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A discussão acerca de terminologia (politicamente) correta para se referir à população não-branca no Brasil é
intensa e antiga. Porém, nós, alunas pretas desse grupo, optamos por usar esse termo, em consonância inclusive
com o período no qual essa e outras palavras (tais como bicha, sapatão, viado) antes pejorativas têm sido
ressignificadas pelos grupos que elas definem. Quanto ao título do texto, optamos por fazer uma
paráfrase-homenagem a Lélia Gonzalez, intelectual cujo pensamento contribuiu — e ainda contribui
imensamente — para pensarmos sobre as vivências e representações do que é ser uma mulher preta no Brasil.
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mostra-se profícua e atual por conversar com as histórias de vida de grande parte das
universitárias inscritas em Interrogando o Gênero: Lendo Autoras Latino-americanas e
Africanas, utilizando ideias e obras que fizeram parte dos produtivos e incômodos debates do
semestre, como o conceito de dívida impagável, relatado por Denise Ferreira da Silva, e a
categoria da matripotência, descrita por Oyèrónké Oyéwùmí.
Também é um tema-resistência que traz uma reflexão urgente perante ao desmonte de
políticas públicas educacionais, programas de inclusão e de proteção social às mais diversas
minorias da população brasileira, sem ignorar o contexto de agravamento da fome nos lares
de 33,1 milhões de pessoas2, muitos dos quais sustentados por mulheres pretas.
Assim, ao optarmos por focalizar essa discussão no '' outro do outro”, questionamos,
também, a forma como esse grupo é visto pela sociedade. Ainda que representemos uma
importante parcela da população brasileira, a “santíssima trindade” que estrutura nosso país –
racismo-misoginia-capitalismo – nos quer dóceis, submissas, domestica(da)s. Não
deveríamos almejar nada além da categoria que Françoise Vergès (2020) chamou de “quem
limpa o mundo” (p.129)3. Essa discussão é, portanto, sobre raça, classe, gênero, etarismo e,
principalmente, sobre nós definirmos a partir dos nossos termos e dos nossos discursos. É
sobre (re)existir no mundo e na academia: “O lixo vai falar, e numa boa” (GONZALEZ,
2018, p. 193).
Ela citou tatuagens e começou a falar da origem dela, que veio do presidiário, da
prisão [...] ela pegou e falou assim que era muito feio tatuagem e que mais feio
ainda era quem tinha pele negra e que parecia pele encardida, quem tinha pele negra
e quem tinha tatuagem. (PORTAL G1, 2022)
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Os dados são do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no
Brasil, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede
PENSSAN). Ver em Fome no Brasil: número de brasileiros sem ter o que comer quase dobra em 2 anos de
pandemia. Portal G1, 8 de junho de 2022. Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/06/08/fome-no-brasil-numero-de-brasileiros-sem-ter-o-que-comer
-quase-dobra-em-2-anos-de-pandemia.ghtml>. Acesso em 15 de julho de 2022.
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Segundo a autora, “o capitalismo é uma economia que produz lixo e esse lixo deve desaparecer aos olhos de
quem tem direito a uma boa vida” (p. 127). Ainda que não sejam apenas mulheres a exercerem esse trabalho (há
homens e crianças), elas são a maioria e, também, produzidas como “sucata”. De acordo com Vergès (2020), “há
toda uma humanidade se dedicando a fazer um trabalho invisível e superexplorado para criar um mundo
adequado ao consumo e à vida institucional. Aqueles que “abrem as cidades”, devem “lidar com o sujo, o
contaminado, a água não potável, o lixo que não é recolhido, os plásticos que invadem tudo, os jardins nos quais
plantas morrem por falta de manutenção, os esgotos que não funcionam, o ar poluído [...] A segregação do
mundo se dá em uma divisão entre limpeza e sujeira baseada numa divisão racial do espaço urbano e da
moradia” (p. 127. É o puro suco da necropolítica. Sobre exploração de corpos femininos e ascensão do
capitalismo, vide também: O Calibã e a Bruxa (2017) e O Patriarcado do Salário (2021), ambos de Silvia
Federici.
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Como pontua Lélia Gonzalez (2020), há diversas correntes teóricas que procuram
justificativas para “a situação da população de cor (negros e mulatos) em nosso país, na
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Ver em Aluna denuncia professora por injúria racial em faculdade do ES. Portal G1, 22 de junho de 2022.
Disponível em:
<https://g1.globo.com/es/espirito-santo/noticia/2022/06/22/aluna-denuncia-professora-por-injuria-racial-em-facu
ldade-do-es.ghtml>. Acesso em 15 de julho de 2022.
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Em Perder a Mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão, Saidiya Hartman diz: “Essa é a sobrevida da
escravidão - oportunidades de vida incertas, acesso limitado à saúde e à educação, morte prematura,
encarceramento e pobreza” (2021: 13). É essa é a nossa herança: “fezes, sangue e pele esfoliada” (p. 141).
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medida em que tal situação se traduz numa participação mínima nos processos político,
econômico e cultural” (idem, p.25). E, de acordo com ela, esses autores e autoras não estão
imunes aos “efeitos do neocolonialismo cultural" (idem, ibidem) em suas obras. Para a
autora:
Ainda segundo a pesquisadora, o racismo brasileiro pode ser entendido como uma
“articulação ideológica e conjunto de práticas” que promulga uma “divisão racial do
trabalho” (GONZALEZ, 2020, p.29), funcionando como um critério fundamental “de
recrutamento para as posições na estrutura de classes e no sistema da estratificação social”
(idem, ibidem). Tal sistema culpabiliza a população preta por não acender acadêmica e
profissionalmente na pirâmide social, atribuindo a ela aspectos que seriam inerentes a esse
grupo racial, como preguiça e irresponsabilidade desde a infância: “[...] vale ressaltar que a
maioria das crianças negras, nas escolas de primeiro grau, são vistas como indisciplinadas,
dispersivas, desajustadas ou pouco inteligentes” (idem, p.32).
No caso específico das mulheres pretas, Lélia González (2020) lembra dos
estereótipos a elas atribuídos: papéis sociais que as desumanizam como sujeitos e relegam a
seus corpos atributos sexuais e de força de trabalho — resquícios do período da escravidão
legalizada no Brasil:
Tais papéis sociais podem ser exemplificados, segundo Lélia Gonzalez (2020), pelas
ideias de mulheres pretas como “domésticas” ou “mulatas”, como se tais lugares e ocupações
lhes fossem “naturais”. No primeiro caso, as domésticas podem ser entendidas não só como
trabalhadoras do lar, mas como serventes, auxiliares e merendeiras; já no segundo, a autora
reforça a imagem do corpo preto feminino como um produto a ser exportado e consumido por
classes socioeconômicas mais favorecidas, incluindo turistas estrangeiros.
Como desconstruir esses papéis social e historicamente atribuídos e sedimentar a ideia
da mulher negra como intelectual, incluída e participante ativa na produção do conhecimento
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científico reconhecido pelo sistema econômico neoliberal em que elas estão incluídas? Como
romper com essas estruturas violentas e pensar, criar e implementar uma poética negra
feminista na produção do saber acadêmico? A resposta para essa pergunta é complexa e
merece algumas considerações contextuais.
No Brasil, nos últimos anos, é certo dizer que a universidade, como uma instituição
extremamente hierárquica, é estruturada com base em estruturas excludentes, problema cujos
governos liderados pelo Partido dos Trabalhadores (PT) tentou mitigar com a implementação
de uma série de ações e programas de inclusão de pessoas pretas, indígenas, de baixa renda
e/ou oriundas do sistema público de educação básica, dos quais se destacam o Programa
Universidade Para Todos (Prouni), o Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino
Superior (Fies) e a Lei Federal nº 12.711/2012, também conhecida como Lei de Cotas.
Tais medidas têm alterado, mesmo que lentamente, o cenário das universidades.
Conforme Censo da Educação Superior6 e análise dos dados feita posteriormente, enquanto o
número de alunos negros no ensino superior cresceu 74,6% nos últimos anos, as ementas das
disciplinas, por outro lado, não se alteraram: houve apenas 8% no aumento do números de
professores negros nas universidades. Tais dados tratam do Brasil como um todo, mas
trazendo isso para a Universidade de São Paulo (USP), vemos que apenas 2% dos docentes
são negros7; os dados, no entanto, não informam quantos destes se veem como mulheres.
Sendo o racismo e o patriarcado partes das estruturas da nossa sociedade, as ações
pontuais por parte do governo e da iniciativa privada para diminuir a desigualdade racial e de
gênero não surtem o efeito necessário e urgente de mudança. Como bem define Denise
Ferreira da Silva:
Ou seja: estar na universidade sendo uma mulher negra é ser o outro do outro e muitas
vezes se perceber como objeto de estudo. Como, portanto, alterar essa estrutura patriarcal e
racista que acomete também o sistema educacional? Como fazer com que a dívida impagável
se torne minimamente pagável por meio do fazer científico e valorização dos saberes de
mulheres pretas? Como processar o “fim” de uma narrativa acadêmica pautada no sistema da
branquidade?
As respostas para esses questionamentos são muitas, mas perpassam a necessidade de
uma produção de conhecimento e saberes a partir e através da academia que marque “o fim
de um modo de ser e pensar”, como indicado pela poética negra feminista de Denise Ferreira
da Silva (2019). É preciso, assim, chamar a atenção para as narrativas acadêmicas construídas
nas fissuras da colonialidade de saber, e se delimitam e legitimam não por uma binariedade
patriarcal cisgênera e racista, mas pela possibilidade de “novos mundos” decoloniais. Onde
“criar” é o caminho, ou melhor, a encruzilhada pela qual estabeleceremos a base de nossos
saberes.
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Na nossa sociedade, mulheres que são mães são frequentemente vistas como
incapazes e também são, de certa forma, marginalizadas de certos ambientes sociais,
especialmente no mercado de trabalho e no meio acadêmico. No entanto, é justamente da
ideia de maternidade que surge uma possibilidade para recriarmos as formas pelas quais
incluímos e mantemos mulheres pretas do sistema educacional, desconstruindo as bases
coloniais que sustentam a hierarquia universitária por meio da valorização de
conhecimentos ancestrais.
Segundo Oyèrónké Oyěwùmí (2008), na tradição Yorubá as crianças nascem
primordialmente de suas Ìyás, espiritual e fisicamente. Os laços da “mãe” a uma prole
particular são vistos como fortes e de uma ordem diferente de qualquer outro vínculo. A
díade Ìyá-prole é percebida como antecedente da aparição terrena da criança, portanto,
antecede o casamento e todas as outras relações familiares. Assim sendo, “ser mãe” é
entendido muito mais como um processo espiritual do que biológico, como a estrutura
branca e imperial desejou fundamentar. Nessa experiência social específica, não há
exigências correspondentes ao pai, entendido como uma categoria fundamentalmente social
e não espiritual (OYAWUMÌ, 2008).
Dessa forma, a autora nos apresenta a matripotência como o modo autóctone iorubá
de pensar a experiência na qual as mães exercem suas maternidades fora dos registros
patriarcais de gênero que o ocidente insiste em imprimir nas experiências de populações que
vivenciaram a colonização e o imperialismo. A matripotência levaria-nos para além de um
mundo narcísico e branco e de seus registros patriarcais a respeito da procriação,
maternidade e da reprodução. Ou seja, ela considera as consequências políticas de uma
organização social em torno da mãe e não apenas do pai (NASCIMENTO, 2021) – ou
melhor, através da realidade social de mulheres..
Portanto, trazer este conceito para pensar a produção de conhecimento na
universidade teria como objetivo “enegrecer” nossas relações sociais para além dos espaços
de poder que o conhecimento branco ocupa, e também para além das fronteiras criadas pelo
racismo que objetiva limitar o acesso de mulheres, mães e negras a tais espaços. O caráter
absolutamente coletivo da instituição Ìyá pode nutrir um caminho decolonial rumo a
reflexões ancestrais e curativas a respeito do fazer acadêmico a partir da maternidade, e
acima de tudo, o ser mulher dentro de uma sociedade.
Ao dissertar sobre a instituição da “maternidade” e de sua posição única na
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Considerações finais
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É preciso lembrar que Denise Ferreira da Silva também está interessada na possibilidade da criação artística a
partir de uma perspectivas anti-colonial, buscando uma perspectiva crítica representacional pós-colonial através
da arte (SILVA, 2020, p.291) e questionando o “pressuposto da universalidade que dá suporte ético à
representação (jurídico, simbólico, econômico)” (idem, ibidem, 293). Para ela, “uma obra de arte anti-colonial
questiona cada modo, cada forma de apresentação, transformando-a num confronto – que é a apresentação como
recusa da representação” (idem, ibidem, p.91).
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permanência por meio de um sistema que isola, exclui, silencia e não representa as pessoas
que agora passaram a adentrá-lo.
Mudar essa lógica exige uma transformação profunda, que vai além de uma simples
quebra de paradigmas sistêmicos. Um sistema de ensino superior dentro da lógica da Poética
Negra Feminista de Denise Ferreira da Silva seria muito mais que isso. Nas palavras da
própria autora, essa é uma “práxis radical” que, por sua vez:
Ou seja, não bastaria acolher mulheres pretas dentro da estrutura universitária que
hoje temos, seria preciso destruí-la, porque o “horizonte do pensamento, onde a historicidade
(temporalidade/interioridade), mapeada pelas ferramentas da razão universal, sempre produz
violência” (idem, ibidem, p.92).
Por sua vez, a ideia de matripotência nos traz a possibilidade de pensar a produção de
saberes para além das academias ocidentais, profundamente enraizadas em uma cultura
imperialista e, consequentemente, misógina e racista, que exclui e silencia especialmente as
mulheres pretas.
Enquanto essas estruturas coloniais persistem, acessar, permanecer e diplomar-se na
universidade não deixa de ser uma espécie de poética de resistência para mulheres pretas.
Isso significa que se faz necessária uma ruptura epistêmica, que abra os caminhos para novas
percepções de ser e estar no mundo. Através das histórias e experiências das mulheres negras
que emergem de solos culturais e de projetos políticos distintos - a exemplo da sociedade
yorubá - que não se baseia em modelos universais de produção de conhecimento, prezando
pelo cuidado e pela coletividade.
Como reforçado por Oyěwùmí (2008), os nossos sentidos e a forma como
“apreendemos” a realidade, não devem ser restritos à visão, muito menos associá-la
correntemente ao conhecimento. Pois muitas são as sensibilidades que nossos braços, nossos
ouvidos podem alcançar. E como Ìyá nos ensina, através do espírito que nos guia em direção
a “outros mundos possíveis” para além do império.
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