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(1922 – 2012)
2014
A INVENÇÃO DAS RELÍQUIAS. DISPOSITIVOS DE
AUTORIDADE NA MUSEALIZAÇÃO DE OBJETOS DO
ACERVO DO MUSEU HISTÓRICO NACIONAL
(1922 – 2012)
RIO DE JANEIRO
2014
FOLHA DE APROVAÇÃO
Aprovada por:
____________________________________________________________
Prof.ª. Drª. Andrea Daher- Presidente
____________________________________________________________
Prof. Dr. José Neves Bittencourt
____________________________________________________________
Prof.ª. Drª. Leila Bianchi Aguiar
____________________________________________________________
Prof. Dr. Ivan Coelho de Sá
____________________________________________________________
Prof.ª. Drª. Regina Abreu
iii
D532r BEZERRA, Rafael Zamorano.
A invenção das relíquias. Dispositivos de autoridade e
musealização de objetos no Museu Histórico Nacional (1922-
2012) / Rafael Zamorano Bezerra, 2014.
Vii, 185 f.: il.; 30 cm.
Orientador: Andrea Daher.
Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro
Programa de Pós-Graduação em História Social, Instituto de
História, Rio de Janeiro, 2014.
Referências: f. 176-187.
iv
RESUMO
v
ABSTRACT
In this research were analized two Authority's Dispositives mobalized during the
musealization and the historical authenticity evaluation of objects from the National Historical
Museum's collection, since its foundation, in 1922, until 2012: the Authority’s Dispositive of
Expertise; put into practice by the museum's staff graduated in the Curso Técnico de Museus
(Technical Museum Course) of MHN; and the Authority’s Dispositive of Forename, put into
practice by the “illustrious men”, whose surname and the reputation are elements that can prove
the object's historical authenticity. The changes that took place in the museological field in the
70’s indicate the upcoming of new authorities and new work methods concerning Museology,
pushing aside a museum technique focused on the classification and the orgnization of objects.
The role of the Dispositives of Authority during the collection's formation and its management is
a way to understand the rationality of the museological field. In the MHN's case, the research
hightlighted how the Authority of Forename and the Authority of Expertise are the dispositives
that have been forging the MHN's museological discourse since 1922.
vi
Conteúdo
Índice de figuras_______________________________________________________________8
Agradecimentos________________________________________________________________9
Introdução___________________________________________________________________10
1. A autoridade do especialista___________________________________________________24
4. Conclusão_________________________________________________________________170
Referências bibliográficas______________________________________________________175
Lista de fontes_______________________________________________________________184
vii
Índice de figuras
Figura 1: Traves da forca de Tiradentes. Acervo MHN. Reserva Técnica do MHN. 53
Figura 4: Porta da berlinda com o brasão da Casa Real Portuguesa encimado por coroa de duque
contendo um banco de lambel. Acervo MHN. 80
Figura 5: Instrumentos de dentista. Acervo MHN. Foto: MHN / Reserva Técnica. 102
Figura 7:Verso do mesmo documento, com firma reconhecida. Acervo do MHN. 104
Figura 8: "Crucifixo de D. João VI” e piano de D. Pedro II. Acervo MHN. Exposição Portugueses
no mundo. 117
Figura 10:O crucifixo de D. João VI no catálogo da exposição Um rei aclamado na América.. 122
Figura 11: Crucifixo vendido por Messias da Rocha ao MHN. Foto: AMHN. 1941. 122
Figura 13: “Tacape de Tibiriçá”. Foto: Catálogo Banco Safra, MHN, 1989. 126
Figura 17: Vestido de Ana Botafogo, jaleco de Ivo Pitanguy e demais instrumentos de trabalho.
Cidadania em construção, MHN. 166
8
Agradecimentos
Gostaria de agradecer o apoio dos colegas do MHN, instituição que, além de ser meu
objeto de pesquisa, é o meu local de trabalho, como historiador no setor de pesquisa e coeditor dos
e da museóloga e responsável pela reserva técnica do MHN, Maria De Simone Ferreira, pela
leitura crítica, amizade, carinho e incentivo na reta final da pesquisa. Deixo meu agradecimento
também à diretora do MHN, Vera Lúcia Brottel Tostes, e à coordenadora técnica, Ruth Beatriz
Caldeira, que, por compreenderem a importância de um trabalho como este, deram-me a liberdade
e o tempo necessário para a pesquisa e a redação. Aos colegas Adriana Bandeira Cordeiro, Maria
de Jesus Pires, Jorge Bandeira de Melo, João Luis Pirassununga, Vivian Greco, Eliane Rose e os
demais colegas do MHN deixo meus sinceros agradecimentos pelas conversas, dicas e
Agradeço também aos professores Felipe Charbel (UFRJ) e Márcia Chuva (UNIRIO),
Neves Bittencourt, Ivan Coelho de Sá, Regina Abreu e Leila Bianchi pela leitura crítica e por
questionamentos e orientações que irão preparar para a banca examinadora de defesa da tese.
À minha orientadora, professora Drª. Andrea Daher, agradeço pela atenção, paciência,
Por fim, e mais importante, agradeço à minha família: minha mãe, meus irmãos e meu
pequeno sobrinho, que, com o amor dedicado a mim, tornam meus caminhos possíveis.
9
Introdução
O Museu Histórico Nacional (MHN) foi criado em 1922 por iniciativa do jornalista e
historiador Gustavo Barroso como uma instituição pública, voltada para a representação da
história nacional por meio da exposição de objetos, legendas e painéis explicativos. Barroso
idealizou e dirigiu o MHN por 32 anos, imprimindo no Museu uma visão de história, considerada
vinculado aos feitos militares e à memória dos homens ilustres da nação. Ao longo dos seus mais
de 90 anos de existência, a instituição teve um papel pioneiro e, por vezes, central em diversas
criação do Curso de Museus em 1932, primeiro curso de caráter universitário dedicado ao ensino
do que hoje pode-se considerar como o campo disciplinar da museologia; e a criação da Inspetoria
regulamentação do patrimônio cultural em sua dimensão material. A IMN foi substituída em 1937
Museus funcionou até 1977 sob a direção do MHN, e formou as primeiras gerações de
museólogos do país.
Gustavo Barroso, ao longo dos 32 anos de atuação como diretor do MHN, foi um
importante agente no campo museológico nacional, em especial no Rio de Janeiro. Para José
Neves Bittencourt, a administração deu à instituição uma notável estabilidade, porém, contribuiu
para torná-la hermética às modificações que se observaram nas ciências humanas e sociais. O
Museu aferrou-se a um discurso cuja matriz era a historiografia do final do século XIX e início do
século XX e que, desde o final da década de 1940, vinha sendo fortemente criticada. 1 O
Darcy Ribeiro frente às instituições museológicas que dirigiram e que ajudaram a fundar. Sobre a
“imaginação museal” de Gustavo Barroso, Chagas destaca três aspectos recorrentes: museu,
A museologia saudosa de Barroso parece querer fazer crer que o passado se deixa
capturar por inteiro e se entrega sem conflito como verdade pronta. [...] Barroso,
por processos metonímicos, parece querer recuperar o passado integral, e com ele
e por ele, a verdade. O seu “culto da saudade” é, por esse caminho, uma
afirmação indubitável da verdade.2
Outro aspecto importante para Chagas é a tendência de Barroso para a valorização da vida
amalgamar o amor ao passado, a tendência militar, a formação bacharelesca e o gosto pela arte. A
e fabricar a identificação integral com eles”. Barroso, ainda na análise de Chagas, seria “o
guerreiro defensor das relíquias, o alferes, o chefe das milícias a quem o passado confiara a tarefa
de defender a história, a nação e a tradição”. 3 Já o MHN seria uma “ponte museológica entre o
passado. O que estava em causa não era a ruptura, era continuidade e tradição.” 4 O objetivo
principal de Barroso seria o de narrar a evolução da nação brasileira e, para tanto, era necessário
MHN deveria ser “uma espécie de cartão de identidade da nação e ser identificado como tal”. 5
2
CHAGAS, Mário. A imaginação museal. Museu, memória e poder em Gustavo Barroso, Gilberto Freyre e Darcy
Ribeiro. Rio de Janeiro: MinC / IBRAM, 2009. p. 76-77.
3
Id. p. 81.
4
Id. p. 89.
5
Id. p. 91.
11
científica e autêntica do passado,6 segundo Chagas:
atuantes no campo museológico e do patrimônio são de natureza diversa, frutos das demandas por
museu idealizada por Barroso, mas não o entendimento das práticas de musealização e das
como parte de um projeto de escrita da história, que disputou com outros projetos a legitimidade
entre a escrita da história produzida na instituição com a obra de Francisco Adolfo de Varnhagen,
branco sobre os índios e negros, bem como da civilização europeia sobre a barbárie indígena. Para
mapear o projeto museológico e a história nacional difundida por Barroso no MHN, Magalhães
primeira fase dos Anais do MHN (1940 - 1975) e o Curso de Museus, idealizado por Barroso para
formar profissionais capacitados para atuarem em museus e instituições afins. Para Magalhães, o
6
Id. p. 97.
7
Id. p. 58.
8
MAGALHÃES, Aline Montenegro. Culto da saudade na Casa do Brasil. Gustavo Barroso e o Museu Histórico
Nacional. Ceará: Museu do Ceará, 2006.
12
método de trabalho adotado e difundido nos Anais do MHN e nas técnicas de museu ensinadas no
curso são formas de reinvenção das práticas antiquárias com vistas a uma escrita da história
conhecimentos eram vistos como essenciais para atestar a autenticidade dos objetos, além
especialista, ou seja, como estes conservadores, devido à sua experiência e à sua formação,
autenticidade dos objetos musealizados na instituição. Para o historiador José Neves Bittencourt,
cânones positivistas ao tipo de documento com que lidavam, configurando um tipo de pesquisa
aplicada.11 Esse trabalho consistia em mergulhar “na intimidade mais recolhida do documento,
buscando nele sinais que situassem o possuidor, o fato histórico e a época – uma espécie de tríade
mítica que o objeto materializava”.12 Bittencourt observa como nos textos dos AMHN esses
9
MAGALHÃES, Aline Montenegro. Culto da saudade na Casa do Brasil... Op. cit. p. 71.
10
Id. p. 81.
11
BITTENCOURT, José Neves. Cada coisa em seu lugar... Op. cit. p. 152.
12
Id. p. 152.
13
profissionais revelavam-se investigadores de indícios legados pelas grandes figuras e pelos
partir do trabalho de Regina Abreu, A fabricação do Imortal, dedicado à análise da doação, feita
ao MHN em 1936, de objetos pessoais e da coleção particular do político Miguel Calmon por sua
viúva, Alice da Porciúncula Calmon du Pin e Almeida. Tais objetos, conhecidos como a Coleção
Miguel Calmon, representam a maior e mais valiosa doação já recebida pelo MHN. Abreu
assinala que não houve nada de despretensioso no gesto da viúva: trata-se de uma troca de
presentes a partir da qual se imortalizou na história nacional a memória de seu esposo. Ao analisar
os objetos doados, Abreu identificou uma cuidadosa seleção, que visou à construção da imagem
de Miguel Calmon como um homem público, cuja vida foi dedicada à nação. Os objetos da
coleção apontam para os laços do casal com as antigas nobrezas brasileira e europeia, o que,
segundo Abreu, era eficaz forma de distinção social durante as primeiras décadas da República.
Nesse aspecto, os diversos objetos doados “[...] vinham circulando durante séculos no interior da
nobreza, selando alianças e reafirmando identidades”. Esses objetos, ao serem musealizados, “[…]
continuam vivos servindo para a perene legitimação dos valores desse segmento”. Em outras
brasileira no contexto do Museu Histórico Nacional.14 De fato, as elites nacionais das primeiras
décadas do século XX encontraram no MHN um local adequado para perpetuar e atualizar seu
antiguidade desses objetos, as pessoas e os vínculos familiares que representam são elementos de
valoração histórica relacionados ao tipo de autoridade que identificamos nesta tese como
13
Id. p.154.
14
ABREU, Regina. A fabricação do imortal. Memória, história e estratégias de consagração no Brasil. Rio de
Janeiro: Rocco/Lapa, 1996. p.59.
14
dispositivo de autoridade do nome próprio, ou seja: como o nome próprio ou de família atua
Sendo um museu com mais de 90 anos, a instituição reflete formas distintas de “escrita da
história” praticadas por funcionários e diretores do MHN ao longo desses anos. Myrian Sepúlveda
dos Santos analisou dois momentos distintos do MHN. A partir das considerações de Pierre Nora
“museu-narrativa”. Para ela, o MHN de 1922 era um museu onde a história era tratada “de forma
muito próxima àquela dos antigos antiquários, ou mesmo da história romântica, que demonstrava o
desejo de resguardar do tempo tudo que fosse original e autêntico [...]”. Nesse museu,
caracterizado pela autora como “museu-memória”, “a história é representada por uma sequência
de objetos e palavras do passado que refletem uma temporalidade descontínua e pontual [...]”. 15
romântica, que demonstrava o desejo de resguardar do tempo aquilo que fosse original e
pois a narrativa histórica, adotada nas exposições de longa duração, foi concebida de forma
cronológica e dividida por períodos históricos específicos: colônia, império e república. Para a
autora, esta narrativa subordina à sua lógica o sentido do objeto, que acaba tendo uma função
distanciamento entre o presente e o passado, uma vez “que o passado é apresentado por meio de
uma crítica neutra e/ou ideológica”. Em suas palavras “o ‘sentimento nostálgico’, capaz de reviver
a tradição, de permitir uma identificação entre o ontem e o hoje inexiste quando se prioriza a
razão e se expulsa o irracional dos objetos”. 16 O trabalho de Santos coloca em cena as mudanças
15
SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. A escrita do passado em museus históricos. Rio de Janeiro: IPHAN, 2006. p. 20.
16
Id. p. 22.
15
nos usos e nos sentidos do acervo, mostrando como diferentes atores imprimiram, ao longo dos
aquisições de acervo por funcionários da instituição, entre os anos de 1922 e 2002; e a dissertação
processo de revitalização do MHN, tendo por base dois indicadores: as políticas de aquisição e os
circuitos de longa duração. A pesquisa de Fernandes mostra como o acervo museológico mudou
em suas significações ao ser organizado de acordo com sua “função original”, o que gerou uma
nova classificação, tendo por base o Thesaurus para acervos museológicos, publicado por Helena
Dodd Ferrez e Maria Helena S. Bianchini.19 Esse tratamento visou tratar os objetos como sistemas
de informação, descaracterizando seu caráter de relíquia. Por sua vez, Raquel Pret analisou o
deslocamento dos objetos da categoria de entidade para a de emblemas, para defender que esse
deslocamento se articulou a partir da ruptura de uma escrita da história que valorizava os vultos
do passado para fins de uma escrita estruturalista com ênfase na crítica social. A pesquisa mostra
como isso relaciona-se às mudanças nos usos da memória nessas instituições, que refletem as
A partir dos caminhos trilhados por esses trabalhos e da pesquisa documental nos arquivos
alguns objetos do acervo a fim de identificar e descrever duas formas de autoridade mobilizadas
17
FERNANDES, Lia. Museu Histórico Nacional: permanências e mudanças. 2003. Dissertação (mestrado em
História Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, 2003.
18
PRET, Raquel Louise Coelho. Ver é conhecer - memória e identidade no processo de revitalização do Museu
Histórico Nacional (1982-1989). 2010, 175p. Dissertação. (mestrado em Memória Social). Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro, 2010.
19
FERREZ, Helena Dodd. & BIANCHINI, Maria Helena S. Thesaurus para acervos museológicos. Rio de Janeiro:
Fundação Pró-Memória, 1987.
16
na musealização e na avaliação histórica de objetos pertencentes às coleções do MHN: a
no Curso de Museu, como pelos especialistas por eles referenciados e consultados em suas
representado pelo “homem ilustre” vinculado às aristocracias nacionais e cuja reputação, o “nome
próprio” (como o nome de família), é capaz de agregar valor histórico e certificar autenticidade
aos objetos doados ou vendidos ao MHN. Portanto, o objetivo não foi contar a história da
Autoridade e poder não devem ser tomados como sinônimos. A palavra “poder” tem
origem latina de potestas, e significa potência, capacidade de fazer, ter permissão ou estar
habilitado para fazer algo. Autoridade vem de auctoritas e significa ser gerador de qualquer coisa
ou alguém, fonte ou origem, autor ou artífice. Autoridade tem correspondência com o termo autor,
que significa o criador, aquele que é promotor e inventor de oportunidades. A raiz de ambas as
palavras é augere, que significa aumentar, acrescer, ampliar, acelerar, fazer crescer, propor,
sustentar, desenvolver, autorizar, consentir.20 Hannah Arendt atenta que o conceito de autoridade,
presente em boa parte da história ocidental, tem origem platônica. Platão, crítico da democracia
ateniense, queria buscar uma alternativa para a maneira usual de os gregos lidarem com os
assuntos públicos na polis, que eram a persuasão, representada pelo sofista, e a violência. Era
convencimento. Platão argumentou com base nos modelos das relações existentes na vida
cotidiana, como o pastor e suas ovelhas, um médico e o paciente, o timoneiro e seu barco. Em
todos esses casos o conhecimento especializado infunde confiança, de modo que nem a força nem
20
ABBAGANO, N. Autoridade. In: ______. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 113-115.
17
a persuasão são necessárias para obter a aceitação dos homens. É a autoridade do sábio que
O termo autoridade é de origem romana, pois nem a língua grega nem as várias
de governo que isso implica.22 No contexto romano, a autoridade era vinculada ao saber, mas
fundação da cidade. Aquilo que a autoridade romana constantemente aumentava era a própria
tradição de Roma. Para Cícero, a autoridade tinha suas raízes no passado e na experiência,
evidenciando a fórmula histórica magistra vitae, sem que houvesse desigualdade natural entre os
homens. Nesse sentido, Arendt atenta para o fato de que os exemplos e os feitos dos antepassados
tinham um caráter coercitivo, na medida em que, o que quer que acontecesse, se tornava um
exemplo, um auctoritas maiorum. O passado era santificado através da tradição, legando de uma
geração a outra o testemunho dos antepassados que inicialmente presenciaram e criaram a sagrada
fundação.
Georges Nivat atenta para a relação entre autoridade e criação. O ato de criação “faz
autoridade”. Um autor pode destruir sua obra, um pai tem autoridade sobre os filhos, Deus tem
autoridade sobre o homem.23 O mesmo vale para um museu e sua coleção. Porém, quando se trata
21
ARENDT, Hanna. Entre passado e futuro. São Paulo: Perspectiva, 2005. p. 129.
22
ARENDT, Hannah. O que é autoridade. In:______. Entre o passado e o futuro... Op. cit. p. 142.
23
NIVAT, George. Le futur de l'autorité. Rencontres Internationales de Genève. Tome XL, Genève: 2005.
Disponível em: <http://www.rencontres-int-geneve.ch/volumes_pdf/rig40.pdf> Acesso em: 12 abr. 2013.
18
Entende-se que o discurso museológico, como qualquer outro discurso, é delimitado por
ritual.25 Sendo o discurso museológico adotado no MHN caracterizado pela ideia de nacional, dá-
se, portanto, pela presença daquilo que Foucault nomeou como “unidades discursivas”, ou seja,
noções que permitem uma continuidade, uma linearidade histórica entre o passado e o presente.
Buscamos nesta tese entender como as autoridades do especialista e do nome próprio são
especialista, consagrado em seu meio profissional, como o homem cujo nome impõe respeito por
seu status e por suas realizações são elementos de autoridade que atestam autenticidade a objetos.
[...] autor não entendido [...] como o indivíduo falante que pronunciou ou
escreveu um texto, mas o autor como princípio de agrupamento do discurso,
como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência”. 26
discursos sobre o nacional. Esse “efeito autoral”, portanto, dota os objetos de historicidade e
autoriza a crença nela o que se materializa em etiquetas, legendas, catálogos e no uso desses
objetos como ilustrações de manuais de história (mesmo que esses objetos venham a ser
Para descrever o papel dessas autoridades, o plano traçado para esta tese partiu da análise
catálogos. Uma das conclusões da tese é que a lógica patrimonial em se inserem os acervos
museológicos tem por base argumentos de autoridade, que definem o que é ou não é passível de
“histórico”, “artístico”, “etnográfico” etc. Isso coloca a autoridade e seus diferentes exercícios
pelo Curso de Museus criado com o intuito de formar profissionais capacitados a atuarem no
MHN e em instituições afins. Os artigos produzidos por esses profissionais foram objetos de
estudo, assim como seus trabalhos de crítica de acervo, elaboração de laudos e atestados de
27
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In: ______. Ditos e escritos. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p.44-45.
20
autenticidade. Foram incluídos nesse capítulo dois estudos de caso externos ao MHN, que
pertencentes à coleção dos Museus Castro Maya, além de uma pintura a óleo e uma aquarela do
religiosas da coleção de Renato Whitaker por especialistas em arte sacra. Em todos os casos,
disciplinas específicas, como a heráldica e a numismática, seja pelo olhar treinado, capaz de
Para tanto, foi analisada a documentação museológica do acervo, composta por cartas de doação,
recibos de venda, declarações de autenticidade, ofícios e cartas enviadas por órgãos públicos sobre
trabalho, que, por vezes, relegaram a um segundo plano as chamadas técnicas de museus, que
incluíam estudos das “ciências auxiliares da história”, como a heráldica e a numismática. Por um
lado, os objetos coletados pelos funcionários da instituição deixaram de ser avaliados a partir da
21
sociológicas como “capitalismo”, “infância” ou “sociedade de consumo”. Por outro lado,
instituição, uma vez que os objetos oriundos dessa fase, principalmente aqueles de grandes
coleções particulares, ainda são bastante expostos, sendo os mais valiosos em termos monetários
da coleção.
Ao fim dessa trajetória arqueológica dos objetos, foram revelados alguns momentos fortes
especialista que fundamentam o caráter histórico e nacional da coleção, que fazem parte, assim,
nesse sentido, as relações de força e de poder presentes na instituição ao longo dos seus 90 anos.
22
1. A autoridade do especialista
Who is to be the judge of skill? Presumably, either the expert and the nonexpert.
But it cannot be the nonexpert, for he does not know what constitutes skill
(otherwise he would be an expert). Nor can it be the expert, because that would
make him a party to the dispute, and hence untrustworthy to be a judge in this
own case. Therefore, nobody can be the judge of skills.28
objetos históricos e artísticos. Foi o que ocorreu em 2011, quando foi amplamente divulgada na
mídia a notícia da identificação, via densitometria óssea, dos restos mortais de Domingos Vidal
Barbosa, João Dias Mota e José Resende Costa, três envolvidos no episódio da Inconfidência
Mineira que morreram no degredo em Guiné Bissau. O Instituto Brasileiro de Museus (Ibram),
órgão responsável pela gestão e pela Política Nacional de Museus (PNM) brasileiros, noticiou o
Nas informações reportadas pelo Instituto, consta que os três homens foram enterrados em
urnas por uma comunidade “indígena” na Vila de Cacheu. Em 1932, os despojos foram exumados
a pedido do cônsul brasileiro em Dakar, sendo na época identificados como os dos três
seus pais e avós contavam, que naquele local estavam enterrados três brasileiros degredados. Em
1936, os restos mortais chegaram ao Rio de Janeiro e ficaram sob a guarda do Arquivo Histórico
do Itamaraty.
28
WALTON, Douglas. Legal argumentation and evidence. Pennsylvania: Penn State Press. p. 178. [Quem é o juiz da
especialidade? Presumidamente, tanto o especialista como o leigo. Porém, não pode ser o leigo, por que ele não sabe
o que constitui a especialidade (de outra forma ele seria um especialista). Não pode ser o especialista, uma vez que ele
poderia tomar partido na disputa e, deste modo, desonestamente, ser o juiz do seu próprio interesse.
Consequentemente, ninguém pode ser juiz da especialidade.] Tradução livre do autor.
29
Disponível em:. <http://www.museus.gov.br/noticias/ossadas-de-inconfidentes-sao-identificadas/> Acesso em: 19
mar. 2012.
23
Ainda naquele ano, Getúlio Vargas baixou um decreto que visava o repatriamento dos
despojos dos inconfidentes mortos nos degredos de Portugal e da África, sendo assim enviadas ao
Brasil treze urnas cinerárias com restos mortais de outros inconfidentes. Esses restos estão no
Panteão dos Inconfidentes, criado em 1942 no Museu da Inconfidência em Ouro Preto, Minas
Gerais. Porém, as ossadas dos degredados exumados na Vila de Cacheu não tiveram o mesmo
destino e permaneceram nos arquivos do Itamaraty. Em 1992 eles foram enviados ao Museu da
Preto/MG.
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) para confirmar a identidade das ossadas. Uma
equipe chefiada pelo professor Eduardo Daruge realizou um minucioso trabalho de pesquisa no
material, cujo resultado identificou três indivíduos com grande diferença de idade. Mediante essa
diferença foram utilizadas as “fontes históricas” no confrontamento com a datação realizada pela
equipe do professor Durage, o que permitiu, ao fim das análises, coincidir as idades das ossadas
como “uma importante descoberta histórica”.30 Pelo feito, o professor Durage recebeu uma
honraria, a medalha Tiradentes, no feriado nacional do inconfidente, durante uma cerimônia que
alojou os restos mortais dos degredados no Panteão dos Inconfidentes. Estiveram presentes a esta
cerimônia autoridades políticas como a presidente Dilma Roussef, a ministra da Cultura, Ana de
30
Disponível em: <http://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti/tag/eduardo-daruge/> e <http://mac-
asf.blogspot.com.br/2011/04/ibram-ossadas-de-inconfidentes-sao.html > Acessos em: 21 abr. 2013.
24
estado de Minas Gerais, Aécio Neves.
Desde a exumação até a musealização, os restos mortais dos três inconfidentes mortos em
degredo tiveram sua trajetória marcada pela intervenção de diferentes autoridades. A primeira
autoridade é o testemunho de uma “indígena” que indica, a partir da memória dos pais, o local de
envio dos despojos ao Brasil, que ficaram no Itamaraty. Em 1922, foram enviadas ao Museu, que
as recusou. Porém, a sagração dos restos mortais foi finalmente concluída quando foram
acionados os cientistas da Universidade Estadual de Campinas, que, com base nos resultados da
densitometria óssea, confrontados com as provas documentais oriundas das fontes históricas,
provavelmente a “Sentença da Alçada” que condenou os inconfidentes, fez com que os restos
e as honrarias a seguir distribuídas deram lastro à descoberta, de modo que os restos mortais
A exigência pela autenticidade científica do patrimônio histórico faz com que o saber
especializado seja a instância autorizada para produzir provas, emitir laudos, identificar datações e
31
Gustavo Barroso foi membro das principais agremiações culturais do país como a Academia Brasileira de Letras,
cujo ingresso, com apenas 35 anos, o tornou o membro mais jovem a fazer parte da instituição. Em 1931, passou a
integrar o grupo de sócios do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Também fez parte de instituições
congêneres do exterior, como a Academia de Ciências de Lisboa e a Sociedade de História Argentina. Em 1934,
indicado por Washington Pires, foi nomeado representante do Brasil junto à Comissão Internacional de Monumentos
Históricos do Instituto Internacional de Cooperação Intelectual, da Liga das Nações. No mesmo ano, tornou-se
responsável pela Inspetoria de Monumentos Nacionais (IMN), criada como um departamento do MHN. A IMN
realizou reformas em 35 monumentos de Ouro Preto, sendo desativada em 1937, por conta da criação do SPHAN.
MAGALHÃES, Aline Montenegro. Colecionando relíquias. Um estudo sobre a Inspetoria de Monumentos
Nacionais, 1934 a 1937. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
Rio de Janeiro, 2004.
25
polígrafo, adepto de uma tradição histórica monumental, com ênfase nos grandes feitos e nos
grandes homens. Barroso já vinha, desde 1911, defendendo a ideia de se criar um museu nacional:
Onze anos mais tarde, Barroso foi designado diretor do MHN, criado por Epitácio Pessoa
em 2 de agosto de 1922, ocupando o cargo por 35 anos.33 A história nacional que o diretor do
século XIX e no início do XX. Autores como Joaquim Norberto, Oliveira Lima, Visconde de
Porto Seguro, Vieira Fazenda, Pedro Calmon, Edgar Romero, entre outros, são recorrentes nas
referências citadas nas páginas dos primeiros volumes dos Anais do MHN, embasando pesquisas
Museu. Aline Montenegro Magalhães observa que, apesar das poucas referências a Francisco
Adolfo de Varnhagen nos Anais do Museu Histórico Nacional (AMHN), a representação histórica
exposta nas galerias do MHN em muito se aproximava daquela produzida pelo Visconde de Porto
Seguro, que acreditava na superioridade cultural do branco sobre índios e negros, ou seja, da
civilização ocidental sobre a “barbárie” das sociedades indígenas e africanas. Em sua história do
Brasil, a lei, a ordem, a religião e a autoridade seriam fundamentais para a formação de uma nação
civilizada.
Quereis saber o que é a nação brasileira? Olhai para o próprio brasão d’armas
que a simboliza. Nele vereis a esfera armilar, significando a origem da dinastia e
32
Apud MOTENEGRO, Aline Magalhães. O culto da saudade... Op. cit. p. 23.
33
Sua primeira gestão durou até 1930, quando foi afastado pelo Presidente Getúlio Vargas, em represália ao apoio
dado a Júlio Prestes nas eleições, sendo reconduzido ao cargo em 1932, lá permanecendo até o fim de sua vida, em
1959.
26
a do Estado, e nele também vereis a Cruz da Ordem de Cristo, que representa por
si só a história da civilização do país.34
Os objetos recolhidos por Gustavo Barroso e sua equipe parecem materializar a citação
histórico”. A seleção por si só implica estabelecer a diferença entre o que é “histórico” e o que não
é, pois, como lembra Meneses, os atributos intrínsecos dos artefatos incluem apenas propriedades
critérios.35 Para Barroso, esses critérios relacionavam-se aos vultos da história pátria, aos grandes
ergológico.36
A tipologia do artefato não era determinante, e sim sua relação com o “passado nacional”
ou com histórias de países civilizados, da qual a história nacional deveria ser parte. Para Barroso,
nossos maiores, ou rememorantes de suas glórias [...]”.37 Os “nossos maiores”, neste caso, eram os
34
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História geral do Brasil. Rio de Janeiro: Leammert, 1857. p. XXV.
35
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Do teatro da memória ao laboratório da História: a exposição museológica e o
conhecimento histórico. Anais do Museu Paulista. São Paulo, v. 2 p. 9-42 jan./dez. 1994.
36
De acordo com Barroso, o Museu Ergológico deveria abarcar as seguintes áreas: mobiliário; alimentação;
indumentária; moradia; arte naval; transporte; medicina; tecidos; tintas; decorações; esteiras; cestas; cerâmicas;
brinquedos; arreios; entrançados de couro; obras de chifre; objetos de tartaruga; carpintaria; trabalhos em madeira;
artefatos de cobre; curtume; pescaria; ourivesaria; prataria; ferraduras; marcas de gado etc. BARROSO, Gustavo.
Museu ergológico brasileiro, desenvolvimento de estudos folclóricos em nosso país, um esquema ergológico, outras
notas. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v. 3, p. 433-488, 1945.
37
BRASIL. Museu Histórico Nacional, Relatório de 1922, Rio de Janeiro, 1922. p. 5.
27
das camadas dominantes da sociedade brasileira. A relação entre o “objeto histórico” e as elites
[...] Curioso é que este viés tenha como vetores, seja o excepcional,
principalmente na versão das artes decorativas (a belíssima cama de José
Bonifácio), seja o banal irrelevante (o lápis de d. Pedro II) que, por sua própria
insignificância, serve de caução ao excepcional e à credibilidade dos valores que
se devem exaltar. Nos dois casos, os vínculos pessoais são condição relevante e
singularizadora.39
Embora não existisse uma política formalizada de aquisição de acervo, a maioria dos
objetos recolhidos por Barroso datava do século XIX. Muitos são oriundos de coleções
preocupação com a autenticidade histórica era uma constante na rotina do Museu. José Neves
Bittencourt identificou nas ações dos conservadores do MHN três parâmetros norteadores que
item, ou seja, quem o tinha possuído ou a que evento histórico estava ligado; 3) a identidade do
[...] não necessariamente todos os objetos indicam pessoas que pudessem ser
imediatamente entendidas como “históricas”, em boa parte dos casos devido à
falta da chancela do tempo. Isto, no entanto, não os desqualificava. Entravam em
jogo as características intrínsecas do objeto (dentre os quais a antiguidade era
apenas um dado, mas não o único e nem sequer o mais importante), e a posição
social e/ou política do doador.40
38
ROCA, Andrea. As classificações e abordagens dos acervos no Museu Histórico Nacional da República Argentina.
Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, v. 40, p. 437-455, 2008. BITTENCOURT, José Neves. Cada
coisa em seu lugar: ensaio de interpretação de um museu de história. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v. 8/9, p.
151-174, 2002-2001. ______. Em todos os lugares, em lugar nenhum: apontamentos sobre a construção de uma
tradição em torno da preservação do Patrimônio Cultural no Brasil. (mimeo). Rio de Janeiro: Centro de Referência
Luso-brasileira – MHN, 2001.
39
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Do teatro da memória ao laboratório da História... Op. cit.
40
BITTENCOURT, José Neves. Cada coisa em seu lugar: ensaio de interpretação de um museu de história. Anais do
Museu Paulista, São Paulo, v. 8/9, p. 151-174, 2002-2001. p. 160.
28
Barroso e os demais conservadores do MHN estudavam minuciosamente medalhas,
às práticas da tradição antiquária dos séculos XVII e XVIII, tal como observado por Santos e
escrita de uma história política e do estado, significava a preocupação com uma cientificidade nas
história ilustrada com o detalhamento minucioso da erudição e das práticas antiquárias. O MHN
uniu, portanto, o “culto da saudade” à pesquisa histórica baseada em fontes materiais, estudadas
através das chamadas “ciências auxiliares da história”. O melhor exemplo disso é a criação do
Curso de Museus, em 1932, como um departamento do MHN, tendo sido um dos primeiros cursos
do mundo dedicado ao ensino do que podemos chamar hoje de museologia, que se voltava para a
Para Ivan Coelho de Sá, o Curso de Museus do MHN foi influenciado diretamente pela
experiência francesa de gestão de coleções, especificamente pela École des Chartes e pela École
du Louvre. Com a Revolução Francesa, o passado tornou-se uma das preocupações do Novo
Regime. “O rei agora é o rei dos franceses, tornando-se imprescindível que estes mesmos
franceses tenham e conheçam a sua história, ocupação acadêmica a ser administrada pelo Estado,
mas também tarefa política com relação aos usos do passado.”42 Uma dessas tarefas foi a iniciativa
Coroa.
Ainda que os museus tenham sido laboratórios para os mais diversos campos do saber,
história nacional (como nos países latino-americanos durante a construção dos estados nacionais,
século XX. Por muito tempo, os museus, em suas várias tipologias, eram considerados campo de
acervos, na identificação dos artefatos, sobretudo como forma de decifrar textos, inscrições ou
O International Museums Office, criado em 1926 pela Liga das Nações, forneceu uma
A primeira instituição regular de ensino voltada para capacitar profissionais para o trabalho
com o patrimônio cultural foi a École Nationale des Chartes, criada em 1821, com um currículo
medieval” pelo nacionalismo romântico de finais do século XVIII e início do século XIX, 46 que
impulsionou várias iniciativas de valorização do passado medieval, com destaque para as atuações
de Eugène Viollet-le-Duc e Alexandre Lenoir.47 O objetivo da nova instituição era capacitar jovens
para organizar documentos confiscados pela Revolução e renovar a história nacional. 48 Como
observa Ivan Coelho de Sá, havia uma necessidade de organizar e dar tratamento técnico
adequado às coleções e arquivos apreendidos pela Revolução, o que convergia para as ideias de
públicos.49 O curso da École des Chartes era estruturado em ciências cujas aplicabilidades
instituições políticas da França, de arqueologia e de direitos canônico, civil e feudal. Para Sá, a
disciplina Classificação de arquivos e bibliotecas foi uma espécie de ponto de partida para os
estudos classificatórios, não somente de arquivos e bibliotecas mas também de museus, na medida
e pinturas.
A École du Louvre foi fundada em 1882 com o objetivo possibilitar a instrução do público,
a partir das coleções e do conhecimento sobre elas. Para isso era preciso treinar curadores,
46
Cf. <http://www.enc.sorbonne.fr/presentation-ecole-nationale-des-chartes> Acesso em 12 mar. 2013.
47
SÁ, Ivan Coelho de. As matrizes francesas e origens comuns no Brasil... Op. cit.
48
Cf. <http://www.enc.sorbonne.fr/presentation-ecole-nationale-des-chartes> Acesso em 23 jan. 2014.
49
SÁ, Ivan Coelho de. As matrizes francesas e origens comuns no Brasil... Op. cit. p. 6.
31
missionários e escavadores. Os cursos eram voltados para a disciplina de Arqueologia e incluíam
noções de História da Arte, podendo ser caracterizados como cursos de Arqueologia e Epigrafia.
Em 1920 foi criado o curso de História da Arte e em 1927 o curso de Museologia, considerados no
site da École du Louvre como o primeiro curso de museologia do mundo. 50 Todavia, Sá observa
que, apesar do termo “museologia”, o curso era focado nas questões museográficas, ou seja, na
prática dos museus, principalmente as exposições. Isso revela a preocupação maior que era o
relativas ao museu enquanto objeto de estudo, como sua função social e as relações dos museus
anos mais tarde a tônica principal do estudo da museologia. O Museu do Louvre tornou-se, assim,
um eficaz laboratório para os alunos da École du Louvre, dentre os quais Georges Henri Rivière,
que concluiu o curso em 1928 e logo se destacou como museógrafo e museólogo. 51 Este curso do
Louvre exportou para o mundo uma matriz curricular que foi modelo para a formação em
museologia e influenciou o próprio Curso de Museus do MHN, consolidado em 1932, 52 tal como
demonstra Sá:
50
Cf. <http://www.ecoledulouvre.fr/en/ecole-louvre/history> Acesso em: 23 fev. 2014.
51
Georges Henri Rivière se graduou na École du Louvre em 1928 e durante os anos seguintes trabalhou com a
coleção de D. David-Weill, a qual continha porcelanas chinesas e antiguidades gregas e romanas. Em 1928, tornou-se
vice-diretor de Paul Rivet no Musée du Trocadéro, o qual foi totalmente modernizado e entregue ao público em 1938
como Musée de L'Homme. Entre 1948 e 1965, George Henri Rivière foi o primeiro diretor do Conselho Internacional
de Museus (ICOM), ao qual retornou como conselheiro permanente em 1968. É amplamente reconhecido pela sua
atuação no desenvolvimento dos ecomuseus na França, sendo uma das principais referências na área.
52
SÁ, Ivan Coelho de. As matrizes francesas e origens comuns no Brasil... Op. cit. p. 11.
32
cursos do Louvre influenciaram a nascente formação em museologia no Brasil
em dois momentos: no curso técnico (1922), com as disciplinas arqueologia e
história da arte, e no curso de museus (1932), com a disciplina Técnica de
Museus.53
com duração de dois anos, cujo principal objetivo era formar oficiais para o MHN e amanuenses
para o Arquivo e a Biblioteca Nacional,54 foi apenas durante a curta gestão do historiador Rodolfo
Garcia (1930-1932) que foi criado o Curso Técnico de Museus. De acordo com o Decreto nº
21.129 de 7 de março de 1932, o curso estava ligado diretamente à direção do Museu, com
duração de dois anos e com o objetivo de habilitar técnicos para ocupar o cargo de 3º Oficial do
MHN.55 Assim, a capacitação dos funcionários do MHN era realizada no próprio Museu, uma vez
que seu decreto de criação especificava estabelecer “[...] um Curso de Museus destinado ao ensino
administrativa do Brasil, Joaquim Menezes de Oliva, professor de História da arte, João Angyone
Numismática.
A primeira turma do Curso de Museus formou-se em 1933 e foi composta por Alfredo
Solano de Barros, Adolpho Dumans, Guy José Paulo de Hollanda, Luiz Marques Poliano, Maria
José Motta e Albuquerque, Maria Luiza Lage, Paulo Olintho de Oliveira e Raphael Martins
53
Id. p. 25
54
ALMEIDA, Cícero Antônio Fonseca de; SÁ, Ivan Coelho de; CHAGAS, Mário de Souza. Projeto de reformulação
curricular do curso de museologia. Elaborado pela comissão de estudos curriculares da Escola de Museologia. Rio de
Janeiro: UNIRIO. Julho/Outubro, 2006. p. 10 [Mimeo].
55
BRASIL. Decreto nº 21.129 de 7 de março de 1932.
56
Id. Ibid.
33
Ferreira. Como o Curso visava formar conservadores para o MHN e instituições análogas, alguns
ex-alunos se tornaram funcionários do MHN, como foi o caso de Adolpho Dumans, Guy José
Assim, os egressos das primeiras turmas, ainda nos anos de 1930 e 1940, tornaram-se
professores e atuaram por várias décadas, formando o que Sá considera como a “segunda geração”
da Museologia no Brasil. São eles: Anna Barrafatto, formada em 1936; Nair de Moraes Carvalho,
formada em 1936; Yolanda Marcondes Portugal, formada em 1937; Octávia de Castro Corrêa de
Oliveira, formada em 1938; Jenny Dreyfus, formada em 1939; José Francisco Felix de Mariz,
formado em 1940; Dulce Cardozo Ludolf, formada em 1941; Gilda Maria de Almeida Lopes,
O curso passou por uma reforma em 1944 que visava qualificar profissionais para outras
instituições análogas ao MHN e que haviam sido criadas durante as décadas de 1930 e 1940,
sobretudo no âmbito federal.58 No relatório anual de 1944 do MHN, publicado nos AMHN,
volume 5, Barroso queixa-se com o ministro Gustavo Capanema da mudança feita no programa
do curso elaborado e dirigido por ele há 10 anos. O diretor do MHN foi contra três pontos
alterados no currículo do curso, como a mudança da palavra “arquitetura” por “edifício” no nome
novo título – “Elementos do patrimônio histórico e artístico” – e o requisito de essa matéria ser
57
ALMEIDA, Cícero Antônio Fonseca de; SÁ, Ivan Coelho de; CHAGAS, Mário de Souza. Projeto de reformulação
curricular do curso de museologia... Op. cit. p. 12.
58
Como a Casa de Rui Barbosa - RJ (1930), Museu da Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência - RJ
(1933), Museu Histórico da Cidade - RJ (1934), Museu Nacional de Belas Artes - RJ (1937), Museu da Inconfidência
- Ouro Preto (1938), Museu da Imperial Irmandade de Nossa Senhora da Glória do Outeiro - RJ (1939), Museu
Imperial - Petrópolis (1940), Museu das Missões - RS (1940), Museu Antônio Parreiras - Niterói (1941), Museu
Histórico de Belo Horizonte (1943), Museu do Ouro de Sabará (1945), Museu da Venerável Ordem Terceira do
Carmo - RJ (1945). Todas estas instituições foram criadas, organizadas ou mesmo dirigidas por profissionais
formados pelo Curso de Museus, o que mostra como o Curso possibilitou uma metodologia de trabalho semelhante
em diversas instituições museais no Brasil.
34
Sinto dizer que é de lamentar que não prevaleça no caso a opinião do professor
da cadeira durante dez anos e seu criador, dum técnico no assunto que pode
provar de público seus conhecimentos, que é, graças a Deus, reconhecido como
tal até pelas autoridades do país, que lhe cometem a honrosa tarefa de dar parecer
sobre uniformes e ministrar conhecimentos sobre armas aos alunos das escolas
militares, que tem obras publicadas a respeito, que há vinte anos classifica
coleções de particulares a pedido destes e que já classificou mais de 12 mil
objetos no Museu Histórico, para que prevaleça a opinião de quem nunca versou,
ensinou ou deu qualquer outra prova de conhecimento na matéria. 59
O curso estruturado até então por Barroso tinha, no primeiro ano, a disciplina Técnica de
museus – parte geral ou noções gerais, que consistia em aprendizados “básicos para o trabalho
segundo ano era oferecida a disciplina de Técnica de museus – parte básica ou noções básicas,
que servia de preparo para o conservador entrar na parte especializada, diferente para os museus
aos museus de caráter histórico, uma vez que o ensino do terceiro ano para os museus de belas
artes era outro. Assim, o conservador, no terceiro ano, teria que estar apto para classificar a longa
armaria, arte naval, viaturas, arquiteturas, mobiliário, indumentária, cerâmica, cristais, ourivesaria,
A disciplina Técnica de museus teve seu nome alterado no projeto para Elementos do
patrimônio histórico e artístico e foi transferida para o primeiro ano do curso. Para Barroso, isso
era inaceitável, uma vez que “ela depende em absoluto do conhecimento das outras que estudarão
depois. É o que se chama ficar de pernas ao ar para andar o carro diante dos bois [...]”, 60 uma vez
que, para ele, essa parte era a mais importante, por ser a mais especializada e técnica no que diz
59
BARROSO, Gustavo. O curso de Museus. Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, v. 5. p. 191-201,
ano 1944. Página citada, 194.
60
Id. p. 195.
35
respeito à correta classificação dos objetos.
Suponhamos um aluno ou o conservador classificando um objeto entrado no
museu. É uma arma e tem inscrições ou punções de armeiro. Os que conhecem o
assunto sabem que estes elementos podem decuplicar o valor do objeto. O
classificador como poderá caracterizar a escrita dessa inscrição ou a forma das
letras do punção, se não tiver as noções básicas de epigrafia e diplomática que
lhe ensinaram a distinguir alfabetos e escritas? O mesmo se dará quanto aos
contrastes de prata e ouro. Como saber se as chamadas letras anuas, que indicam
a data da relíquia examinada, são unciais, góticas, cirílicas, monásticas, etc., sem
aquelas noções diplomáticas e epigráficas? 61
Tendo em vista essa proposta, Barroso sugeriu o seguinte: no 1° ano, Técnica de Museus,
com uma parte geral (organização e arrumação etc.) e uma parte básica (noções de epigrafia,
cronologia etc), no 2° ano, Técnica de Museus, com uma parte especializada (classificação de
objetos de heráldica, armaria, arte naval, arquitetura etc.), no 3° ano, Técnica de Museus, com
Brasileira e sobre a inclusão da disciplina chamada Artes Menores, o diretor do Museu fez a
seguinte observação:
Não vejo motivo técnico para a criação duma cadeira especial de Artes Menores.
Essa parte está incluída na cadeira de História da Arte, como é natural que seja. É
verdade que enquanto o curso teve professores gratuitos e diretor gratuito,
produziu ótimos resultados, até formou discípulos que julgam hoje saber mais
que os antigos mestres, e não provocou interesse, a não ser dos que a ele se
dedicam por amor ao museu. Tratando-se de remunerar esses dedicados
servidores, é natural, é humano que aquele interesse desperte modificações
apressadas, divisões inconsistentes de cadeiras e exibições de pseudo
entendidos.62
Pelo resultado da reforma feita no curso, percebe-se que Barroso conseguiu manter suas
61
Id. p. 194.
62
Id. p. 197.
36
principais reivindicações. Na reforma de 1944, o curso foi dividido em duas seções: de museus
históricos e de museus de belas artes. A disciplina Técnica de museus ficou sendo obrigatória em
todos os anos do curso e em ambas as seções, sendo divida em no 1º ano uma parte geral que “terá
uma parte básica que, “terá como introdução o estudo da cronologia e compreenderá as noções
aplicada que, “será especializada e constará da aplicação dos estudos feitos nas demais disciplinas
aos problemas inerentes, respectivamente, aos museus históricos e de belas artes”. As disciplinas
Parte geral
1ª Série
2ª Série
Parte especial
3ª Série
Seção de Museus Históricos
37
Seção de Museus de Belas-Artes ou artísticos
1. Arquitetura;
2. Pintura e Gravura;
3. Escultura;
4. Arqueologia brasileira, Arte indígena e Arte popular.
5. Técnica de Museus (Parte aplicada)
defendida por Barroso foi mantida, com ênfase na Técnica de Museus, que o estruturava. A
disciplina Técnica de Museus foi ministrada por Gustavo Barroso até 1954.63 Ela foi base para o
ensino de museologia que se desenvolveu posteriormente no Brasil até meados da década de 1970,
quando o campo passou por uma série de transformações. O programa era constituído por um
contemporânea.
Em 1946, Barroso publicou o livro Introdução à técnica de Museus como material didático
do curso e que teve bastante influência na formação de diversos museólogos que atuaram no
conceito do Curso de Museus. Publicado em dois volumes, a primeira parte do livro é dedicada ao
processamento técnico de acervo, e a segunda é relativa ao estudo das coleções que compunham o
Barroso e de suas aulas, uma vez que eram utilizados como manual por seus alunos. Tais
63
Desde 1952, a disciplina Introdução à Técnica de Museus vinha sendo ministrada pela antiga aluna e
conservadora Otávia Correa dos Santos Oliveira.
38
artísticos, mecanismos e instrumentos de suplício.
Museu, visando à sua classificação. Portanto, as chamadas “ciências auxiliares da história” tinham
um papel fundamental neste trabalho, ainda mais no caso “particular do Museu Histórico
Nacional, que é uma instituição destinada a conservar relíquias do nosso passado”. 64 Tais
conhecimentos eram fundamentais não somente para a classificação dos objetos, mas também no
[...] é regra fundamental da heráldica não pôr nunca num brasão metal sobre
metal, cor sobre cor e pele sobre pele. Todas as armas que não obedecem a esse
princípio básico são anteriores à codificação da arte de brasonar, muito antigas,
portanto falsas. Consideram-se por isso sujeitas a inquérito, a um estudo
minucioso, não podendo ser aceitas sem esse exame. 66
mostra como a museologia de Gustavo Barroso estava focada nas famílias tradicionais do período
colonial e imperial, assim como nos objetos relativos ao Estado. A correta classificação do objeto
histórico, nessa perspectiva, passava pelo reconhecimento dos elementos heráldicos, sendo sua
classificação de objetos estiveram presentes nos diferentes currículos. No currículo de 1944, que
teve vigência até 1966, as “ciências auxiliares da história” eram oferecidas no cronograma da
64
BARROSO, Gustavo. Introdução à técnica de museus. V. 1. Rio de Janeiro: Olímpica, 1933. P. 14.
65
BARROSO, Gustavo. Introdução à técnica de museus... Op. cit. p. 16.
66
Id. p. 14.
39
possivelmente devido ao importante acervo numismático da instituição. No de 1966, a emissão do
classificação de cinco objetos do acervo do MHN, escolhidos pelo coordenador do curso e pelos
chefes das divisões. O mesmo ocorreu no currículo de 1966, vigente até 1969. No currículo de
primeiro ano, sendo no segundo ano oferecidos os cursos de numismática, vidros, cristais e
Serviço Público (DASP), Gustavo Barroso questionou o tratamento diferenciado dado aos
conservadores do MHN e aos naturalistas do Museu Nacional, que, naquele contexto, tinham
salários e rubricas superiores aos dos conservadores do Museu. Barroso, em suas argumentações,
expõe que os trabalhos das duas carreiras são similares, com a diferença de que, enquanto o
de conservador era amplamente usado e conhecido no campo dos museus, contando com
propugnar sua mudança para designações que têm sido algumas vezes propostas: Técnicos de
Conservatório, ou seja, um estabelecimento que visava a propagar uma ciência ou uma arte e
67
Entre 1970 e 1996 houve várias reformas experimentais, especialmente nos anos de 1971, 1972, 1973 e 1974. Em
1975 ocorreu uma reforma efetiva com alterações em 1976 e 1978. Em 1986 ocorreu uma nova reforma no currículo,
assim como em 1996.
68
BARROSO, Gustavo. A carreira de conservador. Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, v. VIII, p.
229-234, ano 1947. p. 233.
40
No Brasil, homens ilustres pelo seu saber, como o Dr. Pedro Calmon, Reitor da
Universidade, os professores Edgard Romero, Angyone Costa e muitos outros
honram-se com o título de Conservadores. O signatário dessas linhas, membro da
Academia Brasileira de Letras e diretor do Museu Histórico Nacional, tem
orgulho de ser o mais antigo conservador do Brasil.69
cotidiano dos conservadores. Os AMHN foram o principal meio de divulgação dessas práticas, e
seus artigos e monografias, principalmente os publicados entre 1940 e 1975, 70 tinham o objetivo
de difundir o acervo, aferir ou criticar sua autenticidade, além de publicizar o trabalho em museus,
tal como podemos ver no texto da conservadora Dulce Cardozo Ludolf, publicado em 1952:
Ludolf atenta para o fato de que houve uma separação entre as especificidades dos
profissionais dos museus de história e dos museus de história natural. Nestes, eles são
trabalho dos conservadores ela atribuía um caráter científico, cuja autoridade derivava dos
saberes numismáticos de Edgar de Araújo Romero e Luiz Carlos Poliano, por exemplo:
69
Id. p. 231.
70
Corresponde à primeira série dos AMHN. A seriação foi interrompida em 1975 e retomada 20 anos depois, em
1995, sendo publicada interruptamente até os dias atuais.
71
LUDOLF, Dulce Cardozo. A nova diretriz dos museus. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v. XIII,
ano 1952. p. 152.
72
Id. p.193.
41
[...] a atuação dos conservadores é, portanto, cientificamente positiva, daí seu
prestígio nos meios culturais. [...] espera-se [dos conservadores] o conhecimento
da arte e da história, em todas as suas facetas e suas ligações complexas com as
outras ciências; o espírito informativo nas consultas; a paciência e a perseverança
nas pesquisas; o gosto estético nas arrumações; a síntese e a precisão na
elaboração das etiquetas, guias e catálogos.73
objetos de valor histórico. Pode-se argumentar que, talvez, um dos objetivos de Gustavo Barroso
ao idealizar o MHN era o de que a instituição atuasse como instância autorizada na avaliação de
objetos históricos e antiguidades, espaço ocupado nos dias de hoje pelas casas de leilões,
73
Id. p. 161.
74
BARROS, Sigrid Porto de. Armas que documentam a guerra holandesa. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio
de Janeiro, v. X, ano 1949. p. 178.
75
Id. p. 180.
76
Primeiro departamento federal de proteção do patrimônio, criado por iniciativa de Gustavo Barroso e que funcionou
como um departamento do MHN de 1934 a 1937. Sobre a trajetória da IMN, cf. MAGALHÃES, Aline Montenegro.
Colecionando relíquias... Op. cit.
42
constava o seguinte artigo: “Art. 82. O Museu Histórico Nacional autenticará os objetos artísticos
históricos que lhe forem apresentados mediante requerimento das partes interessadas e de acordo
com a tabela anexa”. Tal procedimento também é destacado no decreto de criação da instituição,
Durante as décadas de 1940, 1950 e 1960 era recorrente que os funcionários do MHN
referência em estudos numismáticos, sendo a disciplina uma das bases da museologia produzida
no MHN, inclusive nos dias de hoje, momento em que a direção da instituição vangloria-se da sua
vasta coleção, considerada a maior da América Latina. Publicou inclusive, em 2011, a Silloge
remete à atuação de conservadores como Edgar de Araújo Romero, Yolanda Marcondes Portugal,
Dulce Ludolf, Jenny Dreyfus, Fortunné Levy, Luís Marques Poliano, Alfredo Solano de Barros,
Antônio Pimentel Wins e, mais recentemente, Rejane Maria Lobo Vieira, Eliane Rose, Maricí
Martins Magalhães, entre outros. Cabe ressaltar que a numismática tem uma relação importante
com a valoração das coleções de cunho histórico. Como observa Arnaldo Momigliano, o trabalho
dos numismatas foi importante na organização de cronologias históricas e como fonte primária
77
BRASIL. Decreto Nº 15.596, de 2 de agosto de 1922.
43
para uma escrita da história política, religiosa e militar.78
Deste modo, era recorrente que funcionários do MHN fossem requisitados para dar parecer
sobre coleções e objetos, como em 1947, quando a conservadora Dulce Ludolf foi convidada para
apreciar na Bahia uma moeda de ouro, datada de 1855, e pertencente a Armando Goes de Araújo.
deputado pela Bahia e presidente da Província de Pernambuco. A análise de Dulce Ludolf segue o
A moeda, de acordo com o proprietário, era exemplar único, visto que ele não encontrou
nenhuma informação na Casa da Moeda, o que o levava a crer que a cunhagem constituísse num
ensaio não aprovado, o que se evidenciava pelo fato de não haver vestígios de circulação na
moeda em questão. No entanto, Ludolf escreve ter encontrado um documento inédito que revelava
as circunstâncias de sua cunhagem. O documento mencionado por Ludolf é uma ata de uma visita
que D. Pedro II realizou à Casa da Moeda em 1855 para assistir aos primeiros trabalhos de uma
prensa monetária construída por operários brasileiros. Durante a visita foram cunhadas 50 moedas
A descrição das moedas citadas no documento encontrado por Ludolf confere com a análise da
78
MOMIGLIANO, Arnaldo. The Classical foundations of modern historiography. Berkeley, Los Angeles: University
of California Press, 1990.
79
LUDOLF, Dulce. Exemplar único de uma pequena cunhagem. Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro,
v. 8, ano 1947. p. 74-75.
44
moeda da Bahia. O documento informa que D. Pedro ficou com quatro exemplares (dois de ouro e
dois de prata), sem mencionar o que foi feito com os demais. Assim conclui Ludolf:
intuito de saber o destino dado aos outros exemplares, contudo nada encontrou.
A pesquisa realizada pela numismata mostra outra faceta do trabalho dos conservadores do
MHN: a busca por indícios que possibilitem o reconhecimento da procedência dos objetos
estudados. Tais informações agregam valor aos objetos em coleção, permitindo, no caso, a Ludolf
afirmar que sua descoberta reveste a moeda “de importância histórica e maior valor”, ainda mais
As compras realizadas pela instituição também contavam com pareceres técnicos dos
funcionários, que, além de atestar e pesquisar o valor dos objetos, recomendavam ou não a
efetivação do negócio. Uma citação exemplar disso ocorreu em 3 de novembro de 1960, quando a
conservador Antônio Pimentel Winz de negociar com Yeddo Afonso Moutinho de Solano Barros a
compra de medalhas81 para integrar o então recém-criado Museu da República, que na época
MHN englobavam um vasto universo de objetos. Em 1960, foi encaminhada uma carta ao MHN
correspondência foi respondida pela conservadora Octávia Corrêa dos Santos Oliveira, na época
chefe da seção de História e Arte Retrospectiva, que “não sendo propriamente especializada na
parte de música e seus instrumentos”, informou que poderia prestar esclarecimentos no que se
referia à parte histórica do objeto. Na primeira correspondência, a conservadora escreveu que seria
[...] uma instituição como a nossa ou outra qualquer especializada no assunto, tal
seja a Escola Nacional de Música, não poderá garantir a autenticidade da peça,
sem um exame rigoroso que salvaguarde sua responsabilidade. 83
82
MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Correspondência. Ofícios expedidos. Jan. a Jun. 1960. AS DG2 13(3).
83
MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Correspondência. Ofícios expedidos. Jan. a Jun. 1960. AS DG2 13(3).
46
técnico, tenha sido feito por um artista tcheco, que tivesse querido dar a seu
violino as formas perfeitas e qualidade preciosas de um Stradivarius, teve, no
entanto, a honestidade de acrescentar “made in Czechoslovakia”. Pela
informação que o sr. Juvenal nos dá, ousamos acrescentar que seu Stradivarius é
uma imitação, porquanto em nenhuma parte do mundo, possuidor que tivesse um
“Stradivarius” legítimo, iria acrescentar made in Czechoslovakia que anulasse o
valor inestimável de seu instrumento.84
O curioso dessa avaliação é que, ao mesmo tempo em que revela uma “ingenuidade” de
Juvenal Fagundes em não identificar algo tão óbvio em seu instrumento, aponta para a força das
inscrições nos objetos. O violino em questão poderia ser original, mas a simples inscrição made in
o que teria acontecido se o violino fosse realmente falso, porém sem a inscrição, uma vez que,
segundo a conservadora, o violino era “perfeito do ponto de vista técnico” e “o ano que consta ou
que se pode ver pelo ouvido de seu violino em forma de S ou F, está perfeitamente enquadrado na
o que é interessante, pois muitas vezes tais críticas significavam a desvalorização de objetos, já
que acabavam por negar a autenticidade de determinado artefato ou obra de arte. Nessas críticas,
os conservadores, além do seu próprio conhecimento, mobilizam outras autoridades e fontes para
Esse é o caso do texto de Gustavo Barroso sobre os objetos conhecidos como as “Traves
da forca de Tiradentes” presentes nas coleções do MHN desde os primeiros meses após a sua
fundação. As traves eram originalmente parte do acervo do Museu Nacional e foram transferidas
para o MHN em 1922. Eram sete as traves e, com a criação do Museu da Inconfidência, duas
Figueiredo, e “Tiradentes Esquartejado” (1893), de Pedro Américo. Pelo visto, as traves já foram
tratadas como relíquias históricas desde que foram encontradas, tendo, portanto, por destino
O artigo publicado em 1941 nos AMHN por Barroso destaca como elemento de
comprovação de autenticidade o seu tamanho, pois as traves da forca em que Tiradentes foi
executado eram maiores que as usuais. Barroso apoia sua análise no livro A História da
Norberto foi feito tendo por base os Autos da Devassa, documentos encontrados pelo próprio
Norberto, e outros documentos até então desconhecidos. Trata-se das Memórias do êxito que teve
a conjuração de Minas e dos fatos relativos a ela acontecidos nesta cidade do Rio de Janeiro,
desde o dia 17 até 26 de abril 1792, de autor desconhecido, e Os últimos momentos dos
inconfidentes de 1789 pelo padre que os assistiu de confissão, de Frei Raimundo Penaforte.
Nesses documentos encontram-se essas referências sobre o tamanho das traves. Primeiro, a partir
confissão, Penaforte diz ainda que “Os demais regimentos estavam postados em figura triangular,
deixando uma praça vazia, na qual estava a forca elevadíssima, de sorte que a escada, por onde se
85
SOUSA SILVA, Joaquim Norberto. História da conjuração mineira. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1948. p.
120. p. 134.
48
subiria a ela, tinha mais de vinte degraus [...]”.86
local onde foram encontradas: o calabouço do antigo Aljube. Os eclesiásticos tinham foro
privilegiado no período colonial e, caso condenados por algum crime, eram encarcerados no
Aljube, então administrado pela Igreja. A prisão foi construída em 1732 ao pé do morro da
Conceição (Rio de Janeiro, RJ), abaixo do Palácio Episcopal (hoje ocupado pelo Serviço
Geográfico do Exército), próximo à junção da rua da Prainha (atual rua do Acre) e rua da Vala
(atual rua Uruguaiana). Em 1808, em decorrência da chegada da Corte, o Aljube foi requisitado
publicados por Vieira Fazenda na imprensa e depois reunidos no volume 140 da Revista do IHGB.
Destes textos, vários foram dedicados ao tema da Inconfidência, especialmente a Tiradentes. Vale
observar que muitos artigos têm como preocupação principal buscar determinadas precisões
históricas como o local do patíbulo ou a data exata da execução. Em outro, Vieira questiona a
86
Id. p. 158.
87
HOLLOWAY, Thomas. O calabouço e o Aljube do Rio de Janeiro no século XIX. In: NUNES, Clarissa et al., (Org.)
História das prisões no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. v. 1, pp. 253-282.
88
BARROSO, G. A forca de Tiradentes. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v. 2, ano 1941, p. 341-
349. p. 348.
49
validade de depoimentos de idosos, testemunhas oculares da execução de Silva Xavier, ainda
vivas em finais do século XIX. O artigo começa com uma intrigante memória:
conciliar essa narração com o fato que nos foi referido, de existirem no Museu Nacional os restos
da forca em que foi supliciado Silva Xavier?” 90 Para complicar ainda mais a questão, menciona
como o próprio Gustavo Barroso, Vieira Fazenda e Joaquim Norberto, que acabaram por se inserir
iconográfica. Quanto à dimensão cívico-religiosa assumida pelo objeto, cabe ressaltar que, quando
havia a Sala Tiradentes no MHN, as pessoas levavam “pedacinhos” da forca até que a “Pretoria do
MHN [...] teve que tirar a forca de Tiradentes da exposição pelo assédio dos visitantes, ávidos por
89
FAZENDA, Vieira. Antiqualhas e memórias do Rio de Janeiro. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. Rio de Janeiro, tomo 86, v. 140, p. 222-228, 1919. p. 214.
90
FAZENDA, Vieira. Antiqualhas e memórias do Rio de Janeiro... Op. cit. p. 214.
91
Id. p. 214.
50
Figura 1: Traves da forca de Tiradentes. Acervo MHN. Reserva Técnica do MHN.
Outro objeto cuja autenticidade é questionada, também pelo próprio Barroso, é o artefato
conhecido como “aldrava da casa de Marília de Dirceu”. O acessório foi coletado pelo próprio
Gustavo Barroso, ao se deparar com a precária situação física da casa em Ouro Preto. O gesto,
segundo François Choay, de arrancar aos monumentos fragmentos para compor coleções privadas
era uma atitude praticada pelos antiquários, que, pautados por outros padrões de conservação,
Ao retirar a aldrava, Barroso teve a cautela de produzir uma ata de autenticação, de modo a
legitimar o ato. Vale observar que, dos oito signatários da ata, o único civil a assinar foi o próprio
Gustavo Barroso, o que indica, talvez, que ele quisesse dar também legalidade à ação por
92
BRASIL. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, Dicop, Ficha Histórica, n. 024.970, n. do catálogo, 3823.
93
CHOAY, Françoise. Alegoria do patrimônio. São Paulo: Unesp, 2006. p. 89-90.
51
meio da autoridade dos militares, todos do oficialato. Na ata consta também a retirada de uma
pedra do Morro da Queimada, local relacionado à revolta de Felipe dos Santos, ou de Vila Rica.
Aos trinta e um dias do mês de agosto do ano de mil novecentos e vinte e seis,
nesta cidade de Ouro Preto, no bairro de Antônio Dias, na soleira da casa de
residência de Marília de Dirceu, em nossa presença, pelo Dr. Gustavo Barroso,
diretor do Museu Histórico Nacional, foi dito que, atendendo ao estado de ruína
desse edifício, tão ligado ao nosso passado, e receando que numa jurisprudência
pelos meios legais seria talvez tardia devido ao afindissimo [sic] do respectivo
prédio, resolvia retirar, para ser recolhido ao museu que dirige, a aldrava da porta
principal [...]. A aldrava é uma peça de bronze trabalhado, mostrando [...] as
características do estilo barroco-colonial, sendo certo se tratar da que sempre
serviu a essa porta. Declarara mais os presentes que pelo mesmo Dr. Gustavo
Barroso foi retirado no morro da Queimada [...] das minas duma das casas do
arraial de Paschoal de Moraes [...] mandado incendiar e destruir pelo Conde de
Assumar, uma pedra, que recolhemos como sendo a mesma que a esta
acompanha.
52
Peço que se lavre a presente ata que vai devidamente assinada e rubricada.
Barroso afirma que “todos” que escreveram sobre Ouro Preto se referiam àquele
edifício singelo e vasto, de biqueira, que se erguia acima da pequena esplanada dominadora,
além da famosa ponte romana, como sendo a verdadeira residência da noiva de Tomás Antônio
Gonzaga. A identificação daquela casa como sendo a de Marília é indicada pelas próprias liras
de Gonzaga:
Barroso:
[...] visitando, uma noite, em sua residência, o ilustre professor Baeta Neves,
prefeito da cidade, tive dolorosa surpresa. Estava eu em companhia do meu
amigo Odorico Neves e ouvi do provecto mestre que a Casa de Marília não
passava duma lenda. Talvez ela tivesse existido ali; mas aquela que toda a gente
considerava como tal era muito mais moderna e tinha sido erigida pelo Barão de
Ouro Branco.
Comentando com outro amigo, no dia seguinte, [...] tive o prazer de travar
94
BRASIL. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Dicop. Ata de autenticação. 024.970, n. do catálogo, 3823.
documento 2.
95
GONZAGA, Tomás Antônio. Marília de Dirceu, Lira XXXV. São Paulo: Ediouro, s.d.
53
relações com um jovem engenheiro, o dr. Jerson Dias, [sic] que fora encarregado
da triste demolição. Disse-me ele julgar não se tratar mesmo da casa de Marília,
pois encontrara ripas e madeiramentos das taipas, pregos modernos, desses de
maço, fabricados recentemente. Ora, se se tratasse de moradia construída nos
tempos coloniais os pregos deveriam ser de forja, pois eram os únicos usados
naquela época.96
historiadores, críticos e eruditos, deviam, de acordo com Barroso, se prestar a analisar o caso e
Não tenho competência para afirmar se a casa que foi posta abaixo foi ou não a
autêntica da noiva de Gonzaga [...] Embora me faleçam os meios de tomar parte
na mesma, julgo que os historiadores, críticos e eruditos mineiros devem se
ocupar do caso, ventilá-lo, decidir de vez se a casa demolida era ou não a de
Marília.97
em 1941, por Menezes de Oliva, ao estudar as pinturas conhecidas como “Ovais de Leandro
Joaquim”. O conservador sustenta sua argumentação tendo por base informações levantadas por
historiadores de arte e críticos como Gonzaga Duque, Araújo Porto Alegre, Nair Baptista e Argeu
Guimarães, que consideram que a morte de Leandro Joaquim tenha ocorrido por volta de 1798.
Apesar de essa datação não ser precisa, o curador afirma que não há nenhum indício de obras de
[...] como atribuir, portanto, ao artista fluminense a autoria dos seis ovais
pertencentes ao Museu Histórico Nacional, se, pelo menos três deles registram
acontecimentos que se ligam à chegada da família real ao Brasil? O primeiro
representa a chegada do príncipe regente ao Rio de Janeiro, em 1808. Os navios
ingleses fundearam diante de Villegagnon, onde os franceses, chefiados por
Nicolas Durand de Villegagnon, haviam lançado os fundamentos da França
Antártica, e salvam ao pavilhão de S.M. Fidelíssima. Ao fundo a Fortaleza da
Laje.
O segundo documenta a Revista Militar no largo do Paço, em honra ao príncipe
regente D. João, em 13 de maio de 1808, primeiro aniversário que S.M.
96
BARROSO, Gustavo. Documentário da ação do Museu Histórico Nacional na defesa do patrimônio tradicional
nacional. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v. 4, ano 1994, p.5-201. Página citada, 16.
97
BARROSO, Gustavo. A casa de Marília. Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, v. 5, p. 14-17, 1944.
p. 15-16.
54
comemora no Brasil. [...]
O terceiro mostra uma festa veneziana em honra aos soberanos portugueses
diante do Hospital dos Lázaros (Antiga Casa dos Jesuítas), 1818. [...]
Os 4º, 5º e 6º representam na verdade cenas e panoramas que bem podiam ser
feitos em época anterior a 1800: Pesca da baleia na Baía de Guanabara; a igreja e
a praia da Glória, a lapa do Desterro, os arcos de Santa Tereza; e a lagoa do
Boqueirão, que o vice-rei Dom Luís de Vasconcellos fez aterrar e transformar em
passeio público em 1783.
Mas o olhar menos experimentado logo dirá, num ligeiro confronto, que todos
eles foram pintados pelo mesmo artista, dentro da mesma técnica e com o mesmo
emprego das tintas. É palpite e palpite errado atribuir, por conseguinte, a Leandro
Joaquim a autoria dos seis painéis ovais que ornam a Sala D. João VI do nosso
Museu Histórico Nacional e que foram adquiridos por intermédio da antiga
galeria Jorge, em Portugal.98
Cordeiro de Melo e Norma Botelho Portugal, ambos museólogos e formados pelo Curso de
autoria dos referidos ovais por Leandro Joaquim, tendo por base os estudos realizados por
Nas duas críticas publicadas nos AMHN, os autores Menezes de Oliva, Jorge Cordeiro e
Norma Portugal utilizaram autoridades reconhecidas no campo para afirmar a autoria dos quadros.
O argumento principal utilizado pelos técnicos baseia-se, como visto, no estudo do renomado
especialista Gilberto Ferrez, concorrendo para isso sua “seriedade técnica e científica”. No
entanto, ambas análises completam-se tendo por base o reconhecimento visual das pinturas. Além
argumento definitivo sobre a autoria: “visivelmente todos foram pintados na mesma época”,
argumento utilizado por todos os envolvidos na questão dos ovais de Leandro Joaquim.
100
MELO, Jorge Cordeiro de; PORTUGAL, Norma Botelho. Atribuição ou autoria? Anais do Museu Histórico
Nacional. Rio de Janeiro, v. 35, ano 2003. p. 277.
56
normatização dos títulos das obras, que apresentavam diferentes grafias. Ambos identificaram
documentação museológica sob guarda do MHN. Pelo levantamento feito, percebe-se que
olhar do especialista foram determinantes para a proposta de normatização dos títulos das
pinturas.
“Visita de uma esquadra inglesa ao Rio de Janeiro”; “Visita de uma frota inglesa ao Rio de
Rio de Janeiro”. O título sugerido pelos técnicos para a normatização dos dados museológicos
foi “Visita de uma esquadra inglesa ao Rio de Janeiro”. Esse título, segundo eles, tornar-se-ia
adequado, pois “os dados visuais representados são bastante claros. Certamente representava
uma esquadra inglesa que aportava no Rio de Janeiro, em demanda da Índia, durante a guerra
contra os franceses que terminou em 1781. A obra reproduz navios de linha claramente
seguintes títulos: “Festa veneziana em honra a D. João VI”; “Procissão ou romaria marítima ao
Hospital dos Lázaros”; “Festa veneziana”; “Festa veneziana em honra ao Príncipe Regente”;
“Romaria marítima diante do Hospital dos Lázaros”. A sugestão de títulos dos técnicos foi
argumentação deles, “o objeto apresenta dados visuais que permitem uma interpretação
relativamente segura quanto ao local e logradouro representado, embora não precisa no que
101
Id. p. 286.
57
Já o oval intitulado “Revista militar no Largo do Paço” tinha os seguintes títulos:
sugerem como título “Revista militar no Largo do Carmo”, uma vez que
necessidade de reclassificação das obras surgiu em 2007, quando Júlio Bandeira, historiador
raisonné da obra de Jean Baptiste Debret, intitulado Debret e o Brasil.103 Nesse catálogo, os
elaboração do catálogo foi formado um comitê de autenticação composto por ambos; pelo
embaixador João Hermes Pereira de Araújo, vice-presidente do IHGB e que fizera várias
(MNBA) desde 1977; por Jean Boghici, “quiçá o mais renomado e experiente marchand de
arte no Brasil”104; e por Claudine Lebrum Jouve, autora do catálogo raisonné de Nicolas
Antoine Taunay.
outras como “atribuições rejeitadas”, quando a opinião do comitê foi unânime em não
reconhecer nelas a autoria de Debret. Essas obras, explicam os consultados, “podem ser
102
Id. Ibid.
103
BANDEIRA, Júlio; LAGO, Pedro Corrêa do. Debret e o Brasil. Obra completa. Rio de Janeiro: Capivara, 2007
104
Id. p. 16.
58
quadros autênticos (às vezes de grande qualidade), mas que foram atribuídas a Debret e são, na
verdade, de outros autores do período [...] como também podem ser falsificações
pintores viajantes, conseguiu trazer para o Brasil a coleção de aquarelas de Debret, comprada
por Raimundo Ottoni de Casto Maya, tornando-se conhecida hoje como coleção Castro Maya.
Ocorre que Heymann aproveitou-se de seu prestígio e começou a produzir em seu ateliê
artistas para realizarem cópias e imitações. Heymann, segundo os autores do catálogo, teria
vendido suas falsificações até mesmo para colecionadores de grande porte, como o próprio
Castro Maya.
O estrago foi tão grande que 8% da coleção Debret dos Museus Castro Maya, 42
aquarelas num total de 551, foi classificada como “atribuição rejeitada”, posto que oriundas do
ateliê de Heymann. No caso das telas a óleo do MHN, não há informações seguras sobre sua
aquisição, sabe-se somente que o MHN comprou, ao longo dos anos, alguns quadros
105
Id. p. 17.
106
Id. p. 17.
59
atribuídos ao pintor francês, especialmente no ano de 1973, quando da venda realizada pelo
casamento de dom Pedro com dona Amélia e Batimento de quilha da barca a vapor Campista,
este último cedido para o Museu da Marinha. O MHN já possuía, entretanto, desde 1947, os
do MHN que foram classificadas como “atribuições questionadas” foram a pintura a óleo
Sobre a aquarela apenas informam que “foram também incluídas nessa seção [de obras
erroneamente atribuídas a Debret] um desenho antigo atribuído por equívoco a Debret por um
museu [...]”.108
A publicação do catálogo causou alvoroço entre as direções dos museus citados, visto
das obras atribuídas a Debret,109 composta pela museóloga e técnica do IPHAN Adriana
107
Id. p. 678.
108
Id. p. 681.
109
BRASIL, MINISTÉRIO DA CULTURA, INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO
NACIONAL. Portaria nº 365, publicada no DOU de 18 de novembro de 2008.
60
bens culturais Luiz Antônio de Cruz Souza e a museóloga especialista em história da arte Sônia
Gomes Pereira.
confirmar a não autenticidade das obras do MHN citadas no catálogo em questão. O que
assemelha-se à critica produzida por anos no MHN e ensinada no Curso de Museus. Isso não
significa afirmar que o Curso pautou a metodologia de crítica de autenticidade dessa comissão;
por outro lado, não se pode ignorar que os métodos de trabalho apresentam semelhanças.
110
Cada avaliador da Comissão ficou responsável por tratar de uma determinada parte. A análise da metodologia
empregada por Júlio Bandeira e Correia do Lago ficou sob a responsabilidade de Sonia Gomes Pereira. A análise
técnica e formal das aquarelas autênticas de Debret assim como a análise iconográfica das obras questionadas de
ficou sob a responsabilidade de Ivan Coelho de Sá. O levantamento das assinaturas ficou a cargo de Adriana
Bandeira e a análise física ficou sob responsabilidade de Luiz Antônio Souza.
61
aparece no retrato pertencente ao MNBA [...]. A coroa do retrato de D. João VI
do MHN trata-se de uma coroa fantasiosa, que não corresponde à que foi
documentada por Debret: a parte inferior é baixa e pouco elaborada; os arcos são
poucos sinuosos e revertidos de pérolas, não existem flores-de-lis entre os arcos e
o globo é bastante simplificado. Em outras palavras, podemos afirmar que
Debret, por ter visto de perto e reproduzido a coroa, não faria uma representação
totalmente diferente.
3º Ao comparar a fatura do Retrato de D. João VI do MHN com o Retrato de D.
João VI do MNBA, indubitavelmente de autoria de Debret, constata-se que não
há afinidades técnicas. O retrato de d. João VI do MNBA, apesar de ser um
estudo, é muito superior ao do MHN, que pode ser considerado um bom retrato,
mas que não apresenta a mesma delicadeza e mesmo preciosismo técnico de
Debret. Por outro lado, em todos os retratos de D. João realizados por Debret,
inclusive aquarelas, percebe-se uma intenção de atenuar possíveis
irregularidades. Somente um artista como Debret, com um profundo
conhecimento de anatomia e de técnica de pintura, poderia utilizar tais recursos
sem comprometer a fidelidade com a fisionomia do retratado. No retrato do
MHN o mesmo não ocorre, tornando-se visíveis o queixo duplo, o lado inferior
pronunciado e a desproporcionalidade da testa.
4º Não parece plausível a atribuição do Retrato de D. João VI do MHN a José
Inácio Sam Paio. O quadro do MHN é bastante superior tecnicamente, sobretudo
em relação à anatomia. O Retrato de D. João VI sentado, de Sam Paio, apresenta
grandes desproporções anatômicas, sobretudo no que se refere ao tronco e às
pernas [...].
PARECER:
1º O Retrato de D. João VI, do MHN, não é de autoria de Debret.
2º A obra data do século XIX.
3º O retrato não foi feito ao natural.
4º Provavelmente, a composição foi elaborada tendo por base gravuras ou
pinturas anteriores à vinda de D. João para o Brasil. Esta dedução fortalece a
hipótese de um autor português. No entanto, pode haver também a possibilidade
de ter sido feita por um artista brasileiro do século XIX, posterior à época de D.
João. Também neste caso, copiada de gravuras ou pinturas antigas.
5º Para efeito de classificação, a obra do MHN pode ser identificada da seguinte
forma: Retrato de D. João, artista não identificado / século XIX. 111
O parecer foi baseado em comparações com outros trabalhos de Debret, em especial com o
óleo do MNBA, no conhecimento historiográfico dos autores e, acima de tudo, na avaliação visual
da obra, o que exige, como visto acima, o “olhar treinado” dos avaliadores, e sua capacidade de
111
BRASIL. MINISTÉRIO DA CULTURA, INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTISTICO
NACIONAL. Comissão de Avaliação de Autenticidade das obras atribuídas a Debret, relatório final, 2009. Reserva
Técnica, Museu Histórico Nacional. Processo 006.203. [mimeo]. Análise formal realizada por Ivan Coelho de Sá.
62
Em termos técnicos e formais, não há grande afinidade desta aquarela do MHN
em relação às aquarelas originais de Debret. Ainda que seja um bom desenho, o
traço não possui a espontaneidade e a destreza de Debret, havendo áreas mais
rígidas como a que se refere à construção arquitetônica do centro da composição,
de linhas mais pesadas, feitas à régua, recurso pouco utilizado pelo artista. A
parte da vegetação não possui a mesma delicadeza da que normalmente aparece
nas aquarelas debretianas autênticas. A bandeira, além da incoerência já citada, é
muito rígida e quase plana, totalmente diferente das bandeiras desfraldadas que
aparecem em várias aquarelas de Debret, inclusive representado o telégrafo do
Morro do Castelo. Além desses aspectos, outro causa estranheza: a presença de
vestígios de lápis de cor no telhado, no brasão e na coroa da bandeira,
contrariando o usual da técnica de Debret.
O parecer também acrescenta que, possivelmente, a aquarela foi uma das falsificações
produzidas por Robert Heymann. O desenho foi adquirido no leilão da coleção Djalma da Fonseca
Hermes realizado em 1941. Djalma da Fonseca Hermes foi um dos maiores colecionadores de arte
do Rio de Janeiro no século XX, tendo trazido para o Brasil diversos trabalhos de artistas
nacionais e estrangeiros, como Franz Post, Nicolau Antônio Taunay e Bartolomé Esteban Murillo,
por exemplo, que estavam dispersos em museus, antiquários e coleções particulares na Europa,
especialmente em Portugal e na França. Sua coleção era considerada por muitos como a mais
importante do Brasil, tendo a sua venda em leilão sido lamentada pelo então diretor do Museu do
Não ocorrerá a intervenção salvadora de algum dos nossos governos para a sua
aquisição em bloco? [...] Quanto não ganharia a nossa Pinacoteca, por exemplo,
ao receber reforço de tamanho valor?113
112
Id. Ibid.
113
Catálogo da Coleção de Djalma da Fonseca Hermes Rio de Janeiro: Leiloeiro Paula Affonso 1941. [s.n.p].
63
A importância da coleção de Djalma da Fonseca Hermes era tamanha que o Serviço do
catálogo do leilão e o governo de Getúlio Vargas baixou um decreto-lei abrindo um crédito de mil
e quinhentos contos para aquisição de objetos da coleção. Vargas havia solicitado aos diretores do
Museu Histórico Nacional, do Museu Nacional de Belas Artes e a técnicos do SPHAN listas e
caráter histórico. Boa parte desses objetos tornou-se destaque da coleção do Museu, como as
maquetes das alegorias dos rios nacionais presentes na base do monumento a D. Pedro I,
Pedro I encomendada para o Museu Paulista em 1922, além de pinturas históricas de artistas como
coleção de Djalma da Fonseca Hermes foram o MNBA, o Museu Imperial, o MHN e o Museu
Chácara do Céu.
Na documentação dos lotes comprados pelo governo para o MHN não consta nenhuma
referência relativa à procedência dos objetos, ou seja, a forma como o colecionador as adquiriu. O
catálogo é o próprio instrumento de autenticação, uma vez que ele era entregue ao arrematante
com a seguinte declaração em sua terceira página: “As pinturas a óleo, pastel e crayon, constantes
nesse catálogo, são declaradas absolutamente autênticas, sendo que o Murillo o é pelos reputados
peritos André Shoeller e François Max-Kann, conforme consta do catálogo que foi entregue ao
arrematante”.114
Declaradas por quem? Obviamente pelo próprio Djalma da Fonseca Hermes e pelo
114
BRASIL. MINISTÉRIO DA CULTURA, INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTISTICO
NACIONAL. Comissão de Avaliação de Autenticidade das obras atribuídas a Debret, relatório final, 2009... op. cit.
64
importância atribuída à sua coleção por outros especialistas parecem outorgar-lhe o poder de
autenticar a procedência das obras. No caso da obra de Murillo (1617-1682), autor barroco
espanhol de grande valor e importância no mercado da arte, a autenticidade foi atestada por dois
d'Experts Professionnels, e François Max-Kann, autor de vários livros e trabalhos sobre pinturas e
desenhos.115
que
Ao mencionar a coleção em si, quase toda voltada para as “coisas nacionais”, Antônio de
Debret em questão é uma das falsificações de Robert Heymann, uma vez que no catálogo da
coleção Fonseca Hermes constam obras que o marchand falsário havia publicado anos antes no
catálogo da Casa Heymann. Outro dado que reforça a dedução é que Djalma da Fonseca Hermes
115
André Shoeller e François Max-Kann atuaram nas décadas de 1920, 1930 e 1940. Ambos já faleceram. A galeria
Shoeller ainda funciona e quem a administra é André Shoeller, filho do renomado especialista.
116
AFFONSO, Paula. In: Catálogo da Coleção de Djalma da Fonseca Hermes... Op.cit. [s.n.p.].
117
Id. Ibid.
65
adquiriu a maior parte da sua coleção nas décadas de 1920 e 1930, aproximadamente o mesmo
em seu estabelecimento.
Um dado que chama atenção no caso dos “falsos Debrets” é o fato de estas obras terem
ficado tantos anos sem ter sua autenticidade questionada. Talvez a importância dos atores
envolvidos nessas coleções, como Robert Haymann, na época ainda não conhecido como um
falsário, Djalma da Fonseca Hermes, Castro Maya, o leiloeiro Antônio de Paula Affonso, além dos
diretores dos museus, tenham produzido uma certeza de autenticidade que dispensasse a
necessidade de verificação, até o momento em que o trabalho crítico dos autores do catálogo
Outro caso que transcende o MHN, mas que é exemplar da mobilização do olhar
às que fazem parte da coleção de Renato de Almeida Whitaker, na qual diversas estátuas religiosas
XXI. Márcio Jardim, historiador, membro do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais e
catálogo Aleijadinho. Arte e fé brasileira – ofício divino. Nesse catálogo, Jardim defende o
seguinte:
Segundo Jardim, a atribuição de autoria é feita principalmente pela análise dos estilemas.
Caso a obra tenha um ou mais sinais característicos das esculturas de Aleijadinho e caso seus
118
JARDIM, Márcio. Aleijadinho. Arte e fé brasileira – Ofício divino. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura,
2010. p.25.
66
aspectos gerais conformam-se àquelas de uma de suas fases profissionais, pode-se atribuir a
autoria ao mestre mineiro. O grande número de obras atribuídas ao Aleijadinho nos últimos 30
anos é explicado por Jardim como uma decorrência da primeira grande mostra de suas obras no
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1978. Como muitas outras ocorreram desde então,
segundo ele, passou a haver uma maior apreciação pública dessas obras, muitas em posse de
famílias há várias gerações, visto que o escultor teve uma carreira produtiva e realizava muitos
trabalhos para residências. Isso possibilitou um treinamento visual, a formação de uma massa
compará-las com as diversas estátuas religiosas oriundas do barroco mineiro até então sem autoria
definida.
uma lista de 55 estilemas que, usualmente, indicam autoria de Aleijadinho. Junto às fotografias
dos objetos, há a identificação dos especialistas responsáveis pelas atribuições e seus pareceres em
favor da autoria. Percebe-se, em todos os casos, que é a partir do reconhecimento dos estilemas
que ocorre a datação da obra, o que permite classificá-la nas fases correspondentes à vida de
recurso nos pareceres. Isso implica uma memória visual do especialista, que reconhece traços,
temas e estilos, e que os caracteriza como pertencentes ao mestre mineiro. Nesse caso, o
especialista assume uma das funções do autor, sendo aquele que cria algo, mas, nesse caso, é a
Mestra:
Semelhante parecer é o de Germain Bazin, em 1958, sobre outra estátua da mesma Sant'
Ana, Mestra:
descritiva requerem novamente um olhar treinado, que associa a escultura a outras referências de
várias ordens (biográficas, estéticas, relacionadas à obra como um todo), comparando, datando,
artes e antiguidades.
objetos dos conservadores do MHN e dos alunos do Curso de Museus. Nair de Moraes Carvalho
publicou ao longo da carreira diversos artigos sobre o acervo do Museu, que permitem entender a
importância do olhar treinado. Ao dissertar, em 1948, sobre as porcelanas produzidas pela Fábrica
119
Id. p. 37.
120
Id. p. 41.
68
educado de tal modo que possa aferir autenticidade por outros característicos. 121
Nair de Carvalho apresenta diferentes tipos de marcas nas porcelanas, contudo alerta que
"o aspecto decorativo, o colorido, são outros tantos aspectos que auxiliam o trabalho de
classificação. Acima de tudo a prática".122 Em outro artigo, sobre o sabre do Barão da Vitória, a
conservadora fez uma descrição minuciosa do objeto. Cabe ressaltar que tal detalhamento somente
é possível pelo “olhar treinado”, visto que a capacidade descritiva implica um treinamento
material. O olhar treinado insere-se em uma ordem discursiva própria da prática museológica
preconizada por Barroso e desenvolvida no Curso de Museus. Ainda hoje, entre museólogos, é
comum a expressão “museólogos precisam ter mil olhos de ver”. 123 Em livro clássico da formação
descrição e, consequentemente, a correta identificação das marcas, dos símbolos heráldicos e das
121
CARVALHO, Nair de Moraes. Marcas na porcelana de Saxe. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro,
v. 5, ano 1948. p. 16.
122
Id. p. 20.
123
De acordo com depoimentos dos ex-alunos e do professor Ivan Coelho de Sá, a expressão “olhos de ver” era usada
de forma recorrente pela professora Therezinha de Moraes Sarmento.
124
BARROSO, Gustavo. Introdução à técnica de museus... Op. cit. p. 14.
69
O Museu Histórico Nacional possui em suas coleções de relíquias militares um
sabre de honra que pertenceu ao general José Joaquim Coelho, Barão da Vitória,
e foi adquirido a um de seus descendentes. É uma peça que se autentica por si.
Verdadeira obra de arte, com copo e guarnição de prata dourada e cinzelada a
mão, feita na Inglaterra. Mede da ponta à maçã do punho um metro e dois
centímetros. Sabre reto com a cota terminando a 23 centímetros da ponta. Lâmina
com ramagens damasquinadas, cujo ouro a ferrugem fez quase inteiramente
desaparecer. Guarda em cruz, rematando em volutas de folhagem e com uma
orelha voltada para baixo em forma de escudo ibérico, com os canos do chefe
chanfrados, na qual se insculpe um medalhão: o feixe litórico em pala sobre um
arco santor, entre duas cornucópias voltadas para cima e carregadas de frutos,
ramos e flores, tudo circulado pela legenda RESTAURAÇÃO DA BAHIA,
MARÇO, 1838. [...]
A bainha, medindo 89 centímetros, é de madeira forrada de veludo com
guarnições de prata dourada. O veludo acha-se bastante estragado. As guarnições
são: bocal, reforço e ponteira com ramagens e volutas cinzeladas em alto relevo,
em puro estilo barroco. As argolas para prender ao talim são fixas e representam
volutas com folhagens rematadas em pequenos leões deitados.
Nas guarnições da bainha e nas várias peças do corpo, contrastes oficiais
ingleses: o leão passante em escudo regular, marca geralmente usada na Grã-
Bretanha de 1836 a 1845, segundo Cripps e Chaffers and Markham, registrada
sob o n. 472 no Dictionnaire des Poinçons Officiels de Benque; a cabeça de
leopardo sem coroa, marca de venda inglesa J. e L. maiúscula em ovais, iniciais
sem dúvida do artista que confeccionou a peça (Maker Mark).
[…] Nenhum documento se refere ao oferecimento ao Barão da Vitória do sabre
de honra que o museu adquiriu e guarda. Ele é que fala por si na sua legenda, na
sua decoração e nos seus contrastes oficiais. 125
Expressões como “autentica-se por si”, “fala por si” são recorrentes em outros textos
sobre o acervo, escritos por conservadores do MHN. Outro exemplo é o caso de artigo
produzido para a revista O Cruzeiro de 1949, em que Barroso descreve as espadas que teriam
espada que López carregava na ocasião de sua morte e a enviou em nome do Conde d’Eu,
imperador D. Pedro II. A espada foi depositada no Museu Militar e nos últimos anos da
monarquia foi transferida para o Colégio Militar. Ao ser criado, o MHN recebeu vários objetos
procedentes do Colégio Militar, entre eles veio a referida espada. Todavia, os funcionários do
MHN perceberam que entre os objetos transferidos havia duas espadas atribuídas ao
125
CARVALHO, Nair de Morais. O Barão da Vitória no Museu Histórico Nacional. Anais do Museu Histórico
Nacional. Rio de Janeiro, v. III, ano 1942. p. 228. [Grifos meus].
70
presidente do Paraguai como tendo sido tomadas no episódio de sua morte. De acordo com
Barroso, as espadas foram estudadas e verificou-se que apenas uma poderia ser autêntica.
A verdadeira só poderia ser a espada fina, de ponta quebrada na luta, com punho
de tartaruga, guarda e latão cinzelado e estrela de maçã, tendo as armas oficiais
da República do Paraguai no copo dourado a fogo. A outra era um sabre recurvo,
ricamente dourado e lavrado, trazendo na bainha o escudo real da Grã-Bretanha e
Irlanda. A peça falava por si. Era de procedência inglesa e de general do exército
inglês. Teria Solano Lopez duas espadas? Em face dessa dúvida, foi exposta
somente a verdadeira espada oficial do ditador, que os próprios retratos na
terminação da campanha documentavam como de seu uso pessoal e aparecia
também nas suas fotografias com o uniforme oficial de gala. 126
Não é necessário dizer que um objeto não “se autentica por si”, nem tampouco “fala por
si”. Essa frase só se torna possível diante do know-how do conservador que, ao olhar o objeto,
reconhece nele marcas óbvias ao olhar treinado – como adornos, símbolos heráldicos, materiais
nobres entre outros – e que possibilitam tal afirmação. Essa obviedade, que poderia passar
despercebida ao leigo, significa o domínio de tais símbolos pelo observador, de tal modo que a
autenticidade para ele torna-se evidente porque autorreferida, fazendo da afirmação “o objeto fala
por si” um recurso retórico. Todavia, no caso da espada de Solano López, outros elementos
Onze anos após a fundação do museu, o distinto diplomata Heitor Lira, que
estivera algum tempo no castelo d’Eu, em França, copiando documentos
existentes no valiosíssimo arquivo da família imperial, [...], ofereceu à diretoria
do Museu Histórico Nacional diversas cópias de carta de S. A. o senhor Gastão
de Orleans ao Imperador e deste monarca a vários ministros sobre a guerra do
Paraguai. Dois desses documentos elucidam perfeitamente o caso das duas
espadas de Solano Lopez e autenticam a de procedência britânica. Em carta
datada de Humaitá a 29 de março de 1870, [...] o marechal conde d’Eu escrevia a
d. Pedro II: “Pelo Maciel do vapor Alice mando a V. E. uma espada apanhada no
acampamento de Lopez. Quando estive na Conceição, correu que tinha aparecido
entre nossa gente uma espada do Lopez, muito rica. Mandei que o Câmara a
procurasse, e ele me disse que o coronel Joca a tinha descoberto e me entregaria.
O Joca porém, entregou-me, em lugar da espada rica, essa que levava o escudo
de armas usados pelos reais da Inglaterra nos princípios desse século”. Por sua
vez o próprio imperador se refere a essa espada em carta ao Barão de Muritiba
[...] “entregaram-me a caixa e a espada que foi de Lopez?... A espada, embora
não tomada em combate, talvez possa ir para o Museu Militar.” 127
126
BARROSO, Gustavo. O cruzeiro. 8 de janeiro de 1849. [s.n.p.] [Grifos meus].
127
Id. Ibid.
71
Como dito anteriormente, a documentação a que se refere Barroso é indiciária da
autenticidade da espada, pois alude a uma série de autoridades, valorando a espada como um
avaliação realizada pelo conservador Luís Marques Poliano. Em 1941, foi encontrada em uma
obra realizada na Rua Senador Dantas, no Centro do Rio de Janeiro, uma pedra de lioz com um
procedência. O trabalho realizado teve por base quatro critérios: o local do achado, documentos de
época, trabalhos de historiadores que escreveram sobre a história da cidade, como Vieira Fazenda
e, por fim, os conhecimentos heráldicos do conservador. Poliano iniciou sua análise descrevendo
conservadores do MHN:
Contudo, era isto precioso ponto de partida. Tratava-se, sem receio de erro, de
um escudo português, ou ligado à família dessa origem. Além disso, o material, a
posição e a forma do escudo, foram de momento outros valiosos elementos que
anotamos, reforçaram nossa convicção, quanto à procedência, quanto à época. 128
o conservador em sua análise, sempre baseada em outros especialistas, como Santos Ferreira,
Ensina Santos Ferreira que a representação do escudo ao balão foi muito seguida
em Portugal a partir do século XVI e que o tipo do escudo francês moderno, ou
128
POLIANO, Luis Marques. Uma pedra brasonada do Rio Antigo. Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de
Janeiro, v. 4, ano 1943. p. 159.
72
sanítico, “só modernamente tem-se vulgarizado em Portugal”, ou seja, a partir
dos séculos XVII e XVIII. Escudos impressos e esculpidos, portugueses, dessa
época, apresentam-se com essa forma, que por sinal é a adotada no monumental
trabalho que estamos citando.
Afastamos desde logo a indicação de alguns, que davam essa pedra de armas
como ligada à família Fonseca Costa; e a sugestão de outros, que a atribuíam ao
Sargento Mor José Fernando Pinto Apoim, autor do risco do Convento onde foi
encontrada, e de outras notáveis construções, aqui e em Minas. 129
Todavia, Poliano diz-nos que foi no trabalho de José de Souza Machado que obteve algo
heráldico mencionado na carta das armas esculpidas na pedra. Ainda assim, para Poliano, essa
divergência não tem força para invalidar a relação que existe entre a pedra e a carta, “para nos
conservador do MHN ressalta que não são raras as disparidades entre o brasonado das cartas e sua
respectiva execução, seja em pedra ou em outros suportes, como porcelana. “[...] não vacilamos
em identificar a pedra com a mercê àquele antigo habitante desta cidade. Morador do Rio de
Janeiro, mandou fazer em Portugal a pedra pouco depois de 1685, quando lhe foi dado o direito de
129
Id. p. 161.
130
Id. p. 162. [Grifos meus]
131
Id. p. 164.
73
localizada em outro logradouro. Citando Vieira Fazenda, salienta que
Com essas indicações Poliano afirma “ter localizado precisamente a posição da sesmaria
concedida em 1705 a Marcos da Costa da Fonseca, ou Marcos da Costa, como está indicado
naquele documento”.133 Sobre o local do achado ser tão distante do local de origem, o conservador
com a pedra brasonada, após ter sido comprada pelas freiras da Ajuda, teve a pedra removida, e
que durante os aterros realizados na cidade por volta de 1761 pelo Conde de Bobadela foi
ocorrido por ocasião das restaurações de coches, ou “carruagens”, que entraram para as coleções
Os coches foram doados ao MHN por Joaquim Ferreira Alves, proprietário de uma antiga
casa funerária em Lisboa, e eram utilizados para cortejos fúnebres de famílias ricas portuguesas.
demonstram o interesse que tal doação gerou. O então diretor do MHN escreveu, em 1945, que a
importância histórica de tal doação era tanta “[...] que a diretoria do Museu dos Coches de Lisboa,
um dos mais ricos do mundo na matéria, se bateu para que essas viaturas históricas não deixassem
o país”.134 Durante muitos anos os coches ficaram expostos no MHN em local conhecido como
132
Id. p. 170.
133
Id. p. 171.
134
MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Dicop. Doc., nº5 Proc. Nº18/46.
74
Pátio da Minerva, ambiente inadequado para o controle de luz e umidade, o que acabou
ocasionando danos de conservação às peças. Apesar das afirmações de Barroso sobre o valor
histórico das viaturas, em correspondência de 1964, um chefe de seção do MHN informa que
“comprovadamente, nenhuma delas apresenta a menor historicidade para o Brasil”,135 uma vez que
“ao entrarem em desuso em Portugal foram sendo adaptadas ao serviço fúnebre, recebendo para
tanto decoração severa”.136 Ao longo dos anos seguintes, o estado de conservação foi-se agravando
técnico de manter as características físicas de quando entraram para as coleções do MHN. Porém,
durante o processo de restauração, retirou-se a camada pictórica original de cor negra de um dos
coches, assim como os motivos fúnebres. Ao deparar-se com um símbolo heráldico embaixo da
da UNIRIO, que prontamente reconheceu um brasão encimado por uma coroa, “claramente
identificada como a de duque”. A pintura fúnebre foi retirada e a diretora pôde então usar seus
conhecimentos heráldicos e identificar o símbolo. “Era o início da pesquisa heráldica, que [...]
identificaria o objeto que há 58 anos encontra-se no Museu como carro de cortejo fúnebre.” 137
Tostes identificou uma diferença138 na coroa de duque em questão. Segundo ela, trata-se de um
pelos demais países, tornou-se uma das formas de distinguir os membros da família real”. 139 Em
135
Id.Ibid.
136
Id.Ibid.
137
TOSTES, Vera Lúcia Bottrel. De viatura a coche real: a importância da heráldica na restauração das carruagens do
MHN. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v. 36, ano 2004. p. 209-224. Página citada, 214.
138
Diferença no vocabulário heráldico significa os símbolos que servem para apontar alguma distinção, e podem
variar de diversas formas.
139
TOSTES, Vera Lúcia Bottrel. De viatura a coche real: a importância da heráldica na restauração das carruagens do
75
Portugal, semelhante simbologia foi adotada e “os demais infantes e mesmo o filho do príncipe
herdeiro traziam o mesmo lambel, com figuras colocadas nos pingentes.” Assim,
A coroa que aparece no brasão do coche é a de duque. É formada por folhas de
acanto, que deixam aparentes cinco florões – essa particularidade chama a
atenção, uma vez que a diferença do lambel remete-nos às armas do príncipe
herdeiro e, portanto, o escudo deveria ser encimado pela coroa de príncipe. [...]
objeto histórico e, consequentemente, sua valoração histórica. Todavia, o vínculo com o herdeiro
do trono português e sua estética agregam um valor a mais ao coche, que se tornou umas das
peças mais divulgadas do acervo, com destaque no site da instituição, espaço exclusivo na
museografia e em catálogos.
Figura 4: Porta da berlinda com o brasão da Casa Real Portuguesa encimado por coroa de duque
contendo um banco de lambel. Acervo MHN.
77
Os casos descritos aqui mostraram determinados procedimentos de crítica e de produção
de autenticidade, que ora agregaram valor aos objetos coletados pelo MHN, ora questionaram suas
realizar este tipo de trabalho, dado que mostra a força que o Curso de Museus teve, notadamente a
disciplina Técnica de Museus, na formação destes profissionais que constituíam uma autoridade
especializada no assunto.
No entanto, uma outra autoridade era muito presente na certificação de autenticidade dos
objetos históricos coletados pelo Museu. Trata-se da autoridade do nome próprio, do homem cuja
palavra, quer por seus feitos, seu passado, seu status social ou sua influência, é capaz também de
produzir autenticidade. Essa autoridade é hereditária e manifesta-se nos seus herdeiros, no nome
de família, e constituiu uma das principais formas de musealização de objetos no MHN. Essa
autoridade, porém, não rivaliza com a autoridade do especialista. Pelo contrário, muitas vezes as
duas confundem-se e complementam-se, como vimos, por exemplo, no caso de objetos oriundos
arte brasileira, tinha seu nome reconhecido como um dos maiores colecionadores de arte do seu
tempo. Essas duas autoridades são partes da própria racionalidade da instituição, ou melhor, fazem
parte da economia museal. Dediquemo-nos agora a descrever a autoridade do nome próprio como
78
2. A autoridade do nome próprio
Exmo. Sr. Ministro. A reportagem dum dos vespertinos desta capital pôs em foco
a triste situação em que se encontram, num saguão de escada do convento de
Santo Antônio [...] os despojos mortais da imperatriz Leopoldina [...] cujo
importante papel na nossa independência não poderá ser esquecido pelos
brasileiros, bem como da princesa D. Paula Mariana e do príncipe D. Carlos
Borromeu […]. O MHN possui um grande e belo pátio em estilo colonial, no
qual, com pequena despesa, poderia o governo fazer erigir uma pequena capela,
onde se depositassem os três esquifes, cujas chaves já estão guardadas no
mesmo, na sala dos tronos. Para despojos mortuários que tão perto se ligam à
história pátria não é sempre necessário um edifício religioso. V. Ex. deve
lembrar-se que os restos de Dante estão num ossuário em estilo do renascimento
sob a epígrafe Ossa Dantis, numa das ruas de Ravena [...]. Enquanto o governo
providenciasse para a ereção desse pequeno monumento, os três caixões
imperiais poderiam ficar depositados em uma das salas deste museu, que ponho
desde já pronta a recebê-los [...]141
Nesta carta, escrita por Gustavo Barroso ao ministro Francisco Campos, podemos
funcionalização dos mortos. Para Dominique Poulot, a memória dos mortos e o culto dos homens
evocados em lugares de memória.142 Isso implica na construção de uma sacralidade, que, no caso
do MHN, é explicita na coleta de artefatos vinculados aos nomes canonizados pela historiografia e
não realizado de construir uma capela para os restos mortais da Imperatriz Leopoldina inscreve-se
no culto à sua memória, cujo “importante papel na nossa independência não poderá ser esquecido
pelos brasileiros”.
141
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, DICOP, Processo, 22\30, 1931.
142
POULOT, Dominique. Uma história do patrimônio no ocidente. São Paulo: Estação Liberdade, 2010. p. 125.
143
Apud POULOT, Dominique. Uma história do patrimônio no ocidente... Op. cit.
79
mortos coube principalmente aos membros das instituições culturais e artísticas criadas durante o
Império, como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), criado em 1838, e que, além
um projeto nacional, tinha como missão de alguns dos seus membros, como Joaquim Norberto,
lembradas.144 Como observa Enders, a noção de “homem ilustre” ou “grande homem”, elaboradas
pelas academias iluministas francesas, se opõe à figuras dos reis, dos santos e dos heróis, além de
história nacional, posta em prática por historiadores do IHGB e corroborada por Gustavo Barroso
no MHN, o “homem ilustre” se distingue do herói singular pelo fato de pertencer a uma
“república de talentos”. Por esta razão, o recenseamento dos grandes homens extrapola o debate
acadêmico, uma vez que, por suas implicações sociais, produz o encontro da história com a
produção historiográfica brasileira permaneceu até um período avançado do século XIX marcado
por uma profunda marca elitista. A construção da ideia de nação não se assentou sobre uma
oposição à antiga metrópole, pelo contrário, a nação brasileira se reconhecia como continuadora
de uma certa tarefa civilizatória iniciada pela colonização portuguesa, de tal modo que nação,
Nesse aspecto, a memória dos “grandes homens” aparece no Brasil como um amplo
empreendimento de reconciliações das elites nacionais.147 Sendo a história percebida, a partir desta
144
ENDERS, Armelle. “O plutarco brasileiro”. A produção dos Vultos Nacionais no segundo reinado. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, vol. 14, n.º 25, ano 2000. pp 41-62.
145
Id. p. 42.
146
GUIMARÃES, Manoel Luis. Salgado. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro e o projeto de uma história nacional. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº1, 1988, p. 5-27.
147
ENDERS, Armelle. “O plutarco brasileiro”. A produção dos Vultos Nacionais no segundo reinado... Op. cit. p. 47.
80
concepção iluminista, como uma marcha linear e progressiva que articula passado, presente e
exemplos e modelos para a celebração da nação. O MHN é vincado por essa concepção de
história, e parte de seu acervo constitui uma galeria de heróis cujas ações são exemplos para a
Essa “memória inspiradora” moldou um dos sentidos das coleções do MHN: sua reunião e
registro tendo por base a noção de “possuidor”. Embora a ideia de possuidor não fosse definida de
modo explícito pelos funcionários do MHN, pode-se caracterizá-la como o indivíduo (por vezes, a
instituição) detentor da posse do objeto quando ainda contextualizado. Por procedência, entendia-
se o indivíduo (por vezes, a instituição) a partir do qual o objeto chegou ao Museu. Em certos
aparecia em primeiro lugar, seguido pela origem do objeto. Assim, alguns objetos foram
organizados em torno do possuidor original, ainda que não tivessem a mesma procedência. Este é
o caso da coleção D. Pedro II, por exemplo, na qual os objetos provêm de diferentes fontes, porém
organização dos objetos, como a coleção Miguel Calmon ou a coleção Osório, caso em que os
como relíquias históricas ou relíquias familiares; objetos que são autenticados pela “palavra” dos
81
A certificação de autenticidade nesses processos é marcada por relações de herança e de
diretamente ao seu proprietário inicial, reconhecendo-o como agente de uma rede de sociabilidade
que, no caso das aristocráticas brasileiras do século XIX e início do século XX, é marcada por
cultura de caráter colecionista, em que relíquias familiares e históricas eram usualmente objetos
de presente e de herança.148
Esses objetos, ao serem doados, legados ou vendidos ao MHN ganham uma outra função:
além de relíquias históricas, tornam-se, também, objetos históricos, com toda dimensão
documental e testemunhal implícita nesta categoria. Tradicionalmente, o objeto histórico tem uma
função testemunhal, o que implica na autoridade daquele que testemunha. Como visto no capítulo
anterior, umas das atribuições dos especialistas que lidam com o patrimônio é saber reconhecê-los
Ricoeur afirma que a especificidade do testemunho consiste no fato de que a asserção da realidade
autodesignação inscreve-se numa troca que instaura uma situação dialogal do testemunho, em
seus termos:
[...] é diante de alguém que a testemunha atesta a realidade de uma cena à qual
diz ter assistido, eventualmente como ator ou vítima, mas no momento do teste-
munho, na posição de um terceiro em relação a todos os protagonistas da ação.
Essa estrutura dialogal do testemunho ressalta de imediato sua dimensão fiduciá-
ria: a testemunha pede que lhe deem crédito [...] A autenticação do testemunho só
será então completa após a resposta em eco daquele que recebe o testemunho e o
aceita; o testemunho, a partir desse instante, está não apenas autenticado, ele está
creditado.149
148
A relação entre antiguidade e consanguinidade no MHN foi observada por Magalhães na árvore genealógica
montada por Barroso para compor o Pavilhão do Brasil na exposição ''Mundo Português'', realizada em Lisboa em
1940. A árvore representava a história nacional como uma perpetuação de um conjunto de famílias nobres. Ou seja,
Barroso procurou traçar uma genealogia da nação brasileira em raízes que remetiam às famílias europeias, reforçando
a evocação branca e civilizada do Brasil nos Oitocentos. MAGALHÃES, Aline Montenegro. Culto da saudade na
Casa do Brasil... Op. cit. p. 76.
149
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. São Paulo: Editora da Unicamp, 2007. p.173.
82
A autenticidade sempre implica alguma forma de autoridade, uma vez que o que está em
jogo é o que é ou não é real, válido e público, como no caso da autenticidade de documentos ofici-
ais, das provas criminais e dos objetos históricos. Porém, a autenticidade histórica é definida a
partir de critérios que são, em muitos casos, conflitantes, pois correspondem às disputas políticas
do pelo homem ilustre, cujo nome basta para atestar autenticidade histórica. Uma citação de Vieira
Fazenda, extraída das suas Memórias e Antiqualhas do Rio de Janeiro, ilustra bem a importância
do status social daquele que testemunha, em determinados regimes de verdade histórica. Fazenda,
Há o velho estúpido e boçal, quase sempre africano, que pelas tristes condições
de vida de escravo nada nos diz. Dele nada se consegue arrancar que possa servir.
Há os velhos cujas faculdades estão enfraquecidas – não têm a mens sana,
confunde alhos com bugalhos: o Conde dos Arcos com o Conde do Resende [...]
Ratacliffe com Tiradentes. [...]
Há o velho pachóla, e esta é a pior casta, o velho prosa, o velho mentiroso, que
tudo viu, tudo fez e tudo assistiu: o velho engrossador, o qual, com a esperança
de um níquel, vos contará coisas do arco da velha: assistiu à expulsão dos
jesuítas, viu a inauguração da Candelária no tempo do bispo Mascarenhas e até
matou muitos franceses no tempo de Duclerc. [...]
Há, porém, os anciãos de espírito culto ou não, a quem o indagador pode, com
confiança, dirigir-se: os primeiros, por sua ilustração, por haverem convivido
com homens importantes do seu tempo, fornecem luzes seguras.
Para Vieira Fazenda, as testemunhas históricas deveriam ser confiáveis, o que, em sua
visão, poderia ser garantido a partir do status social ou intelectual daquele que testemunha ou por
aqueles que tiveram contato com “grandes personalidades do seu tempo”, onde, por uma espécie
150
FAZENDA, Viera. Antiqualhas e memórias do Rio de Janeiro. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. Rio de Janeiro, tomo 86, v. 140, p. 222-228, 1919. P. 216.
83
de transmissão, por terem convivido com ele, poderiam fornecer informações seguras.151
texto publicado em 1930, intitulado O Brasil em face do Prata, uma compilação de textos de
Gustavo Barroso sobre questões relativas às guerras brasileiras do século XIX, há um artigo sobre
uma outra faca que teria pertencido ao presidente paraguaio Solano Lopez, em que se lê:
Barroso, após dissertar sobre como a faca teria chegado às mãos de Raimundo Filho,
afirmou o seguinte: “Nela nenhuma característica autoriza afirmar que tenha pertencido ao ditador
paraguaio. E os documentos relativos à morte do mesmo não se referem a uma faca.” 153 Barroso
continua o artigo descrevendo outros objetos “autênticos” do MHN que pertenceram a Solano
López. Sobre um relógio de sol, faz a seguinte observação: “Tem as armas paraguaias e as
inscrições que o autenticam” e, mais adiante, “O relógio de sol foi trazido pelo velho marechal
Mendes de Morais”. Tal como observa Bittencourt, o relógio poderia ser falsificado e o velho
marechal poderia estar senil; não há documentos precisos que comprovem a autenticidade do
relógio, o que vale aqui como elemento legitimador da autenticidade é a relação do objeto com
151
FAZENDA, Vieira. Antiqualhas e memórias do Rio de Janeiro... Op. cit. p. 218.
152
BITTENCOURT, José Neves. Cada coisa em seu lugar: ensaio de interpretação de um museu de história. Anais do
Museu Paulista, São Paulo, v. 8/9, p. 151-174, 2002-2001. p. 171.
153
Id. Ibid.
154
Id. Ibid.
84
acervo, somente em 1992 é que foi criado um conjunto de documentos específicos para isso.
Antes, os objetos coletados pela instituição eram acompanhados de diversos documentos, como
recibos de compra, ofícios de órgãos públicos, cartas enviadas por doadores, testamentos, guias de
remessas de outras instituições. Isto se fazia necessário porque, ao sair da esfera privada e entrar
pequenos pedaços de papel escritos à mão, e outras, mais formais, com firmas reconhecidas em
cartório atestando que foi realmente o doador que declarou a autenticidade do objeto. Geralmente
através da autenticidade atribuídas às relíquias cristãs durante a Idade Média. Entende-se por
relíquias os objetos em que se crê que terem estado em contato com um deus ou com um herói, ou
longínquo. Foi o cristianismo que, ao difundir o culto dos santos, levou as relíquias ao seu apogeu
durante a Idade Média. Era considerado relíquia qualquer objeto que se supusesse ter tido contato
com algum personagem da história sagrada, melhor ainda se fosse parte de seu corpo, devido à
crença de que a relíquia santifica o local que a guarda, como se fosse a presença do próprio
santo.155 Deste modo, as relíquias mais sagradas, e portanto mais valiosas, eram aquelas
vinculadas ao martírio de Cristo. Umas das relíquias mais importantes da Europa foi a Coroa de
Espinhos, que se acreditava ser a que foi posta na cabeça de Jesus Cristo durante a paixão.
155
POMIAN, Krzysztof. Krzysztof. Coleção. In: ROMANO, Rugiero (org.). Enciclopédia Einaudi, (vol. 1 –
Memória/história), Lisboa: Casa da Moeda/ Imprensa Nacional, 1983. p. 59.
85
Atualmente, a Coroa de Espinhos está guardada na catedral de Notre-Dame, em Paris, mas
originalmente ficava na Sainte-Chapelle.156 A primeira menção a essa coroa como relíquia foi feita
em Jerusalém por volta do ano 400, sendo, mais tarde, levada para Constantinopla, capital cristã
do império romano no Oriente, onde foi mantida e venerada durante séculos. Em 1200 foi
penhorada com os venezianos por uma soma gigantesca. O rei da França, Luís IX, era um ávido
sétima e a oitava). Morreu na última, em 1270, e em 1297 foi canonizado pela Igreja Católica
como São Luís, devido à sua fé, à disseminação do cristianismo e à colaboração com a Igreja. O
rei cruzado, sabendo que a relíquia encontrava-se com os venezianos, liquidou a dívida, levando o
objeto para a França, onde mandou construir, em Paris, a Sainte-Chapelle para abrigá-la. De
coroa de espinhos custou mais de três vezes essa quantia, sendo, possivelmente, o objeto mais
valioso da Europa. Para Benedicta Ward, no contexto dos anos 1200, uma relíquia particularmente
ligada à paixão de Cristo era a melhor coisa que se poderia possuir e o ato de Luís IX teve, para
além das questões de devoção, uma grande força política. A coleção de Luís IX contribuiu para
reforçar sua posição central na cristandade ocidental. Em uma época em que países, cidades e
governantes competiam pela posse de relíquias sagradas, Luís IX conseguiu colocar algumas das
mais ambicionadas em Paris. Há nesse ato uma ação estratégica naquele contexto: o
Cynthia Hahn observa que as relíquias eram usadas como “presentes”, cujo principal
propósito era a manutenção de laços de amizade e sociabilidade entre bispos e nobres durante a
alta Idade Média. Para ela, esse intenso intercâmbio tem relação com a necessidade de validação
das relíquias. Muitas delas eram compostas por pequenos fragmentos de ossos atribuídos aos
156
MACGREGOR, Neil. Relicário do Santo Espinho. In: _____. A história do mundo em 100 objetos. Rio de Janeiro:
Intrínseca, 2013. p. 473.
86
santos; pedaços de roupas, cabelos, etc. O que garantia sua autenticidade era a proveniência ou a
história que as acompanhavam. A autora cita o caso de Paulinus de Nola (cerca de 400 d.C.), um
dos primeiros religiosos a escrever sobre as relíquias cristãs. Ao enviar um pequeno pedaço da
Cruz de Cristo para a Nova Basílica de Primuliacum, Paulinus enviou também uma carta usada
The revered altar conceals a sacred union, for martyrs lie there with the holy
cross. The entire martyrdom of the saving Christ is here assembled – a cross,
body, and blood of the Martyr, God himself... where the cross is, there too, is the
Martyr; for the Martyr’s cross is the holy reason for the martyrdom of the
saints.157
Hahn sublinha que o vínculo entre a santidade e o martírio de Cristo através do pedaço da
cruz é essencial para a manutenção do sentido da relíquia. Assim, como as relíquias históricas –
fenômeno bem mais recente, localizado na modernidade – as relíquias cristãs eram valoradas
através das histórias que as acompanhavam, muitas vezes legitimadas por cartas e escritas por
pessoas com autoridade religiosa, como Paulinus de Nola. Tal característica também foi observada
por Pomian, para quem as relíquias cristãs tiram sua virtude santificante do fato de terem
construção das relíquias históricas, que no nosso caso se confundem com as relíquias familiares.
Os mesmos dispositivos de autenticação das relíquias cristãs pode ser observado nos processos de
157
HAHN, Cynthia. What do the Reliquaries do for Relics? Numen, n. 57, 2010. Disponível em:
<http://spectrum.huji.ac.il/PDF/Hahn_what%20do%20reliquaries%20do%20for%20relics.pdf> Acesso em: 12 de abr.
2012. p. 297. [O referenciado altar oculta a sagrada união, pois o mártir foi nele sepultado com a Santa Cruz. Todo o
martírio da salvação de Cristo está aqui reunido – a cruz, o corpo e o sangue do mártir, Deus em pessoa... onde a Cruz
está estará, ali também, o mártir; pois a cruz do mártir é a santa razão para o martírio dos santos. ] Tradução livre do
autor.
158
POMIAN, Krzysztof. Coleção... Op. cit. p. 64.
87
entrada de acervo do MHN, principalmente no período da direção de Gustavo Barroso, momento
em que o Museu, devido à rede de sociabilidade e de influência do próprio diretor, foi marcado
por doações de objetos que pertenceram a pessoas vinculadas às elites nacionais. Como foi o caso
Declaro que o chambre, pijama e chinelos em meu poder e que ofereço ao MHN,
pertenceram ao Generalíssimo Manoel Deodoro da Fonseca e foram oferecidos
ao meu falecido marechal Pedro Paulo da Fonseca Galvão [...] por d. Mariana
Meireles da Fonseca, viúva do Generalíssimo Deodoro, como sendo a que vestia
na ocasião do seu falecimento. Me foram entregues pela sra. Baronesa de
Alagoas, cunhada do Generalíssimo Deodoro, em setembro de 1902, para eu
fizesse chegar às mãos de meu marido, que se achava então no Ceará. Com
referência à espada do Generalíssimo Deodoro que estava em meu poder e
ofereço ao museu histórico, o cartão que acompanha esclarece a autenticidade.
[Assinado Maria Saboia Viriato Galvão, Rio de Janeiro, 10 de dezembro de
1924.]160
O cartão a que se refere Maria Saboia Viriato Galvão consiste num pequeno pedaço de
papel, com a seguinte inscrição: “Espada do marechal Deodoro, da qual se serviu durante toda a
artefatos, ele não era predominante, uma vez que, por vezes, objetos antigos foram recusados por
não terem pertencido a personagens históricos, como podemos ver em um ofício emitido em 1928
por Gustavo Barroso a uma senhora que desejava vender para a instituição um piano do século
XIX: “Respondendo a vossa carta de julho último, cabe-me comunicar-vos que, a este Museu, não
159
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. DICOP. Processo: 15/24, 1924.
160
Id. Ibid.
161
Id. Ibid.
88
interessa a compra do piano de que trata vossa aludida carta, visto não pertencer a nenhum
personagem histórico”.162
solicitando objetos para o Museu, como ocorreu, em 1924, quando o diretor do MHN escreveu
para Laurinda Santos Lobo solicitando objetos que pertenceram a Joaquim Murtinho.
O pedido de Gustavo Barroso foi prontamente atendido, com dois objetos carregados de
valor simbólico por envolver não somente o nome de Joaquim Murtinho, mas os de outros
panteão da história nacional exposta no MHN, também são formas de afirmar a generosidade e o
patriotismo daqueles que ainda vivem, por meio doações e colocação de etiquetas em
agradecimento às doações. Como Eugenia Neves, que doou ao Museu uma chapa de bronze
gravada por Frois Maxadus, em 1875, representando o príncipe regente, D. João, e seu infante,
que se tornaria D. Pedro I. Na carta de doação, Eugenia Neves solicita que o objeto fosse exposto
162
Ofício 215, 10/10/1928. Apud MAGALHÃES, Aline Montenegro. Culto da saudade... op. cit. p. 33.
163
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. DICOP. Proc. 15/24, 1924.
164
Id. Ibid.
89
com uma etiqueta constando que a placa pertenceu à coleção de Jeronymo Ferreira das Neves,
sendo oferecida por sua viúva ao Museu. A solicitação foi atendida pelo diretor do MHN, como
consta na carta em agradecimento à doação “[…] a mesma relíquia figurará nas coleções desta
casa como tendo pertencido à coleção Jeronymo Ferreira das Neves […] de acordo com o desejo
Doar objetos ao MHN foi uma prática privilegiada para a consagração e a perpetuação de
alguns membros da elite na história nacional, cujo exemplo mais significativo é a doação da
coleção de Miguel Calmon por Alice da Porciúncula Calmon du Pin e Almeida. Como observou
Regina Abreu, houve nesse gesto uma relação de troca entre a instituição e a viúva. A doação foi
de tal monta – pelo número de objetos e pelo seu valor monetário – que seu reconhecimento
deveria ser expresso publicamente nas galerias do MHN, consagrando e imortalizando a memória
de Miguel Calmon, político que, entre outros cargos públicos, foi deputado federal e ministro de
Em carta de 1935, Gustavo Barroso iniciou a conversa formal sobre a doação dos objetos
de Calmon:
em resposta ao diretor do Museu, condicionou sua doação a uma série de exigências. A primeira
estabelecia que a coleção não poderia ser desmembrada; a segunda, que a arrumação, classificação
exposição deveria levar o nome de Miguel Calmon; a quarta compromete a segurança e a limpeza
dos objetos ao MHN e a quinta estabelece que a coleção deverá sempre estar no Museu e que os
objetos deveriam retornar à propriedade da viúva, em caso de extinção da instituição. 167 Gustavo
administração do Museu Histórico as condições que clausulam a referida doação [...]”. Ao fim,
foram doados 672 objetos, a maior parte relacionados à família imperial, à família Góis e à família
vinculados à sua atuação como homem público,168 objetos de arte, como um quadro do pintor
Desde a década de 1930, o MHN vinha expandindo suas galerias, passando a ocupar os
demais espaços do complexo arquitetônico que o abriga e que, até então, eram utilizados por
nacional que tinham-se destacado como grandes doadores do Museu, como não só o caso da sala
Miguel Calmon, mas também das salas dos Ottoni e dos Guinle, torna-se evidente que Barroso
museográfica aos vultos históricos e figuras da elite que identificava como patronos e heróis”.
167
Id.Ibid.
168
ABREU, Regina. A fabricação do imortal... Op. cit.
91
Perseguindo as origens da nação, o diretor do Museu Histórico Nacional
sedimentou na instituição uma história nacionalista com base no resgate de um
passado heroico. No projeto de conservação de objetos emblemáticos dessa
história, procurou recolher os símbolos das elites aristocráticas identificadas com
a fundação da nação brasileira. Assim, no Museu Histórico Nacional, ao
contrário de serem enfatizadas as novidades advindas com a implementação do
regime republicano, foram enfocados os vínculos, as continuidades com o Estado
Imperial português. Numa perspectiva de culto, um período histórico sobressaiu-
se dos demais: o Império. Personagens de uma tradição forjada no Império
mereceram salas especiais, como D. Pedro I, D. Pedro II, Caxias, Osório,
Tamandaré.169
principais doações recebidas pelo Museu, uma vez que as elites formavam o segmento de maior
penetração no MHN. Nesse sentido, as doações se configuravam como trocas rituais e simbólicas
que contribuíram para reabilitar o prestígio de grupos esmaecidos pelo advento da república.
Ulpiano Bezerra de Meneses observa que a coleção privada é a forma, senão exclusiva, pelo
menos dominante, pela qual objetos pessoais expõem-se à esfera pública. 170 No caso das coleções
pessoais doadas ao MHN, a divisão entre público e privado é bastante tênue, uma vez que seus
principais doadores eram pessoas vinculadas ao Estado e aos feitos militares e, consequentemente,
à história nacional. Como observa Pomian, a coleção pessoal aparece, desde cedo, nas sociedades
patriarcado ou uma aristocracia rica e letrada, nas quais seus membros não se dedicam ao ato de
colecionar somente pelo interesse nas artes, antiguidades e curiosidades, mas também como um
entre o colecionador e sua coleção, que se apresenta como uma parte e um prolongamento dele
mesmo e, para os outros, como seu autorretrato, composto por objetos que ele escolheu exibir,
representando seu status, sua riqueza, sua sensibilidade, suas espirações e seus gostos. Nas
palavras de Pomian, à la différence du trésor dont la formation et le contenu sont imposés par le
169
Id. p. 200.
170
MENEZES, Ulpiano T. Bezerra de. Memória e cultura material: documentos pessoais no espaço público. Revista
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, ano 1998, p. 89-103.
92
rôle social et ne dépendent qu'accessoirement de l'individualité de son titulaire, la collection
particulière est, dans une très large mesure, tributaire du rang et du caractère de son auteur. 171
desconecta cada vez mais da esfera do sagrado, na qual encontravam-se ainda os tesouros,
incluindo os laicos. Ela se destaca por sua composição: as relíquias dos santos e os objetos feitos
de materiais preciosos que remetem ao universo religioso são substituídas progressivamente pelas
obras que apontam para ações de autores humanos.172 A coleção particular expressa tanto a
autoridade do seu autor como a publicização da sua vida particular, tornada ela mesma exemplo e
parte da história. Esses objetos, quando adquiridos por instituições museológicas, assumem uma
dimensão pública e secularizada, o que não impede que determinadas práticas coletivas de origem
religiosa sejam ressignificadas, como mostra Pomian ao explicar que a secularização das coleções
guarda, ainda que de forma tênue, uma relação com o sacrifício.173 Muitos objetos doados aos
museus são valiosas obras de arte, relíquias familiares, joias, condecorações, mobiliário nobre,
enfim, objetos que foram agregados a algum tipo de valor monetário, histórico ou sentimental. As
doações são interpretadas como atos de patriotismo, como dádivas ofertadas por aqueles que
abrem mão desses tesouros para oferecê-los à nação e às gerações vindouras. É um ato de
sacrifício que fazem no presente em prol do futuro. As doações aos museus também encerram
circuitos familiares, uma vez que, a partir da entrada em instituições como o MHN, esses objetos
A relação com colecionadores de grande porte e “famílias ilustres” mostra que os objetos
adquiridos pelo MHN circularam no interior da elite brasileira, indicando laços de sociabilidade
171
POMIAN, Krzysztof. Des saintes reliques à l'art moderne. Venise-Chicago XIII-XX siègle. Paris: Gallimard, 2003.
p.11. [diferente do tesouro, cuja formação e conteúdo são impostos pelo papel social e que não dependem,
complementarmente, da individualidade de seu titular, a coleção particular é significativamente dependente da
hierarquia e da natureza de seu autor.] Tradução livre do autor.
172
Id. Ibid.
173
Id. Ibid.
93
que permeavam as aquisições de acervo. Como observado por Abreu, muitos objetos doados ao
Museu vêm de relações antigas, na forma de trocas de presentes, são bens de família, peças
bastante antigas que percorreram redes de sociabilidades ao longo dos tempos. 174 Os personagens
representados nessas doações formam uma amostragem importante das elites nacionais,
consagradas na história nacional exibida no MHN pela exposição de seus objetos. As doações de
grande volume e valor econômico, realizadas no período de direção de Gustavo Barroso, ainda
nos dias de hoje constituem as peças com maior valor de mercado da instituição. Trata-se de
grandes doações que pretendiam preservar o brilho de nomes de famílias tradicionais, esmaecido
A autenticação dos objetos oriundos das coleções particulares se dá, não exclusivamente,
seus possuidores no passado, seu criador e o seu ambiente contextualizado. Assim, o sangue era
uma categoria fundamental para atestar autenticidade histórica, uma vez que, na visão de Barroso,
a história nacional era fundamentada na ação dos grandes homens na edificação nacional. Através
das árvores genealógicas repetia-se o exercício de construção da tradição de uma elite que, por ser
considerada como fio condutor da formação nacional, tinha sua importância histórica assegurada.
É o que pode ser visto na carta do sr. José Geraldo de Bezerra Meneses, encaminhada ao diretor
do MHN em 1929 sobre a doação de “relíquias sagradas de família” que pertenceram a Leandro
Meu caro Gustavo [...] Venho trazer-lhe duas relíquias sagradas de família, que,
por herança, me pararam em mãos, e as ofereço ao MHN, cujo zeloso diretor
você é, e onde melhor ficarão guardadas. Há muito lhe prometera [...] o copo e o
174
ABREU, Regina. Fabricação do imortal... Op. Cit. p. 47.
175
Id.p. 150: Daryle Williams observa que há poucas indicações de doadores intencionados em ganhos de valor
econômico ao realizarem as ofertas, os ganhos eram sempre em capitais simbólicos. WILLIAMS, Daryle. Sobre
patronos e heróis e visitantes: o Museu Histórico Nacional, 1930 – 1960. Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de
Janeiro, v. 29, p. 141-183, ano 1997.
94
pires de prata por onde bebia o meu bisavô Brigadeiro Leandro Bezerra
Monteiro, fundador do Juazeiro. É trabalho feito naqueles remotos tempos, entre
fins do século XVIII e princípios do XIX, no Crato (Ceará) pelo ourives Gomes
de Mattos [...] Em separado, dou-lhe a minha descendência do velho patriarca, –
só para provar ser um bisneto dele quem faz essa dádiva ao Museu Histórico. 176
genealogia apresenta notícias sobre feitos de sua vida e morte, construindo a trajetória da família
até o doador. Menciona-se também uma biografia publicada no Instituto Histórico e Geográfico
do Ceará, com informações sobre os cargos públicos ocupados por membros da família e sua
relação com o Imperador. Este conjunto de referências atribui importância ao proprietário dos
ao MHN uma declaração sobre a trajetória de uma espada de oficial do exército do segundo
reinado, doada por ele ao Museu. A declaração mostra que, além do valor do objeto em si – uma
espada antiga do 2º reinado –, seu valor é acrescido pelos proprietários que a possuíram:
Em 1932, Wanderley Pinto escreveu ao então diretor do MHN Rodolpho Garcia, durante o
período de afastamento de Gustavo Barroso, uma carta sobre a doação de um chambre de seda que
176
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, DICOP. Processo: 11/29, 1929. [Grifos meus]
177
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, DICOP. Processo. 03/31, 1931.
95
Meu caro Dr. Rodolpho Garcia,
Receba minhas cordiais saudações.
Sou portador da dádiva, que fazem ao Museu Histórico Nacional D. Maria Luiza
Wanderley de Araújo e Pinho e Antônia Thereza Wanderley, de um chambre de
seda que pertenceu ao ditador paraguaio Solano López. Como lerá na carta que
aqui junto, não chegou a ser vestido por López, foi presa do regimento de S.
Martin e pelo seu comandante oferecido ao general Vedia. Este general ofereceu
ao visconde do Rio Branco que, por sua vez, dele fez presente ao Barão de
Cotegipe, acompanhando a carta que me refiro, carta esta que servirá para
autenticar aquela relíquia histórica.
Por morte do Barão de Cotegipe passou aquele chambre à posse de suas filhas
que, hoje, por intermédio meu, o oferecem ao Museu Histórico Nacional.
Creia, dr. Rodolpho Garcia, que sou, como sempre
amor, amº e cr. att. [Assinado por Wanderley Pinto]178
Rio Branco autenticando o chambre, contudo, pela resposta de Rodolpho Garcia, percebe-se que
Acuso recebida da sua amável carta, a que acompanhou o “robe de chambre” que
foi do marechal López, autenticado graças à mesma carta em que o Visconde de
Rio Branco a ofertava ao Barão de Cotegipe a relíquia do mais alto valor que o
conhecido patriotismo e as excelsas virtudes cívicas das duas filhas de Cotegipe,
as Exms. Senhoras D.D. Maria Luiza Wanderley de Araújo Pinho e Antônia
Thereza Wanderley, quiseram ficas [sic] e pertencendo à Nação, nos mostruários
desse museu.
Agradecendo-lhe a generosa dádiva, feita em nome de sua mãe e tia, a essas
nobres senhoras apresento os testemunhos do nosso reconhecimento, esperando
que, em breve, o Museu Histórico Nacional tenha sua sala Cotegipe, digna do
estadista, por tantos títulos notável [...]. Aceite o prezado amigo e confrade os
nossos cumprimentos cordiais. [Assinado por Rodolpho Garcia]
Fonseca de Sarti ao MHN. em 1955, segue o mesmo padrão. Tal como nos outros casos, além da
probatória. Os instrumentos foram doados, em 1855, a Herculano José da Rocha Maia por um
parente de Tiradentes. Rocha Maia os entregou a Fausto Magalhães Maya que, por sua vez, os deu
de presente, em 1901, ao marechal Pedro Paulo da Fonseca Galvão, pai da doadora embaixatriz
178
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, DICOP, Processo. 06/32, 1932.
96
Exmo. Sr. Gustavo Barroso,
Impossibilitada de comparecer pessoalmente, encarreguei meu neto Pedro Paulo
de entregar a V. Ex. os ferros de Tiradentes, que foram doados ao meu pai, o
Marechal Pedro Paulo da Fonseca Galvão por pessoa da família do glorioso
mártir da nossa independência. Junto vão os documentos comprobatórios da
veracidade dos mesmos.
Aproveito esta oportunidade para reiterar a V. Ex. os protestos da minha alta
estima e consideração,
Júlia da Fonseca de Sarti.179
Na declaração transcrita acima não há nenhum outro elemento de autenticação, a não ser a
A entrega dos objetos ao MHN ocorreu num momento especial na instituição. Em 1955 o Museu
inaugurava uma nova exposição sobre a história nacional. Na cerimônia de inauguração esteve
presente o então presidente da República Café Filho, que recebeu pessoalmente as relíquias
atribuídas ao inconfidente. Esta doação é interessante, uma vez que a presença do presidente é
181
Id. Ibid.
98
Figura 5: Instrumentos de dentista. Acervo MHN. Foto: MHN / Reserva Técnica.
99
Figura 6:Documento de autenticidade dos objetos. Acervo do MHN.
100
Figura 7:Verso do mesmo documento, com firma reconhecida. Acervo do MHN.
101
O culto dos grandes heróis das batalhas da Guerra do Paraguai rendeu, igualmente, relíquias ao
acervo do MHN. Para Barroso, este episódio militar foi o último ato da “epopeia bandeirante que
constituiu a pátria brasileira [...] o último episódio da grande epopeia escrita por todos os
quadrantes da terra brasileira por nossos antepassados”. 182 O acervo relativo ao conflito é
composto por objetos diversos: troféus de guerra, fragmentos de embarcações, como a roda do
leme da Fragata Amazonas, armas paraguaias retiradas do campo de batalha, objetos pessoais de
figuras de proa. Muitos destes objetos são oriundos de transferências de instituições como o
Museu Naval e o Colégio Militar. Outra parte é formada por doações de familiares ou particulares,
como no caso dos objetos de veteranos da guerra e dos objetos relacionados às batalhas
do General Osório, doou 97 objetos de uso pessoal do General. Como de costume, a doação veio
Em atenção aos nobres e patrióticos fins que teve o governo federal, criando o
MHN, nesta cidade, cumpro o grato dever de ofertar para serem expostos, nas
salas do referido museu, os objetos relíquias [...] que pertenceram ao meu pai, o
Marechal Manoel Luis Osório, Marquês do Herval [...] e que atualmente me
pertencem, com a condição, porém, de serem esses objetos e relíquias restituídos
a mim, ou aos meus herdeiros, no caso de requisitarmos, ou por supressão do dito
museu [...].183
Dentre os objetos ofertados, três chamam atenção: uma caixinha de vidro com esquirolas,
quando comandava a batalha do Avaí, lança e poncho perfurado por balas na ocasião do combate
da passagem do Riachuelo. A doação não menciona em que situação e tampouco como estes
objetos foram conservados, porém as relíquias foram valorizadas durante anos no MHN, até que,
182
BARROSO, Gustavo. História militar do Brasil. São Paulo: Brasiliana, 1935. p. 211. [Grifos meus].
183
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, DICOP. Processo, 03/23, 1923. [Grifos meus].
102
em 1983, foram transferidas juntamente com diversos objetos da coleção Osório ao Exército
Brasileiro, ficando sob a guarda da Casa de Osório, localizada no Centro da cidade do Rio de
Janeiro (RJ). Na década de 1990, com o fechamento da Casa de Osório o acervo foi enviado ao
Museu do Exército, no forte de Copacabana. Parte dos objetos estão também no Museu Conde de |
A doação de Manoela Osório deu origem à Sala Osório, anteriormente denominada Sala
dos Troféus, e que era composta por objetos militares e troféus de guerra. A Sala Osório foi a
Barroso,
[...] é uma das mais ricas do MHN pelo valor das relíquias do Grande Soldado
nela expostas: suas armas, seus retratos, seu poncho transpassado pelas balas
paraguaias e até os próprios dentes e fragmentos de ossos extraídos no profundo
ferimento recebido em Avaí. Logo no início do MHN, a família Osório,
compreendendo o alto significado patriótico da instituição [...] se apressou em
por à disposição do diretor do museu as preciosas recordações do vencedor de
Tuiuti [...].184
Nos anos 1930, Pedro de Veiga Ornellas, secretário de gabinete do MHN de 1922 até o
final dos anos 1940, descrevia em artigos publicados na imprensa, e posteriormente reunidos em
livro, as “relíquias da pátria” conservadas no MHN. Seu texto sobre a Sala Osório destaca, entre
as principais relíquias, os dentes do velho general, a lança e o poncho perfurado por balas.
184
BRASIL,MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, DICOP, processo 05/29, 1929. [Grifos meus]
103
patrimônio nacional, zelosamente agasalhadas no gazophylaceo que é o Museu
Histórico Nacional, na parte referente à Sala Osório. Estojo de cristal contendo
esquirola do maxilar, dentes e fragmentos de bala provenientes do ferimento que
recebeu no rosto o general Osório, quando comandava, ao terminar a célebre
batalha do Avaí; lança usada pelo mesmo General na campanha do Paraguai;
poncho com orifícios produzidos por balas, que o bravo guerreiro vestia em
combate do reconhecimento de Humaitá [...].185
o diretor da Escola Nacional de Belas Artes enviou uma carta ao MHN sobre a transferência de
uma mesa que teria pertencido ao presidente paraguaio Solano López. Consta o seguinte:
Existindo nesta Escola uma mesa de mogno, com pedra mármore e que, segundo
documento em poder desta diretoria, serviu para o ditador Solano López assinar a
declaração de Guerra ao Brasil, venho solicitar-vos as necessárias providências
para sua remoção para esse museu, dado o valor histórico da mesa. A referida
mesa, que pertenceu ao Conselheiro Cândido de Oliveira, foi oferecida a este
estabelecimento pelo sr. Gustavo Masset, que arrematou em leilão precedido
pelos descendentes daquele titular [...].186
O irmão do ditador paraguaio Solano López foi constituinte do meu pai. Finda a
questão que meu pai tratou, o seu cliente ficou a lhe dever 10:000$00. Não tendo
com o que pagar, deu ao meu pai a mesa de mármore em que Solano López
assinou a guerra contra o Brasil. O fato é verdadeiro, assim como posso garantir a
autenticidade da mesa. [Assinado por Pedro de Alcântara C. de Oliveira. Rio de
Janeiro, 05/09/1919. Gustavo Leuzinger Masset abaixo assinado declara ter
comprado em leilão do espólio do Conselheiro Cândido de Oliveira, à rua Dr.
Aristides Lobo, n.º 229, em 10 de setembro de 1919 a mesa que se refere o
documento acima e que pertenceu ao ditador paraguaio Solano López. Rio de
Janeiro, 10 de setembro de 1919, assinado Gustavo Masset].
Exmo Sr. Professor J. Batista da Costa. Caro Sr. e amigo Gustavo Masset abaixo
assinado tendo adquirido em leilão há anos passados [...] uma mesa de mogno em
um pé só que pertenceu ao ditador do Paraguai, Solano López, e que conforme a
tradição da família e o documento em meu poder que junto lhe remeto, diz que
nela que o ditador assinou a proclamação de guerra ao Brasil, resolveu ofertá-la à
Academia de Belas-Artes afim de ser conservada no museu como relíquia do
passado esperando que seja aceita esta insignificante dádiva. De V. Ex. criador e
185
ORNELLAS, Pedro. Relíquias da Pátria. Rio de Janeiro: 1944.
186
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, DICOP, Processo, 18/26, 1926. [Grifos meus]
104
admirador amigo. [Assinado Gustavo Masset.]187
Os objetos em questão foram aceitos pela direção do MHN, que agradeceu em carta a
oferta afirmando que “[...] embora faltem meios para apurar a autenticidade no rigor absoluto
daquela indicação, faço reunir a aludida faixa, sem dúvida valioso troféu, à coleção existente no
Museu, com a declaração de que é considerada como objeto abandonado pelo presidente
valoração na musealização dos seus objetos não diferem daquelas já analisadas, como no caso da
Possuindo alguns objetos que pertenceram ao meu saudoso avô, o sr. Marechal
Duque de Caxias, venho por intermédio do meu filho Edgard, oferecer os
referidos objetos à repartição que com tanto brilho e dedicação V. S. dirige; aos
quais são os seguintes: a comenda da Ordem da Rosa, concedida ao avô, depois
de concluída a guerra da Cisplatina, quando foi nomeado cavalheiro da mesma
ordem por Decreto de 18 de outubro de 1829. Um sinete com brasão d’armas e
um álbum com diversas fotografias do acampamento das forças brasileiras contra
o governo do Paraguai, inclusive a do quartel general do meu avô em Cuyu-Cuê.
Lamentando não possuir mais nenhum objeto que possa preencher o fim que V.S.
187
Id. Ibid. [Grifos meus]
188
Id. Ibid.
105
deseja subscrevo-me agradecida,
atribuído a Solano López que teria sido encontrado perto de seu cavalo na ocasião de sua morte. A
doação foi feita pelo presidente Getúlio Vargas, tendo o rebenque pertencido ao seu pai, o general
Manoel Nascimento Vargas, veterano da Guerra do Paraguai. Junto com a doação veio o
Caso onde apenas o nome do doador é suficiente para atestar autenticidade ocorreu com a
doação de uma espada que D. Pedro I teria usado na ocasião do Grito do Ipiranga. A espada foi
doada pelo então ministro da Guerra Eurico Gaspar Dutra em 1944, sem nenhum tipo de
Exmo. Sr. Dr. Gustavo Barroso, Presidente [sic] do Museu Histórico Nacional. É
o Exército depositário duma relíquia sagrada – a espada que D. Pedro I
empunhou com energia e valor... Nas mãos do impávido Imperador só foi
honrada, pois o punho de ferro do seu dono soube elevá-la bem alto ao declarar a
independência de nossa Pátria. Ao comemorarmos mais um aniversário da nossa
liberdade política, tive a lembrança de enviar-lhe o símbolo da honra do soldado,
que foi cingido à cinta do herói de duas Pátrias, D. Pedro I. A espada que lhe
envio [...] deve ficar guardada no seu benemérito Museu, pois ela é mais do
Brasil do que do Exército. Guarde-a, Senhor Diretor, guarde-a com carinho,
porém de modo que todos os brasileiros possam vê-la, porque essa espada do
homem másculo que nos tornou libertos da metrópole, tem uma significação –
Confiando nas suas forças armadas, o Brasil será independente e forte para
sempre.191
189
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, DICOP, Processo, 11/30, 1930.
190
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, DICOP, Processo, 11\39, 1939. O manuscrito também pode ser
encontrado no Arquivo Histórico do MHN, coleção GV 1\54-3.
106
Em agradecimento, Barroso reforça o valor relicário de tal doação:
Todavia, quando o proprietário não dispõe de um nome que lhe dê autoridade para atestar a
autenticidade histórica do objeto doado, as coisas ocorrem de forma diferente. É o que se pode
observar no ocorrido iniciado a partir de uma matéria do jornal Lavoura e Comércio da cidade de
Monte Alegre de Minas Gerais (MG), que em 1938 publicou uma matéria intitulada “Estará em
Monte Alegre uma preciosíssima relíquia histórica?”. A matéria abordava a existência de uma
relíquia dos tempos de D. João VI em Monte Alegre, sendo propriedade de um homem chamado
Goiás. Messias da Rocha, tendo residido muitos anos naquele estado e no Pará, mudou-se para
Monte Alegre, onde ficou gravemente doente. A relíquia que o jornal alardeava em matéria de
uma página inteira era um crucifixo com a imagem de Cristo talhada em marfim e a cruz em
Essa imagem teria sido presenteada a um padre da família Xavier Brandão que
regressando mais tarde para o estado de Goiás transmitiu essa relíquia aos seus
sucessores e estes, por sua vez, a transmitiram aos seus descendentes até que,
finalmente, ela se encontra em poder do sr. Messias da Rocha […]
191
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, DICOP, Processo, 08\44, 1944.
192
Id. Ibid.
107
O historiador goiano Henrique Silva, que teve o ensejo de verificar
detalhadamente essa relíquia, manifestou sua opinião a respeito, atribuindo sua
autoria aos artistas quinhentistas de Portugal, pois só os artistas portugueses
dessa era seriam capazes de produzir obra tão perfeita.
[…] vários colecionadores de preciosidades históricas que percorreram o estado
de Goiás manifestaram desejos de ver essa imagem, e satisfeitos em sua vontade,
chegaram, mesmo, ao ponto de solicitar ao seu proprietário para abrir o preço da
mesma.
Trata-se, assim, de uma relíquia que, segundo tudo está a indicar, possui o maior
valor artístico e histórico, sendo de se desejar que o Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional se inteirasse dessa ocorrência para as necessárias
providências, no sentido da reivindicação dessa preciosidade para o patrimônio
histórico e artístico do Brasil.193
A matéria publicada no Lavoura e Comércio foi enviada por Messias da Rocha junto com
uma carta ao presidente do IHGB, Manoel Cícero, acompanhada de uma fotografia do objeto,
solicitando que a referida instituição comprasse sua relíquia, uma vez que ele julgava que um bem
daquela grandeza deveria ficar no Brasil, devido à sua importância histórica para o país.
Argumentava Messias da Rocha que vários colecionadores estrangeiros o haviam procurado com
interesse de comprar o crucifixo, negócio sempre recusado por ele e por sua esposa. Afirmava em
sua carta:
[…] De fato temos a imagem como a do culto de D. João VI, baseado nas
pesquisas de roteiro retrospectivo pelo grande historiador goiano capitão
Henrique Silva, pois ele verificou ter sido ela do padre João Brandão adquirida
pelo padre Manoel e este do padre José Maurício que oficiava na Capela
Imperial. […] Há anos por um roteiro apareceu em nossa casa um ilustre cidadão
argentino, colecionador de preciosidades históricas, artísticas e antiguidades, e
pedindo a imagem para ver foi grande o seu desejo de adquiri-la por compra, e
não conseguindo, disse me ele que estava certo ser crucifixo de D. João VI,
porque esculturas tão sublimes como esta só em Portugal em séculos remotos
havia escultores capazes para tanto.
Assim achando-me em cama por quase cinco anos, será meu maior desejo que
seja esta imagem adquirida em reivindicação pelo País por intermédio do
Instituto Histórico, impretando [sic] de V. Ex. as necessárias pesquisas ao fim do
meu desejo, cuja fineza saberei agradecer como humilde. [Assinado Messias da
Rocha.]194
O presidente do IHGB respondeu informando que o instituto não dispunha de verbas para
a compra do referido objeto e recomendou que Messias da Rocha procurasse o MHN, pois o
193
LAVOURA E COMÉRCIO. Estará em Monte Alegre uma preciosíssima relíquia histórica? [recorte de jornal]
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, Processo, 06/39, 1939.
194
Id. Ibid.
108
museu possivelmente teria interesse na compra. Em 18 de novembro de 1938, o proprietário da
relíquia enviou uma carta ao diretor do MHN informando igualmente seu desejo de que o objeto
ficasse no Brasil. No mesmo mês, o diretor do museu respondeu dizendo-lhe que, por se tratar de
final de ano, o museu não dispunha de verbas para compra de acervo, e solicitou que Messias da
Rocha aguardasse a virada do ano, quando o museu teria um novo orçamento, e que, assim feito,
enviasse o crucifixo por algum portador para que fosse feita uma avaliação.
Educação, solicitando verba para a compra, acrescentando que a “a peça em questão me parece– a
julgar pela fotografia – de alto interesse artístico. No caso da exatidão das informações que a
Em janeiro de 1939, Messias da Rocha escreveu ao MHN informando que Antônio José
Carlos Peixoto Filho seria o portador da relíquia. Também acrescentou mais informações sobre o
objeto, como sendo inicialmente um presente de D. João VI ao padre José Maurício, conforme
teria afirmado o historiador Henrique Silva. O objeto foi entregue para avaliação no MHN em
meados de fevereiro e, em maio de 1939, o MHN enviou uma carta a Messias da Rocha
solicitando o valor que gostaria que fosse pago pelo objeto. Em resposta, Messias da Rocha
Sr. Diretor,
Não provou o Sr. Messias da Rocha a procedência histórica do crucifixo, que se
propõe vender ao Museu Histórico. Há apenas a alegação de ter sido “imagem do
culto de D. João VI”. É porém do ponto de vista artístico uma verdadeira joia,
digna de figurar nos nossos mostruários como estado eloquente da arte do século
XVIII. Creio, contudo, não ser possível, em matéria de preço, arbitrar, para
aquisição da mesma, um valor superior a R$ 5:000$000 (cinco contos de réis).
Este é o meu parecer.197
A avaliação ficou aquém do esperado por Messias da Rocha, que escreveu ao diretor do
MHN afirmando não ter, de fato, provas escritas sobre a autenticidade histórica do objeto.
Todavia, afirma que o crucifixo fora avaliado por colecionadores e pelo historiador Henrique
Silva, que tinham interesse na compra do objeto, e que todos asseguraram ter sido o crucifixo de
propriedade de D. João VI. Para reafirmar sua história, Messias da Rocha narra como o objeto
O fato é que, passados dois anos, em 1941, o MHN adquiriu o crucifixo pelo preço
197
Id. Ibid.
198
Id. Ibid.
110
estipulado por Menezes de Oliva, 5 contos de réis, conforme consta nos recibos da época. Não há
documentação informando se o crucifixo retornou às mãos de Messias da Rocha neste meio tempo
ou se ficou em posse do Museu até aquele ano, tampouco há notícias de como foi feito o acerto do
negócio. Porém, o que chama a atenção, neste caso, é que, apesar da qualidade técnica da
escultura, confirmada pelo próprio Menezes de Oliva e por Gustavo Barroso, e dos materiais
nobres empregados (marfim e jacarandá), o nome de Messias da Rocha não teve autoridade
suficiente para autenticar o caráter histórico de sua relíquia. Vários objetos coletados pelo Museu
foram autenticados a partir de declarações de seus proprietários, sendo que a de Messias da Rocha
não difere em aspectos formais das outras. Talvez por ele não pertencer a nenhuma família
museológica de então, para autenticar sua relíquia. Podemos perguntar se este mesmo
questionamento sobre a autenticidade histórica teria sido realizado caso o objeto fosse oriundo de
uma coleção como a de Cotegipe ou de algum patrono da instituição, como o próprio Getúlio
crucifixo teria sido feito se ele fosse oferecido para doação, e não para venda. Por Messias da
Rocha não pertencer ou ter contato direto com nenhuma família tradicional da aristocracia, não
tinha como justificar a posse de um objeto relacionado a D. João VI, de tal modo que Menezes de
Oliva tenha podido, talvez, ao questionar a autenticidade histórica do objeto, cotar um preço
Um elemento que reforça essa hipótese é que nos AMHN, em sua edição de 1941, em
artigo intitulado O Museu Histórico Nacional através dos seus 19 anos de existência, redigido
como relatório das atividades do ano do Museu, há uma fotografia do crucifixo de Messias da
Rocha, na parte dedicada às aquisições de acervo, com a seguinte legenda: “Crucifixo que
pertenceu a D. João VI, admiravelmente esculpido. Cruz de jacarandá, com florões de prata
111
cinzeladas à mão em estilo D. João V. Aquisição do Museu Histórico Nacional.” 199 Há somente
mais uma imagem estampada no texto, trata-se de um piano que pertenceu a D. Pedro I e foi
vendido ao Museu por 50 contos de réis por quatro irmãs, filhas do pintor Aurélio de Figueiredo.
Para conseguir a verba necessária para a aquisição do piano, Gustavo Barroso escreveu ao
A compra foi efetivada por 50 contos de réis em 1940, como consta da carta escrita por
Para termos uma ideia dos valores gastos pelo Museu na época, vale mencionar que
Gustavo Barroso recebeu 100 contos de réis como adiantamento para organizar a participação
199
Id. Ibid.
200
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, Processo, 01/40, 1940
201
Id. Ibid.
112
brasileira na exposição dos Centenários Portugueses em Lisboa, em 1940. Esse dinheiro foi gasto
exposição.202 No mesmo ano, o Museu comprou a coleção Souza Lima, composta por 572
portuguesas do século XVI. A coleção foi penhorada em 1933, na Caixa Econômica, sendo
adquirida ao MHN por ordem de Getúlio Vargas por 100 contos de réis, após diversos apelos de
Barroso ao presidente para a aquisição da coleção. Ainda em 1940 constam as seguintes compras:
de uma urna que teria servido na primeira eleição presidencial do Brasil por 4 contos de réis e
pagamento de 2 contos e 500 mil réis por uma mesa de jacarandá, estilo manuelino e vendida por
poderia ter sido mais bem avaliado caso seu proprietário tivesse podido naquela situação
relacionar sua posição social ou seu prestígio à autenticidade de uma relíquia pertencente a D.
João VI. O fato é que, depois da compra, o objeto foi catalogado pela instituição confirmando a
pertença. Além disso, Adolpho Dummas selecionou o crucifixo vendido por Messias da Rocha
para ilustrar o acervo do Museu, no texto sobre os 19 anos da instituição, juntamente com o
“magnífico” piano de D. Pedro I. Com certeza, a escolha se deu devido aos atributos estéticos do
objeto, ainda mais levando-se em consideração que, naquela ocasião, o Museu já havia adquirido
a coleção Souza Lima, composta de vários crucifixos de alta qualidade. Desde sua aquisição, o
crucifixo “de D. João VI”, passou a constar em várias exposições organizadas pelo MHN, como a
exposição D. João VI: um rei aclamado na América, realizada em 1999. Curiosamente, ambos
objetos que ilustraram o artigo sobre os 19 anos do MHN se encontram juntos, novamente, nos
202
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, Arquivo Institucional, Relatório de 1940, 1940.
203
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, Processo, 05/39, 1939.
113
dias de hoje. O piano de D. Pedro I, comprado por 50 contos de réis, e o crucifixo de Messias da
Figura 8: "Crucifixo de D. João VI” e piano de D. Pedro II. Acervo MHN. Exposição Portugueses
no mundo.
Um outro caso ocorrido entre 1933 e que se estendeu pelo menos até 1953 mostra outro
aspecto da autoridade do nome próprio – ou melhor, da falta dela – na aquisição de objetos para o
acervo. Em 14 de abril de 1933, Armando Manso Vieira escreveu a Gustavo Barroso uma carta
oferecendo para venda uma espingarda que teria pertencido a D. Pedro I. Vejamos parte da
correspondência:
[...] Na qualidade de chefe de uma tão valiosa instituição [...] levo ao vosso
conhecimento que tenho uma arma que deve ter um grande valor histórico para o
Museu. Trata-se de uma espingarda que foi de D. Pedro I, presenteada a um tio
avô por D. Pedro II. Morto esse tio a arma coube ao meu saudoso pai em
inventário. Ela apesar de antiga é uma arma fina, contendo os dísticos do império
e marcheteada de ouro e prata e com os dizeres [...] D. Pedro I. Ela não se acha
atualmente em meu poder, porém, não será difícil a sua arrecadação. Um irmão,
no governo do dr. Washington Luiz, entregou a arma a um advogado do Rio para
ver se negociava com o aludido presidente, mas morrendo este irmão
repentinamente o advogado não restituiu a arma. De maneira que, se ao Museu
interessar a aquisição dessa arma irei providenciar sua arrecadação. [Assinado
por Armando Manso Vieira]204
204
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, Processo, 16/36, 1936.
114
Barroso respondeu afirmando ser conhecedor da arma, tendo comprovado sua
acervo: tratava-se da mesma arma oferecida três anos antes por Armando Manso Vieira ao MHN.
Contudo, a espingarda não foi vendida nem doada por ele e, sim, doada ao Museu pelo Capitão
Delegado Especial de Segurança Pública e Social, Filinto Muller. O relatório de Pedro Ornellas dá
Segundo Cléber José das Neves Reis, “a arma foi apreendida pela polícia, no dia 30 de
março de 1936, porque o ex-proprietário não possuía o respectivo registro conforme a lei
determinava”. A doação da espingarda foi agradecida em carta por Gustavo Barroso, que escreveu
a Filinto Muller que o objeto apreendido pela polícia e ofertado ao MHN era raro e de alta
significação histórica, “devendo figurar na sala denominada D. Pedro I”. 207 A arma em questão,
por suas características físicas, trabalhada em prata e ouro e com a inscrição D. Pedro I, não teve
sua autenticidade histórica refutada. O que parece ter sido refutado, neste caso, foi a possibilidade
participarem .de um verdadeiro sistema de práticas que davam sentido à museologia tal como se
205
Id. Ibid.
206
Id. Ibid.
207
Id. Ibid.
115
configurava à época.
Em 1939, Maria Arruda Afonso Manso Vieira abriu um processo judicial pedindo a
autora do processo sobre a procedência da arma contradizem as explanadas anos antes em carta
escrita por Armando Manso Vieira, tal como observado por Reis:208
Primeiramente, a autora do processo informou que o objeto em questão foi avaliado e autenticado
por Rodolpho Garcia, diretor do MHN entre 1930 e 1932. No ano de 1936, estando Maria Arruda
Manso Vieira, residente no município de Mogi Mirim (SP), com grandes dificuldades financeiras
e tendo a notícia de que o empresário Guilherme Guinle estaria interessado em comprar a arma,
incumbiu um amigo e procurador da família, chamado Nahim José, de viajar ao Rio de Janeiro
para mostrar o objeto ao interessado. Porém, quando chegou ao Rio de Janeiro, foi informado de
que Guinle estava em viagem de negócios e que iria ficar mais de 20 dias fora da cidade. Não
podendo esperar tanto tempo, Nahim José resolveu retornar à sua cidade, Juiz de Fora, deixando a
na Avenida Tomé de Souza, no Centro do Rio de Janeiro. Ocorre que pouco depois de retornar a
Juiz de Fora, Nahim José foi chamado de volta ao Rio pelo seu amigo hoteleiro, visto que, logo
após sua partida, agentes da polícia federal haviam feito uma busca no hotel, com base numa
208
O processo judicial solicitando a devolução da arma não cita a carta escrita por Armando Manso Vieira ao MHN,
tampouco explana qual é o grau de parentesco deste com a autora do processo.
209
Apud MAGALHÃES, Aline Montenegro. O culto da saudade... Op. cit. p.342.
116
informação de que havia armas no estabelecimento. Após minuciosa busca encontraram a
espingarda que foi apreendida, a despeito da argumentação de que era uma arma antiga e obsoleta,
Alarmado com a situação, Nahim José foi ao Palácio Tiradentes e conversou com “Dr.
Antônio Carlos que, de próprio punho, deu ordem ao dr. Lahyr Tostes, seu genro e secretário, para
documentação não esclarece exatamente quem era o “dr. Antônio Carlos”, mas, pelo visto, sua
autoridade não foi suficiente para garantir a reintegração de posse do objeto, uma vez que seu
secretário, Lahyr José, ao solicitar a devolução da arma, foi informado por Filinto Muller que
nada podia ser feito, e que a espingarda estaria em posse do MHN, portanto fora de sua
jurisdição.210 O documento informa ainda que, após várias tentativas amigáveis de devolução do
objeto, o requerente abriu uma solicitação de devolução junto ao ministro da Educação, que em
ofício datado em 1943 solicitou informações sobre a espingarda, bem como sua devolução ao
proprietário. Gustavo Barroso informou que a arma estava realmente sob os cuidados do MHN,
mas que não a devolveria, a não ser por ordem do ministro da Justiça. Por fim, o processo se
arrastou até 1953, sem solução, uma vez que a espingarda ainda faz parte do acervo do MHN.
Os membros da família Manso Vieira não tinham, pelo visto, um consensual sobre a forma
como tinham herdado um objeto tão valioso; tampouco tinham parentesco com a família real, ou
com membros da aristocracia e da nobreza brasileiras. Ao que tudo indica, tratava-se de uma
família de classe média baixa do interior de São Paulo, que não pertencia a nenhum círculo de
colecionadores e descendentes das elites imperais. Não poderiam ter sido considerados herdeiros
pertencimento ao imperador D. Pedro I e cuja vocação era, porém, tornar-se parte do acervo do
MHN.
210
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, Processo, 16/36, 1936.
117
Figura 9: Piano de D. Pedro I. Foto: AMHN,
Figura 10: Crucifixo vendido por Messias da 1941.
Rocha ao MHN. Foto: AMHN. 1941.
118
2.1. O “Tacape de Tibiriçá”
autenticidade, em que podemos acompanhar a trajetória do objeto até os dias de hoje é o do tacape
indígena atribuído a Martin Afonso Tibiriçá, chefe dos índios guaianases e personagem mítico da
história da fundação de São Paulo, e o único objeto de origem indígena entre os mais de 2 mil
publicado em 1924.
Semelhantemente a diversos objetos do acervo do MHN, o tacape faz parte de uma longa
troca de presentes. Pertencera a D. Pedro II, que o doou ao escritor, militar e político José Vieira
Couto de Magalhães, que presenteou a José Vieira Costa Valente, que por sua vez o doou ao
Museu Nacional. O tacape veio transferido daquele museu em 1922, junto com outros objetos. Na
documentação que acompanha então, e hoje sob a guarda do MHN, consta a seguinte declaração:
Declaro que o tacape de que fiz presente ao sr. da Costa Valente pertenceu ao
meu tio General Couto de Magalhães, que o teve, por oferta, do imperador D.
Pedro II em ocasião da sua última visita a São Paulo. Sua majestade declarara ao
General Couto de Magalhães que esse tacape pertencia ao chefe índio Tibiriçá,
tendo o referido general anotado na circunstância em um manuscrito que colara
no tacape e cujos vestígios se notam ainda. São Paulo, 20 de novembro de 1917.
[José Vieira Couto de Magalhães - com firma reconhecida em 8 de março de
1917]211
De início cabe ressaltar que a doação, realizada por Costa Valente ao Museu Nacional, é
marcada pela menção a autoridades, através de declaração com firma reconhecida e a menção aos
Pedro II, sua autoridade de imperador e sua notória erudição bastam, evidentemente, para
autenticar a peça. Por sua vez, Couto de Magalhães foi membro do IHGB, escritor, militar,
presidente das Províncias de Goiás, Mato Grosso, Pará e São Paulo, empresário de vias de
211
MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. DICOP. Processo, 11/22, 1922.
119
transporte marítimo, autor de O Selvagem,212 livro encomendado por D. Pedro II para compor a
índios através de sua própria língua, a exemplo dos jesuítas, que estudaram as línguas indígenas, e
dos antigos portugueses e espanhóis, que faziam uso de intérpretes. Ao escrever sobre a história da
fundação de São Paulo, Couto de Magalhães enfatizou a ação dos jesuítas com os índios
guaianases. A catequese e o aprendizado dos valores da civilização levariam o índio a mostrar seu
valor moral. Martim Afonso Tibiriçá é, nesse sentido, o melhor exemplo dessa afirmação. Chefe
dos índios guaianases, foi convertido ao cristianismo pelos padres José de Anchieta e Leonardo
Nunes, e colaborou com os portugueses na fundação da vila de São Paulo de Piratininga. Tibiriçá
brasileira.
Essa representação da figura indígena como célula da identidade nacional foi tema
constante na historiografia brasileira da segunda metade do século XIX e início do século XX.
narrativas, as relações entre tupis, jesuítas e bandeirantes e o processo de mestiçagem teriam dado
origem ao mameluco, entendido muitas vezes como a raça paulista. Sendo assim, o “Tacape de
representaria, neste caso, a constituição de uma raça de mamelucos, fruto da ação civilizadora da
igreja.
O tacape integra, assim, o acervo do MHN como um objeto que testemunhou do sangue e
do calor dos combates, considerado autêntico, como dito, pela força dos nomes dos seus
213
BARROSO, Gustavo. O tacape de Tibiriçá. Papel de Tibiriçá na fundação de S. Paulo – os jesuítas e João Ramalho
– a epopeia da catequese – uma relíquia desse glorioso tempo. Segredos e Revelações da História do Brasil. O
Cruzeiro. s.d. GB. Autoria, Recortes, 60. V. 2.
214
Id. Ibid.
121
Figura 13: “Tacape de Tibiriçá”. Foto: Catálogo
Banco Safra, MHN, 1989.
A própria produção historiográfica de Gustavo Barroso também colabora para seu
reconhecimento como “objeto histórico”. Ocorre aqui algo semelhante à função autor proposta
autor”, possibilitando a assunção do estatuto “histórico” do tacape, e com isso agrupando-o com
junta a outros objetos dotados do mesmo valor. Esse “efeito autoral” é reforçado apresentação da
peça no Catálogo de 1924, e repetida em outros catálogos e legendas produzidos pela instituição
ao longo dos anos: “Pertenceu a D. Pedro II, que o doou ao gen. Couto de Magalhães”. Essa
informação reforça outra: “Consta ter pertencido ao chefe indígena Tibiriçá”. Não há dados sobre
o que teria ocorrido com o tacape no intervalo de nada mais que 300 anos entre os acontecimentos
em torno da fundação de Piratininga até o dia que ingressou nas coleções de D. Pedro II. Todavia,
uma vez chancelada sua autenticidade, surge confirmada a sua datação presente nas legendas:
“Século XVI”.
Ao longo dos anos, o “Tacape de Tibiriçá” foi interpretado de diferentes formas pelos
funcionários do MHN. Em 1960, foi enviada à direção do MHN uma carta escrita pelo Sr. Vitor B.
resposta enviada pelo MHN em 13 de janeiro e escrita pela chefe da 1ª Seção de História, Octávia
Corrêa dos Santos Oliveira, pode-se observar, mais uma vez, o valor do objeto é atribuído
122
unicamente pelo fato de ter pertencido a D. Pedro II.
[...] o nosso Museu Histórico possui: um tacape do século XVI (a peça de origem
mais antiga de nossa coleção) e que pertenceu às coleções de D. Pedro II. A ele
tinha sido dado como sendo do cacique Tibiriçá, um dos fundadores de S. Paulo.
É a única peça de origem tupi na nossa coleção, que já tem para nós um caráter
histórico: o de ter pertencido ao 2º imperador do Brasil, o que justifica sua
presença neste prédio.215
Anos depois, em janeiro de 1991, o “Tacape de Tibiriçá” foi exposto na exposição “Vitrine
do mês”, um projeto que visava expor objetos guardados na Reserva Técnica durante cada mês do
ano, como forma de dinamizar o acervo e as exposições. No mês de janeiro, almejava-se fazer
uma alusão à fundação da cidade do Rio de Janeiro. O MHN dispunha, segundo técnicos da
época, de diversas peças que poderiam ser selecionadas com diferentes enfoques à temática
proposta. No entanto, como consta no projeto, foram apresentados alguns argumentos no sentido
de que o MHN, por ser uma instituição nacional, deveria dar ênfase a outras regiões do país. Foi
sugerida, assim, uma homenagem à cidade de São Paulo, que também teve sua fundação no mês
de janeiro e o tacape é, então, submetido a uma análise técnica que descarta o privilégio da
[...] tendo feito pesquisas em nossa biblioteca, arquivo histórico e reserva técnica,
só foi encontrada uma peça relacionada diretamente ao assunto sugerido – um
tacape atribuído ao chefe indígena Tibiriçá. Esta peça encontra alguns problemas
tópicos em relação às exposições do destaque do mês – dimensões inadequadas e
dificuldade de viabilização conceitual, mas estes problemas são circunstanciais e
sanáveis com o uso de técnicas museográficas apropriadas e de textos adequados.
O problema maior, acreditamos, é o fato da peça não apresentar características
que nos permitam afirmar com certeza se ela pertenceu ao chefe Tibiriçá, dos
índios guaianases, que ajudou na fundação da cidade de São Paulo. Esta dúvida
lançada pela falta de dados referentes ao histórico da peça até alcançar as mãos
de D. Pedro II (cuja coleção passou ao General Couto de Magalhães e daí ao
MHN), assim como ao estado da peça, muito bom para madeira e palha
conservadas por mais de quatrocentos anos em condições adversas. No tocante ao
uso sistemático da arma podemos afirmar que a sua forma é coerente com as da
“borduna-cajado” ou “cacetes”, usados atualmente por alguns grupos indígenas
(Karajá, Javaché, Kayapó, Kaingang e Xipáya) sendo sua decoração trançada
(incompleta) compatível com a usada nas atuais tribos Guiana, Kaiapó, Kayabi,
Kaiwã, etc, algumas da região sudeste.
No entanto, todos estes dados são circunstanciais, não podendo definir se a peça
é “autêntica” ou não. Desta forma cremos que prevalece a tradição difundida por
215
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Ofícios recebidos. Jan. a Jun. 1960. AS DG2 47 (2). [Grifos meus].
123
Gustavo Barroso, de que a peça seria realmente de Tibiriçá. 216
coleções do MHN) o vincula a certos temas chave da historiografia brasileira, como o da fundação
de São Paulo e o da etnologia indígena, no final do século XX. Inicialmente, como visto, o tacape
Vitrine do mês a proposta foi utilizá-lo como ponto de referência para se pensar questões
históricas. Nesse sentido, segundo relatório elaborado, os textos que acompanhavam a exposição
dos jesuítas, ao enfatizar que elas teriam originado a escravidão indígena e a “virtual extinção”
dos índios em São Paulo. Outra preocupação do texto é a inserção de uma discussão de cunho
216
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Departamento de Acervo, Reserva Técnica, dossiê nº 1608.
217
Id. Ibid.
218
Id. Ibid.
124
historiográfico, ao mencionar a valorização da figura do índio no século XIX no debate intelectual
do Segundo Reinado. Essas questões são aprofundadas na “ficha técnica” produzida sobre o
tacape na ocasião da exposição e anexada ao seu dossiê. Cabe ressaltar que essa ficha é iniciada
com a mesma informação sobre a procedência do Tacape presente no Catálogo de 1924, porém
instituição. A exposição Oreretama, que significa “nossa terra” em Tupi, foi a primeira exposição
exposição não segue uma cronologia e nem é linear. Diferentes aspectos da vida indígena são
tratados através dos objetos e textos, organizados de acordo com os temas: donos da terra; artes da
exposição.
No espaço dedicado ao tema “lógica da guerra” são expostos arcos, flechas e tacapes. Ao
lado, o painel de texto informa que a lógica da guerra de algumas sociedades indígenas está
armas, apenas o “Tacape de Tibiriçá” está exposto sozinho numa vitrine com a legenda,
125
Borduna
Século XVI
Madeira e palha
São Paulo
Consta ter pertencido a Tibiriçá (- 1562), chefe dos índios guanainases que lutou
ao lado dos portugueses contra os chefes indígenas que se reuniram na
Confederação dos Tamoios (1554-1567). O principal motivo da Confederação foi
a revolta ante a ação violenta dos portugueses imposta aos tupinambás. 219
objetos são apresentados apenas com informações gerais como nome do artefato, material, origem
dispositivos que reforçam seu caráter monumental e relicário. O simples fato de ter pertencido ao
catálogos do acervo do MHN é o publicado pelo Banco Safra, que se insere num projeto maior de
219
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Oreretama, legenda de vitrine, 2006.
126
divulgar acervos dos principais museus brasileiros. O volume do catálogo correspondente ao
MHN, publicado em 1989, foi organizado a partir da tipologia dos artefatos, sendo o “Tacape de
a seleção do tacape nessa seção, visto que é composta por armas ocidentais dos séculos XVIII,
XIX e XX (sabres, revólveres, arcabuzes, espadas entre outros). Pode-se supor que os técnicos
indígenas e a única arma indígena presente, na época, nas coleções do MHN era, precisamente o
““Tacape de Tibiriçá””.
de autenticidade e de valor do tacape, que, mesmo sendo exposto sob a etiqueta da atribuição e
não da autoria, reforça sua aura de mais de 500 anos de existência. Por fim, cabe ressaltar o envio
do ““Tacape de Tibiriçá”” para a exposição Terra Brasilis, realizada na Bélgica como parte do
importante evento cultural europeu, realizado a cada dois anos, desde 1969, em Bruxelas e em
outras cidades belgas. A cada edição o festival homenageia um país; e em 2011 o país
homenageado foi o Brasil. Nesse contexto, dentro do programa de artes visuais do evento, a
exposição Terra Brasilis ocorreu entre 19 de outubro de 2011 a 12 de fevereiro de 2012, no ING
Tibirá”, os seguintes artefatos para a exposição: mostruário de madeiras: álbum; amostra animal:
papo de tucano, guampa; instrumento de percussão: maraca; cesta, remo, aljava, coifa, diadema;
amostra vegetal: pau brasil. Esses mesmos objetos foram exibidos na exposição Oreretama,
visitada pela curadora meses antes. A exposição Terra Brasilis teve como concepção a
representação da natureza brasileira por artistas e viajantes estrangeiros, com especial ênfase nas
127
imagens da flora e da fauna do país, “tomadas seja do ponto de vista do encantamento frente à sua
de um lado, a visão paradisíaca sobre a natureza do Brasil, que emergiu ainda no primeiro século
de colonização, tendo continuidade na luxuosa série de tapeçarias das Índias tecidas pela
manufatura Gobelins, assim como em diversos objetos de arte decorativas com representações da
natureza”. Por outro lado, “explorou também as pesquisas científicas empreendidas por gerações
Como pode-se ver, ao longo dos anos o ““Tacape de Tibiriçá”” ganhou diversos sentidos,
técnicos. Todavia, a polissemia simbólica que este objeto adquire não implica que perca o efeito
gerado pelo dispositivo de autoridade: apesar de todas essas ressignificações, o tacape continua
sendo atribuído aos primeiros anos dos tempos coloniais, “pertencente” a um índio tornado figura
mítica, autenticado a partir dos nomes de D. Pedro II e do gen. Couto de Magalhães. Esse
dispositivo de autenticidade é tão efetivo que é aceito como prova legal em negociações de seguro
da peça, uma vez que o objeto em questão foi assegurado por um banco, ao ser enviado para
Bruxelas, como sendo um “tacape do século XVI, que pertenceu ao índio Tibiriçá”.
confirmar ou não, através de métodos de datação com carbono, por exemplo, a idade do tacape.
Um teste desse tipo poderia reafirmar o caráter relicário do objeto, caso o datasse como sendo
oriundo do século XVI. Porém, se a datação fosse mais recente, ainda assim esse objeto
continuaria carregado de carga simbólica que o caracteriza como “histórico”, como um objeto que
pertenceu a D. Pedro II e a Couto de Magalhães, implicando toda uma historicidade que sempre
128
O Museu apresenta-se, portanto, como um lugar de consagração e de invenção de
A consagração das relíquias efetua-se com a sua exposição ao público, por isso o objeto relíquia
precisa ser preparado para a exibição, dentro de vitrines, com iluminação e legendas. No caso das
sobre sua origem e seu significado. No caso dos museus, é a museografia que assume a gerência
dos diferentes usos museológicos desses objetos, como sua publicação em catálogos, sua
são as autoridades envolvidas e a atenção do público que visita as exposições que legitimam a
invenção e a existência dos objetos históricos, que sem eles perderiam carga simbólica.
129
3. Outros especialistas, novas coleções
Não há dúvidas de que Gustavo Barroso, como idealizador e diretor do MHN, colocou a
José Reginaldo Santos Gonçalves, a história da formação dos profissionais de museus no Brasil
diversos museus de história no Brasil estão intimamente ligados à formação do Curso de Museus
do MHN. Para Gonçalves, “em linhas gerais, desde os anos 1930, os museus brasileiros,
especialmente os museus históricos, tendem a reproduzir os padrões que vieram a ser difundidos
pelo Museu Histórico Nacional”.220 Após a morte de Gustavo Barroso, em 1959, assumiu a
direção da instituição o escritor Josué Montello (1959 – 1967), que conduziu o Museu de acordo
com o padrão geral adotado por Barroso. Suas palavras indicam a forte presença que Barroso
imprimiu na instituição:
[…] ali encontrei em cada sala, em cada objeto, em cada iniciativa, o zelo de
Gustavo Barroso pela coisa pública, o seu entranhado amor pelo Brasil.
Conhecia-lhe as lutas, as glórias, os heróis que nos trouxeram até aqui, como
nação, como povo, como pátria, e nisto encontrava pretexto para seu orgulho,
reconhecendo no presente a ponta extrema do passado. 221
Durante sua gestão, a exposição permanente continuou nas 40 salas organizadas pelo
idealizador do MHN, com todo o acervo exposto – uma vez que, na época, ainda não existia no
República, em 1960, como um departamento do MHN, onde, pela primeira vez, houve a
220
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Os museus e a representação do Brasil. Revista do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, n.31, p.254-273, 2005.
221
Apud PRET, Raquel Louise Coelho. Ver é conhecer... Op. cit. p. 47
130
separação de objetos que estavam juntos, em coleção, desde a fundação da instituição.
Foi durante a direção do comandante da marinha Léo Fonseca e Silva (1967-1970) que
ocorreu uma primeira mudança significativa nas formas de exposição, visto que o “Comandante
Léo”, como era conhecido, nomeado pela junta militar que então governava o país, obteve
recursos para a elaboração de novas exposições. Durante a sua gestão, foram encerradas as
exposições baseadas nas grandes coleções, organizadas por tipologias de objetos, ou tendo por
base os doadores, como as três salas dos Guinle, a sala Getúlio Vargas e a sala Miguel Calmon.
As galerias começaram a ser desmontadas em 1968, e coleções exibidas ao longo de vários anos
foram retiradas das galerias, sendo acomodadas em depósitos, sem qualquer controle de luz, de
umidade e sem acondicionamento adequado que caracterizassem tais espaços como o que se
A exposição do MHN passou a ter como base uma cronologia histórica fundamentada na
sucessão dos regimes políticos brasileiros. Assim, as 40 salas que compunham as antigas
exposições foram reduzidas a 12, em 1969. São elas: Sala Brasil-Colônia I, Sala Brasil-Colônia
II, Sala Brasil-Colônia III, Sala Brasil-Reino, Sala da Independência, Sala do Primeiro Reinado,
Sala do Primeiro Reinado I, Sala do Primeiro Reinado II, Sala da Guerra do Paraguai, Sala da
Guerra do Paraguai I, Sala da Guerra do Paraguai II, Sala da Guerra do Paraguai III, Sala do
Ocaso da Monarquia I e Sala do Ocaso da Monarquia II. 222 Esta exposição indica uma
significativa mudança no modo de tratamento dos objetos: as exposições, até então, tinham uma
1969, adotou-se uma narrativa progressista, na qual os acontecimentos do passado fazem parte
222
SANTOS, Myriam Sepúlveda dos. A escrita do passado em museus históricos... Op. cit. p. 59
131
futuro.223 Nessa lógica expositiva, os objetos atuam como ilustração da narrativa, sendo seu
caráter relicário subordinado à lógica linear e evolutiva das salas e vitrines. Para Regina Abreu,
acordo com Sepúlveda, que também analisou o mesmo período da instituição, “os objetos
evocar emoções, sentimentos, passaram a servir a uma ordenação dada segundo novos
critérios”.225 O tempo não era mais considerado como um espaço comum em que atos de
heroísmo eram reverenciados. Os heróis continuaram a ser cultuados, porém submetidos a uma
narrativa linear: a Guerra do Paraguai não era mais contada a partir dos objetos que glorificavam
Ocaso da Monarquia. Para Pret, a principal mudança com a nova exposição permanente
implantada em 1969 foi que o visitante não podia mais “flanar” pelas galerias, tal como era
possível nas 40 salas organizadas por Gustavo Barroso. A palavra “circuito”, empregada pela
primeira vez pelo Museu na divulgação da exposição permanente, denotava, a partir de então, a
intenção da direção em criar uma via única, na qual o visitante era obrigado a percorrer o espaço,
visualizando a história nacional através de textos e objetos.226 Cabe ressaltar que a nova
exposição montada durante a gestão do diretor Léo Fonseca não constituiu uma peculiaridade do
americanos, observa-se uma tentativa de substituir a história événementielle por uma ciência
histórica voltada para os estudos dos fatos econômicos, sociais e culturais, de modo que todas as
223
PRET, Raquel Louise Coelho. Ver é conhecer… Op. cit. p. 48-49.
224
ABREU, Regina. A fabricação do imortal... Op. cit. p 199-211.
225
SANTOS, Myriam Sepúlveda dos. A escrita do passado em museus históricos... Op. cit. p. 59
226
PRET, Raquel Louise Coelho. Ver é conhecer… Op. cit. p. 50.
132
classes fossem representadas, em modalidade seletiva e didática, voltada para o grande
público.227
A administração seguinte, de Gerardo Câmara (1970 até 1984), não trouxe mudanças
República, que se tornou um museu independente. A década de 1970 é mencionada pelos antigos
funcionários como um momento de decadência, no qual a instituição por pouco não encerrou
monetário das doações. Para termos uma ideia dos montantes doados durante a sua gestão, vale
mencionar os dados citados por Bittencourt. A família Guinle doou cerca de 3 mil objetos, entre
os anos 1922 e 1944, o que resultou nas “salas dos Guinle”: Guilherme, Otávio e Arnaldo
Guinle. Da coleção de Miguel Calmon, doada por sua viúva ao Museu e já analisada aqui,
constam mais de 700 objetos, entre os quais figuram alguns de grande valor monetário, como um
“óleo” do pintor francês Nicolas Poussin, além de tapeçarias, objetos de decoração e mobiliário
nobre. O espólio de José Wanderley Pinho, incorporado ao Museu em 1943, relaciona 118
objetos, enquanto a doação de José Ferreira Alves, considerada por Antônio P. Winz a última
grande aquisição do Museu até aquele momento, consta de 11 objetos de grandes proporções.
Estima-se que as doações de Getúlio Vargas, durante seus dois governos ultrapassam os 700
objetos. Somam-se a esses dados as compras realizadas, como a da Coleção Souza Lima, de
imaginária cristã, composta de mais de 500 itens e o serviço do Barão de Massambará, comprado
em 1943 e composto por 193 itens.228 Bittencourt observa que na década de 1950 havia
227
SANTOS, Myriam Sepúlveda dos. A escrita do passado em museus históricos... Op. cit. p. 64.
228
BITTENCOURT, José Neves. FERNANDES, Lia Silva P. TOSTES, Vera Lucia Bottrel. Examinando a Política de
133
diminuído o número de aquisição por compras, embora aquisições pontuais tenham sido
realizadas, como em 1956, quando foram comprados 10 objetos (serviços diversos do Barão de
demais pinturas e objetos para o Arquivo Histórico do Museu. Entre 1956 e 1975, foram
registradas a doação de 675 objetos de uso pessoal como uniformes militares, medalhas,
diplomas, objetos de toucador. Como ocorria no período de Barroso, esses objetos são marcados
pela autoridade do nome próprio, estando sempre vinculados a algum nome “ilustre” ou de
militar, o que condizia com o modelo de “história pátria” e monumental adotado no Museu desde
sua criação.
Carvalho, ocorrida após a sua morte em 1970, constituída por trajes típicos, originais e cópias, de
vários países e épocas, além de uma biblioteca especializada e de desenhos sobre indumentária
produzidos por Sofia Jobim. Para Bittencourt, essa doação exemplifica uma mudança no caráter
dos objetos encaminhados ao MHN, visto que roupas, trajes típicos, ferramentas de trabalho etc.,
artefatos relacionados aos valores úteis ou às “artes de utilidade”, como a culinária, os ofícios
relacionados aos grandes homens e acontecimentos. Ao receber uma coleção como a de Sofia
Jobim, a instituição transita, nesse período, de “recolhedor ativo” para “recolhedor passivo”, uma
vez que seus conservadores perderam sua capacidade de buscar acervos e selecionar doações de
acordo com o projeto de escrita da história monumental e pátria que marcou fortemente a
instituição até os anos 1970. No período de 1975 a 1984, as aquisições por doação e por compra
foram de 204 objetos, as mais baixas desde 1922, embora o caráter dos objetos continuasse
Museus, o que pode ser explicado, em parte, pela aposentadoria dos antigos conservadores ao
longo das décadas de 1970 e 1980. A partir de 1975, com a suspensão dos AMHN, encerrou-se
por seus conservadores, embora isso não signifique que, tais práticas tenham sido abandonadas
como visto no capítulo primeiro desta tese, quando se analisou o caso da restauração da coleção
de coches e berlindas.
com a contratação de novos técnicos, formados em outras áreas, como a história e a ciência da
informação, e de museólogos afinados com as novas visões conceituais sobre os museus e seus
do tratamento técnico do acervo foi introduzida em 1981, por Helena Dodd Ferrez, durante a
gestão de Gerardo Câmara, que resultou alguns anos mais tarde, em 1987, na elaboração do
Ao final dos anos 1970, o MHN, tal como outros museus nacionais, vivenciava períodos
de crise, sendo seu orçamento insuficiente para as atividades-fim, como manutenção predial,
conservação do acervo e divulgação. Diante desse quadro, o então diretor Gerardo Câmara
no MHN.229 Ocorre que em 1979, houve uma grande reestruturação nas instituições federais
responsáveis pela preservação dos bens culturais. O IPHAN, o Programa de Cidades Históricas
(PCH) e o Centro Nacional de Referência Cultural foram fundidos em uma única instituição,
229
BRASIL. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, Arquivo Institucional. Ofício n. 377, de 14 de novembro de 1984,
encaminhado à direção do Programa Nacional de Museus.
135
Nacional (SPHAN); e o executivo – a Fundação Nacional Pró-Memória (FNPM). A FNPM e o
SPHAN ficaram responsáveis por desenvolver políticas públicas direcionadas aos museus. Cabia
representação da diversidade do povo brasileiro, e não mais templos destinados ao culto dos
heróis e das grandes figuras de estado. Os museus nacionais precisavam, então, passar por
políticas, até então negligenciadas ou pouco presentes nos trabalhos museológicos, até os anos
1970. O objetivo consistia, claramente, em fundar uma museologia de caráter científico e crítico,
tornar-se o principal fórum de discussão sobre a museologia. A iniciativa de sua criação deve-se
presente. Passa-se de uma visão da museologia como técnica de trabalho orientada para as
coleções, para uma visão que dá lugar a um novo entender das práticas museológicas. Segundo
os teóricos da “nova museologia”, os museus devem assumir uma função eminentemente social e
elite, voltando-se para ações de inclusão e democratização. Esse modo de pensar os museus
insere-se nos questionamentos de que os patrimônios culturais eram alvos, e que foram
teve sua primeira expressão pública e internacional na mesa de Santiago, que considerou os
museus como:
[…] a procura num mundo contemporâneo que tenta integrar todos os meios de
desenvolvimento, estender suas atribuições e funções tradicionais de
identificação, de conservação e de educação, a práticas mais vastas que estes
objetivos, para melhor inserir sua ação naquelas ligadas ao meio humano e
físico.
era “o estudo científico de tudo que se refere aos museus, no sentido de organizá-los, de arrumá-
O Museólogo deverá, portanto, ser qualificado para assumir seu papel como um
intelectual que pense a Museologia em suas diversas relações com o Real,
sabendo identificar, no mundo à sua volta, quais as referências que necessitam
ser musealizadas. Este profissional deverá entender conjuntos naturais e
culturais como referências e coleções, como sistemas de semelhanças e
dessemelhanças, sendo capaz, a partir dos mesmos, de elaborar um discurso
233
DECLARAÇÃO DE QUEBEC, 1984. Disponível em:
<http://revistas.ulusofona.pt/index.php/cadernosociomuseologia/article/view/342/251> Acesso em: 1º abr. 2013.
234
BARROSO, Gustavo. Introdução à técnica de museus... Op. cit. p. 6
235
SCHEINER, Tereza C. M. & PANTIGOSO, Maria Gabriella. Projeto de reformulação curricular. Rio de Janeiro:
Escola de Museologia / CHH / UNIRIO, 1995-1995. p. 2. [mimeo]
138
específico – a linguagem museológica, síntese lógica de outros discursos de
comunicação.
Desde a década de 1970 e 1980 o curso de museologia vinha passando por processos de
modernização, reivindicados por professores, como as próprias Tereza Scheiner, Celma Tereza
Franco, Liana Ocampo, Maria de Lourdes Naylor Rocha e Violeta Cheniaux. Uma das questões
fundamentais na reformulação do curso foi a modificação da grade curricular, que se pautou pela
campo de atuação:
uma carga horária bem menor, quando comparadas às disciplinas de caráter teórico ou
236
Id. Ibid. p. 2.
237
Id. Ibid. p. 40. [Grifos dos autores]
238
ALMEIDA, Cícero Antônio Fonseca de; SÁ, Ivan Coelho de; CHAGAS, Mário de Souza. Projeto de
reformulação curricular do Curso de Museologia. Rio de Janeiro: UNIRIO, 2006. Disponível em:
<http://www2.unirio.br/unirio/prograd/cursos/projetos-pedagogicos-dos-cursos/arquivos/Projeto%20de
%20Reformulacao%20Curricular%20-%20Curso%20de%20Museologia.pdf> Acesso em: 20 fev. 2014.
139
sociológico.239 Gonçalves atenta que na formação “clássica” dos museólogos havia uma
valorização dos objetos a partir de seus atributos internos, pelo fato de terem pertencido a
membros de famílias nobres, políticos de destaque e aos heróis nacionais. A partir das mudanças
no currículo de formação dos museólogos, o objeto de interesse passou a ser o fato museal “que
não se limitaria ao que ocorre no espaço tradicional dos museus, mas pode ocorrer em qualquer
outro espaço, ampliando-se assim os limites do que se entende por museu”.240 Para Gonçalves,
pessoais por intermédio das quais circulam objetos materiais que vêm a ser apropriados e
valores das elites sociais que representam a nação de modo totalizador”. 242 No segundo caso, do
passando de uma forte ênfase dada aos objetos, para uma ênfase nas estruturas sociais.
239
Na proposta de reformulação do curso em 2006 as disciplinas optativas, constituídas em sua maioria pelos
ensinamentos técnicos consistia em 240 horas, enquanto as obrigatórias – onde prevalecem as disciplinas de caráter
sociológico, histórico e teórico – representam 2.625 horas de curso. O total de horas é 3.390. Id. Ibid.
240
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Os museus e a representação do Brasil... Op. cit. p. 267.
241
Id. p.269.
242
Id. Ibid.
243
Id. p. 270.
140
Em 1985, já sob a direção da museóloga Solange Godoy (gestão de 1985 a 1989) foi
criada uma comissão que reuniu funcionários e técnicos escalados pelo PNM. A finalidade era
Durante a administração de Godoy e tendo por base a proposta da comissão, foi iniciada
uma ampla mudança conceitual do MHN, que ficou conhecida como “Processo de revitalização
do Museu Histórico Nacional”. A direção de Godoy deu continuidade a ações que já estavam em
andamento pelo menos desde 1982, quando, sob a direção de Gerardo Câmara, o Arquivo
O início da revitalização do MHN teve início em 1985, no entanto, esse processo não
terminou com a gestão de Godoy, tampouco se deu de maneira contínua e sem percalços. Nos
anos posteriores, a crise econômica e política do país não permitiu que o projeto de revitalização
tivesse a continuidade programada. Mas, sob as direções de Ecyla Castanheira Brandão (de 1990
a 1994) e Vera Bottrel Tostes (a partir de 1995) várias ações nesse sentido foram realizadas.
244
BRASIL. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL A nova proposta para o Museu Histórico Nacional, 1985. [mimeo]
141
Barroso. Isso implicava numa adequação da narrativa histórica produzida pelo Museu às
concepções da moderna historiografia e de nova museologia. Foram postas em prática ações que
buscassem dessacralizar os objetos museológicos que passaram a ser entendidos como fontes de
informação sobre o passado, devendo ser expostos não como relíquias históricas, mas como
formação histórica do Brasil. O MHN passou a ser concebido como um sistema de informação,
organizado de acordo com sua “função original”, tendo por base o Thesaurus para acervos
museológicos, publicado por Helena Dodd Ferrez e Maria Helena S. Bianchini, funcionárias do
designar os objetos existentes nos museus históricos. Sua função é ser uma ferramenta para a
artefatos.246 De acordo com as autoras, a ideia para a elaboração do Thesaurus ocorreu a partir da
análise da coleção do MHN, em que foi constada a ausência de uma linguagem normalizada, que
dos objetos, assim como uma classificação sistematizada. Antes, o acervo no tempo de Gustavo
imperador, e sua organização e exposição atendiam aos propósitos de celebrar o período imperial
e a própria figura do monarca. Após 1969, quando a maior parte do acervo deixou de ser
exposto, indo para os depósitos e, depois, na década de 1980, para a reserva técnica, os objetos
245
FERNANDES, Lia. Museu Histórico Nacional: permanências e mudanças... Op. cit.
246
FERREZ, Helena Dodd; BIANCHINI, Maria Helena S. Thesaurus para acervos museológicos. Rio de Janeiro:
Pró-memória, 1987, p. xviii.
142
começaram a ser organizados de acordo com as disciplinas a eles dedicados, como filatelia,
numismática, ou pela técnica empreendida, como a cerâmica, a escultura, ou pelo coletivo, como
a armaria e a prataria.
Com o uso do Thesaurus, todos os objetos passaram assim a ser classificados a partir de
sua função original. Desse modo, uma caneta que pertenceu a D. Pedro II, por exemplo, passou a
ser classificada como um equipamento de escrita, e não como uma “caneta do imperador”. Tal
operação, ao mesmo tempo em que permitiu uma dinamização do sistema de controle de acervos
instituição desde sua fundação. Ao organizar o acervo a partir de suas características funcionais,
de objetos, tal como era praticado pelos conservadores. Ao priorizar a função original dos
materiais) agregados a esses objetos passam a ser tratados como elementos de indexação do
acervo. Barroso afirmava categoricamente que era impossível dirigir um museu sem
de Museus, nos anos 1940, tinha que estar apto a classificar objetos “corretamente”, seguindo os
Thesaurus, uma louça brasonada do século XIX e um prato de vidro dos anos 1980 são
objeto”, apesar de, na prática, continuar agregando valor relicário e de antiguidade ao objeto em
143
questão. É uma mudança pequena, mas que indica alguns dos caminhos pelos quais os
com o intuito de inventariar o acervo museológico dos museus sob responsabilidade do SPHAN
De uma maneira geral os acervos dos museus da FNPM (atual IPHAN) datam
dos séculos XVIII e XIX. Poucas são as Unidades que apresentam acervos do
século XX. Do mesmo modo, raras são as Unidades que têm orientado suas
aquisições para o denominado ‘novo patrimônio’, incluindo-se aí: o material
etnográfico, os testemunhos de segmentos sociais diversificados, os documentos
de tecnologia industrial e do cotidiano rural e urbano. 247
formada, em 1992, ainda na gestão de Solange Godoy, por 10 funcionários do MHN, sendo oito
Cordeiro (museólogo), José Neves Bittencourt (historiador) , Lia Sílvia Peres (museóloga),
Lucila Moraes Santos (museóloga), Maria de Jesus Alencar (museóloga), Rejane Maria Vieira
247
CHAGAS; GODOY, op. cit., p. 113.
144
identificação de objetos possíveis de incorporação ao acervo”. 248 O relatório final constatou que
praticamente não existiam objetos do século XX nas coleções do MHN, sendo a maior parte do
acervo datado do século XIX. De acordo com a analise realizada, o acervo, até aquele momento,
estava estruturado em torno de três grandes matrizes conceituais: a do Museu como representante
A comissão observou, também, que, ao longo de 70 anos, o MHN formou uma forte
funcionários. Para o redator, essa tradição não deveria ser abandonada, visto que ela moldou o
acervo enquanto um conjunto de sentido – uma coleção cuja finalidade última era testemunhar a
mais dos aspectos gerais da dinâmica histórica da formação social brasileira; os objetos
comum, sem ligação direta com personagens ou eventos, mas passíveis de serem diretamente
248
BRASIL. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Relatório final da comissão interna de política de aquisição do
Museu Histórico Nacional... Op. cit.
249
Id. p. 8.
250
Id. p. 27.
145
associados a algum período cronológico ou época. A justificativa foi a seguinte: “Isto deve-se ao
fato de que tais objetos atuam como signos, sendo capazes de representar, por analogias, o
grandes tradicionais períodos da “formação social e política brasileira”, nos termos do relatório
final, ou seja: período colonial (1500 a 1822), período monárquico (1822-1889), período
republicano (1889 em diante). Como a maior parte dos objetos do acervo datavam do século
coleta de objetos do século XX, anexando ao relatório, com o intuito de nortear os técnicos, uma
históricos.255
privilegiados pela instituição, indicando alguns exemplos do que poderia ser recolhido. As
recomendações da comissão começam com o mobiliário doméstico dos anos 1950 e 1970, que,
de acordo com o relatório, era escasso no acervo, devendo ser privilegiado os móveis “pés-de-
palito”, pois “equipavam quase todas as residências urbanas, de todas as classes sociais, entre o
251
Id. Ibid.
252
BRASIL. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Relatório final da comissão interna de política de aquisição do
Museu Histórico Nacional... Op. cit., p. 13.
253
Id. Ibid. p. 23
254
Id. Ibid. p. 23 e 24.
255
Id. Ibid. p. 34.
146
final dos anos 50 e início dos 70, tendo gerado todo um estilo de acessórios e decorativos”. 256 Os
mobiliários de escritório, foram recomendados para a coleta, por serem importantes ícones de
significativos, além de, tanto quanto o equipamento doméstico, refletirem o gosto vigente da
fichários, estantes, cadeiras, diversos tipos de mesa [...]”. 257 A coleta de mobiliário e
algumas séries deste tipo de equipamento pode demonstrar a evolução de conceitos pedagógicos
e de projetos para a incorporação dos futuros adultos à sociedade incluem carteiras escolares,
quadro negros, armários e estantes, bem como instrumentos pedagógicos”. 258 Outro item
recomendado foram os rádios domésticos à válvula, e a justificativa para a sua coleta segue o
mesmo caminho: “a partir dos anos 30 até o finais dos 60, quase toda residência dispunha de um,
bem como certos locais públicos […] são importantes para o estudo e representação das
comunicações”. Nessa mesma linha entraram os televisores à válvula, que de acordo com o texto
do relatório, “são importantes para o estudo e representação do avanço das comunicações, bem
de poder referir todo um importante setor da produção cultural e do lazer das massas”. 259 Os
importância no lazer da população e que estabelecida uma série, pode representar diversas
256
Id. Ibid.
257
Id. Ibid.
258
Id. Ibid.
259
Id. Ibid.
147
questões econômicas culturais e tecnológicas”.260 Os aparelhos telefônicos foram considerados
em geral. Ainda neste tópico, a comissão recomendou a localização de listas telefônicas antigas e
suprimentos com agendas telefônicas. Sobre máquinas de escritórios mecânicas, como máquinas
de escrever, de grampear, de somar etc., também foi valorizado o fato destes itens estarem
vinculados a atividades econômicas e, mais uma vez, por representarem avanços tecnológicos.
escrita. Essa recomendação teve por base o seguinte: já possuindo o Museu, na época, uma
significativa quantidade desses objetos, a coleta deveria expandir as séries, visto que “podem
recomendados pela comissão, principalmente aqueles oriundos do século XX, assim como as
ferramentas de trabalho em geral, como picaretas, martelos, foices, etc. Os objetos da indústria
automobilística foram indicados para aquisição, visto que essa “indústria representou um marco
infraestrutura.” Porém, devido a limitação de espaço para a aquisição de itens inteiros (ônibus,
carros etc.), foi recomendado que “um carro pode ser representado por um volante, a parte
mecânica pode ser representada por peças chave, como o carburador ou os pistões”. 261
Semelhante orientação foi dada quando tratar-se de objetos ligados ao setor de transportes
(aéreos, marítimos e ferroviários), pois sendo impossível a aquisição e a conservação desses itens
260
Id. Ibid.
261
Id. Ibid.
148
no MHN, a indicação foi coletar fragmentos, como uma hélice de avião ou um manche de navio.
A coleta de miniaturas, formando séries, como modelos de avião, de carros, de trens e de navios
fabricados no Brasil foi encorajada pela comissão. Os objetos devocionais foram incluídos nas
constituir indicativo de tendências sociais e culturais, representam, a partir dos anos 50,
que “estão presentes em quase todas as atividades relacionadas com os três grandes aspectos
ênfase nos itens descartáveis e de baixo custo que “caracterizam os usos e costumes da sociedade
“constituir importantes séries museológicas, visto que o esporte tem importante participação na
futebol, vôlei, basquete e outros esportes, assim como materiais relativos a eventos esportivos e
mostrar o “universo mental de uma sociedade, bem como da organização econômica e das
tendências políticas”. A ênfase na coleta deveria recair sobre os itens de indumentária do século
todas as classes da sociedade brasileira, em todos os períodos históricos”, uma vez que “O
Museu não possui peças significativas destes objetos, devendo ser feito esforço de localização
sociais antes não inseridos no MHN passaram, assim, a ser coletados pelos técnicos da
instituição. Uma análise dos itens coletados desde então, mostra que, ao longo das décadas de
1990, 2000 e 2010, houve um significativo aumento objetos produzidos em massa (como
reserva técnica lado a lado com os “objetos relíquias” do tempo de Gustavo Barroso.
representem a produção capitalista, que têm “como principal característica, o fato de gerar
objetos que aportam no mercado, indicando, com isso, a necessidade dos técnicos envolvidos na
material da formação brasileira, assim como tudo o quanto possa ser considerado um
desdobramento dos referidos processos”265; e, por fim, pelo aspecto cultural, relativo à
antropológico, para além de uma produção de bens materiais da elite dominante, em uma franca
263
Id. Ibid. p. 25.
264
Id. Ibid.
265
Id. Ibid.
266
Id. Ibid.
150
ampliação das tipologias a serem incorporadas. Isso implica também na ampliação do conceito
O que se pode observar, no MHN, é que, apesar de algumas limitações 267 de coleta e das
musealização de quase todos os objetos existentes em nossa sociedade, assim como o surgimento
acervo do MHN, não há dúvidas de que esse processo não começou somente a partir de 1996,
uma vez que, desde os anos anteriores, já vinha ocorrendo a incorporação de objetos que,
etnográficos. Em 1985, por exemplo, foram doados ao Museu, pelo indigenista Luiz Filipe de
Figueiredo Cipré, 300 objetos oriundos de 41 nações indígenas, como adornos, instrumentos
musicais, estatuetas entre outros. O doador atuou na década de 1970 como funcionário da
direitos dos índios brasileiros. De acordo com Cipré, em entrevista recente a uma pesquisadora,
sua coleção etnológica doada ao MHN foi resultado de 17 anos de convivência direta com vários
povos indígenas.268 No termo de doação, Cipré fez uma recomendação bastante comum em
outras doações recebidas pelo MHN: a manutenção da integridade da coleção. Seus termos
diziam que, “os bens formam uma coleção que não poderá ser desmembrada. Havendo
impossibilidade de ser exposta integralmente, pelo menos parte da mesma deverá constar do
267
Esse é o caso dos discos de vinil, que não são aceitos pela instituição exatamente por nunca ter constado no
histórico das coleções nenhum objeto desse tipo.
268
OLIVEIRA, Mayara Manhães de. Representação sobre os índios no Museu Histórico Nacional: apontamentos
sobre aquisições e exposições. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v. 44, ano 2012.
151
circuito de exposição permanente, representando o índio no contexto histórico nacional.”269
alguns objetos) remete aos dispositivos de autoridade e de autoria, que apresentam semânticas
próximas às ideias de criação, fundamentação e organização, como visto nos capítulos anteriores
desta tese. Um ano após a doação, foi montada, atendendo às recomendações de Cipré, a
exposição Os donos da terra: o índio artista artesão, constando 280 objetos da coleção. Esta
exposição, já se configura como uma das primeiras tentativas museográficas empreendidas pela
abordagem histórica até então praticados, ao colocar em cena os povos indígenas no circuito
expositivo da instituição. O fato de Cipré ser um indigenista – com experiência in locu – acaba
Nesse mesmo sentido de se voltar para fora de seus muros, em 1995, quando retomada a
publicação regular dos AMHN, suspensa desde 1975, a diretora, Vera Tostes, expressou na
como um espaço sobre temas variados no âmbito das ciências humanas, em especial a história e
a museologia. Os artigos, muitos dos quais produzidos por técnicos da instituição, 270 passaram a
ter o próprio MHN como objeto de estudo, enfatizando, principalmente, a diferença entre o
e aquelas que ainda eram almejadas, naquele momento, para o futuro da instituição. Muitos
funcionários, oriundos das gerações das décadas de 1980 e 1990, realizaram pesquisas de pós-
graduação stricto sensu, tendo como objeto de estudo o MHN e suas coleções. Esses
269
Apud. Id. Ibid. [Grifos meus]
270
Colaboram com o volume; Regina Abreu, Margarida de Souza Neves, Mário de Souza Chagas, Solange Godoy,
José Neves Bittencourt, Lia Silva P. Fernandes, Vera Lucia Brottel Tostes, Denise Portugal, Rosângela Bandeira,
Rejane Maria Lobo Vieira, Cícero Antônio F. de Almeida, Lucila Moraes Santos.
152
profissionais realizaram suas pesquisas em domínios como o da antropologia (Regina Abreu,
mestrado), história (Lia Fernandes, mestrado), sociologia (Mário de Souza Chagas, doutorado;
análise de alguns artigos dessa nova fase, principalmente os publicados no final de década de
1990 e início dos anos 2000, mostra a emergência de novos discursos no espaço museológico do
trabalho de Lia Perez Fernandes, por exemplo, que analisou os motivos para o baixo número de
objetos vinculados às atividades de trabalho, como ferramentas em geral, abriu um novo campo
MHN e jornalista Ângela Cardoso Guedes que realizou uma pesquisa de doutorado em Ciência
museológica.272 Em artigo publicado nos AMHN, em 2002, Guedes observa que, tal como
até a década de 1970, os brinquedos, fossem eles das camadas abastadas ou das camadas
populares, não eram sequer cogitados como itens a serem coletados para a instituição. 273 Na
concepção de Barroso, “brinquedo” era uma categoria que, tal como “ferramentas de trabalho”,
271
Atualmente, os AMHN tornaram-se o principal canal de comunicação entre a instituição e os programas de
graduação e pós-graduação, uma vez que em sua nova fase configura-se como um periódico científico, atendendo
aos princípios técnicos, éticos e formais de divulgação da ciência. Os AMHN são avaliados pelo Qualis da Capes
foram avaliados em sete áreas distintas, recebendo diferentes estratos. Porém, nas áreas de atuação do periódico
foram avaliados em B1 em Urbanismo e Arquitetura, em B1 em História e B2 em Interdisciplinar.
272
GUEDES, Ângela Cardoso. Brinquedo: Fonte de Informação Museológica. Tese (Doutorado em Doutorado em
Ciência da Informação) - Instituto Brasileiro de informação em Ciência e Tecnologia, . 2004.
273
GUEDES. Ângela Cardoso. Brinquedos: a formação da coleção do Museu Histórico Nacional. Anais do Museu
Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v. 34, ano 2002. p. 344.
153
partir de alguns objetos já pertencentes à instituição. Em texto publicado nos AMHN em 2002,
Guedes, maior doadora da coleção, apresenta alguns motivos que justificaram a incorporação de
Entre os objetos da atual coleção de brinquedos do MHN, constam mais de 300 objetos
fabricados pela empresa Estrela, como bonecas, jogos e carrinhos. A significativa quantidade de
objetos desse fabricante é justificada por Guedes, a partir da suposta importância do fabricante
Foram coletados também objetos referentes aos “primeiros anos da infância”, como
chocalhos, casinhas, jogos de encaixar e bichos de borracha que “introduzem o bebê, de forma
para brinquedos que reproduzem o mundo técnico, como miniaturas de carros, de móveis, de
utensílios domésticos, de ferramentas de trabalho etc., além de jogos que estimulam as atividades
intelectuais e sociais, como o Banco Imobiliário, o War, o jogo de damas, os dominós entre
relançado pela Rede Globo, em 2001, assim como os bonecos dos personagens do programa Vila
Sésamo, “pioneiro na televisão com caráter de lazer educativo e a série mais vista no Brasil em
1970”. Nessa categoria, foram também coletados os bonecos das Tartarugas Ninjas (título
original Teenage Mutant Ninja Turtles, criado por Mirage Studios, nos E.U.A) e os bonecos
Souza), todos eles sucessos de audiência nacional e internacional. Sobre as bonecas Susi, Guedes
274
Id. Ibid. p. 350.
154
declara o seguinte:
Outro destaque mencionado por Guedes são as bonecas Fofoletes, também fabricadas
pela Estrela. Essas bonecas foram adquiridas por serem produtos industrializados e feitos em
larga escala, o que implica em custo baixo de produção, com o intuito de alcançar as camadas
preocupação em representar o consumo e a infância das camadas populares, “antes não presentes
empresa brasileira TecToy, o Pense Bem, sucesso de venda nos anos 1990: trata-se um
microcomputador para crianças, com funções de calculadora, notas musicais, jogos de memória,
agenda etc., e um Tamagochi, que é um dispositivo eletrônico de fabricação japonesa que tem
por objetivo simular um “animal de estimação”, que depois de iniciado tem que receber
comandos diários que simulam ações como alimentação, carinho, e exigindo do proprietário
cuidados semelhante aos dedicados a um ser vivo. A entrada desses objetos é justificada pela
Brinquedos importados também foram alvos da coleta, como aqueles produzidos por
fabricantes estrangeiros, como empresa inglesa Britain e a alemã Lineol. A empresa americana
MARX, que se tornou a maior fabricante de brinquedos do mundo também está representada no
MHN, através de inúmeros brinquedos militares, como o Forte Apache, soldadinhos, aviões de
Os brinquedos militares, por sinal, são abundantes nesta coleção. Guedes justifica a
275
Id. Ibid. p. 351.
155
entrada desses objetos por sua característica de “documentos históricos” que podem conter
informações sobre a evolução das técnicas militares, assim como da cultura militar na formação
da criança, em especial dos homens. Outro aspecto de valoração de brinquedos é a evolução das
técnicas e dos materiais empregados em sua fabricação, como a madeira, o chumbo, o ferro e,
foram alvos de coleta, em especial uma série da Playmobil representando um combate medieval
Japão. A valoração de tais objetos se deu pelo seu caráter “universal”, em seus termos:
nacional (embora vários exemplares importados tenham sido coletados), “cuja importância está
no fato de ilustrarem a cultura dos diversos segmentos sociais, assim como os diretamente
276
Id. Ibid. p. 364.
277
GUEDES, Ângela Cardoso. Brinquedos: Por uma Política de Aquisição. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio
de Janeiro, v. 34. ano 2002. p. 30.
278
Id. Ibid. p. 29
156
Figura 16: Brinquedos musealizados, exposição Cidadania em construção. MHN.
MHN indicaram 20 núcleos de interesse para orientar a coleta de acervo. No entanto, conforme
os dados levantados por Vivian Greco, referentes ao ano de 2001 a 2010, e por pesquisas feitas
para as finalidades desta tese na base de acervos do MHN, apenas dois núcleos tiveram aumento
funcionária Ângela Guedes, e o da coleção de indumentária pode ser explicado, também parte,
pela ação de uma outra funcionária do Museu, Vera Lima, professora de e especialista em moda,
que se tornou uma espécie de curadora da coleção. Frequentemente, ela doava e solicitava a
internacionais de destaque, como a empresa Osklen. Cabe ressaltar, além da ação de Vera Lima e
157
coletados a partir da Política de Aquisição, conseguem cumprir o papel de expressar a moderna
sociedade brasileira, tal como previsto nas intenções dessa política. O problema, para ele, é que
pesquisa constante sobre esses itens. 279 Efetivamente, a instituição encontra-se na situação de
“recolhedora passiva” de objetos, uma vez que não há programas específicos de aquisição de
Ao ser perguntada sobre qual objeto melhor representaria o século XXI, a museóloga Lia
Perez Fernandes, que foi chefe do Departamento de Acervos do MHN, nos anos 2000,
respondeu: “qualquer um, pois essa definição é ampla. Qualquer objeto pode ser representativo,
basta que eu tenha bom discurso que convença que ele é de interesse histórico, informativo para
artefatos mudaram nos últimos 30 anos, na instituição: os objetos passaram a ser alegorias, ou
seja, passaram a representar conceitos, e o papel dos especialistas é associá-los a estes conceitos,
diplomacia, da numismática etc. Em outras palavras, o papel dos técnicos é saber lidar com os
conceitos que operam, argumentando em favor deles e encontrando nos objetos características
que os representem.
Museus, esse tipo de trabalho técnico e indiciário ainda continua presente em algumas ações no
cotidiano do MHN, como visto no segundo capítulo desta tese, quando foram analisados os casos
distinção heráldica banco de lambel numa das carruagens do MHN, que possibilitou uma nova
classificação do objeto e sua consequente valorização. Em todos esses casos, o “olhar treinado” e
os conhecimentos técnicos de museólogos – Vera Tostes, Ivan Sá, Jorge Cordeiro, Norma
objetos. Todavia, de um modo geral, pode-se dizer que há uma escassez cada vez maior deste
Curso de Museus e com o olhar treinado nos próprios objetos da instituição, essa mesma
corolariamente, a de possuidor), observa-se que ela continuou sendo um dos critérios para a
do médico Ivo Pitanguy, objetos que, ao mesmo tempo que remetem à representação de
homens ilustres. A característica híbrida desses objetos (ou seja, por serem vetores de evocação
281
Id. Ibid.
159
dos homens ilustres e alegorias do trabalho) lhes agrega maior valor histórico, potencializando
último módulo da atual exposição de longa duração do MHN, inaugurada em 2010. O módulo
tem por objetivo explorar por meio de textos e objetos o desenvolvimento da construção de
cidadania no Brasil, tendo por eixo condutor os direitos e deveres políticos, civis e sociais. As
sapatilhas e o vestido de balé de Ana Botafogo e a roupa de cirurgião de Ivo Pitanguy estão na
parte dedicada ao direito ao trabalho, como ferramentas símbolo do médico e da dançarina, suas
Figura 17: Vestido de Ana Botafogo, jaleco de Ivo Pitanguy e demais instrumentos de trabalho.
Cidadania em construção, MHN.
Assim, a autoridade do nome próprio dos antigos patronos e heróis cultuados no MHN
ainda se faz presente na instituição principalmente pela perenidade que essas autoridades têm na
autenticação dos objetos doados e reconhecidos como históricos. Caso exemplar estudado aqui
história da instituição, continua sendo exposto na qualidade de “objeto do século XVI”. Como as
demais doações analisadas no segundo capítulo, pode-se considerar que, de certa forma, o tacape
é um objeto aurático. Walter Benjamin argumentou que a aura é fruto de uma construção social
baseada na existência única de determinado objeto e no seu vínculo com uma tradição, que o
identifica e o qualifica. A constante exposição desse objeto reafirma seus valores relicário e
histórico, na medida em que há uma relação direta entre exposição e valoração, tal como
caracterizado por Pomian em seu estudo sobre os semióforos. No caso do MHN, isso implica na
chefe indígena Martim Afonso Tibiriçá como um dos “fundadores” da nacionalidade. Isso mostra
como os critérios de autenticidade e inautenticidade são plurais, como observado por Gonçalves,
a de materializar a nação.282
relíquias históricas coletadas no tempo de Barroso, o tacape continua sendo associado ao índio
Tibiriçá. Essa “carga” simbólica o diferencia dos demais tacapes presentes no acervo da
instituição, tornando-o extraordinário, seja pelo seu caráter de relíquia, seja pela história de sua
doação ao MHN. Como nenhum atributo histórico é imanente, a atribuição do objeto ao índio –
sem dúvida, tornado herói – e todas as suas mudanças de significado, suas exposições e seus
282
GONÇALVES, José Reginaldo dos Santos. Autenticidade, memória e ideologias nacionais: o problema dos
patrimônios culturais. In: _____. Antropologia dos objetos: coleções museus e patrimônio. Rio de Janeiro: Iphan,
2007.
161
usos em geral, produzem uma historicidade, um valor histórico que, independentemente de sua
autenticidade, suscita uma série de questões e de relações com a história e a memória nacional,
possibilidades essas que um objeto não datado e não identificado a uma pertença não poderia
fornecer. Essas são modalidades da invenção do objeto histórico, particularmente, em seu viés
relicário. Em todo caso, como afirma Dominique Poulot, patrimônio e história diferem, posto
que o primeiro tem por objetivo atestar identidades e afirmar valores que muitas vezes
Giorgio Agamben atenta para a estreita relação entre profanação e uso. A profanação é
uma forma de reafirmar o valor sagrado dos objetos religiosos, uma vez que é através da
Agamben observa ainda que a religião pode ser definida como aquilo que subtrai coisas ou
pessoas ao uso comum e as transfere para uma esfera separada, sendo que o sacrifício é o
dispositivo que regula e realizada a separação. A formação de coleções também impõe um ato de
sacrifício e uma separação entre valor simbólico e utilitário. 283 Os objetos em coleção perderiam,
assim, suas funções originais de uso, sendo-lhes agregados outros valores, como o histórico, o
sacrifícios feitos por aqueles que abriram mão desses objetos, muitos dos quais com alto valor de
Secularização parece ser o termo mais adequado ao processo pelo qual o acervo do MHN
passou desde o projeto de revitalização. Os objetos da coleção Miguel Calmon nunca mais
estiveram juntos evocando seu proprietário, assim como as relíquias da sala Osório ou da sala
diferentes contextos, e assumiram sentidos que reafirmam e reinventam seus valores históricos. .
283
Id. Ibid.
162
Eles continuaram tendo as características de semióforos, como afirma Pomian, sendo elos entre o
autoridades surgidas, então, nas últimas décadas. A secularização restringiu-se, nesse sentido, em
deslocar a semântica dos objetos, deixando, porém, intacto seu poder simbólico. Nos processos
especialista fazem parte não somente da economia museal, desempenhando uma função
284
POMIAN, Krzysztof. Coleções... Op. cit.
163
4. Conclusão
Nacional realizada nesta tese buscou identificar o papel da autoridade nos processos de
precisamente, a categoria autoridade, que possibilitou pensar a formação da coleção, a partir dos
de seus noventa anos. Como resultado desse trabalho arqueológico a partir de um dos maiores
acervos museológicos públicos do Brasil, foi possível afirmar duas formas de autoridade
Com o Curso de Museus, o MHN pode formar seus próprios especialistas, tornando a instituição
referência no campo museológico brasileiro. Nele também foram formadas as primeiras gerações
“cultura visual” do especialista, capaz de reconhecer uma pincelada ou a sutil diferença entre
164
Em suas atividades de classificação e autenticação do acervo, os conservadores
renomados, como Vieira Fazenda e Joaquim Norberto, além, obviamente, de diversas fontes
textuais. Não se tratava de uma pesquisa científica propriamente dita, mas de pesquisa aplicada
que busca fundamentar (ou refutar) a autenticidade dos objetos. Em outras palavras, o papel dos
conservadores era fornecer a fundamentação histórica e, com ela, permitir a classificação dos
A autoridade do nome próprio, analisada no segundo capítulo da tese, vincula-se, por sua
vez, ao estatuto daquele que declara autenticidade do artefato, não através de um procedimento
de crítica e de levantamento de indícios, como no caso dos conservadores, mas pela força de seu
nome ou de seu vínculo familiar e de sua posição social. Nesse sentido, o principal elemento
analisado nas coleções do MHN, apresentou importantes paralelos com a produção de relíquias
cristãs durante a Idade Média, quando o nome de autoridades religiosas atestava o suposto
contato das relíquias com santos, mártires e, por vezes, com o próprio Cristo. Essas práticas de
sacralização teriam sido ressignificadas nos museus modernos, principalmente na invenção das
165
Cabe ressaltar que, por vezes, a autoridade do nome próprio confunde-se com a
colecionados ou por sua atuação “patriota” ou “ilustre”. Este foi o caso da falsa aquarela de
Debret, adquirida pelo MHN a partir do leilão da coleção de Djalma da Fonseca Hermes e,
possivelmente, vendida ao colecionador pelo marchand falsário Robert Heymann, anos antes;
além de diversas aquarelas atribuídas ao mesmo pintor e que fazem parte da coleção Castro
Maya. Como vimos no segundo capítulo, todos os envolvidos eram colecionadores experientes,
renomados em seus meios sociais, de tal modo que sua autoridade de colecionador, enquanto
autoridade do nome próprio, não deixou lugar ao questionamento da autenticidade das pinturas,
oriunda do discurso histórico adotado na instituição em seus primeiros 60 anos, que valorizava a
ação dos “homens ilustres” numa narrativa monumental e nacionalista. Isso é tão notável que a
instituição tornou-se, durante a primeira metade do século XX, um espaço privilegiado para a
significativos encontram-se na doação da coleção Miguel Calmon por sua viúva ao MHN e as
nas doações de Getúlio Vargas, durante seus governos. Um outro dado mostrado na análise da
objetos, ocorre também a partir da ligação genealógica ou social do proprietário do objeto com
O terceiro capítulo foi dedicado ao período mais recente da instituição, especialmente aos
últimos 30 anos, quando o MHN passou por várias transformações que resultaram numa
166
reformulação de “seu discurso histórico” e dos critérios tipológicos de incorporação de objetos
ao acervo. A análise mostrou como houve, a partir dos anos 1980, um esvaziamento paulatino
das práticas museográficas dos antigos conservadores, com o surgimento de outras autoridades
próximos do campo da ciência da informação e das correntes da nova museologia. Esses novos
atores mostram a emergência, no campo patrimonial como um todo, de novos discursos sobre os
classes médias. Desta maneira, papel dos técnicos da instituição, na seleção de acervos, passou a
ser o de associar objetos a conceitos, argumentando em favor deles a partir de características que
casos, a autenticidade dos objetos não se apresenta sequer como item de crítica, uma vez que são
Gustavo Barroso, como no caso do “Tacape de Tibiriçá” ou das traves da forca de Tiradentes,
fundamentam a valoração uma infinidade de objetos, sendo os acervos desse período os mais
167
Se por um lado, como se constatou no terceiro capítulo, houve, nas últimas décadas, um
esvaziamento da museologia “tradicional” nas ações empreendidas no Museu, por outro, ficou
claro o quanto esse conhecimento ainda é residualmente presente e ainda necessário à instituição.
Este foi o caso da restauração de uma berlinda fúnebre, reclassificada graças aos conhecimentos
heráldicos de diretora da MHN que soube “ler” o símbolo heráldico encontrado sobre a pintura
Ao cabo dessa trajetória arqueológica, foram revelados alguns momentos fortes dos
especialista que fundamentam o caráter histórico e nacional da coleção. Essas autoridades fazem
estratégica na definição dos objetos dotados de qualidades específicas que justificam sua
nesse sentido, as relações de força e de poder presentes na instituição: são elementos que
inventam e reinventam as narrativas históricas sobre o passado nacional, como vocação, até hoje
168
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