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Universidade Federal do Rio de Janeiro

A INVENÇÃO DAS RELÍQUIAS. DISPOSITIVOS DE


AUTORIDADE NA MUSEALIZAÇÃO DE OBJETOS DO
ACERVO DO MUSEU HISTÓRICO NACIONAL

(1922 – 2012)

Rafael Zamorano Bezerra

2014
A INVENÇÃO DAS RELÍQUIAS. DISPOSITIVOS DE
AUTORIDADE NA MUSEALIZAÇÃO DE OBJETOS DO
ACERVO DO MUSEU HISTÓRICO NACIONAL

(1922 – 2012)

Rafael Zamorano Bezerra

Tese de doutoramento apresentada ao Curso de Doutorado do

Programa de Pós-graduação em História Social do Instituto de

Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de doutor em História Social.

Linha de pesquisa: Sociedade e Cultura

Orientador: Drª. Andrea Daher

RIO DE JANEIRO
2014
FOLHA DE APROVAÇÃO

Tese de doutoramento apresentada ao Curso de Doutorado


do Programa de Pós-graduação em História Social do
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ como
parte dos requisitos necessários à obtenção do título de
doutor em História Social.

Aprovada por:

____________________________________________________________
Prof.ª. Drª. Andrea Daher- Presidente

____________________________________________________________
Prof. Dr. José Neves Bittencourt

____________________________________________________________
Prof.ª. Drª. Leila Bianchi Aguiar

____________________________________________________________
Prof. Dr. Ivan Coelho de Sá

____________________________________________________________
Prof.ª. Drª. Regina Abreu

iii
D532r BEZERRA, Rafael Zamorano.
A invenção das relíquias. Dispositivos de autoridade e
musealização de objetos no Museu Histórico Nacional (1922-
2012) / Rafael Zamorano Bezerra, 2014.
Vii, 185 f.: il.; 30 cm.
Orientador: Andrea Daher.
Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro
Programa de Pós-Graduação em História Social, Instituto de
História, Rio de Janeiro, 2014.
Referências: f. 176-187.

1. Objeto histórico – Museu Histórico Nacional (1922-2012).


2. Coleção e Musealização – autoridade. 3. Sociedade e cultura –
tese. I. Daher, Andrea. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Instituto de História, Programa de Pós-Graduação em História
Social. III. T.
CDD: 320.8142

iv
RESUMO

Nesta pesquisa foram analisados dois dispositivos de autoridade mobilizados na


musealização e na atribuição de autenticidade histórica de objetos das coleções do Museu
Histórico Nacional (MHN), desde sua fundação, em 1922, até o ano de 2012: o dispositivo de
autoridade do especialista; exercido pelos funcionários formados no Curso de Museus do MHN;
e o dispositivo de autoridade do nome próprio, exercido pelo “homem ilustre”, cujo nome de
família e reputação são elementos que certificam a autenticidade histórica de objetos. As
mudanças ocorridas no campo museológico, a partir de 1970, indicam o surgimento de novas
autoridades e de novos métodos de trabalho no âmbito da museologia, relegando a um segundo
plano uma técnica de museus focada na classificação e na organização de objetos. O papel dos
dispositivos de autoridade na formação e na gestão de uma coleção é, assim, um meio de
compreender a própria racionalidade do campo museológico. No caso do MHN, mostramos
como a autoridade do nome próprio e a do especialista são os dispositivos que constroem, há 90
anos, o discurso museográfico da instituição.

Palavras-chave: Objeto histórico. Autoridade. Museu Histórico Nacional. Museologia.

v
ABSTRACT

The Invention of Relics. Authority's Dispositives on the Musealization of


objects of National Historical Museum's collection. (1922-2012)

Rafael Zamorano Bezerra

Orientadora: Prof.ª. Drª. Andrea Daher

Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em História,


do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em História Social.

In this research were analized two Authority's Dispositives mobalized during the
musealization and the historical authenticity evaluation of objects from the National Historical
Museum's collection, since its foundation, in 1922, until 2012: the Authority’s Dispositive of
Expertise; put into practice by the museum's staff graduated in the Curso Técnico de Museus
(Technical Museum Course) of MHN; and the Authority’s Dispositive of Forename, put into
practice by the “illustrious men”, whose surname and the reputation are elements that can prove
the object's historical authenticity. The changes that took place in the museological field in the
70’s indicate the upcoming of new authorities and new work methods concerning Museology,
pushing aside a museum technique focused on the classification and the orgnization of objects.
The role of the Dispositives of Authority during the collection's formation and its management is
a way to understand the rationality of the museological field. In the MHN's case, the research
hightlighted how the Authority of Forename and the Authority of Expertise are the dispositives
that have been forging the MHN's museological discourse since 1922.

Key-words: Historical Object. Authority. National Historical Museum. Museology.

vi
Conteúdo

Índice de figuras_______________________________________________________________8

Agradecimentos________________________________________________________________9

Introdução___________________________________________________________________10

1. A autoridade do especialista___________________________________________________24

2. A autoridade do nome próprio__________________________________________________82

2.1. O “Tacape de Tibiriçá”____________________________________________________123

3. Outros especialistas, novas coleções____________________________________________134

4. Conclusão_________________________________________________________________170

Referências bibliográficas______________________________________________________175

Lista de fontes_______________________________________________________________184

vii
Índice de figuras
Figura 1: Traves da forca de Tiradentes. Acervo MHN. Reserva Técnica do MHN. 53

Figura 2: Aldrava, século XVII, retirada da Casa de Marília 54

Figura 3: Porta da berlinda com motivos fúnebres. Acervo MHN. 80

Figura 4: Porta da berlinda com o brasão da Casa Real Portuguesa encimado por coroa de duque
contendo um banco de lambel. Acervo MHN. 80

Figura 5: Instrumentos de dentista. Acervo MHN. Foto: MHN / Reserva Técnica. 102

Figura 6:Documento de autenticidade dos objetos. Acervo do MHN. 103

Figura 7:Verso do mesmo documento, com firma reconhecida. Acervo do MHN. 104

Figura 8: "Crucifixo de D. João VI” e piano de D. Pedro II. Acervo MHN. Exposição Portugueses
no mundo. 117

Figura 9: Capa do Catálogo D. João VI. Um rei aclamado na América. 122

Figura 10:O crucifixo de D. João VI no catálogo da exposição Um rei aclamado na América.. 122

Figura 11: Crucifixo vendido por Messias da Rocha ao MHN. Foto: AMHN. 1941. 122

Figura 12: Piano de D. Pedro I. Foto: AMHN, 1941. 122

Figura 13: “Tacape de Tibiriçá”. Foto: Catálogo Banco Safra, MHN, 1989. 126

Figura 14: Exposição Oreretama, MHN. 129

Figura 15: "Tacape de Tibiriçá", exposição Oreretama. MHN. 130

Figura 16: Brinquedos musealizados, exposição Cidadania em construção. MHN. 162

Figura 17: Vestido de Ana Botafogo, jaleco de Ivo Pitanguy e demais instrumentos de trabalho.
Cidadania em construção, MHN. 166

8
Agradecimentos

Gostaria de agradecer o apoio dos colegas do MHN, instituição que, além de ser meu

objeto de pesquisa, é o meu local de trabalho, como historiador no setor de pesquisa e coeditor dos

AMHN e dos Livros do Seminário Internacional. Agradeço, especialmente, à minha querida

amiga, historiadora e coordenadora da pesquisa no MHN, Aline Montenegro Magalhães, que

cotidianamente acompanhou o desenvolvimento da tese, indicando fontes e sugerindo abordagens,

e da museóloga e responsável pela reserva técnica do MHN, Maria De Simone Ferreira, pela

leitura crítica, amizade, carinho e incentivo na reta final da pesquisa. Deixo meu agradecimento

também à diretora do MHN, Vera Lúcia Brottel Tostes, e à coordenadora técnica, Ruth Beatriz

Caldeira, que, por compreenderem a importância de um trabalho como este, deram-me a liberdade

e o tempo necessário para a pesquisa e a redação. Aos colegas Adriana Bandeira Cordeiro, Maria

de Jesus Pires, Jorge Bandeira de Melo, João Luis Pirassununga, Vivian Greco, Eliane Rose e os

demais colegas do MHN deixo meus sinceros agradecimentos pelas conversas, dicas e

disponibilidade de tempo que dedicaram a mim.

Agradeço também aos professores Felipe Charbel (UFRJ) e Márcia Chuva (UNIRIO),

presentes na banca examinadora do trabalho de qualificação, assim como os professores José

Neves Bittencourt, Ivan Coelho de Sá, Regina Abreu e Leila Bianchi pela leitura crítica e por

questionamentos e orientações que irão preparar para a banca examinadora de defesa da tese.

À minha orientadora, professora Drª. Andrea Daher, agradeço pela atenção, paciência,

dedicação, profissionalismo e comprometimento com a orientação, indicando-me os caminhos

corretos e as reflexões necessárias ao desenvolvimento do trabalho.

Por fim, e mais importante, agradeço à minha família: minha mãe, meus irmãos e meu

pequeno sobrinho, que, com o amor dedicado a mim, tornam meus caminhos possíveis.

9
Introdução

O Museu Histórico Nacional (MHN) foi criado em 1922 por iniciativa do jornalista e

historiador Gustavo Barroso como uma instituição pública, voltada para a representação da

história nacional por meio da exposição de objetos, legendas e painéis explicativos. Barroso

idealizou e dirigiu o MHN por 32 anos, imprimindo no Museu uma visão de história, considerada

“elitista” e uma preocupação com a administração do “passado nacional”, principalmente aquele

vinculado aos feitos militares e à memória dos homens ilustres da nação. Ao longo dos seus mais

de 90 anos de existência, a instituição teve um papel pioneiro e, por vezes, central em diversas

atividades vinculadas ao campo da museologia e do patrimônio cultural no Brasil, tais como: a

criação do Curso de Museus em 1932, primeiro curso de caráter universitário dedicado ao ensino

do que hoje pode-se considerar como o campo disciplinar da museologia; e a criação da Inspetoria

de Monumentos Nacionais (IMN), em 1934, primeiro órgão federal voltado para a

regulamentação do patrimônio cultural em sua dimensão material. A IMN foi substituída em 1937

pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), enquanto o Curso de

Museus funcionou até 1977 sob a direção do MHN, e formou as primeiras gerações de

museólogos do país.

Gustavo Barroso, ao longo dos 32 anos de atuação como diretor do MHN, foi um

importante agente no campo museológico nacional, em especial no Rio de Janeiro. Para José

Neves Bittencourt, a administração deu à instituição uma notável estabilidade, porém, contribuiu

para torná-la hermética às modificações que se observaram nas ciências humanas e sociais. O

Museu aferrou-se a um discurso cuja matriz era a historiografia do final do século XIX e início do

século XX e que, desde o final da década de 1940, vinha sendo fortemente criticada. 1 O

museólogo Mário Chagas, em sua tese de doutorado, publicada em 2009, dedicou-se a


1
BITTENCOURT, J. N. Cada coisa em seu lugar: ensaio de interpretação de um museu de história. Anais do Museu
Paulista, São Paulo, v. 8/9, p. 151-174, 2002-2001.
10
compreender a “imaginação museal” presente na atuação de Gustavo Barroso, Gilberto Freyre e

Darcy Ribeiro frente às instituições museológicas que dirigiram e que ajudaram a fundar. Sobre a

“imaginação museal” de Gustavo Barroso, Chagas destaca três aspectos recorrentes: museu,

história e nação. Para Chagas, a primeira questão é sua compreensão de história.

A museologia saudosa de Barroso parece querer fazer crer que o passado se deixa
capturar por inteiro e se entrega sem conflito como verdade pronta. [...] Barroso,
por processos metonímicos, parece querer recuperar o passado integral, e com ele
e por ele, a verdade. O seu “culto da saudade” é, por esse caminho, uma
afirmação indubitável da verdade.2

Outro aspecto importante para Chagas é a tendência de Barroso para a valorização da vida

militar, “ambiguamente contrariadas e estimuladas no seio familiar.” O MHN permitiu-lhe

amalgamar o amor ao passado, a tendência militar, a formação bacharelesca e o gosto pela arte. A

retórica de Barroso “queria promover e ampliar o panteão de heróis: identificá-los, imortalizá-los

e fabricar a identificação integral com eles”. Barroso, ainda na análise de Chagas, seria “o

guerreiro defensor das relíquias, o alferes, o chefe das milícias a quem o passado confiara a tarefa

de defender a história, a nação e a tradição”. 3 Já o MHN seria uma “ponte museológica entre o

século XX e o XIX, entre a República e o Império, entre os gestos heroicos do presente e do

passado. O que estava em causa não era a ruptura, era continuidade e tradição.” 4 O objetivo

principal de Barroso seria o de narrar a evolução da nação brasileira e, para tanto, era necessário

sublinhar as particularidades, construir uma narrativa singular e exaltar os mitos fundadores. O

MHN deveria ser “uma espécie de cartão de identidade da nação e ser identificado como tal”. 5

Assim, a “imaginação museal” de Barroso corporificava, no espaço, narrativas em torno da

história e da nação, articulando o sentimento nostálgico do pretérito com a sua representação

2
CHAGAS, Mário. A imaginação museal. Museu, memória e poder em Gustavo Barroso, Gilberto Freyre e Darcy
Ribeiro. Rio de Janeiro: MinC / IBRAM, 2009. p. 76-77.
3
Id. p. 81.
4
Id. p. 89.
5
Id. p. 91.
11
científica e autêntica do passado,6 segundo Chagas:

[...] a capacidade singular e efetiva de determinados sujeitos articularem no


espaço (tridimensional) a narrativa poética das coisas [...]. Essa imaginação não é
prerrogativa sequer de um grupo profissional, como os museólogos, por exemplo,
ainda que eles tenham o privilégio de serem treinados para o seu
desenvolvimento. Tecnicamente, refere-se ao conjunto de pensamentos e práticas
que determinados atores sociais desenvolvem sobre os museus e a museologia. 7

Apesar do controle de Barroso sobre a gestão e a idealização do Museu, os agentes

atuantes no campo museológico e do patrimônio são de natureza diversa, frutos das demandas por

memória e história, portanto, coletivas. Assim, a “imaginação museal” permite a compreensão de

museu idealizada por Barroso, mas não o entendimento das práticas de musealização e das

representações históricas postas em jogo no MHN.

Ainda sobre o período de Gustavo Barroso na cabeça da instituição, o livro de Aline

Montenegro Magalhães, intitulado O culto da saudade na Casa do Brasil, sobre as ações de

Barroso na Inspetoria de Monumentos Nacionais8 analisou a proposta museológica de Barroso

como parte de um projeto de escrita da história, que disputou com outros projetos a legitimidade

do passado brasileiro. Ao analisar as ações de Barroso no MHN, Magalhães identifica as relações

entre a escrita da história produzida na instituição com a obra de Francisco Adolfo de Varnhagen,

que interpretou a história do Brasil colonial de forma a aparecer, claramente, a superioridade do

branco sobre os índios e negros, bem como da civilização europeia sobre a barbárie indígena. Para

mapear o projeto museológico e a história nacional difundida por Barroso no MHN, Magalhães

analisou os critérios de seleção de acervo, as exposições, as publicações dos conservadores na

primeira fase dos Anais do MHN (1940 - 1975) e o Curso de Museus, idealizado por Barroso para

formar profissionais capacitados para atuarem em museus e instituições afins. Para Magalhães, o

6
Id. p. 97.
7
Id. p. 58.
8
MAGALHÃES, Aline Montenegro. Culto da saudade na Casa do Brasil. Gustavo Barroso e o Museu Histórico
Nacional. Ceará: Museu do Ceará, 2006.
12
método de trabalho adotado e difundido nos Anais do MHN e nas técnicas de museu ensinadas no

curso são formas de reinvenção das práticas antiquárias com vistas a uma escrita da história

verdadeira.9 As disciplinas ministradas, como heráldica, epigrafia, cronologia, indumentária,

condecorações, mobiliário, eram consideradas indispensáveis ao trabalho em museus, porque tais

conhecimentos eram vistos como essenciais para atestar a autenticidade dos objetos, além

classificar e interpretar objetos do acervo. O trabalho de Magalhães, além de identificar o projeto

de escrita da história de Barroso, mostra como a sistematização de práticas e saberes dentro da

instituição constituíram um savoir faire, um conhecimento técnico que autorizava os

conservadores a lidarem com os objetos.

A sistematização das disciplinas no Curso de Museus e em seus instrumentos


didáticos, como parte do projeto pedagógico de formação de conservadores,
conferiu a Gustavo Barroso o domínio no campo de profissionais especializados
para os museus em nível nacional. Nessa perspectiva, a tradição antiquária, que
antes restringia-se ao campo da erudição, evocando amor ao passado, empresta
suas práticas para a escrita da história científica, por meio das “disciplinas
auxiliares”.10

Essa especialização é o que foi chamado nesta tese, de dispositivo de autoridade do

especialista, ou seja, como estes conservadores, devido à sua experiência e à sua formação,

instituem-se como agentes legítimos na produção de provas, certificados e pareceres sobre a

autenticidade dos objetos musealizados na instituição. Para o historiador José Neves Bittencourt,

os métodos de trabalho adotados pelos conservadores do MHN consistiam na adaptação dos

cânones positivistas ao tipo de documento com que lidavam, configurando um tipo de pesquisa

aplicada.11 Esse trabalho consistia em mergulhar “na intimidade mais recolhida do documento,

buscando nele sinais que situassem o possuidor, o fato histórico e a época – uma espécie de tríade

mítica que o objeto materializava”.12 Bittencourt observa como nos textos dos AMHN esses
9
MAGALHÃES, Aline Montenegro. Culto da saudade na Casa do Brasil... Op. cit. p. 71.
10
Id. p. 81.

11
BITTENCOURT, José Neves. Cada coisa em seu lugar... Op. cit. p. 152.

12
Id. p. 152.
13
profissionais revelavam-se investigadores de indícios legados pelas grandes figuras e pelos

grandes acontecimentos da história pátria e reconheciam a autenticidade dos objetos históricos

segundo três parâmetros: o ordenamento temporal, a origem e a identidade do doador.13

A importância do doador na legitimação histórica do acervo pode ser compreendida a

partir do trabalho de Regina Abreu, A fabricação do Imortal, dedicado à análise da doação, feita

ao MHN em 1936, de objetos pessoais e da coleção particular do político Miguel Calmon por sua

viúva, Alice da Porciúncula Calmon du Pin e Almeida. Tais objetos, conhecidos como a Coleção

Miguel Calmon, representam a maior e mais valiosa doação já recebida pelo MHN. Abreu

assinala que não houve nada de despretensioso no gesto da viúva: trata-se de uma troca de

presentes a partir da qual se imortalizou na história nacional a memória de seu esposo. Ao analisar

os objetos doados, Abreu identificou uma cuidadosa seleção, que visou à construção da imagem

de Miguel Calmon como um homem público, cuja vida foi dedicada à nação. Os objetos da

coleção apontam para os laços do casal com as antigas nobrezas brasileira e europeia, o que,

segundo Abreu, era eficaz forma de distinção social durante as primeiras décadas da República.

Nesse aspecto, os diversos objetos doados “[...] vinham circulando durante séculos no interior da

nobreza, selando alianças e reafirmando identidades”. Esses objetos, ao serem musealizados, “[…]

continuam vivos servindo para a perene legitimação dos valores desse segmento”. Em outras

palavras, por meio da preservação de objetos evocativos, imortalizava-se a própria nobreza

brasileira no contexto do Museu Histórico Nacional.14 De fato, as elites nacionais das primeiras

décadas do século XX encontraram no MHN um local adequado para perpetuar e atualizar seu

prestígio, doando objetos pessoais e de coleção como forma de consagração histórica. A

antiguidade desses objetos, as pessoas e os vínculos familiares que representam são elementos de

valoração histórica relacionados ao tipo de autoridade que identificamos nesta tese como
13
Id. p.154.
14
ABREU, Regina. A fabricação do imortal. Memória, história e estratégias de consagração no Brasil. Rio de
Janeiro: Rocco/Lapa, 1996. p.59.
14
dispositivo de autoridade do nome próprio, ou seja: como o nome próprio ou de família atua

como um elemento de certificação histórica nos processos de aquisição do acervo MHN.

Sendo um museu com mais de 90 anos, a instituição reflete formas distintas de “escrita da

história” praticadas por funcionários e diretores do MHN ao longo desses anos. Myrian Sepúlveda

dos Santos analisou dois momentos distintos do MHN. A partir das considerações de Pierre Nora

sobre a memória e a história, Sepúlveda trabalhou com as categorias de “museu-memória” e de

“museu-narrativa”. Para ela, o MHN de 1922 era um museu onde a história era tratada “de forma

muito próxima àquela dos antigos antiquários, ou mesmo da história romântica, que demonstrava o

desejo de resguardar do tempo tudo que fosse original e autêntico [...]”. Nesse museu,

caracterizado pela autora como “museu-memória”, “a história é representada por uma sequência

de objetos e palavras do passado que refletem uma temporalidade descontínua e pontual [...]”. 15

Essa forma de lidar com o passado assemelhava-se à postura do antiquário ou à da história

romântica, que demonstrava o desejo de resguardar do tempo aquilo que fosse original e

autêntico, além de conter um forte sentimento celebrativo pelo passado.

O MHN da década de 1980 é caracterizado por Sepúlveda como um “museu-narrativa”,

pois a narrativa histórica, adotada nas exposições de longa duração, foi concebida de forma

cronológica e dividida por períodos históricos específicos: colônia, império e república. Para a

autora, esta narrativa subordina à sua lógica o sentido do objeto, que acaba tendo uma função

alegórica ou ilustrativa na narrativa. A autora entende que esta mudança estabeleceu um

distanciamento entre o presente e o passado, uma vez “que o passado é apresentado por meio de

uma crítica neutra e/ou ideológica”. Em suas palavras “o ‘sentimento nostálgico’, capaz de reviver

a tradição, de permitir uma identificação entre o ontem e o hoje inexiste quando se prioriza a

razão e se expulsa o irracional dos objetos”. 16 O trabalho de Santos coloca em cena as mudanças
15
SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. A escrita do passado em museus históricos. Rio de Janeiro: IPHAN, 2006. p. 20.
16
Id. p. 22.
15
nos usos e nos sentidos do acervo, mostrando como diferentes atores imprimiram, ao longo dos

anos no MHN, diferentes concepções de museu e de história.

Outros trabalhos se dedicaram aos períodos mais recentes da instituição, como a

dissertação de mestrado de Lia Fernandes, 17 em que analisou os sentidos que nortearam as

aquisições de acervo por funcionários da instituição, entre os anos de 1922 e 2002; e a dissertação

de mestrado de Raquel Louise Pret, 18 que pesquisou as mudanças na escrita da história no

processo de revitalização do MHN, tendo por base dois indicadores: as políticas de aquisição e os

circuitos de longa duração. A pesquisa de Fernandes mostra como o acervo museológico mudou

em suas significações ao ser organizado de acordo com sua “função original”, o que gerou uma

nova classificação, tendo por base o Thesaurus para acervos museológicos, publicado por Helena

Dodd Ferrez e Maria Helena S. Bianchini.19 Esse tratamento visou tratar os objetos como sistemas

de informação, descaracterizando seu caráter de relíquia. Por sua vez, Raquel Pret analisou o

deslocamento dos objetos da categoria de entidade para a de emblemas, para defender que esse

deslocamento se articulou a partir da ruptura de uma escrita da história que valorizava os vultos

do passado para fins de uma escrita estruturalista com ênfase na crítica social. A pesquisa mostra

como isso relaciona-se às mudanças nos usos da memória nessas instituições, que refletem as

próprias transformações das instituições museológicas nos últimos anos.

A partir dos caminhos trilhados por esses trabalhos e da pesquisa documental nos arquivos

do MHN, buscamos, nesta pesquisa de doutoramento fazer um trabalho arqueológico de objetos

alguns objetos do acervo a fim de identificar e descrever duas formas de autoridade mobilizadas

17
FERNANDES, Lia. Museu Histórico Nacional: permanências e mudanças. 2003. Dissertação (mestrado em
História Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, 2003.
18
PRET, Raquel Louise Coelho. Ver é conhecer - memória e identidade no processo de revitalização do Museu
Histórico Nacional (1982-1989). 2010, 175p. Dissertação. (mestrado em Memória Social). Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro, 2010.
19
FERREZ, Helena Dodd. & BIANCHINI, Maria Helena S. Thesaurus para acervos museológicos. Rio de Janeiro:
Fundação Pró-Memória, 1987.
16
na musealização e na avaliação histórica de objetos pertencentes às coleções do MHN: a

autoridade do especialista – representado tanto por seus funcionários especializados e formados

no Curso de Museu, como pelos especialistas por eles referenciados e consultados em suas

pesquisas e no seu trabalho de classificação do acervo – e a autoridade do nome próprio,

representado pelo “homem ilustre” vinculado às aristocracias nacionais e cuja reputação, o “nome

próprio” (como o nome de família), é capaz de agregar valor histórico e certificar autenticidade

aos objetos doados ou vendidos ao MHN. Portanto, o objetivo não foi contar a história da

instituição, trabalho já realizado por outros pesquisadores, mas identificar e descrever os

principais dispositivos de autoridade mobilizados na formação do acervo museológico do Museu.

Autoridade e poder não devem ser tomados como sinônimos. A palavra “poder” tem

origem latina de potestas, e significa potência, capacidade de fazer, ter permissão ou estar

habilitado para fazer algo. Autoridade vem de auctoritas e significa ser gerador de qualquer coisa

ou alguém, fonte ou origem, autor ou artífice. Autoridade tem correspondência com o termo autor,

que significa o criador, aquele que é promotor e inventor de oportunidades. A raiz de ambas as

palavras é augere, que significa aumentar, acrescer, ampliar, acelerar, fazer crescer, propor,

sustentar, desenvolver, autorizar, consentir.20 Hannah Arendt atenta que o conceito de autoridade,

presente em boa parte da história ocidental, tem origem platônica. Platão, crítico da democracia

ateniense, queria buscar uma alternativa para a maneira usual de os gregos lidarem com os

assuntos públicos na polis, que eram a persuasão, representada pelo sofista, e a violência. Era

necessário algo que se prestasse a compelir os homens sem o uso da violência ou do

convencimento. Platão argumentou com base nos modelos das relações existentes na vida

cotidiana, como o pastor e suas ovelhas, um médico e o paciente, o timoneiro e seu barco. Em

todos esses casos o conhecimento especializado infunde confiança, de modo que nem a força nem

20
ABBAGANO, N. Autoridade. In: ______. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 113-115.
17
a persuasão são necessárias para obter a aceitação dos homens. É a autoridade do sábio que

[...] exclui a utilização de meios externos de coerção; onde a força é utilizada, a


autoridade por si mesmo fracassou. A autoridade, por outro lado, é incompatível
com a persuasão, a qual pressupõe igualdade e opera mediante processo de
argumentação [...] Se a autoridade deve ser definida de alguma forma, deve sê-lo,
então, tanto em contraposição à coerção pela força como à persuasão através dos
argumentos.21

O termo autoridade é de origem romana, pois nem a língua grega nem as várias

experiências políticas da história grega mostram qualquer conhecimento de “autoridade” e do tipo

de governo que isso implica.22 No contexto romano, a autoridade era vinculada ao saber, mas

também ao caráter sagrado da fundação de Roma. Participar da política significava preservar a

fundação da cidade. Aquilo que a autoridade romana constantemente aumentava era a própria

tradição de Roma. Para Cícero, a autoridade tinha suas raízes no passado e na experiência,

evidenciando a fórmula histórica magistra vitae, sem que houvesse desigualdade natural entre os

homens. Nesse sentido, Arendt atenta para o fato de que os exemplos e os feitos dos antepassados

tinham um caráter coercitivo, na medida em que, o que quer que acontecesse, se tornava um

exemplo, um auctoritas maiorum. O passado era santificado através da tradição, legando de uma

geração a outra o testemunho dos antepassados que inicialmente presenciaram e criaram a sagrada

fundação.

Georges Nivat atenta para a relação entre autoridade e criação. O ato de criação “faz

autoridade”. Um autor pode destruir sua obra, um pai tem autoridade sobre os filhos, Deus tem

autoridade sobre o homem.23 O mesmo vale para um museu e sua coleção. Porém, quando se trata

da invenção do objeto museológico, há a mobilização de diferentes formas de autoridade, que

também irão produzir diferentes “direitos” sobre esses bens.

21
ARENDT, Hanna. Entre passado e futuro. São Paulo: Perspectiva, 2005. p. 129.
22
ARENDT, Hannah. O que é autoridade. In:______. Entre o passado e o futuro... Op. cit. p. 142.
23
NIVAT, George. Le futur de l'autorité. Rencontres Internationales de Genève. Tome XL, Genève: 2005.
Disponível em: <http://www.rencontres-int-geneve.ch/volumes_pdf/rig40.pdf> Acesso em: 12 abr. 2013.
18
Entende-se que o discurso museológico, como qualquer outro discurso, é delimitado por

certos dispositivos de valoração, que atuam como procedimentos de exclusão e de delimitação. 24

Para Michel Foucault, a produção do discurso na sociedade ocidental é controlada, selecionada,

organizada e redistribuída por certo número de procedimentos de exclusão, como a palavra

proibida, a segregação da loucura e a vontade de verdade. Foucault atenta, também, para os

procedimentos internos de delimitação do discurso, que são o comentário, o autor, a disciplina e o

ritual.25 Sendo o discurso museológico adotado no MHN caracterizado pela ideia de nacional, dá-

se, portanto, pela presença daquilo que Foucault nomeou como “unidades discursivas”, ou seja,

noções que permitem uma continuidade, uma linearidade histórica entre o passado e o presente.

Ideias como as de “tradição”, “influência”, “desenvolvimento”, “mentalidade”, “espírito”,

“imaginário” e outros representam valores que articulam diferentes passados, possibilitando a

construção de uma narrativa histórica em comum e associada a um projeto de nação, necessárias

ao discurso museológico como legitimadoras de sua condição de legado.

Buscamos nesta tese entender como as autoridades do especialista e do nome próprio são

elementos-chave na produção e certificação de autenticidade histórica de objetos. Tanto o

especialista, consagrado em seu meio profissional, como o homem cujo nome impõe respeito por

seu status e por suas realizações são elementos de autoridade que atestam autenticidade a objetos.

Consideramos que a autoridade no discurso museológico atua de modo semelhante à “função

autor”, tal como proposta por Foucault:

[...] autor não entendido [...] como o indivíduo falante que pronunciou ou
escreveu um texto, mas o autor como princípio de agrupamento do discurso,
como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência”. 26

[...] um nome de autor não é simplesmente um elemento do discurso (que pode


ser sujeito ou complemento, que pode ser substituído por um pronome, etc.); ele
24
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
25
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 11 ed. São Paulo: Loyola, 2004. p.18.
26
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso... Op. cit. p.26-27.
19
exerce relativamente aos discursos um certo papel: assegura uma função
classificativa; um tal nome permite reagrupar um certo número de textos,
delimitá-los, selecioná-los, opô-los a outros textos [...]. Em suma, o nome de
autor serve para caracterizar certo modo de ser do discurso. 27

O papel da autoridade na musealização de acervos é de fornecer a sua fundamentação

histórica, permitindo a classificação dos objetos e inserindo-os legitimamente no bojo dos

discursos sobre o nacional. Esse “efeito autoral”, portanto, dota os objetos de historicidade e

autoriza a crença nela o que se materializa em etiquetas, legendas, catálogos e no uso desses

objetos como ilustrações de manuais de história (mesmo que esses objetos venham a ser

questionados criticamente pelos conservadores ou pelos técnicos da instituição).

Para descrever o papel dessas autoridades, o plano traçado para esta tese partiu da análise

dos documentos relativos à aquisição e à avaliação de acervo, tais como declarações de

autenticidade, pareceres sobre objetos, correspondências entre o MHN e pessoas interessadas em

doar ou vender objetos ao Museu, relatórios institucionais, artigos publicados no AMHN e

catálogos. Uma das conclusões da tese é que a lógica patrimonial em se inserem os acervos

museológicos tem por base argumentos de autoridade, que definem o que é ou não é passível de

ser musealizado e, consequentemente, enquadrado nas categorias de musealização, como

“histórico”, “artístico”, “etnográfico” etc. Isso coloca a autoridade e seus diferentes exercícios

como elementos centrais nos procedimentos de seleção e formação de coleções museológicas.

A tese está organizada em três capítulos. O primeiro descreve a autoridade do especialista

como um dos dispositivos de valoração observado em processos de musealização praticados no

MHN. Foram analisados os procedimentos de trabalho dos conservadores do MHN, formados

pelo Curso de Museus criado com o intuito de formar profissionais capacitados a atuarem no

MHN e em instituições afins. Os artigos produzidos por esses profissionais foram objetos de

estudo, assim como seus trabalhos de crítica de acervo, elaboração de laudos e atestados de

27
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In: ______. Ditos e escritos. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p.44-45.
20
autenticidade. Foram incluídos nesse capítulo dois estudos de caso externos ao MHN, que

mostram metodologias de trabalho semelhantes àquelas produzidas pelos funcionários desta

instituição. Trata-se do questionamento da autoria de Jean-Baptiste Debret em algumas aquarelas

pertencentes à coleção dos Museus Castro Maya, além de uma pintura a óleo e uma aquarela do

acervo do MHN. Analisamos também a atribuição de autoria de Aleijadinho às esculturas

religiosas da coleção de Renato Whitaker por especialistas em arte sacra. Em todos os casos,

destacamos como o saber do especialista é produtor de prova, seja pelo conhecimento de

disciplinas específicas, como a heráldica e a numismática, seja pelo olhar treinado, capaz de

reconhecer indícios de autenticidade.

O segundo capítulo é dedicado a descrever um segundo dispositivo de valoração

encontrado na formação do acervo museológico da instituição, a autoridade do nome próprio.

Para tanto, foi analisada a documentação museológica do acervo, composta por cartas de doação,

recibos de venda, declarações de autenticidade, ofícios e cartas enviadas por órgãos públicos sobre

transferência de objetos para o Museu. Percebe-se nessa documentação a presença constante da

autoridade de famílias influentes, de políticos e de militares, cuja palavra é aceita como

testemunho válido e prova para a autenticação de objetos históricos.

No terceiro capítulo, mostramos como as transformações no campo museológico,

principalmente a partir da década de 1980, trouxeram mudanças nos sentidos e na organização do

acervo. Tais mudanças indicam o surgimento de novas autoridades e de novos métodos de

trabalho, que, por vezes, relegaram a um segundo plano as chamadas técnicas de museus, que

incluíam estudos das “ciências auxiliares da história”, como a heráldica e a numismática. Por um

lado, os objetos coletados pelos funcionários da instituição deixaram de ser avaliados a partir da

importância de seus possuidores ou das suas características intrínsecas e materiais, e passaram a

representar “conceitos”, podendo ser considerados como emblemas ou alegorias de categorias

21
sociológicas como “capitalismo”, “infância” ou “sociedade de consumo”. Por outro lado,

mostramos também como as autoridades mobilizadas nos tempos de “influência” de Gustavo

Barroso continuam tendo um papel importante na museografia e na valoração do acervo da

instituição, uma vez que os objetos oriundos dessa fase, principalmente aqueles de grandes

coleções particulares, ainda são bastante expostos, sendo os mais valiosos em termos monetários

da coleção.

Ao fim dessa trajetória arqueológica dos objetos, foram revelados alguns momentos fortes

dos processos de seleção e de avaliação de acervos, nas autoridades do nome próprio e do

especialista que fundamentam o caráter histórico e nacional da coleção, que fazem parte, assim,

da própria constituição do discurso museológico do Museu e desempenham uma função

estratégica na definição dos objetos dotados de qualidades específicas, justificando sua

musealização. Os dispositivos de autoridade do nome próprio e da do especialista, expressam,

nesse sentido, as relações de força e de poder presentes na instituição ao longo dos seus 90 anos.

22
1. A autoridade do especialista

Who is to be the judge of skill? Presumably, either the expert and the nonexpert.
But it cannot be the nonexpert, for he does not know what constitutes skill
(otherwise he would be an expert). Nor can it be the expert, because that would
make him a party to the dispute, and hence untrustworthy to be a judge in this
own case. Therefore, nobody can be the judge of skills.28

O saber específico constitui autoridade, sendo, portanto, produtor de autenticidade. Isto é

evidente quando se trata da definição e da resolução de certos assuntos, como no campo

museológico, onde o conhecimento especializado de museólogos, de historiadores, de químicos,

de médicos legais e de outros especialistas é a principal forma de certificação de autenticidade de

objetos históricos e artísticos. Foi o que ocorreu em 2011, quando foi amplamente divulgada na

mídia a notícia da identificação, via densitometria óssea, dos restos mortais de Domingos Vidal

Barbosa, João Dias Mota e José Resende Costa, três envolvidos no episódio da Inconfidência

Mineira que morreram no degredo em Guiné Bissau. O Instituto Brasileiro de Museus (Ibram),

órgão responsável pela gestão e pela Política Nacional de Museus (PNM) brasileiros, noticiou o

ocorrido em sua página da internet.29

Nas informações reportadas pelo Instituto, consta que os três homens foram enterrados em

urnas por uma comunidade “indígena” na Vila de Cacheu. Em 1932, os despojos foram exumados

a pedido do cônsul brasileiro em Dakar, sendo na época identificados como os dos três

inconfidentes. A identificação baseou-se no relato de uma “indígena” que lembrava, conforme

seus pais e avós contavam, que naquele local estavam enterrados três brasileiros degredados. Em

1936, os restos mortais chegaram ao Rio de Janeiro e ficaram sob a guarda do Arquivo Histórico

do Itamaraty.
28
WALTON, Douglas. Legal argumentation and evidence. Pennsylvania: Penn State Press. p. 178. [Quem é o juiz da
especialidade? Presumidamente, tanto o especialista como o leigo. Porém, não pode ser o leigo, por que ele não sabe
o que constitui a especialidade (de outra forma ele seria um especialista). Não pode ser o especialista, uma vez que ele
poderia tomar partido na disputa e, deste modo, desonestamente, ser o juiz do seu próprio interesse.
Consequentemente, ninguém pode ser juiz da especialidade.] Tradução livre do autor.
29
Disponível em:. <http://www.museus.gov.br/noticias/ossadas-de-inconfidentes-sao-identificadas/> Acesso em: 19
mar. 2012.
23
Ainda naquele ano, Getúlio Vargas baixou um decreto que visava o repatriamento dos

despojos dos inconfidentes mortos nos degredos de Portugal e da África, sendo assim enviadas ao

Brasil treze urnas cinerárias com restos mortais de outros inconfidentes. Esses restos estão no

Panteão dos Inconfidentes, criado em 1942 no Museu da Inconfidência em Ouro Preto, Minas

Gerais. Porém, as ossadas dos degredados exumados na Vila de Cacheu não tiveram o mesmo

destino e permaneceram nos arquivos do Itamaraty. Em 1992 eles foram enviados ao Museu da

Inconfidência e o diretor da instituição, Rui Mourão, as recusou devido à incerteza quanto a

autenticidade. As ossadas ficaram, então, guardadas na Igreja de Antônio Dias em Ouro

Preto/MG.

Ainda de acordo com a reportagem publicada no site do Ibram, Mourão solicitou a

colaboração do Programa de Pós-Graduação em Odontologia Legal e Deontologia da

Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) para confirmar a identidade das ossadas. Uma

equipe chefiada pelo professor Eduardo Daruge realizou um minucioso trabalho de pesquisa no

material, cujo resultado identificou três indivíduos com grande diferença de idade. Mediante essa

diferença foram utilizadas as “fontes históricas” no confrontamento com a datação realizada pela

equipe do professor Durage, o que permitiu, ao fim das análises, coincidir as idades das ossadas

com as idades estimadas dos três inconfidentes degredados em Guiné Bissau.

A identificação foi noticiada em tom patriótico pelos meios de comunicação, adjetivada

como “uma importante descoberta histórica”.30 Pelo feito, o professor Durage recebeu uma

honraria, a medalha Tiradentes, no feriado nacional do inconfidente, durante uma cerimônia que

alojou os restos mortais dos degredados no Panteão dos Inconfidentes. Estiveram presentes a esta

cerimônia autoridades políticas como a presidente Dilma Roussef, a ministra da Cultura, Ana de

Hollanda, o governador do estado, Antônio Anastasia, e o ex-governador e então senador do

30
Disponível em: <http://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti/tag/eduardo-daruge/> e <http://mac-
asf.blogspot.com.br/2011/04/ibram-ossadas-de-inconfidentes-sao.html > Acessos em: 21 abr. 2013.
24
estado de Minas Gerais, Aécio Neves.

Desde a exumação até a musealização, os restos mortais dos três inconfidentes mortos em

degredo tiveram sua trajetória marcada pela intervenção de diferentes autoridades. A primeira

autoridade é o testemunho de uma “indígena” que indica, a partir da memória dos pais, o local de

sepultamento de três brasileiros degredados. O cônsul brasileiro providenciou a exumação e o

envio dos despojos ao Brasil, que ficaram no Itamaraty. Em 1922, foram enviadas ao Museu, que

as recusou. Porém, a sagração dos restos mortais foi finalmente concluída quando foram

acionados os cientistas da Universidade Estadual de Campinas, que, com base nos resultados da

densitometria óssea, confrontados com as provas documentais oriundas das fontes históricas,

provavelmente a “Sentença da Alçada” que condenou os inconfidentes, fez com que os restos

mortais adquirissem status de “relíquias da nação”. A presença de chefes de Estado no cerimonial

e as honrarias a seguir distribuídas deram lastro à descoberta, de modo que os restos mortais

foram, enfim, consagrados no Panteão dos Inconfidentes, num ritual cívico.

A exigência pela autenticidade científica do patrimônio histórico faz com que o saber

especializado seja a instância autorizada para produzir provas, emitir laudos, identificar datações e

estabelecer autorias. Instâncias análogas são componentes incontornáveis da constituição de um

acervo histórico, tal como o do MHN.

O MHN foi idealizado e inaugurado como parte das comemorações do Centenário da

Independência do Brasil em 1922. Seu idealizador, Gustavo Barroso, 31 foi um intelectual

31
Gustavo Barroso foi membro das principais agremiações culturais do país como a Academia Brasileira de Letras,
cujo ingresso, com apenas 35 anos, o tornou o membro mais jovem a fazer parte da instituição. Em 1931, passou a
integrar o grupo de sócios do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Também fez parte de instituições
congêneres do exterior, como a Academia de Ciências de Lisboa e a Sociedade de História Argentina. Em 1934,
indicado por Washington Pires, foi nomeado representante do Brasil junto à Comissão Internacional de Monumentos
Históricos do Instituto Internacional de Cooperação Intelectual, da Liga das Nações. No mesmo ano, tornou-se
responsável pela Inspetoria de Monumentos Nacionais (IMN), criada como um departamento do MHN. A IMN
realizou reformas em 35 monumentos de Ouro Preto, sendo desativada em 1937, por conta da criação do SPHAN.
MAGALHÃES, Aline Montenegro. Colecionando relíquias. Um estudo sobre a Inspetoria de Monumentos
Nacionais, 1934 a 1937. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
Rio de Janeiro, 2004.
25
polígrafo, adepto de uma tradição histórica monumental, com ênfase nos grandes feitos e nos

grandes homens. Barroso já vinha, desde 1911, defendendo a ideia de se criar um museu nacional:

Já se faz necessária a criação de um Museu destinado a guardar relíquias do


nosso passado, cultuando a lembrança dos nossos grandes feitos e dos nossos
grandes homens […] Todas as nações têm seus museus militares, guardando as
tradições guerreiras de sua história, documentando os progressos dos
armamentos e exaltando o culto das glórias passadas. Nós ainda não o possuímos
[…] Nós ignoramos o culto do passado e desprezamos as velharias da história.
Nunca possuímos um museu militar digno desse nome e nossas esquecidas
recordações guerreiras andam esparsas por mil lugares ou já desapareceram com
o caruncho do tempo.32

Onze anos mais tarde, Barroso foi designado diretor do MHN, criado por Epitácio Pessoa

em 2 de agosto de 1922, ocupando o cargo por 35 anos.33 A história nacional que o diretor do

MHN imprimiu na instituição aproxima-se à produzida pelos historiadores do IHBG, no final do

século XIX e no início do XX. Autores como Joaquim Norberto, Oliveira Lima, Visconde de

Porto Seguro, Vieira Fazenda, Pedro Calmon, Edgar Romero, entre outros, são recorrentes nas

referências citadas nas páginas dos primeiros volumes dos Anais do MHN, embasando pesquisas

que visavam à certificação ou não da autenticidade histórica de diversos objetos do acervo do

Museu. Aline Montenegro Magalhães observa que, apesar das poucas referências a Francisco

Adolfo de Varnhagen nos Anais do Museu Histórico Nacional (AMHN), a representação histórica

exposta nas galerias do MHN em muito se aproximava daquela produzida pelo Visconde de Porto

Seguro, que acreditava na superioridade cultural do branco sobre índios e negros, ou seja, da

civilização ocidental sobre a “barbárie” das sociedades indígenas e africanas. Em sua história do

Brasil, a lei, a ordem, a religião e a autoridade seriam fundamentais para a formação de uma nação

civilizada.

Quereis saber o que é a nação brasileira? Olhai para o próprio brasão d’armas
que a simboliza. Nele vereis a esfera armilar, significando a origem da dinastia e

32
Apud MOTENEGRO, Aline Magalhães. O culto da saudade... Op. cit. p. 23.
33
Sua primeira gestão durou até 1930, quando foi afastado pelo Presidente Getúlio Vargas, em represália ao apoio
dado a Júlio Prestes nas eleições, sendo reconduzido ao cargo em 1932, lá permanecendo até o fim de sua vida, em
1959.
26
a do Estado, e nele também vereis a Cruz da Ordem de Cristo, que representa por
si só a história da civilização do país.34

Os objetos recolhidos por Gustavo Barroso e sua equipe parecem materializar a citação

acima: armas, moedas, pinturas de história, imaginária, fragmentos de construção, prataria,

mobiliário e condecorações. Ao “salvar” objetos do esquecimento, Barroso lhes atribuía “valor

histórico”. A seleção por si só implica estabelecer a diferença entre o que é “histórico” e o que não

é, pois, como lembra Meneses, os atributos intrínsecos dos artefatos incluem apenas propriedades

de natureza físico-química, ao passo que nenhum atributo de sentido é imanente. O objeto

“transforma-se” em objeto histórico na medida em que é valorado segundo determinados

critérios.35 Para Barroso, esses critérios relacionavam-se aos vultos da história pátria, aos grandes

acontecimentos, ao Estado, à Igreja, às elites locais e regionais. O ordinário, o de “valor

utilitário”, os objetos da vida cotidiana e do trabalho deveriam ser conservados em um museu

ergológico.36

A tipologia do artefato não era determinante, e sim sua relação com o “passado nacional”

ou com histórias de países civilizados, da qual a história nacional deveria ser parte. Para Barroso,

o MHN deveria ser o “guarda zeloso e expositor permanente de preciosidades, evocativas de

nossos maiores, ou rememorantes de suas glórias [...]”.37 Os “nossos maiores”, neste caso, eram os

membros da nobreza brasileira, da Família Real, os veteranos da Guerra do Paraguai –

principalmente o oficialato –, os políticos de destaque e os artistas consagrados, enfim, membros

34
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História geral do Brasil. Rio de Janeiro: Leammert, 1857. p. XXV.
35
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Do teatro da memória ao laboratório da História: a exposição museológica e o
conhecimento histórico. Anais do Museu Paulista. São Paulo, v. 2 p. 9-42 jan./dez. 1994.
36
De acordo com Barroso, o Museu Ergológico deveria abarcar as seguintes áreas: mobiliário; alimentação;
indumentária; moradia; arte naval; transporte; medicina; tecidos; tintas; decorações; esteiras; cestas; cerâmicas;
brinquedos; arreios; entrançados de couro; obras de chifre; objetos de tartaruga; carpintaria; trabalhos em madeira;
artefatos de cobre; curtume; pescaria; ourivesaria; prataria; ferraduras; marcas de gado etc. BARROSO, Gustavo.
Museu ergológico brasileiro, desenvolvimento de estudos folclóricos em nosso país, um esquema ergológico, outras
notas. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v. 3, p. 433-488, 1945.
37
BRASIL. Museu Histórico Nacional, Relatório de 1922, Rio de Janeiro, 1922. p. 5.
27
das camadas dominantes da sociedade brasileira. A relação entre o “objeto histórico” e as elites

nacionais é conhecida na bibliografia e presente em outros museus de história do Brasil e da

América Latina.38 Porém, como observa Meneses,

[...] Curioso é que este viés tenha como vetores, seja o excepcional,
principalmente na versão das artes decorativas (a belíssima cama de José
Bonifácio), seja o banal irrelevante (o lápis de d. Pedro II) que, por sua própria
insignificância, serve de caução ao excepcional e à credibilidade dos valores que
se devem exaltar. Nos dois casos, os vínculos pessoais são condição relevante e
singularizadora.39

Embora não existisse uma política formalizada de aquisição de acervo, a maioria dos

objetos recolhidos por Barroso datava do século XIX. Muitos são oriundos de coleções

particulares, órgãos públicos e de outras instituições de memória, como o Antigo Museu de

Artilharia, o Arquivo Nacional, o Museu Nacional, o Museu Militar e o Museu Naval. A

preocupação com a autenticidade histórica era uma constante na rotina do Museu. José Neves

Bittencourt identificou nas ações dos conservadores do MHN três parâmetros norteadores que

serviam como certificadores de autenticidade histórica: 1) o ordenamento temporal, representativo

de um período histórico em que o valor de antiguidade parece ser determinante; 2) a origem do

item, ou seja, quem o tinha possuído ou a que evento histórico estava ligado; 3) a identidade do

doador. Sobre este último,

[...] não necessariamente todos os objetos indicam pessoas que pudessem ser
imediatamente entendidas como “históricas”, em boa parte dos casos devido à
falta da chancela do tempo. Isto, no entanto, não os desqualificava. Entravam em
jogo as características intrínsecas do objeto (dentre os quais a antiguidade era
apenas um dado, mas não o único e nem sequer o mais importante), e a posição
social e/ou política do doador.40

38
ROCA, Andrea. As classificações e abordagens dos acervos no Museu Histórico Nacional da República Argentina.
Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, v. 40, p. 437-455, 2008. BITTENCOURT, José Neves. Cada
coisa em seu lugar: ensaio de interpretação de um museu de história. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v. 8/9, p.
151-174, 2002-2001. ______. Em todos os lugares, em lugar nenhum: apontamentos sobre a construção de uma
tradição em torno da preservação do Patrimônio Cultural no Brasil. (mimeo). Rio de Janeiro: Centro de Referência
Luso-brasileira – MHN, 2001.
39
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Do teatro da memória ao laboratório da História... Op. cit.
40
BITTENCOURT, José Neves. Cada coisa em seu lugar: ensaio de interpretação de um museu de história. Anais do
Museu Paulista, São Paulo, v. 8/9, p. 151-174, 2002-2001. p. 160.
28
Barroso e os demais conservadores do MHN estudavam minuciosamente medalhas,

condecorações, brasões, selos, moedas e escavações. Trata-se de um método de trabalho próximo

às práticas da tradição antiquária dos séculos XVII e XVIII, tal como observado por Santos e

Magalhães.41 A valorização da numismática, importante no estabelecimento de cronologias e na

escrita de uma história política e do estado, significava a preocupação com uma cientificidade nas

atividades do Museu, visto que no MHN o estabelecimento da nacionalidade convivia com

pretensões de cientificidade. Tratava-se de um método de trabalho que harmonizava o extremo da

generalização – na qual a ideia de nação parece ser o melhor exemplo – e a abrangência da

história ilustrada com o detalhamento minucioso da erudição e das práticas antiquárias. O MHN

uniu, portanto, o “culto da saudade” à pesquisa histórica baseada em fontes materiais, estudadas

através das chamadas “ciências auxiliares da história”. O melhor exemplo disso é a criação do

Curso de Museus, em 1932, como um departamento do MHN, tendo sido um dos primeiros cursos

do mundo dedicado ao ensino do que podemos chamar hoje de museologia, que se voltava para a

capacitação dos funcionários do próprio Museu e de instituições afins.

Para Ivan Coelho de Sá, o Curso de Museus do MHN foi influenciado diretamente pela

experiência francesa de gestão de coleções, especificamente pela École des Chartes e pela École

du Louvre. Com a Revolução Francesa, o passado tornou-se uma das preocupações do Novo

Regime. “O rei agora é o rei dos franceses, tornando-se imprescindível que estes mesmos

franceses tenham e conheçam a sua história, ocupação acadêmica a ser administrada pelo Estado,

mas também tarefa política com relação aos usos do passado.”42 Uma dessas tarefas foi a iniciativa

de fazer com que as coleções de antiguidades e de arte do Estado, confiscadas durante a

revolução, fossem disponibilizadas democraticamente ao público. Em 1794 foi promulgada a lei


41
SANTOS, Myriam Sepúlveda dos. A escrita do passado em museus históricos... Op. cit. MAGALHÃES, Aline
Montenegro. Colecionando relíquias... Op. cit.
42
GUIMARÃES. Manuel Luís Salgado. Entre amadorismo e profissionalismo. Topoi, Rio de Janeiro, v. 3, n. 5,
julho/dezembro, 2005. p. 185. Disponível em:
<http://www.revistatopoi.org/numeros_anteriores/topoi05/topoi5a7.pdf> Acesso em 1 abr. 2013.
29
de Messidor, que determinava o direito da população a ter acesso gratuitamente a todos os

documentos transferidos aos arquivos públicos, inclusive aqueles provenientes do tesouro da

Coroa.

Ainda que os museus tenham sido laboratórios para os mais diversos campos do saber,

como a antropologia, a arqueologia, a história da arte e a história natural, e para um projeto de

história nacional (como nos países latino-americanos durante a construção dos estados nacionais,

no período pós-independência) a ideia de investir em conservadores de museus ocorre somente no

século XX. Por muito tempo, os museus, em suas várias tipologias, eram considerados campo de

atuação de arqueólogos, de naturalistas, de antropólogos, de historiadores da arte, de helenistas e

outros especialistas em coleções e em objetos. Os estudos, até então, concentravam-se nos

acervos, na identificação dos artefatos, sobretudo como forma de decifrar textos, inscrições ou

datações, procedências e autorias, que ampliavam o conhecimento sobre as origens e o

desenvolvimento das “civilizações” passadas.43

O International Museums Office, criado em 1926 pela Liga das Nações, forneceu uma

estrutura nova e decisiva às primeiras iniciativas de cooperação internacional para a

profissionalização dos museus. O estudo e a comparação das experiências de cada nação,

promovidos pela revista Mouseion de 1926 a 1940 culminaram na Conferência de Madri, em

1943, intitulada Museografia – Arquitetura e organização dos museus de arte.44

A primeira instituição regular de ensino voltada para capacitar profissionais para o trabalho

com o patrimônio cultural foi a École Nationale des Chartes, criada em 1821, com um currículo

fundamentado em história, arqueologia, história da arte, paleografia, numismática e sigilografia. 45


43
SÁ, Ivan Coelho de. As matrizes francesas e origens comuns no Brasil dos cursos de formação em arquivologia,
biblioteconomia e museologia. Acervos. Revista do Arquivo Nacional. Rio de Janeiro, 26 dez. 2013. Disponível em:
<http://revistaacervo.an.gov.br/seer/index.php/info/article/view/623>. Acesso em: 26 fev. 2014. p. 34.
44
POULOT, Dominique. Museu e museologia. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. p. 128.
45
SÁ, Ivan Coelho de. As matrizes francesas e origens comuns no Brasil... Op. cit. p. 35.
30
Segundo o site da instituição, sua fundação relaciona-se à “redescoberta” da “civilização

medieval” pelo nacionalismo romântico de finais do século XVIII e início do século XIX, 46 que

impulsionou várias iniciativas de valorização do passado medieval, com destaque para as atuações

de Eugène Viollet-le-Duc e Alexandre Lenoir.47 O objetivo da nova instituição era capacitar jovens

para organizar documentos confiscados pela Revolução e renovar a história nacional. 48 Como

observa Ivan Coelho de Sá, havia uma necessidade de organizar e dar tratamento técnico

adequado às coleções e arquivos apreendidos pela Revolução, o que convergia para as ideias de

reformulação historiográfica fundamentada em uma metodologia de pesquisa que privilegiasse as

informações primárias, bem como para os ideais revolucionários de franquear os arquivos

públicos.49 O curso da École des Chartes era estruturado em ciências cujas aplicabilidades

destinavam-se diretamente ao tratamento de acervos documentais. Ofereciam-se cursos de

paleografia, de sigilografia, de numismática, de filologia, de classificação de arquivos e de

bibliotecas, de geografia histórica, de sistemas monetários de pesos e medidas, de história das

instituições políticas da França, de arqueologia e de direitos canônico, civil e feudal. Para Sá, a

disciplina Classificação de arquivos e bibliotecas foi uma espécie de ponto de partida para os

estudos classificatórios, não somente de arquivos e bibliotecas mas também de museus, na medida

em que as metodologias técnicas de identificação, de classificação e de organização de livros e

documentos possibilitaram estabelecer parâmetros aplicáveis também a moedas, selos, esculturas

e pinturas.

A École du Louvre foi fundada em 1882 com o objetivo possibilitar a instrução do público,

a partir das coleções e do conhecimento sobre elas. Para isso era preciso treinar curadores,

46
Cf. <http://www.enc.sorbonne.fr/presentation-ecole-nationale-des-chartes> Acesso em 12 mar. 2013.
47
SÁ, Ivan Coelho de. As matrizes francesas e origens comuns no Brasil... Op. cit.
48
Cf. <http://www.enc.sorbonne.fr/presentation-ecole-nationale-des-chartes> Acesso em 23 jan. 2014.
49
SÁ, Ivan Coelho de. As matrizes francesas e origens comuns no Brasil... Op. cit. p. 6.
31
missionários e escavadores. Os cursos eram voltados para a disciplina de Arqueologia e incluíam

noções de História da Arte, podendo ser caracterizados como cursos de Arqueologia e Epigrafia.

Em 1920 foi criado o curso de História da Arte e em 1927 o curso de Museologia, considerados no

site da École du Louvre como o primeiro curso de museologia do mundo. 50 Todavia, Sá observa

que, apesar do termo “museologia”, o curso era focado nas questões museográficas, ou seja, na

prática dos museus, principalmente as exposições. Isso revela a preocupação maior que era o

tratamento técnico das coleções, de sua identificação à apresentação ao público. Questões

relativas ao museu enquanto objeto de estudo, como sua função social e as relações dos museus

com os processos de educação e de comunicação eram ainda incipientes, tornando-se somente

anos mais tarde a tônica principal do estudo da museologia. O Museu do Louvre tornou-se, assim,

um eficaz laboratório para os alunos da École du Louvre, dentre os quais Georges Henri Rivière,

que concluiu o curso em 1928 e logo se destacou como museógrafo e museólogo. 51 Este curso do

Louvre exportou para o mundo uma matriz curricular que foi modelo para a formação em

museologia e influenciou o próprio Curso de Museus do MHN, consolidado em 1932, 52 tal como

demonstra Sá:

[…] o programa da disciplina Técnica de Museus originou-se das “lições de


classificação e administração de [...] museus históricos” e das “provas práticas de
descrição e classificação de objetos” previstas para as disciplinas classificatórias
do curso técnico de 1922. Esses conteúdos foram ampliados, mesmo porque, em
1932, o curso de museografia do Louvre já era oferecido há cinco anos e
certamente influenciou o programa de Técnica de Museus. Esta foi a maior
contribuição que o curso de museografia do Louvre trouxe para o curso de
museus de 1932, uma vez que as disciplinas arqueologia e história da arte,
previstas no curso técnico de 1922, sofreram influência direta dos cursos de
arqueologia e de história da arte da mesma École du Louvre. Isto significa que os

50
Cf. <http://www.ecoledulouvre.fr/en/ecole-louvre/history> Acesso em: 23 fev. 2014.

51
Georges Henri Rivière se graduou na École du Louvre em 1928 e durante os anos seguintes trabalhou com a
coleção de D. David-Weill, a qual continha porcelanas chinesas e antiguidades gregas e romanas. Em 1928, tornou-se
vice-diretor de Paul Rivet no Musée du Trocadéro, o qual foi totalmente modernizado e entregue ao público em 1938
como Musée de L'Homme. Entre 1948 e 1965, George Henri Rivière foi o primeiro diretor do Conselho Internacional
de Museus (ICOM), ao qual retornou como conselheiro permanente em 1968. É amplamente reconhecido pela sua
atuação no desenvolvimento dos ecomuseus na França, sendo uma das principais referências na área.
52
SÁ, Ivan Coelho de. As matrizes francesas e origens comuns no Brasil... Op. cit. p. 11.
32
cursos do Louvre influenciaram a nascente formação em museologia no Brasil
em dois momentos: no curso técnico (1922), com as disciplinas arqueologia e
história da arte, e no curso de museus (1932), com a disciplina Técnica de
Museus.53

Apesar do capítulo VI do decreto de criação do MHN prever um curso técnico de museus

com duração de dois anos, cujo principal objetivo era formar oficiais para o MHN e amanuenses

para o Arquivo e a Biblioteca Nacional,54 foi apenas durante a curta gestão do historiador Rodolfo

Garcia (1930-1932) que foi criado o Curso Técnico de Museus. De acordo com o Decreto nº

21.129 de 7 de março de 1932, o curso estava ligado diretamente à direção do Museu, com

duração de dois anos e com o objetivo de habilitar técnicos para ocupar o cargo de 3º Oficial do

MHN.55 Assim, a capacitação dos funcionários do MHN era realizada no próprio Museu, uma vez

que seu decreto de criação especificava estabelecer “[...] um Curso de Museus destinado ao ensino

de matérias que interessam à mesma instituição”.56

O quadro de professores era composto pelos funcionários do MHN, incluindo Gustavo

Barroso, professor de Técnica de museus, Sigilografia, Epigrafia e Cronologia. Os outros

professores eram Rodolfo Garcia e Pedro Calmon, professores de História política e

administrativa do Brasil, Joaquim Menezes de Oliva, professor de História da arte, João Angyone

Costa, professor de Arqueologia aplicada ao Brasil, e Edgar de Araújo Romero, professor de

Numismática.

A primeira turma do Curso de Museus formou-se em 1933 e foi composta por Alfredo

Solano de Barros, Adolpho Dumans, Guy José Paulo de Hollanda, Luiz Marques Poliano, Maria

José Motta e Albuquerque, Maria Luiza Lage, Paulo Olintho de Oliveira e Raphael Martins

53
Id. p. 25
54
ALMEIDA, Cícero Antônio Fonseca de; SÁ, Ivan Coelho de; CHAGAS, Mário de Souza. Projeto de reformulação
curricular do curso de museologia. Elaborado pela comissão de estudos curriculares da Escola de Museologia. Rio de
Janeiro: UNIRIO. Julho/Outubro, 2006. p. 10 [Mimeo].
55
BRASIL. Decreto nº 21.129 de 7 de março de 1932.
56
Id. Ibid.
33
Ferreira. Como o Curso visava formar conservadores para o MHN e instituições análogas, alguns

ex-alunos se tornaram funcionários do MHN, como foi o caso de Adolpho Dumans, Guy José

Paulo de Hollanda, Luiz Marques Poliano e Paulo Olintho de Oliveira.

Assim, os egressos das primeiras turmas, ainda nos anos de 1930 e 1940, tornaram-se

professores e atuaram por várias décadas, formando o que Sá considera como a “segunda geração”

da Museologia no Brasil. São eles: Anna Barrafatto, formada em 1936; Nair de Moraes Carvalho,

formada em 1936; Yolanda Marcondes Portugal, formada em 1937; Octávia de Castro Corrêa de

Oliveira, formada em 1938; Jenny Dreyfus, formada em 1939; José Francisco Felix de Mariz,

formado em 1940; Dulce Cardozo Ludolf, formada em 1941; Gilda Maria de Almeida Lopes,

formada em 1942, e Diógenes Vianna Guerra, formado em 1943.57

O curso passou por uma reforma em 1944 que visava qualificar profissionais para outras

instituições análogas ao MHN e que haviam sido criadas durante as décadas de 1930 e 1940,

sobretudo no âmbito federal.58 No relatório anual de 1944 do MHN, publicado nos AMHN,

volume 5, Barroso queixa-se com o ministro Gustavo Capanema da mudança feita no programa

do curso elaborado e dirigido por ele há 10 anos. O diretor do MHN foi contra três pontos

alterados no currículo do curso, como a mudança da palavra “arquitetura” por “edifício” no nome

das matérias de arquitetura; a colocação da parte técnica de “Classificação de objetos” sob um

novo título – “Elementos do patrimônio histórico e artístico” – e o requisito de essa matéria ser

lecionada antes da parte geral do Curso.

57
ALMEIDA, Cícero Antônio Fonseca de; SÁ, Ivan Coelho de; CHAGAS, Mário de Souza. Projeto de reformulação
curricular do curso de museologia... Op. cit. p. 12.

58
Como a Casa de Rui Barbosa - RJ (1930), Museu da Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência - RJ
(1933), Museu Histórico da Cidade - RJ (1934), Museu Nacional de Belas Artes - RJ (1937), Museu da Inconfidência
- Ouro Preto (1938), Museu da Imperial Irmandade de Nossa Senhora da Glória do Outeiro - RJ (1939), Museu
Imperial - Petrópolis (1940), Museu das Missões - RS (1940), Museu Antônio Parreiras - Niterói (1941), Museu
Histórico de Belo Horizonte (1943), Museu do Ouro de Sabará (1945), Museu da Venerável Ordem Terceira do
Carmo - RJ (1945). Todas estas instituições foram criadas, organizadas ou mesmo dirigidas por profissionais
formados pelo Curso de Museus, o que mostra como o Curso possibilitou uma metodologia de trabalho semelhante
em diversas instituições museais no Brasil.
34
Sinto dizer que é de lamentar que não prevaleça no caso a opinião do professor
da cadeira durante dez anos e seu criador, dum técnico no assunto que pode
provar de público seus conhecimentos, que é, graças a Deus, reconhecido como
tal até pelas autoridades do país, que lhe cometem a honrosa tarefa de dar parecer
sobre uniformes e ministrar conhecimentos sobre armas aos alunos das escolas
militares, que tem obras publicadas a respeito, que há vinte anos classifica
coleções de particulares a pedido destes e que já classificou mais de 12 mil
objetos no Museu Histórico, para que prevaleça a opinião de quem nunca versou,
ensinou ou deu qualquer outra prova de conhecimento na matéria. 59

O curso estruturado até então por Barroso tinha, no primeiro ano, a disciplina Técnica de

museus – parte geral ou noções gerais, que consistia em aprendizados “básicos para o trabalho

em qualquer museu”, como organização de museus, arrumação de museus, classificação de

objetos, catalogação de objetos, restauração de objetos e de monumentos (princípios gerais). No

segundo ano era oferecida a disciplina de Técnica de museus – parte básica ou noções básicas,

que servia de preparo para o conservador entrar na parte especializada, diferente para os museus

de caráter histórico e artístico. Estudavam-se noções de cronologia, epigrafia, paleografia,

diplomática, bibliografia e iconografia. No terceiro ano cursava-se Técnica de museus – parte

especializada, voltada para o treinamento da classificação pormenorizada dos objetos em relação

aos museus de caráter histórico, uma vez que o ensino do terceiro ano para os museus de belas

artes era outro. Assim, o conservador, no terceiro ano, teria que estar apto para classificar a longa

lista de objetos como “documentos, relíquias, objetos de heráldica, bandeiras, condecorações,

armaria, arte naval, viaturas, arquiteturas, mobiliário, indumentária, cerâmica, cristais, ourivesaria,

prataria e bronzes de arte, instrumentos de suplício e mecanismos”.

A disciplina Técnica de museus teve seu nome alterado no projeto para Elementos do

patrimônio histórico e artístico e foi transferida para o primeiro ano do curso. Para Barroso, isso

era inaceitável, uma vez que “ela depende em absoluto do conhecimento das outras que estudarão

depois. É o que se chama ficar de pernas ao ar para andar o carro diante dos bois [...]”, 60 uma vez

que, para ele, essa parte era a mais importante, por ser a mais especializada e técnica no que diz
59
BARROSO, Gustavo. O curso de Museus. Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, v. 5. p. 191-201,
ano 1944. Página citada, 194.
60
Id. p. 195.
35
respeito à correta classificação dos objetos.
Suponhamos um aluno ou o conservador classificando um objeto entrado no
museu. É uma arma e tem inscrições ou punções de armeiro. Os que conhecem o
assunto sabem que estes elementos podem decuplicar o valor do objeto. O
classificador como poderá caracterizar a escrita dessa inscrição ou a forma das
letras do punção, se não tiver as noções básicas de epigrafia e diplomática que
lhe ensinaram a distinguir alfabetos e escritas? O mesmo se dará quanto aos
contrastes de prata e ouro. Como saber se as chamadas letras anuas, que indicam
a data da relíquia examinada, são unciais, góticas, cirílicas, monásticas, etc., sem
aquelas noções diplomáticas e epigráficas? 61

Tendo em vista essa proposta, Barroso sugeriu o seguinte: no 1° ano, Técnica de Museus,

com uma parte geral (organização e arrumação etc.) e uma parte básica (noções de epigrafia,

cronologia etc), no 2° ano, Técnica de Museus, com uma parte especializada (classificação de

objetos de heráldica, armaria, arte naval, arquitetura etc.), no 3° ano, Técnica de Museus, com

uma parte prática.

Sobre a modificação do nome da disciplina História do Brasil para História da Civilização

Brasileira e sobre a inclusão da disciplina chamada Artes Menores, o diretor do Museu fez a

seguinte observação:

Propus o estudo de História do Brasil e nunca o de História da Civilização


Brasileira. Esta designação está hoje condenada pelos cultores da História Pátria.
E, se quiser entendê-la como uma generalização dessa história, é manifesto o erro
de colocá-la no 1° ano, antes da História do Brasil, obrigando o aluno outra vez a
estudar o mais difícil antes do mais fácil. Sem saber a história nos seus fatos,
episódios, personagens e datas, vai filosofar sobre ciclos culturais ou
econômicos, o que não tem cabimento […].

Não vejo motivo técnico para a criação duma cadeira especial de Artes Menores.
Essa parte está incluída na cadeira de História da Arte, como é natural que seja. É
verdade que enquanto o curso teve professores gratuitos e diretor gratuito,
produziu ótimos resultados, até formou discípulos que julgam hoje saber mais
que os antigos mestres, e não provocou interesse, a não ser dos que a ele se
dedicam por amor ao museu. Tratando-se de remunerar esses dedicados
servidores, é natural, é humano que aquele interesse desperte modificações
apressadas, divisões inconsistentes de cadeiras e exibições de pseudo
entendidos.62

Pelo resultado da reforma feita no curso, percebe-se que Barroso conseguiu manter suas
61
Id. p. 194.
62
Id. p. 197.
36
principais reivindicações. Na reforma de 1944, o curso foi dividido em duas seções: de museus

históricos e de museus de belas artes. A disciplina Técnica de museus ficou sendo obrigatória em

todos os anos do curso e em ambas as seções, sendo divida em no 1º ano uma parte geral que “terá

como introdução o estudo básico da cronologia e compreenderá os seguintes tópicos: organização,

arrumação, classificação, catalogação, adaptação de edifícios e noções de restauração”; no 2º ano

uma parte básica que, “terá como introdução o estudo da cronologia e compreenderá as noções

básicas de epigrafia, paleografia, diplomática, iconografia e bibliografia”; no 3º ano, uma parte

aplicada que, “será especializada e constará da aplicação dos estudos feitos nas demais disciplinas

aos problemas inerentes, respectivamente, aos museus históricos e de belas artes”. As disciplinas

foram organizadas da seguinte forma:

Parte geral

1ª Série

1. História do Brasil Colonial;


2. História da Arte (Parte Geral);
3. Numismática (Parte Geral);
4. Etnografia;
5. Técnica de Museus (Parte Geral).

2ª Série

1. História do Brasil Independente;


2. História da Arte Brasileira;
3. Numismática Brasileira;
4. Artes menores;
5. Técnica de Museus (Parte especial)

Parte especial

3ª Série
Seção de Museus Históricos

1. História naval e militar brasileira;


2. Arqueologia brasileira;
3. Sigilografia e Filatelia;
4 Técnica de Museus (Parte aplicada)

37
Seção de Museus de Belas-Artes ou artísticos

1. Arquitetura;
2. Pintura e Gravura;
3. Escultura;
4. Arqueologia brasileira, Arte indígena e Arte popular.
5. Técnica de Museus (Parte aplicada)

Nota-se a manutenção da disciplina Artes menores; contudo, a base do curso montada e

defendida por Barroso foi mantida, com ênfase na Técnica de Museus, que o estruturava. A

disciplina Técnica de Museus foi ministrada por Gustavo Barroso até 1954.63 Ela foi base para o

ensino de museologia que se desenvolveu posteriormente no Brasil até meados da década de 1970,

quando o campo passou por uma série de transformações. O programa era constituído por um

vasto repertório de saberes, abrangendo áreas atualmente chamadas de museologia, museografia e

museologia aplicada. A disciplina sintetizava noções de pesquisa, documentação, preservação,

conservação, educação em museus e comunicação, ou seja, os pilares básicos da museologia

contemporânea.

Em 1946, Barroso publicou o livro Introdução à técnica de Museus como material didático

do curso e que teve bastante influência na formação de diversos museólogos que atuaram no

MHN e em outras instituições. No livro, Barroso apresenta os conhecimentos básicos “necessários

a um verdadeiro conservador”, o que pode ser entendido como um resumo do currículo e do

conceito do Curso de Museus. Publicado em dois volumes, a primeira parte do livro é dedicada ao

processamento técnico de acervo, e a segunda é relativa ao estudo das coleções que compunham o

universo do MHN. Os dois volumes consistem em uma compilação dos conhecimentos de

Barroso e de suas aulas, uma vez que eram utilizados como manual por seus alunos. Tais

conhecimentos incluíam: heráldica, noções de bandeiras, condecorações, armaria, arte naval,

viaturas, arquiteturas, indumentárias, mobiliário, cerâmica, cristais, joalheria, prataria, bronzes

63
Desde 1952, a disciplina Introdução à Técnica de Museus vinha sendo ministrada pela antiga aluna e
conservadora Otávia Correa dos Santos Oliveira.
38
artísticos, mecanismos e instrumentos de suplício.

A ideia do curso era capacitar os conservadores a “lerem” os objetos coletados pelo

Museu, visando à sua classificação. Portanto, as chamadas “ciências auxiliares da história” tinham

um papel fundamental neste trabalho, ainda mais no caso “particular do Museu Histórico

Nacional, que é uma instituição destinada a conservar relíquias do nosso passado”. 64 Tais

conhecimentos eram fundamentais não somente para a classificação dos objetos, mas também no

reconhecimento de sua autenticidade. Das “ciências auxiliares da história”, o conhecimento

heráldico era um dos mais valorizados, a ponto de Barroso afirmar o seguinte:

[...] é meramente impossível dirigir ou prestar serviços técnicos a um instituto no


gênero do Museu Histórico Nacional sem amplos e profundos conhecimentos de
heráldica [...].65

[...] é regra fundamental da heráldica não pôr nunca num brasão metal sobre
metal, cor sobre cor e pele sobre pele. Todas as armas que não obedecem a esse
princípio básico são anteriores à codificação da arte de brasonar, muito antigas,
portanto falsas. Consideram-se por isso sujeitas a inquérito, a um estudo
minucioso, não podendo ser aceitas sem esse exame. 66

A valorização da heráldica como disciplina indispensável para o trabalho nos museus

mostra como a museologia de Gustavo Barroso estava focada nas famílias tradicionais do período

colonial e imperial, assim como nos objetos relativos ao Estado. A correta classificação do objeto

histórico, nessa perspectiva, passava pelo reconhecimento dos elementos heráldicos, sendo sua

classificação um dos pilares do trabalho dos conservadores.

Ao analisar as diferentes reformas do Curso de Museus, percebe-se como as disciplinas de

classificação de objetos estiveram presentes nos diferentes currículos. No currículo de 1944, que

teve vigência até 1966, as “ciências auxiliares da história” eram oferecidas no cronograma da

disciplina Técnica de Museus, porém a numismática tinha um cronograma específico,

64
BARROSO, Gustavo. Introdução à técnica de museus. V. 1. Rio de Janeiro: Olímpica, 1933. P. 14.
65
BARROSO, Gustavo. Introdução à técnica de museus... Op. cit. p. 16.
66
Id. p. 14.
39
possivelmente devido ao importante acervo numismático da instituição. No de 1966, a emissão do

certificado de conclusão ficou condicionada à aprovação em uma avaliação que consistia na

classificação de cinco objetos do acervo do MHN, escolhidos pelo coordenador do curso e pelos

chefes das divisões. O mesmo ocorreu no currículo de 1966, vigente até 1969. No currículo de

1970, as “ciências auxiliares da história” constituíam uma disciplina específica, oferecida no

primeiro ano, sendo no segundo ano oferecidos os cursos de numismática, vidros, cristais e

vitrais, heráldica e genealogia, cerâmica, porcelana e mosaicos.67

Em ofício encaminhado em 24 de maio de 1954 ao Departamento Administrativo do

Serviço Público (DASP), Gustavo Barroso questionou o tratamento diferenciado dado aos

conservadores do MHN e aos naturalistas do Museu Nacional, que, naquele contexto, tinham

salários e rubricas superiores aos dos conservadores do Museu. Barroso, em suas argumentações,

expõe que os trabalhos das duas carreiras são similares, com a diferença de que, enquanto o

naturalista se ocupa das ciências naturais – a Geologia, a Botânica, a Zoologia etc. –, os

conservadores lidam com ciências como a História, a Iconografia, a Paleografia, a Etnografia, a

Numismática, a Biblioteconomia, a Arqueologia e a Diplomática. De acordo com Barroso, o título

de conservador era amplamente usado e conhecido no campo dos museus, contando com

“incontestável prestígio”, ao ponto de haver “relutância dos componentes da carreira em

propugnar sua mudança para designações que têm sido algumas vezes propostas: Técnicos de

Museu, Museólogo ou Museologista”.68 O MHN, portanto, se configurava como um

Conservatório, ou seja, um estabelecimento que visava a propagar uma ciência ou uma arte e

formar especialistas na mesma.

67
Entre 1970 e 1996 houve várias reformas experimentais, especialmente nos anos de 1971, 1972, 1973 e 1974. Em
1975 ocorreu uma reforma efetiva com alterações em 1976 e 1978. Em 1986 ocorreu uma nova reforma no currículo,
assim como em 1996.
68
BARROSO, Gustavo. A carreira de conservador. Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, v. VIII, p.
229-234, ano 1947. p. 233.
40
No Brasil, homens ilustres pelo seu saber, como o Dr. Pedro Calmon, Reitor da
Universidade, os professores Edgard Romero, Angyone Costa e muitos outros
honram-se com o título de Conservadores. O signatário dessas linhas, membro da
Academia Brasileira de Letras e diretor do Museu Histórico Nacional, tem
orgulho de ser o mais antigo conservador do Brasil.69

O Curso de Museus possibilitou a criação das bases conceituais e práticas do trabalho

cotidiano dos conservadores. Os AMHN foram o principal meio de divulgação dessas práticas, e

seus artigos e monografias, principalmente os publicados entre 1940 e 1975, 70 tinham o objetivo

de difundir o acervo, aferir ou criticar sua autenticidade, além de publicizar o trabalho em museus,

tal como podemos ver no texto da conservadora Dulce Cardozo Ludolf, publicado em 1952:

Atualmente a palavra museu não mais designa um simples depósito de


antiguidades. O museu de hoje é um centro de pesquisas. Seus funcionários
esmiúçam a origem, a qualidade e o valor dos objetos, preocupam-se com os
problemas técnicos de sua apresentação e de sua conservação, com a influência
que exercem sobre a educação dos visitantes. Para atender a todos esses
problemas, uma série de especializações se torna necessárias. 71

[...] no âmbito da pesquisa podemos estabelecer dois campos completamente


diversos, ambos importantes. Em primeiro plano, a pesquisa do objeto
propriamente dito, atribuição inerente ao conservador e uma das suas principais
funções. Qualquer peça que entra no museu é devidamente classificada. Esta
classificação demanda uma série de estudos sobre os mais diversos elementos:
onde ela foi feita, em que época, a quem pertenceu, qual é a sua finalidade, a que
estilo obedece etc. [...].72

Ludolf atenta para o fato de que houve uma separação entre as especificidades dos

profissionais dos museus de história e dos museus de história natural. Nestes, eles são

considerados “naturalistas”, enquanto que nos museus históricos e artísticos, “conservadores”. Ao

trabalho dos conservadores ela atribuía um caráter científico, cuja autoridade derivava dos

conhecimentos científicos e técnicos, como a autoridade intelectual de Gustavo Barroso e os

saberes numismáticos de Edgar de Araújo Romero e Luiz Carlos Poliano, por exemplo:

69
Id. p. 231.
70
Corresponde à primeira série dos AMHN. A seriação foi interrompida em 1975 e retomada 20 anos depois, em
1995, sendo publicada interruptamente até os dias atuais.
71
LUDOLF, Dulce Cardozo. A nova diretriz dos museus. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v. XIII,
ano 1952. p. 152.
72
Id. p.193.
41
[...] a atuação dos conservadores é, portanto, cientificamente positiva, daí seu
prestígio nos meios culturais. [...] espera-se [dos conservadores] o conhecimento
da arte e da história, em todas as suas facetas e suas ligações complexas com as
outras ciências; o espírito informativo nas consultas; a paciência e a perseverança
nas pesquisas; o gosto estético nas arrumações; a síntese e a precisão na
elaboração das etiquetas, guias e catálogos.73

A busca pela precisão na classificação do objeto histórico era presente no trabalho

cotidiano da instituição, como afirmou a conservadora Sigrid Porto de Barros, em 1949:

A pesquisa das fontes históricas ou documentos públicos e privados, preconizada


pela Heurística, é parte da vida dinâmica do MHN, e ainda que num trabalho de
divulgação fosse abandonada qualquer pretensão crítica, para limitar-se a uma
simples enumeração de documentos, ainda assim seria prestado algum serviço à
ciência histórica, pois estudiosos de toda parte ficariam sabendo com que
material contariam para suas pesquisas e exatamente em que local o
encontrariam.74

[...] em se tratando de coleções de objetos históricos, quer-nos parecer que o ideal


é obter objetos de autenticidade comprovada. Desde que, uma vez estudada a
origem da peça e a documentação a ela referente, resulte qualquer dúvida que
leve ao emprego da expressão clássica: “atribuído a”, melhor será encaminhar a
peça à seção de reservas, onde se aguardará a confirmação ou não de sua
autenticidade.

A preocupação seguinte será a exposição de objetos, face à absoluta procedência


de fatos históricos. Explicamos: entre um grande óleo de personagem de pequena
relevância histórica e um objeto simples, mas de alta significação pela influência
que exerceu num determinado momento, não há que exitar [sic]: é valorizar o
pequeno objeto por uma boa apresentação estética. 75

Os conservadores do MHN tinham um papel importante na avaliação e na autenticação de

objetos de valor histórico. Pode-se argumentar que, talvez, um dos objetivos de Gustavo Barroso

ao idealizar o MHN era o de que a instituição atuasse como instância autorizada na avaliação de

objetos históricos e antiguidades, espaço ocupado nos dias de hoje pelas casas de leilões,

colecionadores e críticos de arte. No Regulamento da Inspetoria de Monumentos Nacionais 76

73
Id. p. 161.
74
BARROS, Sigrid Porto de. Armas que documentam a guerra holandesa. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio
de Janeiro, v. X, ano 1949. p. 178.
75
Id. p. 180.
76
Primeiro departamento federal de proteção do patrimônio, criado por iniciativa de Gustavo Barroso e que funcionou
como um departamento do MHN de 1934 a 1937. Sobre a trajetória da IMN, cf. MAGALHÃES, Aline Montenegro.
Colecionando relíquias... Op. cit.
42
constava o seguinte artigo: “Art. 82. O Museu Histórico Nacional autenticará os objetos artísticos

históricos que lhe forem apresentados mediante requerimento das partes interessadas e de acordo

com a tabela anexa”. Tal procedimento também é destacado no decreto de criação da instituição,

quando versa sobre as atribuições do diretor:

[Cabe ao diretor] ouvir os chefes de seção sobre a autenticidade e a importância


histórica dos objetos a serem adquiridos e a conveniência da aquisição, ainda que
a título gratuito, todas as vezes que lhe parecer necessário, assim como sobre o
plano de classificação a ser adotado em cada seção ou alterações que este tiver de
sofrer, podendo ouvi-los igualmente sobre qualquer matéria de serviço do Museu;

[Cabe ao diretor] corresponder-se com quaisquer autoridades e solicitar, sempre


que julgar de utilidade, o parecer destas ou de particulares, que tiverem razão
para ser consultados e quiserem prestar esclarecimentos acerca da autenticidade e
importância histórica de objetos a serem adquiridos. 77

Durante as décadas de 1940, 1950 e 1960 era recorrente que os funcionários do MHN

fossem requisitados para atestar a autenticidade de artefatos ou realizar avaliações, principalmente

no campo da numismática, um dos carros-chefe do Museu. Muitos conservadores do MHN são

referência em estudos numismáticos, sendo a disciplina uma das bases da museologia produzida

no MHN, inclusive nos dias de hoje, momento em que a direção da instituição vangloria-se da sua

vasta coleção, considerada a maior da América Latina. Publicou inclusive, em 2011, a Silloge

Nummorum Graecorum Brasil I, sob a coordenação da numismata Maricí Martins Magalhães, um

dos catálogos numismáticos mais reconhecidos mundialmente. A tradição numismática no MHN

remete à atuação de conservadores como Edgar de Araújo Romero, Yolanda Marcondes Portugal,

Dulce Ludolf, Jenny Dreyfus, Fortunné Levy, Luís Marques Poliano, Alfredo Solano de Barros,

Antônio Pimentel Wins e, mais recentemente, Rejane Maria Lobo Vieira, Eliane Rose, Maricí

Martins Magalhães, entre outros. Cabe ressaltar que a numismática tem uma relação importante

com a valoração das coleções de cunho histórico. Como observa Arnaldo Momigliano, o trabalho

dos numismatas foi importante na organização de cronologias históricas e como fonte primária

77
BRASIL. Decreto Nº 15.596, de 2 de agosto de 1922.
43
para uma escrita da história política, religiosa e militar.78
Deste modo, era recorrente que funcionários do MHN fossem requisitados para dar parecer

sobre coleções e objetos, como em 1947, quando a conservadora Dulce Ludolf foi convidada para

apreciar na Bahia uma moeda de ouro, datada de 1855, e pertencente a Armando Goes de Araújo.

O exemplar pertencera inicialmente ao tio, Inocêncio Marques de Araújo Goes, advogado,

deputado pela Bahia e presidente da Província de Pernambuco. A análise de Dulce Ludolf segue o

padrão encontrado em outros trabalhos realizados pelos conservadores da instituição:

[...] os tipos de anverso e reverso correspondem aos adotados nas moedas do


terceiro sistema monetário, terceiro tipo, de D. Pedro II (1853-1889). Falta,
porém, no reverso a legenda IN HOC SIGNO VINCES, comum em todas as
moedas daquela série, que foi substituída pela inscrição DEOS PROTEGE O
BRAZIL, gravada no bordo, que é liso não serrilhado, como ocorre nas outras
peças.

Esta particularidade é importante de se registrar, pois a inscrição no bordo de


moedas é um fato nunca verificado nos exemplares que integram nosso sistema
monetário, principalmente tratando-se das séries de ouro, que são sempre
serrilhadas.79

A moeda, de acordo com o proprietário, era exemplar único, visto que ele não encontrou

nenhuma informação na Casa da Moeda, o que o levava a crer que a cunhagem constituísse num

ensaio não aprovado, o que se evidenciava pelo fato de não haver vestígios de circulação na

moeda em questão. No entanto, Ludolf escreve ter encontrado um documento inédito que revelava

as circunstâncias de sua cunhagem. O documento mencionado por Ludolf é uma ata de uma visita

que D. Pedro II realizou à Casa da Moeda em 1855 para assistir aos primeiros trabalhos de uma

prensa monetária construída por operários brasileiros. Durante a visita foram cunhadas 50 moedas

de ouro para mostrar ao imperador o funcionamento da prensa e ao mesmo tempo homenageá-lo.

A descrição das moedas citadas no documento encontrado por Ludolf confere com a análise da

78
MOMIGLIANO, Arnaldo. The Classical foundations of modern historiography. Berkeley, Los Angeles: University
of California Press, 1990.
79
LUDOLF, Dulce. Exemplar único de uma pequena cunhagem. Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro,
v. 8, ano 1947. p. 74-75.
44
moeda da Bahia. O documento informa que D. Pedro ficou com quatro exemplares (dois de ouro e

dois de prata), sem mencionar o que foi feito com os demais. Assim conclui Ludolf:

Fica assim esclarecido o porquê e em que circunstâncias se efetuou a cunhagem


da moeda rara que estudamos e para a qual não houve determinação expressa em
lei, uma vez que não se destinava à circulação.

Cunhada na presença de D. Pedro II, para demonstrar o funcionamento da nova


prensa a vapor, dela tiraram-se apenas 50 exemplares, dois dos quais lhe foram
oferecidos.

É, pois, sobretudo, uma peça de fantasia, proveniente de cunhagem toda


especial, para agradar ao soberano em sua visita à Casa da Moeda. [...]. 80

A conservadora ainda procurou informações com os membros da família real, com o

intuito de saber o destino dado aos outros exemplares, contudo nada encontrou.

A pesquisa realizada pela numismata mostra outra faceta do trabalho dos conservadores do

MHN: a busca por indícios que possibilitem o reconhecimento da procedência dos objetos

estudados. Tais informações agregam valor aos objetos em coleção, permitindo, no caso, a Ludolf

afirmar que sua descoberta reveste a moeda “de importância histórica e maior valor”, ainda mais

que no campo numismático, onde a raridade é um elemento de valoração (e de valorização).

As compras realizadas pela instituição também contavam com pareceres técnicos dos

funcionários, que, além de atestar e pesquisar o valor dos objetos, recomendavam ou não a

efetivação do negócio. Uma citação exemplar disso ocorreu em 3 de novembro de 1960, quando a

chefe da Divisão de Numismática e Sigilografia, Yolanda Marcondes Portugal, encarregou o

conservador Antônio Pimentel Winz de negociar com Yeddo Afonso Moutinho de Solano Barros a

compra de medalhas81 para integrar o então recém-criado Museu da República, que na época

funcionava como um departamento do MHN. O parecer foi favorável à compra, apresenta 20

medalhas “constituídas por peças de grande raridade”:


80
Id. p. 77. [Grifo da autora].
81
Cabe ressaltar que, tradicionalmente, o estudo de medalhas (medalhística) não faz parte do universo da
numismática, todavia, devido à influência do Arquivo Nacional da França, que juntava as duas tipologias de acervo,
optou-se por fazer o mesmo no MHN.
45
Avulta entre esses a série de 14 medalhas de presidente da república de autoria do
célebre gravador Augusto Giorgio Girardet, já falecido, que assim, completa, é
uma da poucas conhecidas. Foi trabalho dos últimos anos de sua vida a medalha
do presidente Dutra, derradeira da série. O preço de cada medalha e da série de
medalhas, indicado por seu proprietário está de acordo com o preço pelo quais
são vendidos em geral exemplares raros em leilões e casas especializadas. A
grande procura por medalhas brasileiras pelos colecionadores e pelos museus
recentemente fundados, para suas coleções, tem tornado tais objetos raros no
mercado. O bom estado de conservação das medalhas desse conjunto, além das
qualidades acima referidas, recomendam sua aquisição. 82

Os pareceres sobre autenticidade histórica de objetos emitidos pelos conservadores do

MHN englobavam um vasto universo de objetos. Em 1960, foi encaminhada uma carta ao MHN

por Juvenal Martins Fagundes solicitando a avaliação de um violino de sua propriedade. A

correspondência foi respondida pela conservadora Octávia Corrêa dos Santos Oliveira, na época

chefe da seção de História e Arte Retrospectiva, que “não sendo propriamente especializada na

parte de música e seus instrumentos”, informou que poderia prestar esclarecimentos no que se

referia à parte histórica do objeto. Na primeira correspondência, a conservadora escreveu que seria

complicado autenticar o violino sem ver o objeto presencialmente.

[...] uma instituição como a nossa ou outra qualquer especializada no assunto, tal
seja a Escola Nacional de Música, não poderá garantir a autenticidade da peça,
sem um exame rigoroso que salvaguarde sua responsabilidade. 83

Em outra correspondência, escrita após uma avaliação física do objeto, a conservadora

emitiu o parecer transcrito, em parte, abaixo:

Confirmando tudo o que foi dito na nossa primeira correspondência, que só à


vista do objeto poderíamos emitir qualquer conceito ou parecer, passamos a
declarar o seguinte: o ano que consta ou que se pode ver pelo ouvido de seu
violino em forma de S ou F, está perfeitamente enquadrado na época em que
viveu Stradivari, porém logo abaixo vêm as palavras: faciebat e made in
Czechoslovakia.

Faciebat: imperfeito do verbo latino faciere, isto é fazer, fazia. 2º)


Czechoslovakia é um país de criação recente (1918) embora oriundo de estados e
municípios antiquíssimos [...]. Portanto, esse made em inglês significando “feito”
– de emprego e uso modernos – in Czechoslovakia, quer dizer feito na
Czechoslovakia. Isso leva a crer que seu violino, perfeito do ponto de vista

82
MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Correspondência. Ofícios expedidos. Jan. a Jun. 1960. AS DG2 13(3).
83
MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Correspondência. Ofícios expedidos. Jan. a Jun. 1960. AS DG2 13(3).
46
técnico, tenha sido feito por um artista tcheco, que tivesse querido dar a seu
violino as formas perfeitas e qualidade preciosas de um Stradivarius, teve, no
entanto, a honestidade de acrescentar “made in Czechoslovakia”. Pela
informação que o sr. Juvenal nos dá, ousamos acrescentar que seu Stradivarius é
uma imitação, porquanto em nenhuma parte do mundo, possuidor que tivesse um
“Stradivarius” legítimo, iria acrescentar made in Czechoslovakia que anulasse o
valor inestimável de seu instrumento.84

O curioso dessa avaliação é que, ao mesmo tempo em que revela uma “ingenuidade” de

Juvenal Fagundes em não identificar algo tão óbvio em seu instrumento, aponta para a força das

inscrições nos objetos. O violino em questão poderia ser original, mas a simples inscrição made in

Czechoslovakia anularia o valor “inestimável” do instrumento. Pode-se argumentar também sobre

o que teria acontecido se o violino fosse realmente falso, porém sem a inscrição, uma vez que,

segundo a conservadora, o violino era “perfeito do ponto de vista técnico” e “o ano que consta ou

que se pode ver pelo ouvido de seu violino em forma de S ou F, está perfeitamente enquadrado na

época em que viveu Stradivari”.

Constantemente os conservadores produziam críticas sobre o próprio acervo da instituição,

o que é interessante, pois muitas vezes tais críticas significavam a desvalorização de objetos, já

que acabavam por negar a autenticidade de determinado artefato ou obra de arte. Nessas críticas,

os conservadores, além do seu próprio conhecimento, mobilizam outras autoridades e fontes para

suas análises, geralmente historiadores consagrados, críticos e documentação de época.

Esse é o caso do texto de Gustavo Barroso sobre os objetos conhecidos como as “Traves

da forca de Tiradentes” presentes nas coleções do MHN desde os primeiros meses após a sua

fundação. As traves eram originalmente parte do acervo do Museu Nacional e foram transferidas

para o MHN em 1922. Eram sete as traves e, com a criação do Museu da Inconfidência, duas

foram cedidas àquela instituição.

A descoberta das traves foi noticiada no jornal A República em 1893, momento de

afirmação do regime republicano e de construção dos elementos simbólicos de canonização de


84
MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Correspondência. Ofícios expedidos. Jan. a jun. 1960. AS DG2 13(3).
47
Tiradentes, como, por exemplo, os quadros “O Martírio de Tiradentes” (1893), de Aurélio de

Figueiredo, e “Tiradentes Esquartejado” (1893), de Pedro Américo. Pelo visto, as traves já foram

tratadas como relíquias históricas desde que foram encontradas, tendo, portanto, por destino

“natural” o Museu Nacional.

O artigo publicado em 1941 nos AMHN por Barroso destaca como elemento de

comprovação de autenticidade o seu tamanho, pois as traves da forca em que Tiradentes foi

executado eram maiores que as usuais. Barroso apoia sua análise no livro A História da

Conjuração Mineira, de 1873, de Joaquim Norberto de Souza Silva. O trabalho de Joaquim

Norberto foi feito tendo por base os Autos da Devassa, documentos encontrados pelo próprio

Norberto, e outros documentos até então desconhecidos. Trata-se das Memórias do êxito que teve

a conjuração de Minas e dos fatos relativos a ela acontecidos nesta cidade do Rio de Janeiro,

desde o dia 17 até 26 de abril 1792, de autor desconhecido, e Os últimos momentos dos

inconfidentes de 1789 pelo padre que os assistiu de confissão, de Frei Raimundo Penaforte.

Nesses documentos encontram-se essas referências sobre o tamanho das traves. Primeiro, a partir

da Sentença da Alçada e de Penaforte:

Para que estas execuções se fizessem mais comodamente, mandaram que no


campo de São Domingos se levantasse uma forca mais alta do que de ordinário.
[...] Para conter o povo em sua curiosidade de ver o réu estendia-se em alas pela
Rua da Cadeia e pelo Largo da Carioca e pela rua que tem hoje esse nome e
prolongava-se até o campo da barreira de Santo Antônio, chamado então da
Lampadosa ou S. Domingos, o regimento Moura sob comando do coronel José
Vitorino Coimbra. Três regimentos mais, o de Estremoz, e o 1º e 2º de
granadeiros do Rio, formavam em triângulo regular, dando as costas para o
centro, no qual estava a elevadíssima forca cuja escada numerava mais de vinte
degraus.85

Em Os últimos momentos dos inconfidentes de 1789 pelo frade que os assistiu de

confissão, Penaforte diz ainda que “Os demais regimentos estavam postados em figura triangular,

deixando uma praça vazia, na qual estava a forca elevadíssima, de sorte que a escada, por onde se

85
SOUSA SILVA, Joaquim Norberto. História da conjuração mineira. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1948. p.
120. p. 134.
48
subiria a ela, tinha mais de vinte degraus [...]”.86

Outro argumento em favor da autenticidade das traves presente no texto de Barroso é o

local onde foram encontradas: o calabouço do antigo Aljube. Os eclesiásticos tinham foro

privilegiado no período colonial e, caso condenados por algum crime, eram encarcerados no

Aljube, então administrado pela Igreja. A prisão foi construída em 1732 ao pé do morro da

Conceição (Rio de Janeiro, RJ), abaixo do Palácio Episcopal (hoje ocupado pelo Serviço

Geográfico do Exército), próximo à junção da rua da Prainha (atual rua do Acre) e rua da Vala

(atual rua Uruguaiana). Em 1808, em decorrência da chegada da Corte, o Aljube foi requisitado

pelo Estado e utilizado como prisão comum de 1808 até 1856.87

O “circunspecto historiador” Vieira Fazenda também está presente no texto de Barroso

como autoridade que pode autenticar o objeto:

A procedência do antigo Aljube é definitiva para autenticar a forca de Tiradentes.


A propósito diz Vieira Fazenda, circunspecto historiador, em “Antiqualhas e
Memórias do Rio de Janeiro”, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, vol. 140, pág. 103: “Em fins do século findo, as execuções capitais
eram feitas no largo da Prainha, Capim e principalmente Largo do Moura,
ficando por alguns dias os esteios dos célebres barracões de madeira pertencentes
ao negociante Diogo Manuel de Faria. Daí eram removidos ao Aljube. Li algures
que há poucos anos foram encontrados os restos da forca em um subterrâneo
dessa antiga prisão. Eles deverão figurar no Museu Nacional. 88

Antiqualhas e memórias do Rio de Janeiro é uma coletânea de pequenos artigos

publicados por Vieira Fazenda na imprensa e depois reunidos no volume 140 da Revista do IHGB.

Destes textos, vários foram dedicados ao tema da Inconfidência, especialmente a Tiradentes. Vale

observar que muitos artigos têm como preocupação principal buscar determinadas precisões

históricas como o local do patíbulo ou a data exata da execução. Em outro, Vieira questiona a

86
Id. p. 158.
87
HOLLOWAY, Thomas. O calabouço e o Aljube do Rio de Janeiro no século XIX. In: NUNES, Clarissa et al., (Org.)
História das prisões no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. v. 1, pp. 253-282.
88
BARROSO, G. A forca de Tiradentes. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v. 2, ano 1941, p. 341-
349. p. 348.
49
validade de depoimentos de idosos, testemunhas oculares da execução de Silva Xavier, ainda

vivas em finais do século XIX. O artigo começa com uma intrigante memória:

Em curiosa missiva, dirigida, há dias, a esta folha por gentil e ilustrado


cavalheiro anônimo, lemos: “no primeiro quartel do século XIX, existia uma
mulher na antiga rua dos Ciganos, que contava ter visto, por muito tempo, os
destroços do patíbulo do proto-mártir da República. Destacavam-se os paus da
forca na área fronteiriça do edifício do Tribunal do Júri, ao fim da rua dos
Ciganos. Essa mulher residia nas imediações próximas à rua do Núncio, e
mencionava ainda que o rapazio vadio muito por ali andava à caça de um ninho,
que os pássaros fizeram no extremo de um dos paus, que com o tempo
apresentava larga concavidade, onde a passarada se ocultava.” 89

Vieira Fazenda, então, recorda-se da forca do Museu Nacional: “Como, perguntaremos,

conciliar essa narração com o fato que nos foi referido, de existirem no Museu Nacional os restos

da forca em que foi supliciado Silva Xavier?” 90 Para complicar ainda mais a questão, menciona

outras informações que negam a autenticidade das traves do Museu Nacional:

A mesma confusão reina quanto ao destino das vísceras do infeliz inconfidente:


dizem uns haverem sido inumadas no próprio local da execução; outros, que isso
se realizou no cemitério da Lampadosa; aqueles referem que os restos da vítima
foram queimados conjuntamente com a forca [...]. E tudo vem por intermédio da
tradição popular, transmitida por boca de indivíduos contemporâneos! 91

Independentemente do caráter autêntico ou não das traves da forca de Tiradentes, sua

musealização vincula-se à autoridade daqueles que escreveram sobre o suplício do inconfidente,

como o próprio Gustavo Barroso, Vieira Fazenda e Joaquim Norberto, que acabaram por se inserir

também no processo de canonização de Tiradentes, através de uma vasta produção bibliográfica e

iconográfica. Quanto à dimensão cívico-religiosa assumida pelo objeto, cabe ressaltar que, quando

havia a Sala Tiradentes no MHN, as pessoas levavam “pedacinhos” da forca até que a “Pretoria do

MHN [...] teve que tirar a forca de Tiradentes da exposição pelo assédio dos visitantes, ávidos por

89
FAZENDA, Vieira. Antiqualhas e memórias do Rio de Janeiro. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. Rio de Janeiro, tomo 86, v. 140, p. 222-228, 1919. p. 214.
90
FAZENDA, Vieira. Antiqualhas e memórias do Rio de Janeiro... Op. cit. p. 214.
91
Id. p. 214.
50
Figura 1: Traves da forca de Tiradentes. Acervo MHN. Reserva Técnica do MHN.

pedacinhos para a confecção de relíquias”.92

Outro objeto cuja autenticidade é questionada, também pelo próprio Barroso, é o artefato

conhecido como “aldrava da casa de Marília de Dirceu”. O acessório foi coletado pelo próprio

Gustavo Barroso, ao se deparar com a precária situação física da casa em Ouro Preto. O gesto,

segundo François Choay, de arrancar aos monumentos fragmentos para compor coleções privadas

era uma atitude praticada pelos antiquários, que, pautados por outros padrões de conservação,

costumavam guardar consigo partes de objetos considerados relíquias.93

Ao retirar a aldrava, Barroso teve a cautela de produzir uma ata de autenticação, de modo a

legitimar o ato. Vale observar que, dos oito signatários da ata, o único civil a assinar foi o próprio

Gustavo Barroso, o que indica, talvez, que ele quisesse dar também legalidade à ação por

92
BRASIL. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, Dicop, Ficha Histórica, n. 024.970, n. do catálogo, 3823.
93
CHOAY, Françoise. Alegoria do patrimônio. São Paulo: Unesp, 2006. p. 89-90.
51
meio da autoridade dos militares, todos do oficialato. Na ata consta também a retirada de uma

Figura 2: Aldrava, século XVII, retirada da Casa de Marília


por Gustavo Barroso em 1926.
Acervo do MHN.

pedra do Morro da Queimada, local relacionado à revolta de Felipe dos Santos, ou de Vila Rica.

Vejamos a transcrição do documento:

Ata de autenticação duma aldrava de bronze da porta de entrada da casa de


residência de d. Maria Dorothea de Seixas, conhecida na nossa história como
Marília de Dirceu, e duma pedra retirada das ruínas do povoado de Paschoal de
Minas [...], mandado incendiar pelo Conde de Assumar, local hoje conhecido
como Morro da Queimada.

Aos trinta e um dias do mês de agosto do ano de mil novecentos e vinte e seis,
nesta cidade de Ouro Preto, no bairro de Antônio Dias, na soleira da casa de
residência de Marília de Dirceu, em nossa presença, pelo Dr. Gustavo Barroso,
diretor do Museu Histórico Nacional, foi dito que, atendendo ao estado de ruína
desse edifício, tão ligado ao nosso passado, e receando que numa jurisprudência
pelos meios legais seria talvez tardia devido ao afindissimo [sic] do respectivo
prédio, resolvia retirar, para ser recolhido ao museu que dirige, a aldrava da porta
principal [...]. A aldrava é uma peça de bronze trabalhado, mostrando [...] as
características do estilo barroco-colonial, sendo certo se tratar da que sempre
serviu a essa porta. Declarara mais os presentes que pelo mesmo Dr. Gustavo
Barroso foi retirado no morro da Queimada [...] das minas duma das casas do
arraial de Paschoal de Moraes [...] mandado incendiar e destruir pelo Conde de
Assumar, uma pedra, que recolhemos como sendo a mesma que a esta
acompanha.

52
Peço que se lavre a presente ata que vai devidamente assinada e rubricada.

Ouro Preto, trinta e um de agosto de mil novecentos e vinte e seis.

Gustavo Barroso - diretor do MHN

Coronel [nome ilegível]

Major José [sobrenome ilegível]

Capitão Evaristo Jaques da Silva

Capitão Tenente [nome ilegível]

Capitão Tancredo [sobrenome ilegível]

Capitão Tenente [nome ilegível]

2º Tenente José Moreira Maria (da Armada). 94

Barroso afirma que “todos” que escreveram sobre Ouro Preto se referiam àquele

edifício singelo e vasto, de biqueira, que se erguia acima da pequena esplanada dominadora,

além da famosa ponte romana, como sendo a verdadeira residência da noiva de Tomás Antônio

Gonzaga. A identificação daquela casa como sendo a de Marília é indicada pelas próprias liras

de Gonzaga:

Entra nessa grande terra,


Passa a primeira ponte,
Passa a segunda e terceira:
Tem um palácio defronte.95

No entanto, a autenticidade da aldrava é questionada “dolorosamente” pelo próprio

Barroso:

[...] visitando, uma noite, em sua residência, o ilustre professor Baeta Neves,
prefeito da cidade, tive dolorosa surpresa. Estava eu em companhia do meu
amigo Odorico Neves e ouvi do provecto mestre que a Casa de Marília não
passava duma lenda. Talvez ela tivesse existido ali; mas aquela que toda a gente
considerava como tal era muito mais moderna e tinha sido erigida pelo Barão de
Ouro Branco.
Comentando com outro amigo, no dia seguinte, [...] tive o prazer de travar
94
BRASIL. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Dicop. Ata de autenticação. 024.970, n. do catálogo, 3823.
documento 2.
95
GONZAGA, Tomás Antônio. Marília de Dirceu, Lira XXXV. São Paulo: Ediouro, s.d.
53
relações com um jovem engenheiro, o dr. Jerson Dias, [sic] que fora encarregado
da triste demolição. Disse-me ele julgar não se tratar mesmo da casa de Marília,
pois encontrara ripas e madeiramentos das taipas, pregos modernos, desses de
maço, fabricados recentemente. Ora, se se tratasse de moradia construída nos
tempos coloniais os pregos deveriam ser de forja, pois eram os únicos usados
naquela época.96

A análise do engenheiro sobre os pregos encontrados é um elemento que podia colocar

em dúvida a autenticidade da casa e, portanto, da aldrava. Outras autoridades, como

historiadores, críticos e eruditos, deviam, de acordo com Barroso, se prestar a analisar o caso e

a definir se a casa demolida foi ou não de Marília.

Não tenho competência para afirmar se a casa que foi posta abaixo foi ou não a
autêntica da noiva de Gonzaga [...] Embora me faleçam os meios de tomar parte
na mesma, julgo que os historiadores, críticos e eruditos mineiros devem se
ocupar do caso, ventilá-lo, decidir de vez se a casa demolida era ou não a de
Marília.97

A contestação de autenticidade também se faz presente no artigo publicado nos AMHN,

em 1941, por Menezes de Oliva, ao estudar as pinturas conhecidas como “Ovais de Leandro

Joaquim”. O conservador sustenta sua argumentação tendo por base informações levantadas por

historiadores de arte e críticos como Gonzaga Duque, Araújo Porto Alegre, Nair Baptista e Argeu

Guimarães, que consideram que a morte de Leandro Joaquim tenha ocorrido por volta de 1798.

Apesar de essa datação não ser precisa, o curador afirma que não há nenhum indício de obras de

Leandro Joaquim executadas depois de 1800, de modo a questionar:

[...] como atribuir, portanto, ao artista fluminense a autoria dos seis ovais
pertencentes ao Museu Histórico Nacional, se, pelo menos três deles registram
acontecimentos que se ligam à chegada da família real ao Brasil? O primeiro
representa a chegada do príncipe regente ao Rio de Janeiro, em 1808. Os navios
ingleses fundearam diante de Villegagnon, onde os franceses, chefiados por
Nicolas Durand de Villegagnon, haviam lançado os fundamentos da França
Antártica, e salvam ao pavilhão de S.M. Fidelíssima. Ao fundo a Fortaleza da
Laje.
O segundo documenta a Revista Militar no largo do Paço, em honra ao príncipe
regente D. João, em 13 de maio de 1808, primeiro aniversário que S.M.
96
BARROSO, Gustavo. Documentário da ação do Museu Histórico Nacional na defesa do patrimônio tradicional
nacional. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v. 4, ano 1994, p.5-201. Página citada, 16.
97
BARROSO, Gustavo. A casa de Marília. Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, v. 5, p. 14-17, 1944.
p. 15-16.
54
comemora no Brasil. [...]
O terceiro mostra uma festa veneziana em honra aos soberanos portugueses
diante do Hospital dos Lázaros (Antiga Casa dos Jesuítas), 1818. [...]
Os 4º, 5º e 6º representam na verdade cenas e panoramas que bem podiam ser
feitos em época anterior a 1800: Pesca da baleia na Baía de Guanabara; a igreja e
a praia da Glória, a lapa do Desterro, os arcos de Santa Tereza; e a lagoa do
Boqueirão, que o vice-rei Dom Luís de Vasconcellos fez aterrar e transformar em
passeio público em 1783.
Mas o olhar menos experimentado logo dirá, num ligeiro confronto, que todos
eles foram pintados pelo mesmo artista, dentro da mesma técnica e com o mesmo
emprego das tintas. É palpite e palpite errado atribuir, por conseguinte, a Leandro
Joaquim a autoria dos seis painéis ovais que ornam a Sala D. João VI do nosso
Museu Histórico Nacional e que foram adquiridos por intermédio da antiga
galeria Jorge, em Portugal.98

Em 2003, procedimento semelhante foi utilizado pelos técnicos do MHN Jorge

Cordeiro de Melo e Norma Botelho Portugal, ambos museólogos e formados pelo Curso de

Museologia da Unirio, em 1981 e 1983 respectivamente. 1970. Em artigo publicado nos

AMHN e intitulado Atribuição ou autoria? Os ovais de Leandro Joaquim, eles reafirmam a

autoria dos referidos ovais por Leandro Joaquim, tendo por base os estudos realizados por

Gilberto Ferrez em Iconografia do Rio de Janeiro 1530 – 1890. Catálogo analítico:99

Concorrem para isso não apenas a seriedade técnica e científica do autor


[Gilberto Ferrez] no trato dos tais assuntos, como a procedência e exatidão lógica
dos seus argumentos. [...] principia ele por citar a opinião de Francisco Marques
dos Santos, em estudo publicado em 1938, no qual o autor não hesita em afirmar
que “quadro oval só Leandro Joaquim pintou naquela época”. Este argumento
estaria neutralizado se de fato desses [sic] ovais houvessem sido pintados “após a
morte do artista que se deu, quase com certeza, em 1798”, como quer Menezes de
Oliva, que externa essa opinião taxativa em seu artigo “Os falsos painéis de
Leandro Joaquim” [...].
[para Gilberto Ferrez] “é obvio que os painéis foram pintados pelo mesmo artista
e para o mesmo lugar” e não cremos que fossem executados em épocas tão
diversas e tão afastadas, como quer Menezes de Oliva. Para Oliva, três dos ovais
seriam de fato anteriores a 1800, mas dois seriam de 1808 e o último, de 1818.
Ocorre, entretanto, que ainda segundo Ferrez, os pavilhões onde se encontravam
originalmente os painéis, no passeio público, já haviam sido demolidos em 1817,
após o desabamento da muralha do terraço pala ação do mar. Com toda a certeza,
se o quadro da Festa “Veneziana – Romaria marítima diante do Hospital dos
Lázaros” representa uma cena ocorrida em 1818, “o artista não iria pintá-la para
um local que já não existia”.
98
OLIVA, Menezes de. Os falsos painéis de Leandro Joaquim. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v.
I, 1940. p. 38.
99
FERREZ, Gilberto. Iconografia do Rio de Janeiro. 1530-1890. Catálogo analítico. V. 1. Rio de Janeiro: Casa
Editorial, 2000.
55
O autor [Gilberto Ferrez] cita ainda um estudo de José Wasth Rodrigues, que a
partir de análise dos uniformes dos soldados representados no quadro “Terreiro
do (Revista Militar no) Largo do Carmo”, afirma que tal fardamento é anterior a
1808. Acrescenta ainda Wasth Rodrigues, que a “Cena Marítima” também não
deve-se [sic] referir-se à chegada da esquadra portuguesa que trazia o príncipe
regente d. João, pelo fato de ver-se apenas um navio português recebendo salva
de cerca de vinte e dois navios ingleses. Se de fato a cena representasse a
chegada da família real ao Rio, seria muito mais lógico e razoável que ali
estivesse representada a esquadra portuguesa, embandeirada festivamente, junto
com os navios ingleses, e com as fortalezas engalanadas cumprimentando o
estandarte real com uma salva de vinte e um tiros, na deliciosa descrição de Luís
Gonçalves dos Santos, dito Padre Perereca, em suas “Memórias para servir à
história do reino do Brasil”.
Quanto à “Revista militar no Largo Carmo” (que no MHN recebeu o nome de
“Revista militar no largo do Paço”), [...] o raciocínio de Ferrez é também
esclarecedor: se a festa fosse, como sustenta Oliva, uma parada em homenagem
ao príncipe regente d. João, é manifesto que a personagem real estaria ali
figurada, e o séquito seria muito mais numeroso que o relativamente pequeno
grupo de personalidades que ali recebe a homenagem militar. Ferrez aduz
algumas hipóteses para explicar o tema: inauguração do novo chafariz do mestre
Valentim, com a remodelação da praça; recepção da oficialidade da frota
mercante que iria fundar Sidney, cujo comandante era o almirante Arthur Philip,
amigo íntimo do vice-rei Luis de Vasconcelos e Sousa. Argumento semelhante
maneja Ferrez na análise da “Romaria Marítima diante do Hospital dos Lázaros”,
único documento iconográfico de uma procissão marítima no Rio de Janeiro
daquela época, e que pelas construções e acidentes geográficos ali representados,
não poderia ter ocorrido após 1818. [...]
Mas o argumento definitivo quanto à autoria de Leandro Joaquim está, ao nosso
ver, na conclusão de Ferrez: “todos foram pintados na mesma época – a técnica é
absolutamente idêntica em todos eles – para um determinado lugar. 100

Nas duas críticas publicadas nos AMHN, os autores Menezes de Oliva, Jorge Cordeiro e

Norma Portugal utilizaram autoridades reconhecidas no campo para afirmar a autoria dos quadros.

O argumento principal utilizado pelos técnicos baseia-se, como visto, no estudo do renomado

especialista Gilberto Ferrez, concorrendo para isso sua “seriedade técnica e científica”. No

entanto, ambas análises completam-se tendo por base o reconhecimento visual das pinturas. Além

da mobilização de provas documentais, há o olhar treinado do especialista que possibilita o

argumento definitivo sobre a autoria: “visivelmente todos foram pintados na mesma época”,

argumento utilizado por todos os envolvidos na questão dos ovais de Leandro Joaquim.

Jorge Cordeiro e Norma Portugal, a partir da análise supracitada, propuseram uma

100
MELO, Jorge Cordeiro de; PORTUGAL, Norma Botelho. Atribuição ou autoria? Anais do Museu Histórico
Nacional. Rio de Janeiro, v. 35, ano 2003. p. 277.
56
normatização dos títulos das obras, que apresentavam diferentes grafias. Ambos identificaram

os diferentes títulos atribuídos às pinturas em publicações, em catálogos, em etiquetas e na

documentação museológica sob guarda do MHN. Pelo levantamento feito, percebe-se que

tanto o reconhecimento da autoria (confirmada pela autoridade de Gilberto Ferrez) como o

olhar do especialista foram determinantes para a proposta de normatização dos títulos das

pinturas.

No oval, em 2003, intitulado “Cena Marítima” atribuíram-se os seguintes títulos:

“Visita de uma esquadra inglesa ao Rio de Janeiro”; “Visita de uma frota inglesa ao Rio de

Janeiro”; “Chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro”; “Chegada do príncipe regente ao

Rio de Janeiro”. O título sugerido pelos técnicos para a normatização dos dados museológicos

foi “Visita de uma esquadra inglesa ao Rio de Janeiro”. Esse título, segundo eles, tornar-se-ia

adequado, pois “os dados visuais representados são bastante claros. Certamente representava

uma esquadra inglesa que aportava no Rio de Janeiro, em demanda da Índia, durante a guerra

contra os franceses que terminou em 1781. A obra reproduz navios de linha claramente

identificados pelo pavilhão da esquadra inglesa chamada The Red Fleet”.

O oval intitulado “Procissão marítima – Hospital dos Lázaros”, apresentava os

seguintes títulos: “Festa veneziana em honra a D. João VI”; “Procissão ou romaria marítima ao

Hospital dos Lázaros”; “Festa veneziana”; “Festa veneziana em honra ao Príncipe Regente”;

“Romaria marítima diante do Hospital dos Lázaros”. A sugestão de títulos dos técnicos foi

“Procissão marítima diante do Hospital dos Lázaros, no Rio de Janeiro”. Segundo a

argumentação deles, “o objeto apresenta dados visuais que permitem uma interpretação

relativamente segura quanto ao local e logradouro representado, embora não precisa no que

diz respeito à datação”.101

101
Id. p. 286.
57
Já o oval intitulado “Revista militar no Largo do Paço” tinha os seguintes títulos:

“Revista militar do Largo do Paço, em honra ao príncipe D. João, a 13 de maio de 1808”;

“Revista militar no Largo do Carmo”; “A revista militar no Largo do Paço”. Os técnicos

sugerem como título “Revista militar no Largo do Carmo”, uma vez que

[…] na ocasião em que acontece, presumivelmente, a cena representada na


obra, a principal edificação do logradouro não seria o Paço dos Vice-Reis, mas
a Igreja Nossa Senhora do Carmo, ao fundo. Ademais, “largo”, evento urbano
de grande importância nas cidades do período, por articular diversos espaços,
provendo passagem entre os mesmos, não poderia estar ao lado de uma
edificação, mas abrindo-se em frente à mesma. 102

Outro caso de contestação de autenticidade de obras do acervo do MHN e que gerou a

necessidade de reclassificação das obras surgiu em 2007, quando Júlio Bandeira, historiador

da arte, e Pedro Corrêa do Lago, colecionador e crítico de arte, publicaram um catálogo

raisonné da obra de Jean Baptiste Debret, intitulado Debret e o Brasil.103 Nesse catálogo, os

autores questionaram a autenticidade de 54 obras atribuídas ao pintor francês. Para a

elaboração do catálogo foi formado um comitê de autenticação composto por ambos; pelo

embaixador João Hermes Pereira de Araújo, vice-presidente do IHGB e que fizera várias

“descobertas” sobre Debret; por Zuzana Paternostro, especialista em pintura europeia do

século XIX e curadora-chefe de pintura estrangeira do Museu Nacional de Belas Artes

(MNBA) desde 1977; por Jean Boghici, “quiçá o mais renomado e experiente marchand de

arte no Brasil”104; e por Claudine Lebrum Jouve, autora do catálogo raisonné de Nicolas

Antoine Taunay.

O comitê classificou a autoria de algumas obras como “atribuições questionáveis”, e

outras como “atribuições rejeitadas”, quando a opinião do comitê foi unânime em não

reconhecer nelas a autoria de Debret. Essas obras, explicam os consultados, “podem ser
102
Id. Ibid.
103
BANDEIRA, Júlio; LAGO, Pedro Corrêa do. Debret e o Brasil. Obra completa. Rio de Janeiro: Capivara, 2007
104
Id. p. 16.
58
quadros autênticos (às vezes de grande qualidade), mas que foram atribuídas a Debret e são, na

verdade, de outros autores do período [...] como também podem ser falsificações

intencionadas, realizadas sobretudo no ‘ateliê’ organizado por Robert Heymann”.105

Robert Heymann foi um marchand mato-grossense com estabelecimento em Paris, que

adquiriu prestígio no mercado de arte quando, ao entrar em contatos com familiares de

pintores viajantes, conseguiu trazer para o Brasil a coleção de aquarelas de Debret, comprada

por Raimundo Ottoni de Casto Maya, tornando-se conhecida hoje como coleção Castro Maya.

Ocorre que Heymann aproveitou-se de seu prestígio e começou a produzir em seu ateliê

falsificações dos trabalhos de Debret, Rugendas e Pallière, forjando assinaturas e contratando

artistas para realizarem cópias e imitações. Heymann, segundo os autores do catálogo, teria

vendido suas falsificações até mesmo para colecionadores de grande porte, como o próprio

Castro Maya.

Essa foi a extrema habilidade da jogada desonesta de Heymann nas décadas de


1940 e 1950: munido da legitimidade de ter tido acesso à família Debret e ter
vendido sua coleção a Castro Maya, Heymann continuou a produzir “Debrets”
por mais de vinte anos após a grande venda, sem levantar suspeitas, pois a
glória da primeira descoberta ainda lhe trazia uma respeitabilidade que tardou a
ser contestada. Vendeu assim para membros da família Imperial Brasileira
várias das suas cópias de Debret. Na década de 1960, colecionadores
esclarecidos como Cândido de Paula Machado e Newton Carneiro, estudiosos,
como o embaixador João Hermes Pereira de Araújo e Gilberto Ferrez, da
mesma forma que antiquários especializados [...] começam a suspeitar do fluxo
constante de novas obras provindas de Heymann, e passou a ser unânime entre
os poucos grandes especialistas em arte do nosso passado a convicção de que
Heymann era de fato um falsário.106

O estrago foi tão grande que 8% da coleção Debret dos Museus Castro Maya, 42

aquarelas num total de 551, foi classificada como “atribuição rejeitada”, posto que oriundas do

ateliê de Heymann. No caso das telas a óleo do MHN, não há informações seguras sobre sua

aquisição, sabe-se somente que o MHN comprou, ao longo dos anos, alguns quadros

105
Id. p. 17.
106
Id. p. 17.
59
atribuídos ao pintor francês, especialmente no ano de 1973, quando da venda realizada pelo

marchand Luiz Buarque de Hollanda ao Departamento de Assuntos Culturais do MEC, que

adquiriu para o MHN três estudos: A sagração e coroação de d. Pedro I, O segundo

casamento de dom Pedro com dona Amélia e Batimento de quilha da barca a vapor Campista,

este último cedido para o Museu da Marinha. O MHN já possuía, entretanto, desde 1947, os

retratos do duque e da duquesa de Cadaval, de autoria de Debret. Todavia, as obras do acervo

do MHN que foram classificadas como “atribuições questionadas” foram a pintura a óleo

Retrato de D. João VI e a aquarela Construção do telégrafo do Morro do Castelo. Sobre o

retrato de D. João VI os autores afirmam:

Este retrato de D. João VI é conservado há anos no Museu Histórico Nacional


com uma atribuição a Debret. Trata-se, muito provavelmente, de um retrato do
monarca executado por José Inácio S. Paio, ou Sam Paio, um dos retratistas mais
atuantes da corte portuguesa, autor entre outros da grande tela representando D.
João VI sentado, conservada no convento Mafra [...]107

Sobre a aquarela apenas informam que “foram também incluídas nessa seção [de obras

erroneamente atribuídas a Debret] um desenho antigo atribuído por equívoco a Debret por um

museu [...]”.108

A publicação do catálogo causou alvoroço entre as direções dos museus citados, visto

que implicou a desvalorização do acervo das instituições, além de ter comprometido a

credibilidade das coleções. Na época, o diretor do Departamento de Museus e Centros Culturais

do IPHAN, José do Nascimento Júnior, formou uma Comissão de Avaliação de Autenticidade

das obras atribuídas a Debret,109 composta pela museóloga e técnica do IPHAN Adriana

Bandeira Cordeiro, o museólogo Ivan Coelho de Sá, o químico especialista em conservação de

107
Id. p. 678.
108
Id. p. 681.
109
BRASIL, MINISTÉRIO DA CULTURA, INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO
NACIONAL. Portaria nº 365, publicada no DOU de 18 de novembro de 2008.
60
bens culturais Luiz Antônio de Cruz Souza e a museóloga especialista em história da arte Sônia

Gomes Pereira.

O trabalho da comissão do IPHAN terminou em março de 2009, 110 e acabou por

confirmar a não autenticidade das obras do MHN citadas no catálogo em questão. O que

chama atenção é que o método de trabalho, indiciário e baseado no “olhar treinado”,

assemelha-se à critica produzida por anos no MHN e ensinada no Curso de Museus. Isso não

significa afirmar que o Curso pautou a metodologia de crítica de autenticidade dessa comissão;

por outro lado, não se pode ignorar que os métodos de trabalho apresentam semelhanças.

Vejamos a análise das obras:


1º De imediato, nota-se que o retrato refere-se a uma representação de D. João
VI como monarca do Reino Unido, ou seja, por volta de 1816. Isto evidencia-se
pela atitude do retratado ao apoiar a mão direita sobre a coroa real. Isto é uma
evidência flagrante do seu status de rei e perfeitamente em consonância com o
costume implantado pelos Braganças desde 1640, quando D. João IV, após
obter a independência da Espanha, consagrou o Reino Português a Nossa
Senhora da Conceição. A partir desse momento até a proclamação da república,
em 1910, os reis portugueses passaram a ser aclamados e não coroados. Com
isso, nas representações artísticas, a coroa real aparece sempre apoiada sobre
uma almofada e nunca sobre a fronte. Por tudo isso, o Retrato de D. João VI do
MHN representa-o como rei. Não obstante, isto aponta para uma
incongruência: à época de sua ascensão ao trono, beirava os 50 anos de idade,
encontrando-se já com os cabelos totalmente grisalhos. Isto pode ser constatado
nas pinturas de todos os artistas que o retrataram aqui no Brasil, como Manuel
Dias de Oliveira, José Leandro de Carvalho e o próprio Jean Baptiste Debret.
Na tela Retrato de D. João VI, estudo a óleo pertencente ao Museu Nacional de
Belas Artes, bem como nas várias representações do rei em diversas aquarelas
dos Museus Castro Maya [...], D. João é sempre retratado com os cabelos
totalmente grisalhos. Sendo assim, não é aceitável que Debret representasse D.
João com os cabelos escuros, pois já o conhecera com os cabelos encanecidos
[...]
2º Outro aspecto na iconografia do quadro do MHN que contraria a atribuição a
Debret refere-se à Coroa. A coroa, bem como as demais insígnias majestáticas de
D. João VI foram desenhadas por Debret e reproduzidas na prancha 10, do
terceiro volume do Voyage [...]. Esta coroa desenhada por Debret e reproduzida
em seu livro é, de fato, a coroa de D. João VI e em tudo igual à mesma que

110
Cada avaliador da Comissão ficou responsável por tratar de uma determinada parte. A análise da metodologia
empregada por Júlio Bandeira e Correia do Lago ficou sob a responsabilidade de Sonia Gomes Pereira. A análise
técnica e formal das aquarelas autênticas de Debret assim como a análise iconográfica das obras questionadas de
ficou sob a responsabilidade de Ivan Coelho de Sá. O levantamento das assinaturas ficou a cargo de Adriana
Bandeira e a análise física ficou sob responsabilidade de Luiz Antônio Souza.
61
aparece no retrato pertencente ao MNBA [...]. A coroa do retrato de D. João VI
do MHN trata-se de uma coroa fantasiosa, que não corresponde à que foi
documentada por Debret: a parte inferior é baixa e pouco elaborada; os arcos são
poucos sinuosos e revertidos de pérolas, não existem flores-de-lis entre os arcos e
o globo é bastante simplificado. Em outras palavras, podemos afirmar que
Debret, por ter visto de perto e reproduzido a coroa, não faria uma representação
totalmente diferente.
3º Ao comparar a fatura do Retrato de D. João VI do MHN com o Retrato de D.
João VI do MNBA, indubitavelmente de autoria de Debret, constata-se que não
há afinidades técnicas. O retrato de d. João VI do MNBA, apesar de ser um
estudo, é muito superior ao do MHN, que pode ser considerado um bom retrato,
mas que não apresenta a mesma delicadeza e mesmo preciosismo técnico de
Debret. Por outro lado, em todos os retratos de D. João realizados por Debret,
inclusive aquarelas, percebe-se uma intenção de atenuar possíveis
irregularidades. Somente um artista como Debret, com um profundo
conhecimento de anatomia e de técnica de pintura, poderia utilizar tais recursos
sem comprometer a fidelidade com a fisionomia do retratado. No retrato do
MHN o mesmo não ocorre, tornando-se visíveis o queixo duplo, o lado inferior
pronunciado e a desproporcionalidade da testa.
4º Não parece plausível a atribuição do Retrato de D. João VI do MHN a José
Inácio Sam Paio. O quadro do MHN é bastante superior tecnicamente, sobretudo
em relação à anatomia. O Retrato de D. João VI sentado, de Sam Paio, apresenta
grandes desproporções anatômicas, sobretudo no que se refere ao tronco e às
pernas [...].

PARECER:
1º O Retrato de D. João VI, do MHN, não é de autoria de Debret.
2º A obra data do século XIX.
3º O retrato não foi feito ao natural.
4º Provavelmente, a composição foi elaborada tendo por base gravuras ou
pinturas anteriores à vinda de D. João para o Brasil. Esta dedução fortalece a
hipótese de um autor português. No entanto, pode haver também a possibilidade
de ter sido feita por um artista brasileiro do século XIX, posterior à época de D.
João. Também neste caso, copiada de gravuras ou pinturas antigas.
5º Para efeito de classificação, a obra do MHN pode ser identificada da seguinte
forma: Retrato de D. João, artista não identificado / século XIX. 111

O parecer foi baseado em comparações com outros trabalhos de Debret, em especial com o

óleo do MNBA, no conhecimento historiográfico dos autores e, acima de tudo, na avaliação visual

da obra, o que exige, como visto acima, o “olhar treinado” dos avaliadores, e sua capacidade de

reconhecer detalhes técnicos de pintura, como a “delicadeza do traço e o preciosismo técnico”. O

outro parecer acerca da aquarela é baseado também na avaliação visual da obra:

111
BRASIL. MINISTÉRIO DA CULTURA, INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTISTICO
NACIONAL. Comissão de Avaliação de Autenticidade das obras atribuídas a Debret, relatório final, 2009. Reserva
Técnica, Museu Histórico Nacional. Processo 006.203. [mimeo]. Análise formal realizada por Ivan Coelho de Sá.
62
Em termos técnicos e formais, não há grande afinidade desta aquarela do MHN
em relação às aquarelas originais de Debret. Ainda que seja um bom desenho, o
traço não possui a espontaneidade e a destreza de Debret, havendo áreas mais
rígidas como a que se refere à construção arquitetônica do centro da composição,
de linhas mais pesadas, feitas à régua, recurso pouco utilizado pelo artista. A
parte da vegetação não possui a mesma delicadeza da que normalmente aparece
nas aquarelas debretianas autênticas. A bandeira, além da incoerência já citada, é
muito rígida e quase plana, totalmente diferente das bandeiras desfraldadas que
aparecem em várias aquarelas de Debret, inclusive representado o telégrafo do
Morro do Castelo. Além desses aspectos, outro causa estranheza: a presença de
vestígios de lápis de cor no telhado, no brasão e na coroa da bandeira,
contrariando o usual da técnica de Debret.

Em relação à assinatura, constata-se, apesar do esmaecimento, caracteres maiores


e mais espessos do que aqueles normalmente utilizados por Debret, ou seja, uma
assinatura em letras miúdas e bem delicadas. A técnica da aquarela aplicada com
papel fino contraria o usual de Debret, que quase sempre assinava suas aquarelas
com tinta nanquim e bico de pena.112

O parecer também acrescenta que, possivelmente, a aquarela foi uma das falsificações

produzidas por Robert Heymann. O desenho foi adquirido no leilão da coleção Djalma da Fonseca

Hermes realizado em 1941. Djalma da Fonseca Hermes foi um dos maiores colecionadores de arte

do Rio de Janeiro no século XX, tendo trazido para o Brasil diversos trabalhos de artistas

nacionais e estrangeiros, como Franz Post, Nicolau Antônio Taunay e Bartolomé Esteban Murillo,

por exemplo, que estavam dispersos em museus, antiquários e coleções particulares na Europa,

especialmente em Portugal e na França. Sua coleção era considerada por muitos como a mais

importante do Brasil, tendo a sua venda em leilão sido lamentada pelo então diretor do Museu do

Ipiranga, Affonso E.Taunay, em carta dirigida ao colecionador:

A notícia da próxima venda da sua galeria e outras coleções deixou-me desolado.


Vai se dispersar o que foi feito com tanto bom gosto e competência, amor às
peças adquiridas, senso patriótico e tradicional! Que pena! Desaparece a única e
talvez grande coleção particular, hoje existente em nosso país, capaz de entrar em
confronto com as do estrangeiro, pela valia, a variedade, a abundância, coleções
escolhidas meditadamente, e não adquirida nos lotes a peso de contos de réis.

Não ocorrerá a intervenção salvadora de algum dos nossos governos para a sua
aquisição em bloco? [...] Quanto não ganharia a nossa Pinacoteca, por exemplo,
ao receber reforço de tamanho valor?113

112
Id. Ibid.
113
Catálogo da Coleção de Djalma da Fonseca Hermes Rio de Janeiro: Leiloeiro Paula Affonso 1941. [s.n.p].
63
A importância da coleção de Djalma da Fonseca Hermes era tamanha que o Serviço do

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) abriu um processo de tombamento do

catálogo do leilão e o governo de Getúlio Vargas baixou um decreto-lei abrindo um crédito de mil

e quinhentos contos para aquisição de objetos da coleção. Vargas havia solicitado aos diretores do

Museu Histórico Nacional, do Museu Nacional de Belas Artes e a técnicos do SPHAN listas e

pareceres sobre os objetos que seriam de interesse para as instituições.

O MHN adquiriu diversos objetos, principalmente mobiliário, pinturas e esculturas de

caráter histórico. Boa parte desses objetos tornou-se destaque da coleção do Museu, como as

maquetes das alegorias dos rios nacionais presentes na base do monumento a D. Pedro I,

localizado na Praça Tiradentes e o estudo em gesso de Henrique Bernadelli para a estátua de D.

Pedro I encomendada para o Museu Paulista em 1922, além de pinturas históricas de artistas como

Edoardo de Martino e Aurélio de Figueiredo. As instituições que mais receberam objetos da

coleção de Djalma da Fonseca Hermes foram o MNBA, o Museu Imperial, o MHN e o Museu

Chácara do Céu.

Na documentação dos lotes comprados pelo governo para o MHN não consta nenhuma

referência relativa à procedência dos objetos, ou seja, a forma como o colecionador as adquiriu. O

catálogo é o próprio instrumento de autenticação, uma vez que ele era entregue ao arrematante

com a seguinte declaração em sua terceira página: “As pinturas a óleo, pastel e crayon, constantes

nesse catálogo, são declaradas absolutamente autênticas, sendo que o Murillo o é pelos reputados

peritos André Shoeller e François Max-Kann, conforme consta do catálogo que foi entregue ao

arrematante”.114

Declaradas por quem? Obviamente pelo próprio Djalma da Fonseca Hermes e pelo

leiloeiro Antônio de Paula Affonso, responsável pelo leilão. A autoridade de colecionador e a

114
BRASIL. MINISTÉRIO DA CULTURA, INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTISTICO
NACIONAL. Comissão de Avaliação de Autenticidade das obras atribuídas a Debret, relatório final, 2009... op. cit.
64
importância atribuída à sua coleção por outros especialistas parecem outorgar-lhe o poder de

autenticar a procedência das obras. No caso da obra de Murillo (1617-1682), autor barroco

espanhol de grande valor e importância no mercado da arte, a autenticidade foi atestada por dois

“reputados peritos”: o especialista francês André Shoeller, membro do Syndicat Français

d'Experts Professionnels, e François Max-Kann, autor de vários livros e trabalhos sobre pinturas e

desenhos.115

O leiloeiro Antônio de Paula Affonso declarou no texto de abertura do catálogo do leilão

que

[…] dizer que o Murillo da coleção Djalma da Fonseca Hermes é um trabalho


autêntico, e não apenas “atribuído a Murillo”, será sem dúvida supérfluo.
Examinaram-no os melhores especialistas da Europa; e hoje graças às impressões
digitais que todos os artistas deixam em suas obras, não é possível, seja a quem
for, mistificar um técnico em perícias dessa natureza. As impressões digitais de
Murillo ficaram impressas nas suas telas como as de Rubens nas suas
composições e Miguel Ângelo nos seus afrescos […]. 116

Ao mencionar a coleção em si, quase toda voltada para as “coisas nacionais”, Antônio de

Paula Affonso declara que

Se a coleção de pinturas é uma pinacoteca, a de móveis é um museu de arte


nacional em jacarandá antigo. Não encontrarei móveis torneados por máquinas
modernas, mas escabelos seculares, camas de antiquíssima linhagem, mesas que
recordam a graça das anquinhas e das cabeleiras empoadas […]. Não desejando
alongar-me em demasia, passarei por alto a parte da biblioteca, onde figuram um
Debret, um Rugendas, e inúmeras raridades, verdadeiros cimélios queridos dos
bibliófilos.117

Acontece que os avaliadores do Demu/IPHAN sugerem, entretanto, que a aquarela de

Debret em questão é uma das falsificações de Robert Heymann, uma vez que no catálogo da

coleção Fonseca Hermes constam obras que o marchand falsário havia publicado anos antes no

catálogo da Casa Heymann. Outro dado que reforça a dedução é que Djalma da Fonseca Hermes

115
André Shoeller e François Max-Kann atuaram nas décadas de 1920, 1930 e 1940. Ambos já faleceram. A galeria
Shoeller ainda funciona e quem a administra é André Shoeller, filho do renomado especialista.
116
AFFONSO, Paula. In: Catálogo da Coleção de Djalma da Fonseca Hermes... Op.cit. [s.n.p.].
117
Id. Ibid.
65
adquiriu a maior parte da sua coleção nas décadas de 1920 e 1930, aproximadamente o mesmo

período de atuação de Heymann, que frequentemente vendia e recebia colecionadores brasileiros

em seu estabelecimento.

Um dado que chama atenção no caso dos “falsos Debrets” é o fato de estas obras terem

ficado tantos anos sem ter sua autenticidade questionada. Talvez a importância dos atores

envolvidos nessas coleções, como Robert Haymann, na época ainda não conhecido como um

falsário, Djalma da Fonseca Hermes, Castro Maya, o leiloeiro Antônio de Paula Affonso, além dos

diretores dos museus, tenham produzido uma certeza de autenticidade que dispensasse a

necessidade de verificação, até o momento em que o trabalho crítico dos autores do catálogo

raisonné de Debret viesse a questionar suas autenticidades.

Outro caso que transcende o MHN, mas que é exemplar da mobilização do olhar

especializado, ocorre quanto às atribuições de autoria a diversas obras de Aleijadinho, em especial

às que fazem parte da coleção de Renato de Almeida Whitaker, na qual diversas estátuas religiosas

foram atribuídas ao mestre ao longo da segunda metade do século XX e na primeira década do

XXI. Márcio Jardim, historiador, membro do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais e

especialista em arte, atribuiu ao Aleijadinho 39 das 50 obras da coleção de Whitaker publicadas no

catálogo Aleijadinho. Arte e fé brasileira – ofício divino. Nesse catálogo, Jardim defende o

seguinte:

[...] a questão da atribuição de autoria segue dois caminhos: o documental e o da


perícia de avaliação de estilemas, ou seja, os sinais estilísticos. A atribuição
documental é acessória, subsidiária, porque uma obra cujo recibo de pagamento
refere-se a um artista, não é necessariamente dele, pois existia o sistema de
subempreitada.118

Segundo Jardim, a atribuição de autoria é feita principalmente pela análise dos estilemas.

Caso a obra tenha um ou mais sinais característicos das esculturas de Aleijadinho e caso seus

118
JARDIM, Márcio. Aleijadinho. Arte e fé brasileira – Ofício divino. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura,
2010. p.25.
66
aspectos gerais conformam-se àquelas de uma de suas fases profissionais, pode-se atribuir a

autoria ao mestre mineiro. O grande número de obras atribuídas ao Aleijadinho nos últimos 30

anos é explicado por Jardim como uma decorrência da primeira grande mostra de suas obras no

Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1978. Como muitas outras ocorreram desde então,

segundo ele, passou a haver uma maior apreciação pública dessas obras, muitas em posse de

famílias há várias gerações, visto que o escultor teve uma carreira produtiva e realizava muitos

trabalhos para residências. Isso possibilitou um treinamento visual, a formação de uma massa

crítica capaz de identificar características estilísticas nas estátuas de atribuição inquestionável e

compará-las com as diversas estátuas religiosas oriundas do barroco mineiro até então sem autoria

definida.

No catálogo de estátuas religiosas atribuídas ao artista na coleção de Renato Whitaker, há

uma lista de 55 estilemas que, usualmente, indicam autoria de Aleijadinho. Junto às fotografias

dos objetos, há a identificação dos especialistas responsáveis pelas atribuições e seus pareceres em

favor da autoria. Percebe-se, em todos os casos, que é a partir do reconhecimento dos estilemas

que ocorre a datação da obra, o que permite classificá-la nas fases correspondentes à vida de

Aleijadinho: mocidade (1755-1760), maturidade inicial (1761-1770), maturidade média (1771-

1780), maturidade plena (1781-1790), maturidade máxima ou fase de Congonhas (1791-1812).

A comparação com outras obras de atribuição inquestionável também é utilizada como

recurso nos pareceres. Isso implica uma memória visual do especialista, que reconhece traços,

temas e estilos, e que os caracteriza como pertencentes ao mestre mineiro. Nesse caso, o

especialista assume uma das funções do autor, sendo aquele que cria algo, mas, nesse caso, é a

criação de mais um “Aleijadinho”. Observe-se a atribuição de autoria a uma estátua de Sant'Ana

Mestra:

Imagem em que Aleijadinho apresenta um trabalho escultórico brilhante,


excepcional, próprio de um artista muito superior aos comuns do seu tempo, em
67
um desenho (ideia conceitual) muito semelhante ao de outras imagens da mesma
santa feitas pelo artista, como Sant'Ana Mestra do Museu de Sabará (MG). O
rosto desta Sant'Ana tem expressão enigmática, em meio-sorriso “leonardesco”
[…]. A Sant'Ana demonstra tensão e austeridade na expressão, típica da 5ª fase
produtiva do Aleijadinho – fase máxima.119

Semelhante parecer é o de Germain Bazin, em 1958, sobre outra estátua da mesma Sant'

Ana, Mestra:

O panejamento revolto e sofisticado da imagem, aliado à gravidade do rosto de


Sant'Ana – que parece antes advertir que ensinar sua pequena filha – mostram um
Aleijadinho ultrapassando a fase galante do rococó para adentrar a severidade do
barroco tardio, solene e austero, típico de sua última fase produtiva. Topetes
bipartidos na testa da Virgem Maria Menina, gola cônica, pés em ângulo reto. O
rosto da Virgem é o mesmo de vários querubins de portadas feitos pelo
Aleijadinho. Panejamento em grandes dobras e “lacas”, semelhante ao dos
Apóstolos dos Passos da Paixão de Congonhas – MG.120

A associação com outras estátuas, o reconhecimento dos estilemas e a capacidade

descritiva requerem novamente um olhar treinado, que associa a escultura a outras referências de

várias ordens (biográficas, estéticas, relacionadas à obra como um todo), comparando, datando,

classificando e valorizando o objeto em coleção. No caso de obras de arte, tais pareceres

colaboram inegavelmente para a valorização e para a desvalorização desses objetos no mercado de

artes e antiguidades.

O “olhar treinado” era também um dos principais recursos no trabalho de classificação de

objetos dos conservadores do MHN e dos alunos do Curso de Museus. Nair de Moraes Carvalho

publicou ao longo da carreira diversos artigos sobre o acervo do Museu, que permitem entender a

importância do olhar treinado. Ao dissertar, em 1948, sobre as porcelanas produzidas pela Fábrica

Meissen-Saxe e suas marcas de fabricação, afirma o seguinte:

A existência dessas marcas nem sempre dá autenticidade às peças apresentadas


como de Saxe. O técnico francês Auscher ensina que, se os falsificadores se dão
ao trabalho de imitar pasta, esmalte, cores, decorações, também se dão ao
trabalho de imitar as marcas. É necessário conhecê-las, mas também ter o olho

119
Id. p. 37.
120
Id. p. 41.
68
educado de tal modo que possa aferir autenticidade por outros característicos. 121

Nair de Carvalho apresenta diferentes tipos de marcas nas porcelanas, contudo alerta que

"o aspecto decorativo, o colorido, são outros tantos aspectos que auxiliam o trabalho de

classificação. Acima de tudo a prática".122 Em outro artigo, sobre o sabre do Barão da Vitória, a

conservadora fez uma descrição minuciosa do objeto. Cabe ressaltar que tal detalhamento somente

é possível pelo “olhar treinado”, visto que a capacidade descritiva implica um treinamento

específico: domínio da nomenclatura, leitura correta dos atributos físicos, reconhecimento do

material. O olhar treinado insere-se em uma ordem discursiva própria da prática museológica

preconizada por Barroso e desenvolvida no Curso de Museus. Ainda hoje, entre museólogos, é

comum a expressão “museólogos precisam ter mil olhos de ver”. 123 Em livro clássico da formação

de conservadores, Introdução à técnica de Museus, na parte dedicada à classificação de objetos,

Gustavo Barroso afirma o seguinte:

A parte mais importante [...] da técnica de museus é a classificação dos objetos


de quaisquer espécies [...]. Para bem se classificarem as peças que devam ser
expostas ao público, mister se faz grande cabedal de conhecimentos
especializados que somente a teoria não pode fornecer. É preciso que se alie à
prática, às intuições desenvolvidas com o tirocínio. Sem essa base, será
impossível identificar com acerto a propriedade dos objetos, entender o que se
pode chamar sua linguagem, própria ou simbólica, catalogá-los, aferir seu valor e
arrumá-los bem.124

Assim, a habilidade descritiva implica conhecimentos técnicos que permitem a minuciosa

descrição e, consequentemente, a correta identificação das marcas, dos símbolos heráldicos e das

ornamentações do artefato. O reconhecimento de tais indícios leva a conservadora a afirmar que a

peça “se autentica por si”.

121
CARVALHO, Nair de Moraes. Marcas na porcelana de Saxe. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro,
v. 5, ano 1948. p. 16.
122
Id. p. 20.
123
De acordo com depoimentos dos ex-alunos e do professor Ivan Coelho de Sá, a expressão “olhos de ver” era usada
de forma recorrente pela professora Therezinha de Moraes Sarmento.
124
BARROSO, Gustavo. Introdução à técnica de museus... Op. cit. p. 14.
69
O Museu Histórico Nacional possui em suas coleções de relíquias militares um
sabre de honra que pertenceu ao general José Joaquim Coelho, Barão da Vitória,
e foi adquirido a um de seus descendentes. É uma peça que se autentica por si.
Verdadeira obra de arte, com copo e guarnição de prata dourada e cinzelada a
mão, feita na Inglaterra. Mede da ponta à maçã do punho um metro e dois
centímetros. Sabre reto com a cota terminando a 23 centímetros da ponta. Lâmina
com ramagens damasquinadas, cujo ouro a ferrugem fez quase inteiramente
desaparecer. Guarda em cruz, rematando em volutas de folhagem e com uma
orelha voltada para baixo em forma de escudo ibérico, com os canos do chefe
chanfrados, na qual se insculpe um medalhão: o feixe litórico em pala sobre um
arco santor, entre duas cornucópias voltadas para cima e carregadas de frutos,
ramos e flores, tudo circulado pela legenda RESTAURAÇÃO DA BAHIA,
MARÇO, 1838. [...]
A bainha, medindo 89 centímetros, é de madeira forrada de veludo com
guarnições de prata dourada. O veludo acha-se bastante estragado. As guarnições
são: bocal, reforço e ponteira com ramagens e volutas cinzeladas em alto relevo,
em puro estilo barroco. As argolas para prender ao talim são fixas e representam
volutas com folhagens rematadas em pequenos leões deitados.
Nas guarnições da bainha e nas várias peças do corpo, contrastes oficiais
ingleses: o leão passante em escudo regular, marca geralmente usada na Grã-
Bretanha de 1836 a 1845, segundo Cripps e Chaffers and Markham, registrada
sob o n. 472 no Dictionnaire des Poinçons Officiels de Benque; a cabeça de
leopardo sem coroa, marca de venda inglesa J. e L. maiúscula em ovais, iniciais
sem dúvida do artista que confeccionou a peça (Maker Mark).
[…] Nenhum documento se refere ao oferecimento ao Barão da Vitória do sabre
de honra que o museu adquiriu e guarda. Ele é que fala por si na sua legenda, na
sua decoração e nos seus contrastes oficiais. 125

Expressões como “autentica-se por si”, “fala por si” são recorrentes em outros textos

sobre o acervo, escritos por conservadores do MHN. Outro exemplo é o caso de artigo

produzido para a revista O Cruzeiro de 1949, em que Barroso descreve as espadas que teriam

pertencido a Solano López. Ao fim da Guerra do Paraguai, o exército brasileiro tomou a

espada que López carregava na ocasião de sua morte e a enviou em nome do Conde d’Eu,

comandante do Exército Imperial, por intermédio do major José Simeão de Oliveira, ao

imperador D. Pedro II. A espada foi depositada no Museu Militar e nos últimos anos da

monarquia foi transferida para o Colégio Militar. Ao ser criado, o MHN recebeu vários objetos

procedentes do Colégio Militar, entre eles veio a referida espada. Todavia, os funcionários do

MHN perceberam que entre os objetos transferidos havia duas espadas atribuídas ao

125
CARVALHO, Nair de Morais. O Barão da Vitória no Museu Histórico Nacional. Anais do Museu Histórico
Nacional. Rio de Janeiro, v. III, ano 1942. p. 228. [Grifos meus].
70
presidente do Paraguai como tendo sido tomadas no episódio de sua morte. De acordo com

Barroso, as espadas foram estudadas e verificou-se que apenas uma poderia ser autêntica.
A verdadeira só poderia ser a espada fina, de ponta quebrada na luta, com punho
de tartaruga, guarda e latão cinzelado e estrela de maçã, tendo as armas oficiais
da República do Paraguai no copo dourado a fogo. A outra era um sabre recurvo,
ricamente dourado e lavrado, trazendo na bainha o escudo real da Grã-Bretanha e
Irlanda. A peça falava por si. Era de procedência inglesa e de general do exército
inglês. Teria Solano Lopez duas espadas? Em face dessa dúvida, foi exposta
somente a verdadeira espada oficial do ditador, que os próprios retratos na
terminação da campanha documentavam como de seu uso pessoal e aparecia
também nas suas fotografias com o uniforme oficial de gala. 126

Não é necessário dizer que um objeto não “se autentica por si”, nem tampouco “fala por

si”. Essa frase só se torna possível diante do know-how do conservador que, ao olhar o objeto,

reconhece nele marcas óbvias ao olhar treinado – como adornos, símbolos heráldicos, materiais

nobres entre outros – e que possibilitam tal afirmação. Essa obviedade, que poderia passar

despercebida ao leigo, significa o domínio de tais símbolos pelo observador, de tal modo que a

autenticidade para ele torna-se evidente porque autorreferida, fazendo da afirmação “o objeto fala

por si” um recurso retórico. Todavia, no caso da espada de Solano López, outros elementos

serviram como autenticadores do objeto. De acordo com Barroso:

Onze anos após a fundação do museu, o distinto diplomata Heitor Lira, que
estivera algum tempo no castelo d’Eu, em França, copiando documentos
existentes no valiosíssimo arquivo da família imperial, [...], ofereceu à diretoria
do Museu Histórico Nacional diversas cópias de carta de S. A. o senhor Gastão
de Orleans ao Imperador e deste monarca a vários ministros sobre a guerra do
Paraguai. Dois desses documentos elucidam perfeitamente o caso das duas
espadas de Solano Lopez e autenticam a de procedência britânica. Em carta
datada de Humaitá a 29 de março de 1870, [...] o marechal conde d’Eu escrevia a
d. Pedro II: “Pelo Maciel do vapor Alice mando a V. E. uma espada apanhada no
acampamento de Lopez. Quando estive na Conceição, correu que tinha aparecido
entre nossa gente uma espada do Lopez, muito rica. Mandei que o Câmara a
procurasse, e ele me disse que o coronel Joca a tinha descoberto e me entregaria.
O Joca porém, entregou-me, em lugar da espada rica, essa que levava o escudo
de armas usados pelos reais da Inglaterra nos princípios desse século”. Por sua
vez o próprio imperador se refere a essa espada em carta ao Barão de Muritiba
[...] “entregaram-me a caixa e a espada que foi de Lopez?... A espada, embora
não tomada em combate, talvez possa ir para o Museu Militar.” 127

126
BARROSO, Gustavo. O cruzeiro. 8 de janeiro de 1849. [s.n.p.] [Grifos meus].
127
Id. Ibid.
71
Como dito anteriormente, a documentação a que se refere Barroso é indiciária da

autenticidade da espada, pois alude a uma série de autoridades, valorando a espada como um

objeto histórico e, portanto, passível de musealização.

O olhar treinado e o conhecimento especializado fazem-se presentes igualmente na

avaliação realizada pelo conservador Luís Marques Poliano. Em 1941, foi encontrada em uma

obra realizada na Rua Senador Dantas, no Centro do Rio de Janeiro, uma pedra de lioz com um

brasão português. O conservador do MHN foi ao local analisar o achado e averiguar a

procedência. O trabalho realizado teve por base quatro critérios: o local do achado, documentos de

época, trabalhos de historiadores que escreveram sobre a história da cidade, como Vieira Fazenda

e, por fim, os conhecimentos heráldicos do conservador. Poliano iniciou sua análise descrevendo

minuciosamente as inscrições presentes na pedra, procedimento recorrente no trabalho dos

conservadores do MHN:

Escudo sanítico ou francês moderno, posto ao balão, partido; no primeiro caso,


cortado, um crescente de lua e, no segundo, três estrelas de seis raios. No
segundo partido, seis costelas moventes dos flancos. Elmo e paquife. Sem
representação gráfica das cores.

As peças do escudo, que estampados de uma reprodução fiel, a bico de pena, de


Rui Campelo – dado por outro jornalista como significando “cravos da Índia”,
nada mais são do que as armas dos Costas, com a repartição do conhecido erro de
substituir a forma clássica destas figuras por ossos humanos.

Contudo, era isto precioso ponto de partida. Tratava-se, sem receio de erro, de
um escudo português, ou ligado à família dessa origem. Além disso, o material, a
posição e a forma do escudo, foram de momento outros valiosos elementos que
anotamos, reforçaram nossa convicção, quanto à procedência, quanto à época. 128

A descrição técnica, o reconhecimento visual do artefato e de suas características autoriza

o conservador em sua análise, sempre baseada em outros especialistas, como Santos Ferreira,

“importante especialista em heráldica portuguesa”.

Ensina Santos Ferreira que a representação do escudo ao balão foi muito seguida
em Portugal a partir do século XVI e que o tipo do escudo francês moderno, ou
128
POLIANO, Luis Marques. Uma pedra brasonada do Rio Antigo. Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de
Janeiro, v. 4, ano 1943. p. 159.
72
sanítico, “só modernamente tem-se vulgarizado em Portugal”, ou seja, a partir
dos séculos XVII e XVIII. Escudos impressos e esculpidos, portugueses, dessa
época, apresentam-se com essa forma, que por sinal é a adotada no monumental
trabalho que estamos citando.

Afastamos desde logo a indicação de alguns, que davam essa pedra de armas
como ligada à família Fonseca Costa; e a sugestão de outros, que a atribuíam ao
Sargento Mor José Fernando Pinto Apoim, autor do risco do Convento onde foi
encontrada, e de outras notáveis construções, aqui e em Minas. 129

Todavia, Poliano diz-nos que foi no trabalho de José de Souza Machado que obteve algo

de concreto para a identificação do brasão esculpido na pedra encontrada. Trata-se de um extrato

de carta de brasão, passada em 30 de janeiro de 1685 a Marcos da Costa da Fonseca, então

morador da capitania do Rio de Janeiro.


Conta-nos aquele autorizado especialista que em 1897 adquiriu um manuscrito
ao livreiro de Braga Joaquim José da Cunha, que por sua vez o recebera do
bibliófilo Pereira Caldas. [...] Acham-se ali inscritas 488 cartas heráldicas, na sua
quase totalidade inéditas. Muitas delas se referem a brasileiros e a pessoas
residentes no Brasil, e quanto a sua autenticidade não há dúvida, porque tanto a
letra quanto a assinatura do eclesiástico foram confrontadas com o livro de
registro de brasões do mesmo cartório.130

O conservador do MHN atenta para a diferença da descrição e da orientação do símbolo

heráldico mencionado na carta das armas esculpidas na pedra. Ainda assim, para Poliano, essa

divergência não tem força para invalidar a relação que existe entre a pedra e a carta, “para nos

afastarmos da convicção em que estamos, de que ambas se referem a Marcos da Costa”. O

conservador do MHN ressalta que não são raras as disparidades entre o brasonado das cartas e sua

respectiva execução, seja em pedra ou em outros suportes, como porcelana. “[...] não vacilamos

em identificar a pedra com a mercê àquele antigo habitante desta cidade. Morador do Rio de

Janeiro, mandou fazer em Portugal a pedra pouco depois de 1685, quando lhe foi dado o direito de

ostentar o brasão de armas.”131

Sobre o local do achado, o conservador indica que, originalmente, a pedra estava

129
Id. p. 161.
130
Id. p. 162. [Grifos meus]
131
Id. p. 164.
73
localizada em outro logradouro. Citando Vieira Fazenda, salienta que

[...] o trecho entre a Rua da Assembleia e Sete de Setembro até o oratório do


Bom-sucesso teve os nomes de Marcos da Costa e do Provedor da Fazenda: o
primeiro porque, na esquina da Rua da Assembleia, primitivo caminho para São
Francisco e depois Rua de Antônio Luís Ferreira, morou o juiz da alfândega
Marcos da Costa Castelo Branco [...].132

Com essas indicações Poliano afirma “ter localizado precisamente a posição da sesmaria

concedida em 1705 a Marcos da Costa da Fonseca, ou Marcos da Costa, como está indicado

naquele documento”.133 Sobre o local do achado ser tão distante do local de origem, o conservador

afirma, baseado em documentos de época e em algumas suposições, que possivelmente a casa

com a pedra brasonada, após ter sido comprada pelas freiras da Ajuda, teve a pedra removida, e

que durante os aterros realizados na cidade por volta de 1761 pelo Conde de Bobadela foi

utilizada como entulho, ficando enterrada até 1941.

O olhar treinado e os conhecimentos heráldicos foram determinantes também na

classificação e na valoração de uma peça do acervo do MHN em 2001. Trata-se de um fato

ocorrido por ocasião das restaurações de coches, ou “carruagens”, que entraram para as coleções

do MHN entre 1947 e 1948.

Os coches foram doados ao MHN por Joaquim Ferreira Alves, proprietário de uma antiga

casa funerária em Lisboa, e eram utilizados para cortejos fúnebres de famílias ricas portuguesas.

As correspondências entre Gustavo Barroso e o ministro das Relações Internacionais do Brasil

demonstram o interesse que tal doação gerou. O então diretor do MHN escreveu, em 1945, que a

importância histórica de tal doação era tanta “[...] que a diretoria do Museu dos Coches de Lisboa,

um dos mais ricos do mundo na matéria, se bateu para que essas viaturas históricas não deixassem

o país”.134 Durante muitos anos os coches ficaram expostos no MHN em local conhecido como

132
Id. p. 170.
133
Id. p. 171.
134
MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Dicop. Doc., nº5 Proc. Nº18/46.
74
Pátio da Minerva, ambiente inadequado para o controle de luz e umidade, o que acabou

ocasionando danos de conservação às peças. Apesar das afirmações de Barroso sobre o valor

histórico das viaturas, em correspondência de 1964, um chefe de seção do MHN informa que

“comprovadamente, nenhuma delas apresenta a menor historicidade para o Brasil”,135 uma vez que

“ao entrarem em desuso em Portugal foram sendo adaptadas ao serviço fúnebre, recebendo para

tanto decoração severa”.136 Ao longo dos anos seguintes, o estado de conservação foi-se agravando

significativamente, até que, em 2001, um projeto de restauração foi colocado em prática.

A restauração dos primeiros coches conservou a pintura fúnebre, respeitando o princípio

técnico de manter as características físicas de quando entraram para as coleções do MHN. Porém,

durante o processo de restauração, retirou-se a camada pictórica original de cor negra de um dos

coches, assim como os motivos fúnebres. Ao deparar-se com um símbolo heráldico embaixo da

pintura, a equipe solicitou a chamada da diretora do MHN e especialista em heráldica, Vera

Tostes, também formada no Curso de Museus e professora de heráldica da Escola de Museologia

da UNIRIO, que prontamente reconheceu um brasão encimado por uma coroa, “claramente

identificada como a de duque”. A pintura fúnebre foi retirada e a diretora pôde então usar seus

conhecimentos heráldicos e identificar o símbolo. “Era o início da pesquisa heráldica, que [...]

identificaria o objeto que há 58 anos encontra-se no Museu como carro de cortejo fúnebre.” 137

Tostes identificou uma diferença138 na coroa de duque em questão. Segundo ela, trata-se de um

lambel, “adotado inicialmente na França, posteriormente usado na Inglaterra e, espalhando-se

pelos demais países, tornou-se uma das formas de distinguir os membros da família real”. 139 Em

135
Id.Ibid.
136
Id.Ibid.
137
TOSTES, Vera Lúcia Bottrel. De viatura a coche real: a importância da heráldica na restauração das carruagens do
MHN. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v. 36, ano 2004. p. 209-224. Página citada, 214.
138
Diferença no vocabulário heráldico significa os símbolos que servem para apontar alguma distinção, e podem
variar de diversas formas.
139
TOSTES, Vera Lúcia Bottrel. De viatura a coche real: a importância da heráldica na restauração das carruagens do
75
Portugal, semelhante simbologia foi adotada e “os demais infantes e mesmo o filho do príncipe

herdeiro traziam o mesmo lambel, com figuras colocadas nos pingentes.” Assim,
A coroa que aparece no brasão do coche é a de duque. É formada por folhas de
acanto, que deixam aparentes cinco florões – essa particularidade chama a
atenção, uma vez que a diferença do lambel remete-nos às armas do príncipe
herdeiro e, portanto, o escudo deveria ser encimado pela coroa de príncipe. [...]

O conhecimento heráldico viabilizou que se colocasse uma nova luz sobre o


objeto museológico que há quase 60 anos, no museu, é identificado como viatura
de cortejo fúnebre. A descoberta do brasão real português com a diferença e o
lambel confirma que pertenceu a um príncipe herdeiro do trono. Tanto a datação
do coche, cujas características remetem à segunda metade do século XVIII e
início do XIX, quanto a correspondência preservada no arquivo do Museu, única
fonte documental hoje existente informando que duas viaturas adquiridas seriam
“peças de valor histórico para o Brasil”, fundamentam a evidência de o coche ter
pertencido à Imperatriz, quando viúva de D. Pedro, o que é reforçado pela
simbologia heráldica.140

Nesses dois casos, o olhar treinado possibilitou a identificação ou a reclassificação do

objeto histórico e, consequentemente, sua valoração histórica. Todavia, o vínculo com o herdeiro

do trono português e sua estética agregam um valor a mais ao coche, que se tornou umas das

peças mais divulgadas do acervo, com destaque no site da instituição, espaço exclusivo na

museografia e em catálogos.

MHN... Op. cit. p. 218.


140
Id. p. 222.
76
Figura 3: Porta da berlinda com motivos fúnebres. Acervo MHN.

Figura 4: Porta da berlinda com o brasão da Casa Real Portuguesa encimado por coroa de duque
contendo um banco de lambel. Acervo MHN.

77
Os casos descritos aqui mostraram determinados procedimentos de crítica e de produção

de autenticidade, que ora agregaram valor aos objetos coletados pelo MHN, ora questionaram suas

autenticidades e, por vezes, geraram a necessidade de reclassificação do acervo. Efetivamente, os

conservadores formados pelo Curso de Museus dispunham de um arsenal prático e de

conhecimentos específicos, principalmente em heráldica e em numismática, que os autorizavam a

realizar este tipo de trabalho, dado que mostra a força que o Curso de Museus teve, notadamente a

disciplina Técnica de Museus, na formação destes profissionais que constituíam uma autoridade

especializada no assunto.

No entanto, uma outra autoridade era muito presente na certificação de autenticidade dos

objetos históricos coletados pelo Museu. Trata-se da autoridade do nome próprio, do homem cuja

palavra, quer por seus feitos, seu passado, seu status social ou sua influência, é capaz também de

produzir autenticidade. Essa autoridade é hereditária e manifesta-se nos seus herdeiros, no nome

de família, e constituiu uma das principais formas de musealização de objetos no MHN. Essa

autoridade, porém, não rivaliza com a autoridade do especialista. Pelo contrário, muitas vezes as

duas confundem-se e complementam-se, como vimos, por exemplo, no caso de objetos oriundos

de grandes colecionadores, como Djalma da Fonseca Hermes, que, além de um especialista em

arte brasileira, tinha seu nome reconhecido como um dos maiores colecionadores de arte do seu

tempo. Essas duas autoridades são partes da própria racionalidade da instituição, ou melhor, fazem

parte da economia museal. Dediquemo-nos agora a descrever a autoridade do nome próprio como

um dispositivo que atua na certificação de autenticidade de alguns objetos do MHN.

78
2. A autoridade do nome próprio

Exmo. Sr. Ministro. A reportagem dum dos vespertinos desta capital pôs em foco
a triste situação em que se encontram, num saguão de escada do convento de
Santo Antônio [...] os despojos mortais da imperatriz Leopoldina [...] cujo
importante papel na nossa independência não poderá ser esquecido pelos
brasileiros, bem como da princesa D. Paula Mariana e do príncipe D. Carlos
Borromeu […]. O MHN possui um grande e belo pátio em estilo colonial, no
qual, com pequena despesa, poderia o governo fazer erigir uma pequena capela,
onde se depositassem os três esquifes, cujas chaves já estão guardadas no
mesmo, na sala dos tronos. Para despojos mortuários que tão perto se ligam à
história pátria não é sempre necessário um edifício religioso. V. Ex. deve
lembrar-se que os restos de Dante estão num ossuário em estilo do renascimento
sob a epígrafe Ossa Dantis, numa das ruas de Ravena [...]. Enquanto o governo
providenciasse para a ereção desse pequeno monumento, os três caixões
imperiais poderiam ficar depositados em uma das salas deste museu, que ponho
desde já pronta a recebê-los [...]141

Nesta carta, escrita por Gustavo Barroso ao ministro Francisco Campos, podemos

visualizar dois aspectos importantes dos museus históricos: a memória inspiradora e a

funcionalização dos mortos. Para Dominique Poulot, a memória dos mortos e o culto dos homens

ilustres constituiu um elemento importante na doutrina de emancipação e do progresso, almejada

após a Revolução Francesa: o estabelecimento de um corpus de homens a serem celebrados e

evocados em lugares de memória.142 Isso implica na construção de uma sacralidade, que, no caso

do MHN, é explicita na coleta de artefatos vinculados aos nomes canonizados pela historiografia e

no consequente culto às suas memórias. É o que Reinhart Koselleck designa como “a

funcionalização da representação da morte em benefício dos sobreviventes”. 143 Assim, o projeto

não realizado de construir uma capela para os restos mortais da Imperatriz Leopoldina inscreve-se

no culto à sua memória, cujo “importante papel na nossa independência não poderá ser esquecido

pelos brasileiros”.

No Brasil, como observa Armelle Enders, a tarefa de recensear e homenagear os grandes

141
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, DICOP, Processo, 22\30, 1931.
142
POULOT, Dominique. Uma história do patrimônio no ocidente. São Paulo: Estação Liberdade, 2010. p. 125.
143
Apud POULOT, Dominique. Uma história do patrimônio no ocidente... Op. cit.
79
mortos coube principalmente aos membros das instituições culturais e artísticas criadas durante o

Império, como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), criado em 1838, e que, além

de receber a missão de escrever a história nacional e auxiliar o governo imperial na definição de

um projeto nacional, tinha como missão de alguns dos seus membros, como Joaquim Norberto,

Francisco Adolfo de Varnhagen, a missão de selecionar no passado as figuras dignas de serem

lembradas.144 Como observa Enders, a noção de “homem ilustre” ou “grande homem”, elaboradas

pelas academias iluministas francesas, se opõe à figuras dos reis, dos santos e dos heróis, além de

dispor de uma extensa possibilidade de exaltação meritocrática. No contexto da uma escrita da

história nacional, posta em prática por historiadores do IHGB e corroborada por Gustavo Barroso

no MHN, o “homem ilustre” se distingue do herói singular pelo fato de pertencer a uma

“república de talentos”. Por esta razão, o recenseamento dos grandes homens extrapola o debate

acadêmico, uma vez que, por suas implicações sociais, produz o encontro da história com a

memória, mistura os campos intelectuais e políticos.145 Para Guimarães, o lugar privilegiado da

produção historiográfica brasileira permaneceu até um período avançado do século XIX marcado

por uma profunda marca elitista. A construção da ideia de nação não se assentou sobre uma

oposição à antiga metrópole, pelo contrário, a nação brasileira se reconhecia como continuadora

de uma certa tarefa civilizatória iniciada pela colonização portuguesa, de tal modo que nação,

estado e coroa aparecem como a unidade base da formação nacional.146

Nesse aspecto, a memória dos “grandes homens” aparece no Brasil como um amplo

empreendimento de reconciliações das elites nacionais.147 Sendo a história percebida, a partir desta

144
ENDERS, Armelle. “O plutarco brasileiro”. A produção dos Vultos Nacionais no segundo reinado. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, vol. 14, n.º 25, ano 2000. pp 41-62.
145
Id. p. 42.
146
GUIMARÃES, Manoel Luis. Salgado. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro e o projeto de uma história nacional. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº1, 1988, p. 5-27.
147
ENDERS, Armelle. “O plutarco brasileiro”. A produção dos Vultos Nacionais no segundo reinado... Op. cit. p. 47.
80
concepção iluminista, como uma marcha linear e progressiva que articula passado, presente e

futuro, deveriam ser selecionados homens e acontecimentos do passado para servirem de

exemplos e modelos para a celebração da nação. O MHN é vincado por essa concepção de

história, e parte de seu acervo constitui uma galeria de heróis cujas ações são exemplos para a

nação e, por isso, são capazes de fornecer inspiração às gerações vindouras.

Essa “memória inspiradora” moldou um dos sentidos das coleções do MHN: sua reunião e

registro tendo por base a noção de “possuidor”. Embora a ideia de possuidor não fosse definida de

modo explícito pelos funcionários do MHN, pode-se caracterizá-la como o indivíduo (por vezes, a

instituição) detentor da posse do objeto quando ainda contextualizado. Por procedência, entendia-

se o indivíduo (por vezes, a instituição) a partir do qual o objeto chegou ao Museu. Em certos

casos, essas definições aparecem justapostas de maneira hierarquizada, ou seja, o possuidor

aparecia em primeiro lugar, seguido pela origem do objeto. Assim, alguns objetos foram

organizados em torno do possuidor original, ainda que não tivessem a mesma procedência. Este é

o caso da coleção D. Pedro II, por exemplo, na qual os objetos provêm de diferentes fontes, porém

suas histórias remetem ao Imperador. Em outros casos, a procedência foi determinante na

organização dos objetos, como a coleção Miguel Calmon ou a coleção Osório, caso em que os

objetos são oriundos de doações realizadas por familiares.

A autoridade do nome próprio, em muitos casos, dispensa a análise intrínseca do objeto.

Isso porque o dispositivo de valoração mobilizado na certificação de autenticidade histórica é a

posição do proprietário do objeto em determinado círculo de sociabilidade. Isto pode ser

constatado em alguns processos de aquisição de acervo, especialmente naqueles caracterizados

como relíquias históricas ou relíquias familiares; objetos que são autenticados pela “palavra” dos

proprietários, geralmente membros de famílias aristocráticas, descendentes de militares do

Império, políticos e colecionadores.

81
A certificação de autenticidade nesses processos é marcada por relações de herança e de

consanguinidade. A comprovação genealógica associa o proprietário do objeto relíquia

diretamente ao seu proprietário inicial, reconhecendo-o como agente de uma rede de sociabilidade

que, no caso das aristocráticas brasileiras do século XIX e início do século XX, é marcada por

cultura de caráter colecionista, em que relíquias familiares e históricas eram usualmente objetos

de presente e de herança.148

Esses objetos, ao serem doados, legados ou vendidos ao MHN ganham uma outra função:

além de relíquias históricas, tornam-se, também, objetos históricos, com toda dimensão

documental e testemunhal implícita nesta categoria. Tradicionalmente, o objeto histórico tem uma

função testemunhal, o que implica na autoridade daquele que testemunha. Como visto no capítulo

anterior, umas das atribuições dos especialistas que lidam com o patrimônio é saber reconhecê-los

em sua autenticidade. Isto coloca o problema da característica fiduciária do testemunho. Paul

Ricoeur afirma que a especificidade do testemunho consiste no fato de que a asserção da realidade

é inseparável de seu acoplamento com a autodesignação do sujeito que a testemunha. Assim, a

autodesignação inscreve-se numa troca que instaura uma situação dialogal do testemunho, em

seus termos:

[...] é diante de alguém que a testemunha atesta a realidade de uma cena à qual
diz ter assistido, eventualmente como ator ou vítima, mas no momento do teste-
munho, na posição de um terceiro em relação a todos os protagonistas da ação.
Essa estrutura dialogal do testemunho ressalta de imediato sua dimensão fiduciá-
ria: a testemunha pede que lhe deem crédito [...] A autenticação do testemunho só
será então completa após a resposta em eco daquele que recebe o testemunho e o
aceita; o testemunho, a partir desse instante, está não apenas autenticado, ele está
creditado.149

148
A relação entre antiguidade e consanguinidade no MHN foi observada por Magalhães na árvore genealógica
montada por Barroso para compor o Pavilhão do Brasil na exposição ''Mundo Português'', realizada em Lisboa em
1940. A árvore representava a história nacional como uma perpetuação de um conjunto de famílias nobres. Ou seja,
Barroso procurou traçar uma genealogia da nação brasileira em raízes que remetiam às famílias europeias, reforçando
a evocação branca e civilizada do Brasil nos Oitocentos. MAGALHÃES, Aline Montenegro. Culto da saudade na
Casa do Brasil... Op. cit. p. 76.
149
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. São Paulo: Editora da Unicamp, 2007. p.173.
82
A autenticidade sempre implica alguma forma de autoridade, uma vez que o que está em

jogo é o que é ou não é real, válido e público, como no caso da autenticidade de documentos ofici-

ais, das provas criminais e dos objetos históricos. Porém, a autenticidade histórica é definida a

partir de critérios que são, em muitos casos, conflitantes, pois correspondem às disputas políticas

características dos processos de construção de memória. É o caso do contraste entre a autoridade

do especialista, que analisa o objeto intrinsecamente, e a autoridade do nome próprio, representa-

do pelo homem ilustre, cujo nome basta para atestar autenticidade histórica. Uma citação de Vieira

Fazenda, extraída das suas Memórias e Antiqualhas do Rio de Janeiro, ilustra bem a importância

do status social daquele que testemunha, em determinados regimes de verdade histórica. Fazenda,

ao escrever sobre a validade dos testemunhos históricos, afirma o seguinte:

Há o velho estúpido e boçal, quase sempre africano, que pelas tristes condições
de vida de escravo nada nos diz. Dele nada se consegue arrancar que possa servir.
Há os velhos cujas faculdades estão enfraquecidas – não têm a mens sana,
confunde alhos com bugalhos: o Conde dos Arcos com o Conde do Resende [...]
Ratacliffe com Tiradentes. [...]

Há o velho pachóla, e esta é a pior casta, o velho prosa, o velho mentiroso, que
tudo viu, tudo fez e tudo assistiu: o velho engrossador, o qual, com a esperança
de um níquel, vos contará coisas do arco da velha: assistiu à expulsão dos
jesuítas, viu a inauguração da Candelária no tempo do bispo Mascarenhas e até
matou muitos franceses no tempo de Duclerc. [...]

Há, porém, os anciãos de espírito culto ou não, a quem o indagador pode, com
confiança, dirigir-se: os primeiros, por sua ilustração, por haverem convivido
com homens importantes do seu tempo, fornecem luzes seguras.

Como exemplo, providencial, ai temos o venerável Sr. Visconde de Barbacena,


crônica viva do Brasil e prestes a atingir 100 anos, tem memória que não vacila e
responde sempre pronto as perguntas da algibeira. 150

Para Vieira Fazenda, as testemunhas históricas deveriam ser confiáveis, o que, em sua

visão, poderia ser garantido a partir do status social ou intelectual daquele que testemunha ou por

aqueles que tiveram contato com “grandes personalidades do seu tempo”, onde, por uma espécie

150
FAZENDA, Viera. Antiqualhas e memórias do Rio de Janeiro. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. Rio de Janeiro, tomo 86, v. 140, p. 222-228, 1919. P. 216.
83
de transmissão, por terem convivido com ele, poderiam fornecer informações seguras.151

A coleta e a musealização de objetos do acervo do MHN operava de modo semelhante. Em

texto publicado em 1930, intitulado O Brasil em face do Prata, uma compilação de textos de

Gustavo Barroso sobre questões relativas às guerras brasileiras do século XIX, há um artigo sobre

uma outra faca que teria pertencido ao presidente paraguaio Solano Lopez, em que se lê:

À redação dum dos jornais de Fortaleza [...] compareceu há tempos o sr.


Raimundo do Carmo Filho, cego e pai de dezesseis filhos. Chamando atenção
para seu triste estado de pobreza, esse velho cearense trazia consigo uma preciosa
relíquia histórica, da qual se queria desfazer para atender a necessidades
pecuniárias. E exibiu aos olhos dos redatores uma faca de aço, de fabricação
espanhola, com o cabo de prata lavrada, a lâmina incrustada de ouro de má liga
[...] Assegurava que a faca pertencera ao ditador do Paraguai, Francisco Solano
López.152

Barroso, após dissertar sobre como a faca teria chegado às mãos de Raimundo Filho,

afirmou o seguinte: “Nela nenhuma característica autoriza afirmar que tenha pertencido ao ditador

paraguaio. E os documentos relativos à morte do mesmo não se referem a uma faca.” 153 Barroso

continua o artigo descrevendo outros objetos “autênticos” do MHN que pertenceram a Solano

López. Sobre um relógio de sol, faz a seguinte observação: “Tem as armas paraguaias e as

inscrições que o autenticam” e, mais adiante, “O relógio de sol foi trazido pelo velho marechal

Mendes de Morais”. Tal como observa Bittencourt, o relógio poderia ser falsificado e o velho

marechal poderia estar senil; não há documentos precisos que comprovem a autenticidade do

relógio, o que vale aqui como elemento legitimador da autenticidade é a relação do objeto com

seu doador; o marechal Mendes de Morais.154

Nos primeiros 70 anos da instituição, não havia um procedimento padrão de aquisição de

151
FAZENDA, Vieira. Antiqualhas e memórias do Rio de Janeiro... Op. cit. p. 218.
152
BITTENCOURT, José Neves. Cada coisa em seu lugar: ensaio de interpretação de um museu de história. Anais do
Museu Paulista, São Paulo, v. 8/9, p. 151-174, 2002-2001. p. 171.
153
Id. Ibid.
154
Id. Ibid.
84
acervo, somente em 1992 é que foi criado um conjunto de documentos específicos para isso.

Antes, os objetos coletados pela instituição eram acompanhados de diversos documentos, como

recibos de compra, ofícios de órgãos públicos, cartas enviadas por doadores, testamentos, guias de

remessas de outras instituições. Isto se fazia necessário porque, ao sair da esfera privada e entrar

na esfera pública – o museu –, gera-se a necessidade da produção de uma documentação

legalizando as transferências. Nos objetos considerados “relíquias familiares” ou “relíquias

históricas” são bastante recorrentes declarações de autenticidade dos doadores, às vezes em

pequenos pedaços de papel escritos à mão, e outras, mais formais, com firmas reconhecidas em

cartório atestando que foi realmente o doador que declarou a autenticidade do objeto. Geralmente

essas declarações de autenticidade enfatizam as diferentes transferências de posse que o artefato

passou, fazendo menção às personalidades históricas ou a seus familiares que tiveram a

propriedade destes objetos.

Pode-se comparar esses dispositivos de autenticação das relíquias históricas do MHN

através da autenticidade atribuídas às relíquias cristãs durante a Idade Média. Entende-se por

relíquias os objetos em que se crê que terem estado em contato com um deus ou com um herói, ou

que se pense serem vestígios de qualquer grande acontecimento de um passado mítico ou

longínquo. Foi o cristianismo que, ao difundir o culto dos santos, levou as relíquias ao seu apogeu

durante a Idade Média. Era considerado relíquia qualquer objeto que se supusesse ter tido contato

com algum personagem da história sagrada, melhor ainda se fosse parte de seu corpo, devido à

crença de que a relíquia santifica o local que a guarda, como se fosse a presença do próprio

santo.155 Deste modo, as relíquias mais sagradas, e portanto mais valiosas, eram aquelas

vinculadas ao martírio de Cristo. Umas das relíquias mais importantes da Europa foi a Coroa de

Espinhos, que se acreditava ser a que foi posta na cabeça de Jesus Cristo durante a paixão.

155
POMIAN, Krzysztof. Krzysztof. Coleção. In: ROMANO, Rugiero (org.). Enciclopédia Einaudi, (vol. 1 –
Memória/história), Lisboa: Casa da Moeda/ Imprensa Nacional, 1983. p. 59.
85
Atualmente, a Coroa de Espinhos está guardada na catedral de Notre-Dame, em Paris, mas

originalmente ficava na Sainte-Chapelle.156 A primeira menção a essa coroa como relíquia foi feita

em Jerusalém por volta do ano 400, sendo, mais tarde, levada para Constantinopla, capital cristã

do império romano no Oriente, onde foi mantida e venerada durante séculos. Em 1200 foi

penhorada com os venezianos por uma soma gigantesca. O rei da França, Luís IX, era um ávido

colecionador de relíquias e extremado devoto do cristianismo, tendo organizado duas cruzadas (a

sétima e a oitava). Morreu na última, em 1270, e em 1297 foi canonizado pela Igreja Católica

como São Luís, devido à sua fé, à disseminação do cristianismo e à colaboração com a Igreja. O

rei cruzado, sabendo que a relíquia encontrava-se com os venezianos, liquidou a dívida, levando o

objeto para a França, onde mandou construir, em Paris, a Sainte-Chapelle para abrigá-la. De

acordo com Macgregor, a construção de Sainte-Chapelle custou 40 mil libras francesas, e só a

coroa de espinhos custou mais de três vezes essa quantia, sendo, possivelmente, o objeto mais

valioso da Europa. Para Benedicta Ward, no contexto dos anos 1200, uma relíquia particularmente

ligada à paixão de Cristo era a melhor coisa que se poderia possuir e o ato de Luís IX teve, para

além das questões de devoção, uma grande força política. A coleção de Luís IX contribuiu para

reforçar sua posição central na cristandade ocidental. Em uma época em que países, cidades e

governantes competiam pela posse de relíquias sagradas, Luís IX conseguiu colocar algumas das

mais ambicionadas em Paris. Há nesse ato uma ação estratégica naquele contexto: o

estabelecimento de Paris como a nova Jerusalém dos textos bíblicos.

Cynthia Hahn observa que as relíquias eram usadas como “presentes”, cujo principal

propósito era a manutenção de laços de amizade e sociabilidade entre bispos e nobres durante a

alta Idade Média. Para ela, esse intenso intercâmbio tem relação com a necessidade de validação

das relíquias. Muitas delas eram compostas por pequenos fragmentos de ossos atribuídos aos

156
MACGREGOR, Neil. Relicário do Santo Espinho. In: _____. A história do mundo em 100 objetos. Rio de Janeiro:
Intrínseca, 2013. p. 473.
86
santos; pedaços de roupas, cabelos, etc. O que garantia sua autenticidade era a proveniência ou a

história que as acompanhavam. A autora cita o caso de Paulinus de Nola (cerca de 400 d.C.), um

dos primeiros religiosos a escrever sobre as relíquias cristãs. Ao enviar um pequeno pedaço da

Cruz de Cristo para a Nova Basílica de Primuliacum, Paulinus enviou também uma carta usada

como inscrição da relíquia:

The revered altar conceals a sacred union, for martyrs lie there with the holy
cross. The entire martyrdom of the saving Christ is here assembled – a cross,
body, and blood of the Martyr, God himself... where the cross is, there too, is the
Martyr; for the Martyr’s cross is the holy reason for the martyrdom of the
saints.157

Hahn sublinha que o vínculo entre a santidade e o martírio de Cristo através do pedaço da

cruz é essencial para a manutenção do sentido da relíquia. Assim, como as relíquias históricas –

fenômeno bem mais recente, localizado na modernidade – as relíquias cristãs eram valoradas

através das histórias que as acompanhavam, muitas vezes legitimadas por cartas e escritas por

pessoas com autoridade religiosa, como Paulinus de Nola. Tal característica também foi observada

por Pomian, para quem as relíquias cristãs tiram sua virtude santificante do fato de terem

supostamente estado com os santos ou de serem parte do seu corpo.

[...] Todavia, as relíquias representam não só o sagrado mas também o passado,


Mais exatamente: representam o sagrado, porque são supostas provirem de uma
pessoa que tem um lugar na história sagrada. Por isso, eram sempre
acompanhadas de autenticações, isto é, de certidões seladas que lhes
confirmavam a proveniência ou de fitinhas de pergaminho com uma menção
explicativa.158

Os procedimentos de autenticações das relíquias cristãs parecem ter sido ressignificados na

construção das relíquias históricas, que no nosso caso se confundem com as relíquias familiares.

Os mesmos dispositivos de autenticação das relíquias cristãs pode ser observado nos processos de
157
HAHN, Cynthia. What do the Reliquaries do for Relics? Numen, n. 57, 2010. Disponível em:
<http://spectrum.huji.ac.il/PDF/Hahn_what%20do%20reliquaries%20do%20for%20relics.pdf> Acesso em: 12 de abr.
2012. p. 297. [O referenciado altar oculta a sagrada união, pois o mártir foi nele sepultado com a Santa Cruz. Todo o
martírio da salvação de Cristo está aqui reunido – a cruz, o corpo e o sangue do mártir, Deus em pessoa... onde a Cruz
está estará, ali também, o mártir; pois a cruz do mártir é a santa razão para o martírio dos santos. ] Tradução livre do
autor.
158
POMIAN, Krzysztof. Coleção... Op. cit. p. 64.
87
entrada de acervo do MHN, principalmente no período da direção de Gustavo Barroso, momento

em que o Museu, devido à rede de sociabilidade e de influência do próprio diretor, foi marcado

por doações de objetos que pertenceram a pessoas vinculadas às elites nacionais. Como foi o caso

da doação realizada em 1924 de uma espada do general Deodoro da Fonseca:

Espada do Generalíssimo Deodoro - O dr. João Severiano da Fonseca certifica


que a espada de 2º uniforme de Oficial General, que ofertei a meu primo o
Coronel Pedro Paulo da Fonseca Galvão, "é a mesma que foi de uso do meu
irmão o Generalíssimo Deodoro, até o fim da sua vida. 31 de agosto de 1897"
[Assinado por João Severiano da Fonseca com firma reconhecida.] 159

Do mesmo Deodoro consta a doação de outro objeto com a seguinte declaração:

Declaro que o chambre, pijama e chinelos em meu poder e que ofereço ao MHN,
pertenceram ao Generalíssimo Manoel Deodoro da Fonseca e foram oferecidos
ao meu falecido marechal Pedro Paulo da Fonseca Galvão [...] por d. Mariana
Meireles da Fonseca, viúva do Generalíssimo Deodoro, como sendo a que vestia
na ocasião do seu falecimento. Me foram entregues pela sra. Baronesa de
Alagoas, cunhada do Generalíssimo Deodoro, em setembro de 1902, para eu
fizesse chegar às mãos de meu marido, que se achava então no Ceará. Com
referência à espada do Generalíssimo Deodoro que estava em meu poder e
ofereço ao museu histórico, o cartão que acompanha esclarece a autenticidade.
[Assinado Maria Saboia Viriato Galvão, Rio de Janeiro, 10 de dezembro de
1924.]160

O cartão a que se refere Maria Saboia Viriato Galvão consiste num pequeno pedaço de

papel, com a seguinte inscrição: “Espada do marechal Deodoro, da qual se serviu durante toda a

sua vida e por conseguinte na proclamação da república de 15 de novembro de 1889”.161

Embora o valor de época, de antiguidade, fosse um critério importante na coleta de

artefatos, ele não era predominante, uma vez que, por vezes, objetos antigos foram recusados por

não terem pertencido a personagens históricos, como podemos ver em um ofício emitido em 1928

por Gustavo Barroso a uma senhora que desejava vender para a instituição um piano do século

XIX: “Respondendo a vossa carta de julho último, cabe-me comunicar-vos que, a este Museu, não

159
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. DICOP. Processo: 15/24, 1924.
160
Id. Ibid.
161
Id. Ibid.
88
interessa a compra do piano de que trata vossa aludida carta, visto não pertencer a nenhum

personagem histórico”.162

Em contrapartida, o próprio Gustavo Barroso recorria aos parentes de homens ilustres

solicitando objetos para o Museu, como ocorreu, em 1924, quando o diretor do MHN escreveu

para Laurinda Santos Lobo solicitando objetos que pertenceram a Joaquim Murtinho.

Exma. Sra. D. Laurinda Santos Lobo.


Infelizmente não possui este museu uma só relíquia que recorde a pessoa
eminente e a grande obra de Joaquim Murtinho. No desejo de ter qualquer objeto
pessoal desse alto estadista brasileiro, venho pedir à vossa generosidade, para o
Museu Histórico Nacional, uma oferta de algo que perpetue na nossa sala da
República a lembrança daquele que reconstruiu as finanças nacionais. Apresento
a V. Ex. os protestos de minha respeitosa estima e mui alta consideração. 163

O pedido de Gustavo Barroso foi prontamente atendido, com dois objetos carregados de

valor simbólico por envolver não somente o nome de Joaquim Murtinho, mas os de outros

personagens “ilustres” do passado nacional. No mesmo ano, o diretor do MHN escrevia em

agradecimento a Laurinda Santos Lobo:

Tenho a honra e o prazer de agradecer vivamente a V. Ex. o valioso presente que


fez a este museu dum bronze artístico ofertado pelo presidente Campos Salles ao
ministro Joaquim Murtinho e duma secretária que pertenceu ao Marechal
Deodoro da Fonseca. Essas preciosas relíquias já se acham expostas na sala da
República, com o nome da generosa doadora, a quem renovo meus
agradecimentos.164

As relíquias familiares, além de representar as elites nacionais, inserindo seus membros no

panteão da história nacional exposta no MHN, também são formas de afirmar a generosidade e o

patriotismo daqueles que ainda vivem, por meio doações e colocação de etiquetas em

agradecimento às doações. Como Eugenia Neves, que doou ao Museu uma chapa de bronze

gravada por Frois Maxadus, em 1875, representando o príncipe regente, D. João, e seu infante,

que se tornaria D. Pedro I. Na carta de doação, Eugenia Neves solicita que o objeto fosse exposto
162
Ofício 215, 10/10/1928. Apud MAGALHÃES, Aline Montenegro. Culto da saudade... op. cit. p. 33.
163
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. DICOP. Proc. 15/24, 1924.
164
Id. Ibid.
89
com uma etiqueta constando que a placa pertenceu à coleção de Jeronymo Ferreira das Neves,

sendo oferecida por sua viúva ao Museu. A solicitação foi atendida pelo diretor do MHN, como

consta na carta em agradecimento à doação “[…] a mesma relíquia figurará nas coleções desta

casa como tendo pertencido à coleção Jeronymo Ferreira das Neves […] de acordo com o desejo

expresso em sua carta de 22 do corrente [1929]”.165

Doar objetos ao MHN foi uma prática privilegiada para a consagração e a perpetuação de

alguns membros da elite na história nacional, cujo exemplo mais significativo é a doação da

coleção de Miguel Calmon por Alice da Porciúncula Calmon du Pin e Almeida. Como observou

Regina Abreu, houve nesse gesto uma relação de troca entre a instituição e a viúva. A doação foi

de tal monta – pelo número de objetos e pelo seu valor monetário – que seu reconhecimento

deveria ser expresso publicamente nas galerias do MHN, consagrando e imortalizando a memória

de Miguel Calmon, político que, entre outros cargos públicos, foi deputado federal e ministro de

Viação e Obras Públicas no governo de Afonso Pena.

Em carta de 1935, Gustavo Barroso iniciou a conversa formal sobre a doação dos objetos

de Calmon:

Excelentíssima Senhora Miguel Calmon,


Informado que V. Ex. pretende, confirmando o elevado espírito cívico e as
tradições de grande patriotismo que aureolam o nome do seu esposo, o ilustre
estadista Miguel Calmon, doar ao Museu Histórico Nacional os objetos
destinados a comemorarem de maneira condigna e perene a memória e os
serviços ao país do mesmo pranteado brasileiro, apresso-me em manifestar a V.
Ex. o nosso perfeito apoio a essa iniciativa, e a franquear-lhe as nossas
instalações, para que pessoalmente, ou como desejar, todas as providências sejam
tomadas tendentes àquele objetivo.
O Museu é a casa do Brasil, pela perpetuidade de sua exposição e sentido
nacional dela. V. Ex. disto se certificará, se houver por bem aceitar este
oferecimento, concorrendo, com a aludida doação, para a consagração conjunta
de um grande nome e de uma época social e administrativa a este ligada. 166

O que Barroso oferecia era a perpetuação da memória de Miguel Calmon e a possibilidade


165
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. DICOP. Processo. 25/29, 1929.
166
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. DICOP. Processo, 15/36, 1936.
90
de a viúva ter alguma gerência sobre os objetos doados. A oferta agradou Alice Porciúncula que,

em resposta ao diretor do Museu, condicionou sua doação a uma série de exigências. A primeira

estabelecia que a coleção não poderia ser desmembrada; a segunda, que a arrumação, classificação

e conservação da coleção seria de inteira responsabilidade da doadora; a terceira, que a sala de

exposição deveria levar o nome de Miguel Calmon; a quarta compromete a segurança e a limpeza

dos objetos ao MHN e a quinta estabelece que a coleção deverá sempre estar no Museu e que os

objetos deveriam retornar à propriedade da viúva, em caso de extinção da instituição. 167 Gustavo

Barroso aceitou prontamente as exigências, tendo por “[…] compromisso de honra da

administração do Museu Histórico as condições que clausulam a referida doação [...]”. Ao fim,

foram doados 672 objetos, a maior parte relacionados à família imperial, à família Góis e à família

Calmon. A doação incluiu também documentos pessoais de Miguel Calmon, principalmente

vinculados à sua atuação como homem público,168 objetos de arte, como um quadro do pintor

Nicolau Poussin, armas, mobília e a biblioteca pessoal de Calmon.

Desde a década de 1930, o MHN vinha expandindo suas galerias, passando a ocupar os

demais espaços do complexo arquitetônico que o abriga e que, até então, eram utilizados por

outras repartições públicas, como o Ministério da Agricultura e algumas seções do Supremo

Tribunal Federal. Ao nomear as novas galerias do MHN em homenagem a figuras da elite

nacional que tinham-se destacado como grandes doadores do Museu, como não só o caso da sala

Miguel Calmon, mas também das salas dos Ottoni e dos Guinle, torna-se evidente que Barroso

queria, além de estimular as doações e o enriquecimento do acervo do Museu, consolidar uma

administração de acervo baseada nos “fundamentos materiais e taxionômicos da veneração

museográfica aos vultos históricos e figuras da elite que identificava como patronos e heróis”.

Como observou Regina Abreu,

167
Id.Ibid.
168
ABREU, Regina. A fabricação do imortal... Op. cit.
91
Perseguindo as origens da nação, o diretor do Museu Histórico Nacional
sedimentou na instituição uma história nacionalista com base no resgate de um
passado heroico. No projeto de conservação de objetos emblemáticos dessa
história, procurou recolher os símbolos das elites aristocráticas identificadas com
a fundação da nação brasileira. Assim, no Museu Histórico Nacional, ao
contrário de serem enfatizadas as novidades advindas com a implementação do
regime republicano, foram enfocados os vínculos, as continuidades com o Estado
Imperial português. Numa perspectiva de culto, um período histórico sobressaiu-
se dos demais: o Império. Personagens de uma tradição forjada no Império
mereceram salas especiais, como D. Pedro I, D. Pedro II, Caxias, Osório,
Tamandaré.169

Nesse esquema, as coleções particulares oriundas da aristocracia nacional tornaram-se as

principais doações recebidas pelo Museu, uma vez que as elites formavam o segmento de maior

penetração no MHN. Nesse sentido, as doações se configuravam como trocas rituais e simbólicas

que contribuíram para reabilitar o prestígio de grupos esmaecidos pelo advento da república.

Ulpiano Bezerra de Meneses observa que a coleção privada é a forma, senão exclusiva, pelo

menos dominante, pela qual objetos pessoais expõem-se à esfera pública. 170 No caso das coleções

pessoais doadas ao MHN, a divisão entre público e privado é bastante tênue, uma vez que seus

principais doadores eram pessoas vinculadas ao Estado e aos feitos militares e, consequentemente,

à história nacional. Como observa Pomian, a coleção pessoal aparece, desde cedo, nas sociedades

estatais, urbanizadas e divididas em categorias sociais distintas, como o mandarinato, o

patriarcado ou uma aristocracia rica e letrada, nas quais seus membros não se dedicam ao ato de

colecionar somente pelo interesse nas artes, antiguidades e curiosidades, mas também como um

instrumento de rivalidade entre as linhagens e os indivíduos. Neste contexto, há um forte vínculo

entre o colecionador e sua coleção, que se apresenta como uma parte e um prolongamento dele

mesmo e, para os outros, como seu autorretrato, composto por objetos que ele escolheu exibir,

representando seu status, sua riqueza, sua sensibilidade, suas espirações e seus gostos. Nas

palavras de Pomian, à la différence du trésor dont la formation et le contenu sont imposés par le

169
Id. p. 200.
170
MENEZES, Ulpiano T. Bezerra de. Memória e cultura material: documentos pessoais no espaço público. Revista
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, ano 1998, p. 89-103.
92
rôle social et ne dépendent qu'accessoirement de l'individualité de son titulaire, la collection

particulière est, dans une très large mesure, tributaire du rang et du caractère de son auteur. 171

Ainda de acordo com Pomian, paralelamente à sua individualização, a coleção particular se

desconecta cada vez mais da esfera do sagrado, na qual encontravam-se ainda os tesouros,

incluindo os laicos. Ela se destaca por sua composição: as relíquias dos santos e os objetos feitos

de materiais preciosos que remetem ao universo religioso são substituídas progressivamente pelas

obras que apontam para ações de autores humanos.172 A coleção particular expressa tanto a

autoridade do seu autor como a publicização da sua vida particular, tornada ela mesma exemplo e

parte da história. Esses objetos, quando adquiridos por instituições museológicas, assumem uma

dimensão pública e secularizada, o que não impede que determinadas práticas coletivas de origem

religiosa sejam ressignificadas, como mostra Pomian ao explicar que a secularização das coleções

guarda, ainda que de forma tênue, uma relação com o sacrifício.173 Muitos objetos doados aos

museus são valiosas obras de arte, relíquias familiares, joias, condecorações, mobiliário nobre,

enfim, objetos que foram agregados a algum tipo de valor monetário, histórico ou sentimental. As

doações são interpretadas como atos de patriotismo, como dádivas ofertadas por aqueles que

abrem mão desses tesouros para oferecê-los à nação e às gerações vindouras. É um ato de

sacrifício que fazem no presente em prol do futuro. As doações aos museus também encerram

circuitos familiares, uma vez que, a partir da entrada em instituições como o MHN, esses objetos

são incorporados e administrados pelo Estado, tornando-se públicos.

A relação com colecionadores de grande porte e “famílias ilustres” mostra que os objetos

adquiridos pelo MHN circularam no interior da elite brasileira, indicando laços de sociabilidade
171
POMIAN, Krzysztof. Des saintes reliques à l'art moderne. Venise-Chicago XIII-XX siègle. Paris: Gallimard, 2003.
p.11. [diferente do tesouro, cuja formação e conteúdo são impostos pelo papel social e que não dependem,
complementarmente, da individualidade de seu titular, a coleção particular é significativamente dependente da
hierarquia e da natureza de seu autor.] Tradução livre do autor.
172
Id. Ibid.
173
Id. Ibid.
93
que permeavam as aquisições de acervo. Como observado por Abreu, muitos objetos doados ao

Museu vêm de relações antigas, na forma de trocas de presentes, são bens de família, peças

bastante antigas que percorreram redes de sociabilidades ao longo dos tempos. 174 Os personagens

representados nessas doações formam uma amostragem importante das elites nacionais,

consagradas na história nacional exibida no MHN pela exposição de seus objetos. As doações de

grande volume e valor econômico, realizadas no período de direção de Gustavo Barroso, ainda

nos dias de hoje constituem as peças com maior valor de mercado da instituição. Trata-se de

grandes doações que pretendiam preservar o brilho de nomes de famílias tradicionais, esmaecido

pelo declínio do Império e início da República.175

A autenticação dos objetos oriundos das coleções particulares se dá, não exclusivamente,

mas consideravelmente, a partir da ligação genealógica ou social do proprietário do objeto com

seus possuidores no passado, seu criador e o seu ambiente contextualizado. Assim, o sangue era

uma categoria fundamental para atestar autenticidade histórica, uma vez que, na visão de Barroso,

a história nacional era fundamentada na ação dos grandes homens na edificação nacional. Através

das árvores genealógicas repetia-se o exercício de construção da tradição de uma elite que, por ser

considerada como fio condutor da formação nacional, tinha sua importância histórica assegurada.

É o que pode ser visto na carta do sr. José Geraldo de Bezerra Meneses, encaminhada ao diretor

do MHN em 1929 sobre a doação de “relíquias sagradas de família” que pertenceram a Leandro

Bezerra Monteiro, político de destaque no período do Império com atuação no Ceará e na

chamada “questão religiosa”:

Meu caro Gustavo [...] Venho trazer-lhe duas relíquias sagradas de família, que,
por herança, me pararam em mãos, e as ofereço ao MHN, cujo zeloso diretor
você é, e onde melhor ficarão guardadas. Há muito lhe prometera [...] o copo e o
174
ABREU, Regina. Fabricação do imortal... Op. Cit. p. 47.
175
Id.p. 150: Daryle Williams observa que há poucas indicações de doadores intencionados em ganhos de valor
econômico ao realizarem as ofertas, os ganhos eram sempre em capitais simbólicos. WILLIAMS, Daryle. Sobre
patronos e heróis e visitantes: o Museu Histórico Nacional, 1930 – 1960. Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de
Janeiro, v. 29, p. 141-183, ano 1997.
94
pires de prata por onde bebia o meu bisavô Brigadeiro Leandro Bezerra
Monteiro, fundador do Juazeiro. É trabalho feito naqueles remotos tempos, entre
fins do século XVIII e princípios do XIX, no Crato (Ceará) pelo ourives Gomes
de Mattos [...] Em separado, dou-lhe a minha descendência do velho patriarca, –
só para provar ser um bisneto dele quem faz essa dádiva ao Museu Histórico. 176

A carta é acompanhada de uma genealogia que comprova o doador como “descendente

legítimo do Brigadeiro Leandro Bezerra Monteiro, o patriarca fundador de Juazeiro”. A pequena

genealogia apresenta notícias sobre feitos de sua vida e morte, construindo a trajetória da família

até o doador. Menciona-se também uma biografia publicada no Instituto Histórico e Geográfico

do Ceará, com informações sobre os cargos públicos ocupados por membros da família e sua

relação com o Imperador. Este conjunto de referências atribui importância ao proprietário dos

artefatos e legitima a entrada de seus objetos nas coleções do MHN.

Em 11 de novembro 1931, por exemplo, José Philadelpho de Barros e Azevedo escreveu

ao MHN uma declaração sobre a trajetória de uma espada de oficial do exército do segundo

reinado, doada por ele ao Museu. A declaração mostra que, além do valor do objeto em si – uma

espada antiga do 2º reinado –, seu valor é acrescido pelos proprietários que a possuíram:

Declaro que a espada de oficial do exército do 2ª reinado, que ofereço ao Museu


Histórico Nacional, pertenceu ao coronel Frederico Carneiro de Campos, que, ao
partir para assumir a presidência da província de Mato Grosso, em 1864, a dera a
seu ajudante na direção da fábrica de pólvora Estrella e sobrinho afim
Philadelpho Augusto Ferreira Lima, depois diretor da mesma fábrica durante
todo o período da guerra e afinal falecido como general reformado do exército,
tendo pertencido à arma de engenharia. Declaro mais que o referido general
Philadelpho era meu avô materno, e estimava essa relíquia como sendo do
próprio Carneiro de Campos, podendo neste caráter figurar nas coleções do
Museu Histórico, como doação minha na qualidade de representante da família.
[assinado por José Philadelpho de Barros e Azevedo] 177

Em 1932, Wanderley Pinto escreveu ao então diretor do MHN Rodolpho Garcia, durante o

período de afastamento de Gustavo Barroso, uma carta sobre a doação de um chambre de seda que

teria pertencido a Solano López. A carta apresenta os mesmo elementos.

176
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, DICOP. Processo: 11/29, 1929. [Grifos meus]
177
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, DICOP. Processo. 03/31, 1931.
95
Meu caro Dr. Rodolpho Garcia,
Receba minhas cordiais saudações.
Sou portador da dádiva, que fazem ao Museu Histórico Nacional D. Maria Luiza
Wanderley de Araújo e Pinho e Antônia Thereza Wanderley, de um chambre de
seda que pertenceu ao ditador paraguaio Solano López. Como lerá na carta que
aqui junto, não chegou a ser vestido por López, foi presa do regimento de S.
Martin e pelo seu comandante oferecido ao general Vedia. Este general ofereceu
ao visconde do Rio Branco que, por sua vez, dele fez presente ao Barão de
Cotegipe, acompanhando a carta que me refiro, carta esta que servirá para
autenticar aquela relíquia histórica.
Por morte do Barão de Cotegipe passou aquele chambre à posse de suas filhas
que, hoje, por intermédio meu, o oferecem ao Museu Histórico Nacional.
Creia, dr. Rodolpho Garcia, que sou, como sempre
amor, amº e cr. att. [Assinado por Wanderley Pinto]178

Na documentação sob guarda do MHN não encontramos a referida carta do visconde de

Rio Branco autenticando o chambre, contudo, pela resposta de Rodolpho Garcia, percebe-se que

ela teve um papel importante na certificação de autenticidade do objeto.

Acuso recebida da sua amável carta, a que acompanhou o “robe de chambre” que
foi do marechal López, autenticado graças à mesma carta em que o Visconde de
Rio Branco a ofertava ao Barão de Cotegipe a relíquia do mais alto valor que o
conhecido patriotismo e as excelsas virtudes cívicas das duas filhas de Cotegipe,
as Exms. Senhoras D.D. Maria Luiza Wanderley de Araújo Pinho e Antônia
Thereza Wanderley, quiseram ficas [sic] e pertencendo à Nação, nos mostruários
desse museu.
Agradecendo-lhe a generosa dádiva, feita em nome de sua mãe e tia, a essas
nobres senhoras apresento os testemunhos do nosso reconhecimento, esperando
que, em breve, o Museu Histórico Nacional tenha sua sala Cotegipe, digna do
estadista, por tantos títulos notável [...]. Aceite o prezado amigo e confrade os
nossos cumprimentos cordiais. [Assinado por Rodolpho Garcia]

A doação do estojo com “instrumentos de Tiradentes” ofertado pela embaixatriz Júlia da

Fonseca de Sarti ao MHN. em 1955, segue o mesmo padrão. Tal como nos outros casos, além da

carta do doador ao diretor do MHN, os objetos vieram acompanhados de uma documentação

probatória. Os instrumentos foram doados, em 1855, a Herculano José da Rocha Maia por um

parente de Tiradentes. Rocha Maia os entregou a Fausto Magalhães Maya que, por sua vez, os deu

de presente, em 1901, ao marechal Pedro Paulo da Fonseca Galvão, pai da doadora embaixatriz

Lia Sarti que, em 9 de março de 1955, doou os instrumentos de Tiradentes ao MHN.

178
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, DICOP, Processo. 06/32, 1932.
96
Exmo. Sr. Gustavo Barroso,
Impossibilitada de comparecer pessoalmente, encarreguei meu neto Pedro Paulo
de entregar a V. Ex. os ferros de Tiradentes, que foram doados ao meu pai, o
Marechal Pedro Paulo da Fonseca Galvão por pessoa da família do glorioso
mártir da nossa independência. Junto vão os documentos comprobatórios da
veracidade dos mesmos.
Aproveito esta oportunidade para reiterar a V. Ex. os protestos da minha alta
estima e consideração,
Júlia da Fonseca de Sarti.179

Segue a transcrição dos referidos documentos comprobatórios:

Ao Exmo. Sr. Coronel Pedro Paulo,


Ofereço estes ferros que foram de Alferes Joaquim José da Silva Xavier – O
Tiradentes – como lembrança no nosso velho amigo Herculano José da Rocha
Maia que os obteve em 1855 de um parente do finado Alferes que residia na
fazenda do Pombal [em] S. João d’El Rei.
A vosso amigo respeitador e agradecido,
[assinatura de Fausto Magalhães Maia com firma reconhecida]
S. João d’El Rei, 4 de julho de 1901.180

Na declaração transcrita acima não há nenhum outro elemento de autenticação, a não ser a

palavra de seus proprietários, provando que realmente os instrumentos pertenceram a Tiradentes.

A entrega dos objetos ao MHN ocorreu num momento especial na instituição. Em 1955 o Museu

inaugurava uma nova exposição sobre a história nacional. Na cerimônia de inauguração esteve

presente o então presidente da República Café Filho, que recebeu pessoalmente as relíquias

atribuídas ao inconfidente. Esta doação é interessante, uma vez que a presença do presidente é

uma autoridade a mais no processo de sacralização do objeto no MHN. Em 16 de março de 1955,

Barroso escreveu à srª. de Sarti dando notícias da cerimônia.

Venho agradecer-vos vivamente a preciosa oferta feita ao Museu Histórico


Nacional do estojo contendo os instrumentos dentários de José Joaquim da Silva
Xavier [sic], o grande mártir da Inconfidência Mineira. Essas relíquias únicas e
de valor inestimável já se encontram devidamente expostas na vitrina em que a
Casa do Brasil guarda outras lembranças de Tiradentes, em face do quadro de
Pedro Bruno que o representa na madrugada do suplício e junto aos restos do
patíbulo em que foi executado. Ali foram postas pelas mãos do Exmo. Sr.
Presidente da República, dr. João Café Filho, o qual as recebeu da pessoa do seu
jovem representante Pedro Paulo Sérgio da Fonseca Galvão, promissor rebento
179
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, DICOP, Processo 01/55, 1955. [Grifos meus]
180
Id. Ibid.
97
da gloriosa estirpe..181

181
Id. Ibid.
98
Figura 5: Instrumentos de dentista. Acervo MHN. Foto: MHN / Reserva Técnica.

99
Figura 6:Documento de autenticidade dos objetos. Acervo do MHN.

100
Figura 7:Verso do mesmo documento, com firma reconhecida. Acervo do MHN.

101
O culto dos grandes heróis das batalhas da Guerra do Paraguai rendeu, igualmente, relíquias ao

acervo do MHN. Para Barroso, este episódio militar foi o último ato da “epopeia bandeirante que

constituiu a pátria brasileira [...] o último episódio da grande epopeia escrita por todos os

quadrantes da terra brasileira por nossos antepassados”. 182 O acervo relativo ao conflito é

composto por objetos diversos: troféus de guerra, fragmentos de embarcações, como a roda do

leme da Fragata Amazonas, armas paraguaias retiradas do campo de batalha, objetos pessoais de

veteranos e utilizados nas campanhas, pinturas de história, fotografias, projéteis de canhões,

figuras de proa. Muitos destes objetos são oriundos de transferências de instituições como o

Museu Naval e o Colégio Militar. Outra parte é formada por doações de familiares ou particulares,

como no caso dos objetos de veteranos da guerra e dos objetos relacionados às batalhas

canonizadas na historiografia militar, como as batalhas de Tuiuti, Humaitá, Avaí, a passagem do

Chaco e a passagem de Humaitá. Em 2 de maio de 1923, Manoela Osório de Mascarenhas, filha

do General Osório, doou 97 objetos de uso pessoal do General. Como de costume, a doação veio

acompanhada de uma carta.

Em atenção aos nobres e patrióticos fins que teve o governo federal, criando o
MHN, nesta cidade, cumpro o grato dever de ofertar para serem expostos, nas
salas do referido museu, os objetos relíquias [...] que pertenceram ao meu pai, o
Marechal Manoel Luis Osório, Marquês do Herval [...] e que atualmente me
pertencem, com a condição, porém, de serem esses objetos e relíquias restituídos
a mim, ou aos meus herdeiros, no caso de requisitarmos, ou por supressão do dito
museu [...].183

Dentre os objetos ofertados, três chamam atenção: uma caixinha de vidro com esquirolas,

dentes e fragmentos de bala, provenientes do ferimento do maxilar inferior do general Osório

quando comandava a batalha do Avaí, lança e poncho perfurado por balas na ocasião do combate

da passagem do Riachuelo. A doação não menciona em que situação e tampouco como estes

objetos foram conservados, porém as relíquias foram valorizadas durante anos no MHN, até que,

182
BARROSO, Gustavo. História militar do Brasil. São Paulo: Brasiliana, 1935. p. 211. [Grifos meus].
183
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, DICOP. Processo, 03/23, 1923. [Grifos meus].
102
em 1983, foram transferidas juntamente com diversos objetos da coleção Osório ao Exército

Brasileiro, ficando sob a guarda da Casa de Osório, localizada no Centro da cidade do Rio de

Janeiro (RJ). Na década de 1990, com o fechamento da Casa de Osório o acervo foi enviado ao

Museu do Exército, no forte de Copacabana. Parte dos objetos estão também no Museu Conde de |

Linhares, em São Cristóvão, Rio de Janeiro.

A doação de Manoela Osório deu origem à Sala Osório, anteriormente denominada Sala

dos Troféus, e que era composta por objetos militares e troféus de guerra. A Sala Osório foi a

primeira a receber o nome de um “personagem histórico” no MHN. A sala, nas palavras de

Barroso,

[...] é uma das mais ricas do MHN pelo valor das relíquias do Grande Soldado
nela expostas: suas armas, seus retratos, seu poncho transpassado pelas balas
paraguaias e até os próprios dentes e fragmentos de ossos extraídos no profundo
ferimento recebido em Avaí. Logo no início do MHN, a família Osório,
compreendendo o alto significado patriótico da instituição [...] se apressou em
por à disposição do diretor do museu as preciosas recordações do vencedor de
Tuiuti [...].184

Nos anos 1930, Pedro de Veiga Ornellas, secretário de gabinete do MHN de 1922 até o

final dos anos 1940, descrevia em artigos publicados na imprensa, e posteriormente reunidos em

livro, as “relíquias da pátria” conservadas no MHN. Seu texto sobre a Sala Osório destaca, entre

as principais relíquias, os dentes do velho general, a lança e o poncho perfurado por balas.

De conformidade com a norma adotada em artigos anteriores publicados na


imprensa local, sobre as numerosas relíquias da Pátria existentes no Museu
Histórico Nacional, descrevemos hoje, as que ornamentam e sublimam de modo
icástico a sala denominada 'Osório' evocativa de um passado indelével e glorioso
que reflete a epopeia de uma raça e o legítimo orgulho de uma povo amante de
suas tradições. Queremos objetivar aqui nestes perfunctórios traços, os feitos
heroicos do ínclito brasileiro que se chamou Manoel Luis Osório, o inolvidável
Marquês de Herval, o invicto general que na defesa do Brasil contra o Paraguai,
cristalizou o exército nacional, exemplificando a disciplina, o patriotismo e a
civilização do nosso país naquele memorável período marcante da nossa história,
da nossa independência e da nossa soberania perante as nações do orbe terráqueo
[...] Assim, pois, com este simples esquema sobre a personalidade incomum de
militar em apreço, passemos a enumerar sem hipérboles e sem apanaforas, as
alfaias consideradas relíquias que lhe pertenceram e que atualmente entesouram o

184
BRASIL,MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, DICOP, processo 05/29, 1929. [Grifos meus]
103
patrimônio nacional, zelosamente agasalhadas no gazophylaceo que é o Museu
Histórico Nacional, na parte referente à Sala Osório. Estojo de cristal contendo
esquirola do maxilar, dentes e fragmentos de bala provenientes do ferimento que
recebeu no rosto o general Osório, quando comandava, ao terminar a célebre
batalha do Avaí; lança usada pelo mesmo General na campanha do Paraguai;
poncho com orifícios produzidos por balas, que o bravo guerreiro vestia em
combate do reconhecimento de Humaitá [...].185

A tradição familiar como critério de autenticação é encontrada também em documentos

oriundos de transferências de acervo ao MHN por outras instituições. Em 28 de setembro de 1926,

o diretor da Escola Nacional de Belas Artes enviou uma carta ao MHN sobre a transferência de

uma mesa que teria pertencido ao presidente paraguaio Solano López. Consta o seguinte:

Existindo nesta Escola uma mesa de mogno, com pedra mármore e que, segundo
documento em poder desta diretoria, serviu para o ditador Solano López assinar a
declaração de Guerra ao Brasil, venho solicitar-vos as necessárias providências
para sua remoção para esse museu, dado o valor histórico da mesa. A referida
mesa, que pertenceu ao Conselheiro Cândido de Oliveira, foi oferecida a este
estabelecimento pelo sr. Gustavo Masset, que arrematou em leilão precedido
pelos descendentes daquele titular [...].186

O documento que atesta a autenticidade da mesa é marcado por elementos de autoridade

familiar, nos seguintes termos:

O irmão do ditador paraguaio Solano López foi constituinte do meu pai. Finda a
questão que meu pai tratou, o seu cliente ficou a lhe dever 10:000$00. Não tendo
com o que pagar, deu ao meu pai a mesa de mármore em que Solano López
assinou a guerra contra o Brasil. O fato é verdadeiro, assim como posso garantir a
autenticidade da mesa. [Assinado por Pedro de Alcântara C. de Oliveira. Rio de
Janeiro, 05/09/1919. Gustavo Leuzinger Masset abaixo assinado declara ter
comprado em leilão do espólio do Conselheiro Cândido de Oliveira, à rua Dr.
Aristides Lobo, n.º 229, em 10 de setembro de 1919 a mesa que se refere o
documento acima e que pertenceu ao ditador paraguaio Solano López. Rio de
Janeiro, 10 de setembro de 1919, assinado Gustavo Masset].

Em outra transcrição de carta sobre a autenticidade das mesas, lê-se:

Exmo Sr. Professor J. Batista da Costa. Caro Sr. e amigo Gustavo Masset abaixo
assinado tendo adquirido em leilão há anos passados [...] uma mesa de mogno em
um pé só que pertenceu ao ditador do Paraguai, Solano López, e que conforme a
tradição da família e o documento em meu poder que junto lhe remeto, diz que
nela que o ditador assinou a proclamação de guerra ao Brasil, resolveu ofertá-la à
Academia de Belas-Artes afim de ser conservada no museu como relíquia do
passado esperando que seja aceita esta insignificante dádiva. De V. Ex. criador e
185
ORNELLAS, Pedro. Relíquias da Pátria. Rio de Janeiro: 1944.
186
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, DICOP, Processo, 18/26, 1926. [Grifos meus]
104
admirador amigo. [Assinado Gustavo Masset.]187

Em alguns casos, os próprios doadores afirmam a incerteza sobre a autenticidade, como

ocorrido em 4 de dezembro de 1926, na correspondência escrita pelo coronel Teixeira de Freitas,

então chefe do Estado Maior da Presidência da República.

Tenho a satisfação de remeter a V.S. uma caixa contendo um par de dragonas e


uma faixa tricolor, como uma nota manuscrita que diz: “Esta faixa pertenceu ao
ditador Solano López do Paraguai e foi por ele abandonada em sua barraca, numa
das suas fugas precipitadas dos últimos tempos, quando perseguido pelo general
Câmara”. Essa caixa, com os objetos referidos, foi encontrada neste Estado
Maior sobre minha mesa, não se sabendo quem a trouxe, nem quando. Tratando-
se, entretanto, de assunto que talvez possa interessar ao Museu Histórico,
submeto-o a sua apreciação para averiguar do seu possível valor como relíquia
histórica. Sem outro, com seu alto apreço e mui distinta consideração. [Assinado
por coronel Teixeira de Freitas]

Os objetos em questão foram aceitos pela direção do MHN, que agradeceu em carta a

oferta afirmando que “[...] embora faltem meios para apurar a autenticidade no rigor absoluto

daquela indicação, faço reunir a aludida faixa, sem dúvida valioso troféu, à coleção existente no

Museu, com a declaração de que é considerada como objeto abandonado pelo presidente

paraguaio numa das suas fugas”.188

Situação semelhante é encontrada na doação de alguns objetos referentes ao Duque de

Caxias. A documentação de entrada do acervo na instituição mostra que os dispositivos de

valoração na musealização dos seus objetos não diferem daquelas já analisadas, como no caso da

doação de objetos por sua neta em 1929.

Possuindo alguns objetos que pertenceram ao meu saudoso avô, o sr. Marechal
Duque de Caxias, venho por intermédio do meu filho Edgard, oferecer os
referidos objetos à repartição que com tanto brilho e dedicação V. S. dirige; aos
quais são os seguintes: a comenda da Ordem da Rosa, concedida ao avô, depois
de concluída a guerra da Cisplatina, quando foi nomeado cavalheiro da mesma
ordem por Decreto de 18 de outubro de 1829. Um sinete com brasão d’armas e
um álbum com diversas fotografias do acampamento das forças brasileiras contra
o governo do Paraguai, inclusive a do quartel general do meu avô em Cuyu-Cuê.

Lamentando não possuir mais nenhum objeto que possa preencher o fim que V.S.
187
Id. Ibid. [Grifos meus]
188
Id. Ibid.
105
deseja subscrevo-me agradecida,

Mariana Carneiro N. da Gama [Copacabana, 3 de abril de 1929] 189

Outro termo de doação, de 1939, segue o mesmo padrão. Trata-se de um rebenque

atribuído a Solano López que teria sido encontrado perto de seu cavalo na ocasião de sua morte. A

doação foi feita pelo presidente Getúlio Vargas, tendo o rebenque pertencido ao seu pai, o general

Manoel Nascimento Vargas, veterano da Guerra do Paraguai. Junto com a doação veio o

manuscrito transcrito abaixo.

Meu caro Gal.,


Esta relíquia foi encontrada ao lado do cavalo de Solano López, lancerado pelo
Chico Diabo. O Gal. Paranhos deu-a ao Visconde de Rio Branco; este ao Barão
deixou-o à família; e o Nabuco de Gouvea me a ofertou. Ele fica melhor nas
mãos do valioso chefe militar Gal. Manoel Vargas, tendo sido herói na guerra e
na paz. Do seu admirador [Assinado por A. Simão Lopez, em 6 de setembro de
1939.]190

Caso onde apenas o nome do doador é suficiente para atestar autenticidade ocorreu com a

doação de uma espada que D. Pedro I teria usado na ocasião do Grito do Ipiranga. A espada foi

doada pelo então ministro da Guerra Eurico Gaspar Dutra em 1944, sem nenhum tipo de

documento ou explanação sobre a sua autenticidade, tampouco em que circunstâncias o objeto

teria parado nas mãos do ministro.

Exmo. Sr. Dr. Gustavo Barroso, Presidente [sic] do Museu Histórico Nacional. É
o Exército depositário duma relíquia sagrada – a espada que D. Pedro I
empunhou com energia e valor... Nas mãos do impávido Imperador só foi
honrada, pois o punho de ferro do seu dono soube elevá-la bem alto ao declarar a
independência de nossa Pátria. Ao comemorarmos mais um aniversário da nossa
liberdade política, tive a lembrança de enviar-lhe o símbolo da honra do soldado,
que foi cingido à cinta do herói de duas Pátrias, D. Pedro I. A espada que lhe
envio [...] deve ficar guardada no seu benemérito Museu, pois ela é mais do
Brasil do que do Exército. Guarde-a, Senhor Diretor, guarde-a com carinho,
porém de modo que todos os brasileiros possam vê-la, porque essa espada do
homem másculo que nos tornou libertos da metrópole, tem uma significação –
Confiando nas suas forças armadas, o Brasil será independente e forte para
sempre.191

189
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, DICOP, Processo, 11/30, 1930.
190
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, DICOP, Processo, 11\39, 1939. O manuscrito também pode ser
encontrado no Arquivo Histórico do MHN, coleção GV 1\54-3.
106
Em agradecimento, Barroso reforça o valor relicário de tal doação:

Exmo. Sr. General Eurico Gaspar Dutra D. D. Ministro da Guerra. Entregando à


guarda do Museu Histórico Nacional a espada de D. Pedro I, primeiro Chefe da
Nação Brasileira, preciosa oferta do Exército de Portugal ao Exército do Brasil,
praticou V. Ex. um gesto de alto significado no momento presente e de
desvanecedora confiança na instituição destinada a expor e conservar as relíquias
sagradas da Pátria [...] A confiança de V. Ex. nesta Diretoria, tão grande que a ela
transfere o dever de velar por esse símbolo da honra do guerreiro e legado
glorioso, não só desvanece, exalta e comove o Diretor da Casa do Brasil, como é
a mais generosa recompensa do seu entranhado amor pela tradição brasileira,
sobretudo pela sua glória militar, expressa de trinta anos a esta parte em diversos
trabalhos publicados. Nas aulas do Curso de Museus, no qual se formam os
futuros defensores de nossas relíquias e relicários, diz-se constantemente que no
Museu Histórico se aprende a defender a Pátria. De fato, a defesa de nossas
tradições é uma verdadeira escola de civismo e de homenagem aos heróis do
passado. Cultuando-os e defendendo as glórias do Exército Nacional através da
História, o Museu já tem organizadas as salas Duque de Caxias, General Osório e
Conde Porto Alegre, onde o Povo vê os objetos que relembram esses grandes
vultos e os nossos principais feitos militares […]. 192

Todavia, quando o proprietário não dispõe de um nome que lhe dê autoridade para atestar a

autenticidade histórica do objeto doado, as coisas ocorrem de forma diferente. É o que se pode

observar no ocorrido iniciado a partir de uma matéria do jornal Lavoura e Comércio da cidade de

Monte Alegre de Minas Gerais (MG), que em 1938 publicou uma matéria intitulada “Estará em

Monte Alegre uma preciosíssima relíquia histórica?”. A matéria abordava a existência de uma

relíquia dos tempos de D. João VI em Monte Alegre, sendo propriedade de um homem chamado

Messias da Rocha, pertencente à “grande e considerada família Xavier Brandão”, do estado de

Goiás. Messias da Rocha, tendo residido muitos anos naquele estado e no Pará, mudou-se para

Monte Alegre, onde ficou gravemente doente. A relíquia que o jornal alardeava em matéria de

uma página inteira era um crucifixo com a imagem de Cristo talhada em marfim e a cruz em

jacarandá. De acordo com a matéria,

Essa imagem teria sido presenteada a um padre da família Xavier Brandão que
regressando mais tarde para o estado de Goiás transmitiu essa relíquia aos seus
sucessores e estes, por sua vez, a transmitiram aos seus descendentes até que,
finalmente, ela se encontra em poder do sr. Messias da Rocha […]
191
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, DICOP, Processo, 08\44, 1944.

192
Id. Ibid.
107
O historiador goiano Henrique Silva, que teve o ensejo de verificar
detalhadamente essa relíquia, manifestou sua opinião a respeito, atribuindo sua
autoria aos artistas quinhentistas de Portugal, pois só os artistas portugueses
dessa era seriam capazes de produzir obra tão perfeita.
[…] vários colecionadores de preciosidades históricas que percorreram o estado
de Goiás manifestaram desejos de ver essa imagem, e satisfeitos em sua vontade,
chegaram, mesmo, ao ponto de solicitar ao seu proprietário para abrir o preço da
mesma.
Trata-se, assim, de uma relíquia que, segundo tudo está a indicar, possui o maior
valor artístico e histórico, sendo de se desejar que o Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional se inteirasse dessa ocorrência para as necessárias
providências, no sentido da reivindicação dessa preciosidade para o patrimônio
histórico e artístico do Brasil.193

A matéria publicada no Lavoura e Comércio foi enviada por Messias da Rocha junto com

uma carta ao presidente do IHGB, Manoel Cícero, acompanhada de uma fotografia do objeto,

solicitando que a referida instituição comprasse sua relíquia, uma vez que ele julgava que um bem

daquela grandeza deveria ficar no Brasil, devido à sua importância histórica para o país.

Argumentava Messias da Rocha que vários colecionadores estrangeiros o haviam procurado com

interesse de comprar o crucifixo, negócio sempre recusado por ele e por sua esposa. Afirmava em

sua carta:

[…] De fato temos a imagem como a do culto de D. João VI, baseado nas
pesquisas de roteiro retrospectivo pelo grande historiador goiano capitão
Henrique Silva, pois ele verificou ter sido ela do padre João Brandão adquirida
pelo padre Manoel e este do padre José Maurício que oficiava na Capela
Imperial. […] Há anos por um roteiro apareceu em nossa casa um ilustre cidadão
argentino, colecionador de preciosidades históricas, artísticas e antiguidades, e
pedindo a imagem para ver foi grande o seu desejo de adquiri-la por compra, e
não conseguindo, disse me ele que estava certo ser crucifixo de D. João VI,
porque esculturas tão sublimes como esta só em Portugal em séculos remotos
havia escultores capazes para tanto.
Assim achando-me em cama por quase cinco anos, será meu maior desejo que
seja esta imagem adquirida em reivindicação pelo País por intermédio do
Instituto Histórico, impretando [sic] de V. Ex. as necessárias pesquisas ao fim do
meu desejo, cuja fineza saberei agradecer como humilde. [Assinado Messias da
Rocha.]194

O presidente do IHGB respondeu informando que o instituto não dispunha de verbas para

a compra do referido objeto e recomendou que Messias da Rocha procurasse o MHN, pois o
193
LAVOURA E COMÉRCIO. Estará em Monte Alegre uma preciosíssima relíquia histórica? [recorte de jornal]
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, Processo, 06/39, 1939.
194
Id. Ibid.
108
museu possivelmente teria interesse na compra. Em 18 de novembro de 1938, o proprietário da

relíquia enviou uma carta ao diretor do MHN informando igualmente seu desejo de que o objeto

ficasse no Brasil. No mesmo mês, o diretor do museu respondeu dizendo-lhe que, por se tratar de

final de ano, o museu não dispunha de verbas para compra de acervo, e solicitou que Messias da

Rocha aguardasse a virada do ano, quando o museu teria um novo orçamento, e que, assim feito,

enviasse o crucifixo por algum portador para que fosse feita uma avaliação.

Ainda em 1938, o diretor do MHN escreveu ao chefe de gabinete do Ministério da Saúde e

Educação, solicitando verba para a compra, acrescentando que a “a peça em questão me parece– a

julgar pela fotografia – de alto interesse artístico. No caso da exatidão das informações que a

acompanham será também de alto interesse histórico.”195

Em janeiro de 1939, Messias da Rocha escreveu ao MHN informando que Antônio José

Carlos Peixoto Filho seria o portador da relíquia. Também acrescentou mais informações sobre o

objeto, como sendo inicialmente um presente de D. João VI ao padre José Maurício, conforme

teria afirmado o historiador Henrique Silva. O objeto foi entregue para avaliação no MHN em

meados de fevereiro e, em maio de 1939, o MHN enviou uma carta a Messias da Rocha

solicitando o valor que gostaria que fosse pago pelo objeto. Em resposta, Messias da Rocha

informou que se considerava incompetente para fazer uma avaliação.

[somente] V. Ex. e demais técnicos, para darem à imagem o devido valor, de


modo que a nossa família fique amparada e satisfeita. A imagem há 24 anos me
foi confiada pelo oráculo da família, como patrimônio, e dali para cá tenho estado
em duelos constantes para não vendê-la. Ultimamente, com o noticiário da
imprensa, a nossa casa foi uma verdadeira romaria, especialmente de
estrangeiros.
A minha família compõe-se de nove pessoas, mas para efeito de reivindicação ela
se eleva a doze, porque tem mais três pessoas com direito à relíquia.
Há cinco anos acho-me paralítico e completamente inválido, razão pela qual
resolvi dispor da preciosa relíquia, mas que ela seja adquirida para a história do
nosso querido Brasil.196
195
Id. Ibid.
196
Id. Ibid.
109
Quem realizou avaliação do crucifixo foi o conservador Menezes de Oliva, chefe da 1ª

Seção de História do MHN. Segundo o seguinte parecer:

Sr. Diretor,
Não provou o Sr. Messias da Rocha a procedência histórica do crucifixo, que se
propõe vender ao Museu Histórico. Há apenas a alegação de ter sido “imagem do
culto de D. João VI”. É porém do ponto de vista artístico uma verdadeira joia,
digna de figurar nos nossos mostruários como estado eloquente da arte do século
XVIII. Creio, contudo, não ser possível, em matéria de preço, arbitrar, para
aquisição da mesma, um valor superior a R$ 5:000$000 (cinco contos de réis).
Este é o meu parecer.197

A avaliação ficou aquém do esperado por Messias da Rocha, que escreveu ao diretor do

MHN afirmando não ter, de fato, provas escritas sobre a autenticidade histórica do objeto.

Todavia, afirma que o crucifixo fora avaliado por colecionadores e pelo historiador Henrique

Silva, que tinham interesse na compra do objeto, e que todos asseguraram ter sido o crucifixo de

propriedade de D. João VI. Para reafirmar sua história, Messias da Rocha narra como o objeto

veio parar em sua família.

Há vinte anos anos, em Conceição do Araguaya, no estado do Pará, recebemos,


eu e minha senhora, dita imagem, por motivo do nascimento do nosso primeiro
filho. Ancestral de nossa família, doando a imagem ao recém nascido, declarou já
a possuir há muitos anos, historiando que a mesma lhe foi dada pelo padre João
Brandão, de nossa família, havendo-a esse de um seu colega de nome padre
Manoel. Este a recebeu de D. João como pagamento de uma dívida de seu
segundo possuidor, o padre José Maurício, grande amigo e capelão de D. João VI
que a recebeu de D. João como presente por qualquer motivo […].
D. Domingos Carrerol, bispo de Conceição, debalde insistiu para que fosse
aberto preço na imagem. Em Vianópolis, estado de Goiás, há quinze anos, um
cidadão de nacionalidade argentina, velho colecionador de preciosidades
históricas, pretendeu adquirir a imagem, oferecendo 20 contos que minha senhora
rejeitou. […] Foi diante de tudo isso que resolvi oferecê-lo ao museu, não pelo
preço estabelecido pelo sr. Menezes de Oliva.
Sempre considerei que a imagem, pelos valores histórico-artísticos deveria
figurar no nosso museu, como patrimônio do Brasil. Mas desde que eu não possa
lograr preço compatível com ditos valores, resolvo escrever nesta data ao sr.
Peixoto Filho para se entender com V. Excia. respeito seja recambiada a imagem
ao meu poder, mediante recibo que passará ao museu, conforme minha
autorização.[...]198

O fato é que, passados dois anos, em 1941, o MHN adquiriu o crucifixo pelo preço
197
Id. Ibid.
198
Id. Ibid.
110
estipulado por Menezes de Oliva, 5 contos de réis, conforme consta nos recibos da época. Não há

documentação informando se o crucifixo retornou às mãos de Messias da Rocha neste meio tempo

ou se ficou em posse do Museu até aquele ano, tampouco há notícias de como foi feito o acerto do

negócio. Porém, o que chama a atenção, neste caso, é que, apesar da qualidade técnica da

escultura, confirmada pelo próprio Menezes de Oliva e por Gustavo Barroso, e dos materiais

nobres empregados (marfim e jacarandá), o nome de Messias da Rocha não teve autoridade

suficiente para autenticar o caráter histórico de sua relíquia. Vários objetos coletados pelo Museu

foram autenticados a partir de declarações de seus proprietários, sendo que a de Messias da Rocha

não difere em aspectos formais das outras. Talvez por ele não pertencer a nenhuma família

vinculada às personagens que evocava, não tivesse a autoridade necessária, na concepção

museológica de então, para autenticar sua relíquia. Podemos perguntar se este mesmo

questionamento sobre a autenticidade histórica teria sido realizado caso o objeto fosse oriundo de

uma coleção como a de Cotegipe ou de algum patrono da instituição, como o próprio Getúlio

Vargas. Também pode-se indagar se esse questionamento sobre a autenticidade histórica do

crucifixo teria sido feito se ele fosse oferecido para doação, e não para venda. Por Messias da

Rocha não pertencer ou ter contato direto com nenhuma família tradicional da aristocracia, não

tinha como justificar a posse de um objeto relacionado a D. João VI, de tal modo que Menezes de

Oliva tenha podido, talvez, ao questionar a autenticidade histórica do objeto, cotar um preço

inferior ao real valor da peça.

Um elemento que reforça essa hipótese é que nos AMHN, em sua edição de 1941, em

artigo intitulado O Museu Histórico Nacional através dos seus 19 anos de existência, redigido

como relatório das atividades do ano do Museu, há uma fotografia do crucifixo de Messias da

Rocha, na parte dedicada às aquisições de acervo, com a seguinte legenda: “Crucifixo que

pertenceu a D. João VI, admiravelmente esculpido. Cruz de jacarandá, com florões de prata

111
cinzeladas à mão em estilo D. João V. Aquisição do Museu Histórico Nacional.” 199 Há somente

mais uma imagem estampada no texto, trata-se de um piano que pertenceu a D. Pedro I e foi

vendido ao Museu por 50 contos de réis por quatro irmãs, filhas do pintor Aurélio de Figueiredo.

Para conseguir a verba necessária para a aquisição do piano, Gustavo Barroso escreveu ao

ministro em 19 de setembro de 1939:

De longa data o Museu Histórico tem conhecimento da existência do piano


proposto á venda pelas filhas do pintor Aurélio de Figueiredo e de longa data
deseja essa aquisição. Infelizmente, a exiguidade de suas verbas anuais nunca a
permitiu. A peça é de alto valor artístico e histórico, devendo ser incorporada ás
coleções da Casa do Brasil. Não era fácil dar-lhe um valor estimativo exato
embora seja irrecusável sua autenticidade. As proponentes pedem oitenta contos
de reis (80:000$000). Esta Diretoria é de parecer que o piano deve valer entre
sessenta contos (60:000$000) e oitenta. O que as proponentes alegam sobre
valiosa doação feita ao Museu Histórico é lídima expressão da verdade.
Ofereceram-lhe há pouco tempo um retrato a olho em tamanho natural de D.
Joaquim Arcoverde, primeiro cardeal da América Latina, no valor aproximado de
quinze contos de reis (15:000$000). Tal circunstância deve militar em favor de
sua proposta, que esta Diretoria terá o prazer de ver aceita.
A verba de aquisições para o Museu Histórico para o exercício de 1939 foi, no
seu total, de quarenta contos do reis (40:000$000), já se achando inteiramente
esgotada. Assim, só uma providência especial do Governo da República permitirá
essa preciosa e imprescindível aquisição. 200

A compra foi efetivada por 50 contos de réis em 1940, como consta da carta escrita por

Barroso ao presidente do Tribunal de Contas:

Sr. Ministro Presidente do Tribunal de Contas


Tenho a honra de passar às mãos de V. Ex., para os devidos fins, a 2a. via do
empenho n.2, na importância de cinquenta contos de reis (50:000$000), em favor
de Helena de Figueiredo e de suas irmãs, Suzana de Figueiredo, Sylvia de
Figueiredo Mafra e Heloísa de Figueiredo Cordovil, despesa atinente ao
fornecimento a este Museu de um piano de alto valor histórico que fazia parte do
gabinete de estudos de D. Pedro I, [...], e cuja aquisição foi autorizada pelo
Exmo. Presidente da República, no processo nº 35.181/39.201

Para termos uma ideia dos valores gastos pelo Museu na época, vale mencionar que

Gustavo Barroso recebeu 100 contos de réis como adiantamento para organizar a participação

199
Id. Ibid.
200
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, Processo, 01/40, 1940

201
Id. Ibid.
112
brasileira na exposição dos Centenários Portugueses em Lisboa, em 1940. Esse dinheiro foi gasto

com molduras para desenhos e aquarelas, comprados manequins, peanhas e vitrines de

exposição.202 No mesmo ano, o Museu comprou a coleção Souza Lima, composta por 572

imagens cristãs esculpidas em marfim, incluindo imaginárias indo-europeias e cíngalo-

portuguesas do século XVI. A coleção foi penhorada em 1933, na Caixa Econômica, sendo

adquirida ao MHN por ordem de Getúlio Vargas por 100 contos de réis, após diversos apelos de

Barroso ao presidente para a aquisição da coleção. Ainda em 1940 constam as seguintes compras:

de uma urna que teria servido na primeira eleição presidencial do Brasil por 4 contos de réis e

pagamento de 2 contos e 500 mil réis por uma mesa de jacarandá, estilo manuelino e vendida por

Francisco Marques dos Santos e 40 contos de réis em dois vasos chineses.203

O parecer de Menezes de Oliva questionando a autenticidade histórica da relíquia de

Messias da Rocha interferiu na avaliação do objeto em 5 contos de réis. Possivelmente o objeto

poderia ter sido mais bem avaliado caso seu proprietário tivesse podido naquela situação

relacionar sua posição social ou seu prestígio à autenticidade de uma relíquia pertencente a D.

João VI. O fato é que, depois da compra, o objeto foi catalogado pela instituição confirmando a

pertença. Além disso, Adolpho Dummas selecionou o crucifixo vendido por Messias da Rocha

para ilustrar o acervo do Museu, no texto sobre os 19 anos da instituição, juntamente com o

“magnífico” piano de D. Pedro I. Com certeza, a escolha se deu devido aos atributos estéticos do

objeto, ainda mais levando-se em consideração que, naquela ocasião, o Museu já havia adquirido

a coleção Souza Lima, composta de vários crucifixos de alta qualidade. Desde sua aquisição, o

crucifixo “de D. João VI”, passou a constar em várias exposições organizadas pelo MHN, como a

exposição D. João VI: um rei aclamado na América, realizada em 1999. Curiosamente, ambos

objetos que ilustraram o artigo sobre os 19 anos do MHN se encontram juntos, novamente, nos

202
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, Arquivo Institucional, Relatório de 1940, 1940.
203
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, Processo, 05/39, 1939.
113
dias de hoje. O piano de D. Pedro I, comprado por 50 contos de réis, e o crucifixo de Messias da

Rocha estão na exposição Portugueses no Mundo, pertencente ao circuito de exposição de longa

duração do MHN, na galeria que aborda a chegada da família real ao Brasil.

Figura 8: "Crucifixo de D. João VI” e piano de D. Pedro II. Acervo MHN. Exposição Portugueses
no mundo.

Um outro caso ocorrido entre 1933 e que se estendeu pelo menos até 1953 mostra outro

aspecto da autoridade do nome próprio – ou melhor, da falta dela – na aquisição de objetos para o

acervo. Em 14 de abril de 1933, Armando Manso Vieira escreveu a Gustavo Barroso uma carta

oferecendo para venda uma espingarda que teria pertencido a D. Pedro I. Vejamos parte da

correspondência:

[...] Na qualidade de chefe de uma tão valiosa instituição [...] levo ao vosso
conhecimento que tenho uma arma que deve ter um grande valor histórico para o
Museu. Trata-se de uma espingarda que foi de D. Pedro I, presenteada a um tio
avô por D. Pedro II. Morto esse tio a arma coube ao meu saudoso pai em
inventário. Ela apesar de antiga é uma arma fina, contendo os dísticos do império
e marcheteada de ouro e prata e com os dizeres [...] D. Pedro I. Ela não se acha
atualmente em meu poder, porém, não será difícil a sua arrecadação. Um irmão,
no governo do dr. Washington Luiz, entregou a arma a um advogado do Rio para
ver se negociava com o aludido presidente, mas morrendo este irmão
repentinamente o advogado não restituiu a arma. De maneira que, se ao Museu
interessar a aquisição dessa arma irei providenciar sua arrecadação. [Assinado
por Armando Manso Vieira]204

204
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, Processo, 16/36, 1936.
114
Barroso respondeu afirmando ser conhecedor da arma, tendo comprovado sua

autenticidade. No entanto, a recusou:

Em resposta à vossa carta, a respeito de uma arma com inscrição alusiva a D.


Pedro I, cumpre-me dizer-vos que já a conheço, e em tempo a examinei.
Infelizmente, não dispõe o Museu de verba para a aquisição do referido objeto,
que no momento não nos interessa, dada a grande quantidade de armas
históricas que possuímos.205

Em 1936 Pedro Ornellas, conservador do MHN, preencheu um relatório de aquisição de

acervo: tratava-se da mesma arma oferecida três anos antes por Armando Manso Vieira ao MHN.

Contudo, a espingarda não foi vendida nem doada por ele e, sim, doada ao Museu pelo Capitão

Delegado Especial de Segurança Pública e Social, Filinto Muller. O relatório de Pedro Ornellas dá

a descrição detalhada do objeto:

Espingarda de caça, carregar [sic] pela boca, fabricação portuguesa, modelo nº 2


do fabricante Januário Antônio Gomes, calibre 44 mm. Sistema pederneira, um
cano, soleira de prata cinzelada, acabamento em ouro e prata, coronha inteiriça de
1.316 mm. Fabricada em 1814 em Lisboa. Duas braçadeiras de prata cinzelada.
Chapa de ouro na coronha gravado D. Pedro I. [...]206

Segundo Cléber José das Neves Reis, “a arma foi apreendida pela polícia, no dia 30 de

março de 1936, porque o ex-proprietário não possuía o respectivo registro conforme a lei

determinava”. A doação da espingarda foi agradecida em carta por Gustavo Barroso, que escreveu

a Filinto Muller que o objeto apreendido pela polícia e ofertado ao MHN era raro e de alta

significação histórica, “devendo figurar na sala denominada D. Pedro I”. 207 A arma em questão,

por suas características físicas, trabalhada em prata e ouro e com a inscrição D. Pedro I, não teve

sua autenticidade histórica refutada. O que parece ter sido refutado, neste caso, foi a possibilidade

de uma pessoa fora dos circuitos tradicionais de colecionadores e de famílias da aristocracia

participarem .de um verdadeiro sistema de práticas que davam sentido à museologia tal como se

205
Id. Ibid.
206
Id. Ibid.
207
Id. Ibid.
115
configurava à época.

Em 1939, Maria Arruda Afonso Manso Vieira abriu um processo judicial pedindo a

reintegração de posse da arma apreendida e doada ao MHN. As informações fornecidas pela

autora do processo sobre a procedência da arma contradizem as explanadas anos antes em carta

escrita por Armando Manso Vieira, tal como observado por Reis:208

[…] existe a contradição sobre a chegada da arma na família, como podemos


verificar. O sr. Armando em sua carta relatou o seguinte: … uma espingarda que
foi de D. Pedro I presenteada a um meu tio-avô por D. Pedro II. Verificando as
informações que foram prestadas por Maria Arruda Manso Vieira, encontramos o
seguinte: a família recebeu a espingarda por via hereditária do Capitão Vicente
Xavier de Toledo, amigo e companheiro de caçadas de D. Pedro I, que o
presenteou por ocasião da sua abdicação. Então, constatamos que a família não
sabia ao certo a maneira pela qual a arma foi recebida no passado. 209

O processo de reintegração de posse da arma apresenta alguns elementos interessantes.

Primeiramente, a autora do processo informou que o objeto em questão foi avaliado e autenticado

por Rodolpho Garcia, diretor do MHN entre 1930 e 1932. No ano de 1936, estando Maria Arruda

Manso Vieira, residente no município de Mogi Mirim (SP), com grandes dificuldades financeiras

e tendo a notícia de que o empresário Guilherme Guinle estaria interessado em comprar a arma,

incumbiu um amigo e procurador da família, chamado Nahim José, de viajar ao Rio de Janeiro

para mostrar o objeto ao interessado. Porém, quando chegou ao Rio de Janeiro, foi informado de

que Guinle estava em viagem de negócios e que iria ficar mais de 20 dias fora da cidade. Não

podendo esperar tanto tempo, Nahim José resolveu retornar à sua cidade, Juiz de Fora, deixando a

espingarda sob os cuidados de um amigo chamado Salim Marge, proprietário de um hotel-pensão

na Avenida Tomé de Souza, no Centro do Rio de Janeiro. Ocorre que pouco depois de retornar a

Juiz de Fora, Nahim José foi chamado de volta ao Rio pelo seu amigo hoteleiro, visto que, logo

após sua partida, agentes da polícia federal haviam feito uma busca no hotel, com base numa

208
O processo judicial solicitando a devolução da arma não cita a carta escrita por Armando Manso Vieira ao MHN,
tampouco explana qual é o grau de parentesco deste com a autora do processo.
209
Apud MAGALHÃES, Aline Montenegro. O culto da saudade... Op. cit. p.342.
116
informação de que havia armas no estabelecimento. Após minuciosa busca encontraram a

espingarda que foi apreendida, a despeito da argumentação de que era uma arma antiga e obsoleta,

apenas com valor histórico e artístico.

Alarmado com a situação, Nahim José foi ao Palácio Tiradentes e conversou com “Dr.

Antônio Carlos que, de próprio punho, deu ordem ao dr. Lahyr Tostes, seu genro e secretário, para

ir ao Chefe de Polícia reclamar a devolução da arma tão injustamente apreendida”. A

documentação não esclarece exatamente quem era o “dr. Antônio Carlos”, mas, pelo visto, sua

autoridade não foi suficiente para garantir a reintegração de posse do objeto, uma vez que seu

secretário, Lahyr José, ao solicitar a devolução da arma, foi informado por Filinto Muller que

nada podia ser feito, e que a espingarda estaria em posse do MHN, portanto fora de sua

jurisdição.210 O documento informa ainda que, após várias tentativas amigáveis de devolução do

objeto, o requerente abriu uma solicitação de devolução junto ao ministro da Educação, que em

ofício datado em 1943 solicitou informações sobre a espingarda, bem como sua devolução ao

proprietário. Gustavo Barroso informou que a arma estava realmente sob os cuidados do MHN,

mas que não a devolveria, a não ser por ordem do ministro da Justiça. Por fim, o processo se

arrastou até 1953, sem solução, uma vez que a espingarda ainda faz parte do acervo do MHN.

Os membros da família Manso Vieira não tinham, pelo visto, um consensual sobre a forma

como tinham herdado um objeto tão valioso; tampouco tinham parentesco com a família real, ou

com membros da aristocracia e da nobreza brasileiras. Ao que tudo indica, tratava-se de uma

família de classe média baixa do interior de São Paulo, que não pertencia a nenhum círculo de

colecionadores e descendentes das elites imperais. Não poderiam ter sido considerados herdeiros

legítimos de um objeto cuja inscrição e refinamento técnico indicavam seu primeiro

pertencimento ao imperador D. Pedro I e cuja vocação era, porém, tornar-se parte do acervo do

MHN.
210
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, Processo, 16/36, 1936.
117
Figura 9: Piano de D. Pedro I. Foto: AMHN,
Figura 10: Crucifixo vendido por Messias da 1941.
Rocha ao MHN. Foto: AMHN. 1941.

Figura 11:O crucifixo de D. João VI no


catálogo da exposição Um rei aclamado na
Figura 12: Capa do Catálogo D. João VI.
América..
Um rei aclamado na América.

118
2.1. O “Tacape de Tibiriçá”

Caso exemplar da importância do nome próprio na valoração e na certificação de

autenticidade, em que podemos acompanhar a trajetória do objeto até os dias de hoje é o do tacape

indígena atribuído a Martin Afonso Tibiriçá, chefe dos índios guaianases e personagem mítico da

história da fundação de São Paulo, e o único objeto de origem indígena entre os mais de 2 mil

artefatos relacionados no Catálogo Geral do Museu Histórico Nacional, primeiro da instituição e

publicado em 1924.

Semelhantemente a diversos objetos do acervo do MHN, o tacape faz parte de uma longa

troca de presentes. Pertencera a D. Pedro II, que o doou ao escritor, militar e político José Vieira

Couto de Magalhães, que presenteou a José Vieira Costa Valente, que por sua vez o doou ao

Museu Nacional. O tacape veio transferido daquele museu em 1922, junto com outros objetos. Na

documentação que acompanha então, e hoje sob a guarda do MHN, consta a seguinte declaração:

Declaro que o tacape de que fiz presente ao sr. da Costa Valente pertenceu ao
meu tio General Couto de Magalhães, que o teve, por oferta, do imperador D.
Pedro II em ocasião da sua última visita a São Paulo. Sua majestade declarara ao
General Couto de Magalhães que esse tacape pertencia ao chefe índio Tibiriçá,
tendo o referido general anotado na circunstância em um manuscrito que colara
no tacape e cujos vestígios se notam ainda. São Paulo, 20 de novembro de 1917.
[José Vieira Couto de Magalhães - com firma reconhecida em 8 de março de
1917]211

De início cabe ressaltar que a doação, realizada por Costa Valente ao Museu Nacional, é

marcada pela menção a autoridades, através de declaração com firma reconhecida e a menção aos

dois ex-proprietários do tacape, o imperador e o general Couto de Magalhães. Em relação a D.

Pedro II, sua autoridade de imperador e sua notória erudição bastam, evidentemente, para

autenticar a peça. Por sua vez, Couto de Magalhães foi membro do IHGB, escritor, militar,

presidente das Províncias de Goiás, Mato Grosso, Pará e São Paulo, empresário de vias de

211
MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. DICOP. Processo, 11/22, 1922.
119
transporte marítimo, autor de O Selvagem,212 livro encomendado por D. Pedro II para compor a

exposição da Filadélfia em 1876. Nele, Couto de Magalhães destaca a importância de civilizar os

índios através de sua própria língua, a exemplo dos jesuítas, que estudaram as línguas indígenas, e

dos antigos portugueses e espanhóis, que faziam uso de intérpretes. Ao escrever sobre a história da

fundação de São Paulo, Couto de Magalhães enfatizou a ação dos jesuítas com os índios

guaianases. A catequese e o aprendizado dos valores da civilização levariam o índio a mostrar seu

valor moral. Martim Afonso Tibiriçá é, nesse sentido, o melhor exemplo dessa afirmação. Chefe

dos índios guaianases, foi convertido ao cristianismo pelos padres José de Anchieta e Leonardo

Nunes, e colaborou com os portugueses na fundação da vila de São Paulo de Piratininga. Tibiriçá

representa perfeitamente o mito do índio bom, célula-mater da formação da nacionalidade

brasileira.

Essa representação da figura indígena como célula da identidade nacional foi tema

constante na historiografia brasileira da segunda metade do século XIX e início do século XX.

Historiadores vinculados a instituições como o Instituto Histórico e Geográfico Paulista e o

Museu Paulista elaboraram a figura do herói bandeirante e do mameluco adaptado. Nessas

narrativas, as relações entre tupis, jesuítas e bandeirantes e o processo de mestiçagem teriam dado

origem ao mameluco, entendido muitas vezes como a raça paulista. Sendo assim, o “Tacape de

Tibiriçá” não é o de um índio qualquer, é um objeto que “testemunhou” o amanhecer do Brasil,

nos termos de Gustavo Barroso:

Entre os chefes indígenas que, no amanhecer do Brasil, ao se iniciar nossa


colonização, fizeram causa com os portugueses, o mais ilustre, sem dúvida,
aquele à sombra de cuja fiel amizade devemos o estabelecimento de Piratininga,
berço da metrópole paulistana de nossos dias. Foi ele o famoso Tibiriçá, sogro do
misterioso e discutido João Ramalho e aliado de Martim Afonso de Souza, cujos
nomes tomara ao ser batizado pelos jesuítas. [...] Graças à proteção de Tibiriçá,
ao calor de seu prestígio pessoal no meio da indiada, produziram-se as primeiras
mestiçagens, nasceram os primeiros rebentos daquela destemida raça de
mamelucos paulistas que haverá de unir pelas suas impávidas Bandeiras os mais
afastados rincões de nosso imenso país. [...] Esse chefe dos Guaianases de
212
MAGALHÃES, José Vieira Couto de. O selvagem. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1935.
120
Piratininga deixara-se converter à fé cristã pelos padres José de Anchieta e
Leonardo Nunes. Graças a Tibiriçá puderam os padres da Companhia de Jesus
permanecer no planalto piratiningano e fundar ali o seu primeiro povoado
missionário, Santo André da Borda do Campo, onde, pela sua defesa, Tibiriçá
combateu em 1562 até contra o seu próprio irmão, o tachaua Arari. [...]
Testemunha e personagem das principais, nessa época de fé e elevação moral, o
morubixaba Tibiriçá foi, na verdade, o laço que uniu no mesmo instintivo desejo
de progresso, no mesmo informe anseio de futuro, o índio bravio e o aventureiro
civilizado, sob os laços acolhedores, pacificadores e luminosos da Cruz. 213

“O amanhecer do Brasil” equivale, na pena de Barroso, na inserção das ações de Tibiriçá,

no século XVI, no processo histórico de formação inelutável da nacionalidade. O índio

representaria, neste caso, a constituição de uma raça de mamelucos, fruto da ação civilizadora da

igreja.

O tacape integra, assim, o acervo do MHN como um objeto que testemunhou do sangue e

do calor dos combates, considerado autêntico, como dito, pela força dos nomes dos seus

proprietários. Segundo Barroso,

A autenticidade desta peça requer uma documentação comprobatória. O “Tacape


de Tibiriçá” pertenceu durante longo tempo ao Imperador d. Pedro II. Sua
Majestade ofereceu-o, quando visitou São Paulo, ao grande estudioso de nossos
selvagens, o General Couto de Magalhães. [...] Durante muito tempo, teve o
tacape colado à sua face um retângulo de papel com a declaração autografada de
Couto de Magalhães de o haver recebido de D. Pedro, que lhe afirmara ser o
mesmo do grande Tibiriçá. O tempo infelizmente destruiu essa etiqueta. 214

213
BARROSO, Gustavo. O tacape de Tibiriçá. Papel de Tibiriçá na fundação de S. Paulo – os jesuítas e João Ramalho
– a epopeia da catequese – uma relíquia desse glorioso tempo. Segredos e Revelações da História do Brasil. O
Cruzeiro. s.d. GB. Autoria, Recortes, 60. V. 2.
214
Id. Ibid.
121
Figura 13: “Tacape de Tibiriçá”. Foto: Catálogo
Banco Safra, MHN, 1989.
A própria produção historiográfica de Gustavo Barroso também colabora para seu

reconhecimento como “objeto histórico”. Ocorre aqui algo semelhante à função autor proposta

por Foucault como função classificatória do discurso. A autoridade política do imperador e a

autoridade intelectual e política de Couto de Magalhães funcionam de modo semelhante a “função

autor”, possibilitando a assunção do estatuto “histórico” do tacape, e com isso agrupando-o com

junta a outros objetos dotados do mesmo valor. Esse “efeito autoral” é reforçado apresentação da

peça no Catálogo de 1924, e repetida em outros catálogos e legendas produzidos pela instituição

ao longo dos anos: “Pertenceu a D. Pedro II, que o doou ao gen. Couto de Magalhães”. Essa

informação reforça outra: “Consta ter pertencido ao chefe indígena Tibiriçá”. Não há dados sobre

o que teria ocorrido com o tacape no intervalo de nada mais que 300 anos entre os acontecimentos

em torno da fundação de Piratininga até o dia que ingressou nas coleções de D. Pedro II. Todavia,

uma vez chancelada sua autenticidade, surge confirmada a sua datação presente nas legendas:

“Século XVI”.

Ao longo dos anos, o “Tacape de Tibiriçá” foi interpretado de diferentes formas pelos

funcionários do MHN. Em 1960, foi enviada à direção do MHN uma carta escrita pelo Sr. Vitor B.

Caminha perguntando sobre a existência de objetos de origem indígena no acervo do MHN. Na

resposta enviada pelo MHN em 13 de janeiro e escrita pela chefe da 1ª Seção de História, Octávia

Corrêa dos Santos Oliveira, pode-se observar, mais uma vez, o valor do objeto é atribuído

122
unicamente pelo fato de ter pertencido a D. Pedro II.

[...] o nosso Museu Histórico possui: um tacape do século XVI (a peça de origem
mais antiga de nossa coleção) e que pertenceu às coleções de D. Pedro II. A ele
tinha sido dado como sendo do cacique Tibiriçá, um dos fundadores de S. Paulo.
É a única peça de origem tupi na nossa coleção, que já tem para nós um caráter
histórico: o de ter pertencido ao 2º imperador do Brasil, o que justifica sua
presença neste prédio.215

Anos depois, em janeiro de 1991, o “Tacape de Tibiriçá” foi exposto na exposição “Vitrine

do mês”, um projeto que visava expor objetos guardados na Reserva Técnica durante cada mês do

ano, como forma de dinamizar o acervo e as exposições. No mês de janeiro, almejava-se fazer

uma alusão à fundação da cidade do Rio de Janeiro. O MHN dispunha, segundo técnicos da

época, de diversas peças que poderiam ser selecionadas com diferentes enfoques à temática

proposta. No entanto, como consta no projeto, foram apresentados alguns argumentos no sentido

de que o MHN, por ser uma instituição nacional, deveria dar ênfase a outras regiões do país. Foi

sugerida, assim, uma homenagem à cidade de São Paulo, que também teve sua fundação no mês

de janeiro e o tacape é, então, submetido a uma análise técnica que descarta o privilégio da

autoridade do doador para a sua autenticação.

[...] tendo feito pesquisas em nossa biblioteca, arquivo histórico e reserva técnica,
só foi encontrada uma peça relacionada diretamente ao assunto sugerido – um
tacape atribuído ao chefe indígena Tibiriçá. Esta peça encontra alguns problemas
tópicos em relação às exposições do destaque do mês – dimensões inadequadas e
dificuldade de viabilização conceitual, mas estes problemas são circunstanciais e
sanáveis com o uso de técnicas museográficas apropriadas e de textos adequados.
O problema maior, acreditamos, é o fato da peça não apresentar características
que nos permitam afirmar com certeza se ela pertenceu ao chefe Tibiriçá, dos
índios guaianases, que ajudou na fundação da cidade de São Paulo. Esta dúvida
lançada pela falta de dados referentes ao histórico da peça até alcançar as mãos
de D. Pedro II (cuja coleção passou ao General Couto de Magalhães e daí ao
MHN), assim como ao estado da peça, muito bom para madeira e palha
conservadas por mais de quatrocentos anos em condições adversas. No tocante ao
uso sistemático da arma podemos afirmar que a sua forma é coerente com as da
“borduna-cajado” ou “cacetes”, usados atualmente por alguns grupos indígenas
(Karajá, Javaché, Kayapó, Kaingang e Xipáya) sendo sua decoração trançada
(incompleta) compatível com a usada nas atuais tribos Guiana, Kaiapó, Kayabi,
Kaiwã, etc, algumas da região sudeste.
No entanto, todos estes dados são circunstanciais, não podendo definir se a peça
é “autêntica” ou não. Desta forma cremos que prevalece a tradição difundida por
215
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Ofícios recebidos. Jan. a Jun. 1960. AS DG2 47 (2). [Grifos meus].
123
Gustavo Barroso, de que a peça seria realmente de Tibiriçá. 216

A trajetória do “Tacape de Tibiriçá” (desde que chegou às mãos de D. Pedro até às

coleções do MHN) o vincula a certos temas chave da historiografia brasileira, como o da fundação

de São Paulo e o da etnologia indígena, no final do século XX. Inicialmente, como visto, o tacape

estava relacionado ao “amanhecer do Brasil”, apresentado como “preciosa relíquia”. Em 1991, na

Vitrine do mês a proposta foi utilizá-lo como ponto de referência para se pensar questões

históricas. Nesse sentido, segundo relatório elaborado, os textos que acompanhavam a exposição

tinham os seguintes objetivos:

1. Identificação da peça e sua inserção no contexto histórico;


2. Abordar a fundação da cidade de São Paulo como um momento inicial da
colonização do Brasil;
3. Abordar o papel dos povos indígenas no processo acima;
4. Abordar a evolução que se deu na questão do tratamento do índio no Brasil;
5. Abordar a questão da nacionalidade.217

Já no texto elaborado para a legenda do tacape, lê-se:

No inicio da exploração do Brasil os colonos se concentravam nas regiões


litorâneas. Poucos desbravadores ousavam penetrar para o interior desconhecido,
destacando-se entre eles os jesuítas, que visavam à evangelização dos índios. Em
janeiro de 1554 estes padres fundam o colégio de São Paulo, que daria origem à
atual cidade.
Apesar de a colonização inicial ter-se dado com o objetivo de catequizar os
índios e de ter contado com o apoio de chefes como Tibiriçá, os portugueses, uma
vez firmados na povoação, começaram as expedições – as bandeiras – com o
objetivo de escravizar os indígenas, expedições que perduraram até a virtual
extinção dos índios em São Paulo.
Somente no século XIX é que a figura do índio começa a ser recuperada como
um dos elementos fundadores da nação. O símbolo do Estado de São Paulo – o
braço segurando um tacape – é uma forma de homenagear essa raça, só agora
revalorizada.218

Percebe-se a intenção de problematizar a interpretação romântica das ações de Tibiriçá e

dos jesuítas, ao enfatizar que elas teriam originado a escravidão indígena e a “virtual extinção”

dos índios em São Paulo. Outra preocupação do texto é a inserção de uma discussão de cunho

216
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Departamento de Acervo, Reserva Técnica, dossiê nº 1608.
217
Id. Ibid.
218
Id. Ibid.
124
historiográfico, ao mencionar a valorização da figura do índio no século XIX no debate intelectual

do Segundo Reinado. Essas questões são aprofundadas na “ficha técnica” produzida sobre o

tacape na ocasião da exposição e anexada ao seu dossiê. Cabe ressaltar que essa ficha é iniciada

com a mesma informação sobre a procedência do Tacape presente no Catálogo de 1924, porém

neutraliza o “efeito auctoritas” do objeto.

Em 2006, o MHN inaugurou o primeiro módulo do novo circuito de longa duração da

instituição. A exposição Oreretama, que significa “nossa terra” em Tupi, foi a primeira exposição

de longa duração a se dedicar exclusivamente ao tema “índio” no MHN. A museografia da

exposição não segue uma cronologia e nem é linear. Diferentes aspectos da vida indígena são

tratados através dos objetos e textos, organizados de acordo com os temas: donos da terra; artes da

vida; lógica da guerra; rituais; antropofagia. Fotografias, imagens, reproduções complementam a

exposição.

Figura 14: Exposição Oreretama, MHN.

No espaço dedicado ao tema “lógica da guerra” são expostos arcos, flechas e tacapes. Ao

lado, o painel de texto informa que a lógica da guerra de algumas sociedades indígenas está

associada ao reconhecimento do inimigo, ao ritual antropofágico e à formação do guerreiro. Das

armas, apenas o “Tacape de Tibiriçá” está exposto sozinho numa vitrine com a legenda,
125
Borduna
Século XVI
Madeira e palha
São Paulo

Consta ter pertencido a Tibiriçá (- 1562), chefe dos índios guanainases que lutou
ao lado dos portugueses contra os chefes indígenas que se reuniram na
Confederação dos Tamoios (1554-1567). O principal motivo da Confederação foi
a revolta ante a ação violenta dos portugueses imposta aos tupinambás. 219

Em Oreretama, Tibiriçá é o único personagem histórico associado a um objeto. Os demais

objetos são apresentados apenas com informações gerais como nome do artefato, material, origem

e ano e, por vezes, algum esclarecimento pontual.

Figura 15: "Tacape de Tibiriçá", exposição Oreretama. MHN.

A dimensão aurática do “Tacape de Tibiriçá” é reconstruída através de diversos

dispositivos que reforçam seu caráter monumental e relicário. O simples fato de ter pertencido ao

imperador e a Couto de Magalhães agrega valor histórico à peça, independentemente de sua

autenticidade como objeto indígena de Tibiriçá. Porém, essa autenticidade é reconhecida e

reatualizada através da visibilidade dado ao objeto em exposições e catálogos. Um dos principais

catálogos do acervo do MHN é o publicado pelo Banco Safra, que se insere num projeto maior de

219
BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Oreretama, legenda de vitrine, 2006.
126
divulgar acervos dos principais museus brasileiros. O volume do catálogo correspondente ao

MHN, publicado em 1989, foi organizado a partir da tipologia dos artefatos, sendo o “Tacape de

Tibiriçá” exposto na parte correspondente à armaria. Não há documentação da época justificando

a seleção do tacape nessa seção, visto que é composta por armas ocidentais dos séculos XVIII,

XIX e XX (sabres, revólveres, arcabuzes, espadas entre outros). Pode-se supor que os técnicos

envolvidos na seleção estivessem interessados em mostrar outros tipos de armas, como as

indígenas e a única arma indígena presente, na época, nas coleções do MHN era, precisamente o

““Tacape de Tibiriçá””.

Independente do critério técnico usado na seleção, o resultado é a constante comprobação

de autenticidade e de valor do tacape, que, mesmo sendo exposto sob a etiqueta da atribuição e

não da autoria, reforça sua aura de mais de 500 anos de existência. Por fim, cabe ressaltar o envio

do ““Tacape de Tibiriçá”” para a exposição Terra Brasilis, realizada na Bélgica como parte do

festival Europalia, evento internacional de arte e cultura. O Europalia é considerado o mais

importante evento cultural europeu, realizado a cada dois anos, desde 1969, em Bruxelas e em

outras cidades belgas. A cada edição o festival homenageia um país; e em 2011 o país

homenageado foi o Brasil. Nesse contexto, dentro do programa de artes visuais do evento, a

exposição Terra Brasilis ocorreu entre 19 de outubro de 2011 a 12 de fevereiro de 2012, no ING

Cultural Center, com curadoria de Valéria Piccolli.

Em 2 de agosto de 2011, a curadora esteve no MHN e selecionou, além do “tacape de

Tibirá”, os seguintes artefatos para a exposição: mostruário de madeiras: álbum; amostra animal:

papo de tucano, guampa; instrumento de percussão: maraca; cesta, remo, aljava, coifa, diadema;

amostra vegetal: pau brasil. Esses mesmos objetos foram exibidos na exposição Oreretama,

visitada pela curadora meses antes. A exposição Terra Brasilis teve como concepção a

representação da natureza brasileira por artistas e viajantes estrangeiros, com especial ênfase nas

127
imagens da flora e da fauna do país, “tomadas seja do ponto de vista do encantamento frente à sua

diversidade e exuberância, seja do ponto de vista de suas possibilidades de utilização em

processos produtivos e exploratórios”. De acordo com a curadora, “a exposição procurou explorar,

de um lado, a visão paradisíaca sobre a natureza do Brasil, que emergiu ainda no primeiro século

de colonização, tendo continuidade na luxuosa série de tapeçarias das Índias tecidas pela

manufatura Gobelins, assim como em diversos objetos de arte decorativas com representações da

natureza”. Por outro lado, “explorou também as pesquisas científicas empreendidas por gerações

de naturalistas que legaram uma visão objetiva da natureza”.

Como pode-se ver, ao longo dos anos o ““Tacape de Tibiriçá”” ganhou diversos sentidos,

ressignificado e recontextualizado de acordo com os interesses de conservadores, curadores e

técnicos. Todavia, a polissemia simbólica que este objeto adquire não implica que perca o efeito

gerado pelo dispositivo de autoridade: apesar de todas essas ressignificações, o tacape continua

sendo atribuído aos primeiros anos dos tempos coloniais, “pertencente” a um índio tornado figura

mítica, autenticado a partir dos nomes de D. Pedro II e do gen. Couto de Magalhães. Esse

dispositivo de autenticidade é tão efetivo que é aceito como prova legal em negociações de seguro

da peça, uma vez que o objeto em questão foi assegurado por um banco, ao ser enviado para

Bruxelas, como sendo um “tacape do século XVI, que pertenceu ao índio Tibiriçá”.

A autoridade do especialista talvez pudesse se sobrepor à autoridade do nome próprio, para

confirmar ou não, através de métodos de datação com carbono, por exemplo, a idade do tacape.

Um teste desse tipo poderia reafirmar o caráter relicário do objeto, caso o datasse como sendo

oriundo do século XVI. Porém, se a datação fosse mais recente, ainda assim esse objeto

continuaria carregado de carga simbólica que o caracteriza como “histórico”, como um objeto que

pertenceu a D. Pedro II e a Couto de Magalhães, implicando toda uma historicidade que sempre

fará dele um objeto museológico.

128
O Museu apresenta-se, portanto, como um lugar de consagração e de invenção de

relíquias, pois é um lugar de afirmação e de produção de crença, na medida em que possibilita

uma representação do passado nacional, através da atestação de especialistas e de homens ilustres.

A consagração das relíquias efetua-se com a sua exposição ao público, por isso o objeto relíquia

precisa ser preparado para a exibição, dentro de vitrines, com iluminação e legendas. No caso das

relíquias cristãs, os relicários assumem a função de guardá-las e prepará-las para a exposição em

compartimentos feitos de ouro, pedras preciosas, acompanhadas de etiquetas com explicações

sobre sua origem e seu significado. No caso dos museus, é a museografia que assume a gerência

dos diferentes usos museológicos desses objetos, como sua publicação em catálogos, sua

conservação, sua classificação, a produção de legendas, e a sua exposição. Em última instância,

são as autoridades envolvidas e a atenção do público que visita as exposições que legitimam a

invenção e a existência dos objetos históricos, que sem eles perderiam carga simbólica.

129
3. Outros especialistas, novas coleções

Não há dúvidas de que Gustavo Barroso, como idealizador e diretor do MHN, colocou a

instituição no centro da museografia e da museologia nacionais durante 60 anos. Como observou

José Reginaldo Santos Gonçalves, a história da formação dos profissionais de museus no Brasil

confunde-se com a história do MHN. Os paradigmas museográficos que nortearam a organização

de galerias, os modos de aquisição de acervo, a classificação e a exposição das coleções de

diversos museus de história no Brasil estão intimamente ligados à formação do Curso de Museus

do MHN. Para Gonçalves, “em linhas gerais, desde os anos 1930, os museus brasileiros,

especialmente os museus históricos, tendem a reproduzir os padrões que vieram a ser difundidos

pelo Museu Histórico Nacional”.220 Após a morte de Gustavo Barroso, em 1959, assumiu a

direção da instituição o escritor Josué Montello (1959 – 1967), que conduziu o Museu de acordo

com o padrão geral adotado por Barroso. Suas palavras indicam a forte presença que Barroso

imprimiu na instituição:

[…] ali encontrei em cada sala, em cada objeto, em cada iniciativa, o zelo de
Gustavo Barroso pela coisa pública, o seu entranhado amor pelo Brasil.
Conhecia-lhe as lutas, as glórias, os heróis que nos trouxeram até aqui, como
nação, como povo, como pátria, e nisto encontrava pretexto para seu orgulho,
reconhecendo no presente a ponta extrema do passado. 221

Durante sua gestão, a exposição permanente continuou nas 40 salas organizadas pelo

idealizador do MHN, com todo o acervo exposto – uma vez que, na época, ainda não existia no

Museu uma reserva técnica. Foram mantidos, também, os procedimentos museográficos e de

aquisição de acervo, como pode-se observar nos catálogos e na documentação museológica da

época. A transformação mais significativa da direção de Montello foi a criação do Museu da

República, em 1960, como um departamento do MHN, onde, pela primeira vez, houve a

220
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Os museus e a representação do Brasil. Revista do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, n.31, p.254-273, 2005.
221
Apud PRET, Raquel Louise Coelho. Ver é conhecer... Op. cit. p. 47
130
separação de objetos que estavam juntos, em coleção, desde a fundação da instituição.

Foi durante a direção do comandante da marinha Léo Fonseca e Silva (1967-1970) que

ocorreu uma primeira mudança significativa nas formas de exposição, visto que o “Comandante

Léo”, como era conhecido, nomeado pela junta militar que então governava o país, obteve

recursos para a elaboração de novas exposições. Durante a sua gestão, foram encerradas as

exposições baseadas nas grandes coleções, organizadas por tipologias de objetos, ou tendo por

base os doadores, como as três salas dos Guinle, a sala Getúlio Vargas e a sala Miguel Calmon.

As galerias começaram a ser desmontadas em 1968, e coleções exibidas ao longo de vários anos

foram retiradas das galerias, sendo acomodadas em depósitos, sem qualquer controle de luz, de

umidade e sem acondicionamento adequado que caracterizassem tais espaços como o que se

entende hoje por reserva técnica.

A exposição do MHN passou a ter como base uma cronologia histórica fundamentada na

sucessão dos regimes políticos brasileiros. Assim, as 40 salas que compunham as antigas

exposições foram reduzidas a 12, em 1969. São elas: Sala Brasil-Colônia I, Sala Brasil-Colônia

II, Sala Brasil-Colônia III, Sala Brasil-Reino, Sala da Independência, Sala do Primeiro Reinado,

Sala do Primeiro Reinado I, Sala do Primeiro Reinado II, Sala da Guerra do Paraguai, Sala da

Guerra do Paraguai I, Sala da Guerra do Paraguai II, Sala da Guerra do Paraguai III, Sala do

Ocaso da Monarquia I e Sala do Ocaso da Monarquia II. 222 Esta exposição indica uma

significativa mudança no modo de tratamento dos objetos: as exposições, até então, tinham uma

ordenação próxima ao modelo antiquarista, segundo o qual os objetos eram os principais

elementos da exposição, valorizados por sua antiguidade e sua autenticidade. Na exposição de

1969, adotou-se uma narrativa progressista, na qual os acontecimentos do passado fazem parte

de um desenrolar teleológico e progressista da história, que segue seu caminho em direção ao

222
SANTOS, Myriam Sepúlveda dos. A escrita do passado em museus históricos... Op. cit. p. 59
131
futuro.223 Nessa lógica expositiva, os objetos atuam como ilustração da narrativa, sendo seu

caráter relicário subordinado à lógica linear e evolutiva das salas e vitrines. Para Regina Abreu,

os personagens perderam seu caráter de exemplaridade e de protagonistas de uma história

monumental e sagrada. Em seus termos, trata-se do período da “desfabricação do imortal”. 224 De

acordo com Sepúlveda, que também analisou o mesmo período da instituição, “os objetos

perderam a capacidade de suscitar lembranças e deixaram de ser reminiscências capazes de

evocar emoções, sentimentos, passaram a servir a uma ordenação dada segundo novos

critérios”.225 O tempo não era mais considerado como um espaço comum em que atos de

heroísmo eram reverenciados. Os heróis continuaram a ser cultuados, porém submetidos a uma

narrativa linear: a Guerra do Paraguai não era mais contada a partir dos objetos que glorificavam

Caxias ou Osório, passando a adquirir especificidade histórica entre o Segundo Reinado e o

Ocaso da Monarquia. Para Pret, a principal mudança com a nova exposição permanente

implantada em 1969 foi que o visitante não podia mais “flanar” pelas galerias, tal como era

possível nas 40 salas organizadas por Gustavo Barroso. A palavra “circuito”, empregada pela

primeira vez pelo Museu na divulgação da exposição permanente, denotava, a partir de então, a

intenção da direção em criar uma via única, na qual o visitante era obrigado a percorrer o espaço,

visualizando a história nacional através de textos e objetos.226 Cabe ressaltar que a nova

exposição montada durante a gestão do diretor Léo Fonseca não constituiu uma peculiaridade do

MHN, pois, ao acompanharmos o desenvolvimento dos museus históricos europeus e norte-

americanos, observa-se uma tentativa de substituir a história événementielle por uma ciência

histórica voltada para os estudos dos fatos econômicos, sociais e culturais, de modo que todas as

223
PRET, Raquel Louise Coelho. Ver é conhecer… Op. cit. p. 48-49.
224
ABREU, Regina. A fabricação do imortal... Op. cit. p 199-211.
225
SANTOS, Myriam Sepúlveda dos. A escrita do passado em museus históricos... Op. cit. p. 59
226
PRET, Raquel Louise Coelho. Ver é conhecer… Op. cit. p. 50.
132
classes fossem representadas, em modalidade seletiva e didática, voltada para o grande

público.227

A administração seguinte, de Gerardo Câmara (1970 até 1984), não trouxe mudanças

significativas ao MHN, a não ser empréstimos de acervos e a separação definitiva do Museu da

República, que se tornou um museu independente. A década de 1970 é mencionada pelos antigos

funcionários como um momento de decadência, no qual a instituição por pouco não encerrou

suas atividades devido ao distanciamento do público, ao baixo investimento do regime militar na

área da cultura e ao desaparecimento das redes de sociabilidade que existiam no tempo de

Barroso e que possibilitavam grandes doações.

A partir da morte de Barroso, houve uma queda em termos quantitativos e de valor

monetário das doações. Para termos uma ideia dos montantes doados durante a sua gestão, vale

mencionar os dados citados por Bittencourt. A família Guinle doou cerca de 3 mil objetos, entre

os anos 1922 e 1944, o que resultou nas “salas dos Guinle”: Guilherme, Otávio e Arnaldo

Guinle. Da coleção de Miguel Calmon, doada por sua viúva ao Museu e já analisada aqui,

constam mais de 700 objetos, entre os quais figuram alguns de grande valor monetário, como um

“óleo” do pintor francês Nicolas Poussin, além de tapeçarias, objetos de decoração e mobiliário

nobre. O espólio de José Wanderley Pinho, incorporado ao Museu em 1943, relaciona 118

objetos, enquanto a doação de José Ferreira Alves, considerada por Antônio P. Winz a última

grande aquisição do Museu até aquele momento, consta de 11 objetos de grandes proporções.

Estima-se que as doações de Getúlio Vargas, durante seus dois governos ultrapassam os 700

objetos. Somam-se a esses dados as compras realizadas, como a da Coleção Souza Lima, de

imaginária cristã, composta de mais de 500 itens e o serviço do Barão de Massambará, comprado

em 1943 e composto por 193 itens.228 Bittencourt observa que na década de 1950 havia
227
SANTOS, Myriam Sepúlveda dos. A escrita do passado em museus históricos... Op. cit. p. 64.
228
BITTENCOURT, José Neves. FERNANDES, Lia Silva P. TOSTES, Vera Lucia Bottrel. Examinando a Política de
133
diminuído o número de aquisição por compras, embora aquisições pontuais tenham sido

realizadas, como em 1956, quando foram comprados 10 objetos (serviços diversos do Barão de

Ipojuca, bengala de D. Pedro II e condecorações Ordem de Cristo) de Franz Hermann Hipp e

demais pinturas e objetos para o Arquivo Histórico do Museu. Entre 1956 e 1975, foram

registradas a doação de 675 objetos de uso pessoal como uniformes militares, medalhas,

diplomas, objetos de toucador. Como ocorria no período de Barroso, esses objetos são marcados

pela autoridade do nome próprio, estando sempre vinculados a algum nome “ilustre” ou de

militar, o que condizia com o modelo de “história pátria” e monumental adotado no Museu desde

sua criação.

Exceção foi a doação da coleção da especialista em indumentária Sofia Jobim Magno de

Carvalho, ocorrida após a sua morte em 1970, constituída por trajes típicos, originais e cópias, de

vários países e épocas, além de uma biblioteca especializada e de desenhos sobre indumentária

produzidos por Sofia Jobim. Para Bittencourt, essa doação exemplifica uma mudança no caráter

dos objetos encaminhados ao MHN, visto que roupas, trajes típicos, ferramentas de trabalho etc.,

deveriam figurar, na concepção de Gustavo Barroso, como “objetos ergológicos”, ou seja,

artefatos relacionados aos valores úteis ou às “artes de utilidade”, como a culinária, os ofícios

manuais e as “profissões rústicas”, enquanto aos museus de história caberiam os objetos

relacionados aos grandes homens e acontecimentos. Ao receber uma coleção como a de Sofia

Jobim, a instituição transita, nesse período, de “recolhedor ativo” para “recolhedor passivo”, uma

vez que seus conservadores perderam sua capacidade de buscar acervos e selecionar doações de

acordo com o projeto de escrita da história monumental e pátria que marcou fortemente a

instituição até os anos 1970. No período de 1975 a 1984, as aquisições por doação e por compra

foram de 204 objetos, as mais baixas desde 1922, embora o caráter dos objetos continuasse

seguindo o mesmo padrão estudado até aqui.


Aquisição do Museu Histórico Nacional. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v. 27, ano 1995.
134
Os anos posteriores à morte de Barroso são marcados, também, por um esvaziamento

paulatino do conhecimento museológico técnico produzido na instituição na época do Curso de

Museus, o que pode ser explicado, em parte, pela aposentadoria dos antigos conservadores ao

longo das décadas de 1970 e 1980. A partir de 1975, com a suspensão dos AMHN, encerrou-se

um período de publicação das técnicas e das análises de autenticação de artefatos da instituição

por seus conservadores, embora isso não signifique que, tais práticas tenham sido abandonadas

como visto no capítulo primeiro desta tese, quando se analisou o caso da restauração da coleção

de coches e berlindas.

A reestruturação da instituição tornou-se possível, a partir das décadas de 1980 e 1990,

com a contratação de novos técnicos, formados em outras áreas, como a história e a ciência da

informação, e de museólogos afinados com as novas visões conceituais sobre os museus e seus

acervos, oriundos da nova museologia. De acordo com Bittencourt, a proposta de reformulação

do tratamento técnico do acervo foi introduzida em 1981, por Helena Dodd Ferrez, durante a

gestão de Gerardo Câmara, que resultou alguns anos mais tarde, em 1987, na elaboração do

Thesaurus de acervos museológicos.

Ao final dos anos 1970, o MHN, tal como outros museus nacionais, vivenciava períodos

de crise, sendo seu orçamento insuficiente para as atividades-fim, como manutenção predial,

conservação do acervo e divulgação. Diante desse quadro, o então diretor Gerardo Câmara

solicitou, em ofício encaminhado ao Programa Nacional de Museus (PNM), a intervenção deste

no MHN.229 Ocorre que em 1979, houve uma grande reestruturação nas instituições federais

responsáveis pela preservação dos bens culturais. O IPHAN, o Programa de Cidades Históricas

(PCH) e o Centro Nacional de Referência Cultural foram fundidos em uma única instituição,

organizada a partir de dois órgãos: o normativo – a Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico

229
BRASIL. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, Arquivo Institucional. Ofício n. 377, de 14 de novembro de 1984,
encaminhado à direção do Programa Nacional de Museus.
135
Nacional (SPHAN); e o executivo – a Fundação Nacional Pró-Memória (FNPM). A FNPM e o

SPHAN ficaram responsáveis por desenvolver políticas públicas direcionadas aos museus. Cabia

ao SPHAN/FNPM desenvolver um novo conceito de cultura do Estado, baseado em ideais de

pluralidade, igualdade, diversidade e autonomia. Os museus deveriam se tornar lugares de

representação da diversidade do povo brasileiro, e não mais templos destinados ao culto dos

heróis e das grandes figuras de estado. Os museus nacionais precisavam, então, passar por

grandes transformações, como o reaparelhamento, a reorganização espacial, a implementação de

uma política de aquisição oficial e adequada à realidade da instituição, e uma mudança na

concepção de história e objeto museológico.230

Em relação às mudanças no campo museológico, podemos considerar a virada da “nova

museologia”, momento em que a disciplina se volta para as dimensões sociais, filosóficas e

políticas, até então negligenciadas ou pouco presentes nos trabalhos museológicos, até os anos

1970. O objetivo consistia, claramente, em fundar uma museologia de caráter científico e crítico,

além de definir, ao mesmo tempo, as profissões do museu e do quadro da pesquisa em seu

âmbito.231 Nesse contexto, a criação do Comitê Internacional de Museologia (ICOFOM –

International Committee for Museology), em 1976, assume um lugar estratégico, ao ponto de

tornar-se o principal fórum de discussão sobre a museologia. A iniciativa de sua criação deve-se

a Jan Jelinek, presidente do ICOM de 1971 a 1977 e fundador do departamento de museologia da

universidade de Brno, na República Tcheca. A “nova museologia” configura-se como um

movimento que abrange diferentes experiências museológicas, como os ecomuseus, os museus

comunitários, a sociomuseologia e a museologia social, enfim, práticas que se opõem à

concepção tradicional de museu e de coleção. A principal crítica elaborada pela corrente

assinalava que os museus deveriam ser ferramentas na construção do conhecimento e na


230
PRET, Raquel Louise Coelho. Ver é conhecer… Op. cit. p.18
231
POULOT, Dominique. Museu e Museologia... Op. cit. p. 129.
136
educação crítica e reflexiva. Deveriam deixar de atuar tendo por base as coleções, o fetiche dos

objetos e a nostalgia de um passado idealizado, e se voltarem aos questionamentos sociais do

presente. Passa-se de uma visão da museologia como técnica de trabalho orientada para as

coleções, para uma visão que dá lugar a um novo entender das práticas museológicas. Segundo

os teóricos da “nova museologia”, os museus devem assumir uma função eminentemente social e

superar os limites de uma concepção de cultura restrita às produções e à circulação de bens da

elite, voltando-se para ações de inclusão e democratização. Esse modo de pensar os museus

insere-se nos questionamentos de que os patrimônios culturais eram alvos, e que foram

explicitados na declaração de Santiago de Chile (1972) e na declaração de Quebec (Canadá,

1984). De acordo com os redatores da declaração de Quebec, o movimento da nova museologia

teve sua primeira expressão pública e internacional na mesa de Santiago, que considerou os

museus como:

[…] instituição a serviço da sociedade, da qual é parte integrante, e que possui


nele mesmo os elementos que lhe permitem participar na formação da
consciência das comunidades que ele serve; que ele pode vir a contribuir para o
engajamento destas comunidades na ação, situando suas atividades em um
quadro histórico que permita esclarecer os problemas atuais, isto é, ligando o
passado ao presente, engajando-se nas mudanças de estrutura em curso e
provocando outras mudanças no interior de suas respectivas realidades
nacionais.232

A nova museologia, tal como definida em 1984, tem como princípio:

[…] a procura num mundo contemporâneo que tenta integrar todos os meios de
desenvolvimento, estender suas atribuições e funções tradicionais de
identificação, de conservação e de educação, a práticas mais vastas que estes
objetivos, para melhor inserir sua ação naquelas ligadas ao meio humano e
físico.

Para atingir este objetivo e integrar as populações na sua ação, a museologia


utiliza-se cada vez mais da interdisciplinaridade, de métodos contemporâneos
de comunicação comuns ao conjunto da ação cultural e igualmente dos meios
de gestão moderna que integram os seus usuários.

Ao mesmo tempo que preserva os frutos materiais das civilizações passadas, e


232
MESA REDONDA DE SANTIAGO DO CHILE. Cadernos de Sociomuseologia, n. 15, 1999, p. 106.
137
que protege aqueles que testemunham as aspirações e a tecnologia atual, a nova
museologia – ecomuseologia, museologia comunitária e todas as outras formas
de museologia ativa – interessa-se em primeiro lugar pelo desenvolvimento das
populações, refletindo os princípios motores da sua evolução ao mesmo tempo
que as associa aos projetos de futuro.

Este novo movimento põe-se decididamente ao serviço da imaginação criativa,


do realismo construtivo e dos princípios humanitários definidos pela
comunidade internacional. [...]

Este movimento utiliza, entre outros, todos os recursos da museologia (coleta,


conservação, investigação científica, restituição, difusão, criação), que
transforma em instrumentos adaptados a cada meio e projetos específicos. 233

Essa visão sobre os museus e a museologia proporcionou mudanças no perfil dos

museólogos e do ensino do Curso de Museologia. Enquanto, para Gustavo Barroso, museologia

era “o estudo científico de tudo que se refere aos museus, no sentido de organizá-los, de arrumá-

los, de conservá-los, de dirigi-los, de classificar e de restaurar os seus objetos [...]” sendo o

museólogo “o técnico ou entendido em museus.”234 Para as museólogas Tereza Scheiner e Maria

Gabriella Pantigoso, responsáveis pela reforma curricular do Curso de Museologia em 1996, a

museologia configura-se como “ciência ou disciplina cujo campo de atuação é o real”.235

A Museologia, como disciplina científica que sintetiza os saberes de outras


áreas do conhecimento, percebe o Museu como espaço de saber, ou seja, como
gerador de conhecimentos. Entende também o Museu como fenômeno cultural,
constituindo, portanto, um processo. A contínua evolução desta disciplina
permite a incorporação permanente do novo, a nível teórico – inexistindo,
assim, a polaridade entre “velha” e “nova” museologia. Do ponto de vista
filosófico, entende-se o Museu como parte integrante dos sistemas de
pensamento de cada sociedade, em cada época, contribuindo para reafirmar
valores individuais e coletivos de identidade e de memória.

O Museólogo deverá, portanto, ser qualificado para assumir seu papel como um
intelectual que pense a Museologia em suas diversas relações com o Real,
sabendo identificar, no mundo à sua volta, quais as referências que necessitam
ser musealizadas. Este profissional deverá entender conjuntos naturais e
culturais como referências e coleções, como sistemas de semelhanças e
dessemelhanças, sendo capaz, a partir dos mesmos, de elaborar um discurso
233
DECLARAÇÃO DE QUEBEC, 1984. Disponível em:
<http://revistas.ulusofona.pt/index.php/cadernosociomuseologia/article/view/342/251> Acesso em: 1º abr. 2013.
234
BARROSO, Gustavo. Introdução à técnica de museus... Op. cit. p. 6
235
SCHEINER, Tereza C. M. & PANTIGOSO, Maria Gabriella. Projeto de reformulação curricular. Rio de Janeiro:
Escola de Museologia / CHH / UNIRIO, 1995-1995. p. 2. [mimeo]
138
específico – a linguagem museológica, síntese lógica de outros discursos de
comunicação.

A difusão democrática do conhecimento, via linguagem museológica, poderá


contribuir para a formação, no corpo social, de indivíduos conhecedores da
realidade do mundo que os cerca, capazes de valorizar o meio ambiente (natural
e cultural) e de utilizá-lo na obtenção de melhores condições de vida – lutando
por uma sociedade mais justa, onde o conhecimento e as oportunidades sejam
partilhados. Desta maneira, Museu e Museologia se inserem numa perspectiva
de educação para o desenvolvimento sustentável. 236

Desde a década de 1970 e 1980 o curso de museologia vinha passando por processos de

modernização, reivindicados por professores, como as próprias Tereza Scheiner, Celma Tereza

Franco, Liana Ocampo, Maria de Lourdes Naylor Rocha e Violeta Cheniaux. Uma das questões

fundamentais na reformulação do curso foi a modificação da grade curricular, que se pautou pela

implementação de um novo tratamento na relação entre o profissional de museologia e seu

campo de atuação:

[…] que era a transformação de um fazer aplicado, ou técnico, que refletia a


formação do museólogo no Brasil desde a criação do Curso de Museus, em um
fazer que buscasse estreitar relações com outras disciplinas no campo das
ciências sociais – na intenção de formatar um campo disciplinar próprio –, e que
compreendia a incorporação das novas experiências museológicas, – museus de
território, museus comunitários, dentre outras –, como paradigmas inexoráveis.
O museu como espaço privilegiado – ainda que não exclusivo da museologia –,
foi definitivamente abolido e até mesmo contestado em sua forma chamada de
“tradicional”.237

Ao analisar o currículo do Curso de Museologia, após a reforma de 1996, vemos como as

disciplinas de caráter técnico, que na concepção de Barroso eram fundamentais ao trabalho do

museólogo, como a heráldica e a numismática, deixaram de ser obrigatórias,238 contando com

uma carga horária bem menor, quando comparadas às disciplinas de caráter teórico ou

236
Id. Ibid. p. 2.
237
Id. Ibid. p. 40. [Grifos dos autores]
238
ALMEIDA, Cícero Antônio Fonseca de; SÁ, Ivan Coelho de; CHAGAS, Mário de Souza. Projeto de
reformulação curricular do Curso de Museologia. Rio de Janeiro: UNIRIO, 2006. Disponível em:
<http://www2.unirio.br/unirio/prograd/cursos/projetos-pedagogicos-dos-cursos/arquivos/Projeto%20de
%20Reformulacao%20Curricular%20-%20Curso%20de%20Museologia.pdf> Acesso em: 20 fev. 2014.
139
sociológico.239 Gonçalves atenta que na formação “clássica” dos museólogos havia uma

valorização dos objetos a partir de seus atributos internos, pelo fato de terem pertencido a

membros de famílias nobres, políticos de destaque e aos heróis nacionais. A partir das mudanças

no currículo de formação dos museólogos, o objeto de interesse passou a ser o fato museal “que

não se limitaria ao que ocorre no espaço tradicional dos museus, mas pode ocorrer em qualquer

outro espaço, ampliando-se assim os limites do que se entende por museu”.240 Para Gonçalves,

[...] a profissionalização dos museólogos corresponde a uma disciplinação do


discurso museológico e a um afastamento de uma determinada concepção de
museu a que chamei de ‘museu-narrativa’, em contraposição ao ‘museu-
informação’.241

No primeiro caso, o profissional do museu estaria imerso em uma “teia de relações

pessoais por intermédio das quais circulam objetos materiais que vêm a ser apropriados e

classificados pelos museus [que] constituem-se parcialmente de espaços de celebração dos

valores das elites sociais que representam a nação de modo totalizador”. 242 No segundo caso, do

museu-informação, há um processo de afastamento em relação ao modelo tradicional de museu

passando de uma forte ênfase dada aos objetos, para uma ênfase nas estruturas sociais.

Os textos ganham um papel central, enquanto os objetos tendem a assumir a


função de suportes materiais das mensagens vinculadas. No primeiro modelo,
os objetos mantinham a sua capacidade evocativa, na medida em que existiam
como mediadores simbólicos entre famílias de elite e o espaço do museu, no
qual se representava a nação por meio de valores transcendentes dramatizados
por heróis nacionais. No segundo modelo, os objetos passam a desempenhar
função subordinada, já que a missão principal do museu passa a ser pensada
como a de representar, da maneira mais objetiva possível, isto é, por meio de
estruturas conceituais, o cotidiano dos diversos grupos e categorias sociais que
compõem a sociedade brasileira.243

239
Na proposta de reformulação do curso em 2006 as disciplinas optativas, constituídas em sua maioria pelos
ensinamentos técnicos consistia em 240 horas, enquanto as obrigatórias – onde prevalecem as disciplinas de caráter
sociológico, histórico e teórico – representam 2.625 horas de curso. O total de horas é 3.390. Id. Ibid.
240
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Os museus e a representação do Brasil... Op. cit. p. 267.
241
Id. p.269.
242
Id. Ibid.
243
Id. p. 270.
140
Em 1985, já sob a direção da museóloga Solange Godoy (gestão de 1985 a 1989) foi

criada uma comissão que reuniu funcionários e técnicos escalados pelo PNM. A finalidade era

elaborar um diagnóstico sobre a instituição. O trabalho dessa comissão originou o documento

intitulado “A nova proposta para o Museu Histórico Nacional”, que definiu:

[...] um museu de história deve ser um centro de investigação, coleta e exibição


de objetos históricos pertinentes ao desenvolvimento social. A História é a
ciência que o fundamenta, derivando daí o tratamento em que consistirá sua
identidade como museu [...] O fato de existirem outros museus referentes a
períodos ou temas definidos na História do Brasil não invalida que neste Museu
se procure refletir a História nacional por inteiro. Ele será o museu-síntese. 244

Durante a administração de Godoy e tendo por base a proposta da comissão, foi iniciada

uma ampla mudança conceitual do MHN, que ficou conhecida como “Processo de revitalização

do Museu Histórico Nacional”. A direção de Godoy deu continuidade a ações que já estavam em

andamento pelo menos desde 1982, quando, sob a direção de Gerardo Câmara, o Arquivo

Histórico do MHN foi reformulado e novos conceitos modernizaram a noção de documentação,

bem como o tratamento técnico do acervo.

O início da revitalização do MHN teve início em 1985, no entanto, esse processo não

terminou com a gestão de Godoy, tampouco se deu de maneira contínua e sem percalços. Nos

anos posteriores, a crise econômica e política do país não permitiu que o projeto de revitalização

tivesse a continuidade programada. Mas, sob as direções de Ecyla Castanheira Brandão (de 1990

a 1994) e Vera Bottrel Tostes (a partir de 1995) várias ações nesse sentido foram realizadas.

Entre elas destacam-se a formulação de uma política de aquisição; a restauração de diversos

objetos do acervo; obras de modernização do complexo arquitetônico que abriga o MHN; e a

produção de exposições de longa duração sobre a História do Brasil.

A ideia principal da revitalização do MHN era a de romper com o modelo de museu e

museologia considerado elitista e associado às visões históricas conservadoras de Gustavo

244
BRASIL. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL A nova proposta para o Museu Histórico Nacional, 1985. [mimeo]
141
Barroso. Isso implicava numa adequação da narrativa histórica produzida pelo Museu às

concepções da moderna historiografia e de nova museologia. Foram postas em prática ações que

buscassem dessacralizar os objetos museológicos que passaram a ser entendidos como fontes de

informação sobre o passado, devendo ser expostos não como relíquias históricas, mas como

formas de estimular a percepção do visitante e possibilitar um entendimento crítico sobre a

formação histórica do Brasil. O MHN passou a ser concebido como um sistema de informação,

intermediário entre objetos, usuários e pesquisadores.

Em 1987, no âmbito dessas transformações,245 o acervo da instituição foi classificado e

organizado de acordo com sua “função original”, tendo por base o Thesaurus para acervos

museológicos, publicado por Helena Dodd Ferrez e Maria Helena S. Bianchini, funcionárias do

MHN na época. O Thesaurus é um instrumento de controle de terminologia utilizado para

designar os objetos existentes nos museus históricos. Sua função é ser uma ferramenta para a

recuperação de informações através de um sistema para a classificação e a denominação de

artefatos.246 De acordo com as autoras, a ideia para a elaboração do Thesaurus ocorreu a partir da

análise da coleção do MHN, em que foi constada a ausência de uma linguagem normalizada, que

permitisse, através do controle de sinônimos e homógrafos, uma nomenclatura mais consistente

dos objetos, assim como uma classificação sistematizada. Antes, o acervo no tempo de Gustavo

Barroso, estava organizado a partir da relação entre as coleções e as suas histórias,

independentemente da tipologia do artefato. Os objetos de D. Pedro II remetiam sempre ao

imperador, e sua organização e exposição atendiam aos propósitos de celebrar o período imperial

e a própria figura do monarca. Após 1969, quando a maior parte do acervo deixou de ser

exposto, indo para os depósitos e, depois, na década de 1980, para a reserva técnica, os objetos

245
FERNANDES, Lia. Museu Histórico Nacional: permanências e mudanças... Op. cit.
246
FERREZ, Helena Dodd; BIANCHINI, Maria Helena S. Thesaurus para acervos museológicos. Rio de Janeiro:
Pró-memória, 1987, p. xviii.
142
começaram a ser organizados de acordo com as disciplinas a eles dedicados, como filatelia,

numismática, ou pela técnica empreendida, como a cerâmica, a escultura, ou pelo coletivo, como

a armaria e a prataria.

Com o uso do Thesaurus, todos os objetos passaram assim a ser classificados a partir de

sua função original. Desse modo, uma caneta que pertenceu a D. Pedro II, por exemplo, passou a

ser classificada como um equipamento de escrita, e não como uma “caneta do imperador”. Tal

operação, ao mesmo tempo em que permitiu uma dinamização do sistema de controle de acervos

– a partir da catalogação do acervo em bases digitais – e, consequentemente, da recuperação de

informação, acabou por desfazer, de vez, a lógica museográfica e museológica estabelecida na

instituição desde sua fundação. Ao organizar o acervo a partir de suas características funcionais,

reafirma-se, portanto, a intenção da dessacralização dos objetos que, há anos, estavam

vinculados a personagens históricos e a fatos monumentais da história nacional. Outra

modificação introduzida com o Thesaurus foi o rompimento com um “modelo” de classificação

de objetos, tal como era praticado pelos conservadores. Ao priorizar a função original dos

artefatos, os elementos simbólicos (pertencimento e testemunhalidade) e técnicos (características

materiais) agregados a esses objetos passam a ser tratados como elementos de indexação do

acervo. Barroso afirmava categoricamente que era impossível dirigir um museu sem

conhecimento de heráldica. O candidato a conservador em umas das avaliações finais do Curso

de Museus, nos anos 1940, tinha que estar apto a classificar objetos “corretamente”, seguindo os

preceitos da numismática, da heráldica etc. No sistema classificatório implantado a partir do

Thesaurus, uma louça brasonada do século XIX e um prato de vidro dos anos 1980 são

classificados e identificados da mesma forma: “objetos de mesa / banho”. O elemento heráldico

do primeiro prato torna-se secundário, considerado unicamente no campo de “descrição do

objeto”, apesar de, na prática, continuar agregando valor relicário e de antiguidade ao objeto em

143
questão. É uma mudança pequena, mas que indica alguns dos caminhos pelos quais os

conhecimentos da museologia tradicional foram esvaziados na museografia produzida no MHN,

a partir dos anos 1980.

Em 1990, foi constituída uma Comissão de Inventário de Acervos Museológicos (CIAM)

com o intuito de inventariar o acervo museológico dos museus sob responsabilidade do SPHAN

e da Fundação Nacional Pró-Memória, na época em processo de extinção e de transição para o

Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (IBPC). Os resultados do inventário geraram alguns

questionamentos sobre a baixa incidência – 1,49% de um total de 223.951 itens – de objetos

referentes às categorias de objetos classificadas no Thesaurus como “castigo/penitência”;

“lazer/desporto” e “trabalho” presentes nos museus da FNPM, dentre os quais o MHN:

De uma maneira geral os acervos dos museus da FNPM (atual IPHAN) datam
dos séculos XVIII e XIX. Poucas são as Unidades que apresentam acervos do
século XX. Do mesmo modo, raras são as Unidades que têm orientado suas
aquisições para o denominado ‘novo patrimônio’, incluindo-se aí: o material
etnográfico, os testemunhos de segmentos sociais diversificados, os documentos
de tecnologia industrial e do cotidiano rural e urbano. 247

Com base nessa classificação do acervo, na produção de outros inventários e em

discussões realizadas regularmente, os técnicos estabeleceram critérios de coleta de objetos, com

a formalização, em relatório de 1996, de uma Política de Aquisição de Acervos. A comissão foi

formada, em 1992, ainda na gestão de Solange Godoy, por 10 funcionários do MHN, sendo oito

museólogos, um historiador e um documentalista: Ângela Sumavielle (museóloga), Deize

Domingues (museóloga), Denise Portugal (documentalista), Iara Madeira (museóloga), Jorge

Cordeiro (museólogo), José Neves Bittencourt (historiador) , Lia Sílvia Peres (museóloga),

Lucila Moraes Santos (museóloga), Maria de Jesus Alencar (museóloga), Rejane Maria Vieira

(museóloga) e Vera Lucia Bottrel Tostes (museóloga e coordenadora da Comissão).

O objetivo principal da comissão foi “discutir o princípio que orienta a busca e

247
CHAGAS; GODOY, op. cit., p. 113.
144
identificação de objetos possíveis de incorporação ao acervo”. 248 O relatório final constatou que

praticamente não existiam objetos do século XX nas coleções do MHN, sendo a maior parte do

acervo datado do século XIX. De acordo com a analise realizada, o acervo, até aquele momento,

estava estruturado em torno de três grandes matrizes conceituais: a do Museu como representante

da história do Estado nacional; a da historicidade do Estado nacional corporificada em

indivíduos destacados e em fatos históricos; a da função do Museu em recolher e preservar a

história do Estado nacional.249

A comissão observou, também, que, ao longo de 70 anos, o MHN formou uma forte

tradição no que tange às atividades museológicas, inclusive no método de trabalho de seus

funcionários. Para o redator, essa tradição não deveria ser abandonada, visto que ela moldou o

acervo enquanto um conjunto de sentido – uma coleção cuja finalidade última era testemunhar a

história da formação do Estado nacional brasileiro. No entanto, o foco de aquisição deveria

privilegiar o século XX, principalmente aqueles artefatos que “representassem a dinâmica

histórica da formação social brasileira” em seus aspectos econômicos, políticos e culturais.

Neste sentido, sugerimos que as coleções existentes, por já reunirem número


significativo de objetos, não mais sejam centro da ação de coleta. Em suma, a
equipe do MHN não mais se empenhará na busca de objetos anteriores ao início
do século XX, se bem que eventuais aquisições, obtidas através de doação ou
coleta específica, e que complementem as coleções, nunca deixarão de ser
consideradas […].250

A política de aquisição centrou-se nas seguintes bases: a ligação do objeto com um ou

mais dos aspectos gerais da dinâmica histórica da formação social brasileira; os objetos

identificados a uma personalidade, instituição ou evento de importância; os objetos de uso

comum, sem ligação direta com personagens ou eventos, mas passíveis de serem diretamente

248
BRASIL. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Relatório final da comissão interna de política de aquisição do
Museu Histórico Nacional... Op. cit.
249
Id. p. 8.
250
Id. p. 27.
145
associados a algum período cronológico ou época. A justificativa foi a seguinte: “Isto deve-se ao

fato de que tais objetos atuam como signos, sendo capazes de representar, por analogias, o

período e o aspecto da dinâmica histórica que lhe deu origem”.251

As deliberações presentes na Política de Aquisição almejavam “garantir um fluxo regular

e sistemático de objetos e a consequente formação de novas coleções”, 252 pautando-se pela

relação do objeto com um período histórico em particular, ou seja, situando-o

cronologicamente.253 A periodização sugerida no relatório da Política de Aquisição segue os três

grandes tradicionais períodos da “formação social e política brasileira”, nos termos do relatório

final, ou seja: período colonial (1500 a 1822), período monárquico (1822-1889), período

republicano (1889 em diante). Como a maior parte dos objetos do acervo datavam do século

XIX, especialmente aqueles vinculados ao período monárquico,254 a comissão recomendou a

coleta de objetos do século XX, anexando ao relatório, com o intuito de nortear os técnicos, uma

proposta de cronologia geral do período republicano, com os principais movimentos e fatos

históricos.255

O relatório, em suas considerações finais, elenca “tipologias” de objetos a serem

privilegiados pela instituição, indicando alguns exemplos do que poderia ser recolhido. As

recomendações da comissão começam com o mobiliário doméstico dos anos 1950 e 1970, que,

de acordo com o relatório, era escasso no acervo, devendo ser privilegiado os móveis “pés-de-

palito”, pois “equipavam quase todas as residências urbanas, de todas as classes sociais, entre o

251
Id. Ibid.
252
BRASIL. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Relatório final da comissão interna de política de aquisição do
Museu Histórico Nacional... Op. cit., p. 13.
253
Id. Ibid. p. 23
254
Id. Ibid. p. 23 e 24.
255
Id. Ibid. p. 34.
146
final dos anos 50 e início dos 70, tendo gerado todo um estilo de acessórios e decorativos”. 256 Os

mobiliários de escritório, foram recomendados para a coleta, por serem importantes ícones de

diversas atividades profissionais e intelectuais, além de permitirem, em alguns casos, a

representação do Estado brasileiro. Para comissão, “tais equipamentos são bastante

significativos, além de, tanto quanto o equipamento doméstico, refletirem o gosto vigente da

sociedade em um dado momento; incluem escrivaninhas, arquivos de madeira e de aço,

fichários, estantes, cadeiras, diversos tipos de mesa [...]”. 257 A coleta de mobiliário e

equipamento escolar está entre as recomendações da comissão, visto que “a composição de

algumas séries deste tipo de equipamento pode demonstrar a evolução de conceitos pedagógicos

e de projetos para a incorporação dos futuros adultos à sociedade incluem carteiras escolares,

quadro negros, armários e estantes, bem como instrumentos pedagógicos”. 258 Outro item

recomendado foram os rádios domésticos à válvula, e a justificativa para a sua coleta segue o

mesmo caminho: “a partir dos anos 30 até o finais dos 60, quase toda residência dispunha de um,

bem como certos locais públicos […] são importantes para o estudo e representação das

comunicações”. Nessa mesma linha entraram os televisores à válvula, que de acordo com o texto

do relatório, “são importantes para o estudo e representação do avanço das comunicações, bem

como a diversificação da produção itens de consumo de massa, caraterístico do capitalismo, além

de poder referir todo um importante setor da produção cultural e do lazer das massas”. 259 Os

toca-discos e os aparelhos de som também foram recomendados, visto serem de “grande

importância no lazer da população e que estabelecida uma série, pode representar diversas

256
Id. Ibid.
257
Id. Ibid.
258
Id. Ibid.
259
Id. Ibid.
147
questões econômicas culturais e tecnológicas”.260 Os aparelhos telefônicos foram considerados

relevantes por representarem questões relativas ao desenvolvimento econômico, “visto o papel

que as comunicações representam nesse processo”. Para a comissão os aparelhos em si indicam

estilos arquitetônicos e de design de diversas épocas, assim como o desenvolvimento tecnológico

em geral. Ainda neste tópico, a comissão recomendou a localização de listas telefônicas antigas e

suprimentos com agendas telefônicas. Sobre máquinas de escritórios mecânicas, como máquinas

de escrever, de grampear, de somar etc., também foi valorizado o fato destes itens estarem

vinculados a atividades econômicas e, mais uma vez, por representarem avanços tecnológicos.

Mesmo caminho seguiu a recomendação sobre os equipamentos de processamentos de dados, os

computadores. A comissão recomendou ainda a coleta de canetas e outros equipamentos de

escrita. Essa recomendação teve por base o seguinte: já possuindo o Museu, na época, uma

significativa quantidade desses objetos, a coleta deveria expandir as séries, visto que “podem

representar, dentre outras questões, a expansão da cultura literária e a diversificação da produção

de itens de produção de massa, característica do capitalismo”. Os relógios também foram

recomendados pela comissão, principalmente aqueles oriundos do século XX, assim como as

ferramentas de trabalho em geral, como picaretas, martelos, foices, etc. Os objetos da indústria

automobilística foram indicados para aquisição, visto que essa “indústria representou um marco

no processo de industrialização nacional e na formulação de políticas de transporte e de

infraestrutura.” Porém, devido a limitação de espaço para a aquisição de itens inteiros (ônibus,

carros etc.), foi recomendado que “um carro pode ser representado por um volante, a parte

mecânica pode ser representada por peças chave, como o carburador ou os pistões”. 261

Semelhante orientação foi dada quando tratar-se de objetos ligados ao setor de transportes

(aéreos, marítimos e ferroviários), pois sendo impossível a aquisição e a conservação desses itens
260
Id. Ibid.
261
Id. Ibid.
148
no MHN, a indicação foi coletar fragmentos, como uma hélice de avião ou um manche de navio.

A coleta de miniaturas, formando séries, como modelos de avião, de carros, de trens e de navios

fabricados no Brasil foi encorajada pela comissão. Os objetos devocionais foram incluídos nas

recomendações, uma vez que “representam importante compartimento da dinâmica histórica da

formação social brasileira”. Os aparelhos eletrodomésticos foram considerados, pois “além de

constituir indicativo de tendências sociais e culturais, representam, a partir dos anos 50,

importante item da pauta de substituição de importações a partir do governo de Juscelino

Kubitschek”.262 Já os utensílios de mesa e cozinha tiveram sua importância atribuída ao fato de

que “estão presentes em quase todas as atividades relacionadas com os três grandes aspectos

gerais da dinâmica histórica da formação social brasileira. Nesse aspecto, recomendou-se a

ênfase nos itens descartáveis e de baixo custo que “caracterizam os usos e costumes da sociedade

brasileira depois da 2º Guerra mundial”. Equipamentos de esporte, podem, para a comissão,

“constituir importantes séries museológicas, visto que o esporte tem importante participação na

dinâmica da formação social brasileira”. Recomendou-se a localização de equipamentos de

futebol, vôlei, basquete e outros esportes, assim como materiais relativos a eventos esportivos e

seleções nacionais. Os itens de indumentária também foram considerados importantes, por

mostrar o “universo mental de uma sociedade, bem como da organização econômica e das

tendências políticas”. A ênfase na coleta deveria recair sobre os itens de indumentária do século

XX em geral, em particular uniformes de trabalho e militares. Por fim, a comissão recomendou a

coleta de brinquedos, que “constituem, indiscutivelmente, item presente na vida cotidiana de

todas as classes da sociedade brasileira, em todos os períodos históricos”, uma vez que “O

Museu não possui peças significativas destes objetos, devendo ser feito esforço de localização

para todas as épocas do período republicano.”

Na prática, o Museu passou a ser entendido como um lugar de representação das


262
Id. Ibid.
149
memórias nacionais, onde se procurava corrigir “distorções” e pôr em cena elementos

“esquecidos”, sobretudo, na narrativa barroseana. Objetos representativos de grupos e atividades

sociais antes não inseridos no MHN passaram, assim, a ser coletados pelos técnicos da

instituição. Uma análise dos itens coletados desde então, mostra que, ao longo das décadas de

1990, 2000 e 2010, houve um significativo aumento objetos produzidos em massa (como

frascos, objetos de toucador, celulares, brinquedos e eletrodomésticos), que passaram a dividir a

reserva técnica lado a lado com os “objetos relíquias” do tempo de Gustavo Barroso.

Isso se explica, em parte, devido à recomendação da comissão de coletar objetos que

representem a produção capitalista, que têm “como principal característica, o fato de gerar

enorme quantidade de objetos materiais.”263 Tal constatação evidencia um enorme fluxo de

objetos que aportam no mercado, indicando, com isso, a necessidade dos técnicos envolvidos na

seleção orientarem-se pelo aspecto político, relativo à “estruturação, organização, objetivos e

direção da formação social brasileira”264; pelo aspecto econômico, relativo à “estrutura,

organização e meios necessários à criação e ao aperfeiçoamento das condições de existência

material da formação brasileira, assim como tudo o quanto possa ser considerado um

desdobramento dos referidos processos”265; e, por fim, pelo aspecto cultural, relativo à

[…] produção intelectual, artística e científica da formação social brasileira,


bem como aspectos ligados à tradição e à memória, independente de se
classificar como eruditos ou populares (aí incluídos crenças, hábitos, saberes e
práticas), assim como seus possíveis desdobramentos. 266

As orientações do relatório da Política de Aquisição, quanto ao aspecto cultural do

objeto, mostram um alargamento do entendimento de cultura, mais próximo a um sentido

antropológico, para além de uma produção de bens materiais da elite dominante, em uma franca
263
Id. Ibid. p. 25.
264
Id. Ibid.
265
Id. Ibid.
266
Id. Ibid.
150
ampliação das tipologias a serem incorporadas. Isso implica também na ampliação do conceito

objeto histórico que, assim como a ampliação do conceito de patrimônio cultural, é um

fenômeno comum no campo patrimonial como um todo.

O que se pode observar, no MHN, é que, apesar de algumas limitações 267 de coleta e das

orientações da comissão sobre os aspectos políticos, econômicos e sociais, a ampliação do

conceito de cultura e de objeto histórico trouxe para o cotidiano do Museu a possibilidade de

musealização de quase todos os objetos existentes em nossa sociedade, assim como o surgimento

de outras autoridades com legitimidade na definição e na classificação do acervo.

Apesar da formulação da Política de Aquisição ter dado início a uma diversificação do

acervo do MHN, não há dúvidas de que esse processo não começou somente a partir de 1996,

uma vez que, desde os anos anteriores, já vinha ocorrendo a incorporação de objetos que,

“tradicionalmente”, estariam em outras tipologias de museus, como os folclóricos e os

etnográficos. Em 1985, por exemplo, foram doados ao Museu, pelo indigenista Luiz Filipe de

Figueiredo Cipré, 300 objetos oriundos de 41 nações indígenas, como adornos, instrumentos

musicais, estatuetas entre outros. O doador atuou na década de 1970 como funcionário da

Fundação Nacional do Índio (Funai), engajando-se em questões políticas e sociais sobre os

direitos dos índios brasileiros. De acordo com Cipré, em entrevista recente a uma pesquisadora,

sua coleção etnológica doada ao MHN foi resultado de 17 anos de convivência direta com vários

povos indígenas.268 No termo de doação, Cipré fez uma recomendação bastante comum em

outras doações recebidas pelo MHN: a manutenção da integridade da coleção. Seus termos

diziam que, “os bens formam uma coleção que não poderá ser desmembrada. Havendo

impossibilidade de ser exposta integralmente, pelo menos parte da mesma deverá constar do
267
Esse é o caso dos discos de vinil, que não são aceitos pela instituição exatamente por nunca ter constado no
histórico das coleções nenhum objeto desse tipo.
268
OLIVEIRA, Mayara Manhães de. Representação sobre os índios no Museu Histórico Nacional: apontamentos
sobre aquisições e exposições. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v. 44, ano 2012.
151
circuito de exposição permanente, representando o índio no contexto histórico nacional.”269

As recomendações sobre a manutenção da integridade das coleções e imediata exposição (de

alguns objetos) remete aos dispositivos de autoridade e de autoria, que apresentam semânticas

próximas às ideias de criação, fundamentação e organização, como visto nos capítulos anteriores

desta tese. Um ano após a doação, foi montada, atendendo às recomendações de Cipré, a

exposição Os donos da terra: o índio artista artesão, constando 280 objetos da coleção. Esta

exposição, já se configura como uma das primeiras tentativas museográficas empreendidas pela

direção do Museu no sentido de romper com os modelos tradicionais de exposição e de

abordagem histórica até então praticados, ao colocar em cena os povos indígenas no circuito

expositivo da instituição. O fato de Cipré ser um indigenista – com experiência in locu – acaba

por fortalecer a autoridade de especialistas “externos” que passariam progressivamente a exercer

influência na valoração e na formação das coleções do MHN, nos últimos 25 anos.

Nesse mesmo sentido de se voltar para fora de seus muros, em 1995, quando retomada a

publicação regular dos AMHN, suspensa desde 1975, a diretora, Vera Tostes, expressou na

apresentação do volume a preocupação em marcar a nova fase do periódico, que se apresenta

como um espaço sobre temas variados no âmbito das ciências humanas, em especial a história e

a museologia. Os artigos, muitos dos quais produzidos por técnicos da instituição, 270 passaram a

ter o próprio MHN como objeto de estudo, enfatizando, principalmente, a diferença entre o

modelo de história e de museu instaurado no período de Barroso, as transformações promovidas

e aquelas que ainda eram almejadas, naquele momento, para o futuro da instituição. Muitos

funcionários, oriundos das gerações das décadas de 1980 e 1990, realizaram pesquisas de pós-

graduação stricto sensu, tendo como objeto de estudo o MHN e suas coleções. Esses
269
Apud. Id. Ibid. [Grifos meus]

270
Colaboram com o volume; Regina Abreu, Margarida de Souza Neves, Mário de Souza Chagas, Solange Godoy,
José Neves Bittencourt, Lia Silva P. Fernandes, Vera Lucia Brottel Tostes, Denise Portugal, Rosângela Bandeira,
Rejane Maria Lobo Vieira, Cícero Antônio F. de Almeida, Lucila Moraes Santos.
152
profissionais realizaram suas pesquisas em domínios como o da antropologia (Regina Abreu,

mestrado), história (Lia Fernandes, mestrado), sociologia (Mário de Souza Chagas, doutorado;

Myrian Sepúlveda, mestrado) e ciência da informação (Ângela Cardoso Guedes, doutorado). A

análise de alguns artigos dessa nova fase, principalmente os publicados no final de década de

1990 e início dos anos 2000, mostra a emergência de novos discursos no espaço museológico do

MHN, no que se refere à seleção e à identificação de objetos a serem incorporados ao acervo. O

trabalho de Lia Perez Fernandes, por exemplo, que analisou os motivos para o baixo número de

objetos vinculados às atividades de trabalho, como ferramentas em geral, abriu um novo campo

para a coleta de acervos.271 O caso mais exemplar é o da atual assessora de comunicação do

MHN e jornalista Ângela Cardoso Guedes que realizou uma pesquisa de doutorado em Ciência

da Informação dedicada à análise dos brinquedos como fonte de informação história e

museológica.272 Em artigo publicado nos AMHN, em 2002, Guedes observa que, tal como

negros, mulheres, camponeses e índios excluídos do discurso museográfico praticado no MHN

até a década de 1970, os brinquedos, fossem eles das camadas abastadas ou das camadas

populares, não eram sequer cogitados como itens a serem coletados para a instituição. 273 Na

concepção de Barroso, “brinquedo” era uma categoria que, tal como “ferramentas de trabalho”,

deveria figurar em um museu ergológico e não histórico.

Entre as orientações da Comissão Interna de Política de Aquisição de acervo constava

também a coleta de brinquedos, o que possibilitou o início de uma de “coleção de brinquedos”, a

271
Atualmente, os AMHN tornaram-se o principal canal de comunicação entre a instituição e os programas de
graduação e pós-graduação, uma vez que em sua nova fase configura-se como um periódico científico, atendendo
aos princípios técnicos, éticos e formais de divulgação da ciência. Os AMHN são avaliados pelo Qualis da Capes
foram avaliados em sete áreas distintas, recebendo diferentes estratos. Porém, nas áreas de atuação do periódico
foram avaliados em B1 em Urbanismo e Arquitetura, em B1 em História e B2 em Interdisciplinar.
272
GUEDES, Ângela Cardoso. Brinquedo: Fonte de Informação Museológica. Tese (Doutorado em Doutorado em
Ciência da Informação) - Instituto Brasileiro de informação em Ciência e Tecnologia, . 2004.
273
GUEDES. Ângela Cardoso. Brinquedos: a formação da coleção do Museu Histórico Nacional. Anais do Museu
Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v. 34, ano 2002. p. 344.
153
partir de alguns objetos já pertencentes à instituição. Em texto publicado nos AMHN em 2002,

Guedes, maior doadora da coleção, apresenta alguns motivos que justificaram a incorporação de

alguns desses objetos ao acervo do museu, a partir de 1996.

Entre os objetos da atual coleção de brinquedos do MHN, constam mais de 300 objetos

fabricados pela empresa Estrela, como bonecas, jogos e carrinhos. A significativa quantidade de

objetos desse fabricante é justificada por Guedes, a partir da suposta importância do fabricante

na “memória” de diversos brasileiros.

[...] presente na infância de gerações de brasileiros […] a Estrela tornou-se


pioneira em lançamentos, desde o primeiro brinquedo de madeira com
movimento e som produzido no país, ainda na década de 1940, até os
brinquedos de alta tecnologia, sendo atualmente a maior indústria do gênero na
América Latina.”274

Foram coletados também objetos referentes aos “primeiros anos da infância”, como

chocalhos, casinhas, jogos de encaixar e bichos de borracha que “introduzem o bebê, de forma

gradativa, prazerosa e eficiente, ao seu universo socio-histórico-cultural [...]”. Destaque também

para brinquedos que reproduzem o mundo técnico, como miniaturas de carros, de móveis, de

utensílios domésticos, de ferramentas de trabalho etc., além de jogos que estimulam as atividades

intelectuais e sociais, como o Banco Imobiliário, o War, o jogo de damas, os dominós entre

outros. Guedes destaca, também, os objetos relacionados a personagens da literatura e da

televisão, como os brinquedos que representam os personagens do Sítio do Pica-pau Amarelo,

relançado pela Rede Globo, em 2001, assim como os bonecos dos personagens do programa Vila

Sésamo, “pioneiro na televisão com caráter de lazer educativo e a série mais vista no Brasil em

1970”. Nessa categoria, foram também coletados os bonecos das Tartarugas Ninjas (título

original Teenage Mutant Ninja Turtles, criado por Mirage Studios, nos E.U.A) e os bonecos

“agarradinhos” da Turma da Mônica (personagens criados pelo cartunista brasileiro Maurício de

Souza), todos eles sucessos de audiência nacional e internacional. Sobre as bonecas Susi, Guedes
274
Id. Ibid. p. 350.
154
declara o seguinte:

[…] o museu possui quatro interessantes modelos desta boneca: a 'Susi


Coração' – primeiro modelo que surgiu no mercado após o lançamento da Susi
em 1997- a 'Susi Olodum' – primeira boneca fashion negra brasileira – a 'Susi
Índia' – edição comemorativa dos 500 anos do descobrimento do Brasil – e a
tradicional 'Susi Noiva'.275

Outro destaque mencionado por Guedes são as bonecas Fofoletes, também fabricadas

pela Estrela. Essas bonecas foram adquiridas por serem produtos industrializados e feitos em

larga escala, o que implica em custo baixo de produção, com o intuito de alcançar as camadas

menos favorecidas: são os chamados “brinquedos populares”. Trata-se claramente da

preocupação em representar o consumo e a infância das camadas populares, “antes não presentes

na museografia do Museu”, usando as bonecas como vetores de representação.

Entre os objetos da coleção de brinquedos, também há um jogo eletrônico produzido pela

empresa brasileira TecToy, o Pense Bem, sucesso de venda nos anos 1990: trata-se um

microcomputador para crianças, com funções de calculadora, notas musicais, jogos de memória,

agenda etc., e um Tamagochi, que é um dispositivo eletrônico de fabricação japonesa que tem

por objetivo simular um “animal de estimação”, que depois de iniciado tem que receber

comandos diários que simulam ações como alimentação, carinho, e exigindo do proprietário

cuidados semelhante aos dedicados a um ser vivo. A entrada desses objetos é justificada pela

“tendência de brinquedos eletrônicos”, identificada sobretudo a partir da década de 1990.

Brinquedos importados também foram alvos da coleta, como aqueles produzidos por

fabricantes estrangeiros, como empresa inglesa Britain e a alemã Lineol. A empresa americana

MARX, que se tornou a maior fabricante de brinquedos do mundo também está representada no

MHN, através de inúmeros brinquedos militares, como o Forte Apache, soldadinhos, aviões de

guerra entre outros.

Os brinquedos militares, por sinal, são abundantes nesta coleção. Guedes justifica a
275
Id. Ibid. p. 351.
155
entrada desses objetos por sua característica de “documentos históricos” que podem conter

informações sobre a evolução das técnicas militares, assim como da cultura militar na formação

da criança, em especial dos homens. Outro aspecto de valoração de brinquedos é a evolução das

técnicas e dos materiais empregados em sua fabricação, como a madeira, o chumbo, o ferro e,

posteriormente, os diversos tipos de plásticos.

Brinquedos de montar clássicos, como os dos fabricantes Lego e Playmobil também

foram alvos de coleta, em especial uma série da Playmobil representando um combate medieval

europeu; e uma da Lego, também representando um combate medieval, porém ambientado no

Japão. A valoração de tais objetos se deu pelo seu caráter “universal”, em seus termos:

Presentes em mais de 40 países diferentes e produzido em quatro fábricas no


mundo (Dinamarca, Estados Unidos, Suíça e Coreia do Sul) estima-se que cerca
de 300 milhões de crianças em todo mundo já tenham brincado com um Lego
na vida. Tanto o Playmobil quanto o Lego foram selecionados para integrarem
os principais brinquedos do século XX.276

Os brinquedos coletados, desde 1996, são para Guedes representativos da indústria

nacional (embora vários exemplares importados tenham sido coletados), “cuja importância está

no fato de ilustrarem a cultura dos diversos segmentos sociais, assim como os diretamente

ligados à nossa história ou literatura”.277 Em seus próprios termos:

[…] podemos observar a preciosa fonte de informação constituída por um


brinquedo acerca da sociedade que o gerou e que o utiliza. O brinquedo está
diretamente ligado ao olhar que lançamos sobre a criança e a educação, ao
conceito de família ao longo dos tempos e à memória afetiva. A história do
brinquedo relaciona-se, ainda, à história das técnicas e da moda.

[…] Um grande desafio é selecionar os brinquedos que integrarão o acervo de


um museu dedicado à história nacional. Ou seja, objetos que sejam
significativos para a trajetória do país, para a história das técnicas e da moda,
que representem o universo infantil e, ao mesmo tempo, as tendências da
própria sociedade brasileira.278

276
Id. Ibid. p. 364.
277
GUEDES, Ângela Cardoso. Brinquedos: Por uma Política de Aquisição. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio
de Janeiro, v. 34. ano 2002. p. 30.
278
Id. Ibid. p. 29
156
Figura 16: Brinquedos musealizados, exposição Cidadania em construção. MHN.

As recomendações constantes no relatório final da Política de Aquisição de Acervos do

MHN indicaram 20 núcleos de interesse para orientar a coleta de acervo. No entanto, conforme

os dados levantados por Vivian Greco, referentes ao ano de 2001 a 2010, e por pesquisas feitas

para as finalidades desta tese na base de acervos do MHN, apenas dois núcleos tiveram aumento

expressivo de peças: a coleção de brinquedos e a coleção de indumentária. A coleção de

brinquedos é hoje a terceira maior coleção do MHN, sendo a de armaria a primeira e a de

indumentária a segunda. O aumento de brinquedos ocorreu, em parte, pela ação particular da

funcionária Ângela Guedes, e o da coleção de indumentária pode ser explicado, também parte,

pela ação de uma outra funcionária do Museu, Vera Lima, professora de e especialista em moda,

que se tornou uma espécie de curadora da coleção. Frequentemente, ela doava e solicitava a

doação de roupas e de acessórios de indumentária a representantes de marcas nacionais e

internacionais de destaque, como a empresa Osklen. Cabe ressaltar, além da ação de Vera Lima e

de Ângela Guedes, que objetos de indumentária e brinquedos são frequentemente oferecidos ao

Museu por funcionários e demais interessados na instituição.

Na avaliação de Bittencourt, os artefatos em exposição e na reserva técnica no MHN

157
coletados a partir da Política de Aquisição, conseguem cumprir o papel de expressar a moderna

sociedade brasileira, tal como previsto nas intenções dessa política. O problema, para ele, é que

essas ações de aquisições ocorreram de forma descoordenada, fruto da ação isolada,

precisamente, de alguns funcionários e de pessoas interessadas no Museu, não havendo uma

pesquisa constante sobre esses itens. 279 Efetivamente, a instituição encontra-se na situação de

“recolhedora passiva” de objetos, uma vez que não há programas específicos de aquisição de

acervo nem tampouco linhas de pesquisa organicamente vinculadas às ações de aquisição.

Ao ser perguntada sobre qual objeto melhor representaria o século XXI, a museóloga Lia

Perez Fernandes, que foi chefe do Departamento de Acervos do MHN, nos anos 2000,

respondeu: “qualquer um, pois essa definição é ampla. Qualquer objeto pode ser representativo,

basta que eu tenha bom discurso que convença que ele é de interesse histórico, informativo para

o Museu.”280 A resposta de Fernandes mostra como os procedimentos de valoração histórica de

artefatos mudaram nos últimos 30 anos, na instituição: os objetos passaram a ser alegorias, ou

seja, passaram a representar conceitos, e o papel dos especialistas é associá-los a estes conceitos,

não mais os autenticando com base em conhecimentos específicos, como os da heráldica, da

diplomacia, da numismática etc. Em outras palavras, o papel dos técnicos é saber lidar com os

conceitos que operam, argumentando em favor deles e encontrando nos objetos características

que os representem.

Apesar da aposentadoria dos funcionários formados no antigo currículo do Curso de

Museus, esse tipo de trabalho técnico e indiciário ainda continua presente em algumas ações no

cotidiano do MHN, como visto no segundo capítulo desta tese, quando foram analisados os casos

recentes de questionamento da autenticidade de acervos, como a questão da autoria dos “Ovais


279
GRECO, Vivian. O século XXI coletado. Um estudo sobre a política de aquisição de acervo do Museu Histórico
Nacional, seu uso, seus critérios e sua prática. Dissertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação em
museologia e patrimônio. Museu de Astronomia e Ciências Afins. Rio de Janeiro, 2014.
280
Apud. Id. Ibid.
158
de Leandro Joaquim”, da aferição da autenticidade das obras de Debret e no reconhecimento da

distinção heráldica banco de lambel numa das carruagens do MHN, que possibilitou uma nova

classificação do objeto e sua consequente valorização. Em todos esses casos, o “olhar treinado” e

os conhecimentos técnicos de museólogos – Vera Tostes, Ivan Sá, Jorge Cordeiro, Norma

Portugal, Sônia Gomes Pereira – foram determinantes na classificação e autenticação dos

objetos. Todavia, de um modo geral, pode-se dizer que há uma escassez cada vez maior deste

tipo de profissional, principalmente nas áreas de numismática e heráldica. Portanto, se ao longo

da trajetória do MHN podemos visualizar a emergência do especialista, formado nas bases do

Curso de Museus e com o olhar treinado nos próprios objetos da instituição, essa mesma

trajetória mostra seu desaparecimento paulatino, e o surgimento de outras autoridades com

outros saberes e experiências e, com elas, a constituição de outras coleções.

Em relação à autoridade do nome próprio, que remete à noção de posse (e,

corolariamente, a de possuidor), observa-se que ela continuou sendo um dos critérios para a

aquisição de acervo, como constatado nos relatórios da Comissão Interna de Política de

Aquisição de Acervos MHN em 1992 e na sua revisão de 2006.

A incorporação de objetos deve ser orientada por algum tipo de matriz


conceitual. Todas as indicações até agora levantadas apontam na direção da
noção de possuidor, entendido este como o gerador dos objetos componentes
da coleção no momento de sua incorporação pelo museu. A adoção desta
noção apresenta diversas vantagens, a primeira delas o fato de que seriam
respeitados os limites estabelecidos pela tradição do MHN, no que tange à
lógica das formações de coleções.281

Deste modo, foram coletados pelos técnicos da instituição objetos pertencentes a

personalidades nacionais, como as sapatilhas da bailarina Ana Botafogo e as roupas de cirurgião

do médico Ivo Pitanguy, objetos que, ao mesmo tempo que remetem à representação de

ferramentas de trabalho (categoria enfatizada na política de aquisição) remetem ao culto de

homens ilustres. A característica híbrida desses objetos (ou seja, por serem vetores de evocação

281
Id. Ibid.
159
dos homens ilustres e alegorias do trabalho) lhes agrega maior valor histórico, potencializando

sua exposição. Os dois objetos estão, atualmente, em vitrines de Cidadania em construção,

último módulo da atual exposição de longa duração do MHN, inaugurada em 2010. O módulo

tem por objetivo explorar por meio de textos e objetos o desenvolvimento da construção de

cidadania no Brasil, tendo por eixo condutor os direitos e deveres políticos, civis e sociais. As

sapatilhas e o vestido de balé de Ana Botafogo e a roupa de cirurgião de Ivo Pitanguy estão na

parte dedicada ao direito ao trabalho, como ferramentas símbolo do médico e da dançarina, suas

legendas informam os nomes de seus primeiros proprietários: dois brasileiros de destaque

nacional e internacional em suas respectivas profissões.

Figura 17: Vestido de Ana Botafogo, jaleco de Ivo Pitanguy e demais instrumentos de trabalho.
Cidadania em construção, MHN.

Assim, a autoridade do nome próprio dos antigos patronos e heróis cultuados no MHN

ainda se faz presente na instituição principalmente pela perenidade que essas autoridades têm na

autenticação dos objetos doados e reconhecidos como históricos. Caso exemplar estudado aqui

de dessacralização é o do “Tacape de Tibiriçá”, objeto que, apesar de toda a reformulação de


160
conceitos museológicos, de concepções históricas e das transformações oriundas da própria

história da instituição, continua sendo exposto na qualidade de “objeto do século XVI”. Como as

demais doações analisadas no segundo capítulo, pode-se considerar que, de certa forma, o tacape

é um objeto aurático. Walter Benjamin argumentou que a aura é fruto de uma construção social

baseada na existência única de determinado objeto e no seu vínculo com uma tradição, que o

identifica e o qualifica. A constante exposição desse objeto reafirma seus valores relicário e

histórico, na medida em que há uma relação direta entre exposição e valoração, tal como

caracterizado por Pomian em seu estudo sobre os semióforos. No caso do MHN, isso implica na

manutenção de tradições e de heróis inventados durante a segunda metade do século XIX e ao

longo do século XX, como a mitificação de Tiradentes, como um protomártir nacional, ou do

chefe indígena Martim Afonso Tibiriçá como um dos “fundadores” da nacionalidade. Isso mostra

como os critérios de autenticidade e inautenticidade são plurais, como observado por Gonçalves,

que afirmou que a não problematização da categoria “patrimônio” desempenha um papel

importante na retórica nacionalista: os critérios de autenticidade podem ser pensados “como

construções sem necessariamente nenhum fundamento na história, na natureza [ou] na

sociedade”. Para Gonçalves, a autenticidade do patrimônio nacional é um discurso cuja função é

a de materializar a nação.282

Apesar da duvidosa autenticidade do “Tacape de Tibiriçá” e da dessacralização das

relíquias históricas coletadas no tempo de Barroso, o tacape continua sendo associado ao índio

Tibiriçá. Essa “carga” simbólica o diferencia dos demais tacapes presentes no acervo da

instituição, tornando-o extraordinário, seja pelo seu caráter de relíquia, seja pela história de sua

doação ao MHN. Como nenhum atributo histórico é imanente, a atribuição do objeto ao índio –

sem dúvida, tornado herói – e todas as suas mudanças de significado, suas exposições e seus
282
GONÇALVES, José Reginaldo dos Santos. Autenticidade, memória e ideologias nacionais: o problema dos
patrimônios culturais. In: _____. Antropologia dos objetos: coleções museus e patrimônio. Rio de Janeiro: Iphan,
2007.
161
usos em geral, produzem uma historicidade, um valor histórico que, independentemente de sua

autenticidade, suscita uma série de questões e de relações com a história e a memória nacional,

possibilidades essas que um objeto não datado e não identificado a uma pertença não poderia

fornecer. Essas são modalidades da invenção do objeto histórico, particularmente, em seu viés

relicário. Em todo caso, como afirma Dominique Poulot, patrimônio e história diferem, posto

que o primeiro tem por objetivo atestar identidades e afirmar valores que muitas vezes

relacionam-se – se necessário – ao falseamento da verdade histórica.

Giorgio Agamben atenta para a estreita relação entre profanação e uso. A profanação é

uma forma de reafirmar o valor sagrado dos objetos religiosos, uma vez que é através da

sacralização e da profanação que ocorre a separação entre a esfera religiosa e a mundana.

Agamben observa ainda que a religião pode ser definida como aquilo que subtrai coisas ou

pessoas ao uso comum e as transfere para uma esfera separada, sendo que o sacrifício é o

dispositivo que regula e realizada a separação. A formação de coleções também impõe um ato de

sacrifício e uma separação entre valor simbólico e utilitário. 283 Os objetos em coleção perderiam,

assim, suas funções originais de uso, sendo-lhes agregados outros valores, como o histórico, o

religioso e o sentimental. As coleções do MHN podem ser interpretadas, portanto, como

sacrifícios feitos por aqueles que abriram mão desses objetos, muitos dos quais com alto valor de

mercado – para oferecê-los à nação e às gerações vindouras. Estabelece-se, assim, a distinção do

uso “histórico” secularizado, com a interdição do uso “funcional”.

Secularização parece ser o termo mais adequado ao processo pelo qual o acervo do MHN

passou desde o projeto de revitalização. Os objetos da coleção Miguel Calmon nunca mais

estiveram juntos evocando seu proprietário, assim como as relíquias da sala Osório ou da sala

Caxias. Objetos como as traves de Tiradentes, o “Tacape de Tibiriçá”, foram expostos em

diferentes contextos, e assumiram sentidos que reafirmam e reinventam seus valores históricos. .
283
Id. Ibid.
162
Eles continuaram tendo as características de semióforos, como afirma Pomian, sendo elos entre o

visível e o invisível284. Foram mantidas intactas as forças, os dispositivos de autenticação

histórica, como a autoridade do especialista e a autoridade do nome próprio, somados às novas

autoridades surgidas, então, nas últimas décadas. A secularização restringiu-se, nesse sentido, em

deslocar a semântica dos objetos, deixando, porém, intacto seu poder simbólico. Nos processos

decisórios, como a seleção e a avaliação de acervos, as autoridades do nome próprio e do

especialista fazem parte não somente da economia museal, desempenhando uma função

estratégica de seleção, de valoração e de valorização, e constituindo a própria racionalidade

museológica da instituição. Nome próprio e especialidade são, portanto, estratégias de relações

de força, que constroem, há anos, o discurso museográfico do MHN, no interior da própria

racionalidade do campo museal em suas mais diversas realidades de invenção, sagrada ou

profana, de narrativas e de acervos.

284
POMIAN, Krzysztof. Coleções... Op. cit.
163
4. Conclusão

Numa perspectiva de história cultural, a “arqueologia de objetos” do Museu Histórico

Nacional realizada nesta tese buscou identificar o papel da autoridade nos processos de

musealização empreendidos na instituição por conservadores e técnicos. A base de análise foi,

precisamente, a categoria autoridade, que possibilitou pensar a formação da coleção, a partir dos

atores sociais envolvidos em processos decisórios de coleta e de classificação e de verificar a

força autoritativa na produção de crença e verdade, no espaço museológico do MHN, ao longo

de seus noventa anos. Como resultado desse trabalho arqueológico a partir de um dos maiores

acervos museológicos públicos do Brasil, foi possível afirmar duas formas de autoridade

fundamentais ao entendimento da atribuição de valor e autenticidade dos objetos.

A primeira é a do especialista que se constituiu como um dos principais pilares de

legitimação do trabalho de constituição de acervo no MHN, durante seus primeiros 40 anos.

Com o Curso de Museus, o MHN pode formar seus próprios especialistas, tornando a instituição

referência no campo museológico brasileiro. Nele também foram formadas as primeiras gerações

brasileiras do que, hoje, podemos considerar como o campo disciplinar da museologia.

A autoridade do especialista, exercida inicialmente pelos conservador do museu, baseia-

se na experiência e nos saberes técnicos e eruditos daqueles que declaram ou atestam

autenticidade histórica a um determinado artefato. O conhecimento das chamadas disciplinas

auxiliares da história, comuns ao antiquarianismo e à erudição, o domínio de um vocabulário

específico, necessário a “correta” descrição do artefato, e o “olhar treinado”, que implica na

“cultura visual” do especialista, capaz de reconhecer uma pincelada ou a sutil diferença entre

uma porcelana legítima e outra falsificada, foram as principais características identificadas no

método de trabalho dos conservadores do MHN.

164
Em suas atividades de classificação e autenticação do acervo, os conservadores

operavam, também, com indícios que comprovavam a procedência, a datação e,

consequentemente, a autenticidade dos artefatos. Quando necessário, os conservadores

mobilizavam, ainda, outras autoridades, referenciando historiadores, críticos e eruditos

renomados, como Vieira Fazenda e Joaquim Norberto, além, obviamente, de diversas fontes

textuais. Não se tratava de uma pesquisa científica propriamente dita, mas de pesquisa aplicada

que busca fundamentar (ou refutar) a autenticidade dos objetos. Em outras palavras, o papel dos

conservadores era fornecer a fundamentação histórica e, com ela, permitir a classificação dos

objetos nas categorias “histórico” e “nacional”, procedimento que valorava, comitantemente,

suas dimensões documental, monumental, testemunhal e relicária.

A autoridade do nome próprio, analisada no segundo capítulo da tese, vincula-se, por sua

vez, ao estatuto daquele que declara autenticidade do artefato, não através de um procedimento

de crítica e de levantamento de indícios, como no caso dos conservadores, mas pela força de seu

nome ou de seu vínculo familiar e de sua posição social. Nesse sentido, o principal elemento

analisado foi o nome próprio ou de família. Firmado em declarações de autenticidade, como as

que acompanham diversas “relíquias” do acervo, a autoridade do nome próprio possibilita, ao

declarar a “verdade” sobre determinado objeto (o pertencimento ou o testemunho dele), a

produção de historicidade. Esse procedimento valora, igualmente, os objetos em suas dimensões

documental, monumental, testemunhal e relicária. O tipo de autoridade do nome próprio

analisado nas coleções do MHN, apresentou importantes paralelos com a produção de relíquias

cristãs durante a Idade Média, quando o nome de autoridades religiosas atestava o suposto

contato das relíquias com santos, mártires e, por vezes, com o próprio Cristo. Essas práticas de

sacralização teriam sido ressignificadas nos museus modernos, principalmente na invenção das

“relíquias históricas”, como visto ao longo da tese.

165
Cabe ressaltar que, por vezes, a autoridade do nome próprio confunde-se com a

autoridade do especialista, principalmente quando este é renomado pela posse de objetos

colecionados ou por sua atuação “patriota” ou “ilustre”. Este foi o caso da falsa aquarela de

Debret, adquirida pelo MHN a partir do leilão da coleção de Djalma da Fonseca Hermes e,

possivelmente, vendida ao colecionador pelo marchand falsário Robert Heymann, anos antes;

além de diversas aquarelas atribuídas ao mesmo pintor e que fazem parte da coleção Castro

Maya. Como vimos no segundo capítulo, todos os envolvidos eram colecionadores experientes,

renomados em seus meios sociais, de tal modo que sua autoridade de colecionador, enquanto

autoridade do nome próprio, não deixou lugar ao questionamento da autenticidade das pinturas,

que foram expostas e reproduzidas durante anos como se fossem autênticas.

A força da autoridade do nome próprio na formação da coleção do MHN é também

oriunda do discurso histórico adotado na instituição em seus primeiros 60 anos, que valorizava a

ação dos “homens ilustres” numa narrativa monumental e nacionalista. Isso é tão notável que a

instituição tornou-se, durante a primeira metade do século XX, um espaço privilegiado para a

consagração e a perpetuação de membros da elite da história nacional, cujos exemplos mais

significativos encontram-se na doação da coleção Miguel Calmon por sua viúva ao MHN e as

nas doações de Getúlio Vargas, durante seus governos. Um outro dado mostrado na análise da

autoridade do nome próprio foi como a fundamentação histórica, necessária à autenticação de

objetos, ocorre também a partir da ligação genealógica ou social do proprietário do objeto com

seus possuidores no passado. Portanto, sangue e nome eram categorias fundamentais de

fundamentação da autenticidade histórica, principalmente no caso das relíquias familiares,

abundantes no acervo estudado.

O terceiro capítulo foi dedicado ao período mais recente da instituição, especialmente aos

últimos 30 anos, quando o MHN passou por várias transformações que resultaram numa

166
reformulação de “seu discurso histórico” e dos critérios tipológicos de incorporação de objetos

ao acervo. A análise mostrou como houve, a partir dos anos 1980, um esvaziamento paulatino

das práticas museográficas dos antigos conservadores, com o surgimento de outras autoridades

especializadas ou de museólogos que compartilhavam outras concepções museológicas, mais

próximos do campo da ciência da informação e das correntes da nova museologia. Esses novos

atores mostram a emergência, no campo patrimonial como um todo, de novos discursos sobre os

museus, sobre as concepções de “história” e sobre o “nacional”, que levaram a instituição a um

amplo processo de “revitalização”.

Nesse sentido, mostramos como os objetos coletados pela instituição, a partir da

publicação da Política de Aquisição e da recomendação do Museu em coletar objetos

representativos da “formação política, social e econômica da sociedade brasileira”, passaram a

representar conceitos e categorias, como “capitalismo” ou “desenvolvimento tecnológico”, ou

ainda, segmentos sociais antes excluídos da museografia da instituição, como as crianças e as

classes médias. Desta maneira, papel dos técnicos da instituição, na seleção de acervos, passou a

ser o de associar objetos a conceitos, argumentando em favor deles a partir de características que

representassem determinadas categorias de pensamento ou de entendimento histórico. Nestes

casos, a autenticidade dos objetos não se apresenta sequer como item de crítica, uma vez que são

objetos de produção em massa, não monumentalizados antes de sua chegada ao Museu,

vinculados ao “homem comum” e de baixo valor comercial.

Todavia, foi observado que as autoridades mobilizadas no tempo de “influência” de

Gustavo Barroso, como no caso do “Tacape de Tibiriçá” ou das traves da forca de Tiradentes,

continuam a ter um papel importante na museografia da instituição, visto que ainda

fundamentam a valoração uma infinidade de objetos, sendo os acervos desse período os mais

expostos e valiosos da coleção.

167
Se por um lado, como se constatou no terceiro capítulo, houve, nas últimas décadas, um

esvaziamento da museologia “tradicional” nas ações empreendidas no Museu, por outro, ficou

claro o quanto esse conhecimento ainda é residualmente presente e ainda necessário à instituição.

Este foi o caso da restauração de uma berlinda fúnebre, reclassificada graças aos conhecimentos

heráldicos de diretora da MHN que soube “ler” o símbolo heráldico encontrado sobre a pintura

fúnebre da porta da berlinda, reconhecendo nele as diferenças que o identificavam como

pertencente ao herdeiro do trono português, no início século XIX.

Ao cabo dessa trajetória arqueológica, foram revelados alguns momentos fortes dos

processos de seleção e de avaliação de acervos, nas autoridades do nome próprio e do

especialista que fundamentam o caráter histórico e nacional da coleção. Essas autoridades fazem

parte, assim, da própria constituição do discurso museológico e desempenham uma função

estratégica na definição dos objetos dotados de qualidades específicas que justificam sua

musealização. Os dispositivos de autoridade do nome próprio e da do especialista, expressam,

nesse sentido, as relações de força e de poder presentes na instituição: são elementos que

inventam e reinventam as narrativas históricas sobre o passado nacional, como vocação, até hoje

irrevogável, do Museu Histórico Nacional brasileiro.

168
Referências bibliográficas
ABBAGANO, N. Autoridade. In: ______. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes,
2007. p. 113-115.

ABREU, Regina. A fabricação do imortal: memória, história e estratégia de consagração no


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