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fingimento artístico

Para pessoa o processo da criação poética implica uma atitude de fingimento por parte do criador. O poeta tem,
necessariamente, de fingir e isto significa imaginar, intelectualizar os sentimentos e as emoções, uma vez que
aquilo que o poeta sente tem de ser transfigurado, trabalhando mentalmente. Fingir é modelar através da
imaginação, é simular uma emoção ou sentimento. Assim, o primeiro verso do poema “autopsicografia” funciona
como uma tese, na qual Pessoa explica que o poeta tem de inventar a realidade, pois, só deste modo, ela adquire o
carácter de arte. Este processo de transformação da dor sentida em dor fingida materializa-se através da linguagem
poética.

A dor sentida, isto é, as emoções, os sentimentos experimentados e a realidade vivida não são aquilo que ele
transmite. As dores sentidas, essas ficam sempre com o poeta, são incomunicáveis. Elas poderão servir de suporte,
mas o poeta tem de as interiorizar para construir uma nova dor que é a que exprimir, aquela que vai transmitir aos
leitores. Mas estes, ao lerem a composição poética, não vão experimentar nem a dor sentida nem a dor fingida do
poeta. Eles vão também construir uma dor. A dor lida não é a dor que eles sentem, também ela tem que de ser
intelectualizada, embora todo o manancial de emoções e de sentimentos que os leitores dispõem possa estar na
base dessa construção mental. Se ser poeta é ser fingidor, então, é porque o ato criativo é um ato pensado, é uma
representação, mas este ato criativo só se completa quando a obra chega ao leitor, quando este faz a sua leitura.

Pode-se, então, concluir que a experiência emocional é o ponto de partida para a criação poética. Contudo, apenas
quando filtradas pela razão, as emoções adquirem a sua verdade estética.

O poeta baseia-se em experiências vividas, que procura escrever distanciado do sentimento. Pessoa apenas escreve
o que lhe vai no pensamento não o que se passa na realidade. Não sente o que não é real. Tem de haver uma
racionalização de pensamentos. Fingimento é intelectualizar os sentimentos para exprimir arte. A dor, as emoções
que são descritas nos poemas “autopsicografia” e “isto” não foram as sentidas pelo poeta no momento em que ele
os escreveu, foram “refleções” feitas através da análise das situações vividas. Ou seja, a poesia resulta das
memórias, das recordações. Por isso, Fernando Pessoa afirma que o “poeta” finge todos os sentimentos que passa
para o papel porque, no momento em que escreve, ele já não está a sentir o que sentiu no instante a que se refere
na poesia.

Exemplos

(“o poeta é um fingidor” / “dizem que finjo ou minto tudo o que escrevo”)

Rede semântica

• Dor sentida, dor fingida, dor lida;


• Imaginação/pensar;
• Emoção/razão;
• Consciência/inconsciência;
• Intelectualização;
• Sentir;
• Dor;
dor de pensar
A dor de pensar é um tema intenso e constante na obra de Fernando pessoa, que tudo submete à reflecção.
Perfeitamente consciente de que na vida tudo passa, não consegue viver, usufruindo cada momento, pois a
intelectualização de tudo o que perceciona, as consciências totais da realidade envolvente impedem-no de ser feliz.
Para Pessoa, a felicidade só existe na imaginação. Prisioneiro do pensar, ser lucido e inteligente, o poeta tudo
questiona – quem é, porque existe – sofre e angustia-se – pois não consegue responder às suas inquietações, às
suas dúvidas – torna-se num ser insatisfeito e daí o desejo recorrente de viver instintivamente.

Fernando Pessoa é um homem que vive e pensa simultaneamente, e que, pensando no que vive, pensa que a vida só
vale a pena ser vivida quando vivida sem pensamento, uma vez que o próprio pensamento corrompe a
inconsciência, inerente à felicidade de viver. De facto, mais feliz é aquele que vive na ignorância, alheio à realidade
da vida, do que aquele que baseia a sua existência na lucidez. Ele deseja ser mais inconsciente, aproveitar a vida sem
se questionar. Mas, na realidade ele tem a necessidade permanente de se questionar, de pensar, de intelectualizar
todas as situações, sentindo-se frustrado.

Exemplos

A dor de pensar surge nos poemas “a ceifeira” e “gato que brincas na rua”, em que Fernando Pessoa inveja o gato
porque é feliz na sua ingenuidade, vive de acordo com os seus instintos, (“invejo a sorte que é tua porque nem sorte
se chama” / “és feliz porque és assim”). Por outra vez Fernando Pessoa também inveja a ceifeira simples porque ela
canta só porque lhe apetece, alegremente, (“ah pode ser tu, sendo eu!” / “ter a tua alegre consciência” / “o que em
mim sente ‘stá pensando”).

Rede semântica

• Inconsciência/consciência
• Razão/emoção;
• O pensamento anula a felicidade;
• Se pensarmos não conseguimos sentir;
• Tristeza – consciência – pensamento – razão
nostalgia de infância
Sempre dilacerado pela angústia que o invade, pela deceção que é a sua vida, Fernando Pessoa tenta encontrar um
refúgio que lhe dê alento e lhe permita continuar a vida mesmo sem encontrar as respostas para as suas
inquietações. Esse efúgio é o passado que ele revisita, muitas vezes partindo do som de um instrumento musical, de
um cântico que perceciona ao longe ou mesmo de um canto de ave que o transportam para um tempo/espaço que
relembra, mas relembra como não verdadeiramente se, isto é, como se de facto o tivesse vivido (algo biográfico),
mas como uma representação atual desse tempo/espaço. Assim, a infância remota, que aparece como um ponto de
abrigo, não é propriamente aquela que o poeta viveu, mas sim a representação de uma infância que ele imagina
como a sua. A infância é o tempo da felicidade, da inocência, de “alegre consciência”. É o tempo de uma felicidade
que está longe e que está sempre perdida… é o tempo das histórias de encantar, dos contos de fadas, de príncipes e
princesas.

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