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Por uma ética do cuidado, vol. 2: Winnicott para educadores e psicanalistas
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Ebook340 pages4 hours

Por uma ética do cuidado, vol. 2: Winnicott para educadores e psicanalistas

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Durante décadas psicanalistas reproduziram uma postura preconceituosa face à educação. A concepção de que o projeto civilizador se sustenta sobre a repressão e sobre o imperativo para que o sujeito sublime suas pulsões, implicava que toda educação seria repressora e contrária à ética da psicanálise. No entanto, a "hipótese repressiva", como a nomeou Foucault, deu lugar à compreensão de que o desejo e a sexualidade não são "naturais", mas o produto de configurações históricas e transformações criativas frente ao instituído. Sándor Ferenczi e Donald Winnicott conceberam que uma educação psicanaliticamente orientada seria capaz de fornecer ao sujeito e à comunidade ferramentas para a emancipação da moralidade vigente. O livro que Alexandre Patricio de Almeida nos apresenta é fruto de extensa pesquisa acadêmica e de ampla experiência em instituições educacionais. Suas reflexões nos indicam a evidência de que pensar o sujeito dissociado do campo educativo seria regredir à uma psicanálise naturalista, ingênua e, portanto, estéril; assim como pensar a tarefa educacional desconsiderando a pulsão e o desejo implicaria tolher a capacidade criadora das nossas crianças e adolescentes.

Daniel Kupermann
Psicanalista e professor livre docente do Instituto de Psicologia da USP
LanguagePortuguês
Release dateMay 24, 2023
ISBN9786555068122
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    Por uma ética do cuidado, vol. 2 - Alexandre Patrício de Almeida

    Apresentação – Volume 2: Winnicott

    O leitor deve saber que sou um fruto da escola psicanalítica, ou freudiana. Isso não significa que eu tome como correto tudo o que Freud disse ou escreveu; isso seria em todo caso absurdo, visto que Freud continuou desenvolvendo suas teorias – isto é, modificando-as (de modo ordenado, como qualquer cientista) – até o momento de sua morte, em 1939.

    Winnicott, 1950/2011, p. 29

    Começo a Apresentação deste volume 2, dedicado ao estudo da obra de D. W. Winnicott, com uma de suas passagens mais emblemáticas, que assinala o seu jeito irreverente de ser e, ao mesmo tempo, revela uma dificuldade intrínseca à sua própria personalidade: o autor britânico tinha certas resistências para seguir fielmente o pensamento de qualquer pessoa, embora se julgasse um herdeiro direto da linhagem freudiana.

    O fato é que Winnicott, transformou radicalmente as ideias de Freud, a ponto de alguns pesquisadores da nossa área, considerarem suas teses como a inauguração de um novo paradigma em psicanálise – ver Loparic (2002), Dias (2017) e Abram (2008). Aspecto que eu particularmente não concordo e, talvez, esse assunto em específico assinala a minha proximidade com o estilo do autor inglês. Explico: eu tenho a minha forma de compreender Winnicott, e acredito que é essa peculiaridade que torna as suas contribuições tão efetivas e atuais ao meu ser e fazer psicanalítico.

    Vale lembrar que ele nunca sonhou com uma escola fundada em seu nome; pelo contrário, tinha horror aos dogmatismos. A meu ver, Winnicott absorveu os nutrientes mais ricos, isto é, o húmus das teorias de Freud e Klein, e transformou-as à sua maneira, por meio de uma vasta experiência clínica na pediatria e na psiquiatria infantil. Isso o consagrou como um teórico original, colaborando diretamente para estender a nossa compreensão acerca do desenvolvimento emocional humano e a devida importância do ambiente nesse processo.

    Winnicott não era um mero repetidor. Era um cientista incansável – assim como Sándor Ferenczi. Questionava tudo aquilo que era simplesmente imposto para ele de fora para dentro. Em um texto, dedicado ao reconhecimento das influências kleinianas em sua trajetória, o autor nos diz: Acredito que meus pontos de vista começaram a se diferenciar dos dela, e de qualquer modo achei que ela não me tinha incluído como um kleiniano (Winnicott, 1962/2022, p. 225). E, em seguida, completa: Isso não me importava, porque nunca fui capaz de seguir quem quer que fosse, nem mesmo Freud (p. 225). Winnicott finaliza o parágrafo com o seu conhecido sarcasmo: Mas Freud era fácil de criticar, porque ele mesmo era sempre crítico de si mesmo. Por exemplo, simplesmente não acho válida sua ideia de instinto de morte (pp. 225-226).

    Nesse sentido, ele nunca tomou partido enquanto as controvérsias entre Anna Freud e Melanie Klein aconteciam na Sociedade Britânica de Psicanálise, no auge da Segunda Guerra Mundial. Winnicott se manteve neutro, criando o Middle Group ou Grupo Independente. Segundo a história contada por Adam Limentani (Bonamino, 2011, p. 20), em uma de suas entrevistas para escolher um analista em Londres, quando encontrou Winnicott e expressou o seu desejo de fazer uma análise freudiana, o britânico lhe respondeu: "We are all freudian (nós somos todos freudianos), e depois de um breve instante de pausa acrescentou: more or less" (mais ou menos).

    No entanto, a escolha de não se alinhar com nenhum dos dois grupos institucionais foi firmada pelo reconhecimento de diferenças teóricas insustentáveis entre suas ideias e as das novas líderes (Anna Freud e Melanie Klein), mas também foi influenciada pelo forte hermetismo desses grupos, ambos adeptos da sucessão apostólica (Moraes, 2008). Dessa forma, Winnicott almejava manter certa independência no desenvolvimento de suas teorias – muitas delas ainda em período embrionário –, tendo como objetivo posicionar a psicanálise como uma ciência da natureza humana, em sua opinião algo maior que ser freudiano ou kleiniano.

    A proposta de valorizar o debate e o aperfeiçoamento da técnica era o que orientava a sua participação na Sociedade, tanto como simples membro, como na posição de presidente, que ocupou durante dois mandatos: de 1956 até 1959 e de 1965 até 1969.

    Notamos alguns traços dessa conduta no decorrer de toda sua obra, especialmente nas correspondências agrupadas no livro O gesto espontâneo. Por exemplo, em uma carta enviada para Hanna Segal, de 21 de fevereiro de 1952, ele escreve: Minha intenção é não me conter nos encontros da Sociedade, sempre que a tendência se desviar do relato científico para a expressão de uma posição política (Winnicott, 2017, p. 34). E lamenta os rumos da teoria kleiniana:

    Há outro motivo para eu escrever esta carta, que é meu interesse pela contribuição de Melanie Klein à psicanálise. Essa contribuição está gradualmente se tornando inaceitável devido à propaganda a que a dra. Heimann, e a senhora em particular, se dão ao luxo de fazer em todos os encontros. Há um ditado que diz que o que é bom não precisa de propaganda. De modo similar, o que há de bom na contribuição de Melanie Klein não precisa ser impingido em Encontros Científicos. Essa contribuição pode ser comunicada e discutida. Atualmente, ela é pouco discutida porque é apresentada de modo agressivo e depois defendida de uma maneira que só pode ser designada como paranoica. (Winnicott, 2017, p. 33, grifos meus)

    Assim sendo, sua atitude de independência não pode ser interpretada como rejeição da tradição psicanalítica e tampouco como receio em se posicionar. Deve ser compreendida como crítica àqueles que temem o que é novo e criativo (Moraes, 2008, p. 81). Para Winnicott, não há possibilidade de se criar onde os ‘espaços’ se acham preenchidos de arrogâncias e certezas. Paradoxalmente, é impossível ser livre e criativo sem a tradição. Ele acreditava que o exercício da reflexão, a introdução de novas formas de pensar, o uso de outra linguagem e até mesmo a discordância de aspectos teóricos centrais são importantes passos tanto para a confirmação do que se sabe, como para o surgimento de um pensamento inovador (Moraes, 2008).

    Não à toa, um dos alicerces do edifício de sua teoria do amadurecimento consiste na preservação de uma criatividade primária, ou seja, do gesto espontâneo do bebê que precisa ser efetivamente respeitado pelo ambiente cuidador, responsável por lhe apresentar a realidade externa em pequenas doses. Cada um de nós, portanto, cria um mundo que já existe, mas que nunca deixará de ser pessoal, à medida que é experienciado pelo próprio sujeito.

    Tais características também estão presentes no processo de formulação de diversos conceitos winnicottianos. Um deles é a noção de ‘transicionalidade’. À guisa de curiosidade, Roger Money-Kyrle, um excelente analista do grupo kleiniano, sugeriu o adjetivo intermediário durante a discussão do artigo de Winnicott sobre os objetos transicionais. O nosso autor, então, responde ao colega, com a sua habitual e aparente ingenuidade, numa carta de 27 de novembro de 1952:

    Parece-me que na última parte desse parágrafo você faz uma nobre tentativa de enunciar a área intermediária para a qual estou tentando chamar atenção. Você se lembrará de que a palavra intermediária me foi dada por você mesmo durante a discussão do ensaio sobre objetos e fenômenos transicionais. A palavra intermediária é certamente útil, mas a palavra transição implica movimento, e não posso perdê-la de vista, do contrário acabaremos por ver algum tipo de fenômeno estático sendo associado ao meu nome. (Winnicott, 2017, pp. 52-53, grifos meus)

    Infelizmente, no fim, parece que o feitiço virou contra o feiticeiro, mesmo que isso tenha ocorrido, sobretudo, após a morte de Winnicott. Acontece que grande parte de seu pensamento se tornou estático, paralisado. Com o passar dos anos, pudemos assistir à formação de uma verdadeira ‘legião de fãs’ que defendem o legado de Winnicott com ‘unhas e dentes’, mantendo-se fechados aos diálogos e, por conseguinte, às trocas.

    Recentemente, participei de um congresso sobre o pensamento winnicottiano e fiquei assustado com a mediocridade dos trabalhos: a maioria mostrava mais do mesmo, acompanhado de um endeusamento da ‘figura’ do autor inglês. O encontro que deveria ser científico mais parecia um culto religioso. Sem contar o uso leviano dos termos cunhados por ele: tudo parecia uma grande farofa de ‘mãe suficientemente boa’, com pedaços de ‘falso self’ e pitadas de ‘holding’ – para mencionar alguns dos ingredientes principais.

    Entretanto, o que mais me assusta nesse contexto é a resistência de alguns analistas diante das contribuições de outros autores que estruturam a base da história da psicanálise. Nesses espaços, falar de Freud significa uma heresia. Melanie Klein é um absurdo. O pobre coitado do Lacan, então, é praticamente apedrejado. Em síntese: apenas é permitido circular entre as ideias winnicottianas – fenômeno que representa um sério risco para a sobrevivência da herança deixada pelo próprio Winnicott.

    Ora, basta ter um pouco de bom senso para perceber o quanto essas imposturas são incoerentes ao discurso do pediatra britânico. Isso não quer dizer, de maneira alguma, que não podemos simpatizar pela teoria de Winnicott e escolhê-la como atriz principal para atuar em nossa prática clínica. O que estou denunciando aqui é o caráter de fanatismo que emerge quando nos tornamos impenetráveis às outras opiniões. Afinal, como o próprio Winnicott afirmou: só há inovação, se partirmos da tradição. Logo, não existiria Winnicott sem as descobertas de Freud e Klein – o que faz indispensável o estudo desses clássicos veteranos.

    Pois bem, voltemos agora às marcas autorais que me levaram a escolher a linhagem winnicottiana como fio norteador para esse livro. Winnicott não falava apenas para psicanalistas. Valia-se da linguagem mais simples e coloquial para elaborar os seus artigos. Porém, isso não significa que eles sejam fáceis de compreender. Ele é um autor complexo, com centenas de escritos espalhados em dezenas de livros que, para piorar a nossa situação, possuem uma qualidade péssima de tradução para a língua portuguesa. Contudo, desde 2019, a editora Ubu tem feito um trabalho de excelência, publicando novas edições com traduções coordenadas por um conselho técnico de altíssimo calibre.2 Em 2016, a Oxford University Press, publicou "The Collected Works of D. W. Winnicott", que reúne, pela primeira vez, uma coleção cronológica dos trabalhos de Winnicott. Inclui, ainda, material de arquivo inédito: cartas, revisões, obituários, desenhos, comentários e discussões sobre questões políticas e psicanalíticas. Além disso, fornece o acesso on-line às gravações de áudio selecionadas das transmissões de rádio feitas pelo autor inglês. Todavia, cabe ressaltar, que o custo disso tudo foge da realidade financeira da população brasileira, ultrapassando a ‘bagatela’ de 2 mil dólares3 – fator que certamente dificulta o crescimento de pesquisas.

    Analisando as origens de diversos textos do pediatra britânico, percebemos uma preocupação constante, da sua parte, em fazer a psicanálise circular. Como mencionei a pouco, Winnicott fez incontáveis conferências para enfermeiros, assistentes sociais, educadores, médicos e estudantes de medicina. Acrescento, nesse ponto, a mais importante de todas as suas contribuições para a sociedade e a cultura: ele foi um dos pioneiros a compartilhar a transmissão da teoria psicanalítica com o grande público, usando um vocabulário comum e transparente, que pudesse ser compreendido pelo maior número possível de pessoas.

    Essa atitude foi inaugurada em 1949, por meio de uma comunicação radiofônica na BBC de Londres, em que enuncia, pela primeira vez, o conceito de mãe suficientemente boa (good enough mother). No ano de 1958, ele publica o livro A criança e o seu mundo, reunindo uma série de palestras que foram originalmente transmitidas pela mesma emissora de rádio. A obra Bebês e suas mães (Babies and their mothers)4 também segue o mesmo padrão, sendo organizada e publicada, postumamente, em 1987, por sua esposa Clare Winnicott, com o auxílio de Ray Shepherd e Madeleine Davis. Maria Rita Kehl, no prefácio da versão em português (Ubu, 2020), resume com brilhantismo a espinha dorsal do livro:

    A rotina de pequenos cuidados corporais que a mãe proporciona ao filhote também contribui para que, aos poucos, o bebê desenvolva a capacidade de sentir-se real. Para isso, não basta que a mãe saiba cuidar dele. Assim que uma mulher dá à luz seu bebê, ela deve aceitar a dura realidade de que aquela união tão perfeita com outro ser, experimentada durante a gravidez, terminou. Nos braços, ela carrega com amor um perfeito estranho. É bom que seja assim; com surpreendente originalidade, o autor afirma que o bebê precisa que a mãe falhe ao se adaptar.

    Daí sua preferência pela expressão mãe dedicada comum para designar o conjunto de qualidades e falhas com que, no melhor dos casos, a mulher conta para apresentar o mundo ao filho recém-nascido. Poeticamente, a leitura deste livro nos faz entender que o bebê se transforma em um pequeno ser para o mundo à medida que o mundo lhe é apresentado pela mediação insubstituível da mãe. Aliás o próprio bebê só se torna um ser para si mesmo conforme se percebe como um ser para a mãe. "É importante destacar que eu sou não significa nada a não ser que eu, no início, sou junto a outro ser humano que ainda não se diferenciou". (Kehl, 2020, pp. 10-11, grifos da autora)

    O conhecimento contido no livro Bebês e suas mães me parece ainda mais necessário ao mundo contemporâneo, quando os indivíduos desconfiam cada vez mais do valor da experiência transmitida entre sujeitos que compartilham destinos semelhantes e só se sentem seguros quando substituem tais saberes históricos por inovações tecnológicas. Em tempos nos quais a família entrega a educação de suas crianças aos famosos ‘especialistas’, a simplicidade winnicottiana simboliza uma ousadia muito atual, evidenciando o fato de que a perfeição humana não existe e nem deve ser esperada. Em outras palavras: "Com o passar do tempo, o bebê precisa que a mãe falhe ao se adaptar – e esse fracasso também é um processo gradual que não se aprende nos livros" (Winnicott, 1966/2020, p. 22, grifos meus).

    Ao contrário do que muitos imaginam, Winnicott retira a maternidade de um lugar de romantização/idealização ao salientar que a figura materna deve ser apenas ela mesma, prestando os cuidados necessários na medida do possível, nem demais e nem de menos. Não há nada de místico nisso, redige o autor (1966/2020, p. 26).

    A minha relação com Winnicott se estreitou, principalmente, na reta final do meu mestrado, em 2017. Neste período e durante todo o meu doutorado (feito na PUC-SP), tive o privilégio de ter como orientador o prof. dr. Alfredo Naffah Neto – um dos maiores conhecedores do pensamento winnicottiano do país. Tais fatores colaboraram para que eu empreendesse uma vasta pesquisa nesse campo, ao mesmo tempo que passei a rever a minha prática clínica e as possibilidades de intervenção terapêutica com pacientes considerados ‘graves’ (borderlines e psicóticos).

    Durante a pandemia de covid-19, tive a ideia promissora de criar um podcast, chamado Psicanálise de boteco, com o intuito de democratizar o acesso à psicanálise. Para a minha surpresa, o projeto se manteve no ranking dos 100 podcasts mais ouvidos do país, na plataforma de streaming Spotify, circulando entre diversos profissionais e o público leigo. O nome despojado do programa justifica o seu formato: priorizamos a produção de conteúdos com leveza e didática, mas sem perder o rigor epistemológico que configura a nossa disciplina.

    Portanto, o livro que o leitor agora tem em mãos, abraça essa mesma dinâmica. Ele parte das minhas experiências, das devolutivas que recebo em relação ao podcast e da minha leitura da teoria de Winnicott. Não apresento, nas próximas páginas, um manual de uma prática winnicottiana, voltado tanto para o universo escolar, quanto para o exercício da clínica. Compartilho, sobretudo, narrativas, na intenção de despertar inquietações e promover uma contínua reflexão nos leitores. Mantive a preocupação de ser o mais claro possível, fugindo do jargão técnico.

    A minha aposta abrange a possibilidade de uma leitura plural e pessoal feita de modo singular por cada sujeito que queira se aventurar pelas estradas tortuosas desse livro. Torço para que cada um possa encontrar o ‘seu próprio Winnicott’, na esperança de manter o seu legado vivo e atualizado.

    Finalizo essa Apresentação com um fragmento do clássico livro de Adam Phillips que, no meu ponto de vista, sintetiza uma boa parte das inovações winnicottianas e destaca uma das principais críticas proferidas pelo psicanalista inglês aos padrões de uma ‘análise ortodoxa’ – ainda comumente praticada. Vejamos:

    Para Winnicott, o oposto do brincar não é o trabalhar, mas a coerção. Isto significa, claro, que o analista também tem de ser capaz de brincar. É no encontro, no espaço transicional5 entre analista e paciente que a comunicação ocorre. O brincar acaba quando um dos participantes se tornar dogmático, quando o analista impõe um padrão que esteja em desacordo com o material do paciente. (Phillips, 2006, pp. 200-201, grifos meus)

    Referências

    Abram, J. (2008). Donald Woods Winnicott (1896-1971): A brief introduction. The international Journal of Psychoanalysis, 89(6), 1189-1217.

    Bonamino, V. (2011). Nas margens de mundos infinitos... Imago.

    Dias, E. O. (2017). A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott. DWW Editorial.

    Kehl, M. R. (2020). Uma ética do bom senso – conselhos de Donald Winnicott a jovens mães. In D. W. Winnicott, Bebês e suas mães. Ubu.

    Loparic, Z. (2002). Winnicott’s Paradigm Outlined. Revista latinoamericana de psicopatologia fundamental, 5(1), 61-98.

    Moraes, A. A. R. E. (2008). Winnicott e o Middle Group: a diferença que faz diferença. Natureza humana10(1), 73-104.

    Phillips, A. (2006). Winnicott. Ideias & Letras.

    Winnicott, D. W. (1992). Babies and their mothers. Da Capo Press.

    Winnicott, D. W. (2011). Crescimento e desenvolvimento na fase imatura. In D. W. Winnicott, A família e o desenvolvimento individual. Martins Fontes. (Trabalho originalmente publicado em 1950)

    Winnicott, D. W. (2020). A mãe dedicada comum. In D. W. Winnicott, Bebês e suas mães. Ubu. (Trabalho originalmente publicado em 1966)

    Winnicott, D. W. (2022). Enfoque pessoal da contribuição kleiniana. In D. W. Winnicott, Processos de amadurecimento e ambiente facilitador. Ubu. (Trabalho originalmente publicado em 1962)

    Prefácio geral: Por uma educação mais humana e menos excludente

    Com uma narrativa leve, sensível, cativante e didática, Alexandre expressa, neste livro, um legítimo compromisso de contribuir para a humanização do homem, das relações escolares e da prática pedagógica, tendo a psicanálise como um suporte teórico que pode subsidiar a luta pela efetivação da ética do cuidado nas escolas. Seu texto, muito bem fundamentado teoricamente, é um convite à reflexão sobre um significativo diálogo entre ‘psicanálise e educação’, centrado em princípios da ética do cuidado como alicerce da prática pedagógica – no Volume 1, este diálogo é realizado à luz das proposições de Ferenczi e no Volume 2, de Winnicott.

    O primeiro aspecto a ser destacado nesta obra consiste na apresentação de belos relatos de situações vivenciadas por Alexandre em sua experiência, desde o início de sua vida, no berçário particular em que sua mãe foi diretora, bem como em seu percurso como estudante de pedagogia, professor, coordenador pedagógico, e em sua prática clínica como psicanalista. Por meio da exposição dessas lembranças, são elucidados, com sensibilidade, elementos que compõem a trama da ética do cuidado em psicanálise, de modo a se propiciar uma discussão viva e pertinente.

    Alexandre explicita o questionamento de práticas educativas autoritárias, opressoras e normativas, atravessadas pela estigmatização e humilhação dos indivíduos no ambiente escolar, e apresenta subsídios para a consolidação da ética do cuidado nas escolas, que valoriza a escuta, o olhar atento ao sujeito e o acolhimento.

    A importância do diálogo e a indagação de métodos opressores têm sido bem enfatizados ao longo do movimento crítico, no campo da psicologia escolar. Esta perspectiva crítica apresenta, como base epistemológica, o materialismo histórico dialético e tem como importante referência a obra de Maria Helena Souza Patto. Ao questionar a naturalização e o reducionismo de fenômenos, como o fracasso escolar, no âmbito individual, Patto enfatiza a necessidade de se compreender a complexidade de fatores implicados no processo educacional, de modo a convocar a nossa atenção para os aspectos sociais, históricos, políticos, institucionais e relacionais que o constituem, situando-o na atual conjuntura social brasileira regida pelo modelo de produção capitalista vigente. Com base no pensamento crítico, Alexandre se propõe a investigar os problemas do cotidiano escolar, situados no contexto do nosso sistema educacional, analisando as relações entre os sujeitos que configuram essa dinâmica.

    Esse movimento centra-se em um compromisso ético e político da psicologia escolar que envolve a luta pela humanização, pela educação de qualidade e pela transformação da cultura, bem como a denúncia de mecanismos de opressão, humilhação, exclusão e violência que atravessam práticas pedagógicas em um sistema educacional regido pelos ditames de uma sociedade de classes, dividida e desigual. Esse compromisso envolve, ainda, a denúncia de visões reducionistas que, como expressão de uma inversão ideológica, naturalizam o que é social e historicamente produzido, enquanto culpabilizam os indivíduos e legitimam a manutenção do status quo.

    Por esta via, ao se analisar as relações intersubjetivas, valoriza-se a circulação da palavra, por meio da escuta e do diálogo, o acesso à versão dos sujeitos sobre a temática investigada e a problemática da estigmatização e da patologização no contexto institucional. Neste livro, encontra-se a expressão de alguns desses elementos constitutivos do conhecimento, produzido no campo da psicologia escolar em uma perspectiva crítica. Ao fazer alusão a esse pensamento, Alexandre enfatiza a importância de se questionar a naturalização que se evidencia em tradicionais concepções ideológicas e a culpabilização do indivíduo (fundamentalmente estudantes de classes populares) pelo fracasso escolar.

    Nos relatos apresentados, estão presentes tanto a crítica à normalização e à normatização, arraigadas em práticas escolares que produzem humilhação e sofrimento, quanto a valorização do olhar para o sujeito, isto é, para os seus recursos (em oposição ao foco no que lhe falta). Desse modo, o autor salienta a importância do cuidado, da empatia e do acolhimento dos estudantes que vivenciam as marcas da exclusão, da estigmatização e da violência produzidas nos mais diversos âmbitos da sociedade.

    Assim, nesta pesquisa, são tecidas algumas possibilidades em busca da efetivação da ética do cuidado nas escolas; que buscam a superação de reducionismos, a implicação de construções e desconstruções, o valor da criatividade e do brincar, o transformar e o ser – caraterísticas essenciais da linhagem psicanalítica escolhida pelo autor para fundamentar a sua investigação.

    Alexandre nos inspira, portanto, a seguir acreditando em novas oportunidades do encontro da psicologia com a educação. É importante que nós, profissionais dessas duas áreas, sejamos, bem como o autor deste livro, aliadas e aliados na luta pela educação de qualidade, pela humanização do homem e das práticas escolares, pelo cuidado, pelo compromisso ético e político implicado na busca pela transformação social, valorizando o olhar para o outro, centrado na potência e na superação de mecanismos de opressão, que atravessam o cotidiano escolar e se configuram como alicerce de uma sociedade de classes, excludente.

    Sigamos juntas e juntos nesta luta!

    Dezembro de 2022.

    Ana Karina Amorim Checchia

    (Psicóloga escolar. Docente do curso de psicologia da Universidade Paulista, coordenadora do curso de especialização em Psicologia e Educação da UNIP e professora contratada da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – FEUSP)

    Prefácio para o volume 2: Por uma escola não normatizante

    Winnicott nos diz, em um dos seus textos mais tardios:

    Alguns bebês se especializam em pensar e buscam palavras; outros se especializam em experiências auditivas, visuais e outras experiências sensoriais e em memórias e imaginação criativa de tipo alucinatória, e esses últimos podem não buscar palavras. A questão aí não é que uns sejam normais e os outros anormais. Um mal-entendido pode ocorrer, no debate, através do fato de que uma pessoa falante pertence ao tipo de pensamento e verbalização, enquanto outra pertence ao tipo que alucina no campo visual e auditivo, em vez de se expressar por palavras. De alguma forma, as pessoas falantes tendem a clamar por sanidade, enquanto aquelas que têm visões não sabem

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