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no Rio de Janeiro1
Rodrigo Pereira
Mestre em Ciências Sociais (UERJ)
Mestrando em Arqueologia pelo Museu Nacional da Quinta da Boa Vista (UFRJ)
Arqueólogo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional do Rio de Janeiro (IPHAN/RJ)
1 Artigo baseado na dissertação de monografia intitulada "No reino das duas Senhoras: Etnografia do Rito do
Axexê no Terreiro Ilê Omô Oyá (São Gonçalo, Rio De Janeiro)", apresentada ao Programa de Pós-graduação em
Ciências Sociais (PPCIS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), defendida e aprovada no ano de
2013.
2 Para manter o anonimato da casa e dos membros optou-se pela troca do nome do terreiro e dos indivíduos que
estavam envolvidos no rito e no conflito instaurado.
3 Sobre tal rito ver as obras de: Cruz (1995) e Prandi (2000) que se detém na descrição do axexê, mas não
informam muitos dados sobre os ritos, cânticos, alimentação e elementos que constituem a passagem do espírito
do dirigente para o patamar de espírito ancestral.
A casa tem uma dupla descendência: a do Opô Afonjá de Coelho da Rocha, pelo lado
do cultos aos orixás; e de Ilê Asipá de Salvador (BA), pelo lado do culto aos éguns. O terreiro
Ilê Omô Oyá foi fundado na década de 1960 e guarda, desde sua formação, um caráter muito
familiar ligado à família sanguínea de sua fundado. Ao longo dos anos em torno de 30
indivíduos não sanguíneos tornaram-se membros do axé. Por opção da própria dirigente o
caráter sanguíneo sempre foi mais forte em seu terreiro, o que segundo ela seria um preceito
do candomblé.
No Culto Lésse Orixá a casa respondia, desde sua fundação à Oyá, a deusa das
tempestades e dos ventos, sendo o "orixá de cabeça" da dirigente e de muitos de seus filhos de
santo. Como costume da raiz do Opô Afonjá, Xangô é considerado o outro patrono da casa,
sendo adorado em um quarto de santo específico e em ritos como a "Fogueira de Airá" ou o
"Ajerê".
Como vários terreiros do Rio de Janeiro (PEREIRA, et alli, 2012), o Ilê Omô Oyá teve
períodos de maior e menor número de membros, chegando ao ano de 2010 com cerca de 30
membros. A casa estava dividida entre membros ligados à filiação sanguínea da então
dirigentes e os membros ligados à filiação de santo da casa. É neste palco que o drama social
da morte e da instauração do axexê será instalado no Ilê Omô Oyá (TURNER, 1974) como
rito que dá conta da morte da dirigente e da transformação de seu status de indivíduo para
ancestral divinizado.
A dirigente do Ilê Omô Oyá tinha direito a três axexês, sendo um de um mês após seu
falecimento, um de seis meses e um de um ano devido a seu tempo de feitura no santo, cerca
de cinquenta anos. Todos eles com sete dias de duração, o que, conforme Rocha (2000) é uma
cerimônia feita apenas para as pessoas com mais destaque na casa – cargo ou tempo de santo.
Assim, o "axexê" deveria começar numa segunda-feira a noite e ir até o domingo pela
manhã, sendo facultativa a presença dos membros em todos os dias. Contudo, caso alguém
fosse ao primeiro dia, a segunda-feira, era obrigado a ficar dentro do barracão até o domingo.
Mas, se a pessoa fosse a partir da terça-feira, poderia vir em dias alternados, mas estar
obrigatoriamente presente no sábado e domingo para presenciar o descarte ritual e sacrificial
dos objetos da ialorixá falecida e a limpeza da casa e das pessoas contra alguma energia de
morte. A obrigatoriedade do fim de semana era extensiva para os que participassem também
desde a segunda-feira e a todos os membros da casa, não importando cargo ou tempo de
santo, pois nesse período poderia-se retirar a "mão de vúmbi" - a energia que a dirigente da
casa colocou em seu iniciado no momento de sua raspagem. Caso essa energia não seja
retirada, a morte pode agir sobre a pessoa e levá-la ao falecimento.
Turner (2008) se propõe a analisar o rito e a sua liminaridade, período em que não há
um status e leis prévias e nem vindouras, onde “ [...] o que ontem era liminaridade hoje está
estabelecido, o que hoje é periférico torna-se o central de amanhã” (TURNER, 2008, p. 14),
em contextos simbólicos e trazendo a passagem da natureza humana para a cultura e suas
representações sociais como fundantes da percepção social, da ação dos sujeitos e da estrutura
social.
Assim, as ações humanas são ações geridas por símbolos e percebidas pelo recorte da
ação de ritos de vida ou ritos de passagem (TURNER, 2005). Esses ritos são fundamentais
para a sociedade, pois preparam os indivíduos para ocuparem lugares ou “estados sociais”
(TURNER, 1974 e 2005) dentro da sociedade.
Após a invocação de Exu o padê pode ser dividido em quatro partes e sob o uso de
quatro tipos de alimentos e/ou materiais que são ofertados. Cada parte tem uma ordem
específica e uma ou mais entidades a quem são ofertadas. O primeiro a ser invocado e
ofertado com alimentos é Exu Iná, recebendo por três vezes a mistura de água, farinha e azeite
de dendê. Em cada vez que é misturado esses alimentos pela Iyádagan, que o passa para a
Iyamoro, a cuia que os recebe circula por todo barracão e é levada até uma árvore sagrada
onde Exu deverá aceitá-los. Em seguida invoca-se Exu Odara, convocado para levar para
Oxalá, símbolo de todos os ancestrais masculinos, a mistura de água e cachaça.
Semelhantemente, isso ocorre também por três vezes.
Nesta mesma oferenda são lembrados todos os "Babas Éguns" da casa, bem como
todos os ancestrais que fundaram o terreiro, convidando os com as ofertas para participarem
da cerimônia. As cantigas que seguem auxiliam na saudação a estas entidades, bem como a
ação de tocar o solo, tracejá-lo com um "x" e levá-lo à testa (símbolo ou ação simbólica que
saúda o ancestral lembrando o ori com o toque na testa da existência deste espírito ancestre).
Durante essa música, a Iyádagan levará para fora uma oferta de cachaça, sendo essa última
um momento de divisão dentro do padê.
Após o retorno da Iyádagan inicia-se uma cantiga para os cinco principais orixás do
terreiro (Ogum, Odé, Iemanjá, Oxum e o orixá guia da casa) no intuito que eles fortaleçam e
ajudem a celebrar o rito. Junto a estes são agradadas ainda as Iyá-mi-agba via Exu. Por fim,
um membro do terreiro, enquanto a música segue, irá até a porta do barracão e pegará um
pequeno pote com água e "despachará a porta" jogando água no sentido central desta, à
esquerda e à direita, pedindo as Iyá-mi-agba que preparem a última passagem da Iyamoro,
que levará o acaçá representando um corpo em sacrifício.
Com seu retorno inicia-se uma última música que saúda a todos os orixás, esperando
que, como Exu deixou o caminho entre os planos aberto e agraciado a todas as entidades,
desde os Babás éguns da casa às Iyá-mi-agba, os orixás venham confirmar o recebimento das
ofertas via incorporação em seus filhos. Normalmente no padê utilizam-se os atabaques.
Contudo, sendo o axexê um ritual funerário em respeito ao ente falecido não são usados os
atabaques, que estão protegidos com os panos brancos, mas sim grandes cabaças que são
tocadas com as mãos ou com pequenas varetas.
Dando prosseguimento ao axexê Pai Jorah foi até os assentamentos de Mãe Amelie e
os destapou do pano branco que estava desde seu falecimento anunciado ao espírito que o
ritual irá começar. Ele volta dos assentamento com uma vela e uma cuia feita de uma cabaça,
sendo esta vela acesa e a cuia colocada no centro do barracão. A vela, ao ser acesa, representa
e indica a todos que o espírito de Mãe Amelie esta presente dentro do barracão, sendo ele
representado fisicamente pela cuia.
O rito tem continuidade quando do filho de santo mais velho quanto a feitura ate
duplas de dois abiãs vão até a porta do barracão saúdam a ancestralidade da casa, retornam,
pedem a benção a todos e começam a dançar em torno da cuia. A dança tem seu auge quando
moedas são passadas no entorno da cabeça da pessoa e depositadas na cuia. Essa passagem da
moeda na cabeça significa uma delegação da vida da pessoa ao morto, ao mesmo tempo
também são consideradas como uma despedida do morto, como numa forma de pagamento
por não levar sua vida e, feitos e aceitos todos os sacrifícios de restituição de axé, o morto vá
para o plano espiritual.
Nesse momento espera-se que algum orixá venha para auxiliar na entrega das moedas
e das cabeças. Em especial espera-se que Oyá, a mãe mítica dos éguns, venha pois apenas ela
consegue lidar com tais entidades. O Ilê Omô Oyá é um terreiro que pode ser considerado,
como os próprios membros destacaram, "muito bem servido de Oyás", pois além da falecida
Mãe Amelie, Mãe Myrcela e a iaô Lisa tem essa orixá como guia. Assim, era esperado que
elas sempre estivessem presentes no axexê para receberem suas Oyás e auxiliarem no ritual.
De fato, naquela noite Mãe Myrcela e Lisa receberam suas Oyás, Mãe Elia recebeu
sua Iemanjá, ou como muitos afirmaram, o próprio espírito de Mãe Amelie e Mãe Rhaella
recebeu sua Oxum. Tendo os orixás presentes acredita-se que nenhum égun poderá fazer
qualquer mal à alguém. Para tanto, os orixás incorporados tendem a se colocarem nas portas
do barracão "de guarda" protegendo os membros do terreiro dos malefícios de tais espíritos.
Quando algum outro orixá vem, acredita-se que ele pode proteger o barracão da mesma
forma, só não poderá sair dele, pois os éguns não o respeitarão do lado de fora. Assim, na
maioria das noites, quando algum outro orixá veio neste momento, ele ficou rodando entre os
filhos da casa, consolando alguns, dando pequenos conselhos e ainda realizando passes de
energia ou axé nas pessoas.
Após o fim da oferta de moedas todos devem dançar em volta da cuia, como forma de
homenagem e despedida para com a ialorixá. Após essa dança, as comidas que foram
preparadas durante a tarde são colocadas junto à cabaça e o resto do obí utilizado no início do
ritual. Cabe apenas às mulheres da casa, independente do cumprimento das obrigações de
santo já realizadas, buscarem essas comidas já previamente acondicionadas em vasilhas na
Cozinha de Santo e que são trazidas e colocadas sobre uma mesa fixada no canto direto do
barracão, ao lado dos ogãs.
Quando as comidas, a cabaça com as moedas e a vela estão juntas dança-se uma
última música antes de ofertá-las ao espírito que se cultua no axexê. Essa dança ocorre com a
presença das Oyás incorporadas ou dos orixás presentes. Dançam apenas quem não tem um
dos genitores vivos ou quem tenham os dois mortos. A dança saúda os ancestrais falecidos,
sendo pais e mãe carnais considerados também ancestrais, por isso são saudados com essa
danças. Aqueles que tem os progenitores ainda vivos permanecem sentados. Os ogãs da casa,
e apenas eles, devem levar estes alimentos para dentro do Quarto dos Éguns.
Ao levantar as comidas (que foram acondicionadas em um tabuleiro com alças para
facilitar o manuseio) os ogãs fazem um movimento triplo de levantar e abaixá-las três vezes,
indicando ao espírito da falecida Mãe Amelie que irão levar suas comidas e o dinheiro
ofertados, ou nos termos da casa, "ocorre a abertura do carrego". É nesse instante que se pede
às Oyás ajuda na lida com os éguns, indo a Oyá de Lisa junto aos ogãs e ficando a Oyá de
Mãe Myrcela junto à porta do barracão, que ficou fechada e mantida assim por ela.
Quando os ogãs chegam fora do barracão a comida é coloca dentro do Ibó e avisa-se à
Mãe Amelie sobre a comida utilizando-se de orações que pedem que a oferta seja recebida e
que ela vá para o Orum tendo a certeza que, na condição de égun, sempre poderá "comer"
aqueles alimentos. Após essas orações os ogãs retornam para dentro do barracão e iniciam a
última parte do axexê. Esta parte final consiste em uma série de danças dedicadas, cada uma
delas, aos dezesseis orixás e que tem por finalidade saudá-los ou adorá-los. Por fim, canta-se
uma ultima música para Mãe Amelie que tem um valor de adeus ou de despedida fechando o
conjunto de oferendas e pedidos para que ela se torne um espírito ancestral da casa.
Após todo o ritual sempre é servido um farto jantar seguido de uma série de
sobremesas. Conforme Mãe Elia, devia-se comer muitos doces, não apenas porque a falecida
Mãe Amelie gostava, como forma de memória, mas porque todos os éguns, quando
"alimentados", tem predileção por doces, como reminiscência do período em que foram vivos.
Cabem ainda serem citados alguns outros detalhes variantes durante o axexê.
Primeiramente, a ordem das pessoas que dançam e que, consequentemente, é a ordem dos
membros sentados. Esta se organiza por hierarquia e cargo exercido - mãe ou pai de santo
com obrigações cumpridas, iaôs, ekedis, ogãs e abiãs -, sendo o tempo de feitura considerado
como classificação específica. A ordem da dança entre os presentes durante as noites de axexê
também foi variável devido a presença inconstante de membros. Independente do número de
pessoa, deve-se seguir a hierarquia de feituras (ver quadro 1 onde ilustramos tal
movimentação).
A partir da posição da pessoa e de seus movimentos pode-se traçar uma "rota" das
ações de cada pessoa: inicialmente vai-se à porta do barracão e saúda-se à sua ancestralidade,
no retorno pede-se a benção a todos da casa para a dança, durante ela o ritmo vai aumentando
gradativamente e a pessoa, ou conjunto de dois abiãs, deve passar a moeda sobre sua cabeça e
corpo e depositá-las na cabaça. Após a realização desta deposição, que equivale a duas ou três
voltas pela cabaça, a pessoa retorna à seu lugar de origem e é seguida por outro membro que
fará a mesma rota.
Como já colocado anteriormente, inicia-se a dança pela mãe de santo mais velha da
casa, no quesito tempo de feitura, indo descendo, conforme o tempo de feitura até os abiãs e
após eles, os ogãs. A posição última de dança dos ogãs dá-se pelo motivo de que são estes que
tocam as cabaças e "puxam" os cânticos. Apenas por esse motivo eles irão por último, mas
seguindo a classificação de tempo de confirmação, realizar a dança e oferta de moedas.
Também entre eles, até para dar maior dinamismo e poupar tempo, podem-se ir de dois em
dois.
Chegado o sábado um novo conjunto de rituais se iniciavam para a parte final do
axexê. Nessa manhã Mãe Amelie escolheria quais os assentamentos de orixá dela que seriam
descartados no ritual da noite e quais ficariam para a casa. Havia um temor dos membros
sobre essa escolha: caso todos os assentamentos fossem ordenados para o sacrifícios ritual da
noite e, consequentemente, retirados da casa, esta poderia fechar, pois não poderia manter-se
aberta sem algum axé de sua fundadora.
Naquela manhã fria de julho caia uma pequena chuva. Para o candomblé, o
tempo/clima reflete os "humores" dos orixás, mas também indicam o que pode acontecer.
Assim, sendo Oyá a dona dos ventos e das tempestades, aquela chuva seria considerada pelos
membros do terreiro como um prenuncio que Oyá não deixaria a casa e esta manteria-se
aberta. O ritual da manhã consistia na retirada temporária do pano branco que cobria os
objetos pessoais, assentamentos, quartinhas e fios de conta pertencentes à Dona Amelie,
seguido de uma consulta a ela, ocorrida no Ibó, para ser perguntado sobre cada um dos
objetos o seu destino (destruição ou manutenção deste na casa). Assim, um a um estes era
retirados do chão e levados para dentro do quarto e lá, utilizando-se do ifá da falecida ialorixá,
esta era consultada sobre o destino de cada pertence. O rito foi realizado por Pai Jorah e Pai
Robert, como ogãs da casa e por Pai Renly como pai de santo de casa. Mesmo neste rito,
como nos demais dentro do Ibó, somente homens são permitidos.
Após a consulta, que durou mais de uma hora, a casa "respirava aliviada", conforme
relatou a iaô Lisa, pois Mãe Amelie havia deixado a maioria de seus assentamentos para o
terreiro como forma de perpetuação do seu axé. Muitos deles eram duplicados, um
pertencente à casa e outro da própria ialorixá, sendo deixado então um dos dois para o
terreiro.
A noite do axexê de sábado pode ser considerada como bem movimentada, dado o
número de participantes e, consequentemente, o alargamento do tempo do rito de dança
envolta da cabaça naquela noite. Contudo, haveria a introdução de mais ritos e de mais ofertas
de sacrifício naquela noite. Para o candomblé, após o fim desta noite a alma da falecida
Senhora estaria pronta para deixar o plano material e assumir sua função como égun no
terreiro, mas tudo dependeria de sua própria escolha no fim da noite e dos rituais.
Antes de começar o ritual Pai Jorah recolheu todos os mariôs que estavam nas portas
dos quartos de santo, do barracão e da residência da ialorixá. Tal ação se fazia necessária para
ajuntar tudo que seria descartado naquela noite, e isso incluía não apenas os objetos que
tiveram a permissão de serem destruídos, fato que será explanado a seguir, mas também o
pano que cobria tai objetos, os mariôs e toda a comida que era depositada no Ibó durante a
semana.
Quanto as comidas produzidas para aquela noite, a serem ofertada para Mãe Amelie as
mesmas produzidas de segunda-feira até a quinta feira se repetiram: ebô (canjica de milho
branco cozido), canjica de milho branca cozida e passada no dendê, milho vermelho cozido,
omolocum (feijão fradinho cozido e temperado com dendê e camarão seco), biscoitinho de
Oxossi (feijão fradinho torrado numa panela sem óleo), acarajé, acaçá cortado em pedaços,
obí, Osè (acaçá diluído em água), buburu (pipoca branca estourada sem o uso de óleo algum)
e pipoca estourada no dendê. Além destas, uma cabra, uma galinha branca e dois pombos
também seriam sacrificados para a ialorixá.
A última noite de axexê se iniciava com o padê, tendo as Oyás de Mãe Myrcela e Lisa
presentes. A dança em torno das cabaças duraria mais tempo que o de costume, pois hoje
todos os membros da casa participavam do rito. Para agilizar o ritual, que precisaria de mais
tempo, Pai Jorah indicou que os abiãs e os ogãs fossem em duplas durante a realização da
oferta de moedas de forma que esse ponto não tomasse muito tempo.
Após a dança, as comidas preparadas foram trazidas para dentro do barracão, tendo
Mãe Rhaella encabeçado a fila das mulheres que as buscaram e colocaram na mesa dentro do
terreiro. Como regente temporária da casa, cabia a ela a função de, naquele momento,
encabeçar a fila e trazer as comidas para o rito. Em seguida Pai Jorah Junior, seguido dos ogãs
Robert e Rodrik, trouxeram os animais para o centro do barracão sendo eles colocados ao lado
da cabaça com as moedas e a vela. Pai Jorah saí em seguida, indo até o local onde estão os
assentamento e objetos da falecida ialorixá e retirava o pano branco colocado desde a
deposição de tais materiais ali na ocasião da morte da Senhora da Casa.
Em seguida Mãe Dayenerys inicia mais um rito com a finalidade de proteção: amarar
tiras de mariô nos pulsos esquerdos de cada um presente no ritual. As tiras identificam e
protegem as pessoas pertencentes ao terreiro no momento em que o Ibó estiver aberto e uma
quantidade enorme de éguns passar a transitar no entorno do barracão. Somente após tal
identificação é que o rito pode ser continuado.
Pai Jorah pediu a todo que se virem para a parede, pois não é permitido, nessa noite,
ver as oferendas saírem e nem coisa alguma que ocorra do lado de fora do barracão e na frente
do Ibó. Esse foi um momento de grande comoçam no terreiro, pois todos sabiam que agora se
daria a quebra dos objetos e assentamento de Mãe Amelie, fato que a libertaria da existência
como pessoa e indivíduo sendo transformada em coletivo não individualizado como égun, ou
seja, passando a fazer parte do todo coletivizado denominado de ancestralidade. Era um
momento muito esperado e deveria ser visto e compreendido com alegria, pois o ciclo de
existência de Mãe Amelie chegava a um ponto máximo: a transformação em ancestral da casa.
Para o candomblé este deve ser um momento de alegria e de comemoração no terreiro,
pois a continuidade dele é dada não apenas na medida em que novos abiãs entram e iniciam
suas trajetórias, mas também no momento em que seus membros mais ilustres falecem e,
passando pelo axexê, se tornam ancestrais da casa, espíritos zeladores desta e que também
auxiliaram no fluxo de axé entre o Orum e o Ayiè e entre os membros da casa.
Contudo, mal as pessoas tinham se virado para a parede já se ouviam soluços de choro
havendo assim uma clara separação entre o sentimento socialmente esperado, o de alegria, e o
subjetivamente expresso, a perda total e definitiva da figura da "mãe" que seria extinta, como
pessoa ou indivíduo com a quebra de seus objeto. Mauss (2009) já observou situação
semelhante ao correlacionar a expressão dos sentimentos a uma obrigatoriedade social de
formas coletivas de expressão e relacionadas a determinadas situações como os ritos
funerários. Mauss (2009) utiliza o conceito de "signo da não-espontaniedade" para indicar
situações em que o social se sobrepõem ao individual e os conteúdos e a natureza do
sentimento denotam sua origem no social, como ser supra orgânico aos indivíduos, o que está
intimamente relacionado ao conceito de efervescência defendido por Durkheim (1996) para
descrever as religiões e seu caráter coletivo.
Nesse sentido, os sentimento são formas de linguagem expressas em códigos sociais
direcionados a outras pessoas e que, portanto, seriam expressões do coletivo ou do social. Se
pensarmos no caso dos membros do terreiro analisado veremos que, ao contrário, os
sentimentos individuais se sobrepunham aos coletivos. Era esperado alegria com os sacrifícios
de restituição e de transformação final da ialorixá em égun. Porém, o que foi expresso era o
sentimento pessoal, que poderia até ser pensado como coletivo, e representava para o grupo a
perda ou da aniquilação da figura da mãe carnal e da mãe de santo para um estado de ancestre
da casa. Os sentimentos pessoas de perda e de término ou fim se sobrepunham ao esperado
coletivamente que seria a alegria com o fim de um ciclo. Assim, longe deste momento de
choro ser expressão do coletivo e do social, ele tendeu a ser dominado por sentimentos e
representações pessoais e/ou subjetivas de perda e de aniquilamento da presença da ialorixá
na situação de pessoa morta para espírito ancestral divinizado.
Para Turner (2008) torna-se necessário durante um rito de passagem observar as
emoções socialmente esperadas e relacionadas com o rito. Apesar de não oficiais elas tendem
a ser socialmente observadas, esperadas e trabalhadas pelo rito. Assim, apesar da
autenticidade do sentimento evocado, ele é socialmente esperado e instrumentalizado. Nesse
contexto, apesar de se esperar a expressão de uma alegria com a transformação da falecida
ialorixá em égun, os membros do terreiro expressavam a tristeza com o desligamento total da
sua Senhora do plano material e, consequentemente, de seu contato.
De frente ao Ibó iniciava-se a entrega dos alimentos e a realização dos sacrifícios.
Como os objetos já não estavam mais tapados com os panos brancos eles foram trazidos para
dentro do quarto juntamente com os animais e as comidas ofertadas. O assentamento que
receberá o égun é posto no centro do quarto e com o auxílio de uma ìsan (vara da árvore
"àtórí" (Glyphaca lateriflora abraham) ou das nervuras do dendezeiro (Elaeis guineensis),
usado para "lidar com os éguns": bate-se três vezes no chão chamando o morto para que
venha receber os sacrifícios e, ao mesmo tempo, apanhar o carregos e se separar em definitivo
do terreiro e do plano material.
Quando o morto responde e se torna presente ocorre então os sacrifícios dos animais
no intuito de restituir a energia gasta pelo espírito para se manter até ali e para, em seguida,
migrar para o Orum. Após os sacrifícios o ogã da casa pegou um martelo e começou a quebrar
os objetos pessoais da falecida. Tal ação também é vista como um sacrifício, pois libera, a
partir da quebra, mais um quantidade de energia que será restituída ao falecido e mesmo ao
Orum, como forma de restituição pela morte e como compensação pela perca definitiva o emi
e oxu da pessoa.
Realizada a quebra soma-se a ela as moedas e os animais mortos, o que produz o erù,
um tipo específico de carrego. Pai Jorah entrou no barracão e recolheu todas as fitas de mariô,
pois elas levarão junto com o carregos as energias de morte que possam ainda estar pela casa,
afastando das pessoas tal malefício.
Recolhidas as fitas Pai Jorah pediu que todos continuem de costas, pois o carrego sairá
da casa, o que significa que, tanto os animais, as moedas, os alimentos, a cabaça e os objetos
quebrados, serão colocados dentro de um saco branco e depositados em algum lugar indicado
pela pessoa falecida. Após todos estarem novamente virados para a parede é que o carrego
sai do terreiro, dando a volta pelo lado de fora do barracão e sendo acompanhado pelo Oyá de
Mãe Myrcela, presente desde o começo do ritual naquela noite. Enquanto o carrego saia a Oyá
de Lisa se colocava na porta no barracão e emite seu illá, o "grito ou 'brado de presença que
identifica a personalidade do orixá [...]" (CACCIATORE, 1988, p. 143), como forma de
despedida à falecida que agora não habitará mais esse plano e como forma de saudar sua nova
forma de existência no plano espiritual.
Este conjunto de sacrifícios e de conceito de liberdade aproxima-se muito da definição
de sistema sacrifical de Mauss (2009), onde
[...] O sacrifício implica sempre uma consagração; em todo sacrifício, um objeto
passa do domínio comum ao domínio religioso; é consagrado. [...] No sacrifício [...]
a consagração irradia-se para além da coisa consagrada; alcança entre outras a
pessoa moral que faz os gastos da cerimônia. O fiel que forneceu a vítima, objeto da
consagração, não é, no fim da operação, aquilo que era no começo. Adquiriu um
caráter religioso que não tinha, ou desembaraçou-se de um caráter desfavorável que
o angustiava; elevou-se a um estado de graça ou saiu de um estado de pecado. Num
caso como no outro, está religiosamente transformado. (MAUSS, 2009, p. 147)
[grifos nossos].
Assim, é a partir da quebra ritual de seus objetos, que pode ser entendido como um
sacrifício final no intuito de liberar suas energias contidas nos assentamentos e objetos, que a
ialorixá tem sua situação transformada para égun. De forma similar, se observarmos que
Turner (1974 e 2008) afirma ser o fim do período de liminaridade, o qual insere o sujeito
ritual novamente no grupo, mas em um estado diferenciado, percebe-se que Mãe Amelie saía
de seu estado de separação ou ruptura (TURNER, 1974 e 2008), no qual teve seus objetos e a
si mesma separada do conjunto material, ritual e energético da casa, passando então por esse
límen (TURNER, 1974 e 2008) e sendo compreendida agora como tendo um novo papel
social: integrada ao culto como égun em sua fase final de reintegração (TURRNER, 1974 e
2008).
Somente após a saída do carrego é que os membros do terreiro podem virar-se e
sentar-se no intuito de esperar a volta dos ogãs que foram levar o carrego, mas também
esperando a confirmação de que o ritual conseguiu seu efeito, transformar a ialorixá em
ancestral. Cerca de meia hora depois Pai Jorah, Pai Robert e o ogã Rodrik retornam ao terreiro
indo direto ao Ibó na finalidade de consultar os éguns quanto à realização de todo o ritual.
Após alguns minutos o ogã retorna ao barracão e, com grande satisfação, falam:
"podem comemorar, porque a mãe de vocês está feliz agora". A partir destas palavras, que
denotam que o ritual foi aceito e conseguiu êxito, iniciam-se uma série de danças que saúdam
tantos os orixás como o novo ancestral da casa. Mãe Amelie deixava de ser a ialorixá e a
Senhora da casa e se tornava "Iyá Modé Lòfunda", título recebido dos próprios éguns e que a
designa a partir daquele momento. De modo que, não deveria-se mais usar o nome Amelie,
mas sim "Iyá Modé Lòfunda" para se referir a ela.
Contudo, o novo égun ainda não está totalmente pronto e são necessários anos para
que ele possa, por exemplo, vestir uma roupa, evento no qual o culto Lésse Égun produz
vestimentas que são preenchidas pelo espírito e este interage com os membros da casa que o
cultuam. Nesse período, que não possuí um tempo determinado, o espírito ainda apresenta
uma ligeira ligação com o plano material, podendo receber sacrifícios, dinheiro e bebida em
troca de ajuda e também não é considerado um "espírito de luz" ou "espírito guia".
Terminado o axexê a casa ainda ficaria mais doze meses fechada a espera dos outros
dois ciclos de axexê (em dezembro de 2010 e em julho de 2011) para poder reiniciar suas
atividades. Até lá os postos e a hierarquia da casa ainda continuariam suspenso e a casa ainda
será regida por Mãe Rhaella, a filha de santo mais antiga do terreiro. A partir do fim deste
ritual abria-se a possibilidade de que os membros que não desejarem manter-se na casa saiam
e se liguem a outros terreiros ou mesmo deem continuidades às suas casas já em
funcionamento.
No domingo pela manhã o terreiro deveria passar por uma limpeza. Como muita
energia de morte o permeou durante toda a semana fazia-se necessário limpar a casa, seus
quartos de santo e as pessoas. Para tanto, iniciavam-se uma série de cantos para que os
membros rodantes da casa incorporassem seus orixás e estes realizassem um sacudimento em
todo o terreiro. Este sacudimento consistia na utilização de uma planta, a açoita-cavalo
(Luehea divaricata), que era passada pelo orixá no corpo da pessoa e dentro dos quartos de
santo. O sacudimento era seguido pela defumação da casa com carvão e efun, um composto
de vários pós de plantas da casa e ossos retirados dos sacrifícios e que, por ter o axé da casa, é
capaz de anular as energias da morte, dentre outras utilizações. Passado o defumador na casa e
nos seus espaços e cômodos, precedido pela sacudida realizada pelos orixás, o terreiro
encontrava-se livre de qualquer energia ligada a morte podendo seus membros irem embora
sem a preocupação de que algum mal os ocorresse.
O último axexê de Iyá Modé Lòfunda ocorreria um ano após o seu falecimento
congregando os membros do terreiro por uma última vez para a ratificação do estado de égun
da falecida ialorixá. Após a realização do primeiro axexê, momento em que ritualmente o
indivíduo morto trona-se um ancestre, e a partir de sacrifícios e da restituição de certa
quantidade de axé ao sistema de energia da casa, os outros axexês tem a função de apenas
confirmar tal estado e, sobretudo, realizar o descarte sacrificial dos últimos objetos da ialorixá
falecida.
Considerações finais
A partir da etnografia do rito do axexê é possível perceber como os ritos têm papel
fundamental nas diversas sociedades humanas como demarcador de status sociais, mas
sobretudo como demarcadores de estágios ou de momentos da vida humana. Com a atuação
destas ações simbólicas a sociedade consegue se reorganizar em momentos de "crises de vida"
(TURNER, 1974) e retornar ao que se pode considerar como normalidade.
O axexê tem uma clara função de reorganização dentro de um terreiro de candomblé e,
de modo claro, permitir a realocação da liderança na figura de um novo dirigente. Após o seu
término, não apenas tem-se um novo líder nos terreiros, mas todos os cargos ocupados pelos
membros são revistos e reavaliados. Ele age, no caso analisado, tanto no plano material como
no espiritual. Permitindo a continuidade do grupo e a perpetuação da casa e de suas crenças.
Bibliografia
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Forense Universitária, 1988.
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Quadro 1. Rota de pessoas dentro do barracão no rito do axexê.