualdades sociais, destruir para sempre a guerra?” (G.
Lenôtre, En France, jadis, pg. 191).

De tal modo essa tendência a simplicidade se tornou forte,


ajudada pelos excessos do luxo, que a polícia considerava
que o luxo, a ostentação, eram perigosos, pois facilmente
podiam causar desordens. Por isso, ela procurava reprimir as
ostentações de riqueza. E assim favorecia o igualitarismo.
(Hugues de Montbas, op. cit., pg. 155).

O igualitarismo devia, necessariamente, produzir uma crise


de autoridade, e o ódio aos seus símbolos. Aliás, a própria
autoridade estava contaminada pelas tendências igualitárias,
e procurava se despojar de seus distintivos, renunciar às
suas prerrogativas, e só atuava em último caso. Luís XVI só
fez isto em toda a sua vida. Pensou-se seriamente em não
realizar a coroação em Rheims… Luís XVI não assinou nunca
uma sentença de morte, e dizia: “Se for preciso derramar uma
só gota de sangue para me salvar, eu proíbo que a derramem”
(Abbé Barruel, Enquêtes, pg. 71).

E várias vezes agiu assim durante a Revolução, e porque


recusou derramar uma gota de sangue correram torrentes dele.
E porque recusou usar o poder, ele se perdeu.

A decadência de autoridade era tanta que o Marechal de


Richelieu dizia; “Sob Luís XVI, não se ousava falar, sob
Luís XV falava-se baixinho, e agora, sob Luís XVI, fala-se
bem alto”. (Daniel Marnet, op. cit., pg. 402)

Nada mais natural. Luís XIV vivera em Versalhes guardado


pela etiqueta. Luís XV reformou o grande castelo, pois não
suportava sua grandeza. Construiu lá os pequenos
apartamentos, íntimos, aconchegantes, mas sem a grandeza
soberana do Palácio. Mesmo assim, Luís XV quase não morava
lá. “Ele vivia em suas diversas residências, não mais como
Rei da França, e sim mais como um simples e rico particular.
Não só ele não suportava que aí houvesse qualquer
cerimonial, e aí bebia sem as pomposas formalidades do essai
du gobelet, mas nessas residências só admitia os familiares
e os convivas de sua escolha; ele aí se mostra igual a eles,
suporta até que nas orgias dos ‘petits soupers’ se zombe
dele, ‘nas suas barbas’. Não é somente a etiqueta que morre:
é o respeito que se vai” (Lavisse e Rambaud, op. cit., vol.
VIII, pg.339). Maria Antonieta e Luís XVI completaram o
ciclo. Ela, por fantasia, mandou construir o “Hameau “onde
uma rainha brincava de pastora. Era só um capricho…
Versailles, Petits apartementes, Hameau… e por fim a prisão
do Templo, a Conciergerie, e, finalmente, a guilhotina!

Se a mais alta autoridade recusava exercer o seu poder, que


se diria das menores?! O igualitarismo afetara a todas. O
Rei se despojava da Coroa, o Bispo dos paramentos, o nobre
da espada, e os comissários de polícia de suas becas.

No século XVIII, os comissários de polícia solicitaram


dispensa do uso da beca nas ruas, ao que sabiamente lhes
respondeu o Magistrado; “Conservai vossa beca, porque quando
algumas varas de sarja preta não forem mais suficientes para
a manutenção da ordem, e das leis, será preciso recorrer às
baionetas” (Hugues de Montbas, La Police Parisienne sous
Louis XVI pg. 82). Mais tarde, as becas foram abandonadas,
e, com Napoleão, as baionetas ficaram de moda… No aguardo de
Auschwitz e seus fornos criminosos. “Quando a autoridade,
escreve Daniel Marnet, no fim de sua pesquisa sobre as
Origens intelectuais da Revolução, por acaso tem o desejo ou
a ocasião de agir, ela se sente espionada ,ridicularizada,
mal apoiada ou desarmada… Muitas vezes, e mesmo nos altos
escalões, ela não tem nenhum desejo de agir… Já por 1770, as
Leis, decretos, editos, inspeções e visitas não são mais que
espantalhos irrisórios e formalidades superficiais’.

Não se poderia resumir melhor o conjunto da situação, do


porquê a Polícia estava paralisada, e o resultado dessa
paralisia. De todas as causas que concorreram para apressar
o fim do Antigo Regime, poucas houve tão decisivas quanto
esta demissão semivoluntária, semiresignada da autoridade e
de seus agentes, inferiores talvez ante uma tarefa
provavelmente impossível, mas sobretudo vítimas de uma
transformação dos costumes e dos espíritos da qual os
próprios promotores mais entusiastas deveriam ser, quinze
anos mais tarde, as primeiras vítimas.” (Hugues de Montbas,
op. cit., pg. 153).

Vendo quanto esse fenômeno se repete, hoje, por exemplo na


deterioração do policiamento e das punições judiciais, tem-
se a vontade de perguntar se não há nisto um sistema e uma
cumplicidade, além de simples fraqueza. Por que as
autoridades só discutem de
modo semiresignado e semivoluntário e se recusam a agir só
do lado contrarrevolucionário?

O que paralisava então a autoridade, e o que as paralisa,


hoje, no ocidente, é que as pessoas que deviam e devem
exercer a autoridade, estão elas menos contaminadas pela
mentalidade igualitária, quando não
pelas ideias revolucionárias. Daí, as simpatias pelos
revolucionários, e a falta de energia em sua repressão…

A crise igualitária, que foi uma das causas mais poderosas


da Revolução Francesa, tinha raiz no orgulho humano. É esta
verdade que o fato citado põe em evidência. Napoleão,
codificador e propagador da Revolução, e que dizia de si
mesmo “Eu sou a Revolução Francesa”, Napoleão perguntou
certa vez:

– “Que é que fez a Revolução?”

E ele mesmo respondia:

“A vaidade, a liberdade não foi senão o pretexto”.

Orlando Fedeli

Você também pode gostar