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“A morte ronda a casa”: etnografia do rito do axexê em um terreiro de candomblé kêtu

no Rio de Janeiro1

Rodrigo Pereira
Mestre em Ciências Sociais (UERJ)
Mestrando em Arqueologia pelo Museu Nacional da Quinta da Boa Vista (UFRJ)
Arqueólogo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional do Rio de Janeiro (IPHAN/RJ)

Resumo: O axexê é um rito de passagem realizado no candomblé quando do falecimento de um membro do


terreiro ou de sua liderança. O “tempo do rito” varia entre um dia a sete e a sua repetição após seis meses do
falecimento do indivíduo e um ano após o primeiro rito. A descrição etnográfica refere-se ao axexê num terreiro
de candomblé da nação kêtu entre os anos de 2010 a 2011, no município de São Gonçalo/RJ. A etnografia se
dedica a explanar o contexto ritual presente no axexê. Como foco dedica-se a apresentar como pessoas e objetos
entram num circuito que envolve o axé, objetos materiais, o plano material e espiritual e a reorganização da casa
durante a realização do ritual.

Palavras-Chaves: Candomblé; Axexê; Rito de Passagem, Etnografia.

Contextualização da casa de candomblé2

A casa analisada para a descrição do rito do axexê localiza-se no município de São


Gonçalo (RJ) e pertence à nação kêtu do candomblé. A dirigente da casa ou a sua "Senhora"
(termo utilizado no terreiro para denotar a sua liderança), Dona Amelie, era uma migrante
baiana que iniciou-se primeiro no culto Lesse Égum, vindo somente a se tornar adepta ao
Lesse Orixá no estado do Rio de Janeiro, quando junto a levas de migrantes do nordeste
buscava uma melhoria de renda e de qualidade de vida no Rio de Janeiro.
A etnografia do rito do axexê se realizou entre os anos de 2010 a 2011, após o
repentino falecimento da "Senhora da Casa", termo nativo do terreiro que indica a liderança
do local. A pesquisa acompanhou todos os passos deste rito pouco relatado pela literatura
antropológica3
O culto Lesse Égun é muito semelhante ao candomblé, mas como Santos (1984)
afirma, é nele que são adorados os espíritos dos pais e mães de santo dos terreiros,
representantes da ancestralidade africana, e que, após mortos, passam a zelar pela casa e pelos
membros desta. Nesse culto são admitidos apenas homens, sendo as mulheres aceitas quando
tem como orixás Oyá ou Omolu, ambos relacionados à morte.

1 Artigo baseado na dissertação de monografia intitulada "No reino das duas Senhoras: Etnografia do Rito do
Axexê no Terreiro Ilê Omô Oyá (São Gonçalo, Rio De Janeiro)", apresentada ao Programa de Pós-graduação em
Ciências Sociais (PPCIS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), defendida e aprovada no ano de
2013.
2 Para manter o anonimato da casa e dos membros optou-se pela troca do nome do terreiro e dos indivíduos que
estavam envolvidos no rito e no conflito instaurado.
3 Sobre tal rito ver as obras de: Cruz (1995) e Prandi (2000) que se detém na descrição do axexê, mas não
informam muitos dados sobre os ritos, cânticos, alimentação e elementos que constituem a passagem do espírito
do dirigente para o patamar de espírito ancestral.
A casa tem uma dupla descendência: a do Opô Afonjá de Coelho da Rocha, pelo lado
do cultos aos orixás; e de Ilê Asipá de Salvador (BA), pelo lado do culto aos éguns. O terreiro
Ilê Omô Oyá foi fundado na década de 1960 e guarda, desde sua formação, um caráter muito
familiar ligado à família sanguínea de sua fundado. Ao longo dos anos em torno de 30
indivíduos não sanguíneos tornaram-se membros do axé. Por opção da própria dirigente o
caráter sanguíneo sempre foi mais forte em seu terreiro, o que segundo ela seria um preceito
do candomblé.
No Culto Lésse Orixá a casa respondia, desde sua fundação à Oyá, a deusa das
tempestades e dos ventos, sendo o "orixá de cabeça" da dirigente e de muitos de seus filhos de
santo. Como costume da raiz do Opô Afonjá, Xangô é considerado o outro patrono da casa,
sendo adorado em um quarto de santo específico e em ritos como a "Fogueira de Airá" ou o
"Ajerê".
Como vários terreiros do Rio de Janeiro (PEREIRA, et alli, 2012), o Ilê Omô Oyá teve
períodos de maior e menor número de membros, chegando ao ano de 2010 com cerca de 30
membros. A casa estava dividida entre membros ligados à filiação sanguínea da então
dirigentes e os membros ligados à filiação de santo da casa. É neste palco que o drama social
da morte e da instauração do axexê será instalado no Ilê Omô Oyá (TURNER, 1974) como
rito que dá conta da morte da dirigente e da transformação de seu status de indivíduo para
ancestral divinizado.

O Rito do Axexê e a instauração do Drama Social no terreiro


O falecimento da ialorixá não era algo esperado pelo terreiro, alguns membros
relataram que sentiram algumas premonições quanto ao fato, mas não esperavam que sua
dirigente viesse a falecer em junho de 2010. Devido a um repentino ataque cardíaco a
"Senhora da Casa" faleceu em seu próprio quarto numa manhã daquele mês. O fato foi
constatado pelo ogã da casa, Pai Jorah, que é casado com uma das filhas carnais da dirigente
(Mãe Dayenerys) que residia, na época, com sua mãe no terreiro.
Constatado o falecimento deveriam iniciar-se os preparativos para a remoção do corpo
para o hospital e, ao mesmo tempo, dava início aos cuidados com o espírito e com a morte
que agora rondava o Ilê Omô Oyá. Assim, o ogã da casa iniciava o tratamento espiritual com
o falecimento da ialorixá: ele deveria juntar todos os fios de conta, assentamentos, roupas de
orixá, objetos pessoas da falecida e as suas quartinhas de água de seus assentamentos. Todos
os objetos foram colocados sob um pano branco na porta do "Ibó" (Quarto dos Éguns), pois
necessita-se separar "as coisas do morto das coisas dos vivos", visto que as energias não
podem se tocar.
A morte para o candomblé, apesar de ser algo normal e esperado, pode ter
consequências nefastas para o terreiro, pois altera o fluxo de energia/axé da casa pendendo-a
para uma perda de energia ou mesmo seu fechamento. Torna-se necessário "barrar" essa perda
com a colocação dos objetos do ente falecido na porta do quarto dos éguns para que estes
espíritos ancestres deem conta ou "segurem" tal energia até o início do rito do axexê.
Conforme Santos (1984), para responder a esta finalidade de separação entre mortos e
vivos é necessário que se produza um "pequeno recinto provisório, coberto de folhas de
palmeira, junto ao Ilé-ibo-aku" (SANTOS, 1984, p. 231) para estes objetos visando o início
do trabalho para o ritual do axexê. Além dessa "proteção" dá-se início ao "assentamento do
Ibó" ou ao assentamento do "égun". Este consiste em um alguidar que contém um prato
pequeno e fundo e sobre ele outro prato formando uma cavidade vazia dentro deles.
O alguidar representa a terra ou um princípio geral, não específico a individualidade
de uma pessoa como ocorre em um assentamento de orixá: os pratos vazios traduzem a ideia
do morto sem identidade ou sem sua especificidade/individualidade enquanto pessoa, dando a
esta composição uma ideia de existência coletiva do égun e não mais uma existência
individualizada do sujeito. Desse modo, o assentamento e o conceito de égun ligam-se a uma
percepção de coletivo, ou do conjunto coletivo de ancestrais, a base para o culto "Lésse
Éguns" e "Lésse Orixá" (SANTOS, 1984). Sobre esta composição é colocada outro pano
branco retirado apenas quando será assentado aquele égun.
Durante o velório, iniciado após a liberação do corpo, deu-se a retirada do "oxu", um
rito que só pode ser presenciado por iniciados, tamanha é a energia liberada e, ao mesmo
tempo, a proximidade do "Iku", o espírito da morte. No momento da morte o principio vital
ou a respiração da vida denominada de "emi" despreende-se do corpo e volta ao "Orum" (o
plano espiritual) fazendo necessário cortar o vínculo do corpo, que deverá se decompor e
retornar as energias à terra via a decomposição do cadáver. Tal corte se dá pela retirada, então,
deste "oxu" - o assentamento do orixá do indivíduo realizado em sua cabeça no momento de
sua feitura.
O ritual consiste na raspagem da cabeça no local onde houve a sua "feitura". Após esta
raspagem, que abre espaço para as atividades rituais, por conectar o "ori" ao mundo físico, são
sacrificados pombos e galinhas e o sangue é colocado sobre tal local. Com a utilização de um
chumaço de algodão o sangue e este "oxu" são retirados e devem ser despachado em um local
em que Exu possa apanhá-lo e levá-lo para o "Orum".
Após este ato, conforme o candomblé, a alma da pessoa falecida está livre para seguir
seu rumo. Para Santos (1984), o "emi", enquanto princípio vital, é imortal, e aloca-se no
"Orum" por um tempo até retornar à Terra em novos indivíduos. Para os membros do Ilê Omô
Oyá até a realização do axexê, mesmo com a retirada do "oxu" e do "emi", o espírito da
dirigente estaria vagando pelo plano material, fazendo-se necessário os ritos para desprendê-la
totalmente desta realidade. Conforme a crença do "povo de santo", a pessoa não sabe que
morreu, ficando vagando por dias como se ainda estivesse viva, fazendo-se necessário o rito
para avisar sobre a morte e "dar um rumo para sua alma".
Para Santos (1984) e Rocha (2000) o "axexê" é o rito que desliga o membro do
candomblé de sua vida material ligando-o ao mundo espiritual. Configura-se como um rito no
qual a alma deve desligar-se de sua materialidade na terra (o "aiyé"), como o gosto por
comidas, roupas e objetos, e ligar-se ao "Orum", o plano espiritual, e ali começar a sua
evolução como espírito (égun).
Assim, o axexê pode ser entendido como a ida para o mundo espiritual da ialorixá que
faleceu onde se decide, via consulta à própria pessoa pelos búzios, se os seus assentamentos
de orixás, roupas e objetos serão descartados, guardados ou distribuídos. Conforme Rocha
(2000, p. 103):
Os ritos do axexê indicam a necessidade de cortar os vínculos do morto com este
mundo, por isso seus pertences são destruídos e levados para um local designado
pelo jogo. Os assentamentos de orixás que o morto possuía em vida podem ir com
ele ou ficar de herança para alguém, ou para a casa. Ao fazer a ‘entrega do carrego’,
fica consumada a separação entre o morto (e seus pertences) e este mundo. No caso
de um axexê de sete dias, a ‘entrega do carrego’ é feita no sexto dia. No último dia
canta-se o padê com o dia claro e, em seguida, procede-se à limpeza da casa para
afastar qualquer possibilidade de permanência da morte no seu interior.

A dirigente do Ilê Omô Oyá tinha direito a três axexês, sendo um de um mês após seu
falecimento, um de seis meses e um de um ano devido a seu tempo de feitura no santo, cerca
de cinquenta anos. Todos eles com sete dias de duração, o que, conforme Rocha (2000) é uma
cerimônia feita apenas para as pessoas com mais destaque na casa – cargo ou tempo de santo.
Assim, o "axexê" deveria começar numa segunda-feira a noite e ir até o domingo pela
manhã, sendo facultativa a presença dos membros em todos os dias. Contudo, caso alguém
fosse ao primeiro dia, a segunda-feira, era obrigado a ficar dentro do barracão até o domingo.
Mas, se a pessoa fosse a partir da terça-feira, poderia vir em dias alternados, mas estar
obrigatoriamente presente no sábado e domingo para presenciar o descarte ritual e sacrificial
dos objetos da ialorixá falecida e a limpeza da casa e das pessoas contra alguma energia de
morte. A obrigatoriedade do fim de semana era extensiva para os que participassem também
desde a segunda-feira e a todos os membros da casa, não importando cargo ou tempo de
santo, pois nesse período poderia-se retirar a "mão de vúmbi" - a energia que a dirigente da
casa colocou em seu iniciado no momento de sua raspagem. Caso essa energia não seja
retirada, a morte pode agir sobre a pessoa e levá-la ao falecimento.
Turner (2008) se propõe a analisar o rito e a sua liminaridade, período em que não há
um status e leis prévias e nem vindouras, onde “ [...] o que ontem era liminaridade hoje está
estabelecido, o que hoje é periférico torna-se o central de amanhã” (TURNER, 2008, p. 14),
em contextos simbólicos e trazendo a passagem da natureza humana para a cultura e suas
representações sociais como fundantes da percepção social, da ação dos sujeitos e da estrutura
social.
Assim, as ações humanas são ações geridas por símbolos e percebidas pelo recorte da
ação de ritos de vida ou ritos de passagem (TURNER, 2005). Esses ritos são fundamentais
para a sociedade, pois preparam os indivíduos para ocuparem lugares ou “estados sociais”
(TURNER, 1974 e 2005) dentro da sociedade.

O rito e as pessoas: trajetos e circulações durante o axexê


Ocorreram três ciclos de ritos do axexê da falecida dirigente: um após o primeiro mês
de seu falecimento, um após seis meses e o último após um anos de sua morte. A estrutura dos
três é idêntica, o que nos permite relatá-lo apenas uma vez, dando maior ênfase a sua ultima
ocorrência. Neste um ano de rito o terreiro encontrava-se de luto e fechado para as atividades
rituais, de jogo de búzios e de consultas, pois centravam-se na passagem da "Senhora da
Casa" para a condição de égun.
As atividades rituais do axexê se iniciaram na manhã do primeiro dia do rito com a
preparação do "banho de folha", banho este que teve de se preparado em grande quantidade,
pois caso alguém saísse do terreiro teria de tomá-lo para estar limpo para os ritos do axexê. A
tarde foi dedicada para a busca por moedas, pois estas seriam utilizadas no ritual durante toda
a semana.
Durante a tarde uma das filhas de santo da casa dedicava-se à preparação da
alimentação ritual da noite. Para o candomblé a comida também contém axé, portanto serve
como oferta sacrifício para a restituição do axé ao orixá e, no caso do axexê, ao ente morto e
aos éguns da casa.
A primeira noite do axexê é composta por uma série de rituais que vão além dos
relacionados à morte. Inicia-se a noite com o barracão todo apagado e iluminado apenas com
duas velas, dando um bori à cabeças de todos, com o intuito de fortificar o axé pessoal de
cada um. Nesta bori é dado um pedaço de "obi" (Cola acuminata, (P. Beauv.) Schott & Endl.)
à cada pessoa, devendo todos comerem ele durante a distribuição. Além de fortalecer o ori da
pessoa (sua cabeça física e espiritual), o obi é partido em quatro partes, antes da distribuição,
e consultado (como num ifá) o orixá da casa para se saber a aceitação deste quanto ao ritual e
ofertas a serem feitas. Para tanto, quando jogado, como nos búzios, o obí deve "alafiar", ou
seja, confirmar a pergunta feita caindo em posição embocada para baixo como forma de
afirmativa às perguntas. O ritual só pode ter continuidade se o orixá, no caso Oyá, aceitar a
oferta do obí e mandá-lo ser distribuído a todos. Sendo dado a aceitação de Oyá, Pai Jorah e
Mãe Dayenerys iniciaram a distribuição dos pequenos pedaços da noz e puderam dar
continuidade ao ritual.
Todos, sem exceção estavam vestidos de branco com um ojá sobre as costas e um filá,
(para os homens) ou lenço (para as mulheres) na cabeça. A proteção a esta se faz necessário
para que o ori não seja "atacado" ou fique "a mercê" do espírito da morte que ronda o terreiro,
o que poderia levar inclusive à morte alguém que não esteja com essa proteção. Ainda são
colocados fios de conta de Oyá no pescoço, no intuito de "fechar o corpo" ou "protegê-lo"
também desses espíritos.
Para o candomblé, durante o rito do axexê não apenas o espírito do ente morto está
rondando a casa, mas muitos outros espíritos que também morreram e "perambulam" sobre o
mundo e que, percebendo o ritual e a possibilidade de deixarem a Terra, vem para o terreiro
para lá em busca de luz. Tais espíritos podem causar, além da morte, malefícios às pessoas,
como doenças, febres e mal estares. Todo o aparato de roupas, fios de contas, ojás, filás e
lenços tem por função essa proteção.
Também o terreiro deve se preparar para tal situação, seja da presença de outros
espíritos, mas também para o axexê. Assim, os atabaques são cobertos com panos brancos, em
sinal de luto e que não tocarão naquele rito, os assentamentos da casa são também cobertos
com panos brancos para que tais espíritos não lhes influencie ou "roubem seus axés" e, por
fim, a cadeira onde a pessoa falecida sentava durante a vida no barracão deve estar vazia e
coberta com um pano branco, sinal de respeito, luto e de que sua presença é lembrada.
O axexê tem início com um padê, rito onde o espírito do falecido é invocado junto
com Exu e com todos os orixás. Este padê não se diferencia do feito nas demais festas do
candomblé, mas tem o intuito de invocar o morto para dentro do terreiro ou chamar-lhe a
atenção para que venha. O rito consiste em um conjunto de ofertas de comida e bebida a Exu
e aos espíritos ancestrais ligados à gênese do mundo em especial as "Iyá-mi-agba", os
espíritos femininos ancestrais. Durante o ritual todos devem estar deitados no chão em
reverencia a este, pois é sagrado, tendo apenas os ogãs de pé puxando os cânticos e duas filhas
de santo da casa, com suas obrigações concluídas, que se encarregarão de levar as ofertas até
Exu e a estes espíritos ancestrais.
Conforme Santos (1984) estas filhas de santo se chamam Iyamoro e Iyádagan e se
colocam no centro do barracão, sendo uma em pé e outra ajoelhada junto a todos os materiais
do padê, além de uma cabaça em que os materiais serão misturados e levados para fora do
barracão.
Não é permitido que ninguém saia do barracão enquanto é cantado o padê, pois lá fora
encontram-se todos os espíritos ligados à fundação da Terra e o contato com eles pode ser
perigoso, pois sendo possuidores de grande quantidade de energia nenhum ser humano seria
capaz de suportá-las ou lidar com ela. Assim, somente a Iyamoro pode sair do barracão, pois a
cabaça que leva, junto aos alimentos, tem o poder de agradar e aplacar a energia destes seres.
No início do padê, o ogã mais velho da casa vai até o centro do terreiro e
[...] derrama um pouco de água [contido numa quartinha] na terra três vezes, no
centro, à esquerda e à direita, imediatamente bate três vezes a palma da mão direita
sobre seu punho fechado esquerdo, molhando cada vez os dedos dessa mão com a
água derramada em cada um dos três lugares. O som particular provocado,
acompanhado de fórmulas apropriadas pronunciadas simultaneamente, invoca a
presença de Exu e a todos os seres que emergirão da terra [...] (SANTOS, 1984, p.
189).

Após a invocação de Exu o padê pode ser dividido em quatro partes e sob o uso de
quatro tipos de alimentos e/ou materiais que são ofertados. Cada parte tem uma ordem
específica e uma ou mais entidades a quem são ofertadas. O primeiro a ser invocado e
ofertado com alimentos é Exu Iná, recebendo por três vezes a mistura de água, farinha e azeite
de dendê. Em cada vez que é misturado esses alimentos pela Iyádagan, que o passa para a
Iyamoro, a cuia que os recebe circula por todo barracão e é levada até uma árvore sagrada
onde Exu deverá aceitá-los. Em seguida invoca-se Exu Odara, convocado para levar para
Oxalá, símbolo de todos os ancestrais masculinos, a mistura de água e cachaça.
Semelhantemente, isso ocorre também por três vezes.
Nesta mesma oferenda são lembrados todos os "Babas Éguns" da casa, bem como
todos os ancestrais que fundaram o terreiro, convidando os com as ofertas para participarem
da cerimônia. As cantigas que seguem auxiliam na saudação a estas entidades, bem como a
ação de tocar o solo, tracejá-lo com um "x" e levá-lo à testa (símbolo ou ação simbólica que
saúda o ancestral lembrando o ori com o toque na testa da existência deste espírito ancestre).
Durante essa música, a Iyádagan levará para fora uma oferta de cachaça, sendo essa última
um momento de divisão dentro do padê.
Após o retorno da Iyádagan inicia-se uma cantiga para os cinco principais orixás do
terreiro (Ogum, Odé, Iemanjá, Oxum e o orixá guia da casa) no intuito que eles fortaleçam e
ajudem a celebrar o rito. Junto a estes são agradadas ainda as Iyá-mi-agba via Exu. Por fim,
um membro do terreiro, enquanto a música segue, irá até a porta do barracão e pegará um
pequeno pote com água e "despachará a porta" jogando água no sentido central desta, à
esquerda e à direita, pedindo as Iyá-mi-agba que preparem a última passagem da Iyamoro,
que levará o acaçá representando um corpo em sacrifício.
Com seu retorno inicia-se uma última música que saúda a todos os orixás, esperando
que, como Exu deixou o caminho entre os planos aberto e agraciado a todas as entidades,
desde os Babás éguns da casa às Iyá-mi-agba, os orixás venham confirmar o recebimento das
ofertas via incorporação em seus filhos. Normalmente no padê utilizam-se os atabaques.
Contudo, sendo o axexê um ritual funerário em respeito ao ente falecido não são usados os
atabaques, que estão protegidos com os panos brancos, mas sim grandes cabaças que são
tocadas com as mãos ou com pequenas varetas.
Dando prosseguimento ao axexê Pai Jorah foi até os assentamentos de Mãe Amelie e
os destapou do pano branco que estava desde seu falecimento anunciado ao espírito que o
ritual irá começar. Ele volta dos assentamento com uma vela e uma cuia feita de uma cabaça,
sendo esta vela acesa e a cuia colocada no centro do barracão. A vela, ao ser acesa, representa
e indica a todos que o espírito de Mãe Amelie esta presente dentro do barracão, sendo ele
representado fisicamente pela cuia.
O rito tem continuidade quando do filho de santo mais velho quanto a feitura ate
duplas de dois abiãs vão até a porta do barracão saúdam a ancestralidade da casa, retornam,
pedem a benção a todos e começam a dançar em torno da cuia. A dança tem seu auge quando
moedas são passadas no entorno da cabeça da pessoa e depositadas na cuia. Essa passagem da
moeda na cabeça significa uma delegação da vida da pessoa ao morto, ao mesmo tempo
também são consideradas como uma despedida do morto, como numa forma de pagamento
por não levar sua vida e, feitos e aceitos todos os sacrifícios de restituição de axé, o morto vá
para o plano espiritual.
Nesse momento espera-se que algum orixá venha para auxiliar na entrega das moedas
e das cabeças. Em especial espera-se que Oyá, a mãe mítica dos éguns, venha pois apenas ela
consegue lidar com tais entidades. O Ilê Omô Oyá é um terreiro que pode ser considerado,
como os próprios membros destacaram, "muito bem servido de Oyás", pois além da falecida
Mãe Amelie, Mãe Myrcela e a iaô Lisa tem essa orixá como guia. Assim, era esperado que
elas sempre estivessem presentes no axexê para receberem suas Oyás e auxiliarem no ritual.
De fato, naquela noite Mãe Myrcela e Lisa receberam suas Oyás, Mãe Elia recebeu
sua Iemanjá, ou como muitos afirmaram, o próprio espírito de Mãe Amelie e Mãe Rhaella
recebeu sua Oxum. Tendo os orixás presentes acredita-se que nenhum égun poderá fazer
qualquer mal à alguém. Para tanto, os orixás incorporados tendem a se colocarem nas portas
do barracão "de guarda" protegendo os membros do terreiro dos malefícios de tais espíritos.
Quando algum outro orixá vem, acredita-se que ele pode proteger o barracão da mesma
forma, só não poderá sair dele, pois os éguns não o respeitarão do lado de fora. Assim, na
maioria das noites, quando algum outro orixá veio neste momento, ele ficou rodando entre os
filhos da casa, consolando alguns, dando pequenos conselhos e ainda realizando passes de
energia ou axé nas pessoas.
Após o fim da oferta de moedas todos devem dançar em volta da cuia, como forma de
homenagem e despedida para com a ialorixá. Após essa dança, as comidas que foram
preparadas durante a tarde são colocadas junto à cabaça e o resto do obí utilizado no início do
ritual. Cabe apenas às mulheres da casa, independente do cumprimento das obrigações de
santo já realizadas, buscarem essas comidas já previamente acondicionadas em vasilhas na
Cozinha de Santo e que são trazidas e colocadas sobre uma mesa fixada no canto direto do
barracão, ao lado dos ogãs.
Quando as comidas, a cabaça com as moedas e a vela estão juntas dança-se uma
última música antes de ofertá-las ao espírito que se cultua no axexê. Essa dança ocorre com a
presença das Oyás incorporadas ou dos orixás presentes. Dançam apenas quem não tem um
dos genitores vivos ou quem tenham os dois mortos. A dança saúda os ancestrais falecidos,
sendo pais e mãe carnais considerados também ancestrais, por isso são saudados com essa
danças. Aqueles que tem os progenitores ainda vivos permanecem sentados. Os ogãs da casa,
e apenas eles, devem levar estes alimentos para dentro do Quarto dos Éguns.
Ao levantar as comidas (que foram acondicionadas em um tabuleiro com alças para
facilitar o manuseio) os ogãs fazem um movimento triplo de levantar e abaixá-las três vezes,
indicando ao espírito da falecida Mãe Amelie que irão levar suas comidas e o dinheiro
ofertados, ou nos termos da casa, "ocorre a abertura do carrego". É nesse instante que se pede
às Oyás ajuda na lida com os éguns, indo a Oyá de Lisa junto aos ogãs e ficando a Oyá de
Mãe Myrcela junto à porta do barracão, que ficou fechada e mantida assim por ela.
Quando os ogãs chegam fora do barracão a comida é coloca dentro do Ibó e avisa-se à
Mãe Amelie sobre a comida utilizando-se de orações que pedem que a oferta seja recebida e
que ela vá para o Orum tendo a certeza que, na condição de égun, sempre poderá "comer"
aqueles alimentos. Após essas orações os ogãs retornam para dentro do barracão e iniciam a
última parte do axexê. Esta parte final consiste em uma série de danças dedicadas, cada uma
delas, aos dezesseis orixás e que tem por finalidade saudá-los ou adorá-los. Por fim, canta-se
uma ultima música para Mãe Amelie que tem um valor de adeus ou de despedida fechando o
conjunto de oferendas e pedidos para que ela se torne um espírito ancestral da casa.
Após todo o ritual sempre é servido um farto jantar seguido de uma série de
sobremesas. Conforme Mãe Elia, devia-se comer muitos doces, não apenas porque a falecida
Mãe Amelie gostava, como forma de memória, mas porque todos os éguns, quando
"alimentados", tem predileção por doces, como reminiscência do período em que foram vivos.
Cabem ainda serem citados alguns outros detalhes variantes durante o axexê.
Primeiramente, a ordem das pessoas que dançam e que, consequentemente, é a ordem dos
membros sentados. Esta se organiza por hierarquia e cargo exercido - mãe ou pai de santo
com obrigações cumpridas, iaôs, ekedis, ogãs e abiãs -, sendo o tempo de feitura considerado
como classificação específica. A ordem da dança entre os presentes durante as noites de axexê
também foi variável devido a presença inconstante de membros. Independente do número de
pessoa, deve-se seguir a hierarquia de feituras (ver quadro 1 onde ilustramos tal
movimentação).
A partir da posição da pessoa e de seus movimentos pode-se traçar uma "rota" das
ações de cada pessoa: inicialmente vai-se à porta do barracão e saúda-se à sua ancestralidade,
no retorno pede-se a benção a todos da casa para a dança, durante ela o ritmo vai aumentando
gradativamente e a pessoa, ou conjunto de dois abiãs, deve passar a moeda sobre sua cabeça e
corpo e depositá-las na cabaça. Após a realização desta deposição, que equivale a duas ou três
voltas pela cabaça, a pessoa retorna à seu lugar de origem e é seguida por outro membro que
fará a mesma rota.
Como já colocado anteriormente, inicia-se a dança pela mãe de santo mais velha da
casa, no quesito tempo de feitura, indo descendo, conforme o tempo de feitura até os abiãs e
após eles, os ogãs. A posição última de dança dos ogãs dá-se pelo motivo de que são estes que
tocam as cabaças e "puxam" os cânticos. Apenas por esse motivo eles irão por último, mas
seguindo a classificação de tempo de confirmação, realizar a dança e oferta de moedas.
Também entre eles, até para dar maior dinamismo e poupar tempo, podem-se ir de dois em
dois.
Chegado o sábado um novo conjunto de rituais se iniciavam para a parte final do
axexê. Nessa manhã Mãe Amelie escolheria quais os assentamentos de orixá dela que seriam
descartados no ritual da noite e quais ficariam para a casa. Havia um temor dos membros
sobre essa escolha: caso todos os assentamentos fossem ordenados para o sacrifícios ritual da
noite e, consequentemente, retirados da casa, esta poderia fechar, pois não poderia manter-se
aberta sem algum axé de sua fundadora.
Naquela manhã fria de julho caia uma pequena chuva. Para o candomblé, o
tempo/clima reflete os "humores" dos orixás, mas também indicam o que pode acontecer.
Assim, sendo Oyá a dona dos ventos e das tempestades, aquela chuva seria considerada pelos
membros do terreiro como um prenuncio que Oyá não deixaria a casa e esta manteria-se
aberta. O ritual da manhã consistia na retirada temporária do pano branco que cobria os
objetos pessoais, assentamentos, quartinhas e fios de conta pertencentes à Dona Amelie,
seguido de uma consulta a ela, ocorrida no Ibó, para ser perguntado sobre cada um dos
objetos o seu destino (destruição ou manutenção deste na casa). Assim, um a um estes era
retirados do chão e levados para dentro do quarto e lá, utilizando-se do ifá da falecida ialorixá,
esta era consultada sobre o destino de cada pertence. O rito foi realizado por Pai Jorah e Pai
Robert, como ogãs da casa e por Pai Renly como pai de santo de casa. Mesmo neste rito,
como nos demais dentro do Ibó, somente homens são permitidos.
Após a consulta, que durou mais de uma hora, a casa "respirava aliviada", conforme
relatou a iaô Lisa, pois Mãe Amelie havia deixado a maioria de seus assentamentos para o
terreiro como forma de perpetuação do seu axé. Muitos deles eram duplicados, um
pertencente à casa e outro da própria ialorixá, sendo deixado então um dos dois para o
terreiro.
A noite do axexê de sábado pode ser considerada como bem movimentada, dado o
número de participantes e, consequentemente, o alargamento do tempo do rito de dança
envolta da cabaça naquela noite. Contudo, haveria a introdução de mais ritos e de mais ofertas
de sacrifício naquela noite. Para o candomblé, após o fim desta noite a alma da falecida
Senhora estaria pronta para deixar o plano material e assumir sua função como égun no
terreiro, mas tudo dependeria de sua própria escolha no fim da noite e dos rituais.
Antes de começar o ritual Pai Jorah recolheu todos os mariôs que estavam nas portas
dos quartos de santo, do barracão e da residência da ialorixá. Tal ação se fazia necessária para
ajuntar tudo que seria descartado naquela noite, e isso incluía não apenas os objetos que
tiveram a permissão de serem destruídos, fato que será explanado a seguir, mas também o
pano que cobria tai objetos, os mariôs e toda a comida que era depositada no Ibó durante a
semana.
Quanto as comidas produzidas para aquela noite, a serem ofertada para Mãe Amelie as
mesmas produzidas de segunda-feira até a quinta feira se repetiram: ebô (canjica de milho
branco cozido), canjica de milho branca cozida e passada no dendê, milho vermelho cozido,
omolocum (feijão fradinho cozido e temperado com dendê e camarão seco), biscoitinho de
Oxossi (feijão fradinho torrado numa panela sem óleo), acarajé, acaçá cortado em pedaços,
obí, Osè (acaçá diluído em água), buburu (pipoca branca estourada sem o uso de óleo algum)
e pipoca estourada no dendê. Além destas, uma cabra, uma galinha branca e dois pombos
também seriam sacrificados para a ialorixá.
A última noite de axexê se iniciava com o padê, tendo as Oyás de Mãe Myrcela e Lisa
presentes. A dança em torno das cabaças duraria mais tempo que o de costume, pois hoje
todos os membros da casa participavam do rito. Para agilizar o ritual, que precisaria de mais
tempo, Pai Jorah indicou que os abiãs e os ogãs fossem em duplas durante a realização da
oferta de moedas de forma que esse ponto não tomasse muito tempo.
Após a dança, as comidas preparadas foram trazidas para dentro do barracão, tendo
Mãe Rhaella encabeçado a fila das mulheres que as buscaram e colocaram na mesa dentro do
terreiro. Como regente temporária da casa, cabia a ela a função de, naquele momento,
encabeçar a fila e trazer as comidas para o rito. Em seguida Pai Jorah Junior, seguido dos ogãs
Robert e Rodrik, trouxeram os animais para o centro do barracão sendo eles colocados ao lado
da cabaça com as moedas e a vela. Pai Jorah saí em seguida, indo até o local onde estão os
assentamento e objetos da falecida ialorixá e retirava o pano branco colocado desde a
deposição de tais materiais ali na ocasião da morte da Senhora da Casa.
Em seguida Mãe Dayenerys inicia mais um rito com a finalidade de proteção: amarar
tiras de mariô nos pulsos esquerdos de cada um presente no ritual. As tiras identificam e
protegem as pessoas pertencentes ao terreiro no momento em que o Ibó estiver aberto e uma
quantidade enorme de éguns passar a transitar no entorno do barracão. Somente após tal
identificação é que o rito pode ser continuado.
Pai Jorah pediu a todo que se virem para a parede, pois não é permitido, nessa noite,
ver as oferendas saírem e nem coisa alguma que ocorra do lado de fora do barracão e na frente
do Ibó. Esse foi um momento de grande comoçam no terreiro, pois todos sabiam que agora se
daria a quebra dos objetos e assentamento de Mãe Amelie, fato que a libertaria da existência
como pessoa e indivíduo sendo transformada em coletivo não individualizado como égun, ou
seja, passando a fazer parte do todo coletivizado denominado de ancestralidade. Era um
momento muito esperado e deveria ser visto e compreendido com alegria, pois o ciclo de
existência de Mãe Amelie chegava a um ponto máximo: a transformação em ancestral da casa.
Para o candomblé este deve ser um momento de alegria e de comemoração no terreiro,
pois a continuidade dele é dada não apenas na medida em que novos abiãs entram e iniciam
suas trajetórias, mas também no momento em que seus membros mais ilustres falecem e,
passando pelo axexê, se tornam ancestrais da casa, espíritos zeladores desta e que também
auxiliaram no fluxo de axé entre o Orum e o Ayiè e entre os membros da casa.
Contudo, mal as pessoas tinham se virado para a parede já se ouviam soluços de choro
havendo assim uma clara separação entre o sentimento socialmente esperado, o de alegria, e o
subjetivamente expresso, a perda total e definitiva da figura da "mãe" que seria extinta, como
pessoa ou indivíduo com a quebra de seus objeto. Mauss (2009) já observou situação
semelhante ao correlacionar a expressão dos sentimentos a uma obrigatoriedade social de
formas coletivas de expressão e relacionadas a determinadas situações como os ritos
funerários. Mauss (2009) utiliza o conceito de "signo da não-espontaniedade" para indicar
situações em que o social se sobrepõem ao individual e os conteúdos e a natureza do
sentimento denotam sua origem no social, como ser supra orgânico aos indivíduos, o que está
intimamente relacionado ao conceito de efervescência defendido por Durkheim (1996) para
descrever as religiões e seu caráter coletivo.
Nesse sentido, os sentimento são formas de linguagem expressas em códigos sociais
direcionados a outras pessoas e que, portanto, seriam expressões do coletivo ou do social. Se
pensarmos no caso dos membros do terreiro analisado veremos que, ao contrário, os
sentimentos individuais se sobrepunham aos coletivos. Era esperado alegria com os sacrifícios
de restituição e de transformação final da ialorixá em égun. Porém, o que foi expresso era o
sentimento pessoal, que poderia até ser pensado como coletivo, e representava para o grupo a
perda ou da aniquilação da figura da mãe carnal e da mãe de santo para um estado de ancestre
da casa. Os sentimentos pessoas de perda e de término ou fim se sobrepunham ao esperado
coletivamente que seria a alegria com o fim de um ciclo. Assim, longe deste momento de
choro ser expressão do coletivo e do social, ele tendeu a ser dominado por sentimentos e
representações pessoais e/ou subjetivas de perda e de aniquilamento da presença da ialorixá
na situação de pessoa morta para espírito ancestral divinizado.
Para Turner (2008) torna-se necessário durante um rito de passagem observar as
emoções socialmente esperadas e relacionadas com o rito. Apesar de não oficiais elas tendem
a ser socialmente observadas, esperadas e trabalhadas pelo rito. Assim, apesar da
autenticidade do sentimento evocado, ele é socialmente esperado e instrumentalizado. Nesse
contexto, apesar de se esperar a expressão de uma alegria com a transformação da falecida
ialorixá em égun, os membros do terreiro expressavam a tristeza com o desligamento total da
sua Senhora do plano material e, consequentemente, de seu contato.
De frente ao Ibó iniciava-se a entrega dos alimentos e a realização dos sacrifícios.
Como os objetos já não estavam mais tapados com os panos brancos eles foram trazidos para
dentro do quarto juntamente com os animais e as comidas ofertadas. O assentamento que
receberá o égun é posto no centro do quarto e com o auxílio de uma ìsan (vara da árvore
"àtórí" (Glyphaca lateriflora abraham) ou das nervuras do dendezeiro (Elaeis guineensis),
usado para "lidar com os éguns": bate-se três vezes no chão chamando o morto para que
venha receber os sacrifícios e, ao mesmo tempo, apanhar o carregos e se separar em definitivo
do terreiro e do plano material.
Quando o morto responde e se torna presente ocorre então os sacrifícios dos animais
no intuito de restituir a energia gasta pelo espírito para se manter até ali e para, em seguida,
migrar para o Orum. Após os sacrifícios o ogã da casa pegou um martelo e começou a quebrar
os objetos pessoais da falecida. Tal ação também é vista como um sacrifício, pois libera, a
partir da quebra, mais um quantidade de energia que será restituída ao falecido e mesmo ao
Orum, como forma de restituição pela morte e como compensação pela perca definitiva o emi
e oxu da pessoa.
Realizada a quebra soma-se a ela as moedas e os animais mortos, o que produz o erù,
um tipo específico de carrego. Pai Jorah entrou no barracão e recolheu todas as fitas de mariô,
pois elas levarão junto com o carregos as energias de morte que possam ainda estar pela casa,
afastando das pessoas tal malefício.
Recolhidas as fitas Pai Jorah pediu que todos continuem de costas, pois o carrego sairá
da casa, o que significa que, tanto os animais, as moedas, os alimentos, a cabaça e os objetos
quebrados, serão colocados dentro de um saco branco e depositados em algum lugar indicado
pela pessoa falecida. Após todos estarem novamente virados para a parede é que o carrego
sai do terreiro, dando a volta pelo lado de fora do barracão e sendo acompanhado pelo Oyá de
Mãe Myrcela, presente desde o começo do ritual naquela noite. Enquanto o carrego saia a Oyá
de Lisa se colocava na porta no barracão e emite seu illá, o "grito ou 'brado de presença que
identifica a personalidade do orixá [...]" (CACCIATORE, 1988, p. 143), como forma de
despedida à falecida que agora não habitará mais esse plano e como forma de saudar sua nova
forma de existência no plano espiritual.
Este conjunto de sacrifícios e de conceito de liberdade aproxima-se muito da definição
de sistema sacrifical de Mauss (2009), onde
[...] O sacrifício implica sempre uma consagração; em todo sacrifício, um objeto
passa do domínio comum ao domínio religioso; é consagrado. [...] No sacrifício [...]
a consagração irradia-se para além da coisa consagrada; alcança entre outras a
pessoa moral que faz os gastos da cerimônia. O fiel que forneceu a vítima, objeto da
consagração, não é, no fim da operação, aquilo que era no começo. Adquiriu um
caráter religioso que não tinha, ou desembaraçou-se de um caráter desfavorável que
o angustiava; elevou-se a um estado de graça ou saiu de um estado de pecado. Num
caso como no outro, está religiosamente transformado. (MAUSS, 2009, p. 147)
[grifos nossos].

Assim, é a partir da quebra ritual de seus objetos, que pode ser entendido como um
sacrifício final no intuito de liberar suas energias contidas nos assentamentos e objetos, que a
ialorixá tem sua situação transformada para égun. De forma similar, se observarmos que
Turner (1974 e 2008) afirma ser o fim do período de liminaridade, o qual insere o sujeito
ritual novamente no grupo, mas em um estado diferenciado, percebe-se que Mãe Amelie saía
de seu estado de separação ou ruptura (TURNER, 1974 e 2008), no qual teve seus objetos e a
si mesma separada do conjunto material, ritual e energético da casa, passando então por esse
límen (TURNER, 1974 e 2008) e sendo compreendida agora como tendo um novo papel
social: integrada ao culto como égun em sua fase final de reintegração (TURRNER, 1974 e
2008).
Somente após a saída do carrego é que os membros do terreiro podem virar-se e
sentar-se no intuito de esperar a volta dos ogãs que foram levar o carrego, mas também
esperando a confirmação de que o ritual conseguiu seu efeito, transformar a ialorixá em
ancestral. Cerca de meia hora depois Pai Jorah, Pai Robert e o ogã Rodrik retornam ao terreiro
indo direto ao Ibó na finalidade de consultar os éguns quanto à realização de todo o ritual.
Após alguns minutos o ogã retorna ao barracão e, com grande satisfação, falam:
"podem comemorar, porque a mãe de vocês está feliz agora". A partir destas palavras, que
denotam que o ritual foi aceito e conseguiu êxito, iniciam-se uma série de danças que saúdam
tantos os orixás como o novo ancestral da casa. Mãe Amelie deixava de ser a ialorixá e a
Senhora da casa e se tornava "Iyá Modé Lòfunda", título recebido dos próprios éguns e que a
designa a partir daquele momento. De modo que, não deveria-se mais usar o nome Amelie,
mas sim "Iyá Modé Lòfunda" para se referir a ela.
Contudo, o novo égun ainda não está totalmente pronto e são necessários anos para
que ele possa, por exemplo, vestir uma roupa, evento no qual o culto Lésse Égun produz
vestimentas que são preenchidas pelo espírito e este interage com os membros da casa que o
cultuam. Nesse período, que não possuí um tempo determinado, o espírito ainda apresenta
uma ligeira ligação com o plano material, podendo receber sacrifícios, dinheiro e bebida em
troca de ajuda e também não é considerado um "espírito de luz" ou "espírito guia".
Terminado o axexê a casa ainda ficaria mais doze meses fechada a espera dos outros
dois ciclos de axexê (em dezembro de 2010 e em julho de 2011) para poder reiniciar suas
atividades. Até lá os postos e a hierarquia da casa ainda continuariam suspenso e a casa ainda
será regida por Mãe Rhaella, a filha de santo mais antiga do terreiro. A partir do fim deste
ritual abria-se a possibilidade de que os membros que não desejarem manter-se na casa saiam
e se liguem a outros terreiros ou mesmo deem continuidades às suas casas já em
funcionamento.
No domingo pela manhã o terreiro deveria passar por uma limpeza. Como muita
energia de morte o permeou durante toda a semana fazia-se necessário limpar a casa, seus
quartos de santo e as pessoas. Para tanto, iniciavam-se uma série de cantos para que os
membros rodantes da casa incorporassem seus orixás e estes realizassem um sacudimento em
todo o terreiro. Este sacudimento consistia na utilização de uma planta, a açoita-cavalo
(Luehea divaricata), que era passada pelo orixá no corpo da pessoa e dentro dos quartos de
santo. O sacudimento era seguido pela defumação da casa com carvão e efun, um composto
de vários pós de plantas da casa e ossos retirados dos sacrifícios e que, por ter o axé da casa, é
capaz de anular as energias da morte, dentre outras utilizações. Passado o defumador na casa e
nos seus espaços e cômodos, precedido pela sacudida realizada pelos orixás, o terreiro
encontrava-se livre de qualquer energia ligada a morte podendo seus membros irem embora
sem a preocupação de que algum mal os ocorresse.
O último axexê de Iyá Modé Lòfunda ocorreria um ano após o seu falecimento
congregando os membros do terreiro por uma última vez para a ratificação do estado de égun
da falecida ialorixá. Após a realização do primeiro axexê, momento em que ritualmente o
indivíduo morto trona-se um ancestre, e a partir de sacrifícios e da restituição de certa
quantidade de axé ao sistema de energia da casa, os outros axexês tem a função de apenas
confirmar tal estado e, sobretudo, realizar o descarte sacrificial dos últimos objetos da ialorixá
falecida.

O fim do luto: a casa retoma suas atividades


Dois meses após o fim do axexê a casa retomava as suas atividades especialmente
marcadas para mês de agosto com a festa dedicada para Odé, o novo orixá protetor da casa.
Esta festa foi precedida por dois outros rituais que se faziam necessários para a reabertura da
casa: O òsé e o bori para a cabeça da nova dirigente.
O "òsé" é uma limpeza em todos os quartos de santo e assentamentos da casa,
utilizando-se neste dia um banho de folhas ou sangue verde (folhas rituais maceradas) como
meio ritual de limpezas destes locais e objetos. O rito inicia-se com a retirada dos
assentamentos dos quartos, feita exclusivamente pelos ogãs da casa, sendo a limpeza/lavagem
realizadas pelas mulheres, mães de santo e iaôs do terreiro. Tal rito indicava aos orixás que a
casa retomava suas atividades e preparava-os para as comemorações. Após a lavagem os
assentamentos são secos e recolocados dentro dos quartos. Tal ação deve ser feita em silêncio,
pois se está na frente dos orixás, em jejum, para comungar da energia que o orixá recebe e
observado algumas proibições, como não fumar naquele momento e não ter ingerido bebida
alcoólica no dia anterior
Dentro de um terreiro de candomblé também são usados valores dicotômicos de
sujeira e limpeza, ou de pureza e perigo, para utilizarmos a terminologia de Douglas (1966),
onde um grande período onde houve a interrupção das festas e do ciclo do axé tendem a
deixar a casa "suja" ou ainda "fraca", necessitando que os assentamentos e a casa sejam
limpos com algum tipo de sangue, normalmente o de folhas ou a água do poço de Oxumarê.
Tem-se o intuito de restituir a "limpeza" ou a "pureza" aos locais, bem como aumentar o axé
ou a energia da casa. Assim, devido ao ano de luto da casa fazia-se necessário tal limpeza do
terreiro.
O outro ritual ocorreu naquele mesmo mês e uma semana depois do òsé. Realizava-se
um bori dado à casa e à cabeça de Mãe Dayenerys (a nova dirigente), com a função fornecer
axé para a cabeça da nova dirigente e também para a casa e seus assentamentos. Neste evento
de "satisfação à cabeça" uma série de alimentos que a pessoa tem predileção por comer,
bebidas e animais para sacrifício são utilizados. O rito consiste em colocar o indivíduo
sentado em uma esteira dentro do roncó da casa e sobre ele um pano da costa branco. Junto a
ele estarão a sua quartinha de feitura da cabeça (que representa esta parte do corpo), uma vela
para "iluminar a cabeça da pessoa" e um prato branco com um obí dentro, sendo todos estes
elementos também da cor branca, a cor litúrgica para o candomblé.
Um ogã ou uma mãe/pai de santo deverá manusear obí e parti-lo em quatro partes
utilizando-o como um ifá. Uma pequena parte da água da quartinha é jogada no solo, como
forma de saudar os espíritos ancestrais, masculinos e femininos. Após essa saudação inicia-se
o processo de alimentar a cabeça. Cada alimentos, bebida e animal que se encontra junto à
pessoa é inquirido à cabeça se ela deseja comê-lo e reparti-lo com os demais participantes do
evento, passando um a um por essa consulta. A cabeça da pessoa pode decidir por comer tudo
sozinho ou dividir o alimento, não havendo regra específica da resposta. Caso a cabeça decida
comer tudo sozinha todos os alimentos, bebidas e os animais que serão sacrificados ficarão ao
lado da pessoa por um período de doze horas enquanto esta está recolhida no roncó.
A proximidade com os alimentos, bebidas e animais transfere o axé deste para a
pessoa e para a sua cabeça onde está assentado seu orixá, fortalecendo os dois para as
atividades do cotidiano e do terreiro. Quanto mais tempo a pessoa e sua cabeça (ou seu ori)
ficarem expostas, mais energia entrará em contato consigo e serão absorvidas, até os
alimentos não conterem mais nenhuma energia. Tal perspectiva se assemelha muito ao
conceito de magia por contato postula por Fraser (1982), onde objetos mágicos tem a
capacidade de emanar sua energia por contato com alguma pessoa ou outro objeto,
transferindo sua energia por meio desse toque.
Caso a cabeça decida repartir os alimentos e demais ofertas todos estes serão divididos
em duas partes, uma para a pessoa e sua cabeça e uma para os participantes do ritual, sendo
distribuídos os alimentos e realizado um momento de comensalidade, onde a própria pessoa
também se alimenta de uma parte das ofertas à sua cabeça, sendo a outra colocada ao seu lado
durante as doze horas de recolhimento. No caso dos animais, quando são sacrificados, tem seu
sangue colocado sobre a cabeça física do indivíduo, como forma de alimentar seu ori onde
está seu orixá. A cabeça é envolta em um pano da costa branco, que estava sobre seus ombros,
e dentro deste colocado as partes do obi utilizado como ifá.
No caso do bori"dado precedente a reabertura de uma casa ou relacionado aos eventos
de sucessão, como ocorreu no Ilê Omô Oyá, também o terreiro e seu fundamento de abertura,
local no centro do barracão onde foram assentados os axés da casa no momento de sua
fundação, tem parte do sangue dos animais depositada ali como forma de fortificar também a
casa e a sua ligação com o "Orum", intermediada por esse assentamento. Após tais ritos
realizou-se o Orô para Odé, o novo guardião e guia do terreiro, sendo considerado então
finalizado o luto e a casa reaberta.

Considerações finais
A partir da etnografia do rito do axexê é possível perceber como os ritos têm papel
fundamental nas diversas sociedades humanas como demarcador de status sociais, mas
sobretudo como demarcadores de estágios ou de momentos da vida humana. Com a atuação
destas ações simbólicas a sociedade consegue se reorganizar em momentos de "crises de vida"
(TURNER, 1974) e retornar ao que se pode considerar como normalidade.
O axexê tem uma clara função de reorganização dentro de um terreiro de candomblé e,
de modo claro, permitir a realocação da liderança na figura de um novo dirigente. Após o seu
término, não apenas tem-se um novo líder nos terreiros, mas todos os cargos ocupados pelos
membros são revistos e reavaliados. Ele age, no caso analisado, tanto no plano material como
no espiritual. Permitindo a continuidade do grupo e a perpetuação da casa e de suas crenças.

Bibliografia
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FRASER, James G. O ramo de ouro. Rio de Janeiro: Guanabara. 1982.

MAUSS, Marcel; HUBERT, Henry. "Ensaio sobre a natureza e a Função do Sacrifício"


(1899). In: MAUSS, M. Ensaios de sociologia. São Paulo: Perspectiva, 2009 p. 141-227.

PEREIRA, Rodrigo; MOURÃO, Tadeu; CONDURU, Roberto; GASPAR, Anderson;


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PRANDI, José Reginaldo. Conceitos de vida e morte no ritual do axexê: tradição e tendências
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