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Colepio: Linguagem/Critica ' OSWALD DUCROT Diresdo: Charlotte Galves Eni Pulcinelli Orlandi Eni Pulcinelli Orlandi (presidente) Marilda Cavalcanti Paulo Otoni O DIZER E O DITO Revisdo Técnica da Tradugto: Eduardo Guimaraes FICHA CATALOGRAFICA Dados de Catslogagio na Publicaso (CIP) Internacional (Cimara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Consetho Editorial: Charlotte Galves Ducrot, Oswald. ‘0 dizer e 0 dito / Oswald Ducrot ; revisio técnica da tradusio Eduardo Guimaries, — Campinas, SP : Pontes, 1987. (Linguagem/critica) Bibliografis ISBN 85-7113-002-7 L. Lingusgem — Filosofia 2. Linglistica 3. Semintica 1. Titulo. I. Série. epp4o1 “410 87-1898 412 Indices para catélogo sistemitico: 4, Linguagem : Filosofia 401 1 2. Linguistica 410 3. Semintica : Lingtistica 412 1987 Capitulo VIII ESBOGO DE UMA TEORIA POLIFONICA DA ENUNCIACAO I. 0 objetivo deste capitulo & contestar e, se possfvel, substituir — um postulado que me parece um pressuposto (geralmente implici-| to) de tudo 0 que se denomina atualmente “lingtifstica moderna”, termo que recobre ao mesmo tempo o comparativismo, o estrutura- lismo © a gramética gerativa. Este pressuposto é 0 da uricidade do sujeito falante, Parece-me, com efeito, que as pesquisas sobre a lin-[/ ‘guagem, hé pelo menos dois séculos, consideram como ébyio — sem sequer cogitar em formular a idéia, de tal modo ela se mostra evi- dente — que cada enunciado possui um, € somente um eutor, Uma crenga andloga durante muito tempo reinow na teoria lite- réria, e nfo foi questionada explicitamente sendo a partir de uns cin- giienta anos, notadamente depois que Bakhtine elaborou 0 conceito de polifonia, Para Bakhtine, hd toda uma categoria de texios, € nota- | damente de textos literérios, para os quais € necessério reconhecer // que vétias vozcs falam simultaneamente, sem que. uma dentre_elas. || seja preponderante e julgue as outras: trata-se.do que ele chama, em oposigio & literatura clissica ou dogmética,.a-literatura_popular, ou. ainda carnavalesca, e que as vezes cle qualifica de mascara dendo por isso que 0 autor assume uma série de méscaras diferentes. Mas esta teoria de Bakhtine, segundo meu conhecimento, sempre foi ) aplicada a textos, ou seja, a seqiiéncias de enunciados, jamais aos enunciados de que estes textos so constitufdot nfo chegou a colocar em dtivida o postulado ‘lado isolado faz ouvir uma tinica voz. _-_E justamente a este postulado que ew gostar Para mostrar até que ponto ele esté ancorado na tradigao lingufstica, 161 ( chamarei a atencdo rapidamente para uma pesquisa americana, que, no préprio momento em que esté para abandoné-lo, reestabelece-o in extrimis, como se se tratasse de um dogma intocdvel. Tratase do estudo de Ann Banfield (1979), sobre o estilo indireto livre. Rom- pendo com a descrico habitual de estilo indireto livre como uma das, formas do discurso relatado, Ann Banfield vé nele a expressio de um ponto de vista, que pode nfo ser o da pessoa que é efetivamente, ‘empiricamente, autor do enunciado, e ela emprega o termo “sujeito de consciéncia” para designar a fonte deste ponto de vista. Mas, alcan- ‘sando este ponto, quer dizer, o momento em que uma pluralidade de sujeitos poderia ser introduzida no enunciado, Banfield formula dois princfpios que descartam a ameaca. Ela coloca inicialmente que, para tum dado enunciado, s6 pode haver um sujeito de consciéncia, colo- cando de imediato no dominio do anormal os exemplos que fariam aparecer uma pluralidade de pontos de vista justapostos ou imbrica- dos. E em seguida, para tratar os casos em que 0 sujeito de conscién- cia nfo 6 0 autor empfrico do enunciado, diz que ndo hé locutor nestes enunciados. Certamente nfo censurarei Banfield — muito a0 contrétio — por distinguir 0 locutor, ou seja, 0 set designado no enunciado como seu autor (através, por exemplo, de marcas da pri- meira pessoa), € 0 produtor empirico, ser que nfo deve ser levado ‘em conta por uma descrigao lingifstica preocupada somente com indi- ccagdes seménticas contidas no enunciado, O que censurarei em Ban- field € a motivagio que a leva a esta distinglo, a saber, o cuidado fem manter a qualquer prego a unicidade do sujeito falante, jé que este mesmo cuidado — depois de té-la levado a fazer abstragio do produtor empirico (posigao que & também a minha) — vai levé- decisées que gostaria de evitar. Quando o sentido de um enunciado comporta a indicago incontestvel de um locutor (atestada pela pre- senga de pronomes de primeira pessoa) mas que, no entanto, 0 enun- ciado exprime um ponto dé vista que nfo pode ser identificado a0 do locutor — por exemplo, quando alguém tendo sido chamado de imbecil, responde “Ah, eu_souum imbecil, muito bem, voce _vai ver...” — Banfield é obrigada a excluir estas “retomadas” do cam- "po do estilo indireto livre considerando-as um dos modos do discurso relatado (desctevendo 0 “eu sou um imbecil” do discurso precedente ‘como um “voce diz que eu sou imbecil”). Gragas a tais exclusdes, ela pode formular um prinefpio segundo o qual, quando hé um locutor, ‘este 6 necessariamente também o su nfo tem outra justificative, a meu ver, sendo salver uma unicidade 162 to de conscincia, prinefpio que | el admitida a priori como um dado de bom senso: “nfo se pode, em uum enunciado que se apresenta como préprio, exprimir um ponto de vista que néo seja 0 préprio”. Os estudos de Banfield sobre o estilo indireto livre forafa recen- temente discutidos em detalhe por Authier. (1978) e’Plénat (1975). Estes dois estudos colocam em diivida os dois principios“tim enun- ciado — um sujeito de consciéncia” e “se hé um locutor, ele , idén- tico a0 sujeito de consciéncia”. Minka propria teoria da polifonia, que deve muito aos dois autores. que acabo de citar, visa a construit um quadro geral onde se poderia introduzir sua critica a Banfield, quadro que constitui ele mesmo, digo-o desde jé, uma extensio_(ba tante livre) & lingifstica dos trabalhos de Bakhtine sobre.a-literatura_} 11, Gostaria, inicialmente, de definir_a_disciplina — chamo-a tpragmética semantica”, ou. “pragmética lingiifstica”— no interior da tica a ago humana em geral, 0 termo pragmética da linguagem pode servir para designar, neste conjunto de investigagdes, as que dizem respeito & ago humana realizada pela linguagem, indicando suas con- digdes € seu alcance. O problema fundamental, nesta ordem de estu- dos, € saber porque € possivel servir-se de palavras para exercer uma influéncia, porque certas palavras, em certas circunstincias, sfo dote- das de eficécia. & 0 problema do centuriio do Evangelho, que se es- panta por poder dizer a seu criado “venha!”, € 0 ctiado vem. F tam- bém a questo tratada por Bourdieu (1982), questo que esté, na ver- dade, no dominio da sociologia, e sobre 0 qual 0 lingitsta, enquanto lingiiista, tem pouca coisa a dizer — exceto se ele cré em um poder intrinseco do verbo. Mas, uma vez colocado de ado este problema, resta um outro, que me parece, este sim, propriamente lingiifstico, e que faz parte justamente do que chamo “pragmética lingifstica”. N&o se trata mai do que se faz quando se fala, mas do que se considera que a fal segundo © proprio enunciado, faz. Utilizando um enunciado interro- gativo, pretende-se obriger, pela propria fala, a pessoa # quem se dirige a adotar um comportamento particular, o de responder, e, do mesmo modo, pretende-se incité-lo a agit de uma certa maneira, se se recorre a um imperativo, etc. O ponto importante, a meu ver, € ‘que esta incitagdo para agi ou esta obrigagao de responder sto dadas como efeitos da enunciagao. © que generalizarei dizendo que todo 163 ( ‘enunciado traz consigo uma qualificacao de sua enunciagfo, qualif cagio que constitui para mim o sentido do enunciado. O objeto da\ pragmética semantica (ou lingiistica) é assim dar conta do que, se-| gundo o enunciado, é feito pela fala. Pata isto, & necessdrio-descrever- sistematicamente-as-imagens-de-ernmiciac20" que 880" v is pelo emunciado. IIT. Para Jevar a bom termo esta descrislo, parece-me necessé- rio estabelecer e depois manter (mesmo se isto custa um pouco) uma \(\ istingGo rigorosa entre “o enunciado” ¢ a “frase”. O que eu chamno |} “frase” € um objeto te6rico, entendendo por isso, que ele nfo per- | tence, para o lingiista, ao dominio do observavel, mas constitul uma fnvengéo desta ciéncia particular que é a gramética. O que o lingtista pode tomar como observavel ¢ 0 enunciado, considerado como a ma- {| nifestacio particular, como a ocorréncia hic ef nunc de uma frase. ‘Suponhamos que duas pessoas diferentes digam (“faz bom tempo”, ou que uma mesma pessoa o diga em dois momentos diferentes: encon- | framo-nos em presenga de dois enunciados diferentes, de dois obser véveis diferentes, observaveis que a maior parte dos lingtiistas expli- | cam decidindo que se trata de duas ocorréncias da mesma frase de ‘uma Iingua, definida como uma estrutura lexical e sintética, e da qual se supde que ela € subjacente. i Dizer que um discurso, considerado como um fendmeno obser- vavel, € constitufdo de uma seqiiéncia linear de enunciados, € fazer a hipétese ("hipétese externa”, no sentido definido no Cap. IIT) de / que © sujeito falante o apresentou como uma sucesso de segmentos ” ‘em que cada um corresponde a uma escolha “relativamente aut6no- ‘ma” em relagio & escolha dos outros. Direi, entaio, que um intérprete, para segmentar em enunciados um dado discurso, deve admitir que esta segmentagdo reproduz a sucesso de escolhas “relativamente au- tOnomas” que o sujeito falante julga ter efetuado. Dizer que um dis- curso constitul um s6 enunciado é, inversamente, supor que 0 sujeito falante © apresentou como o objeto de uma tinica escotha, Falta precisar agora a nogo de “autonomia relativa” da qual acabo de me servir. Ela esté, para mim, na satisfagdo simultfnea de duas condigdes, de coesio e de independéncia. Hé coesio em um segmento se nenhum de seus segmentos ¢ escolhido por si mesmo, quer dizer, se a escolha de cada constituinte € sempre determinada pela escolha do conjunto. £ 0 caso de uma seqiitncia como Pedro estd 164 ‘aqui, pelo menos quando se admite que as trés palavras que a cons- {uem so escolhidas para produzit a mensagem total, ¢ que @ ocor- réncia da palavra Pedro, por exemplo, néo se justifica pelo simples desejo de pronunciar 0 nome de Pedro. Mas € também o caso para a prépria palavra Pedro, na medida em que o aparecimento dos fo- rnemas que a compéem € motivado somente pelo desejo de formar 0 nome completo Pedro. Para evitar ter de considerar esta ocorréncia de Pedro como um enunciado, deve-se, entio, acrescentar & coesio, uma segunda condicfo, que chamarei “independéncia”. Uma seqiién- cia € independente se sua escolha nao ¢ imposta pela escolha de um ‘conjunto mais amplo de que faz parte. O que exclui imediatamente a palavra Pedro tal como aparece na seqiiéncia analisada. Alguns exemplos. Quando, para inciter & temperanga uma pes- soa muito gulosa, se Ihe recomenda “Coma para viver!”, 0 coma nio constitui um enunciado, porque € escolhido somente para produzir a mensagem global: 0 sujeito falante nao deu primeiro 0 conselho “co- ma!” ao qual teria actescentado em seguida a especificagéo “para vviver”. Mas se a mesma seqiiéncia serve para aconselhar a um doente sem apetite a comer pelo menos alguma coisa, o coma deve ser com- preendido como um enunciado, assumido pelo sujeito falante, e refor- ado em seguida por um segundo enunciado que tre Para apoiar o conselho dado. Comparemos os dois A: O Pedro, a gente néo tem visto muito, B: Mas como!. Eu o vi esta manhi,/A propésito, ele acaba de comprar um carro. ‘A: Eu acho que Pedro esté com problemas de dinheiro neste ‘momento. B: Mas como!. Eu o carro. i esta manha. Ele acaba de comprar um No primeito dislogo, o Ew o vi esta manhd atende & condiglo de independéncia. Néo se pode admitir que B tenha primeiro procurado dar a conhecer que ele tinha encontrado Pedro, mensagem que tem uma fungio por si s6, j& que foi suficiente replicar ao que dissera A. No segundo diélogo, ao contrério, 0 segmento Eu o vi esta manhd dado s6 como uma preparagio destinada a tornar mais confiével a informaglo que vem em seguida, e escolhida em virtude da decisio de fornecer esta informacio. Nao hé, entiio, a independéncia exigivel 165 de um enunciado (0 conectivo a propésito, que aparece no primei- 10 diflogo © que seria impossivel no segundo, tem entre suas fun- 6es, exatamente, marcar a dualidade dos enunciados — mesmo quen- do ele serve para mascarar hipocritamente que o sujeito falante que: ria, desde 0 “dizer 0 segundo enunciado). N.B. — Esta definigéo do enunciado pela autonomia relativa, ela propria fundada no duplo critério de coesdo © independéncia, leva a duvidar que se possa segmentar em “texto” em uma pluralidade de enunciados sucessivos. O que se chama “texto” é na verdade, ha tualmente, um discurso que se supde ser objeto de uma tinica escolha, cujo fim, por exemplo, jé € previsto pelo autor no momento em que redige 0 comeso (caracteristica que leva Barthes (1979) a negar ‘tie um disrio intimo possa constituir num texto). Assim, um poema dificilmente poderé aparecer como algo diferente de um enunciado ‘inico se for caracterizado, ao modo de Jakobson, pela enumeragio de ‘um paradigma cujos diferentes elementos esto dispersos ao longo do desenvolvimento sintagmético. Conclusio idéntica, no que diz respei to a uma peca de teatro se se admite, de acordo com a tese de A. Reboul-Moeschler (1984), que ela traz, ao lado da fala que as per- sonagens se dirigem umas as outras, uma fala do autor ao ptiblico. Porque esta segunda fala, que constitui a linguagem teatral propria- mente dita, manifesta escolhas cuja expresso pode estender-se em ‘uma larga seqiiéncia tinica, e em todo caso ir muito além das répli- cas das personagens. Um exemplo elementar é fornecido pelo que Larthomas (1980, p. 316), chama as “dialogias cruzadas”, Cléante © ‘seu eriado Covielle se lamentam separadamente, no ato III, cena 9, do Bourgeois Gentilhomme, de suas decepgdes amorosas, mas suas réplicas, auténomas se se considera 0 diélogo entte as personagens, figadas do ponto de vista da linguagem teatral, Cf. Cléante: Que ii versées & ses genoux!” — Covielle: “Tant de seaux i tirés du puits pour elle”, otc *. IV. Assim definido — como fragmento de discurso ciado deve ser dis da frase, que € uma construc ta, e que permite dar conta dos enunciados. Na base da ciéncia lin- giilstica hé, com efeito, a decisio de reconhecer nos enunciados rea- lizados hic et nunc, todos diferentes uns dos outros, um conjunto de * Cléonte: “Quantas légrimas derramei em “Tantos baldes 166 centidades abstratas, as frases, em que cada-uma & suscetivel de ser manifestada por uma infinidade de enunciados, Fazer a gramética de uma lingua é especificar e caracterizar as frases subjacentes aos enun- ciados realizados através desta lingu: Insisto na idéia de que a separacio entre a entidade observével © a entidade te6rica néo diz respeito a uma diferenca empfrica entre estas duas entidades, em que uma seria de ordem perceptiva ea outra de ordem intelectual, mas a uma diferenga de estatuto metodolégico, que , pois, relativo ao ponto de vista escolhido pela pesquisa: para tum historiador da gramética, a frase, tal como a concebe um dado gramético, € um observével, enquanto que para este gramético ela ceria um principio explicativo. Por isso ndo seria posstvel fundamen- far-se em critétios intuitivos, em uma espécie de “sentimento lingi tico”, para decidir se vérios enunciados realizam ou nfo a mesma frase: a mera identificago das frases mobilize, ao contrério, uma teoria, Iustrarei esta idéia com um exemplo escolhido em virtude de seu aspecto paradoxal, ¢ relativo a um problema te6rico assinalado ‘no capitulo VI. Segundo Anscombre e eu, néo € possivel realizar um ato de linguagem pelo simples fato de se declarar explicitamente rea- liz&-o. Ora F. Récanati objetou-nos que se pode efetuar 0 ato de dizer obrigado * através da f6rmula “Eu te digo obrigado”, ou seja, afirmando que se realiza este ato. Para responder a esta objecio, que aa identificar, em certos casos, 0 que os medievais chamavam actus exercitus e actus designatus, nossa tinica solugio era sustentar que 0 predicado que intervém na f6rmula “Eu te digo obrigado” é di- ferente do que designa 0 ato de agradecer [remercier]. Assim, para iro valor da formula é Eu te digo “obrigado”: tr to falante, de se apresentar pronunciando: “Obrigado!”, Tese que conduz a dizer que os enunciados transcritos “Digo obriga- do!” podem resultar de duas frases diferentes. Uma comporta o pre- dicado [dizer “obrigado”] significando pronunciar a palavra “Obriga- dot”. Ela aparece no didlogo: — AaB: Vamos, diga obrigado a C! * Em Portugués nfo hé entre obrigado e agradecer as relagtes existentes (istéricas, derivago delocutiva) entre merci e remercier em frances. Mas ps jumentagio aqui desenvolvida a tradugo nfo traz maiores difi- ‘culdades. (N. do T.) 167 ) ciagao nos capitulos I, III e IV). B, pois, cor — B a C: Vocd foi muito gentil. — A a B: Nao, diga obrigado! A outra frase, cujo predicado [dizer — obrigado] significa a rea- lizagio do ato de agradecer [remercier] aparece em: — AaB: Vamos, diga obrigado a C! — Ba C: Voc8 foi muito gentil. — AaB: Ainda bem! Estes dois diélogos de forma nenhuma provam, insisto neste pon- ‘que nos encontramos diante de duas frases distintes: certamente ficam explicados se tal dualidade for admitida, mas poder-se-ia decidir ‘que hé neste caso duas utilizagdes diferentes de uma mesma frase. Se escolhemos, Anscombre © cu, dar a estes didlogos um valor discrimi- natério [discriminante] € porque, de uma maneira geral, nossa tese sobre a performatividade nos obriga a supor que ha na lingua dois predicados diferentes [dizer “Obrigado”] © [dizer-obrigado] 0 que torna plausfvel, em contrapartida, que enunciados “Digo Obrigado” possam ser a manifestagio de duas frases distintas. (Este exemplo discutido nas pp. 122, 123 e 130). V. Da frase © do enunciado distinguirei ainda “a enunciacio” /Trés acepgdes pelo menos podem ser atribufdas a este termo. Ele pode primeiramente designar a atividade psico-fisiolégica im- plicada pela producéo do enunciado (acrescentado-the eventualmente © jogo de influéncias sociais que @ condiciona). Este no 6 0 tipo de problemas que considero como meus — 0 que nao implica, é enhuma desvalorizagéo de tais problemas, mas somente a hipdtese ( dé que os meus podem ser tratados separadamente, Em uma segunda \ acepeio, a enunciagao & o produto da atividade do sujeito falante, quer dizer, um segmento de discurso, ou, em outros termos, 0 que acabo de chamar.“enunciado” (tal é 0 sentido dado a palavra_enun- qiie ficarei, © que designarei por este termo € 0 acontecimento cons- | € dadp existéncia antes de se falar © que néo existiré | / ima coisa que nfo exis - depois. # esta apariggo momentanea que chamo “enunciagao”. Ressaltar-se-6 que no fago intervir na minha caracterizagéo da enun- 168 ciagdo a nogio de ato — a fortiori, néo introduzo, pois, a nogio de _ “unr sujeite autor da fala ¢ dos ates. de fala, Nao" digo qué @ enuncia- ‘gio € 0 ato de alguém que produz um enunciado: para mim ¢ sim- plesmente o fato-de-que-umenunciado aparece, e eu no quero tomar nivel nigGes_preliminares, em relagéo ao pro-_| p eds enanclada NEG halo que osc ws AE oe ToS jornar menos estranha minha nogfo de enunciagéo (0 que s, nem necessério nem suficiente para legitiméta), assin | larei simplesmente que expresses muito banais fazem as vezes alusio \a um conceito da mesma ordem, Suponhamos que eu relate a voces ‘uma conferéncia que tenha assistido ¢ durante a qual um certo X interveio para fazer uma pergunta a0 conferencista. E possivel que feu comente 0 fato dizendo-hes, por exemplo: “Esta intervengio me surpreendeu muito". Meu enunciado pode ser compreendido de diver- sas maneiras. O que et qualifiquei de surpreendente pode ser 0 pré- prio contedido das palavras de X, 0 que ele diz. Pode ser também 0 desempenho apresentado por X, as qualidades intelectuais, morais, articulatérias que ele apresentou a0 falar. Mas pode tratar-se igual- mente do acontecimento enuinciativo que presenciei (portanto a enun- ciagio, no sentido definitivo acima): eu estou surpreso por tal dis- ‘curso ter podido se dat, seja porque nao é habitual, na sua forma ou ‘no seu teor, seja, simplesmente, porque normalmente nenhuma inter- vengio € tolerada em conferéncias deste tipo. (O que precede nfio im- plica de modo nenhum, de minha parte, a idéia bizarra — e espero que nio me tenha sido imputada — que um enunciado possa ape- recer por geracéo espontinea, sem ter na sua origem um sujeito fa- ante que procura comunicar alguma coisa a alguém, este sigo sendo precisamente o que denomino o sentido. Mas acontece que tenho ne- cessidade, era sonstruit uma tors do sentido, una teria do que € comunicado, de um conceito de enunciagio que néo encerre em si ‘deste inicio, @ niocho de sujeito Talante). Reegeeot VI. Em correlagio com a oposigao da frase e do enunciado, devo agora introduzir a diferenca entre a significagio e o sentido — espe- cificando que escolho estas duas «iltimas expressées de modo absolu- tamente arbitrétio, sem me referir a seu emprego na linguagem ordi- néria ou na tradigfo filos6fiea. Quando se trata de caracterizar seman- ticamente uma frase, falarei de sua “significacdo”,e reservarei a Palavra “sentido” para a caracterizagio semAntica. do. enunciado. ee 169 Oy we “tempo es Entre 0 sentido e a significagio hé para mim, ao mesmo tempo, uma diferenga de estatuto metodolégico e uma diferenga de natureza. De estatuto metodolégico porque, no trabalho do lingiiista semanticista, o tido pertence ao dominio do observavel, ao dom{nio dos fatos: 0 ato que temos de explicar 6 que.tal_enunciado.tem-tal(is) sentido(s), (Ses), O que nao | pe espero que seja desnecessério acrescentar, que tomaremos este fato semantico por um dado, fornecido por uma intuigo ou um sen- timento imediatos: como todo fato cientifico, ele € construfdo através | simplesmente as hipéteses constitutivas do fato de- izuidas das hipsteses explicativas destinadas a dar conta dele. E justamente dessas hipéteses explicativas que resulla a ficagto da frase. Para dar conta de modo sistemético da associagio | “observada” entre sentidos e enunciedos, escolho associar as frases realizadas pelos enunciados um objeto tedrico etiquetado “significa- go”. A manobra me parece interessante na medida em que suponho possivel formular leis, de um lado para calcular a significagio das frases a partir de sta estrutura Iéxico-gramatical, e de outro lado para prever, a partir desta significagio, 0 sentido dos enunciados. Independentemente mesmo desta diferenga metodoldgica, estabe- leca, entre 0 sentido e a significacio, uma diferenca de. natureza, Quero assim fincar pé contra a concepsao habitual segundo a qual ‘0 sentido do enunciado € a significagao da frase temperada por alguns ingredientes emprestados a situacio de discurso. Segundo esta con- cepgdo, se encontrariam pois, no sentido, de um lado a significagio € de outro os acréscimos que The trazem a situagéo. Por mim, recuso — sem que possa aqui justificar tal recusa — fazer da significago ‘uma parte do sentido. Prefiro representé-la como um conjunto de instrugbes dadas &s pessoas que tém que interpretar os enunciados da frase, instrugées que especificam que manobras realizar para associar tum sentido a estes enunciados. Conhecer a significagio da frase por- tuguesa subjacente a um enunciado "O tempo esté bom” € saber 0 ‘que 6 necessério fazer, quando se esté em presenga deste enunciado, para interpreté-lo, A significago_contém, pois, por exemplo,, uma lando. © que explica que um enunciado do tipo “o no pode ter por sentido que esté fazendo tempo bom em qualquer parte do mundo, mas significa sempre que faz ‘bom tempo, em Grenoble, ou em Paris, ou em Waterloo, ete, ou seja, 170 de_que lugar_fala 0. locutor,-e— no lugar sobre © qual 0 locutor fala ¢ que pode freqiientemente, mas nem sempre, ser 0 lugar de onde ele esté falando. Do mesmo modo, a significagio de uma frase no presente do indicativo prescreve a0 interpretante determinar um certo perfodo — que podé ser de dura- 0 bastante diversa, mas deve incluir 0 momento da enunciaséo — e relacionar a este perfodo a asseryao feita pelo locutor. A natureza instrucional da significagio aparece nitidamente quan- do nela se introduzem, como Anscombre.e ett fazemos. sistematica- mente, “varidveis argumentativas”. Um exemplo de variével argumen- tativa tum pouco diferente daquelas (mas e mesmo) com que temos apresentado a nogio: a descricao semantica das Trases francesas con- tendo 0 morfema trop *. Que se diz quando, a propésito de um objeto , enuncia-se uma frase do tipo O est trop P** onde O é uma des- ctigdo do objeto e onde P é um adjetivo exprimindo uma propriedade, a P-idade?. Sem pretender ser exaustivo, direi que tal enunciado tem, centre outras caracteristicas, a de ser refutativo (sobre os diferentes modos da refutagdo ver Moeschler, 1982). Seu autor se apresenta co- mo considerando uma proposi¢o r, € como refutando-a através des- te enunciado, que tende, entio, para uma conclusio nao — r. E cle apresenta como razio decisiva contra r 0 fato de que O ultrapassa tum certo grau D de P-idade, abaixo do qual se poderia ainda, ou ‘mesmo, em certos casos, se deveria admitir r: o grau D aparece assim como um limite argumentativo. O que, nesta descricéo, ilustra minha concepgdo da frase, & 0 caréter de variével argumentative que pos- sui a conclusdo r. Uma frase do tipo O est trop P, ndo estaria dizen- do qual € 0 r contestado por tal ou tal de seus enunciados, mas ela apresenta um aviso, quando se vai interpretat um enunciado desta frase, para se procurar que r determinado o autor do enunciado tinha fem mente, A significagio da frase no constitui, pois, um contetido intelectual, ou seja, objeto de uma comunicagéo possivel. Certamen- te cle atribui a P-idade de O um grau excessivo, mas no hé excesso Por si mesmo. E’somente em relacdo a uma certa conseqiiéncia argu- ‘mentativa que af pode haver excesso, € a frase ndo estaria dizendo qual é esta conseqtiéncia; tudo 0 que diz a frase € que € necessério determinar se se quer constituir o sentido do enunciado, ou seja, se se quer descobrir 0 “algo” que 0 sujeito falante busca comunicar. Nes- © sentido no aparece, portanto, como a adigio da demasiado, (N. do T.) ++ 0 & muito (demasiado) P. (N. do T:) 171 ¥ signiticasio c de alguma outra coisa mas como uma construcio reali ly zada, levando em conta a situagio de discurso, a partir das instrugdes & “especificades” na significagao. VIT. Em que consiste este, sentido’ do enunciado, que o lingiista { gostaria de explicar a partir da sighificagao da frase?. A concepgio de ntido sobre a qual fundamento meu trabalho no é, propriamente 97 falando, uma hipstese, suscetivel de ser verificada ou falscada, mas resulta sobretudo de uma decisio que justifica, unicamente, o traba- Tho que ela tora possivel. Ela consiste em considerar-o-sentido-como uma_descri ic v ciado, Idéia paradoxal na aparéncia, j4 que supde que toda enuncia- gio faz através do enunciado que veicula, referencia a si mesma. Mas esta autoreferéncia nio é mais ininteligivel que aquela que todo livro faz a si mesmo, na medida em que seu titulo, parte integrante do li- vro (como 0 enunciado é um elemento da enunciaclo), qualifica o livro como um todo, Nem mais ininteligivel também que a expressio pela presente (inglés: hereby) que, inserida em uma carta ("Solicito- vos pela presente que..."), serve para qualificar a fungio da carta tomada na sua to A frente alguns detalhes sobre as indicagdes forneci- iado relativamente as fontes da enun (indica. | ges contidas, segundo meu ponto de vista, no sentido do enunciado), mostrar Como o enunciado assinal na medida em que € imposstvel substituir, no seu interior, uma defi- nigdo tdo pouco precisa de um ato ilocutério qualquer, pela expresso “alo A". Admitamos, por exemplo, a titulo de definigio, que ordenar seja “apresentar sta enunciago como obrigando o outro a fazer algu- ‘ma coisa”, Como sustentar, entéo, que 0 sentido do enunciado Jussi vv, 0 que & comunicado ac interlocutor, € que sujeito falante faz 0° ato de ordenar, a saber, que ele “apresenta sua enunciagéo como obrigando. .."?, © sentido do enunciado € simplesmente que # enun- ciagdo obrige... Quando um sujeito falante faz um ato ilocut6rio, © que ele faz saber ao interlocutor é que sua enunciaglo tem tal ou tal virlude juridica, mas nao que apresente como tendo esta vite tude *. O semanticista, que descreve 0 que 0 sujeito falante diz de sua enuneiagéo no enunciado, nao pode, pois, introduzir em suas descrigdes do sentido a indicagio de um ato ilocut6rio, mas uma ca- racterizagdo da enunciagéo vinculada ao enunciado, e que leva a com- preender porque 0 sujeito falante pode efetivamente, ao produzir o ‘enunciado, realizar 0 ato. Vé-se, por isso, porque chamo “pragmati- 4! cas” minhas descrigfes do sentido dizendo que’ sentido é algo que |) se comunica ao interlocutor: estas descrigdes so pragméticas na me- | — A | dida em que levam em conta o fato de que 0 sujeito falante realiza ’ ‘tos, mas realiza estes atos transmitindo ao interlocutor um saber — que € um saber sobre sta prépria enunciagio. Para fixar a termino- logia, ditei que interpretar uma produgéo lingifstica consiste, entre utras coisas, em reconhecer nela atos, e que este reconhecimento se faz atribuindo ao enunciado um sentido, que é um conjunto de indi- cages sobre a enunciago. CS j4 que € 0 objeto préprio de uma concepgao polifénica_do “=| gio de diversas voresMas gost 16 estudo da argumentasio fornecerd, um segundo exemplo da que 0 a, serenade 5 ven. emancrnan a manele &, maneira pela qual o sentido pode apresentat a eniinciagao. Anscombre indicafOUTTOs aspectos desta_representacdo.Dizer-que-um_enunciado_ | © eu temos sustentado freqiientemente que 0 efeito, em uma frase, de segundo os termos_da_filosofia-dalinguagem,-umaforsa_ilo-. | morfemas cotho quase, apenas, pouco, um pouco, etc, & de impor cer- e para mim dizer que ele atribui a sua enunciagéo um poder tas restrig6es sobre o potencial argumentativo dos eventuais enuncia- “juridico", o de obrigar a agir (no caso de uma promessa ou uma doa deata frase. Imaginemoe assim uma situacks de dleure em que ordem), o de obrigar a falar (no caso da pergunta), 0 de tornar Ifcito 0s interlocutores~aceitam_Ufi_lugat_comum _geral (um topos no sen-_ © que nfo era (no caso da permissfo), etc. Ter-se-, talver, notado “tide _de_Arist6teleg), no qual quanto. mais. ha, menos sua ) ‘uma diferenga entre esta formulagéo © a que dei em momentos ante titagho 6 lena Be pledsde, ¢ nvenease Se oe ae riores e que eta mais fiel 8 letra de Austin. Eu dizia que um enun- TaD gle Inclins 6 inedoatetc ie sie ae a clado que serve para realizar um ato llocutério A (por exemplo, orde- Ses : nat) tem por sentido indicar que o sujeito falante realiza o ato A por * Esta mesma observagfo fol utilzads, no capitulo 6, pare uma erin do meio deste enunciado, de modo que A é exibido no pr6prio enunciado conceio de performativo explcto. Aqui ela serve, pare discui, de une destinado a realizé-lo, Esta formulasio pareceme agora muito livre, raneira geral, as relagdes ene 0 sentido e 0 Hocutéro. 172 173 se recorreré a0 enunciado de uma frase como “A ganha quase X ruzados por més”, por mais baixa que seja a soma X cruzados — enquanto que o argumento seria adequado substituindo quase por apenas. Para generalizar esta observacdo, atribuimos as frases com a ‘expresso quase X a seguinte propriedade: para que um de seus enun- cindos possa servit para argumentar para uma certa conclusio r (aqui 1 6 “B necessério ter piedade de A"), & necessétio que 0 topos que fundamenta a argumentagio implique que wma quantidade superior a X forneceré razio melhor que X para se admitir r. Ora, no meu exemplo, 0 topos em questo quer, a0 contrério, que quanto mais 0 ‘ganho aumenta, menos a situacdo é digna de pena — o que impede, entio, de se utilizar um quase. ‘Tal como acaba de ser formulado, meu exemplo é, no entanto, muito discutivel, e 6 justamente sua discussio que far surgit a con- cepetio semfintica que defendo nesta exposigio. O que & contestével Ik dizer que, na situagio imagineda, é proibido utilizar um quase para | incitar 0 interlocutor a piedade. J4 que € claro que, muito freqtien- temente ao contrério, se a soma de X cruzados é suficientemente bai: xa, 0 enunciado “A ganha quase X cruzados” poderd apresentar a cfcia desejada, pode ser até que nfo tenha a forma candn ganha apenas X cruzados”. Eu néo deveria dizer que com este enun- ciado nao se poderia incitar & piedade, mas que nfo é possfvel apre- ‘sentar-se como procurando justificar a piedade, ou ainda, na minha “A terminotogi _ como-agumesiande net sido, A argumentago, com feito, muito diferente do esforgo de persuasio, é para mim um ato piblico, aberto, néo pode realizar-se sem se denunciar enquanto tal. Mas isto € dizer que um enunciado argumentative apresenta sua enun- nelusio. Se, pois, se admi= te sentido (0 que me parece tanto mais diftcil d eu o mostrei @ propésito de quase, é utilizado em relago & frase), chege-se & mesma conclusio & qual levaria 0 estudo do ilocutério: 0 sentido é uma qualificago da enuncia¢lo, e consiste notadamente-em— atribuir & enunciago certos poderes ou certas conseqiiénci “Terceiro exemplo: as frases exclamativas — entendendo por isso tanto as interjeigdes (Akt, Xi!) *, quanto as exclamativas “completas” que apresentam, ao mesmo tempo, um tipo de descriglo da realidade Os exemplos em francés sio CHIC!, BOF! (N. do T.) 174 € um torneio exclamativo (Como Pedro é inteligente!). Como descre- ver o que distingue semanticamente seus enunciados dos enunciados que, através de froses indicativas, trazem grosso modo as mesmas in- formagées (Eu estou muito contente, isto nao tem nada de extraordi- ndrio, Pedro é muito inteligente)?. A tradigho lingiistica possul os ter- mos “expressio” e “representaco” para opor estas duas formas de comunicagio. Mas o que se quer dizer exatamente quando se diz. que © autor de uma exclamagéo, “expressa” o que ele sente?. Para definir esta nogio, tem-se conientado habitualmente em falar de um efeito de cidade": a expressio, segundo Bally, ¢ a linguagem da vida, do sentimento, ¢ nfo a do pensamento. Para explicar melhor a intuigo aque leva os graméticos a isolar estes torneios “expressivos”, utilizarei a concepgio de sentido e de enunciagao que me serviu para o ilocut6- € a argumentagao. Que diferenga hé entre exclamar “Como Pedro ¢ inteligente!” afirmar "Pedro € muito inteligente”?. Trate-se, para mim, do modo pelo qual o sujeito falante, em um cetto caso € no outro representa a propria enunciagio que esté realizando, Ao dizer “Pedro € inteligen- te”, pode-se apresentar a enunciagdo como resultando-totalmente-de ‘uma escolha, ou seja, da decisio tomada de fornecer uma.certa infor: magio a propdsito de um certo objeto. Com “Como Pedro € inteli- gente!”, ela € dada, ao contrério, como motivada pela representagto deste objeto: & a inteligéncia mesma de Pedro que parece levar a dizer Como Pedro € inteligentet”. (No caso das interjeigées, um sentimento, sofrimento, prazer, espanto, etc. serve de relé entre a situagio e a enunciaglo; A interjeigo Ah! se dé como provocada pela ‘alegria sentide no momento em que o locutor experimenta um certo fato, como um efeito da alegria: a alegria “explode” nela). Uma objegio possivel se fundamentaré sobre o fato de que as exclamativas servem com freqliéncia na conversagao para responder perguntas: “O que voc€ pensa do Pedro? — Como ele € inteligentel”. Jé me foi ressaltado que mesmo certas interjeigdes, como Xi!, podem {er também esta fungio: “Como vo indo as coisas? — Xi!”. O pro- blema esté em que a resposta, enquanto tal, deve apresentar-se como resultado de uma deci de dar seqiiéncia a pergunta que a ante- vede — 0 que parece incompativel com a naturcza aqui atribulda & exclat que, segundo penso, descreve, 20 contrério, a enunciaso como “escapade” [échappée] a0 seu autor. 175 Para resolver esta contradi¢do, distinguirei 0 tema e 0 propésito pendentemente daquilo que se diz dela. Ora, o sujeito falante que co- das respostas. O tema (no meu exemplo, as qualidades defeitos de munica por seu enunciado que sua enunciagao é tal ou tal poderia Pedro) € aquilo sobre que a resposta deve incidir para poder satisfa- representar a enun ‘como independente do enunciado que a carac: zer a exigéncia de resposta que constitui a pergunta. O propésito & fechnarss cuimetadky 2 lel pie wunciagéo — com- ‘© que se diz concernente a0 tema (o fato de Pedro ser inteligente).. parivel deste ponto de vista, j4 propus esta imagem, a0 titulo e & Seo ato de resposta implica uma decisio do sujeito folante, « de indieagio do autor que, na capa de um romance, nfo poderia “asse- submeter-se ao ato de interrogagio realizado por seu interlocutor, esta verar” que é escrito por Flaubert ¢ se chama Médame Bovary, i que 1° decisio diz respeito escolha do tema, e € deste ponto de vista que icagdes dadas no livro fazem parte do livro. Isto néo signi. uma vez aceito 0 tema, 0 is, que elas no podem ser fals Propésito pode aparecer como imposto ao sujeito falante pela repre- ro no préprio livro, um autor que n&o € o seu) mas que se sentagdo que € feita do tema. Para obedecer as regras da conversacio, dio como infalseéveis, jé que néo sto destacéveis da realidade que ele escolhe responder ao tema proposto pelo interlocutor, mas a forma qualificam. Dé-se 0 mesmo, para mim, com o que é dito, no sentido (nada impede de se atribuir de sua resposta néo resulta mais (ou € sobretudo da ‘de um enunciado, sobre a enunciago do enunciado, Na medida em resultando mais) da escolha, e como imposta, a0 contrétio, ‘que 0 enunciado e seu sentido so veiculados pela enunciacto, as pelo estado de coisas que se relata: decidese responder, mas, pi propriedades juridicas, argumentativas, causais, etc, pot eles atribut- responder, “deixam-se falar” seus sentimentos. A enunciagko €, pois, das a ela, no poderiam ser vistas como hipéteses feitas a propésito ainda, descrit la pela representagéo de uma da enunciaglo, mas como a constituindo. Certamente ninguém esté situago (€ 0 especifico da exclamacio), mas o fato de se representar obrigado a acreditar que a enunciagio apresentada por seu entinciado esta situacio — que é o tema da pergunta e da resposta — € dado como obrigando tem como efeito real obrigar, mas esta colocagéo em ‘como 0 produto de uma decisio conversacional (0 que esté vinculado dtivida nao aparece, no enunciado, como uma possibilidade a ser con- a propria nogio de resposta) siderada, Esta solugdo implica distinguir dois grupos nas interjeigées. Al- ‘gumas, como Xit, sfo compativeis com a idéia de que a representagio , N.B. | — Para caracterizar este estatuto_ particular do sentido, an cisarey decid cio eifcta filets fe elas poder sin” wose™ tenho, em trabalhos anteriores (por exemplo em Ducrot, € outros, tentarse como rerpotat, ouiras (como Ah!) exigem que esta repre: 1980, Cap. I, ¢ aqui mesmo Cap. VII) utilizado 0 conceito de “mos- sentacio surja inopinadamente (e nfo podem aparecer em respostas). trar” que, em filosofia da linguagem, opde-se a0 conceito de “afir- Mas tanto para umas como para outras, ¢ também pata as exclame- mat” [asserter] ou de “dizer”. E comparava o modo pelo qual o enun- tivas completas, o enunciado comunica uma qualificagéo de enum || ciado “mostra” a enunciagdo, & maneira pela qual a interjeigfo mos- ciagio, dada como efeito do que ela inform fa qualificagso da fala por sua causa faz parte do sentido da enunciagio, como sua inaceitével na medida em que mostrar o sentimento pela interje d is prolongamentos (isto 6, disse-o mais acima, como causa da enunciac#o) nao constitui a senfo uma possibilidade particular da caracterizagao da enunciagio ‘VIII. Uma altima especificagio no que concerne ao sentido do pelo enunciado, e, pois, uma forma particular do sentido e isto colo- cenunciado, antes de abordar 0 problema do sujeito da enunciaclo, ou card um problema te6rico complicado, 0 de ter af 0 prototipo de todo ae ‘exatamente do sujeito da enunciaggo tal como se_apresenta_no| este discurso sobre a enunciac&o que constitui para mim o sentido. interior do sentido do enunciado. Esta representagao da enunci ‘A nova concepg&o que acabo de apresentar é inspirada em Berren- PS que constitui o sentido do enunciado, e que s6 através dela ele pode | eid. donner (1981, p. 127 € 88). NB. 2 — Minha decisio de nao considerar o sentido (descriglo { dda enunciagao) como afirmar pelo enunciado € uma das razGes que me levam a recusar a teoria dos performativos explicitos, e notadamente tra 0 sentimento que expressa. Esta comparagio parece-me agora mado, € necessério que um sujeito se apresente como garan- tindo que © que diz corresponda a uma realidade considerada 176 7

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