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Jornadas tematicas idealizadas e dirigidas por EDGAR MORIN | » A RELIGACAO =D OS SABERES 0 desafio A cientificidade Dominique Lecourt Nem tudo é simples no ensino das ciéncias. Tito essa ligdo de minha propria experiéncia, a de um professor de filosofia que ensina na univer- sidade (Denis-Diderot, Paris-VII), exclusivamente para cientistas. A meu redor, o mal-estar sobre o qual testemunham meus alunos — fran- ceses € estrangeiros — é relativo nao as formas ou 4 qualidade reconhe- cida do ensino que recebem, mas sobre o contetido do que lhes é trans- nitido. Isso pode ser resumido assim: “Ensinam-nos muitas equacées, fazem com que realizemos manipulagGes e acabamos adquirindo uma cetta habilidade. Mas nao podemos vislumbrar a razdo de ser e as finali- dades daquilo que aprendemos.” Traduzindo: eles sentem falta, nesse tipo de ensino, de um acesso ao pensamento cienttffico que sustentou e Sue continua dando os resultados que eles devem aprender e dominar. Els gostariam de saber em que sentido Schrédinger nao é uma equa- 0. Parece-me que essa constatacao pode ser estendida ao conjunto das disciptinas cientificas e a todos os ciclos do ensino, secundario e supe- “or. Oue eu saiba, ela nado pode ser desmentida em parte alguma da opa. Isso nos remete a uma certa idéia da ciéncia, cujas raizes filos6- ea Sia é tempo de reconhecer. age 2 a con- Essag Talzes, podemos descobri-las sem grandes diffeuldades XIX ao Positivista da ciéncia que foi exposta na virada do s > 521 A RELIGACAG DOS SABERES os ea EDGAR MORIN para o NX, numa conjuntura especial Uma conjuntura marcada antes de tude por uma transformagao que afetou o progresso dos conheci. pelo questionamento do ideal da ciéncia que influéncia de Newton; mas também con. as ¢ sociats, ligadas a chama mentos fundamentais ¢ fora herdado de dois séculos de tribuafram para isso as mudangas economic modificaram profundamente o esta » industrial, que da revolued social da ciéncia e dos “cientist: No campo da fisica, entao considerada como a “rainha das ciéncias”, «4 todas as outras, so as bases “mecanicas” de todas as pesqui- .as inesperadas: a termodinamica de Carnot- Clausius, juntamente com a entropia, faz aparecer processos irrevers{- veis que io se submetem as equagdes reversiveis da mecanica clissicas © eletromagnetismo vem agravar a confusdo. Os melhores fisicos da €poca dividem-se por muito tempo entre os que, como Helmholtz, Hertz ou Boltzmann, tentam “salvar” o programa mecanista, nem que fosse abrandando-o € os outros que, como Ernst Mach, aprofundam o modelo par sas que revelam entao falh: questionamento do mesmo. Apesar das oposigdes as vezes muito violentas, um pedestal filoséfi- co comum erige-se entdo, que permite enfrentar o que € chamado de “crise da fisica moderna”, Seria aliés mais apropriado falar de recuo, ja que as posigdes estavam estabelecidas previamente. Essas posi¢des sao as do positivismo classico. A ciéncia — proclama-se desde entéo — nao tem de forma alguma a ambicao de interrogar-se sobre as causas dos fendme- nos que ela estuda, mas pretende somente estabelecer matematicamen- te as leis que unem entre si os fatos regularmente observados. Essa tese € suscetivel de interpretacdes diversas, mais ou menos radicalmente empi- ristas, que vdo do sensualismo ao convencionalismo ou ao pragmatismo. Compreende-se a vantagem que se pode tirar disso: nao se trata jamais da natureza das coisas, pode-se facilmente resolver o escandalo da divisao da fisica em dois setores regulamentados por equagdes heterogéneas. Pode- se qualificar essa tese de “positivista”, pelo fato de ela ter sido enunciada pela primeira vez por Auguste Comte no infcio do Curso de filosofia posi- tiva (1830), que fez dela a pedra fundamental de uma poderosa filosofia da histéria (ou, melhor dizendo, do fim da histéria). 522 A Religagdo dos Saberes pe qualquet forma impds-se a idéia de que o procedimento ei eect ento cientifi- vexmaset om método” que consistiria unir entre elas as ol el oo ~4lculo adequa las as observa- corer meio de um calcul adequado. O uso do cileulo das goes PS de est las probabili- aes PORE ar? sonho da condoreet: ender singularmente o seu campo de exercicio, até r , até reali smatematica social”, cuja perspectiva fora esbocada ada por na virada do século XIX para o XX. Em 1859, a publicagao ged Origemt das espécies produzira um novo seismo num campo —o da ‘al — em que os estudiosos tentavam ha séculos conciliar pistoria nature toniana com 0 relato biblico da Génese. No mesmo uma ambicao new! enento, Claude Bernard funda a “fisiologia experimental” e forma o aait-chave de “meio interior” para submetero organico as leis fisico- m renunciar a afirmacao do cardter proprio da vida. ese positivista maravilhou. Ela permitia restabelecer a uni num campo turbulento, ela autoriza- s — a observacao do Estamos uimicas Se Assim a te dade da fisica e de sua historia, e, bem ou mal, os progressos cientifico vaconciliar, que deveriam fornecer como dos fendmenos — eas verdades da religiao, oporqué. Mas a esses elementos de uma conjuntura cientifica determinada, vinham juntar-se outros, que correspondiam a0 desenvolvimento da ‘tevolucao industrial”. O “poder motor do fogo” (Carnot) era agora racio- talmente explorado nas minas e nos transportes gracas as “maquinas As promessas econdmicas da PrOprias ao desenvolvimento do mesmo . deticdade revelavam-se imensas. A organizagao manufaturek® da pro- tugéo, substitufa-se a da grande indtistria, com sua propria divisao do a As clases laboriosas, cada vex mas mumeTOS t S Perigosas”. — ens onda revohucionstia do ano de 194 ear so a weg atta, Os melhores cepiritosassumiram entdo com OT ee ee ene ee desenvolvimento 20 "enciag eee que pudesse garantir @ estaiiade socal ATE Uma ee tomou duas vias distintas: a que © cao da sociedade a partir dos progres ornavam-se ra suas marcas onsistia em extra SOS cientificos mals 523 SLIGAGAO DOS SABERES mea EDGAR Morin ecentes — foi o caso dle Herbert Spencer, que apostava na termoding. mica e no evolucionismo para mostrar que a desordem sempre traz em si uma ordem mais coerente que esté por vit, uma ordem mais integra. da e mais adaptada; a outra via interrogava-se sobre a insercao das cién. cias no sistema de produgao. Foi a via aberta por Auguste Comte, segundo a inspiracao primeira de seu mestre Saint-Simon; Comte que. tia, baseando-se nisso, conciliar “ordem e progresso” instituindo a socio- logia como ciéncia (e como técnica, j4 que para ele os socidlogos deve. riam tornarse “sociocratas”). © que diz Comte? Que “todos os trabalhos humanos sao especula. Ges ou acces”. Ou isso... ou aquilo. Trata-se de “dois sistemas distintos” que convém cultivar por eles mesmos. Na ordem da especulacao, desco- brimos as leis dos fendmenos, o que tem como resultado Ppermitir-nos prevé-los. Na ordem pratica, para as necessidades da acao, buscamos vantagens. Entre esses dois sistemas, Comte parece cavar um abismo, para diferenciar-se daqueles “que concebem as ciéncias somente como base das artes” (isto €, das técnicas), devido aos servicos que elas prestam a industria, Por outro lado, ele afirma, entretanto, que “o primeiro sistema é a base do segundo” e que se deve conceber a ciéncia como destinada a for- necer “a verdadeira base da agao do homem sobre a natureza”. Um con- ceito permite-lhe manter essa dupla posigao que é, no minimo, acroba- tica: 0 conceito de aplicacao, Se este conceito teve a fortuna que sabemos, foi sem ditvida devido a sua profunda ambigitidade, porque ele permitia esquivar, em sua pré- pria formulacao, uma questdo dolorosa. Na Enciclopédia, d’Alembert dera dele a seguinte definicao geral: “Aplicacdo de uma ciéncia a uma outra: diz-se do uso que ¢ feito dos principios e verdades que pertencem a.uma delas para aumentar e aperfeicoar a outra.” A palavra aplicagdo sugere assim, antes de mais nada, a idéia de que os procedimentos téc- nicos sao tirados das leis cientificas de acordo com uma via dedutiva. Mas, quando em sua sexagésima lico do Curso de filosofia positiva, de 1842, Comte aborda a questao da mecénica industrial, ele explicita: 524 A Religacao dos Saberes 1 é, de forma alguma, como freqtientemente s: e ecanica 14 Jerivacaio da mecdnica racional.” Trata-se de um ata a les d Os engenheiros, cujo papel decisivo para o futu 2 mernn ca, UNA simp’ ens i pene de aplicacao ntido por Comte, nao serao portanto “cientistas propriamen- g presse! : wer segundo o ex-estudante da Escola Politécnica que era cal corpo cuja “destinacao especial é organizar as relacdes entre pritica’sas “teorias especiais”, que constituem o contetido de de aplicagdo”, deverao ser formadas “segundo as teorias te ditas”. E a utilizacdo dessa conjuncao segundo omtes greoriae gua “iencla sentificas propriamente Cit tem seu peso filoséfico: ela indica uma relacdo tripla — de posteriorida- de subordina¢ao. de, de imitagao € ‘Auguste Comte, que se dirigia 4 Europa, que ele queria salvar das convulsoes revoluciondrias unificando-a em torno de suas teses, foi escutado mais do que a0 pé da letra. A idéia, especialmente, de que exis- fea um pensamento técnico proprio, tendo uma abordagem inventiva |, foi apagada pelo conceito de aplicacao. O que se chamou de original, vuionalidade instrumental foi concebido como simples ajuste dos meios sem nenhuma autonomia: os fins sao fixados pela producao, os 2s fins, das pelas ciéncias fun- meios adotados em funcao das previsdes formula damentais. Vese agora em que sentido eu dizia acima “as coisas nao s4o sim- tks’. Tudo se passa de acordo com um caminho de evidéncias que foam forjadas em plena metade do séeulo XIX. Por um lado, as ciéncias oensinadas como uma soma de resultados mais ou menos rapidamen- sihalzados e como um conjunto de procedimentos de calculo ¢ de ae incessantemente mais ¢ mais refinados. Por outro lado, a stolid ¢ ensinada como procedimentos “derivados” de altas teorias Mas sno maior mistério. Que cae ae dizer também que tudo “se sustenta.” 7 ‘epgdes ajustaram-se umas as outras, mals ou menos estri Mente, leg POT 8 lado as teses Formuladas nas ciéncias para responder cl i : sig. ogicamente a uma transformacio da fisica e para aru filo de outro lado, as ‘Ament, © 0 terreno para a irrup¢ao da biologia Viu-se de fato 525 ni. . EDGAR Morty, \ RELIGAGAO DOS SABER) vam medir uma transformagao social que combinava o apa. s materiais, a emergen. teses que vis recimento de um novo modo de produzir os ber cia de novas classes sociais ¢ a exigéncia de uma nova ordem politica, Tudo se encaixa, Pois nao estamos hoje em dia verificando isso? Pois nao & esse “tudo” — 0 que tradicionalmente chama-se de “um mundo” — que se desfaz sob nossos olhos? Seria 0 caso de tirar disso cer. ino e talvez a Europa pudesse em relacao a tas ligdes para 0 nosso er isso unir-se em nome de um mesmo esforgo. Quanto a mim, estou con- vencido de que ela pode encontrar em sta historia os motivos de um sinal de esperanca a ser enderecado ao resto do mundo, que acabou por seguir seu “modelo” em sua versio de exportagao made in USA, O império do positivismo nao nos permitiu, sem duvida, que tam- bém tirassemos todas as licdes possiveis das grandes mudangas que afe- taram as ciéncias fisicas no decorrer das primeiras décadas do século XX. Entretanto, a teoria da relatividade, como a mecanica quantica, para falar apenas dessas duas grandes teorias de que dispomos, dao-nos uma licdo radical. Sabemos que as idéias cientificas fecundas nao proce- dem da simples observacao dos fatos, mas sim de especulagGes que vao muito além da observacao e que de agora em diante o conceito deve integrar em sua definicdo as condigdes experimentais de sua realizacao. Aprendemos também que uma teoria nao se resume a um puro célculo: ela sé se constitui por meio de uma polémica ininterrupta e dolorosa com as evidéncias, sensiveis ou intelectuais, as quais “aderimos esponta- neamente” porque as recebemos do jogo das instituigdes em que vive- mos. Ora, justamente, o pensamento cientifico, por esséncia, ndo é um pensamento de adesao ou, se preferirmos assim dizer, um pensamento “adesivo”; ele € muito mais um pensamento que se “desdobra” (Bachelard), um pensamento que nao para de julgar-se a si mesmo para melhor progredir por meio de retificagdes progressivas. Mas o que € que julga de si mesmo esse pensamento nos momentos decisivos, a ndo ser os pressupostos que ele herdou de um passado em que de forma alguma ele é questionado, j que as outras formas de pen- samento e de pratica humanos encontram-se também nele engajados? 526 A Religagdo dos Saberes 4 nogao de espago absoluto de Newton eng coy Ja pode comandar, a distancia, no campy dy nn 48 Bost Ampo da ps fat Te sicologia, da té no da teologia... 1990 explica sem n eee _ enhuma divi. sem 7 nee politica ¢ a hamos tido tanta dificuldade para peo oes q ald ees ten! lib e tel nos libe; ue erarmos dela New os dela, quant? que 0 proprio ton, por sua vez, fora tio Prudente al ente ao oot deveria fazer com que no: Pies az s enge : Bis alo que Ngajemos pela reinclusio da paturaca0 filosofica dos conceitos cientificos em nosso ensino. Pois sin apresentariamos a ncaa! aberta em telagao ao que € exterior a “fm vez de impor sua autoridade como objeto de fe, ela podria pre sccarno espirito dos alunos 0 exercicio de situar as formas “adesivas’ de «ex pensamento no lugar correto. Em francés, temos uma bela expres.

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