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CHESTERTONIANOS
O CAMPONÊS QUE
SE TORNOU PAPA
- G. K. Chesterton
The Illustrated London News, 29 de agosto de 1914
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Entre as muitas expressões verdadeiras e tocantes a respeito
da tragédia do Vaticano1, a maioria comentou sobre o fato de que
o falecido Papa era um camponês de nascimento. Ainda assim,
creio que quase ninguém rastreou essa verdade até sua conclusão
mais interessante e até tremenda. Pois a verdade é que o antigo
papado é praticamente a única autoridade na Europa moderna em
que isso poderia ter acontecido. É o trono mais antigo,
incomensuravelmente mais antigo da Europa; e é o único a que
um camponês pode ascender. Nos estados semiasiáticos, há
assaltos e usurpações, indubitavelmente. Mas estas são de
bandidos, não de camponeses: falo do camponês puro que
ascende por puro mérito. Esta é a única monarquia eletiva real
que resta no mundo; e qualquer camponês ainda pode ser eleito
nela.
2
hereditário antigo. Costumava haver muitos déspotas eleitos no
mundo: hoje existem muito poucos. Onde quer que o poder seja
pessoal, é acidental. O mundo moderno acredita na oportunidade
poética e esportiva da primogenitura. Para provar isso, não
precisamos fazer mais do que aludir às circunstâncias terrenas ou
sobrenaturais em que nos encontramos neste momento.
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Mas, em comparação com o caso do falecido Papa, o caso
dos governantes republicanos e “representativos” é igualmente
forte. Não me recordo de que um verdadeiro camponês tenha sido
recentemente presidente na França. Tenho certeza de que um
verdadeiro trabalhador não foi primeiro-ministro na Inglaterra.
Deve ser confessado, temo, que a mais longa e mais lenta de
todas essas escadas de ascensão é a escada da campanha
eleitoral. Existe, é claro, uma pessoa muito respeitável e altamente
conservadora chamada de Membro Trabalhista. Mas quão longe
ele está do trabalhador médio! E como ele ainda está longe do
homem comum da bancada! Na América, suponho (pelo menos
era assim em minha juventude) que existia algo como “Da Cabana
à Casa Branca”. Quando menino, pensava que a mudança de
residência era uma deplorável deterioração no sentido do
pitoresco. Mas, para o bem ou para o mal, existe algum registro
britânico “De Marceneiro à Ministro”? Algum político moderno, por
mais republicano que seja, acha natural imitar Cincinato? Ele, em
algum momento casual, põe de lado o paludamento 2 e volta ao
arado? Ao longo da vida, ele tem a linguagem, a masculinidade e a
inconfundível composição da classe de onde veio? Mesmo nas
altas e heroicas repúblicas, como as da França e da Suíça, pode-se
dizer que o governante é realmente o homem simples no poder?
2 Paludamento, do latim ‘Paludamentum’, era um manto ou capa utilizado pelo alto oficialato
militar de Roma e pelo imperador romano; ficava distintivamente preso ao ombro direito e
simbolizava a posição de autoridade daquele que o utilizava.
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quando todas as novas se quebraram. Ainda é possível obter o
tipo forte, paciente e bem-humorado que mantém a alegria e a
caridade vivas entre milhões, vivas e supremas em uma instituição
oficial. Mas acho que confundiria os parlamentares, os sufragistas,
os representacionistas proporcionais e todos os outros
representantes de nossa complexa máquina me dizer onde mais
isso foi possível: exceto naquele lugar agora vazio.
3 William Butler Yeats (1865-1939), muitas vezes chamado por W. B. Yeats, foi um literato
irlandês, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1923, e um dos principais nomes da
literatura do século XX.
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negam qualquer coisa, terão motivos para agradecer às suas
estrelas (um hábito pagão) pelo camponês naquele lugar elevado.
Ele matou a enorme heresia de que duas cabeças pensam melhor
do que uma, quando elas crescem no mesmo pescoço. Ele matou
a ideia pragmática de comer um bolo e tê-lo. Ele deixou que as
pessoas concordassem com seu credo ou discordassem dele; mas
não deixou que o representassem incorretamente. Era
exatamente o que teria dito qualquer camponês de qualquer uma
de nossas colinas e planícies. Mas havia algo mais nele que não
estaria no camponês comum. Por todo esse tempo ele chorou
pelas nossas lágrimas, ele partiu seu coração pelo nosso
derramamento de sangue.