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I

A aplicação da lei penal no tempo segundo o


Direito português*

JOSÉ LOBO MOUTINHO

SUMARIO: 1. Evolução da questão: a) Das


origens à independência do Brasil 2.b) Da Indepen­
dência do Brasil à actualidade 3. A legislação vigen­
te 4. Os princípios que regem a matéria e sua justifica­
ção 5. O tempus delicti 6. Âmbito do problema 7. O
princípio da irretroactividade ou tempus regitfactum 8.
O princípio da retroactividade da lei penal mais favorá­
vel 8.1. Generalidades 8.2. A distinção entre sucessão
de leis penais e novação da lei penal 8.3. Aplicação da lei
mais favorável e caso julgado 8.4. Outros aspectos 9. A
aplicação no tempo de nova lei sobre prescrição do
procedimento criminal 10. Observação final.

' O texto que agora se publica corresponde, com algumas alterações, àquele que
serviu de base à comunicação apresentada em 20 de Setembro de 1993 nas I Jomadas
Luso-Brasileiras de Direito e Processo Penal que tiveram lugar na Universidade Católica
Portuguesa, em Lisboa. Ao texto acrescentaram-se, não só as correspondentes notas,
como ainda, em cursivo mais pequeno, alguns desenvolvimentos das questões afloradas
na comunicação e cuja publicação não pareceu inteiramente descabida.
78 DIREITO E JUSTIÇA

1. Evolução da questão

a) Das origens à Independência do Brasil

A feliz circunstância de a presente comunicação se fazer no seio de


um encontro luso-brasileiro facilita-me algum tanto a tarefa no que
respeita à questão que importa versar em primeiro lugar, ou seja, às
origens e evolução da ordem jurídica portuguesa na matéria.
Basta, quanto a esse aspecto, notar que, como escreve Silva Ferrão na
Theoria do Direito Penal, oferecida a D. Pedro n, Imperador do Brasil, docu-
mentando-se com decreto de 1695, a irretroactividade da lei penal “foi
sempre o espírito da nossa legislação antes mesmo do regime constitucional”1,
coisa que não espanta se nos recordarmos de que assim se passou ainda
com a legalidade, de que a irretroactividade constitui aspecto ou corolário.

Nega-se, por vezes, que o princípio tenha tido qualquer consagração até ao
liberalismo, pelo menos no sentido que veio modemamente a adquirir2.
Analisando a evolução histórica do princípio da reserva de lei em matéria pe­
nal, Volker Krey, embora sem deixar de analisar os seus antecedentes, apresenta-
-o como um fruto do pensamento jurídico iluminista, quer em geraP, quer no que
respeita aos quatro princípios em que ele se desdobra, a saber: a proibição do Direito
consuetudinário4, a proibição de retroactividade da lei penal menos favorável5, a
proibição de analogia6 e a proibição de leis indeterminadas7.

1 Theoria do Direito Penalapplicada ao Codigo Penal Portuguez.comparado com


o Codigo do Brazil. Leis Pátrias, Codigos e Leis Criminaes dos Povos Antigos e
Modernos, III, Lisboa: Typographia Universal, 1856, pág. 8. A irretroactividade aflora
já num alvará de 18 de Setembro de 1521, de D. Manuel, muito embora, ao que parece,
limitadamente aos factos começados a acusar (cfr. Duarte Nunez do Liào, Leis
Extravagantes, Lisboa: Ed. da Fundação Calouste Gulbenkian, 1987, reprodução “fac-
simile" da edição “princeps” de 1569, foi. 171, v°). O verdadeiro sentido desse alvará não
é, todavia, claro apenas em face do resumo que dele nos dá Duarte Nunez do Lião. Certo
é que se tratava do problema que hoje diríamos ser de alteração do regime penal (e não
de incriminação ex novo).
2 Cf. Teresa Beleza, Direito Penal, I, 2* Ed., Lisboa: AAFDL, pág. 400 e Taipa
de Carvalho, Sucessão de Leis Penais, Coimbra: Coimbra Ed., 1990, pág. 36.
3 Keine Strafe ohne Gesetz, Berlim/Nova Iorque: W. de Gruyter, 1983, pág. 12.
4 Op. cit., págs. 41 e segs..
5 Op. cit., págs. 54 e segs..
6 Op. cit., págs. 73 e segs..
7 Op. cit., págs. 87 e segs..
A APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO 79

No entanto, a grande conclusão do seu estudo é a de que, embora outros


fundamentos lhe possam ser atribuídos, na reserva de lei é “dominante” o carácter de
direito fundamental ou de direito do homem, de modo que ela se deixa derivar, afinal,
da protecção da dignidade humana: trata-se de garantir o cidadão perante um poder
punitivo estadual que ilimitadamente poderia prosseguir todas as necessidades
político-criminais, reais ou aparentes, de punibilidade8.
Esta conclusão coaduna-se mal com a temporalidade que assinala ao princípio.
Na verdade, tal origem ou raiz na dignidade da pessoa humana leva naturalmente a
aceitar que, como escreve Cavaleiro de Ferreira, o princípio da legalidade, tendo
embora surgido com mais clareza, na reacção do liberalismo ao Estado absoluto (isto
é, acrescentamos nós, numa vicissitude, por assim dizer, intra-iluminista), constitui
“expressão perene de uma exigência do Direito”9.
E parece ser precisamente a essa luz que os afloramentos do princípio da
legalidade que se podem identificar em época anterior ao alvor do liberalismo10
mostram todo o seu real significado e alcance.
Na verdade, pressupostos de um verdadeiro e eficaz princípio da legalidade
são, por um lado, a vinculação à lei - e é por isso significativa a negação de tal
princípio no Direito romano pós-clássico, com base no princípio do César a legibus
solutus" - mas ainda, e por outro lado, a vinculação da lei a requisitos materiais de
validade - e são por isso significativos, quer o que se passou na legislação nacional-

8 Op. cit., pág. 139.


9 Cf., por último. Lições de Direito Penal. I. A Lei Penal e a Teoria do Crime no
Código Penal de 1982,4a Ed., Lisboa/S. Paulo: Ed. Verbo, 1992, pág. 54. Também Taipa
de Carvalho explica pela perenidade própria da dignidade humana em que se funda, a
sobrevivência do princípio da irretroactividade da lei penal à ideologia individualista em
que se manifestou (op. cit., pág. 46).
10 Cf. Silva Ferrão, Theoria do Direito Penal. I, Lisboa: Typographia Universal,
1856, pág. 23 e Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal Português. Parte Geral, I, 2’ Ed.,
Lisboa/S. Paulo: Ed. Verbo, págs. 90 e 108, e Lições... cit., pág. 54. Além das fontes
citadas nesses autores - das quais os assentos podem hoje ver-se em Cândido Mendes de
Almeida, Auxiliar Jurídico, Lisboa: Ed. da Fundação Calouste Gulbenkian, 1985,
reprodução fac-simile da edição de 1869, Rio de Janeiro: Typographia do Instituto
Philomathico, págs. 244,247 e 254. Só assim se compreende, de resto, a naturalidade com
que Paschoal de Mello Freire (que inclui a legalidade na definição de delito) atesta, já
no seu tempo, que “fórum nostrum ignorat crimen sine lege. quae factum prohibet, et
ignorat etiam poenam mere arbitrariam'' (Institutiones Juris Criminalis Lusitani, tít. I,
§ IV, nota; cfr. ainda §§ I e XXI; da 5* Ed., Coimbra: Typis Academicis, 1860. págs. 15
e ainda 13 e 26, respectivamente; da tradução em português, cfr. Boletim do Ministério
da Justiça (BMJ), págs. 57 e ainda 55 e 73, respectivamente). Cf. ainda J.J.C. Pereira e
Sousa, Primeiras linhas sobre o processo criminal, Lisboa: Typografia Rollandiana,
1820, §243, n. (450), pág. 183.
11 Volker Krey, op. cit., págs. 39, 51, 72 e 82.
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-socialista alemã12 e na legislação imposta pelas potências ocupantes13, quer a própria


problemática do afloramento do princípio da legalidade que se traduz na proibição
de indeterminação da lei14.
E quanto a estas duas bases, que acabam, afinal, por integrar a exigência de uma
sujeição, mais do que à lei, ao próprio Direito (como distinto e vinculativo para o
conteúdo da própria lei)15, podem os povos peninsulares (e aqueles com quem
entraram em comunidade) ter orgulho no seu passado que, por influência do
pensamento cristão e da própria Igreja, vai encontrar, em ambos os aspectos, as suas
raízes mais remotas ao Código Visigótico e, através dele, a Santo Isidoro de Sevi lha16.
Isto não significa, obviamente, que desde esses remotos tempos o princípio da
legalidade vigorou entre nós constantemente e em toda a sua plenitude.

12 Volker Krey, op. cit., págs. 29 e segs., 48 e segs., 65 e 79 e segs..


13 Volker Krey, op. cit., págs. 33 e segs.; 47 e segs.; 64 e segs.; 83 e segs. e 96 e
segs..
14 Volker Krey, op. cit., págs. 80 e segs.
15 Nunca é descabido lembrar, com Sebastião Cruz que “devem ter sido os juízes
- que se recusavam a aplicar as constituições imperiais, quando injustas, mesmo que essa
atitude lhes acarretasse consequências gravíssimas, como perda do cargo e até pena de
morte -, os que introduziram como termo erudito (e para isso foram à linguagem popular)
derectum (directum) para significar «Direito», a contrapor a ius(«novum») = constituições
imperiais" (Direito Romano (tus romanum), I, 4“ ed., Coimbra, 1984, pág. 32. Cf. ainda
págs. 272-273.
16 Cf. Código Visigótico, tít. preliminar, lei II ("rex eris se recta facias; se non
facias non eris" ) e, quanto aos requisitos da lei, liv. I, títs. I e II, especialmente, tít. I, lei
III e tít. II, lei IV. Em ambos os aspectos, seguia-se a doutrina de Sto. Isidoro que afirmava
que a etimologia de reges procedia da causa "a [regendo et] recte agendo " e escrevia a
respeito da lei: "Erit autem lex honesta, juta, possibilis, secundum consuetudinem
patriae, loco temporique conveniens, necessária, utilis, manifesta quoque, nealiquidper
obscuritatem in captionem contineat, nullo privato commodo, sed pro communi civium
utilitate conscripta " (Ethimologiae, liv. I, cap. XXIX, n° 3, e li v. V, cap. XXI - cfr. Isidori
Hipalensis Episcopi Ethymologiarum, Oxford: Oxford University Press). É neste contexto
que se deve avaliar a afirmação de Manoel Lopes Ferreira segundo a qual “nos Reys
Catholicos não ha poder absoluto, porque he tão regulado pelas Leys da razão, e justiça
o seu poder, e império, que fundando na summa igualdade as suas determinaçoens, e
indultos, conservão nesta rectidão a felicidade dos seus Povos, que no castigo dos
delinquentes, também sentem grandes utilidades (Pratica Criminal, tomo III, Lisboa:
Carlos Esteves Mariz, 1742. pág. 2). Sobre este aspecto, em geral, cf. Cavaleiro de
Ferreira, Direito..., I cit., págs. 67 e segs. eLições... cit., págs43 esegs. e ainda Eduardo
de Hinojosa, Influencia que tuvieron en el Derecho público de su patria y singularmente
en el Derechopenal losfilósofos y teólogos espanoles anteriores á nuestro siglo, Madrid:
Tipografia de los Huérfanos, 1890, passim, e especialmente págs. 27 e segs., 47 e segs.,
114 e segs. e 151 e segs..
A APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO 81

Afirmar que, nas suas bases fundamentais, tal princípio não nasceu do
iluminismo, antes encontrando raízes históricas e filosóficas muito anteriores não
equivale a admitir que tenha nascido, de um jacto, já adulto e armado, como Minerva
da coxa de Júpiter. Pelo contrário, e como é natural, registou uma lenta evolução, nem
sempre linear, na qual, por vezes, se desvaneceu ou foi mesmo ocasionalmente
obliterado. Para dar apenas um exemplo, recorde-se o que sucedeu em certos
processos que tiveram lugar durante o consulado pombalino (a começar pela
farisaica aplicação que dele se fez no chamado processo dos Távoras17), e a propósito
dos quais Lopes Praça pôde afirmar que a lógica dos princípios se casava com a
lógica da história nacionall8. Mas é bom notar que o mesmo não deixou de se verificar
após as proclamações liberais e o iluminismo que as esteou. Basta pensar, não só nos
exemplos referidos por Caeiro da Matta19, como ainda em certas leis revolucionárias
promulgadas após a revolução de 25 de Abril de 1974 a que nos referiremos infra
mais desenvolvidamente.

2. b) Da Independência do Brasil à actualidade

I. Relativamente à evolução do Direito português após a


independência do Brasil, cumpre, antes de mais, atentar no plano
constitucional para salientar que a irretroacti vidade da lei foi expressamente
declarada de modo absoluto e em geral pela Carta Constitucional de 1826
(art. 145°, §§ l°e 2o)20, que dispunha ainda que ninguém seria sentenciado
senão pela autoridade competente, por virtude de lei anterior, e na forma
por ela prescrita (§10°), disposição esta que foi interpretada como

17 Cf. Rui Manuel de Figueiredo Marcos, «A legislação pombalina» in Boletim


da Faculdade de Direito, supl. XXXIII, Coimbra: Universidade de Coimbra, 1990, págs.
103 e segs..
18 Cf. Estudos sobre a Carta Constitucional de 1826 e Acto Adicional. Coimbra:
Imprensa Litteraria, 1878, pág. 40. Também M arcello Caetano transcreve a afirmação
de Cândido Mendes de Almeida segundo a qual das penas atrozes a arbítrio “já não
conheceríamos no século passado (o 18°) a existência se Pombal não nos quissesse dar um
espécime de semelhantes horrores na repressão de conspirações que êle forjara na sua
torva imaginação» (Lições de Direito Penal, Lisboa: O Jornal do Comércio e das
Colónias, 1939, pág. 97).
19 Cf. Direito Criminal Português, I, Coimbra: França Amado Ed., 1911, págs. 45,
nota (1) e 58, nota (1),
20 Os sucessivos textos constitucionais portugueses acham-se compilados em
Jorge Miranda, As Constituições Portuguesas, Lisboa: Livraria Petrony, 1992.
82 DIREITO E JUSTIÇA

incluindo o princípio da legalidade (e, logo, da irretroactividade) da lei


penal21.
Esta disposição, temporariamente substituída pelo artigo 18° da
Constituição de 1838 -que mais claramente se referia ao direito substantivo
— manteve-se na primeira constituição republicana (art. 3o, n° 21° da
Constituição de 1911).
Na sua versão originária, a Constituição de 1933 incluía, entre os
direitos liberdades e garantias individuais dos cidadãos portugueses, o de
“não ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que
declare puníveis o acto ou omissão” (art. 8o, n° 9o)
Esta disposição viria, porém, a ser alterada pela reforma constitucional
de 1971, passando a dizer: “não ser sentenciado criminalmente senão em
virtude de lei anterior que declare puníveis o acto ou omissão, bem como
não sofrer pena mais grave do que a fixada ao tempo da prática do crime,
nem medida de segurança fora dos casos previstos em lei anterior”.
Pode, numa breve síntese, dizer-se que até à actual Constituição, as
constituições portuguesas se limitaram a estabelecer a irretroactividade
da lei penal, tendo a reforma de 1971 procedido ao esclarecimento
desse princípio no que respeita à aplicação de pena mais grave e ao seu
alargamento aos casos em que eram aplicáveis medidas de segurança.

n. A legislação ordinária, porém, foi sempre bastante mais longe


nesta matéria.
Na verdade, desde o Código Penal de 1852 fez acompanhar a irre­
troactividade (arts. 5° do Código de 1852 e 6o, corpo, do Código Penal de
1886) do princípio da aplicação retroactiva da lei mais favorável (arts. 70°
do Código de 1852 e §§ Io, 2o e 3° do art. 6o do de 1886), e quer daquela
que não qualificasse o facto como crime (art. 70°, § único do Código de
1852 e § Io do de 1886), quer ainda daquela que estabelecesse pena mais
leve (arts. 70°, corpo, do Código de 1852 e § 2o do art. 6o do de 188622).

21 Cf., neste sentido, Silva Ferrão, op. cit., I, pág. 23 e III, pág. 8; Lopes Praça,
op. cit., pág. 40; Marnoco e Sousa, Constituição Política da Republica Portuguesa.
Commentario, Coimbra: França Amado Ed., págs. 144 e segs., que restringe a esse
princípio o conteúdo da disposição; Cavaleiro de Ferreira, Lições... cit., pág. 54.
Todavia, quer o seu confronto com o § 2o, quer a sua colocação sistemática deixam lugar
a dúvidas e por isso não espanta que ela tivesse sido interpretada no sentido de que
respeitaria pura e simplesmente ao processo penal (cf. infra).
22 O § 3° do art. 6° do Código de 1886 acrescentou idêntico princípio relativamente
aos efeitos das penas.
A APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO 83

3. A legislação vigente

I. Estes princípios foram recebidos na Constituição actualmente


vigente que, sob a epígrafe aplicação da lei criminal, dispõe no seu artigo
29°: “1. Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude
de lei anterior que declare punível a acção ou omissão, nem sofrer medida
de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior. 2.
O disposto no número anterior não impede a punição, nos limites da lei
interna, por acção ou omissão que no momento da sua prática seja
considerada criminosa segundo os princípios gerais de direito internacional
comummente reconhecidos. 3. Não podem ser aplicadas penas ou medidas
de segurança que não estejam expressamente cominadas em lei anterior.
4. Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança ou medida de
segurança privativa da liberdade mais grave do que as previstas no
momento da conduta, aplicando-se retroactivamente as leis penais de
conteúdo mais favorável ao arguido.”
A redacção actual teve origem na revisão constitucional de 1982
que procedeu à extensão das garantias constitucionais às medidas de
segurança não privativas da liberdade e aos respectivos pressupostos23.

II. O Código Penal de 1982 concretizou estes princípios (se de


forma total ou não é coisa discutida aqui e ali), tendo, nessa tarefa,
consagrado soluções que representam a estratificação de uma longa
evolução jurisprudencial (foi o que sucedeu relativamente às leis
temporárias ou de emergência, que foram objecto do Assento do Su­
premo Tribunal de Justiça de 18 de Julho de 194724) ou doutrinal (foi o
que sucedeu com o problema do tempus delicti25).

4. Os princípios que regem a matéria e sua justificação

De uma forma geral, a doutrina portuguesa distingue, como princípios


que regem a aplicação da lei penal no tempo, o da irrectroactividade da

23 Sobre a questão, cf. Cavaleiro de Ferreira, Direito..., I cit., pág. 106.


24 “A excepção do n° 1 do artigo 6o do Código Penal não é aplicável às infracções
previstas nas leis de emergência” (cf. BMJ, n° 2, pág. 15).
25 Segundo o Projecto publicado, as soluções do Código Penal manter-se-ão na sua
anunciada reforma (cf. Código Penal. Actas e Projecto da Comissão de Revisão. Lisboa:
(Ministério da Justiça) Rei dos Livros, 1993, págs. 545 e 546).
84 DIREITO E JUSTIÇA

lei penal menos favorável (ou, mais latamente, da aplicação da lei vigente
no momento da prática do facto) e o da retroactividade da lei penal mais
favorável26.
Sinteticamente, pode dizer-se que o primeiro princípio é geralmente
justificado não só por considerações derivadas, no fundo, da função
normativa (valorativa e orientadora) da própria lei (que só pode ser regra
de valoração e orientação da vida social, cumprida ou culpavelmente
violada, se estiver vigente)27 mas sobretudo pela necessidade de garantir
as pessoas contra o arbítrio do legislador28. Por seu turno, a retroactividade

26 Cf., entre outros. Silva Ferrão, op. cit.,1, págs. 21 e segs. e III, págs. 11 e segs.;
C.aeiro da Matta.op. cit., págs. 41 e segs. e 43 e segs.; Marnoco e Sousa, op. cit., págs.
145 e segs.; Abel Pereira do Vale, Annotações ao Livro Primeiro do Codigo Penal
Portuguez, Porto; Magalhães & Moniz Ed., s.d., págs. 21 e segs.; Luiz Lopez Navarro,
Direito Penal, Coimbra: Coimbra Ed., 1932, págs. 24 e segs.; Marcello Caetano, op.
cit.,págs. 142esegs.;CAVALEiRODEFERREiRA,Dírei7o...,Icir.,págs. 114escgs.e Lições...
cit., págs. 66 e segs.; Lopes Rocha, «Aplicação da lei penal no tempo e no espaçowín
AA.VV., Jornadas de Direito Criminal, Lisboa: C.E.J., 1983, págs. 91 e segs.; Teresa
Beleza, op. cit., págs. 451 e segs.; Taipa de Carvalho, op. cit., págs. 35 e segs. e 63 e segs.;
Rui Pereira. «A relevância da lei penal inconstitucional de conteúdo mais favorável ao
arguido», in Revista Portuguesa de Ciência Criminal (RPCC), 1 (1991), págs. 60 e segs.
Já Beleza dos Santos, Direito Criminal, (lições colig. por H. Marques), Coimbra:
Coimbra Ed., 1936, págs. 185 e 186 e, em parte, também, Eduardo Correia, Direito
Criminal (colab. de Figueiredo Dias), I, Coimbra: Almedina, 1963, págs. 153 apresentam
uma sistematização um pouco diferente, assente na separação entre os casos de criação
ou extinção da incriminação e os de alteração do regime penal.
27 A formulação sintética tentada no texto nem sempre corresponde directamente
aos termos utilizados a propósito pela doutrina pois, por vezes, chama-se apenas a atenção
para necessidade de prévia advertência do agente (ou, o que é o mesmo, para a
possibilidade de o agente não praticar o facto se estivesse advertido), quer directamente,
quer em correlação com os fins das penas. Cf., por exemplo, Caeiro da Matta, op. cit.,
págs. 41 e segs. (expondo a doutrina da escola clássica da qual se distancia); Marnoco e
Sousa, op. cit., pág. 145; Abel Pereira do Vale, op. cit., pág. 21; Beleza dos Santos,
Direito... cit., págs. 185 e 186; Cavaleiro de Ferreira, por último, em Lições... cit., págs.
65 e segs.; Eduardo Correia, op. cit., págs. 153; Germano Marques da Silva, «Algumas
notas sobre a consagração dos princípios da legalidade e da jursidicionalidade na
Constituição da República Portuguesa» in AA. VV., Estudos sobre a Constituição. II,
Lisboa: Petrony, 1978, pág. 261; Teresa Beleza, op. cit., págs. 453 e segs.; Taipa de
Carvalho, op. cit., págs. 35 a 53; 63 e segs. e 69 e segs.; Rui Pereira, op. cit., pág. 60.
24 Cf., por exemplo, Silva Ferrão, op. cit., I, págs. 21 e segs., que exlui a relevância
do argumento anterior; Beleza dos Santos, op. cit., pág. 185; Marcello Caetano, op. cit.,
pág. 141, que tende a reconhecê-lo como único fundamento; Eduardo Correia, op. cit.,
pág. 153 e 158; Sousa e Brito, «A lei penal na Constituição» in AA. VV., Estudos... cit.,
págs.249 e segs.; Germano Marques da Silva, op. cit., pág. 261; Cavaleiro de Ferreira,
A APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO 85

da lei mais favorável faz-se em regra derivar da necessidade de assegurar


a justificação da pena no momento da sua aplicação e execução, mormente
considerados os seus fins29, sendo ainda por vezes invocada a necessidade
de assegurar a igualdade das pessoas perante a lei30.
Todavia, esta diferença de origem ou de fundamentação não obsta
a que, por vezes, ambos os princípios venham a encontrar um
enquadramento comum, seja pela sua unificação num princípio geral
mais vasto (como o da aplicação da lei mais favorável, radicado no
princípio constitucional da liberdade3'), seja, pelo menos (e de modo não

Lições... cit., págs. 54 e segs., que o inclui no princípio da legalidade e na função de


garantia que este desempenha; Teresa Beleza, op. cit., págs. 451 a 454; Lopes Rocha, op.
cit., págs. 91 e segs.; Castanheira Neves, «O princípio da legalidade criminal. O seu
problema jurídico c o seu critério dogmático» in AA. VV„ Estudos em homenagem ao
Prof. Doutor Eduardo Correia, Coimbra: Universidade de Coimbra (n° esp. do Boletim
da Faculdade de Direito), 1984, págs. 322 e segs., que vê no princípio uma das
manifestações nucleares da função de garantia do princípio da legalidade; Taipa de
Carvalho, op. cit., págs. 35 a 53 e 63 e segs. e 69 e segs., que assinala a esta
fundamentação como a originária e essencial ratio do princípio; Rui Pereira, op. cit.. pág.
60, enquanto lhe assinala “geneologicamente” a origem na legalidade e na concepção
(garantística) da lei penal como magna charta do delinquente; Figueiredo Dias, «Crime
de emissão de cheque sem provisão» in Colectãnea de Jurisprudência (CJ), Ano XVfl
(1992), pág. 71, enquanto o qualifica como corolário do princípio da legalidade e afirma
que por ele se pretendem satisfazer as intensificadas exigências de segurança e certeza.
29 Mais uma vez trata-se de formulação que se pretende sintética. Em regra chama-
-se a atenção para a desnecessidade, inutilidade e injustiça da aplicação de uma pena já
suprimida ou atenuada. Cf., por exemplo, Silva Ferrão, op. cit., III, pág. 11; Caeiro da
Matta, op. cit., pág. 46 (expondo a doutrina da escola clássica da qual se distancia); Abel
Pereira do Vale. op. cit., pág. 22; Beleza dos Santos, op. cit., pág. 186 (mas restritamente
à eliminação do facto do número das infracções, pois defende a plena retroactividade da
lei penal que altere a pena); Marcello Caetano, op. cit., pág. 144 (referindo-se apenas
à eliminação do facto do número das infracções); Cavaleiro de Ferreira, Direito..., I cit.,
pág. 116, referindo-se apenas à eliminação do facto do número das infracções; cf..
todavia, infra)-, Eduardo Correia, op. cit., págs. 154 e 157 (cf., todavia, infra); Assento
do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Novembro de 1975, que falou em “não
verificação actual dos fins das penas” (cf. BMJ n°251 (1975), pág. 78); Teresa Beleza,
op. cit., págs. 451 e segs. e nota (516) (cf., todavia, infra); Lopes Rocha, op. cit., págs. 94
e segs.; Taipa de Carvalho,op. cit., págs. 64 e segs.; Rui Pereira, op. cit., págs. 61 esegs.;
Figueiredo Dias, «Crime...», cit., pág. 71.
30 Cf., por exemplo, Rui Pereira, op. cit., págs. 61 e segs. e «O princípio da
igualdade em Direito Penal» in O Direito, ano 120° (1988), págs. 134 e segs..
31 Assim, por exemplo. Taipa de carvalho, op. cit., págs. 71 e 74-75, apresentando
tal princípio como o resultado de percursos históricos inversos da irretroactividade da lei
penal menos favorável e da retroactividade da lei penal mais favorável. Em doutrina mais
86 DIREITO E JUSTIÇA

radicalmente diferente), pelo reconhecimento de que ambos se acabam


por irmanar na sua função comum de defesa das pessoas perante o Estado
e de limitação deste quanto ao direito de punir, quer do Estado legislador
(em causa na irretroacti vidade da lei menos favorável), quer da Jurisdição
(em causa na retroactividade da lei mais favorável)32'33.
Esta hesitação de algum modo explica o modo variável pelo qual se
procede à coordenação formal de ambos os princípios. Embora não sem
visíveis hesitações, essa coordenação faz-se ou nos termos em que a fazia
literalmente o Código de 1886, ou seja, mediante a indicação do princípio
da irretroactividade como princípio geral, em face do qual a retroactividade
da lei, ainda que mais favorável, aparece formalmente como excepção34,
ou nos termos em que a faz a Constituição e o actual Código Penal, ou
seja, pura e simplesmente, mediante a sua indicação diferenciada sem

antiga surge, por vezes a referência ao (único) princípio da não retroactividade (apenas)
da lei penal menos favorável (cf., por exemplo, Caeiro da Matta, op. cit., págs. 43 e segs.
(expondo a doutrina da escola clássica da qual se distancia), Marnoco e Sousa, op. cit.,
pág. 146 (expondo a doutrina da escola clássica); Luiz Lopes Navarro, op. cit., págs. 22
e segs..
32 Neste sentido, cf. Cavaleiro de Ferreira, Direito..., I cit., pág. 115. Já são,
porém, omissas quanto à questão as Lições... cit., págs. 66 e segs..
33 Contra, cf. Rtn Pereira, op. cit., pág. 60. Por seu tumo, Teresa Beleza, apesar
de considerar que a retroactividade da lei mais favorável não é uma exigência ou
derivação do princípio da legalidade (op. cit., págs. 451 e segs. e nota (516)), vem, no
entanto, a reconhecer que ela tem no fundo um sentido idêntico ao da proibição da
retroactividade relativamente às normas desfavoráveis, sentido esse conexo ao princípio
da intervenção mínima (ibidem, págs. 457 e segs.).
34 Da mesma forma se exprimiram o art. Io do Projecto de Código Penal de 1861
(cf. Codigo Penal Portuguez, II. Projecto da Commissão, Lisboa: Imprensa Nacional,
1861) e o Relatório da Reforma Penal (cf. Revista de Legislação e Jurisprudência (RLJ),
Ano 18o, pág. 273). Na doutrina, cf., por exemplo, Lufs Osório, Notas ao Código Penal
Português, I, 2" ed., Coimbra: Coimbra Ed„ 1923, págs. 46 e segs. (embora indicando
como regra geral a da aplicação da lei vigente ao tempo em que o facto foi praticado); Abel
Pereira do Vale, op. cit., pág. 21; Luiz Lopes Navarro, op. cit., pág. 25; Marcello
Caetano, op. cit., pág. 143 (mas anotando que as excepções obedecem elas próprias a um
outro princípio); Cavaleiro de Ferreira, Lições... cit., pág. 67 (mas já não totalmente em
Direito..., I cit., págs. 115 e segs. - onde, apesar de falar em excepções, as qualifica como
corolários do princípio da retroactividade, que, nessa mesma obra, “irmana" ao primeiro);
Eduardo Correia, op. cit.. pág. 154; Lopes Rocha, op. cit., págs. 94 e 98 e segs.; Gomes
da Silva, Direito Penal, I, lições colig. por J.V.L.F. Pereira, Lisboa: AAFDL, 1952-953,
págs. 168 e segs.; Figueiredo Dias, Direito... cit., pág. 95 e «Crime...», cit., págs. 70e segs.
(embora considerando como princípio o da aplicação da lei vigente ao tempo da prática
do facto).
A APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO 87

mais relação entre elas do que a complementaridade na solução de um


mesmo problema mais vasto35.

I. O forte apego que a doutrina portuguesa36 sempre denotou relativamente ao


princípio da irretroactividade de algum modo explica o nível a que, pelo menos
segundo parte significativa da doutrina, esse princípio se situa na nossa ordem
jurídica e que transpareceu de modo claro na discussão da questão da validade das
disposições da Constituição que pretenderam manter em vigor as normas que
retroactivamente incriminaram os agentes e responsáveis da Polícia Internacional de
Defesa do Estado e da Direcção-Geral de Segurança, extintas após a revolução de 25
de Abril de 1974 (arts. 309° da redacção de 1976, 298° da que resultou da revisão
constitucional de 1982 e 294° da actual redacção).
É que, embora não sem vozes discordantes baseadas na inadmissibilidade de
normas constitucionais inconstitucionais37, parte da doutrina pronunciou-se no
sentido da invalidade dessas disposições constitucionais por violação do princípio da
irretroactividade da lei penal38.
Contra o carácter absoluto que, dessa forma, ao princípio nullum crimen, nulla
poena sine lege se vem a reconhecer, pronunciou-se recentemente Manuel Afonso
Vaz, na base de que “os princípios jurídicos que garantem o homem contra o arbítrio
terão de ceder quando a sua estrita observância significa o arbítrio”39.

35 Neste sentido, e para além, cm certa medida, de Marcello Caetano (op. cit. na
nota anterior) e Cavaleiro de Ferreira (Direito..., I cit., págs. 115 e segs.), cf. Teresa
Beleza, op. cit., págs. 451 e segs. e Rui Pereira, op. cit., págs. 60 e segs..
36 Mesmo a mais marcada pelo positivismo, como Caeiro da Matta, que cingiu
as suas críticas ao plano de iure constituendo (op. cit., págs. 42 e segs.) e, sobretudo,
Henriques da Silva (sobre a doutrina deste, cf. Taipa de Carvalho, op. cit., págs. 41 e
segs. e 49 e segs.).
37 Neste sentido se pronunciaram Gomes Canotilho e, embora porventura não
radicalmente, Jorge Miranda. Cf. Manuel Afonso Vaz, op. cit., págs. 226 e segs..
38 Cf., por exemplo, Castanheira Neves, «A revolução e o Direito. A situação de
crise e o sentido do Direito no actual processo revolucionário», separ. da Revista da
Ordem dos Advogados, (1976), págs. 6 e segs. e 228 e segs. (cf. ainda «O princípio...» cit.,
págs. 323 e segs.); Afonso Queiró, Lições de Direito Administrativo, Coimbra, 1976,
págs. 299 e segs.; entre os pcnalistas. Cavaleiro de Ferreira. «Direito de Defesa» in
Scientia luridica, 1979, II, págs. 315 e segs. e Direito..., I cit., págs. 18 e segs. e 92 e segs.
(cf., todavia, infra). Posição crítica assumiu ainda Germano Marques da Silva, op. cit.,
pág. 262, mas com diferentes fundamentos (cf. infra).
39 Lei e reserva de lei. A causa da lei na Constituição portuguesa de 1976, Porto:
Universidade Católica Portuguesa, 1992, pág. 232.
88 DIREITO E JUSTIÇA

O Autor parte de uma posição assumidamente jusnaturalista e, portanto, da


admissão de que, em parte (ou seja, nos “princípios jurídicos fundamentais que dão
expressão à heteronomia do Direito”40), o Direito não deriva da (e, pois, não está
limitado pela) vontade do legislador, ainda que constituinte, antes se lhe impondo
(reserva do Direito). Desta reserva do Direito resultariam, por um lado, a não
obrigatoriedade das normas positivas contrárias ao Direito (leis injustas)41 e, por
outro lado, a irrelevância dg inexistência das normas positivas exigidas por aqueles
princípios supremos (injusta falta de lei)42.
Donde, a inexistência de incriminação do homicídio ou da escravatura, por
exemplo, não seria relevante43: a injusta falta de lei não retiraria àqueles actos a sua
ilicitude intrínseca44, fazendo surgir no pensamento jurídico o poder e o dever de
afirmar a validade e aplicação do Direito45.
É nesta base que vem a analisar a questão da juridicidade do artigo 294° da
actual Constituição, defendendo que, se se entender que as condutas abrangidas pela
norma retroactiva teriam ferido grosseiramente o Direito, “a “criminalização” retro-
activa é perfeitamente legítima, porque verdadeiramente não se trata de uma cons­
titutiva criminalização, mas de “criminalizar” algo que já o era”; se, porém se entende
que tais condutas ofereceriam dúvidas de ilicitude perante as exigências do Direito,
enquanto tal ilicitude não era clara na ausência de ilícito penal legal, então a crimi­
nalização retroactiva de tais condutas é ilegítima, por violação do princípio do nullum
crimen sine lege, num plano em que ele é verdadeiramente constitutivo da ilicitude46.
A reafirmação, a que o Autor procede, da diferença entre Direito e lei, sem a
qual a ordenação da vida social é integralmente deixada ao poder (então ilimitado)
daquele que, por socialmente mais forte, logra assegurar o manejo dos mecanismos
formais da legislação, é, no Direito constitucional dos nossos dias, da mais crucial
importância pois a consagração constitucional dos direitos fundamentais, do mesmo
passo que, no plano ordinário, formalizou e facilitou a resolução do problema das leis
injustas (ou, o que é o mesmo, da justiça como requisito de validade da norma
jurídica), pode constituir, se conjugado com um entendimento puramente formal do
Direito constitucional, uma garantia de sobrevivência e até de eficácia da redução do
Direito à lei (desde que formalmente constitucional) e da consequente ilimitação do
poder (desde que formalmente constituinte).

40
Op. cit., pág. 239.
41 Op. cit.. págs. 233-234.
42 Op. cit., págs. 235-236.
43 Op. cit., pág. 233.
Op. cit., pág. 235.
43 Op. cit.. pág. 236.
46 Op. cit., págs. 237-238.


A APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO 89

Todavia, a admissão de que, perante situações normativas (derivadas de leis


injustas ou de injustas faltas de lei) que contrariam normas ou princípios cuja
vigência não está dependente nem é limitada pela sua positivação formal (ainda que
de nível constitucional), surge “o poder e o dever de afirmar a validade e aplicação
do Direito” de que expressivamente fala o Autor, não parece poder conduzir à
limitação do princípio da irretroactividade da lei penal e, consequentemente, à
legitimidade do actual artigo 294° da Constituição.
É que o Direito cuja validade e aplicação há o poder e o dever de afirmar é o
Direito vigente no momento da prática do facto e não aquele que posteriormente
entrou em vigor. Quer dizer: nas situações em causa, não há que aplicar
(retroactivamente) o Direito ulteriormente entrado em vigor, mas apenas que
reconhecer a invalidade da norma (ou da situação derivada da omissão da norma) e
aplicar o Direito (natural ou positivamente) validamente vigente no momento da
prática do facto. Não há dúvida de que uma tal solução pode comportar especiais
dificuldades nas situações que o Autor identifica como injusta falta de lei e é nelas
que a solução apresentada se assume como uma possibilidade. Mas nem sempre
assim será, como se verifica se se pensar na revogação ou alteração de uma
incriminação ou na admissão ou exclusão de uma causa de exclusão da ilicitude ou
da culpa, todas necessariamente operadas por normas emitidas e formalmente
entradas em vigor. Ora, precisamente no caso presente parece que há que reconhecer,
com Germano Marques da Silva, que a excepção introduzida era desnecessária sem
que isso implicasse a impunidade dos criminosos, bastando, na maioria dos casos
recorrer às próprias normas incriminadoras do Código Penal e, em última instância,
aos princípios de direito internacional comummente reconhecidos a que se refere o
n° 2 do art. 29“". Na medida, pois, em que incriminaram retroactivamente ou
agravaram as incriminações (natural ou positivamente) vigentes antes delas, tais leis
nada têm a justificá-las e são por completo inadmissíveis48.

II. Ficará esta conclusão prejudicada pela consideração de que há casos em que
as condutas representam “em si mesmas uma ilicitude reconhecível independentemente
de qualquer posição legal” e, nesses casos, a “criminalização” retroactiva é legítima

47 Op. cit., pág. 262.


48 Germano Marques da Silva, na sequência da doutrina exposta no texto, explica
as referidas leis por razões predominantemente processuais de dificuldade de prova dos
factos criminosos, considerando a excepção como um grave precedente que desvirtua a
Constituição (op. cit., pág. 262). E nessa base também as referidas disposições foram
severamente criticadas por Cavaleiro de Ferreira, alegando que a incriminação continha
em si mesma o julgamento e se referia a situações (e não a factos) esgotadas no passado
(cf. Direito..., I cit., pág. 19).
90 DIREITO E JUSTIÇA

porque se trataria, então, não de proceder a uma “criminalização” constitutiva, mas


de criminalizar algo que já é intrinsecamente ilícito?
Na medida em que o Autor aceita que “o tipo de ilícito é sempre, já, a emanação
concretizada de uma antijuridicidade que o precede e o fundamenta”49, a distinção
repropõe a questão esporadicamente surgida na doutrina das relações entre a
irretroactividade da lei penal e a falta de consciência da ilicitude.
Na verdade, o reconhecimento da existência de mala in se (crimes em si, crimes
naturais), por oposição a mala prohibita (crimes meramente proibidos, crimes
artificiais ou de criação artificial ou política) conduziu, por vezes, a defender
limitações da irretroactividade da lei penal50.
Essa interferência, que não se circunscreveria à irretroactividade da lei penal,
mas conduziria, em todo o rigor, a postergar inteiramente o princípio da legalidade
relativamente aos mala in se5', não é, porém, de aceitar. A lei penal não tem por
exclusiva função estabelecer normas de valoração e orientação da vida em sociedade,
mas ainda, pressupondo essa função, a de estabelecer as consequências jurídicas em
que o desvalor do crime se projecta na vida social e regular a sua aplicação e execução
pela Jurisdição. Sendo ou não dispensável para o primeiro aspecto ou momento,
nunca o será para o segundo. E é precisamente a garantia das pessoas neste segundo
momento que está em causa no princípio da legalidade em qualquer dos seus
corolários.

5. O tempus delicti

I. Antes de avançar na exposição dos princípios que regem a


aplicação da lei penal no tempo, convém versar a questão, distinta, do
momento da prática do facto {tempus delicti).
A legislação penal anterior ao actual Código era omissa quanto a ela.
Todavia, a doutrina, salientando a natureza normativa do conceito
de tempus delicti e, portanto, a necessidade da sua determinação em
função dos fins dos concretos institutos para os quais tinha relevo, deu-
-Ihe, como solução geral, a de que o crime, para efeitos da aplicação da

49 Para utilizar as expressões de Figueiredo Dias que o autor aceita (op. cit., pág.
234).
50 Neste sentido, cf„ por exemplo, Caeiro da Matta, op. cit. págs. 42 e segs., na
sequência de Ferri, mas já não Henriques da Silva (cf. Taipa de Carvalho, op. cit., págs.
51 e segs.).
51 Eassimsucedeuhistoricamentccomonota VolkerKjiey,op.cír.,págs. 49 e segs..
A APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO 91

lei no tempo se devia considerar praticado no momento da execução do


facto criminoso, isto é, no momento da acção ou omissão52.
Tal é a solução que hoje em dia consagra expressamente o Código
Penal que, no âmbito da aplicação da lei penal no tempo, estabelece que
o facto se considera praticado no momento em que o agente actuou ou,
no caso de omissão, devia ter actuado, independentemente do momento
em que o resultado típico se tenha produzido (art. 3o) mas consagra
solução distinta quanto à determinação do momento da prática do facto
relevante para efeitos de prescrição (art. 118°).

II. Esta disposição, porém, não é suficiente para afastar certas


dúvidas que, em grande parte, já no domínio da anterior legislação tinham
sido suscitadas, quanto à solução a dar aos crimes permanentes, aos
crimes continuados, aos crimes habituais e ainda ao concurso de crimes.
Quanto aos crimes permanentes, continuados e habituais (e se
pusermos de parte as dúvidas que, nestes casos, se suscitam quanto à
unidade criminosa), a solução mais aceite é a de que, sempre que uma
parte da execução seja cometida durante a vigência da lei nova, esta se
aplica a todo o crime53.

52 Cf., por exemplo, Cavaleiro de Ferreira, por último, em Direito..., I cit., págs.
121 e scgs.; Gomes da Silva, op. cit., págs. 174 esegs.. Cf. ainda Teresa Beleza, op. cit.,
págs. 465 e segs.. Deve anotar-se que no seio da Comissão Revisora, o princípio da
situação temporal do facto de acordo com o momento da acção ou omissão foi considerado
como princípio geral, muito embora admitindo soluções especiais para certos efeitos
parciais (cf. Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal. Parte Geral. I,
Lisboa, separata do BMJ, 1965, págs. 67 e segs.; Lopes Rocha, op. cit.. págs. 102 e 103).
53 Neste sentido, cf., por exemplo, Caeiro da Matta, op. cit., págs. 45 e segs. II,
e pág. 201; Luiz Lopes Navarro, op. cit., pág. 162; Gomes da Silva, op. cit., págs. 178
e segs. (no pressuposto de que se trata de crimes unitários); Sousa e Brito, op. cit., pág.
250; Lopes Rocha, op. cit., págs. 103 e segs. (mas, relativamente ao crime continuado,
tendo em atenção apenas o momento em que ocorreu a conduta mais grave); Teresa
Beleza, op. cit., pág. 476, nota (529), Parece ser o mesmo o sentido das afirmações de
Figueiredo Dias a propósito dos crimes permanentes: “importa considerar que a lei nova
é aplicável, sem retroacti vidade, durante todo o tempo em que a consumação persiste, ou,
dito de outro modo, quando a consumação já teve lugar mas a prática do crime não foi
ainda abandonada ou impedida e, neste sentido, se mantém “(Âs «associações criminosas
no Código Penal Português de 1982 (arts. 287° e 288°)”, Coimbra: Coimbra Ed., 1988,
pág. 76). No mesmo sentido se pronunciou ainda Pereira Teutónio, mas na base de que
o crime continuado é ainda um caso de concurso de infracções (cf. «Interpretação da lei
criminal e sua aplicação no tempo» in Revista do Ministério Público (RMP), Ano3°,( 1982),
vol. 12, págs. 76 e segs.).
92 DIREITO E JUSTIÇA

Esta solução é dada, por vezes, depois de uma espécie de redução do


problema pois, segundo certos Autores, as dúvidas reduzem-se aos casos
em que a nova lei, mantendo a incriminabilidade do facto, lhe altera o
regime, já que, tratando-se de incriminar factos que não eram puníveis,
é necessário que os elementos exigidos pela nova lei se verifiquem
durante a sua vigência e tratando-se de eliminação da incriminação, o
facto deixa de ser punível54.
E mais recentemente, defendeu-se, após redução do problema aos
casos em que a lei nova é menos favorável (na base de que se esta é mais
favorável se aplica retroactivamente)55, a aplicação em princípio da lei
antiga (mais favorável) a não ser que os pressupostos da lei nova (menos
favorável) se tenham verificado completamente na sua vigência56.

A redução do problema, seja numa, seja noutra versão acaba por fazer incorrer
em contradição qualquer das duas opiniões.
Assim, a primeira afirma que tratando-se de incriminação ex novo, a solução
a dar é a de que só se podem ter em conta os factos ocorridos perante a nova lei. Nesta
solução pressupõe-se claramente que se se aplicar a nova lei ao facto desde o seu
início se está a fazer uma aplicação retroactiva. Mas então o mesmo se passa com a
aplicação da lei menos favorável quanto ao regime (nomeadamente, de lei que agrave
a responsabilidade do agente).
De algum modo, a segunda peca pelo lado oposto, isto é, quando afirma que
não há dúvida quando a lei nova é mais favorável, porque então há lugar à sua
aplicação retroactiva. Mas se assim é (e mesmo que se verifiquem no domínio da
nova lei os seus pressupostos), não pode aplicar-se a lei penal menos favorável aos
factos ocorridos antes da sua entrada em vigor.
Desta verificação resulta que, para não prescindir da unidade ou unificação de
tais crimes, não parece haver outra solução senão a de considerar cometido o facto
no momento em que a execução começa, ou melhor, considerá-lo cometido perante
a lei antiga desde que na vigência desta se tenham verificado os elementos necessários
à sua aplicação independentemente de virem a persistir ou a continuar-se na vigência
da nova. Isto evidentemente, não prejudica a aplicabilidade dessa nova lei, desde que

54 Neste sentido, cf., por exemplo, Cavaleiro de Ferreira, por último. Direito...,
I cit., pág. 123; Gomes da Silva, op. cit., págs. 178 e segs..
55 Taipa de Carvalho, op. cit., pág. 60. Também Lopes Rocha procede a
semelhante redução do problema (op. cit., págs. 103 e segs.).
56 Op. cit., pág. 61.
A APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO 93

mais favorável57. A solução seria, assim, exactamente oposta àquela que está
estabelecida, no n° 2 do artigo 118°, em matéria de prescrição, o que não deixa de
jogar em seu favor, já que são também opostas as soluções de princípio estabelecidas
no artigo 3o e no n° 1 do artigo 118°.

III. O problema foi ainda levantado relativamente ao concurso de


crimes, não no que diz respeito à pena a aplicar a cada crime, mas ao
regime penal do concurso de crimes em si mesmo considerado, sendo
resolvido no sentido de que é aplicável ou o regime da lei antiga ou o da
lei nova, dependendo de qual se mostre mais favorável58.

6. Âmbito do problema

Dilucidada a questão do tenipusdelicti convém ainda fazer breve refe­


rência àquilo que se deve entender por lei nesta matéria e, nomeadamente
para chamar a atenção para o facto de que as leis interpretativas em
Direito Penal estão sujeitas aos princípios atrás referidos59.
E quanto aos assentos?
A identidade material de assento e lei interpretativa conduz a
estender a estes a mesma solução60. Mas daí retirou Taipa de Carvalho

57 Parece ter sido neste sentido que evoluiu a posição de Cavaleiro de Ferreira.
Na verdade, apesar de, em obras anteriores, defender claramente a aplicabilidade da nova
lei, no pressuposto de que se tratava de crimes unitários (cf., por exemplo. Direito Penal,
lições colig. por I. Jardim e L. de Freitas, Lisboa: AAFDL, 1960-61, pág. 114). parece ter
vindo posteriormente a alterar a sua opinão. Mantendo embora a afirmação segundo a qual
“admitindo-se o carácter unitário dos crimes continuados e permanentes desde que no do­
mínio da nova lei tenha sido cometida parte da conduta, o resultado é ser a nova lei aplicá­
vel a todo o crime”, a partir de certa altura, não só fala em "doutrina da inchoatio ” como acres­
centa mesmo expressamente àquela afirmação: “Mas de toda a sorte parece que deve en-
tender-se que o início do período de tempo a considerar coincide com o começo da própria
acção ou omissão, da actividade criminosa” (cf., por último, Direito..., I cit., pág. 123).
58 Cf. Caeiro da Matta, op. cit., pág. 48; Lopes Rocha, op. cit., págs. 105 e segs.
(que, perante as dúvidas, afirma que essa é a solução que melhor satisfaz o princípio da
aplicação retroactiva); Pereira Teutónio, op. cit., pág. 75.
59 Cavaleiro de Ferreira, por último em Lições... cit., pág. 62; Lopes Rocha, op.
cit., págs. 108 e segs.; Taipa de Carvalho, op. cit., pág. 273.
60 Cf. Taipa de Carvalho, op. cit., pág. 278. Também é o que se deduz da afirmação
de Cavaleiro de Ferreira, Direito..., I cit., págs. 64, de que os assentos valem como lei
interpretativa.
94 DIREITO E JUSTIÇA

a consequência de que uma vez que o assento é proferido num recurso


interposto de uma decisão sobre um determinado caso, a conclusão seria
a de que só se aplicaria ao caso sub judice se mais favorável61, sendo
inconstitucional o n° 1 do artigo 445° do Código de Processo Penal
quando estabelece que a decisão que resolver o conflito tem eficácia no
processo em que o recurso foi interposto62.

Não parece que se possa esquecer que precisamente o recurso em que o assento
é fixado é uma impugnação de uma decisão judicial, destinada, antes de mais, a obter
a sua alteração ou substituição por outra e, portanto, que tem antes de mais em vista
a solução do caso sub judice. A particularidade do fundamento (oposição de
decisões) não lhe retira a sua finalidade própria de impugnar uma decisão suscitando
o reexame da questão por ela resolvida. É que, a ser como o Autor pretende, se o
recurso fosse interposto, pelo Ministério Público ou pelo assistente, contra o ar­
guido, ele seria simplesmente para fixação da jurisprudência, solução semelhan­
te, portanto, àquela que consagra o n° 3 do artigo 447° do Código de Processo Penal,
cuja inconstitucionalidade por violação da separação de poderes, aliás, ques­
tiona63.
Além disso, esta doutrina não se conjuga nada bem com a aceitação, pelo Autor
das linhas gerais de solução avançadas por Castanheira Neves relativamente ao
problema por este recentemente levantado entre nós, das alterações de correntes
jurisprudenciais em matéria penal64, a saber: 1°) o respeito pelo enquadramento
abstracto-legal em que deve basear-se a mediação concretizadora da jurisprudência;
2°) o ónus de contra-argumentação nas decisões que se afastem da jurisprudência
estabilizada; 3°) relevo exculpativo doerro sobre a ilicitude, baseado na jurisprudência
dominante65.
Ora se assim é, não se compreende como é que o assento, que tem na sua base
uma oposição de decisões jurisprudenciais, e em cuja análise se põem cautelas que
chegam ao ponto de se repercutir na composição do Tribunal competente, não poderá
decidir o caso concreto sobre que recaiu a decisão impugnada.

61 Op. cit., págs. 279 e segs..


62 Op. cit., pág. 282.
63 Cf. Taipa de Carvalho, op. cit., pág. 282.
64 «O princípio da legalidade...» cit., págs. 325 e segs..

65 «O princípio da legalidade...» cit., págs. 332 e 333; Taipa de Carvalho, op. cit.,

págs. 286 e 287.


A APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO 95

7. O princípio da irretroactividade ou tempus regitfactum

Passemos então aos princípios por que se rege a aplicação da lei


penal portuguesa no tempo.
É corrente utilizar as expressões “não retroactividade” ou
“irretroactividade” para exprimir o primeiro princípio da aplicação da lei
no tempo em geral e também da lei penal.
Em rigor, porém, o princípio é mais vasto e significa que um facto
deve ser julgado e punido de acordo com a lei vigente no momento da sua
prática66 {tempus regit factum), sendo, por isso, vedada, não só a
retroactividade, mas também a outra forma da sua extra-actividade: a
ultra-actividade67.
É nestes termos mais amplos que o princípio aparece formulado no
n° 1 do artigo 2° do Código Penal, que estabelece que “as penas e medidas
de segurança são determinadas pela lei vigente no momento da prática do
facto ou do preenchimento dos pressupostos de que dependem”68.

8. O princípio da retroactividade da lei penal mais favorável

8.1. Generalidades

O segundo princípio que rege a aplicação da lei penal no tempo é o


da retroactividade da lei penal mais favorável.
Vem estabelecido na Constituição na parte final do n°4 do artigo 29°
quando, após declarar que “ninguém pode sofrer pena ou medida de
segurança ou medida de segurança privativa da liberdade mais grave do
que as previstas no momento da conduta” acrescenta: “aplicando-se
retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido”.

66 Neste sentido, cf„ por exemplo. Luís Osório, op. cit., págs. 46 e segs.; Figueiredo
Dias, «Crime de emissão...» cit., pág. 70.
67 Expressamente neste sentido, cf., por exemplo. Cavaleiro de Ferreira. por
último, em Lições... cit., pág. 66.
M O aspecto da irretroactividade é, por seu tumo salientado, não só na redacção do
artigo 29° da Constituição, como no art. Io do Código Penal que, sob a epígrafe princípio
da legalidade, estabelece que “Só pode ser punido criminalmente o facto descrito e decla­
rado passível de pena por lei anterior ao momento da sua prática” (n° 1) e que “a medida
de segurança só pode ser aplicada a estados de perigosidade desde que os respectivos
pressupostos sejam fixados em momento anterior ao seu preenchimento" (n° 2).
96 DIREITO E JUSTIÇA

O Código Penal, por seu turno, consagra-o nos n°s 2 a 4 do artigo 2o


nos seguintes termos: “2. O facto punível segundo a lei vigente no
momento da sua prática deixa de o ser se uma nova lei o eliminar do
número de infracções; neste caso e se tiver havido condenação, ainda que
transitada em julgado, cessam a respectiva condenação e os seus efeitos
penais. 3. Quando a lei vale para um determinado período de tempo,
continua a ser punido o facto criminoso praticado durante esse período.
4. Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto
punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores será
sempre aplicado o regime que concretamente se mostre mais favorável ao
agente, salvo se este já tiver sido condenado por sentença transitada em
julgado”.
A limitação do tempo de que disponho leva-me a limitar a expo­
sição à referência aos principais problemas que estas disposições têm
suscitado.

8.2. A distinção entre sucessão de leis penais e novação da lei


penal

O primeiro respeita a uma distinção que ultimamente tem aparecido


na nossa doutrina e que, segundo creio, se pode aceitavelmente rotular
desta forma: sucessão de leis e novação da lei.
Aparentemente, e segundo a abordagem tradicional, a aplicação dos
n°s 2 e 4 do artigo 2° dá-se em paralelo e não suscita, nesse aspecto,
dificuldades especiais. As duas normas constituem, apesar da sua diferente
formulação, as consequências em que analiticamente se pode cindir a
retroactividade da lei mais favorável. Um concreto facto punível segundo
a lei vigente no momento da sua prática pode ser mais favoravelmente
regido por uma lei ulterior de duas maneiras: ou porque, segundo esta, ele
deixa de ser punível, ou porque esta, mantendo embora a sua punibilidade,
estabelece para ele regime mais favorável (mormente, atenuando a pena
correspondente). Em qualquer caso aplicar-se-ia a lei mais favorável, o
que teria como consequência no primeiro caso a impunidade do agente e,
no segundo, a aplicação do regime mais favorável69.

w Expressamente nesse sentido, Cavaleiro de Ferreira, por último em Lições...


cit., págs. 67 e segs.; Miguel Machado, «Uma hipótese de aplicação da lei no tempo em
matéria de crimes contra a economia e a saúde pública», in Revista da Ordem dos Advo-
A APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO 97

Note-se, todavia, que, segundo parte da doutrina a eliminação do


facto do número das infracções, que a lei refere, se pode dar em mais casos
do que a pura e simples revogação da incriminação como, por exemplo,
em consequência de alteração dos requisitos essenciais da infracção, de
admissão de nova causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, de novas
causas de extinção da responsabilidade ou de novas condições de
impunidade que se verifiquem quanto ao concreto facto cometido70.
No entanto, têm vindo a surgir na doutrina portuguesa e
progressivamente com mais ênfase opiniões segundo as quais as coisas
não se passam com esta simplicidade71.
Antes de mais, defende-se nesta orientação que nem sempre um
facto concreto, punível segundo a lei anterior e punível segundo a lei nova
permaneceria efectivamente punível72.
Para que a punibilidade do facto concreto se mantivesse seria
necessário que a lei nova estivesse, com a anterior, numa relação não
apenas de contiguidade temporal, mas ainda de continuidade material. E
assim, a nova lei (mais favorável) só seria de aplicar se estabelecesse um
regime que, embora diferente, fosse substancialmente idêntico ao
estabelecido na lei anterior, situação a que já se chamou sucessão de

gados, ano 47(1987), págs. 1054 e segs.. Deve, porém, registar-se que. quer relativamente
ao Código anterior (cujos termos eram, no que agora interessa, fundamentalmente
idênticos), quer relativamente ao actual Código, o tratamento da questão se faz, sem
levantar particulares problemas e, portanto, neste pressuposto implícito. Neste sentido se
pronunciou, rejeitando explicitamente a opinião de Taipa de Carvalho, Germano
Marques da Silva, «Do regime penal do cheque sem provisão», nesta Revista, vol. V
(1991), págs. 196 e 197 e nota 5.
70 Neste sentido, cf. Cavaleiro de Ferreira, por último em Lições... cit., págs. 67
e segs.; perante o Código de 1886, também Eduardo Correia admite o mesmo relativamente
à alteração dos requisitos de punibilidade (cf. Direito..., I cit., pág. 161).
71 Neste sentido, cf. Figueiredo Dias e Costa Andrade, «Problemas de especulação
e sucessão de leis no contexto dos regimes de preços controlados e declarados» in Revista
de Direito e Economia, Anos 677° (1980/1981), págs. 316 e segs. e 327 e segs.; Taipa de
Carvalho, op. cit.,pàgs. 77 e segs. e 117 e segs.; Figueiredo Dias, «Crime de emissão...»
cit., págs. 71 e segs.; Ribeiro Coelho, «Crime de emissão de cheque sem provisão» in CJ,
Ano XVII (1992), págs. 91 e segs.
72 Neste sentido, cf. Figueiredo Dias e Costa Andrade, «Problemas...», cit., págs.
316 e segs. e 327 e segs.; Taipa de Carvalho, op. cit., págs. 77 e segs. e 117 e segs.;
Figueiredo Dias, «Crime de emissão...» cit., págs. 71 e segs.; Ribeiro Coelho, op. cit.,
págs. 91 e segs..
98 DIREITO E JUSTIÇA

leis13 (stricto sensu)14. Pelo contrário, a nova lei (mais favorável) já seria
inaplicável quando, mantendo embora a punibilidade do facto,
estabelecesse um regime novo e substancialmente diferente daquele que
era estabelecido pela lei anterior. Neste caso, a entrada em vigor da nova
lei, conjugada com a revogação da lei anterior, constituiria uma vicissi­
tude caracterizada, apesar da contiguidade temporal75, pela
descontinuidade material. Fala-se, então, em revogação de um regime
penal e instauração de um novo regime76, de descriminalização seguida
de neocriminalização77. Mas pode talvez, mais sucintamente e por
oposição a sucessão de leis penais, falar-se em novação da lei penal.
Transpondo esta doutrina para a interpretação do artigo 2o do
Código Penal, para que pudesse haver lugar à aplicação do regime novo
(mais favorável), nos termos do n° 4, seria necessário estarmos perante
uma sucessão de leis78. Nos casos de novação da lei não haveria que
aplicar a lei mais favorável mas pura e simplesmente não punir uma vez
que a lei antiga foi revogada e a lei nova não pode ser aplicada
retroactivamente. Estar-se-ia, nestes casos, perante casos a incluir ainda
no n° 2 do mesmo artigo.
Quanto aos requisitos que asseguram a identidade substancial das
duas leis (e, pois, a sucessão de leis) não há acordo, centrando-se uns no
bem jurídico79 e outros, pelo contrário, nos elementos da estrutura do
facto exigidos pelas sucessivas incriminações80.
Esta orientação genérica que, com as suas incertezas, encontrou eco
na aplicação da última reforma legislativa em matéria de emissão de

73 Cf. Figueiredo Dias e Costa Andrade, «Problemas...», cit., pág. 323; Taipa de
Carvalho, op. cit., pág. 77.
74 Cf. Taipa de Carvalho, op. cit., pág. 77.
75 Cf. Figueiredo Dias e Costa Andrade, «Problemas...», cit., pág. 323.
76 Cf. Figueiredo Dias e Costa Andrade, «Problemas...», cit., págs. 316 e 327.
77 Cf. Figueiredo Dias, «Crime de emissão...» cit., pág. 71.
78 Taipa de Carvalho, op. cit., págs. 77 e 81.
” Neste sentido, cf. Figueiredo Dias e Costa Andrade, «Problemas...», cit., págs.
316 e segs. e 327 e segs.; Figueiredo Dias, «Crime de emissão...» cit., págs. 71 e segs.,
distinguindo entre alteração do bem jurídico e mudança de perspectiva ou concepção
acerca do bem jurídico, exemplificado com a alteração, em certos países, da qualificação
dos mesmos crimes como “crimes contra os bons costumes” ou como “crimes sexuais”
(p. 71, nota (35)).
80 Taipa de Carvalho, op. cit., págs. 134 e segs.
A APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO 99

cheque sem provisão81, segundo uma das suas formulações, não se limita,
porém, a interferir na delimitação recíproca do âmbito de aplicação dos
n° 2 e 4 do artigo 2o do Código Penal, estendendo os seus efeitos ainda a
outros casos. Para dar um exemplo ilustrativo, defende-se com a mesma
base fundamental que deve ser condenado por roubo simples o agente de
um crime de roubo na via pública e à mão-armada, se no momento da
prática do facto estava vigente lei que só considerava circunstância
qualificativa a primeira e depois foi revogada por outra que só considerava
como circunstância qualificativa a segunda82.

Esta orientação nasce como que de um aprofundamento do significado da


aplicação da nova lei mais favorável, enquanto aplicação retroactiva. E, nessa base,
tem indiscutivelmente por si bons argumentos, bem patentes no exemplo deveras
ilustrativo dado por Figueiredo Dias: a revogação de uma norma que impunha um
limite de velocidade por razões de segurança do tráfego e a introdução de uma outra
que estabelece o mesmo limite, mas por razões diversas (como a preservação da
tranquilidade dos doentes de um hospital próximo ou a limitação da poluição
atmosférica)83.
E todavia... se bem a entendemos, parece que dificilmente se conjuga com os
termos do artigo 2° do Código Penal. E isto não tanto pelo facto de não encontrar nos
seus termos literais directa correspondência, mas sobretudo porque conduz à
absorção do n° 4 pelo n° 2 do mesmo artigo, com concomitante inutilização do
primeiro.
É certo que, na doutrina de Figueiredo Dias, basta o pressuposto da dupla
incriminação para afastar a aplicabilidade do n° 2 do artigo 2o, o que significa que,
verificado esse pressuposto, terá aplicação sempre e só o n° 4 do mesmo artigo84.
Mas vejamos o que se passa no exemplo referido por aquele Professor. Para
concluir pela impunidade do agente que excedeu a velocidade na vigência da lei
anterior, torna-se necessário proceder a uma análise ou separação entre a cessação da
vigência da antiga lei e a entrada em vigor da nova lei e à consideração autonóma do
primeiro para solução da questão. Quer dizer: nesse caso, o agente não seria punido
porque a antiga incriminação foi revogada e a nova incriminação não se aplica

81 Cf. Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Janeiro de 1993, in Diário


da República, série I-A, de 7 de Abril de 1993.
82
Cf. Taipa de Carvalho, op. cit., págs. 120 e segs. e 135.
83
Cf. «Crime de emissão...» cit., pág. 71, nota (34).
84
«Crime...» cit., pág. 71 e nota (38).
100 DIREITO E JUSTIÇA

retroactivamente. É à revogação da lei anterior e não à entrada em vigora da nova lei


que se reconhece eficácia retroactiva e é aquela e não esta que dita a impunidade do
agente.
E então surge naturalmente a questão: por que razão não se adopta o mesmo
procedimento lógico a todas as modificações legislativas? A lei nova traduz sempre
uma alteração da apreciação ou valoração jurídica do facto e, consequentemente, do
seu regime jurídico. Nessa medida, procede sempre à substituição (total ou parcial)
da apreciação ou valoração da lei anterior por uma outra. Consequentemente, a lei
antiga é sempre (total ou parcialmente e expressa ou tacitamente) revogada. Logo,
e pelo mesmo raciocínio, seria já inaplicável a lei antiga (na medida em que foi
revogada) e seria inaplicável retroactivamente a lei nova (na medida em que alterou
a lei antiga).
É assim que se explica a solução dada por Taipa de Carvalho ao exemplo do
roubo qualificado que acima se referiu, bem como aquela que o mesmo Autor dá ao
exemplo de algum modo oposto e que é o seguinte: a lei antiga apenas previa como
circunstância pri vilegiantedo infanticídio ter sido cometido “por motivo de abandono
material ou moral”, e a lei nova apenas prevê como circunstância privilegiante do
infanticídio ter sido cometido “por motivo de honra”. A solução dada é a de que não
há verdadeira sucessão de leis e, se o agente, quer tenha cometido o facto “por motivo
de honra”, quer o tenha cometido “por motivo de abandono material ou moral” vai
ser sempre punido por infanticídio privilegiado, não é por aplicação do n° 4 do artigo
2o do Código Penal, mas, no primeiro caso, por força da irretroacti vidade da lei penal
(art. 2°, n° 1) e, no segundo, directamente em virtude do princípio genérico da
aplicação retroactiva da lei mais favorável estabelecido no artigo 29°, n° 4, II parte
da Constituição85.
Parece nítido que a autonomização do momento lógico da revogação da lei
anterior conduz, antes de mais, à aplicação do n° 2 do artigo 2o do Código Penal e,
consequentemente, que a irretroactividade da lei penal não deixa espaço nenhum à
aplicação do n° 4 do mesmo artigo.
Em face disto, não poderá deixar de se colocar a questão de saber se se poderá
aplicar retroactivamente uma nova lei que se limite a atenuar a pena aplicável a uma
infracção dado que a pena aplicável segundo a lei antiga, baseada em certa avaliação
do facto, foi (pelo menos parcialmente) revogada e a pena aplicável segundo a lei
nova, baseada em nova avaliação do facto, é (pelo menos parcialmente) inaplicável
retroactivamente. Um exemplo extremo pode ser este: a lei antiga estabelecia uma
pena de prisão de 1 a 5 anos e a lei nova estabelece uma pena de multa até 100 dias.
A primeira foi, sem dúvida revogada e no seu lugar foi introduzida a segunda. Na base

85 Taipa de Carvalho, op. cit., págs. 118 e 119.


A APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO 101

de que se parte, por que não dizer que a primeira é inaplicável porque revogada e esta
é inaplicável porque as penas são determinadas pela lei vigente no momento da
prática do facto?
Esta objecção, porém, não resolve o problema argutamente suscitado. Leva é
a questionar do significado e alcance daquilo que, por referência ao momento da
prática do facto, se designa como retroacti vidade da lei penal mais favorável. A final,
voltaremos ao assunto.

8.3. Aplicação da lei mais favorável e caso julgado

Outra questão muito discutida é a de saber se e em que medida a


aplicação retroactiva da nova lei atinge as penas em execução e, portanto,
aplicadas por sentença já transitada em julgado.
Pode dizer-se que se trata de questão que acompanhou o
estabelecimento da retroactividade da lei penal mais favorável e acerca
da qual o Direito português denotou, ao longo dos tempos, grande
hesitação. Assim, apesar de os termos expressos do Código de 1852
inculcarem solução oposta, Silva Ferrão defendeu abertamente a
aplicação retroactiva da nova lei (quer da que não considerasse o facto
como crime quer da que lhe atenuasse a pena), ainda que o agente
estivesse condenado por sentença transitada em julgado86, solução que
seria proposta no Projecto de Código Penal de 186187. O relatório da
reforma penal optaria por uma solução de compromisso88, que seria a
acolhida no Código Penal de 1886: se a nova lei eliminasse o facto do
número das infracções, aplicar-se-ia retroactivamente ainda que a
condenação tivesse transitado em julgado; se, porém, se limitasse a
estabelecer pena mais leve, só se aplicaria retroactivamente se ainda não
houvesse sentença transitada em julgado (art. 6°, excepções Ia e 2a)89.
A ressalva do caso julgado nestes casos viria, todavia, a ser criticada
por inconveniente e injusta90. Por um lado, alegava-se o fundamento da

86 Op. cit., EU, págs. 12 e segs.


87 Código... cit., pág. I.
88 «Relatório...» cit., pág. 274, mas argumentando sobretudo relativamente ao
período transitório em que se achava a legislação.
89 Quanto aos efeitos das penas, a lei mais favorável aplicava-se ainda que
estivessem condenados por sentença transitada em julgado (exc. 3‘).
90 Cf., por exemplo, José Luciano de Castro, apud Abel Pereira do Vale, op. cit.,
págs. 23 e segs., que, por si, também qualificava as razões apresentadas como ponderosas
102 DIREITO E JUSTIÇA

própria retroactividade da lei penal mais favorável (assegurar ajustificação


e legitimidade da pena ao longo da sua execução)91 e, por outro, negava-
se a procedência ou, mesmo, revertiam-se os argumentos utilizados em
contrário, como o da desigualdade criada relativamente aos delinquentes
que já tivessem cumprido integralmente a pena e o do respeito pelo caso
julgado. Assim, e quanto ao primeiro aspecto, se a aplicação da nova lei
era impossível relativamente a penas já executadas, nos outros casos era
preferível aplicá-la na medida do possível a renunciar a isso em nome da
igualdade92. Quanto ao segundo, alegava-se que o caso julgado não era
absoluto e que ele tinha de ceder quando a isso obrigava a aplicação da
lei, chegando-se mesmo a afirmar que a aplicação da lei mais favorável
confirmava o valor do caso julgado, pois reconhecia a sua existência na
questão de facto93.
A consagração constitucional, em 1976, do princípio da aplicação
retroactiva da lei penal mais favorável transformou a crítica em objecção
de inconstitucionalidade, trazendo a questão do domínio do direito a
constituir para o do direito constituído.
Apesar destes precedentes históricos e das vozes que já se tinham
feito ouvir no sentido da inconstitucionalidade da ressalva constante do
Código de 188Ó94, o Código de 1982 expressamente ressalvou da aplicação
retroactiva do regime penal mais favorável o caso de o agente já ter sido
condenado por sentença transitada em julgado (art. 2o, n° 4), pelo que o
problema permanece hoje em aberto95'96.

(p. 25); Caeiro da Matta, op. cit., pág. 50 e nota (1); Henriques da Silva, apud Taipa de
Carvalho, op. cit., págs. 179 e segs.; Cavaleiro de Ferreira, por último em Direito...,
I cit., pág. 119; Gomes da Silva, op. cit., págs. 172 e segs..
91 Cf., por exemplo, José Luciano de Castro, apud Abel Pereira do Vale, op. cit.,
págs. 23 e segs., que, por si, também qualificava as razões apresentadas como ponderosas,
Henriques da Silva, apud Taipa de Carvalho, op. cit., págs. 179 e segs..
92 Cf., por exemplo, José Luciano de Castro, apud Abel Pereira do Vale, op. cit.,
págs. 23 e segs., que. por si, também qualificava as razões apresentadas como ponderosas,
Henriques da Silva, apud Taipa de Carvalho, op. cit., págs. 179 e segs.; Cavaleiro de
Ferreira, por último em Direito..., I cit., pág. 119; Gomes da Silva, op. cit., págs. 172 e
segs..
93 Henriques da Silva, apud Taipa de Carvalho, op. cit., pág. 180.
91 Cf., por exemplo, Teresa Beleza, Direito Penal, I, Lisboa: AAFDL, 1980, págs.
610 e segs..
95 Pronunciaram-se pela inconstitucionalidade da ressalva contida no n°4 do art. 2°
do Código Penal Tereza Beleza, op. cit., pág. 455; Rodrigues Maximiano, «Aplicação
da lei penal no tempo e caso julgado» inRMP, Ano 4° (1983), vol. 13, págs. 11 esegs.;
A APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO 103

Para além de um certo aprofundamento das implicações da igualdade


(utilizado agora precisamente para fundamentar a aplicação retroactiva
da nova lei), pode talvez dizer-se que, em parte, a nova situação legislativa
não alterou os argumentos antes esgrimidos, embora estes possam ter
sofrido alguma variação no modo da sua invocação.
A estes acresceram, porém, argumentos estritamente derivados da
interpretação da Constituição vigente.
Assim, no sentido da inadmissibilidade da ressalva jogam os termos
do artigo 29°, que são absolutos e, portanto, tendo sobretudo presente que
o direito aí consagrado se conta entre os direitos, liberdades e garantias,
cuja restrição por lei carece de expressa previsão da Constituição (art. 18°,
n° 3), levam a considerar que a ressalva do caso julgado não é admitida97,
ao que ainda se acrescenta o facto de, na revisão constitucional de 1982,
ter sido proposta e rejeitada uma ressalva geral do caso julgado98. Em
sentido contrário, todavia, joga o facto de o n° 4 do artigo 29° falar em
arguido, expressão que tende a designar aquele que ainda não foi
condenado por sentença transitada em julgado99 e ainda um argumento ex
n° 3 do artigo 282°, nos termos do qual ficam ressalvados da eficácia
retroactiva da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória
geral “os casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal
Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou
de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao

Taipa de Carvalho, op. cit.,p&gs. 181 escgs.; Rut Pereira, op. cit.,p&gs. 58esegs.,nota
13. Contra pronunciou-se, porém, Pereira Teutónio, op. cit., págs. 63 e segs.. Lopes
Rocha, op. cit.,. págs. 98 e segs., depois de apresentar argumentos num sentido e noutro,
conclui que a questão está em aberto. Cavaleiro de Ferreira, em Lições... cit., págs. 69
e segs. omitiu a crítica feita em obras anteriores. Também Figueiredo Dias, «Crime...»
cit., pág. 71, expõe a ressalva sem qualquer observação.
96 As Actas das sessões da Comissão Revisora do Código Penal de 1982 dão conta
de que essa Comissão se pronunciou pela manutenção da parte final do n° 4 do art. 2°. mas
já não das razões ou fundamentos que estiveram na base de um tal voto, limitando-se a
acrescentar que, “ao contrário dos restantes membros, o Senhor Conselheiro Sousa e
Brito votou a manutenção, sem se pronunciar pela constitucionalidade da norma" (cf.
Código... cit., pág. 457). Por essa razão e também porque, por definição, está para além
das forças da lei ordinária, de cuja preparação se tratava, assegurar a sua própria
constitucionalidade, é de concluir que a questão permanece em aberto.
97 Neste sentido, cf. Teresa Beleza, op. cit., pág. 455.
"Neste sentido, cf. Rodrigues Maximiano, op. cit., págs. 30 e segs.
99 Neste sentido, cf. Lopes Rocha, op. cit., págs. 99 e segs., mas antecipando que
a letra do texto constitucional não é decisiva.
104 DIREITO E JUSTIÇA

arguido”. Esta disposição pode conduzir à conclusão de que, se quanto à


declaração da inconstitucionalidade, uma fonte infra-constitucional pode
ressalvar ou não os casos penais, por maioria de razão pode essa ressalva
ser feita quanto à aplicabilidade retroactiva de normas constitucionais100.

I. Que dizer?
A questão está em saber se o n° 4 do Código Penal, quando ressalva da
aplicação da lei mais favorável os casos em que já tiver havido sentença transitada
em julgado, é compatível com o n° 4 do art. 29° da Constituição A admissibilidade
da ressalva feita pelo Código Penal pode derivar de duas origens distintas, embora
naturalmente conexas, e que convém separar na medida em que são de natureza
diferente e estão, por isso mesmo, sujeitas a regimes diferentes.
Pode suceder, em primeiro lugar, que o conteúdo da garantia constitucional
não alcance a aplicação da lei mais favorável às penas em execução se a nova lei se
limitar a alterar o regime penal sem, todavia, eliminar o facto do número das
inffacções. Neste caso, a aplicação da nova lei nesses casos estaria para além dos
limites imanentes ou intrínsecos da garantia constitucional e, por isso, seria lícito
que, por qualquer razão, essa aplicação fosse impedida por fonte infraconstitucional.
Mas pode ainda suceder que a ressalva dos casos julgados relativamente à
aplicação da lei nova que altere o regime penal sem eliminar o facto do número das
infracções corresponda a uma restrição legal à garantia estabelecida no n° 4 do artigo
29° da Constituição, restrição essa cuja legitimidade depende, entre outras condições,
da sua admissão expressa pela Constituição e da sua necessidade para salvaguarda
de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (art. 18°, n° 2 da
Constituição).

II. Que, segundo uma correcta interpretação da Constituição, o conteúdo da


garantia constitucional abrange as penas em execução (e, por isso, casos em que já
houve sentença condenatória transitada em julgado) parece evidente.
A letra da lei é a base e o limite da actividade interpretativa, que, todavia, está
centrada no espírito da lei.
E o espírito da lei, neste caso, corresponde ao fundamento e fim do princípio
da aplicação da lei mais favorável e traduz-se em assegurar a justificação da pena no
momento da sua efectiva aplicação e execução e perante os sucessivos juízos de valor
ou valorações diferentes sucessivamente expressos na lei.

100 Argumento identificado por Rui Pereira, op. cit., pág. 59, nota 13, que, no
entanto, o rejeita.
A APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO 105

Foi a ponderação deste espírito que permitiu superar questão idêntica àquela
com que nos debatemos e que surgiu na jurisprudência relativamente às chamadas
leis temporárias ou de emergência, que também não são literalmente ressalvadas no
texto constitucional, mas que estão para além do seu espírito101, dado que a cessação
da vigência (por caducidade e já não por revogação) da lei temporária ou de
emergência não significa que, por efeito de uma alteração da valoração legal,
doravante aqueles factos cometidos naquelas circunstancias são lícitos, mas apenas
que as circunstancias indispensáveis à sua ilicitude se tomam doravante impossíveis.
Ora, no nosso caso, e pelo contrário, a ponderação do fundamento e fim do prin­
cípio conduzem à aplicação da lei mais favorável às penas em execução e, portanto,
às situações em que o agente já foi condenado por sentença transitada em julgado.
Mais do que isso, a esse fundamento é completamente indiferente se a nova lei
estabelece regime mais favorável eliminando o facto do número das infracções ou,
pelo contrário, alterando o seu regime penal. Não há que fazer essa distinção, não
simplesmente porque lex non distinguit, mas porque tal distinção é irrelevante na
perspectiva do fundamento e fim do princípio.
Se, na verdade, o que se impõe é assegurar a justificação actual das penas, é
indiferente que a nova lei mais favorável elimine o facto do número das infracções
ou lhe altere o regime (por exemplo, suavizando drasticamente a pena aplicável). É
por isso que, não tendo o agente ainda sido condenado por sentença transitada em
julgado, a aplicação da lei mais favorável se impõe, quer a nova lei elimine o facto
do número das infracções, quer se limite a alterar o regime penal. E a mesma razão
conduz a concluir que o mesmo se passa nos casos em que o agente já tiver sido
condenado por sentença transitada em julgado.
Não é lícito invocar em contrário o argumento reconhecidamente débil da
utilização da palavra “arguido”. Desde logo, o predomínio do espírito sobre a letra
da lei toma apenas exigível que a interpretação dada tenha na letra da lei um mínimo
de correspondência, ainda que imperfeitamente expresso - coisa que manifestamente
sucede102. E isto é tanto mais claro quanto é certo que a Constituição utiliza, em outro
local, a palavra “arguido” de modo a abranger claramente os condenados por
sentença transitada em julgado (art. 282°, n° 3).

101 Expressamente no sentido da compatibilidade da disposição com a Constituição,


cf., por exemplo, Lopes Rocha, op. cit., págs. 95 e segs.; Figueiredo Dias e Costa
Andrade, op. cit., págs. 323 e segs., nota 10; Taipa deCarvalho, op. cit., págs. 164e segs..
Também Teresa Beleza admite a possibilidade da solução (op. cit., pág. 458).
102 A utilização da expressão arguido pode ser explicada, quer pelo facto de o agente
responder perante a nova lei (neste sentido, cf. Rui Pereira, op. cit., pág. 59. n. 13). quer,
mais prosaicamente, pela tentativa de, estabelecendo uma regra aplicável a todos os casos,
não deixar complicar a redacção do preceito.
106 DIREITO E JUSTIÇA

Além disso, é necessário ter presente que, como já foi observado103, o argumento
provaria demais uma vez que conduziria a concluir que a Constituição só garantia a
aplicação mais favorável aos arguidos e, portanto, até ao trânsito em julgado da
sentença final. A lei ordinária poderia, então, ressalvar os casos julgados mesmo em
caso de eliminação do facto do número das infracções (incluindo os de eliminação
da norma incriminadora), opinião que ninguém defende e que se tem de rejeitar.
Desde que, no entanto, se rejeite esta consequência, aceita-se que a expressão
“arguido" tem de ser interpretada em sentido não estritamente técnico e então à sua
interpretação tem de presidir o espírito da Jei que atrás ficou assinalado.
Também não é lícito invocar contra a interpretação proposta, o princípio da
igualdade pois a igualdade é uma relação e tanto pode ponderar-se relativamente
àqueles que cumpriram integralmente a pena, como àqueles que, por razões acidentais,
ainda não foram condenados por sentença transitada em julgado, como, até,
relativamente àqueles que cometeram idêntico facto na vigência da nova lei. Por isso,
se não confirma a vigência irrestrita do princípio (porque aquilo que está em causa
é o momento actual da execução da pena), a invocação do princípio da igualdade é
ambivalente e, como tal, irrelevante.

III. O que vai dito não basta para concluir sem dúvidas que a ressalva constante
da parte final do n° 4 do artigo 2o do Código Penal é inconstitucional dado que não
são absolutamente inadmissíveis as restrições legais aos direitos liberdades e
garantias. Pelo contrário, a própria Constituição dispõe que a lei pode restringir tais
direitos desde que, entre outras condições, o faça em “nos casos expressamente
previstos na Constituição” e que as restrições se limitem “ao necessário para
salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos” (art. 18o,
n°2).
É essa a sede em que material mente se situa a invocação do caso julgado ou
ainda, o que acaba por não ser, neste caso, essencialmente diferente, da multiplicação
do trabalho judicial ou da praticabilidade ou exequibilidade prática do princípio.
A) Tem de começar por se assentarem que, como a Constituição expressainente
estabelece, a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias “nos casos
expressamente previstos na Constituição” (art. 18°, n° 2). Admitir uma faculdade
geral de restrição legal dos direitos, liberdades e garantias, a pretexto da sua
necessidade para salvaguarda de uns indefinidos “outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos” é esboroar a protecção constitucional dos direitos,
liberdades e garantias, e, consequentemente a deixar a sua definição à legislação

103 Cf. Lopes Rocha, op. cit., pág. 99; Rui Pereira, «O princípio da igualdade...»,
cit., pág. 135.
A APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO 107

ordinária que, já em teoria, só estaria vagamente limitada pela proporcionalidade e,


na prática, não teria qualquer limitação. Basta pensar em que, com o mesmo
raciocínio, seria admissível a restrição legal da proibição da pena de morte desde que
necessária “para salvaguarda de um outro direito ou interesse constitucionalmente
protegido” (pense-se, por exemplo, na prevenção geral).
Partindo da premissa inabalável - porque correspondente não só à letra como
ao espírito do artigo 18o, n° 2 da Constituição - de que as restrições legais dos direitos
constitucionais só são admissíveis nos casos expressamente previstos na Constituição,
o problema que então se suscita deriva novamente da utilização da expressão
“arguido”, agora poderada, já não para o efeito de definição, pela positiva, do
conteúdo da garantia de aplicação retroactiva da lei mais favorável, mas sim como
consagração expressa, ainda que imperfeitamente, da admissibilidade de restrição
legal à garantia constitucional.
No entanto, a expressão “arguido” também não pode desempenhar esta função.
Prescindindo já do facto de a Constituição usar essa expressão num sentido
amplo, que abrange os condenados por sentença transitada em julgado (cf. art. 282°,
n° 3), cabe por inteiro a objecção atrás feita de que o argumento provaria demais,
conduzindo a concluir que a Constituição não garante a aplicação aos casos julgados
de nova lei que elimine o facto do número das infracções.
No mesmo sentido joga o confronto do n° 4 do artigo 29° da Constituição com
o seu n° 6. Na verdade, nesta disposição, em matéria materialmente não muito
distante, remete-se expressamente para a lei a determinação das condições em que
os cidadãos injustamente condenados têm direito à revisão da sentença penal. Ora,
esta fórmula, aliás perigosa, não tem nenhum paralelo no n° 4 do artigo 29° da
Constituição, o que seria inexplicável, se a Constituição estabelecesse regime
idêntico ou semelhante.
E o mesmo resulta ainda do confronto com o n° 3 do artigo 282° da
Constituição, também ele sobre questão materialmente conexa, e do qual, ao
contrário do que sucede no n° 4 do artigo 29°, também consta expressamente a
admissão de “decisão em contrário do Tribunal Constitucional”.
Assim, a ressalva dos casos julgados constante do n° 4 do artigo 2° Código
Penal representa uma restrição da garantia da aplicação da lei mais favorável em que
a Constituição não prevê. Ela é, já por isso, inconstitucional.
B) Mas ainda há mais.
Admitindo e não concedendo que a Constituição permite a restrição legal da
garantia de aplicação da lei mais favorável, seria ainda necessário demonstrar que a
ressalva dos casos julgados em caso de lei que altere o regime penal é necessária para
salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido.
Para tanto, necessário se toma compreender bem o que se alega quando, nesta
matéria, se invoca o caso julgado. E nesta questão impõe-se evitar um duplo mal
entendido.
108 DIREITO E JUSTIÇA

Primeiro que tudo, no que respeita à invocação expressa ou implícita, directa


ou indirecta, do prestígio e da autoridade das decisões judiciais como fundamentos
materiais do caso julgado. Já prescindindo da questão de saber que relevo tem este
aspecto no quadro geral do instituto do caso julgado (e que, a admitir-se, seria sempre
acessório), importa notar que, na questão em discussão, o argumento seria de nenhum
valor. A admitir que a aplicação da nova lei mais favorável a casos julgados traz
consigo alguma desautorização ou desprestígio, este recairia, não sobre as decisões
judiciais, mas sobre a própria legislação que, em momentos sucessivos (e
frequentemente não muito distantes), expressa, sobre os mesmos casos, juízos de
valor diferentes e, com base neles, estabelece consequências jurídicas diversas.
Acresce que essa suposta desautorização ou desprestígio seria imputável à
própria legislação e não haveria, por isso, qualquer razão para fazer suportar pelos
condenados.
E finalmente o argumento tomaria completamente inadmissível a aplicação
aos casos julgados de lei que elimine o facto do número das infracções, pois é
precisamente nesses casos que a divergência entre a lei antiga (e a decisão proferida
com base nela) e a lei nova é maior e, portanto, seriam esses os casos em que a
desautorização ou desprestígio se tomariam mais flagrantes e mais inadmissíveis.
Um segundo mal entendido que convém evitar consiste em discorrer sobre o
caso julgado penal como se de caso julgado civil se tratasse.
No caso julgado penal não estão, como no civil, envolvidas (para além
evidentemente da Jurisdição) várias pessoas cujas situações jurídicas estejam em
jogo. Consequentemente, para além do aspecto da multiplicação do trabalho envolvido
na repetição de decisões, só tem verdadeiramente relevo a segurança ou estabilidade
da situação do arguido. Seria, no entanto, absurdo, fazer prevalecer a segurança e
estabilidade da situação do arguido sobre a respectiva justiça, por forma que o
arguido devesse ser ou continuar a ser injustamente punido apenas para assegurar a
estabilidade da sua situação de injustiçado. É isso que explica as notáveis diferenças
existentes entre os casos em que é admitida a revisão de sentenças penais e os casos
em que é admitida a revisão de sentenças civisl<u.

1<M Assim, nas sentenças penais é admitida com mais largueza a revisão de sentenças
condenatórias do que a revisão de sentenças absolutórias, distinção sem paralelo no
processo civil. Por outro lado, a revisão de sentenças penais condenatórias é admitida com
mais largueza do que a revisão de sentenças civis. Note-se que com mais largueza não
significa irrestritamente, o Código de Processo Penal limita a revisão para simples
alteração da pena aplicada (art. 449°, n° 3). No entanto, como já se salientou, a própria
Constituição deixa à legislação ordinária a determinação das condições do direito à
revisão de sentenças (art. 29°, n° 6), coisa que não faz relativamente à aplicação da lei mais
favorável (art. 29°, n° 4).
A APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO 109

Desta forma, a alegação do caso julgado resolve-se substancialmente na


invocação da multiplicação de trabalho judicial imposta pela aplicação da lei rnais
favorável aos casos já julgados, e das dificuldades que dela derivam para a
exequibilidade prática do princípio.
Sem fechar os olhos à relevância da questão em época de intensa legislação,
parece que, ainda assim, há que reconhecer a debilidade do argumento.
Antes de mais, em termos, por assim dizer estritamente práticos. É que a
aplicação aos casos julgados de nova lei que elimine o facto do número das
infracções, desde que se não limite esse caso à pura e simples supressão da norma
incriminadora, acarreta já por si a correição dos casos julgados para verificar a não
incriminabilidade dos crimes já julgados, sob pena de manter uma prisão ilegal ou
sequestro105. Pense-se, por exemplo, na restrição do âmbito objecti vo de aplicação de
uma ou várias incriminações mediante a ampliação de elementos ou circunstâncias
essenciais ou mediante o acrescentamento de novos elemento ou na sua ampliação
ou circunstâncias essenciais; pense-se no reconhecimento de nova causa de exclusão
da ilicitude ou da culpa ou de nova condição de punibilidade ou de nova causa de
extinção da responsabilidade penal, que nada impede que sejam gerais, ou na
ampliação das existentes. Em termos práticos, pois, a diferença, a admitir-se será
demasiadamente diminuta para se poder afirmar que a ressalva contida na lei é
necessária para assegurar a funcionalidade do sistema penal.
Além disso, não parece que o facto de a legislação ser intensa possa constituir
argumento para obstara aplicação da lei mais favorável. A multiplicação do trabalho
exigido aos tribunais e a funcionalidade do sistema penal, antes de pôr entraves à
exigência de justificação material das penas em execução, impõe-se à consideração
do legislador e à sua legis+prudência. A legislação intensa não pode, por isso,
legitimar que os condenados continuem a cumprir penas que, nos termos da
legislação vigente, já não se justificam.
E assim, mesmo admitindo e não concedendo a admissibilidade de restrição
legal da garantia de aplicação da lei mais favorável, a ressalva final do n° 4 do artigo
2° do Código Penal seria ainda inconstitucional uma vez que não é necessária para
salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido.
C) Finalmente, importa acrescentar que nenhum argumento em contrário se
pode retirar do n° 3 do artigo 282° da Constituição.
Na verdade, a questão está em saber se é possível raciocinar a maiori nestes
termos: se a retroactividade da declaração de inconstitucionalidade, que é uma
declaração de invalidade da norma, encontra um limite nos casos julgados (salvo

105 Cf. Cavaleiro de Ferreira, Lições... I cit., pág. 69. que acrescenta: “E no entanto
dificilmente se poderá presumir que esse enorme trabalho esteja a ser regulamiente
efectuado”.
110 DIREITO E JUSTIÇA

decisão em contrário do Tribunal Constitucional), por maioria de razão o mesmo


limite se imporá à lei nova que revogue, para o futuro, lei válida anterior.
Basta a enunciação do argumento para compreender que provaria demais.
Como no n° 4 do artigo 29° não se estabelece nenhuma ressalva semelhante àquela
que se contém no n° 3 do artigo 282°, a conclusão a tirar seria a de que a aplicação
da lei mais favorável se não podia fazer com prejuízo dos casos julgados, nem mesmo
em caso de eliminação do facto do número das infracções. Seria o n° 2 e não o n° 4
que seria inconstitucional ou, quando menos, a lei ordinária poderia suprimir a
aplicação da lei mais favorável mesmo em caso de eliminação do facto do número
das infracções (e designadamente, mesmo em caso de eliminação da incriminação).
Esta inaceitável conclusão faz suspeitar da legitimidade do raciocínio a maiori
que lhe está na base. E realmente ele parte de uma interpretação que não tem em
devida conta o larguíssimo campo de aplicação e, consequentemente, a relativa
indefinição do n° 3 do artigo 282°. É que essa disposição, que não se aplica apenas
a sentenças penais (mas ainda civis e administrativas e, ao que parece pelo teor da
ressalva, a actos administrativos), não é esclarecedora relativamente ao significado
a atribuir à decisão do Tribunal Constitucional, o que já permitiu a sua interpretação
no sentido de que, em matéria penal, de mera ordenação social ou disciplinar, o
Tribunal Constitucional seria obrigado e não apenas autorizado a emitir decisão em
contrário da ressalva, sem que, além disso, a falta dessa decisão obstasse à aplicação
da lei mais favorável'“.
Mesmo que assim não seja, o certo é que a disposição em causa não esclarece
ela própria os critérios a que há-de obedecer a decisão do Tribunal Constitucional,
de ressalvar ou não os casos julgados, critérios esses que, porse tratar de fonte inferior
à Constituição, terão de ser, eles próprios, compatíveis com a Constituição e,
designadamente, não poderão ser arbitrários. E então é perfeitamente plausível que
esses critérios se diferenciem relativamente ao caso julgado penal e às decisões em
matéria disciplinar, por exemplo, acompanhando, de resto, a diferenciação de
regimes a que constitucionalmente estão sujeitos esses domínios.
Se a isto somarmos que a retroactividade da declaração de inconstitucionalidade,
ao contrário da retroactividade da lei penal mais favorável, suscita o problema das
penas já inteiramente cumpridas em virtude da norma declarada inconstitucional,
problema esse que tem se ser colocado e resolvido ainda nos termos do n° 3 do artigo
282°, não pode deixar de se concluir que, em virtude da indefinição que a carateriza,
não se pode retirar qualquer argumento da citada disposição para interpretar o n° 4
do artigo 29°. É, pelo contrário, possível retirar deste elementos que auxiliem na
interpretação daquela.

'“Neste sentido, cf. Rui Pereira, op. cit., págs. 71 e segs..


A APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO 111

8.4. Outros aspectos

Pode dizer-se que, no mais, a aplicação retroactiva da lei penal mais


favorável tem sido relativamente pacífica, pelo menos no plano do direito
contituído.
Assim sucede relativamente às questões da apreciação do carácter
favorável da lei em concreto ou em abstracto, da relevância das leis inter­
médias, da combinação ou altematividade das leis e das leis temporárias.
Deste geral consenso se afastou, quanto aos dois últimos problemas,
Taipa de Carvalho, defendendo a aplicação das disposições de cada uma
das leis em confronto que se mostrem mais favoráveis ao infractor107 e
exigindo, para aplicação do regime das lei temporárias, não só uma
situação de emergência, como ainda que a própria lei estabeleça formal
e inequivocamente o seu termo de vigência108.

9. A aplicação no tempo de nova lei sobre prescrição do procedimento


criminal

O presente relatório não ficaria completo se não referisse as dúvidas


surgidas quanto ao problema da aplicação de nova lei sobre prescrição do
procedimento criminal. Trata-se de saber se uma nova lei que altere o
regime de prescrição (nomeadamente alterando - encurtando ou
aumentando - o respectivo prazo) tem efeito sobre as prescrições em
curso (ou seja, já começadas mas ainda não completadas).
A doutrina dividiu-se relativamente à resposta a dar a esta questão,
embora se possa dizer maioritária a doutrina segundo a qual esse efeito
só é de reconhecer se a nova lei for mais favorável (no que respeita à
alteração dos prazos, se estes forem mais curtos), e, pese embora algumas
tomadas de posição nesse sentido109, não tem estado só em causa a
hasitação quanto à natureza (substantiva ou processual) reconhecida ao
instituto da prescrição.
Assim, a favor da eficácia da nova lei, quer seja favorável quer seja
desfavorável ao agente, alega-se que, mesmo reconhecendo a na-

107 Op. cit., págs. 154 e segs..


105 Op. cit., págs. 163 e segs..
109 Como a de Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, colig. por
H.Lacerda e C. Ferreira, Lisboa: FDUL, 1945, pág. 22.
112 DIREITO E JUSTIÇA

tureza substantiva da prescrição110, não se trata aí de aplicação retro-


acti va mas de simples aplicação imediata111. Contra, porém, alega-se que,
ainda se se considerar o instituto como processual112, a afinidade material
do problema com aquele que está em causa nos princípios da
irretroactividade e retroactividade conduz a excluir essa aplicação113.
Esta discussão foi deixada praticamente inalterada pelo assento do
Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Novembro de 1975, dado que este,
ao estabelecer que “a lei reguladora da prescrição do procedimento
criminal, que estabeleça prazo mais curto, é de aplicação imediata”114,
adoptava uma solução que, pelo menos em si mesma, era de aceitar por
qualquer das opiniões em presença115.
Já não assim o assento de 15 de Fevereiro de 1989, nos termos do
qual “em matéria de prescrição do procedimento criminal deve aplicar-
-se o regime mais favorável ao réu, mesmo que no momento da entrada
em vigor do Código Penal de 1982 estivesse supenso o prazo por virtude
de acusação deduzida”116, e perante o qual parece neste momento clara a

1,0 Expressamente neste sentido, cf. Beleza dos Santos, op. cit.,\Ágs. 199 e segs..
111 Neste sentido, cf., por exemplo, Abel do Valle, ao argumentar que o art. 6o do
Código Penal anterior consignava o princípio da não retroactividade e não estabelecia
excepção relativamente à prescrição (op. cit., p. 438); Luiz Lopes Navarro, op. cit., pág.
32; Beleza dos Santos, op. cit., págs. 200 e segs.; Eduardo Correia, op. cit., pág. 162.
No entanto, em «Anotação» ao Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de
Novembro de 1975 (in RU, Ano 108° (1976), págs. 361 e segs.) a posição parece ser um
pouco diferente dado que, embora sem pôr em causa a afirmação de que no caso se está
perante aplicação imediata da nova lei (pág. 362), vem a afirmar que, pressupondo a
natureza substantiva da prescrição, se põe em debate ainda o problema da retroactividade
da lei mais favorável, que conduziria a excluir a aplicação, aos prazos em curso, de nova
lei que alargasse os prazos de prescrição.
112 Expressamente neste sentido, cf. Cavaleiro de Ferreira, em Direito..., I cit.,
pág. 128. Posteriormente, o Autor veio a defender que o instituto tinha a natureza
substantiva de causa de extinção da punibilidade do crime (Lições de Direito Penal, II,
2* ed., Lisboa/S. Paulo: Verbo, 1989, pág. 195).
113 Trata-se de formulação sintética pois há diferenças na concretização do
argumento. Cf., por exemplo, Cavaleiro de Ferreira, Direito..., I cit., pág. 128; Teresa
Beleza, op. cit., págs. 462 e segs.; Lopes Rocha, op. cit., pág. 115.; Taipa de Carvalho,
op. cit., págs. 212 e segs., com base na distinção entre normas processuais penais formais
e materiais.
114 Cf. BMJ, n° 251 (1975), págs. 75 e segs..
115 Nessa base defende Lopes Rocha que se mantém válido ainda após a entrada em
vigor do Código Penal (op. cit., págs. 115 e 146, nota 35).
116 Cf. BMJ, n° 384 (1989), págs. 163 e segs..
A APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO 113

consagração do princípio da aplicação retroactiva da lei mais favorável


ao regime da prescrição.

10. Observação final

Da reflexão sobre a discussão surgida no domínio da prescrição do


procedimento criminal e sobre o problema, que com ela anda ligado, da
aplicação da lei processual penal no tempo resultam perplexidades que
fazem suspeitar que o problema da aplicação da lei no tempo esteja a ser,
não mal propriamente resolvido ou, mesmo até explicado, mas não cabal
e completamente exposto e com isto ponho termo ao meu abuso da
atenção dos mais benévolos e da paciência de todos.
Vejamos o que resulta do confronto entre prisão preventiva e pena
de prisão.
Literalmente, as soluções são distintas: tempus regit factiun (não
retroactividade nem ultra-actividade) e retroactividade da lei mais
favorável para a pena de prisão e tempus regit factum e ultra-actividade
da lei mais favorável, para a prisão preventiva.
Os resultados são, como não podiam deixar de ser, identicamente
iguais.
■to

Donde deriva, então, a diferença de formulação? Creio que da


diferença de perspectiva, pois, enquanto se continua a perspectivar a
matéria em Direito penal substantivo por referência ao facto criminoso,
a matéria em Direito penal processual olha à situação da prisão preventiva
em si mesma considerada.
E, pergunta-se: não será talvez mais aproximado da realidade
distinguir, na questão da aplicação da lei penal substantiva no tempo,
entre crime e responsabilidade penal, entre o apuramento do valor ou
des valor do facto e o apuramento do conteúdo e termos da responsabi lidade
penal?

I. Na discussão a respeito do problema da prescrição, a meu ver, a questão que


esteve em jogo não foi tanto a da natureza do instituto, mas sobretudo, a incerteza
quanto à relação que existe entre aplicação imediata e aplicação retroactiva de uma
lei.
E essa incerteza persistiu intocada na evolução recente da questão, pois que se
tratou, nessa evolução sobretudo de estear a solução da questão na natureza
substantiva, ou na relação estreita entre ela e o aspecto substantivo da punibilidade.
114 DIREITO E JUSTIÇA

ou na nautreza (processual) material das normas sobre a prescrição, sem nunca se dar
resposta à objecção oposta pela outra parte da doutrina e segundo a qual aplicar a nova
lei às prescrições em curso não consiste em aplicação retroactiva mas em aplicação
imediata.

n. Como Beleza dos Santos notou, só à primeira vista o problema se podia


resolver mediante a ponderação da natureza da prescrição pois ele se mantinha
mesmo considerando a prescrição como instituto de Direito substantivo. A explicação
de uma tal persistência é esta: é que também relativamente à lei substantiva a regra,
muitas vezes designada como irretroactividade, é a da aplicação da lei vigente no
momento da prática do facto e esta corresponde à aplicação imediata. Se o problema
não tem grande acuidade relativamente às leis mais favoráveis, já a tem relativamente
às leis menos favoráveis pois a aplicação imediata destas não é vedada relativamente
às leis substantivas, antes se impondo pelo primeiro princípio da aplicação da lei
penal no tempo.
E o mesmo se pode dizer se se considerar que se trata de um instituto processual
a que, em virtude da especial relação com a punibilidade do facto, são de aplicar os
princípios da lei penal.

ni. Considerando, por seu turno, a prescrição como instituto processual, a


questão também não fica inteiramente resolvida pela simples consideração de que se
está perante um aspecto que afecta particularmente a situação do arguido. Para o
compreender, vejamos sinteticamente o que se passa com a aplicação da lei
processual penal no tempo.
A) Os termos da Carta Constitucional (“ninguém será sentenciado senão pela
autoridade competente, por virtude de lei anterior, e na forma por ela prescrita”)
deram origem à dúvida sobre se não seriam exactamente os mesmos os princípios da
aplicação da lei penal no tempo, quer ela fosse processual (sobretudo em matéria de
competência), quer ela fosse substantiva. Assim, no domínio do processo penal,
enquanto uns defenderam a aplicabilidade da lei vigente no momento da prática do
facto1 ”, outros admitiram a aplicabilidade aos processos em curso de nova lei, desde

117 Neste sentido, cf. Lopes Praça, op. cit., págs. 40; F.J.D. Nazareth, Elementos
do processo criminal, 7* Ed., Coimbra: Imprensa da Universidade, 1886, nota (b) ao § 59,
págs. 47 e segs.; Chaves e Castro, A organização e competência dos tribunais dejustiça
portugueses. Coimbra: França Amado Ed., 1910, pois, se é certo que defende em geral
a aplicabilidade aos processos em curso de nova lei sobre competência (pág. 547), afirma,
a respeito da natureza da competência criminal, que ela é “expressamente definida pela
lei” e cita, em nota, os §§ 10° e 16° do art. 145° da Carta Constitucional e a lição de
Nazareth (págs. 597 e 598. nota (1)).
A APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO 115

que não ofendesse direitos adquiridos e garantias constitucionais"8 e outros, por fim,
interpretaram as disposições constitucionais no sentido de que ela se aplicava, não
às leis processuais mas apenas às substantivas, pelo que a nova lei processual se devia
aplicar sem limites aos processos pendentes119.
A alteração dos termos da Constituição, porém, permitiu de uma forma geral,
a diferenciação entre os princípios vigentes no domínio substantivo e no domínio
processual e assim, no domínio da legislação processual anterior, tanto constitucional,
como ordinária, a doutrina fixou-se na afirmação da aplicação imediata da lei
processual como princípio da aplicação da lei processual no tempo120.
Todavia, Figueiredo Dias defendeu que esse princípio estava sujeito a duas
limitações: por um lado, a íntima conexão entre os sucessivos actos do processo podia
conduzir a que se devesse aplicar uma alteração processual apenas aos processos
iniciados perante a lei nova; por outro, invocando precisamente o conteúdo da
garantia constitucional do princípio da legalidade, não devia aplicar-se a nova lei
processual penal a acto ou situação processual que ocorresse em processo pendente
ou derivasse de um crime cometido no domínio da lei antiga, sempre que da nova lei
derivasse um agravamento da posição processual do arguido ou, em particular, uma
limitação do seu direito de defesa121.
Se prescindirmos da questão da aplicação no tempo de nova lei so­
bre competência em matéria penal122, são basicamente essas as soluções que
constam hoje expressamente e em geral do artigo 5° do Código de Processo
Penal.
Desta forma, para aplicação da lei processual penal tem hoje de se distin­
guir entre normas que afectam e normas que não afectam sensivelmente a si-

118 Neste sentido se pronunciou Caeiro da Matta, op. cit., págs. 56 e segs.. Já
Navarro de Paiva havia defendido a aplicação aos processos pendentes da “lei mera e
simplesmente formularia” mas não da lei nova quanto à atribuição da jurisdição e
competência entre jurisdisdições preexistentes e quanto à organização de jurisdições
novas (Manual do Ministério Publico, I, 3“ ed., Porto: Typographia de António José da
Silva Teixeira, 1900, págs. 197 e segs.).
119 Neste sentido, cf. Marnoco e Sousa, op. cit., págs. 144 e segs.; Luiz Lopes
Navarro, op. cit., págs. 30 e segs..
120 Neste sentido, cf., por exemplo. Cavaleiro de Ferreira, por último em Curso
de Processo Penal, I, Lisboa: Danúbio, 1986, págs. 38 e segs.; Eduardo Correia,
Processo Criminal, Coimbra: Universidade de Coimbra, págs. 70 e segs..
121 Direito Processual Penal, I, Coimbra: Coimbra Ed., 1974, págs. 11 e segs..
122 Sobre o problema, cf. Figueiredo Dias, “Sobre o sentido do princípio jurídico-
-constitucional do «juiz natural».” inRU, Ano 111“ (1979), págs. 83 e segs.; Germano
Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 1,2* ed., Lisboa/S. Paulo: Verbo, págs. 50
e segs.. Permito-me ainda remeter parao meu A competência por conexão no novo Código
de Processo Penal, Lisboa, supl. desta Revista, 1992, págs. 149 e segs..
116 DIREITO E JUSTIÇA

tuação processual do arguido (nomeadamente, interferindo no seu direito de de­


fesa)123.
B) Ora, retomando o fio da questão, esta última distinção, se permite fundamentar
a solução do problema da prescrição (encarada como instituto processual), não
resolve o problema atrás identificado pois o que se estabelece no referido artigo do
Código de Processo Penal é que a nova lei não se aplica aos processos iniciados
anteriormente à sua vigência quando da sua aplicação imediata puder resultar
agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido e, portanto,
a aplicação ultra-activa da lei antiga e não a retroactividade da nova lei.

IV. A solução da questão passa por uma remeditação do princípio que se


costuma referir como de retroactividade da lei penal mais favorável.
Não se trata de afastar, por incorrecta ou errónea, a expressão retroactividade
mas antes de reconhecer que, em todo este domínio, jogamos com expressões
puramente relativas, uma vez que se trata de estabelecer a relação entre dois
momentos temporais. Assim, para exprimir a aplicação de uma nova lei a uma pena
que está em execução e que foi aplicada a um agente em virtude da prática de um
determinado crime, tanto pode dizer-se que a lei se aplica imediatamente à pena em
execução, como que ela se aplica retroactivamente ao crime que lhe deu causa. Pelo
contrário, para exprimir a não aplicação de uma lei a uma pena que está em execução
aplicada a um agente em virtude da prática de um determinado crime, tanto pode
dizer-se que a ela não se aplica imediatamente à pena em execução (aplicando-se
ultra-activamente a lei anterior), como que ela não se aplica retroactivamente ao
crime que lhe deu causa (aplicando-se a lei vigente no momento da perpetração
deste).
Portanto, a diferença atrás apontada não deriva de uma divergência entre
princípios mas de uma diferença de modos de os formular, originada por uma
diferença de perspectiva. É isso que explica a diferença de formulações, apesar da
identidade de regimes, entre a prisão preventiva e a pena de prisão. E é por isso
que não colhe o argumento utilizado para, pressupondo a natureza substantiva
da prescrição, defender a aplicação de lei menos favorável às prescrições em
curso.
A pergunta que surge imediatamente é a seguinte: qual é a perspectiva
preferível?

125 Neste sentido, cf. Taipa de Carvalho, que distingue entre normas processuais
formais e materiais defendendo a plena aplicabilidade a estas últimas dos princípios que
regem a aplicação da lei substantiva no tempo (op. cit., págs. 223 e segs.).
A APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO 117

Esta questão passa pela determinação do momento cronológico em que tem


lugar o elemento verdadeiramente determinante das soluções e para proceder a essa
determinação há que apelar para a justificação dos princípios. E se as razões de
garantia em face do legislador, que estão na base da regra segundo a qual as penas
e medidas de segurança se determinam pela lei vigente no momento da prática do
facto, apontam para o facto e o momento da prática do facto, a necessidade de
assegurar a justificação das penas durante a sua execução aponta necessariamente
para a pena e o momento da sua execução. Donde resulta, afinal, que os princípios
que regulam a aplicação da lei no tempo se podem exprimir desta forma: quanto ao
crime, aplicação da lei vigente no momento da sua prática (com exclusão da
aplicação retroactiva da nova lei); quanto à pena, aplicação imediata da nova lei,
excepto se ela for menos favorável ao agente.
Esta conclusão permite, ao que suponho, resolver a questão da distinção entre
sucessão de leis e novação da lei. Verdadeiramente, à aplicação de nova lei mais
favorável não importa retroacção da revogação total ou parcial da lei anterior.
Mesmo perante a revogação pura e simples de uma incriminação, está-se perante a
aplicação imediata de uma nova lei, o que se conclui do facto de, pela entrada em
vigor da revogação, não se tomar retroactivamente ilícita a aplicação e execução das
penas durante a vigência da lei anterior , apenas se excluindo a sua aplicação ou
continuação posterior.

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