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Racismo e sexismo na universidade brasileira: notas sobre o silenciamento do fazer


científico das mulheres pretas1

Adriana Pereira da Paixão - 11151052


Beatriz Rodrigues Lima - 6843832
Carolina Carreiro Alencar de Carvalho - 10548876
Jerusa Machado Gomes - 6339291
Maria Carolina Casati Digiampietri - 3369779
Mariana Carolina Mandelli - 6319994
Raquel Aline Pereira de Souza - 12021308

Embora exista uma narrativa que estabeleça a Universidade como um espaço


democrático que aceita as diferenças, ou um local em que todas/os têm as mesmas
oportunidades de se expressar, é nela que encontramos as heranças do colonialismo. De
acordo com Lugones (2020), a colonialidade do saber se faz evidente em momentos em que
somos medides pela forma com a qual desenvolvemos nossas pesquisas e fazemos ciência: o
que (não) sabemos, o que fazemos (de errado), no que acreditamos e aquilo que (não) demos
conta de observar. Ao entregarmos nossos textos há sempre aquilo que não é dito, as
dificuldades do dia-a-dia, as interdições de determinados temas. Apesar de temas como
mulheridades, sexualidades, Queer, lesbianidades, entre outros estarem ganhando força nos
programas de pós-graduação, ainda há uma resistência que se manifesta a partir de uma
gramática de silenciamento, de censura, de interdição, o estrutural que reforça o sexismo e
racismo no meio acadêmico.
Utilizando também a argumentação de Denise Ferreira da Silva (2019), é possível
dizer que a universidade brasileira tem uma dívida impagável para com as mulheres pretas —
e é este um dos temas que pretendemos explorar neste breve ensaio, mesmo sabendo que ele
não dá conta da complexidade das questões e dos possíveis conceitos e obras que dialogam
com esta problemática.
Para concluir um curso como este, uma disciplina que discutiu tão afetiva e
profundamente as condições sociohistóricas que atravessam os corpos e as vivências de
mulheres pretas e indígenas nos contextos latino-americanos e africanos, a escolha por
debater os entraves que estas enfrentam em suas trajetórias acadêmicas e intelectuais

1
A discussão acerca de terminologia (politicamente) correta para se referir à população não-branca no Brasil é
intensa e antiga. Porém, nós, alunas pretas desse grupo, optamos por usar esse termo, em consonância inclusive
com o período no qual essa e outras palavras (tais como bicha, sapatão, viado) antes pejorativas têm sido
ressignificadas pelos grupos que elas definem. Quanto ao título do texto, optamos por fazer uma
paráfrase-homenagem a Lélia Gonzalez, intelectual cujo pensamento contribuiu — e ainda contribui
imensamente — para pensarmos sobre as vivências e representações do que é ser uma mulher preta no Brasil.
2

mostra-se profícua e atual por conversar com as histórias de vida de grande parte das
universitárias inscritas em Interrogando o Gênero: Lendo Autoras Latino-americanas e
Africanas, utilizando ideias e obras que fizeram parte dos produtivos e incômodos debates do
semestre, como o conceito de dívida impagável, relatado por Denise Ferreira da Silva, e a
categoria da matripotência, descrita por Oyèrónké Oyéwùmí.
Também é um tema-resistência que traz uma reflexão urgente perante ao desmonte de
políticas públicas educacionais, programas de inclusão e de proteção social às mais diversas
minorias da população brasileira, sem ignorar o contexto de agravamento da fome nos lares
de 33,1 milhões de pessoas2, muitos dos quais sustentados por mulheres pretas.
Assim, ao optarmos por focalizar essa discussão no '' outro do outro”, questionamos,
também, a forma como esse grupo é visto pela sociedade. Ainda que representemos uma
importante parcela da população brasileira, a “santíssima trindade” que estrutura nosso país –
racismo-misoginia-capitalismo – nos quer dóceis, submissas, domestica(da)s. Não
deveríamos almejar nada além da categoria que Françoise Vergès (2020) chamou de “quem
limpa o mundo” (p.129)3. Essa discussão é, portanto, sobre raça, classe, gênero, etarismo e,
principalmente, sobre nós definirmos a partir dos nossos termos e dos nossos discursos. É
sobre (re)existir no mundo e na academia: “O lixo vai falar, e numa boa” (GONZALEZ,
2018, p. 193).

“Não nos querem aqui”

Ela citou tatuagens e começou a falar da origem dela, que veio do presidiário, da
prisão [...] ela pegou e falou assim que era muito feio tatuagem e que mais feio
ainda era quem tinha pele negra e que parecia pele encardida, quem tinha pele negra
e quem tinha tatuagem. (PORTAL G1, 2022)

2
Os dados são do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no
Brasil, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede
PENSSAN). Ver em Fome no Brasil: número de brasileiros sem ter o que comer quase dobra em 2 anos de
pandemia. Portal G1, 8 de junho de 2022. Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/06/08/fome-no-brasil-numero-de-brasileiros-sem-ter-o-que-comer
-quase-dobra-em-2-anos-de-pandemia.ghtml>. Acesso em 15 de julho de 2022.
3
Segundo a autora, “o capitalismo é uma economia que produz lixo e esse lixo deve desaparecer aos olhos de
quem tem direito a uma boa vida” (p. 127). Ainda que não sejam apenas mulheres a exercerem esse trabalho (há
homens e crianças), elas são a maioria e, também, produzidas como “sucata”. De acordo com Vergès (2020), “há
toda uma humanidade se dedicando a fazer um trabalho invisível e superexplorado para criar um mundo
adequado ao consumo e à vida institucional. Aqueles que “abrem as cidades”, devem “lidar com o sujo, o
contaminado, a água não potável, o lixo que não é recolhido, os plásticos que invadem tudo, os jardins nos quais
plantas morrem por falta de manutenção, os esgotos que não funcionam, o ar poluído [...] A segregação do
mundo se dá em uma divisão entre limpeza e sujeira baseada numa divisão racial do espaço urbano e da
moradia” (p. 127. É o puro suco da necropolítica. Sobre exploração de corpos femininos e ascensão do
capitalismo, vide também: O Calibã e a Bruxa (2017) e O Patriarcado do Salário (2021), ambos de Silvia
Federici.
3

A fala acima é de a uma estudante de uma instituição privada de ensino superior em


Vitória, Espírito Santo, e são referentes a ofensas racistas proferidas por uma de suas
professoras4. A docente, que ainda teria dito à aluna que “jamais faria tatuagem nela, pois as
marcas seriam coisas de escravos e ela não era escrava” (idem, ibidem), foi autuada em
flagrante por injúria racial, mas pagou a fiança. O caso é recente: aconteceu em junho de
2022 e, assim como tantos outros, é reflexo da estrutura colonial que perpetra no ambiente
acadêmico e nas demais esferas da sociedade brasileira.
Ao associar o corpo preto da universitária à prisão, à feiúra e à escravidão, a
professora reproduz o discurso que situa a população preta brasileira fora da universidade,
lugar que seria apropriado somente àqueles e àquelas privilegiades, aqueles que podem
estudar, “ser alguém”, ter uma profissão. A “massa marginal” da nossa sociedade, expressão
utilizada pela socióloga e antropóloga Denise Ferreira da Silva (2019), portanto, não
pertenceria aos bancos dessas instituições e, sim, aos cenários de desemprego, subempregos e
“atividades terciárias de baixa remuneração” (idem, ibidem).
Se a carne eo sangue do capitalismo global não são mais do que uma materialização
contemporânea do suor, sangue, dores, sonhos e carne de populações negras e indígenas
(FERREIRA, 2019), isso não escapa ao nosso sistema educacional, ainda mais quando
observamos a precária diversidade racial nas comissões e programas de graduação e
pós-graduação das melhores universidades ou na composição da diretoria dos mais
prestigiados institutos de pesquisa do país, majoritariamente dominadas por homens brancos5.
Ou seja, do acesso à diplomação, as trajetórias de mulheres pretas nas faculdades e
universidades é permeada por obstáculos interseccionais que sujeitos brancos não enfrentam,
o que traz a esse grupo em específico uma série de sofrimentos, violência e silenciamentos
durante o acesso ao conhecimento e a construção da autonomia acadêmica.

Racismo e sexismo como estruturas do sistema educacional

Como pontua Lélia Gonzalez (2020), há diversas correntes teóricas que procuram
justificativas para “a situação da população de cor (negros e mulatos) em nosso país, na

4
Ver em Aluna denuncia professora por injúria racial em faculdade do ES. Portal G1, 22 de junho de 2022.
Disponível em:
<https://g1.globo.com/es/espirito-santo/noticia/2022/06/22/aluna-denuncia-professora-por-injuria-racial-em-facu
ldade-do-es.ghtml>. Acesso em 15 de julho de 2022.
5
Em Perder a Mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão, Saidiya Hartman diz: “Essa é a sobrevida da
escravidão - oportunidades de vida incertas, acesso limitado à saúde e à educação, morte prematura,
encarceramento e pobreza” (2021: 13). É essa é a nossa herança: “fezes, sangue e pele esfoliada” (p. 141).
4

medida em que tal situação se traduz numa participação mínima nos processos político,
econômico e cultural” (idem, p.25). E, de acordo com ela, esses autores e autoras não estão
imunes aos “efeitos do neocolonialismo cultural" (idem, ibidem) em suas obras. Para a
autora:

No Brasil, o racismo — enquanto construção ideológica e um conjunto de práticas


— passou por um processo de perpetuação e reforço após a abolição da escravatura,
na medida em que beneficiou e beneficia determinados interesses. (GONZALEZ,
2020, p. 28)

Ainda segundo a pesquisadora, o racismo brasileiro pode ser entendido como uma
“articulação ideológica e conjunto de práticas” que promulga uma “divisão racial do
trabalho” (GONZALEZ, 2020, p.29), funcionando como um critério fundamental “de
recrutamento para as posições na estrutura de classes e no sistema da estratificação social”
(idem, ibidem). Tal sistema culpabiliza a população preta por não acender acadêmica e
profissionalmente na pirâmide social, atribuindo a ela aspectos que seriam inerentes a esse
grupo racial, como preguiça e irresponsabilidade desde a infância: “[...] vale ressaltar que a
maioria das crianças negras, nas escolas de primeiro grau, são vistas como indisciplinadas,
dispersivas, desajustadas ou pouco inteligentes” (idem, p.32).
No caso específico das mulheres pretas, Lélia González (2020) lembra dos
estereótipos a elas atribuídos: papéis sociais que as desumanizam como sujeitos e relegam a
seus corpos atributos sexuais e de força de trabalho — resquícios do período da escravidão
legalizada no Brasil:

No período que imediatamente sucedeu à abolição, nos primeiros tempos de


“cidadãos iguais perante a lei”, coube à mulher negra arcar com a posição de viga
mestra de sua comunidade. Foi o sustento moral e a subsistência dos demais
membros da família. Isso significou que seu trabalho físico foi decuplicado, uma
vez que era obrigada a se dividir entre o trabalho duro na casa da patroa e as suas
obrigações familiares (GONZALEZ, 2020, p.33).

Tais papéis sociais podem ser exemplificados, segundo Lélia Gonzalez (2020), pelas
ideias de mulheres pretas como “domésticas” ou “mulatas”, como se tais lugares e ocupações
lhes fossem “naturais”. No primeiro caso, as domésticas podem ser entendidas não só como
trabalhadoras do lar, mas como serventes, auxiliares e merendeiras; já no segundo, a autora
reforça a imagem do corpo preto feminino como um produto a ser exportado e consumido por
classes socioeconômicas mais favorecidas, incluindo turistas estrangeiros.
Como desconstruir esses papéis social e historicamente atribuídos e sedimentar a ideia
da mulher negra como intelectual, incluída e participante ativa na produção do conhecimento
5

científico reconhecido pelo sistema econômico neoliberal em que elas estão incluídas? Como
romper com essas estruturas violentas e pensar, criar e implementar uma poética negra
feminista na produção do saber acadêmico? A resposta para essa pergunta é complexa e
merece algumas considerações contextuais.
No Brasil, nos últimos anos, é certo dizer que a universidade, como uma instituição
extremamente hierárquica, é estruturada com base em estruturas excludentes, problema cujos
governos liderados pelo Partido dos Trabalhadores (PT) tentou mitigar com a implementação
de uma série de ações e programas de inclusão de pessoas pretas, indígenas, de baixa renda
e/ou oriundas do sistema público de educação básica, dos quais se destacam o Programa
Universidade Para Todos (Prouni), o Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino
Superior (Fies) e a Lei Federal nº 12.711/2012, também conhecida como Lei de Cotas.
Tais medidas têm alterado, mesmo que lentamente, o cenário das universidades.
Conforme Censo da Educação Superior6 e análise dos dados feita posteriormente, enquanto o
número de alunos negros no ensino superior cresceu 74,6% nos últimos anos, as ementas das
disciplinas, por outro lado, não se alteraram: houve apenas 8% no aumento do números de
professores negros nas universidades. Tais dados tratam do Brasil como um todo, mas
trazendo isso para a Universidade de São Paulo (USP), vemos que apenas 2% dos docentes
são negros7; os dados, no entanto, não informam quantos destes se veem como mulheres.
Sendo o racismo e o patriarcado partes das estruturas da nossa sociedade, as ações
pontuais por parte do governo e da iniciativa privada para diminuir a desigualdade racial e de
gênero não surtem o efeito necessário e urgente de mudança. Como bem define Denise
Ferreira da Silva:

Minha primeira manobra é revisitar a figuração da mercadoria, numa consideração


da expropriação colonial, por uma abordagem diferente da leitura que o
materialismo histórico faz da escravidão. Contra a visão teórica tradicional que situa
a escravidão na pré-história do capital, eu proponho a necessidade de reconhecer
que o valor total produzido pela mão-de-obra escrava continua a sustentar o capital
global (2019, p.87)

É relevante, portanto, situar a escravização e a exploração de determinados corpos não


somente como um período histórico transcorrido, mas como presente, visto que a colonização
ainda reverbera nas estruturas sociais atuais com o que se chama de colonialidade.
6
O Censo da Educação Superior é um levantamento estatístico realizado anualmente pelo Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, autarquia federal ligada ao Ministério da Educação (MEC).
7
Ver em 2,2% dos professores da USP se autodeclaram pretos ou pardos. Jornal da USP, 14 de novembro de
2018. Disponível em:
<https://jornal.usp.br/universidade/professores-da-usp-se-autodeclaram-pretos-ou-pardos/> Acesso em 10 de
julho de 2022.
6

Assim, quando observamos os dados sobre o ensino superior brasileiro, lembramos do


conceito de dívida impagável de Denise Ferreira da Silva (2019): o árduo processo para
acessar e concluir uma graduação não paga a dívida da sociedade com as mulheres negras.
Além das profundas desigualdades socioeconômicas, uma mulher negra dentro da
universidade também se depara com a condição de adoecimento mental. Isto porque, ao
adentrar um ambiente majoritariamente branco, a perspectiva de silenciamento e não
pertencimento pode se expandir ao não se enxergar em colegas, docentes e saberes.
Grada Kilomba, em seu livro Memórias de uma Plantação (2019), relata como as
pessoas alemãs constantemente a relembravam de que seu corpo não pertencia àquele local,
fazendo a ela sempre a mesma pergunta: de onde você vem? (KILOMBA, 2019, p. 111). Ou
seja: corpos femininos negros são vistos como dissidentes em determinados espaços, como os
ambientes elitizados de âmbito acadêmico. Corpos não-normativos recebem uma etiqueta ao
serem aprovados no vestibular ou no processo seletivo da pós-graduação que diz
“Outro/estrangeiro”, como aponta a psiquiatra Neusa Santos Souza:

Outra figura do estranho é o feminino. O feminino pensado como diferença,


alteridade o feminino como Outro. Outro sexo, outro modo de gozo, outra
raça, outro país, outra língua. O feminino é o Outro que se opõe ao mesmo,
resiste ao um da norma, faz objeção ao todo, à totalização, se contrapõe à
ordem dominante. Norma de um lado, feminino do outro. A norma é sempre
o masculino, o fálico, o adulto, o europeu. O feminino é o excedente, a
desmesura, o que não se deixa reduzir, o que, com a norma, não tem medida
comum. (SOUZA, 2021, p. 126)

Ou seja: estar na universidade sendo uma mulher negra é ser o outro do outro e muitas
vezes se perceber como objeto de estudo. Como, portanto, alterar essa estrutura patriarcal e
racista que acomete também o sistema educacional? Como fazer com que a dívida impagável
se torne minimamente pagável por meio do fazer científico e valorização dos saberes de
mulheres pretas? Como processar o “fim” de uma narrativa acadêmica pautada no sistema da
branquidade?
As respostas para esses questionamentos são muitas, mas perpassam a necessidade de
uma produção de conhecimento e saberes a partir e através da academia que marque “o fim
de um modo de ser e pensar”, como indicado pela poética negra feminista de Denise Ferreira
da Silva (2019). É preciso, assim, chamar a atenção para as narrativas acadêmicas construídas
nas fissuras da colonialidade de saber, e se delimitam e legitimam não por uma binariedade
patriarcal cisgênera e racista, mas pela possibilidade de “novos mundos” decoloniais. Onde
“criar” é o caminho, ou melhor, a encruzilhada pela qual estabeleceremos a base de nossos
saberes.
7

A matripotência como categoria para descolonizar o sistema acadêmico

Na nossa sociedade, mulheres que são mães são frequentemente vistas como
incapazes e também são, de certa forma, marginalizadas de certos ambientes sociais,
especialmente no mercado de trabalho e no meio acadêmico. No entanto, é justamente da
ideia de maternidade que surge uma possibilidade para recriarmos as formas pelas quais
incluímos e mantemos mulheres pretas do sistema educacional, desconstruindo as bases
coloniais que sustentam a hierarquia universitária por meio da valorização de
conhecimentos ancestrais.
Segundo Oyèrónké Oyěwùmí (2008), na tradição Yorubá as crianças nascem
primordialmente de suas Ìyás, espiritual e fisicamente. Os laços da “mãe” a uma prole
particular são vistos como fortes e de uma ordem diferente de qualquer outro vínculo. A
díade Ìyá-prole é percebida como antecedente da aparição terrena da criança, portanto,
antecede o casamento e todas as outras relações familiares. Assim sendo, “ser mãe” é
entendido muito mais como um processo espiritual do que biológico, como a estrutura
branca e imperial desejou fundamentar. Nessa experiência social específica, não há
exigências correspondentes ao pai, entendido como uma categoria fundamentalmente social
e não espiritual (OYAWUMÌ, 2008).
Dessa forma, a autora nos apresenta a matripotência como o modo autóctone iorubá
de pensar a experiência na qual as mães exercem suas maternidades fora dos registros
patriarcais de gênero que o ocidente insiste em imprimir nas experiências de populações que
vivenciaram a colonização e o imperialismo. A matripotência levaria-nos para além de um
mundo narcísico e branco e de seus registros patriarcais a respeito da procriação,
maternidade e da reprodução. Ou seja, ela considera as consequências políticas de uma
organização social em torno da mãe e não apenas do pai (NASCIMENTO, 2021) – ou
melhor, através da realidade social de mulheres..
Portanto, trazer este conceito para pensar a produção de conhecimento na
universidade teria como objetivo “enegrecer” nossas relações sociais para além dos espaços
de poder que o conhecimento branco ocupa, e também para além das fronteiras criadas pelo
racismo que objetiva limitar o acesso de mulheres, mães e negras a tais espaços. O caráter
absolutamente coletivo da instituição Ìyá pode nutrir um caminho decolonial rumo a
reflexões ancestrais e curativas a respeito do fazer acadêmico a partir da maternidade, e
acima de tudo, o ser mulher dentro de uma sociedade.
Ao dissertar sobre a instituição da “maternidade” e de sua posição única na
8

sociedade iorubá, tal categoria nos auxiliaria na problematização e configuração de novos


arranjos na produção de saber. De todo modo, ainda podemos considerar que esses diálogos
tornam possível a experiência da descolonização (NASCIMENTO, 2021), reconhecendo a
matripotência como um formato de saber para além do “mundo branco”, fortalecendo a
relação entre Ìyá/prole que retoma uma estruturação de sociedade e de sujeitos de forma não
unitária, binária e sempre coletiva, algo que, sabemos, não ocorre dentro dos ambientes
acadêmicos contemporâneos, ainda substancialmente perpetrados pela branquitude e
heteronormatividade, com pouquíssimas mulheres não brancas em posições de poder.
A “mãe” no yorubá é sempre algo coletivo, composta pelo axé, força fundamental de
Ìyá. Ser mulher no mundo imperial ao ser produzida pela diferença para legitimar a
desigualdade, é em seu oposto, na experiência yorubá a potência fundadora que estabelece a
relação de criação e produção de vida com o restante do mundo (NASCIMENTO, 2021).
Nas palavras do autor Wanderson Flor do Nascimento (2021), essa diferença
múltipla em torno de Ìyá oferece marcos para a compreensão da experiência iorubá que
contornam hierarquizações que foram responsáveis por aprisionar a subjetividade dos
corpos negros, de maneira a sujeitá-los à marcha do progresso ocidental sob a justificativa
de que eram o lado inferior de uma dicotomia hierarquizada. A matripotência, desse modo,
apresenta facetas do mundo social iorubá que vedam a possibilidade dessa interpretação
imperial.
Assim, a categoria de matripotência nos fornece, por seu turno, os instrumentos para
encarar as armadilhas imperialistas que reduzem a produção de saber, a maternidade e a
ancestralidade baseada pelo parentesco na forma de um binário hierarquizado. Entendemos
neste trabalho por matripotência a recusa em descrever as experiências das mães negras na
academia, por meio de lógicas ocidentocêntricas de conhecimento que resultam por
inscrever os povos em uma hierarquia existencial, subordinada e subordinante
(NASCIMENTO, 2021).

Poética negra feminista: uma forma de fazer ciência?

Podemos aprender a trabalhar e a


falar apesar do medo, da mesma
maneira que aprendemos a
trabalhar e a falar apesar de
cansadas. Fomos educadas para
respeitar mais ao medo do que a
nossa necessidade de linguagem e
definição, mas se esperamos em
9

silêncio que chegue a coragem, o


peso do silêncio vai nos afogar.
O fato de estarmos aqui e que eu
esteja dizendo essas palavras, já é
uma tentativa de quebrar o silêncio
e estender uma ponte sobre nossas
diferenças, porque não são as
diferenças que nos imobilizam,
mas o silêncio. E restam tantos
silêncios para romper! (LORDE, 2021)

Além da ideia de matripotência como categoria fundamental para repensarmos a


relação de mulheres pretas com a vida acadêmica, também é preciso trazer para o debate a
poética negra feminista de Denise Ferreira da Silva. A autora sugere uma narrativa que
marque o fim de um modo de ser e pensar, não como prática violenta de silenciamento, mas
chamando a atenção para as fronteiras que delimitam e legitimam saberes que reconhecemos
como “teoria" daqueles vistos pejorativamente como "manifesto" ou como "políticos";
daqueles escritos “culturais”, de histórias orais assombradas pelo tempo da escravidão.
Questiona a autora:

Como descrever a tarefa? Qual é a intenção da Poética Negra?


Seria este um programa ético que, em vez de visar a melhoria do
Mundo como o conhecemos, tenha como meta o seu fim? Que tipo
de programa radical abordaria simultaneamente as três dimensões
do político – isto é, o jurídico, o econômico e o simbólico? (SILVA,
2019, p.86).

A poética negra feminista seria uma “possibilidade de conhecer sem as categorias


modernas” (idem, ibidem, p.93):

Emancipar a Negridade do Mundo Ordenado exige que o conhecer


e o fazer sejam emancipados do Pensamento, desarticulados das
maneiras pelas quais o Pensamento – o suposto trono do universal
– é limitado, circunscrito e encarcerado pela Verdade (idem,
ibidem, p.97)

O que a autora chama de “Poética da Negridade” estaria configurada pelo sexual no


corpo feminino, “capaz de anunciar uma variedade de possibilidades para o conhecer, o fazer
e o existir” (idem, ibidem, p.86). Para isso, é preciso o fim do mundo produzido pelas
ferramentas da razão branca, porque somente dessa forma teríamos o fim da “narrativa sobre
a subjugação racial produzida pelas ferramentas da racialidade” (idem, ibidem, p.90) que
perpetuam sistematicamente arquiteturas coloniais, como nossos modelos jurídicos,
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econômicos e educacionais. Em suma: “a força radical da Negridade reside na virada do


pensamento; o conhecer e o estudar conduzidos pela Negridade anunciam o Fim do Mundo
como o conhecemos” (idem, ibidem, p.91).
A intenção e, porque não, pretensão, de Denise Ferreira da Silva em nomear a poesia
negra feminina e feminista enquanto uma ciência que atravessa o riso, a vida, vivências, lutas,
e reitera a possibilidade de viver8, sem dúvida legitima as poucas chances das mulheres pretas
viverem sem terem que pedir licença. Isso fica evidente logo nas primeiras páginas de A
dívida impagável (2019), quando a poeta, escritora e artista Jota Mombaça questiona: Como
descolonizar a matéria? A resposta, por mais complexa que seja, deve considerar as formas
com que criamos e produzimos o mundo em que habitamos, processos que estão totalmente
amalgamados às estruturas coloniais que sustentam a produção de conhecimento dentro das
instituições de ensino superior.

Considerações finais

A reforma universitária que ocorreu no Brasil a partir de 2008 sugeriu algumas


mudanças, balizadas por alguns eixos, tais quais: expansão da graduação, com cobertura
territorial e inclusão social; recuperação do financiamento para universidade pública;
ampliação de quadros docentes; novos formatos dos processos seletivos; reestruturação
curricular da graduação; e revisão da pós-graduação. O Fies, o Prouni e o sistemas de cotas,
entre outros programas que visam, à priori, facilitar o acesso ao ensino superior, fizeram
chegar às universidades uma parte da população que, até então, não era bem-vinda.
Como heranças do colonialismo, o racismo, o machismo e o sexismo constroem e
mantêm uma gramática de apagamento/silenciamento das mulheres pretas nos espaços
universitários. Sabemos que não é de interesse dos governantes que pessoas pretas, pardas,
indígenas, LGBTQIA+ e com deficiência, ou seja, as pessoas que representam minorias,
marcadas por diferenças sociais, acessem e permaneçam na universidade.
A política de acesso é, de longe, uma maquiagem que dialoga com o mito da
democracia racial no Brasil. Ao mesmo tempo em que se promete a entrada, se nega a

8
É preciso lembrar que Denise Ferreira da Silva também está interessada na possibilidade da criação artística a
partir de uma perspectivas anti-colonial, buscando uma perspectiva crítica representacional pós-colonial através
da arte (SILVA, 2020, p.291) e questionando o “pressuposto da universalidade que dá suporte ético à
representação (jurídico, simbólico, econômico)” (idem, ibidem, 293). Para ela, “uma obra de arte anti-colonial
questiona cada modo, cada forma de apresentação, transformando-a num confronto – que é a apresentação como
recusa da representação” (idem, ibidem, p.91).
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permanência por meio de um sistema que isola, exclui, silencia e não representa as pessoas
que agora passaram a adentrá-lo.
Mudar essa lógica exige uma transformação profunda, que vai além de uma simples
quebra de paradigmas sistêmicos. Um sistema de ensino superior dentro da lógica da Poética
Negra Feminista de Denise Ferreira da Silva seria muito mais que isso. Nas palavras da
própria autora, essa é uma “práxis radical” que, por sua vez:

[...] reconhece a capacidade criativa que a Negridade indexa, sua


capacidade de expor e dissolver a separabilidade, reivindica o valor
total expropriado e exige nada menos do que a decolonização – isto
é, uma reconstrução do mundo através da restauração do valor total
sem o qual o capital não teria prosperado e do qual ainda se
sustenta (SILVA, 2019, p.96).

Ou seja, não bastaria acolher mulheres pretas dentro da estrutura universitária que
hoje temos, seria preciso destruí-la, porque o “horizonte do pensamento, onde a historicidade
(temporalidade/interioridade), mapeada pelas ferramentas da razão universal, sempre produz
violência” (idem, ibidem, p.92).
Por sua vez, a ideia de matripotência nos traz a possibilidade de pensar a produção de
saberes para além das academias ocidentais, profundamente enraizadas em uma cultura
imperialista e, consequentemente, misógina e racista, que exclui e silencia especialmente as
mulheres pretas.
Enquanto essas estruturas coloniais persistem, acessar, permanecer e diplomar-se na
universidade não deixa de ser uma espécie de poética de resistência para mulheres pretas.
Isso significa que se faz necessária uma ruptura epistêmica, que abra os caminhos para novas
percepções de ser e estar no mundo. Através das histórias e experiências das mulheres negras
que emergem de solos culturais e de projetos políticos distintos - a exemplo da sociedade
yorubá - que não se baseia em modelos universais de produção de conhecimento, prezando
pelo cuidado e pela coletividade.
Como reforçado por Oyěwùmí (2008), os nossos sentidos e a forma como
“apreendemos” a realidade, não devem ser restritos à visão, muito menos associá-la
correntemente ao conhecimento. Pois muitas são as sensibilidades que nossos braços, nossos
ouvidos podem alcançar. E como Ìyá nos ensina, através do espírito que nos guia em direção
a “outros mundos possíveis” para além do império.
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Referências bibliográficas

BERMÚDEZ, Ana Carla. Nº de alunos negros na universidade explode; entre docentes, alta é
tímida. UOL Educação, 5 October 2020,
https://educacao.uol.com.br/noticias/2020/10/05/n-de-alunos-negros-na-universidade-explode-entre-d
ocentes-alta-e-timida.htm. Acesso em 30 de Julho de 2022.

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