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123.01 year 11, aug. 2010

Arquitetura, a historicidade de um conceito


um breve estudo sobre a mitologia da fundação da arquitetura (1)
Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima

123.01
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original: português
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123
123.00
Arquitetura moderna,
estilo campestre
Hotel, Parque São
Clemente
Carlos Eduardo Comas

123.02
Centralidades
o simbólico, o
institucional e o
Ruínas de Teatro Grego, sítio arqueológico de Segesta, Sicília, econômico na região
Itália. Foto Victor Hugo Mori metropolitana de Belo
Foto Victor Hugo Mori Horizonte
1/10 Leandro de Aguiar e
Souza, Yara Landre
Marques and Diego
Filipe Cordeiro Alves

123.03
Poesia da democracia
Introdução Cultura e transformação
social na obra de Fábio
“Tendo, por conseguinte, a sabedoria natural concedido não ao Penteado
conjunto dos povos, mas a uns poucos homens dispor de tais Ivo Renato Giroto
capacidades; devendo o ofício do arquiteto ser exercitado em 123.04
todos os saberes e, podendo a mente, em virtude da dimensão da A divisão social do
matéria, ter além do necessário, não toda, mas uma pequena noção trabalho e as
das ciências, peço, ó César, tanto a ti quanto aos que hão ler transformações da arte
estes livros, que ignorai o que vier a ser explicado em pouca e da técnica na
concordância com as leis da gramática. De fato, como não sou produção arquitetônica
filósofo, nem orador eloquente, nem gramático versado em todas as Viviane Zerlotini da
regras do ofício, mas sim arquiteto, imbuí-me de escrevê-los da Silva
maneira que se segue.” (2)
123.05
No estudo História da arte uma questão é de capital importância: quando, La resistencia estética
exatamente, teria surgido a arquitetura? Isto é, quando e em que região Eduardo Subirats
geográfica precisa, certos trabalhadores que se ocupavam de construções 123.06
passaram a ser conhecidos pela denominação específica – ou foram Mario Palanti
"agraciados" com este "título" de caráter hierárquico ou diferenciador – Textos e ideas.
de arquitetos, destacando-se, portanto, do corpo do restante dos Repercusiones e
trabalhadores envolvidos no processo construtivo. Estamos partindo da historiografía
premissa de que quando houve um objeto ao qual foi conferido o epíteto de Virginia Bonicatto
construção, houve, igualmente um construtor, ou construtores. E, em um
determinado momento, construção e construtores foram socialmente 123.07
reconhecidos e designados com os conceitos de arquitetura e arquitetos. Reflexões sobre a obra
Mas, quando, precisamente, isto ocorreu? E, sobretudo, haveria uma de Hans Broos
continuidade histórica do conceito forjado neste caput? Karine Daufenbach

123.08
Podemos muito bem pensar que tais reconhecimento e denominação não se A participação das
produziram, necessariamente, no momento do surgimento do objeto, e que novas mídias na
poderiam muito bem ser posteriores, ou mesmo anteriores ao processo. universalização do
Poder-se-ia tratar de um caso de anterioridade literária, ou, ao conceito e dos
contrário, de uma "anexação histórica". instrumentos legais da
diversidade cultural
Estas questões sobre as quais lançamos luz parecem banais, uma vez que já Eliane Lordello and
teriam sido respondidas inúmeras vezes, em diversos livros, escritos Norma Lacerda
pelos mais variados autores. No entanto, refletir as respostas dadas pode
demonstrar que a questão ainda não teria perdido o seu caráter
instigador, e que, portanto, outras respostas seriam tão possíveis quanto
far-se-iam necessárias.

Assim, podemos iniciar a nossa reflexão pelo próprio caráter da questão:


por que perguntar pelo que já foi tantas vezes respondido? Devemos
lembrar, sempre, que esta pergunta tem um "apelo fundante" – no sentido
de que funda uma disciplina, a arquitetura, estabelecendo e dando
visibilidade a uma origem. Trata-se, então, da busca de uma gênese.
Porém, as respostas como genealogia somente podem ser dadas na medida em
que se compreende a sua dualidade: não se está lidando com uma questão
histórica qualquer, mas, com uma questão de historicidade de um léxico.
Neste ponto, é importante perceber como estes dois campos – o da história
e o da linguística – se misturam e se imbricam até ao ponto de se
confundirem fazendo-se indiscerníveis: para se pensar historicamente a
construção e os seus trabalhadores é necessário estabelecer a
historicidade do conceito, isto é, o que teriam significado em diferentes
momentos os vocábulos arquitetura e arquiteto em momentos e lugares
precisos. Poder-se-ia empregar a palavra arquiteto para se designar o
trabalhador egípcio envolvido nos processos construtivos, quando se sabe
que a palavra tem a sua origem na Grécia? E, por outro lado, poder-se-ia
aplicá-la a Ictino quando se sabe que o arquiteto gozava, na Grécia
Antiga, de um estatuto social não muito diferente de qualquer outro
trabalhador manual (3)? Portanto, não seria a tradução "Ictino foi o
arquiteto do Partenon" uma simples e canhestra "anexação modernista"? Mas
como não fazê-lo quando se sabe que a palavra surgiu, justamente, na
Grécia Antiga? Mesmo se encurtarmos a nossa perspectiva e olharmos para
apenas oitenta ou cinquenta anos atrás, a mesma dificuldade apresentar-
se-á: a partir do século XX, com a multiplicação dos cursos
universitários de Arquitetura, a denominação de arquiteto passou a
designar apenas aqueles que possuíam diploma universitário emitido por
uma instituição legalmente estabelecida – mas, neste caso, como não
designar arquitetos Le Corbusier, Mies van der Rohe, Frank Lloyd Wright,
e, aqui no Brasil, Zanini Caldas? É, então, fato fundante a ausência ou,
ao contrário, a presença de formação universitária? O que o Estado
compreende como arquiteto teria, então, se apartado da compreensão do
restante da sociedade?

Vamos proceder, então, a uma análise que possa ser compreendida como a
"história do léxico", o recorte pretendido inicia-se na Grécia, passa por
Roma e encontra a sua síntese no Renascimento florentino, o Olimpo
erigido por historiadores italianos, habitat dos deuses fundadores de uma
nova fé.

Este recorte, como se pode facilmente perceber, é claramente arbitrário:


não se pensará nem o ofício dos "arquitetos da Pré-História", nem a
arquitetura africana ou mesopotâmica – seremos, então, perfeitamente
ocidentais. Não estamos, com esta confissão, pleiteando a indulgência dos
leitores, nem afirmando que um recorte é tão bom quanto qualquer outro,
desde que devidamente esclarecido – mais que uma simples questão de
método, trata-se de anunciar o objetivo: perfazer o caminho de tantos
historiadores ocidentais, recolhendo, aqui e lá, o que foi deixado para
trás. Estes traços, marcas, pistas, ignorados ou simplesmente
desprezados, e que estavam ausentes dos seus escritos, ganham, aqui, uma
nova luz; o que era "pano de fundo", "marca d`água", silêncio ou
sussurro, terá que ser visto e ouvido. Trilharemos, então, o caminho das
respigadeiras após a colheita.

Os gregos

Como já foi dito na introdução, a palavra arquitetura remonta à Grécia,


ou melhor, foi introduzida na literatura ocidental a partir da Grécia.
Embora os gregos não tivessem palavra para arte, para artista e nem para
obra-prima, cunharam, no entanto, uma palavra que se revelou muito
preciosa e que fez fortuna na História da arte ocidental: archetekton.
Assim como a palavra arte pertence ao vocabulário da Idade Média, a
palavra arquitetura está indissoluvelmente ligada ao mundo grego. Mas, as
palavras não são invólucros vazios e, tanto quanto existem uma História
da Arte e uma História dos seus objetos, há uma História do léxico da
Arte, muito pouco estudada. O destino e as vicissitudes de cada palavra
estão inscritas em seu corpo, o que torna um pouco menos difícil o ofício
do historiador. Diante de um templo grego, contemplamos o ritmo das
colunas sob o sol da Europa meridional, e sabemos, enfim, que se trata de
arquitetura, como um objeto para o qual teríamos reservado um espaço
mental bastante preciso. Mas com qual arquitetura, como léxico e
conceito, teríamos que lidar? Ora, a História dos objetos não se faz sem
o concurso da História do léxico... E, aliás, nem seria possível estudar
ambas as Histórias separadamente. Enfim, quando utilizamos as palavras
"arquiteto" ou "arquitetura", com quais dos conceitos de arquitetura e de
arquiteto estamos lidando, uma vez que já acumulamos alguns? E quais são
eles?

O que teria significado, então, a arquitetura para os gregos antigos?


Vamos tentar unificar objeto e palavra refazendo a nossa questão: qual é
o sentido de um templo para um grego? Isto é, qual teria sido a
significação daquele objeto específico, e como os gregos se referiam a
ele? Respondendo a estas perguntas estaremos respondendo a uma questão
mais originária: qual era o sentido da archetekton grega? E poderíamos
traduzir esta palavra diretamente para arquitetura?

Infelizmente, para nós, as pedras não falam... Temos, então, que recorrer
aos textos para uma compreensão mínima da historicidade da palavra e do
objeto. Ora, é amplamente conhecida a desconfiança de alguns filósofos
gregos em relação aos "produtores de objetos", trabalhadores manuais,
artífices da thécne, tais como pintores, ferreiros, oleiros, escultores,
sapateiros e... arquitetos. Apesar da importância social da sua
atividade, pintores e poetas, artistas enfim, não tinham lugar na Polis
ideal concebida por Platão. Não poderiam alcançar as ideias, posto que
eram prisioneiros das determinações da matéria. Além disto, uma
escultura, por exemplo, não seria senão uma cópia de algo que, desde a
sua origem, já estaria "condenado" como uma cópia do mundo sensível
criado pelo demiurgo a partir da contemplação das ideias. Mas, assim como
os marceneiros e carpinteiros, os arquitetos gregos teriam, pelo menos,
um parco consolo: não fariam, diretamente, cópias do mundo, como o fazem
pintores e escultores. A condenação que pesa sobre o objeto arquitetônico
é de natureza mais sutil: existindo como matéria, somente se realiza como
cópia sensível do não-sensível, do imaterial, e, portanto, da Verdade.
Há, portanto, ainda menos "verdade" nas obras dos escultores e pintores
do que nas dos carpinteiros, marceneiros e arquitetos.

E o que dizer da kalocagatia socrática? A junção fundamental do belo


(kalos) ao bem (Agaton), fará com que o primeiro esteja subordinado ao
segundo. Se lermos com atenção este pequeno trecho dos Ditos e feitos
memoráveis de Sócrates, poderemos compreender, com maior propriedade, o
sentido de um templo para os gregos antigos:

“Em uma palavra, o prédio que em qualquer estação proporcionar o


mais aprazível retiro e o depósito mais seguro para o que se
possua, não pode deixar de ser o melhor e o mais belo: pinturas e
outros ornamentos mais desprazem que aprazem. Dizia de um sítio
descoberto e completamente insulado o melhor local para os
templos e altares. Que grato, ao orar, é não ter a vista
atrancada e aproximar-se dos altares sem sujar-se.” (4).

O que se pode depreender da leitura deste trecho é o caráter de absoluta


utilidade que cerca os objetos fabricados pelos gregos, e a não-autonomia
dos objetos arquitetônicos neste sistema. Um templo, assim como uma casa,
deve ser, antes de mais nada, "útil", isto é, mais ligado ao Bem do que
ao Belo. Não há, no discurso de Sócrates, absolutamente nada que possamos
vir a compreender como um "discurso estético" sobre o objeto. Um templo é
uma "realização técnica", um artefato do mundo da Téchne¸ um objeto para
ser "convenientemente usado" e não para ser fruído como uma obra-de-arte.
Um templo é, então, archetekton, e não arquitetura. Logo, é mister ter
sempre presente a impossibilidade de um conhecimento a-histórico de
objetos que são, fundamentalmente, históricos. E que a tradução de
archetekton por arquitetura é, pelo menos, uma simplificação que deve ser
vista com enormes ressalvas. Assim, os gregos não eram arquitetos como os
medievais e modernos o foram, ou como os contemporâneos o são.

Neste momento, é importante salientar o caráter histórico da apreensão do


mundo – o olhar não é apenas um acontecimento de ordem biológica, mas um
evento social. É lógico supor que os gregos não apreendiam os objetos –
arquitetônicos e outros – como os medievais e os modernos faziam. O olhar
do cidadão grego foi moldado em outras fôrmas e em outras formas, a
chamada êntase dos templos nô-lo provam. Segundo o historiador de
arquitetura A. W. Lawrence, o olhar dos gregos era mais capaz de
apreender curvas que o olhar moderno, devido ao fato de que as suas
construções domésticas em tijolo seco ao sol os havia acostumado com
curvas suaves e delicadas, as quais estavam presentes nos templos (5).
Mas, lembremo-nos, o olhar moderno teria criado a apreensão estética do
mundo. Aisthesis, que para os gregos significava apenas sensibilidade,
isto é, a multiplicidade do mundo sensível, para os modernos, e desde
Baumgartem, tornou-se um discurso sobre a arte e sobre o Belo. Como
afirmamos anteriormente, ao se narrar a história dos objetos, não se pode
esquecer de narrar, simultaneamente, a história das palavras.

Neste momento já estamos preparados para responder a pergunta enunciada


no início deste capítulo: teriam, então, os gregos fundado a arquitetura,
como disciplina e prática? A sentença "Ictino foi o arquiteto do
Partenon" é correta? E se é incorreta, qual seria a palavra que nos
livraria de qualquer anacronismo? Poderíamos, talvez, tentar a palavra
autor – mas conheceríamos o sentido mais profundo que esta palavra teria
no mundo cultural grego? Não estaríamos substituindo um anacronismo por
outro? Ora, qual seria o sentido do conceito de autoria em um mundo em
que o conceito mesmo de escritor tinha uma dimensão completamente
diferente daquela que lhe emprestamos hoje (6)? Aristóteles foi realmente
o autor da sua obra?

Poderíamos tentar outras versões; a sentença "Ictino trabalhou no


Partenon" teria a vantagem do emprego do verbo trabalhar, cujas variações
históricas tendem a ser mais sutis. Porém, como apreender a diferença do
"trabalho" de Ictino face ao trabalho dos demais? Se, aparentemente,
escapamos do anacronismo, isto se deu pelo uso de um termo amplo demais
e, por conseguinte, vago demais. Talvez tenhamos incorrido, aqui, em um
outro erro: utilizamos um "conceito ônibus", capaz de subsumir muitas
determinações, mas a custa de tornar-se tão vago quanto pouco operante.

Estamos, parece-nos, diante de um obstáculo quase intransponível: não há


tradução que seja perfeitamente adequada em termos históricos assim como
não há sinônimos perfeitos. Deveríamos, então, desistir da tarefa porque
não haveria instrumentos disponíveis para tal, ou porque, simplesmente,
seria impossível? Trata-se de uma aporia irredutível? Sob este aspecto,
narrar historicamente um evento da Grécia Antiga é tão difícil quanto
traduzir a poesia de Homero... Mas, assim como a tradução é realizada sob
certas condições, também a narrativa histórica, obedecendo a certos
critérios lexo-lógicos, pode ser realizada. Voltemos, então, a sentença
com a qual tentamos responder a nossa questão sobre a arquitetura grega,
e talvez a circunscrevêssemos com maior propriedade se a enunciássemos
assim: Ictino foi o arquiteto do Partenon. O itálico, apesar de não
indicar uma posição de hierarquia, nem uma anterioridade de alguns
eventos face a outros, marcaria a dimensão histórica do evento, a
distância que nos separa dos gregos de então, a própria passagem dos
séculos e a fragilidade de todo documento face a realidade a ser
construída – o itálico seria responsável, então, por elucidar e
evidenciar a diferença entre archetekton e arquitetura. (7)

Os romanos

Os arquitetos romanos passam, frequentemente, por herdeiros da


arquitetura grega, responsáveis pela continuidade lógica de uma tradição
construtiva fértil e rica. Esta compreensão da arquitetura romana, se
apresenta a inegável vantagem de tornar mais fácil a narrativa histórica,
na medida em que privilegia a continuidade em detrimento da ruptura, e
porque encontra a sua corroboração nos próprios objetos arquitetônicos,
tem a desvantagem de negar, de forma implícita ou explícita, a autonomia
de uma arquitetura reconhecidamente sofisticada e de incrível diversidade
tipológica.

De uma forma geral, contentamo-nos em conhecer a pintura e a escultura


gregas pelas manifestações romanas – no caso da pintura é a única forma
possível de experiência, uma vez que nada, ou quase nada, teria restado
da produção grega. Houve uma profissão de pintor, como os textos nos
indicam, mas pouco conhecemos dos objetos. Este conhecimento indireto e,
obviamente analógico, parece ter surgido a partir desta visão mais geral
de se estudar a produção artística romana desde o ponto de vista grego.
Aproxima-se, de alguma forma, o objeto desconhecido do objeto que se
conhece, e, assim, passa-se a "conhecê-lo"... Mas adormece neste
procedimento metodológico uma estranha contradição: reconhece-se a
primazia, justamente, do objeto que não se conhece senão a partir daquele
que é menos prezado... Ora, isto equivale a dizer: "Vejo, pelos
exemplares romanos, que a pintura grega – que eu jamais vi – era muito
superior"... Neste caso, a superioridade dos gregos em relação aos
romanos – na ausência dos objetos gregos com que se pudesse fazer uma
análise e um cotejamento mínimo – reside em uma simples construção
ideológica: a primazia cabe sempre à anterioridade, porque este conceito
indica uma originalidade, isto é, está ligada à origem. Em alguns casos
esta construção ideológica toma a forma de importantes omissões: a
História da Estética de Raymond Bayer, que trata até de algo descrito
como a Estética Pré-Histórica, em um capítulo intitulado: Despertar da
consciência estética e pré-história, no qual as pinturas rupestres são
analisadas a luz de conceitos modernos, como podemos ler nesta curta
frase: "Isto com vista a fins práticos, sem dúvida, mas talvez para
ilustrar qualquer ideia de belo" (8); omite, no entanto, o que seriam as
reflexões estéticas dos autores latinos. O que esta ausência indicaria?
Que os "homens das cavernas" possuíam mais "pendores artísticos" que os
romanos? Ou que tanto faz, já que se trata de um evidente anacronismo?
Podemos acreditar que esta ausência indica, justamente, um menosprezo em
relação a produção literária e filosófica romana, nos termos em que isto
poderia ser compreendido esteticamente pelo autor.

A contradição analisada torna-se mais insuportável se refletirmos a


produção escultórica romana e a sua relação com a escultura grega.
Novamente acredita-se que a escultura grega teria sido superior às
romanas pelo simples fato de muitas das esculturas romanas serem
compreendidas como cópias de esculturas gregas. O pecado incorrido pelos
romanos teria sido, mais uma vez, a falta de originalidade. No entanto,
se buscarmos a coerência deste argumento, deveremos procurar a
anterioridade da produção escultórica na Antiguidade não nos gregos, mas,
talvez, entre os egípcios... A não ser que acreditemos no mito da
produção cultural grega como algo sempre e genuinamente autóctone, não
podemos permanecer na contradição de maneira confortável, uma vez que a
escultura grega teria se desenvolvido a partir da escultura egípcia. Ora,
por que a escultura da Grécia seria "superior" à escultura do Egito? E,
neste caso, por que não estender este raciocínio e admitir a mesma
conclusão em relação a arquitetura grega e a sua ligação com a
arquitetura romana? Isto é, por que, então, a arquitetura romana não
seria "superior" à arquitetura grega como a escultura grega é considerada
superior à escultura egípcia? Se apenas tudo se resumisse a origens e a
anterioridades...

Estas reflexões linguísticas e históricas que se debruçam sobre objetos


que são estéticos apenas na já referida acepção grega – e, portanto,
originária – de serem objetos sensíveis e materiais, têm a vantagem de
abrir uma clareira e lançar uma renovada luz sobre antigas questões.
Vamos, então, proceder ao seu estudo. Em que sentido foram os romanos
arquitetos? Isto é, qual era o sentido histórico da architectura? Em
relação aos gregos os romanos apresentam, para o historiador, uma grande
vantagem: há ao menos um livro romano conhecido sobre arquitetura, isto
é, sobre aquilo que nós chamamos de arquitetura: De Architectura Libri
Decem, escrito por Vitrúvio, provavelmente no século I a. C. No entanto,
este livro não é nem um "Tratado de Arquitetura", no sentido moderno, nem
uma "História da Arquitetura", tal como empregamos esta expressão; também
não pode ser considerado um "Ensaio sobre Estética", nem tampouco algo
que poderíamos considerar como uma "Teoria da Percepção". Mas, de que
trata Vitrúvio senão, justamente, de arquitetura? ... Ora, se lermos o
autor romano como leríamos Argan ou Benevolo não podemos senão nos
decepcionar... Há pouquíssimas referências no texto latino que poderiam
merecer uma contemplação e um entendimento modernos. Observemos, a este
respeito, a seguinte asserção: "Realmente, a visão persegue a beleza
(...)" (9). Esta asserção, retirada do seu devido contexto, parece nos
fazer acreditar na existência de um princípio estético entre os romanos,
ou, ao menos, em algo que se assemelha ao princípio estético moderno. No
entanto, se a lermos em sua totalidade, e tendo em mente o ambiente
cultural vitruviano, observaremos com correção que se trata tão somente
de uma asserção que introduz algumas lições de ordem construtiva:
"Realmente, a visão persegue a beleza, com cujo prazer, se não nos
encantarmos, pela proporção e pela adição de módulos de correção, que o
que ilude seja ampliado por meio de adaptações, e o aspecto, que seja
remetido aos espectadores rude e sem graça (10). Poderíamos chegar a uma
conclusão semelhante ao lermos esta frase: "Quanto mais alto a vista
galgar para que possa vê-lo, dificilmente transpassará a condensação do
ar, pois a visão em altura, evanescente pelo espaço e esgotada de suas
forças, transmite aos sentidos uma noção incerta das medidas" (11). O
que, inicialmente, parecia ser o anúncio de uma "Teoria da Percepção"
torna-se, na realidade, a justificativa de uma regra construtiva.

Sabe-se que De Architectura Libri Decem apenas muito indiretamente pode


ser compreendido como um "livro de arquitetura" no sentido moderno. O
livro latino estaria melhor compreendido se for descrito como estando
entre o "Manual do Construtor" e a "Arte de Projetar"... Isto é, uma
compilação e sistematização de regras e procedimentos para o bom
exercício da profissão. Este fato não se deve ao já conhecido e celebrado
"pragmatismo dos romanos", mas pertence ao próprio cerne da questão: o
que os romanos compreendiam por arquitetura está muito distante da
compreensão moderna, isto é, da nossa compreensão de arquitetura. Este
fato nos remete a uma questão já abordada anteriormente: apenas podemos
avaliar a produção arquitetônica romana se levarmos em consideração a
architectura...

Os modernos

Pensemos na arquitetura da Era Moderna a partir de um dos seus principais


mitos fundadores: após a dissolução do Império Romano ocidental, o
dilúvio... De acordo com esta interpretação, a Idade Média, um período
histórico longo, rico e variado, mas que não teria sido nada brilhante,
posto que "médio", foi compreendida como a decadência da cultura
ocidental, e, por extensão, de toda a civilização ocidental. Teria
cabido, então, aos homens da Era Moderna o resgate dos altos valores
civilizatórios da Antiguidade Clássica. Este mito recorrente possui, como
todo mito, um panteão de heróis e de fundadores, assim como uma
mitologia. A noção da pretensa superioridade dos primeiros modernos
transformou-se, pela pena de alguns bons autores, na mais absoluta
certeza, em um dogma a ser respeitado, cultuado e, sobretudo,
reproduzido. É a crença, simultaneamente, na ideia de progresso e que
este pode dar-se "aos saltos" – e um "salto" nada desprezível de quase
dez séculos...

A arquitetura medieval ocidental teve que esperar por quase quatro


séculos para ser devidamente estudada e ter os seus valores "resgatados",
para ser apreendida, enfim, como "um objeto estético". Assim, no século
XIX, alguns estetas retomaram em novas bases o que os primeiros modernos
haviam realizado em relação a arquitetura greco-romana, isto é,
interpretaram à luz dos seus valores culturais uma tradição pretensamente
esquecida. A interpretação da arquitetura gótica como um conjunto de
forças, empuxos e tensões empreendida por Viollet-le-Duc se insere neste
panorama – aproximando-a dos valores construtivos do ferro e do vidro, o
arquiteto francês teria tentado "atualizá-la", não mais como simples
formas que poderiam ser copiadas, mas como um conjunto de princípios
construtivos básicos de aplicabilidade universal. Por outro lado, a
nostalgia dos românticos dotou a arquitetura medieval, e, principalmente,
a Gótica, de valores positivos, porque justamente o passado já era quase
um valor positivo per se. Mas não podemos misturar no mesmo cadinho a
postura técnica de Viollet-le-Duc, a estética moralizante de Ruskin, os
romances ditos históricos de Walter Scott e o medievalismo saudosista de
Victor Hugo, há que se estabelecer clivagens e distinções, posto que não
se compreendeu nem se "resgatou" a arquitetura medieval da mesma forma.
No entanto, são estetas que não apenas não viam mais a produção
arquitetônica medieval com menor apreço, mas como já eram capazes de
reconhecer-se – como ocidentais – nesta mesma produção.

Assim, neste ambiente cultural de escritores românticos, estetas


regressivos e pintores simbolistas, forjou-se um revival de antigas e
enobrecidas formas, cuja uma das faces mais visíveis foi, justamente, a
arquitetura Historicista. Na cidade de Paris, lado à lado nos largos
bulevares haussmanianos, conviviam, com respeitosa indiferença, Igrejas
neogóticas e neobizantinas, museus neogregos, teatros neobarrocos e
palácios orientalizantes. Nada mais normal na capital do país cujo
governante via-se como a encarnação do tio, ele mesmo já um revival
neoclássico.

Mas, como se sabe, este revival, apesar da sua consolidação acadêmica,


estava fadado a durar pouco. Não houve romantismo que pudesse legitimar
construções góticas em plena Era Industrial, e, o que um dia foi
compreendido como uma espécie de "liberdade estética de escolha" tornou-
se um vício insuportável para os estetas arautos do Modernismo. A
"arquitetura dos estilos", como era conhecido o Historicismo, não se
produziu sem as suas construções ideológicas. Mas, se no início havia,
por parte de alguns arquitetos, uma desconfiança agressiva em relação ao
passado, este sentimento acabou por ceder o seu lugar a uma desconfiança
mais refinada, e, sobretudo, mais seletiva... Se era necessário refundar
a arquitetura, como prática e como disciplina, era importante, então,
localizar no tempo e no espaço os seus marcos iniciais.

Se os arquitetos gregos e romanos foram agraciados com este título, coube


aos arquitetos medievais uma designação menos nobre: mestres-construtores
(12)... Ora, se o léxico – em uma perspectiva hodierna e sincrônica –
permite esta construção, a história do léxico – ou seja, um breve estudo
diacrônico da palavra –, no entanto, a contraria: nem os gregos, nem os
romanos e nem os medievais foram arquitetos no sentido moderno, não sendo
possível, portanto, designar nenhum destes com a palavra arquiteto tout
court, sem as devidas referências históricas e culturais. Se a distinção
apontada acima não é marca do mesmo desprezo que definiu a Idade Média,
na sua totalidade, como um período "obscuro", de pouco "progresso
científico e artístico", torna visível, no entanto, a seleção e a
escolha. E, se o que os gregos e romanos faziam era arquitetura e não,
exatamente, arquitetura, quais são os critérios que circunscreverão este
último léxico?

O historiador italiano Giulio Carlo Argan, um dos maiores no panteão


mitológico, define a arquitetura a partir, justamente, do desenho. Ora,
sabe-se que gregos e romanos desenhavam, tendo a tradição construtiva
latina nos legado, através de Vitrúvio, uma nomenclatura ligada à sua
prática: ichnographia, orthographia e scaenographia, traduzidos,
respectivamente, por planta, elevação e perspectiva. Ou seja, se é o
desenho, como mediação intelectual entre o desejo humano e a sua
efetividade concreta, que vai nos conduzir à fundação moderna da prática
arquitetônica, tal como pensam a maioria dos historiadores, caímos,
então, em uma contradição assaz interessante: se todos desenhavam, tendo
o projeto em arquitetura uma história mais longa do que normalmente se
supõe, como distinguir os gregos e romanos dos modernos? A resposta para
este embaraço é simples: não se distingue gregos e romanos dos modernos,
mas dos medievais... Em primeiro lugar, não se define o desenho dos
antigos como projeto, mas simplesmente como uma prática ligada à
arquitetura de então, prática que é mencionada no intuito de diferenciá-
la da prática moderna. Isto é, o desenho dos antigos é definido não a
partir de algo que seria a sua "positividade", mas da sua negação: o
desenho dos romanos não é, ainda, o "projeto". Estabelece-se uma
continuidade histórica sugerindo a ideia de progresso, e, com isto,
constrói-se a própria ideia de Renascimento...

Há o caso mais específico de Argan, em cujo panteão brilha a figura de


Brunelleschi como o herói fundador da arquitetura, isto é, como aquele
que separou definitivamente o momento da criação daquele ligado à
execução, a partir da criação do "projeto" (13). A este respeito, leiamos
a seguinte asserção:

“[Brunelleschi] Percebeu que, para substituir uma prática


esquecida, era necessário criar um sistema; que, não podendo
contar com a perícia tradicional dos mestres-de-obras, o projeto
deveria eliminar a priori todo imprevisto ou acidente; que,
sobretudo, devia sub-rogar uma experiência e um engajamento
individuais” (14).

Temos, nestas curtas frases, a síntese histórica operada pelo historiador


italiano: autor e ação se definem em um caráter de premente necessidade;
com o "declínio técnico da mão-de-obra" surge o "projeto" como a prática
que separa, socialmente, mestres-de-obras decadentes de arquitetos em
ascensão... O maior problema ligado a esta construção tão corrente é que
não havia, ainda, o projeto tal como nós conhecemos. Os arquitetos de
então, tal como o próprio Brunelleschi, serviam-se de modelos e desenhos,
que, a seguir, eram, como reconhece Argan, interpretados... Quisessem os
arquitetos renascentistas que os seus "projetos" – isto é, os seus
modelos, desenhos e desenhos em perspectiva – fossem executados de acordo
com os seus desejos artísticos teriam que manter-se vivos durante a
execução da obra e zelar pela interpretação dos nem sempre zelosos
mestre-de-obras.

Podemos sempre interpretar o "projeto" ao qual alude o historiador


italiano como uma espécie de "atitude mental", a qual, mais tarde, teria
dado origem ao projeto tal como o conhecemos. Mas, se assim for, e se o
tal "projeto" não existiu materialmente, estaremos diante de uma espécie
de "filosofia", e não, exatamente, de uma prática arquitetônica. Isto é,
estaremos nos referindo ao vago e vasto plano das ideias, tais como
capitalismo, revolução burguesa e outros conceitos amplos o suficiente
para neles caber o mundo.

Voltemos, então, à importante questão da seleção histórica: ora, por que


não compreender os mestres construtores medievais em um registro próximo
aos dos mestres renascentistas? Por que a ruptura se instala, com a
precisão de um corte cirúrgico, justamente com o Renascimento florentino?
Por que esta forma de narrativa seria superior às demais? E, sobretudo,
por que estender uma longa linha de continuidade que vai de Brunelleschi
e Alberti até nós? Seiscentos anos podem ser compreendidos como um único
bloco temporal, dividido cronológica e didaticamente em períodos de mais
ou menos cem anos? Linhas contínuas em história são como frentes de
batalha – quanto mais longas mais difícil se torna operacionalizá-las – e
mais complexa se torna a linha de suprimentos que se estende por vastas
regiões... Isto é, procede-se com frequência à simplificações e a
reducionismos de todo o tipo... Mas, como se sabe, a história é uma
construção realizada por meio de generalizações e de analogias e,
portanto, aquelas que apontamos não seriam diferentes de muitas outras.
No entanto, o que tentamos fazer é, justamente, compreender os limites de
uma tal narrativa, e isto significa tentar compreender o significado
desta escolha narrativa.

Como vimos, Argan "fundou" a arquitetura como prática moderna a partir do


conceito de projeto como separação entre intelecção e execução. E esta
escolha tem, como se pode facilmente deduzir, motivações e implicações
ideológicas. Inicialmente, poderíamos refletir a seguinte questão: o que
separaria tão radicalmente os mestres construtores medievais dos mestres
renascentistas? Talvez o termo que melhor conviria seria este: a
escritura... Ora, pouco conhecemos da biografia artística e intelectual
dos construtores medievais, assim como também temos pouco acesso aos seus
métodos construtivos e a suas preferências estéticas. O Le carnet de
Villard de Honnecourt é uma exceção – assim como o De Architectura Libri
Decem vitruviano – e, como tal, se não justifica nenhuma regra, ao menos
deixa-nos entrever o ambiente, por assim dizer, "cultural", no qual se
trabalhou. E ali, como em muitos "livros de arquitetura", podem ser
encontrados muitos desenhos: desde representações de santos, profetas e
outras figuras retiradas da mitologia bíblica, até plantas baixas e
esquemas construtivos só muito recentemente reconhecidos como tal. E se
isto não é suficiente para colocar o autor medieval no sagrado panteão
dos tratadistas de arquitetura, isto se deve mais à opção realizada pelos
historiadores: o que não pode ser compreendido desde o conceito de
moderno – criado, aliás, por eles mesmos – deve ser banido e eliminado da
narrativa. Villard de Honnecourt, não sendo renascentista e nem sequer
italiano, não logrou penetrar no seleto e fechado clube dos pioneiros
fundadores da ideia de arquitetura (15). Esta prática teria começado,
como se sabe, com Brunelleschi. Ora, o que teria faltado ao mestre
construtor francês para a sua inclusão no clube? Faltaram-lhe,
justamente, um Vasari, um Alberti, assim como, no século XX, teria lhe
faltado um escritor refinado e influente como Argan. Faltou-lhe,
portanto, escritura.

Não tendo sido descoberto senão em 1825, na cidade de Paris, o Carnet não
se tornou um tema literário para os modernos, e coube ao ambiente
cultural neogótico a criação das condições da sua recepção (16). Isto
significa que as possibilidades para a sua assimilação e inclusão na
narrativa histórica não foram colocadas senão muito tardiamente, ao passo
que os escritos dos italianos tiveram uma boa penetração entre as classes
instruídas da Europa já desde o século XV. Um outro fator interessante, e
que vai afastar o texto medieval dos seus correlatos italianos, é a sua
própria condição de escritura: enquanto os tratados de arquitetura dos
séculos XV e XVI foram escritos em latim ou na língua vulgar das classes
dominantes, o que facilitava a sua recepção e transmissão, o texto
medieval foi escrito em uma língua vulgar, o Picardo, e não em latim ou
na língua vulgar falada na região de Île-de-France, a qual torna-se-ia, a
partir de 1539, a língua administrativa do Reino da França.

Não estamos a afirmar que o Carnet de Villard de Honnecourt pertença ao


mesmo ambiente cultural que teria forjado os tratados arquitetônicos
italianos, e que as formas de ambos seriam semelhantes, apenas afirmamos
o caráter ideológico que preside a narrativa da História da Arquitetura,
escrita por interesses diversos que se escondem por detrás do véu de uma
suposta "objetividade científica". Pensando desde esta perspectiva, o
corte cronológico chamado de Renascimento, efetuado a partir de 1300,
1350 ou 1400 (17), conforme o gosto e os interesses de cada historiador,
excluiu de forma dramática uma longa e rica tradição construtiva, e não
foi reservada aos seus praticantes nem mesmo o uso da palavra arquiteto,
título de nobreza reservado somente para aqueles que estavam próximos, de
alguma maneira, à classe dirigente florentina.

Conclusão

Aqui finalizamos o nosso percurso e ofício de respigadeira, recolhendo os


grãos que a historiografia ocidental não quis ou não pôde incorporar à
sua colheita – trata-se de uma história na qual predominou a
continuidade, mesmo quando este procedimento não conseguia incorporar
vastos períodos cronológicos e vastas superfícies territoriais. Assim,
pouco importa se a tradição arquitetônica medieval teria de ser
compreendida em outro registro, na medida em que se tratava de escolher e
reconstruir rituais, práticas discursivas e mentalidades, costurando-as
em uma trama mais ou menos urdida. Os gregos, inventores da palavra,
tornaram-se, quase sem mediações nem ressalvas, os inventores da coisa, e
esta, por sua vez, a partir dos romanos, que a teriam ampliado e
divulgado no mundo ocidental, foi tomada como paradigma estético.

Isto é, ou se diz apenas arquitetura, sem as necessárias ressalvas e


contextualizações, ou se estabelecem cortes e recortes que acabam por se
tornar arbitrários e excludentes em relação à totalidade dos objetos a
serem estudados. No primeiro caso, temos os "manuais de história da
arquitetura", os quais apresentam o grave defeito de estudar fenômenos
completamente diferentes e diversos a partir da mesma compreensão teórica
– o resultado é, na maioria das vezes, uma homogeneização de fenômenos
que são, na realidade, bastante heterogêneos entre si. No segundo caso,
temos o surgimento de uma história da arquitetura que, a força de excluir
elementos incômodos ou indesejáveis, parece querer indicar a existência
de uma hierarquia nos fenômenos ditos artísticos, na qual uns objetos são
tratados como brilhantes figuras em um panteão de heróis, ao passo que
outros são relegados à uma zona vaga, uma espécie de limbo histórico.

Ora, se uma História perfeitamente objetiva, sem heróis nem excluídos, é


uma falácia, e se o ato de narrar é, desde o princípio, uma tomada de
posição, isto é, uma perspectiva, implicando uma escolha e uma seleção de
objetos a incluir e a excluir, deve-se esperar, ao menos, que as
condições a partir das quais a história é narrada sejam explicitadas
desde o princípio. Afinal, como a própria clivagem em História e Pré-
História indica, História é escritura.

notas

1
Publicado em: Interpretar arquitetura, v. 7, 2004.

2
POLIÃO, Marco Vitrúvio. Da arquitetura. Tradução: Marco Aurélio Lagonegro. São
Paulo, Hucitec/Annablume, 2002.

3
DEBRAY, Régis. Vida e morte da imagem: uma breve história do olhar no ocidente.
Petrópolis, Vozes, 1989, p. 102.

4
XENOFONTE. Ditos e feitos memoráveis de Sócrates. Tradução: Jaime Bruna, Líbero
Rangel de Andrade, Gilda Maria Reale Strazynski, 5ª edição. São Paulo, Nova
Cultural, 1991, p. 116.

5
LAWRENCE, A. W. Arquitetura grega. Tradução: Maria Luiza Moreira de Alba. São
Paulo, Cosac & Naify, 1998, p. 128.

6
NIETZSCHE, Friedrich. Introduction à la lecture des dialogues de Platon. 2ª
edição. Paris, l`éclat, 1998, p. 7.

7
O historiador francês Paul Veyne, ao discutir a obra de Foucault, coloca esta
questão nos seguintes termos: "Primeira consequência: tal referente não tem
tendência a tomar esse ou aquele rosto, sempre o mesmo, a vir a ter tal
objetivação, Estado, loucura ou religião; é a famosa teoria das
descontinuidades: não existe "loucura através dos tempos", religião ou medicina
através dos tempos. A medicina anterior à clínica só tem o nome em comum com a
medicina do século XIX, alguma coisa que se pareça um pouco com o que se
entende por ciência histórica no século XIX, nós o encontraremos não no gênero
histórico, mas na controvérsia (ou, dito de outra forma, o que se assemelha ao
que chamamos de História é a Histoire des variations, livro, aliás, sempre
admirável e leitura que se devora, e não o ilegível Discours sur l`histoire
universelle.) Em resumo, em uma certa época, o conjunto das práticas engendra,
sobre tal ponto material, um rosto histórico singular em que acreditamos
reconhecer o que chamamos, com uma palavra vaga, ciência histórica ou, ainda,
religião; mas, em uma outra época, será um rosto particular muito diferente que
se formará no mesmo ponto, e, inversamente, sobre um novo ponto, se formará um
rosto vagamente semelhante ao precedente. Tal é o sentido da negação dos
objetos naturais: não há, através do tempo, evolução ou modificação de um mesmo
objeto que brotasse sempre do mesmo lugar" (VEYNE, Paul. Como se escreve a
história. Tradução: Alda Maria e Maria Auxiliadora Kneipp. 4ª Edição. Brasília,
UnB, 1998, p. 268-269). Seguindo o pensamento de Foucault tal como nô-lo expõe
Veyne, poder-se-ia dizer que, assim como não há nem medicina nem loucura
através dos séculos, também não há uma arquitetura nem uma arte através dos
séculos.

8
BAYER, Raymond. História da estética. Tradução: José Saramago. Lisboa, Estampa,
1979, p. 15.

9
POLIÃO, Marco Vitrúvio. Op. cit., p. 98.

10
Idem, ibidem.

11
Idem, p. 101

12
O termo do idioma português "mestre construtor" é ainda mais complicado
ideologicamente que o original francês – nesta língua se diz maître d`oeuvre,
tradução do termo latino magister operarium, ou, na língua vulgar: maistre
masson – porque parece sugerir uma artificial divisão entre arquitetura e
construção. Sobre estas questões lexicais e históricas remetemos o leitor aos
seguintes artigos, escritos pelo historiador francês Jean-Michel Mathonière: Le
plus noble et le plus juste fondement de la taille de la pierre, L`architecte
au Moyen-Age: un ouvrier sorti du rang e Le livre muet des cathédrales. Estes
três artigos podem ser consultados no site http://perso.wanadoo.fr/jean-
michel.mathonière/html/Accueil/accueil.htm. Ver, igualmente o dossier Les
bâtisseur de cathédrales publicado na revista Histoire, n° 249, Dezembro, 2000.

13
O historiador, igualmente italiano, Leonardo Benevolo, chega a mesma conclusão:
teria cabido a Brunelleschi a "invenção da arquitetura renascentista". Em seu
admirável livro sobre a arquitetura clássica o arquiteto brasileiro Elvan Silva
comenta, com muita propriedade, esta questão: "Essas duas categorias, o rigor
intelectual e o domínio do traçado, devem ser destacadas, pois são essenciais
na concepção de uma arquitetura considerada civilizada e culta, atributos
negados, pelos eruditos italianos do Renascimento, à arquitetura medieval, que
tinham por bárbara. Há, evidentemente, fortes componentes xenófobos,
chauvinistas mesmo, nesta qualificação" (SILVA, Elvan. A forma e a fórmula:
cultura, ideologia e projeto na arquitetura da Renascença. Porto Alegre, Sagra,
1991, p. 120).

14
ARGAN, Giulio Carlo. Clássico anticlássico: o Renascimento de Brunelleschi a
Bruegel. Trad.: Lorenzo Mammì. São Paulo, Companhia das Letras, 1999, p. 96.

15
O chamado mestre-construtor gótico já gozava de uma função e um reconhecimento
social bem semelhantes aos dos arquitetos renascentistas, isto é, era
responsável por um trabalho mais intelectual do que mecânico. Observemos, a
este respeito, as duras palavras do predicador Nicolas de Briard proferidas em
1261 em um sermão, dirigidas contra estes trabalhadores: "Nestes grandes
edifícios, é comum ter um mestre principal que dá ordens pela palavra e que
raramente faz um trabalho manual, e, no entanto, recebe salários mais
consideráveis que os outros" (Apud.: PEVSNER, Nikolaus. Panorama da arquitetura
ocidental. Tradução: José teixeira Coelho Netto e Silvana Garcia. São Paulo:
Martins Fontes, 1982, p. 85). Atentemos para o fato de que estas mesmas
palavras que foram dirigidas "contra" os mestres construtores, apenas um século
mais tarde poderiam ter sido dirigidas "a favor" de Brunelleschi ou Alberti.

16
Estas "descobertas" não são, obviamente, casuais, e assim como coube aos
eruditos do Renascimento italiano a "descoberta" do texto de Vitrúvio, foi o
ambiente neogótico que possibilitou que o manuscrito do mestre construtor
picardo pudesse ser compreendido e assimilado.

17
Uma interpretação assaz interessante e original foi posta por Lewis Munford: "A
fim de compreender a cidade pós-medieval, é necessário que nos guardemos contra
a interpretação ainda em moda da Renascença, como um movimento no sentido da
liberdade e do restabelecimento da dignidade do homem. Na realidade a
verdadeira renascença da cultura europeia, a grande época da edificação de
cidades e do triunfo intelectual, foi aquela que começou no século XII e
alcançou a sua apoteose simbólica na obra de Um Aquino, de um Alberto Magno, de
um Dante, de um Giotto. Entre aquela revivescência e a revivescência clássica
do século XV, havia ocorrido um grande desastre natural: a Peste Negra do
século XIV, que varreu entre um terço e metade da população, segundo
estimativas mais conservadoras. Ao chegar o século XVI, aquelas perdas haviam
sido reparadas; mas a solução de continuidade resultante da peste foi acentuada
por uma redução da vitalidade comunal, como aquela que se verifica após uma
guerra exaustiva" (MUNFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens,
transformações e perspectivas. Tradução: Neil R. da Silva, 4ª Edição. São
Paulo, Martins Fontes, 1998, p. 376-7). Segundo o nosso autor, temos, então, um
Renascimento que se iniciaria no século XII, e que teria sido interrompido pela
peste negra no século XIV; e, após este desastre de dimensões formidáveis,
teria havido uma "fase intermediária" que culminaria em um período de plena
consolidação, já no século XVII, designada usualmente por Barroco.

sobre o autor

Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima, arquiteto e urbanista, Mestre em Estudos


Literários pela Universidade Federal do Espírito Santo, Doutor em Arquitetura e
Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São
Paulo, autor do livro: Arquitessitura; três ensaios transitando entre a
filosofia, a literatura e arquitetura. Professor Assistente da Universidade
Estadual de Maringá, Departamento de Arquitetura e Urbanismo

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