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Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 22 edicao Paulo Dalgalarrond Professor Titular d Versio impressa desta obra: 2008 A entrevista com o paciente [N&o sei, ndo sei. Ndo devia de estar relembrando isto, contando assim o sombrio ds coisas. Lenga-lengal Nao devis de. 0 ‘senhor € de fora, meu amigo mas meu ‘estranho. Mas, talvez por isto mesmo. Falar com 0 estranho assim, que bem ouve e logo Tonge se vai embora, é um segundo proveto: {az do jeito que eu falesse mais mesmo comigo, Jogo Guimarses Rosa (Grande sertéo: veredas, 1956) Harry Stack Sullivan (1983) afirmava que ‘© dominio da técnica de realizar entrevis- tas € 0 que qualifica especificamente 0 pro- fissional habilidoso. Nesse sentido, por exemplo, ele define o psiquiatra (poderia ser um psicélogo clinico ou enfermeiro em satide mental) como “um perito do campo das relades interpessoais", ou seja, um expert em realizar entrevistas que sejam realmente iiteis, pelas informagées que for- necem e pelos efeitos terapéuticos que exercem sobre os pacientes. Assim, a técnica e a habilidade em realizar entrevistas so atributos funda- ‘mentais ¢ insubstituiveis do profissional de satide em geral e de satide mental em par- ticular. Tal habilidade é, em parte, apren- dida e, em outra, intuitiva, patriménio da personalidade do profissional, de sua sen- sibilidade nas relagdes pessoais. Ea res- peito dos aspectos passiveis de serem de- senvolvidos, aprendidos, corrigidos ¢ aprofundados que trata este capitulo. Gabe lembrar que ha livros muito bons e especificos sobre a entrevista em satide mental, como as obras detalhadas de Mackinnon e Michels (2008), de Othmer © Othmer (1994) e de Shea (1998), que descrevem a dindmica da entrevista de for- ma direcionada para varios tipos de pa- cientes. O pequeno livro de Carlat (2007) 6 um texto, embora enxuto, bastante didé- tico e pratico. De inicio, po. de-se afirmar que a habilidade do entre- vistador se revela pelas perguntas que formula, por aque- las que evita formu- aaa lare pela decisiode pS quando © como fa- cea oe Perera erro ena e Psicopatologia semiclogia dos transtornos mentais 67 lar ou apenas calar. Também é atributo es- sencial do entrevistador a capacidade de estabelecer uma relagao ao mesmo tempo empatica e tecnicamente util do ponto de vista humano. E fundamental que o profissional possa estar em condigdes de acolher 0 pa- ciente em seu sofrimento, de ouvi-lo real- mente, escutando-o em suas dificuldades ¢ idiossincrasias. Além de paciéncia e res- peito, 0 profissional necessita de certa témpera ¢ habilidade para estabelecer li- mites aos pacientes invasivos ou agressi- vvos, e, assim, proteger-se e assegurar 0 contexto da entrevista. As vezes, uma en- trevista bem-conduzida é aquela na qual 6 profissional fala muito pouco e ouve pa- cientemente 0 enfermo. Outras vezes, 0 paciente ea situacao “exigem” que o entre- vvistador seja mais ativo, mais participan- te, falando mais, fazendo muitas pergun- tas, intervindo mais freqientemente. Isso varia muito em fungéo: 1, Do paciente, da sua personalida- de, do seu estado mental e emo- ional no momento, das suas capa cidades cognitivas, etc. As vezes, o entrevistador precisa ouvir mui- to, pois 0 paciente “precisa muito falar, precisa desabafar”; outras vezes, 0 entrevistador deve falar ‘mais para que o paciente néo se sinta muito tenso ou retraido. 2. Do contexto institucional da en- trevista (caso a entrevista se rea ize em pronto-socorro, enferma- ria, ambulatério, centro de satide, CAPS, consultério, ete.) 3, Dos objetivos da entrevista (diag- néstico clinico; estabelecimento de vineulo terapéutico inicial; entre vista para psicoterapia, tratamento farmacolégico, orientacao famili- ar, conjugal, pesquisa, finalidades forenses, trabalhistas, etc.) 4, £, finalmente, mas ndo menos importante, da personalidade do entrevistador. Alguns profissio- nais sao étimos entrevistadores, falam muito pouco durante a en- evista, sendo discretos e intro- vertidos; outros s6 conseguem tra- balhar bem e realizar boas entre- vistas sendo espontaneamente fa- lantes e extrovertidos. Deve-se ressaltar que, de modo ge- ral, algumas atitudes so, na maior parte das vezes, inadequadas e improdutivas, de- vendo o profissional, sempre que possivel, evitar: 1. Posturas rigidas, estereotipadas, formulas que o profissional acha que funcionaram bem com alguns pacientes e, portanto, devem fun- cionar com todos. Assim, ele deve buscar uma atitude flexivel, que seja adequada a personalidade do doente, aos sintomas que apresen- ta no momento, a sua bagagem cultural, aos seus valores e @ sua linguagem. 2. Atitude excessivamente neutra ou fria, que, muito freqiiente- ‘mente em nossa cultura, transmi- te ao paciente sensacao de distn- cia e desprezo. 3. Reagdes exageradamente emo- tivas ou artificialmente caloro- sas, que produzem, na maioria das vezes, uma falsa intimidade. Uma atitude receptiva e calorosa, mas discreta, de respeito e con- sideragao pelo paciente, € 0 ideal para a primeira entrevista. Criar tum clima de confianga para que a histéria do doente surja em sua plenitude tem grande utilidade tanto diagnéstica como terapéu- tica, 68 Paulo Dalgalarrondo 4, Comentarios valorativos ou emi- tir julgamentos sobre 0 que o pa- ciente relata ou apresenta, 5. ReagGes emocionais intensas de pena ou compaixio. paciente desesperadamente transtornado, aos prantos, em uma situacdo existencial dramética, beneficia- se mais de um profissional que acolhe tal softimento de forma ‘empética, mas discreta, que de um profissional que se desespera jun- to com ele, 6. Responder com hostilidade ou agressdo as investidas hostis ou agressivas de alguns pacientes. O profissional deve se esforcar por demonstrat serenidade e firmeza diante de um doente agressivo ou ‘muito hostil. Também deve ficar claro que, na entrevista, ha limites. profissional procura responder, a0 paciente que eleva a vor. e se ‘exalta, sempre em voz mais baixa que ele. Em algumas situagoes, apesar de nao revidar is agressdes, © profissional deve mostrar ao paciente que ele est sendo ina- dequadamente hostil e que néo aceita agressio fisica ou verbal exagerada. Querelas e discusses acirradas costumam ser imiteis no contato com os pacientes. 7. Entrevistas excessivamente pro- lixas, nas quais 0 paciente fala, fala, fala, mas, no fundo, nao diz nada de substancial sobre seu so- frimento, Fala, As vezes, para se esconder, para dissuadir a si mes- ‘mo e ao entrevistador. Nesse sen- tido, o profissional deve ter a ha- bilidade de conduzir a entrevista para termos e pontos mais signifi- cativos, interrompendo a fala do paciente quando julgarnecessério. 8, Fazer muitas anotacdes duran- te a entrevista, pois, em alguns casos, isso pode transmitir a0 pa- ciente que as anotagées so mais importantes que a propria entre: vista (o profissional precisa obser- var se 0 paciente se sente ineomo- dado enquanto anota). Uma dificuldade comum nas entrevis- ‘as realizadas em servigos publicos é a fal- ta de tempo dos profissionais, excesso de trabalho, estresse e condigdesfisicas (ar- quitetdnicas) de atendimento precérias. As sim, muitas vezes 0 profissional de satide estd impaciente para ouvir pessoas com queixas pouco precisas (0s “poliqueixo 0s"), rejeita aqueles doentes que informam, de forma vaga ou que estéio muito desor- ganizados psiquicamente. Entretanto, no atendimento em satide, a paciéncia do entrevistador é fundamental. As vezes, 0 profissional dispde de ndo mais que 5 ou 10 minutos (p. ex., no pronto-socorro ou em um ambulatério repleto de pacientes & espera), mas, se nesse potico tempo, pu- der ouvir e examinar 0 doente com pa- cigncia e respeito, criando uma atmosfera de confianga e empatia, mesmo com as res- trigGes de tempo, isso poder propiciar 0 int cio de um trabalho de boa qualidade. Mui- tas vezes, nao & a quantidade de tem- po com o paciente que mais conta, mas aqualidade daaten- RAPES cio que o profissio- [JEMeNWertienass RCE TEMLEM encararo desafio de oferecer. Assim, 0 pro- fissional, ao entrar fem contato com ca- da novo paciente, deve preparar seu espirito para enca- Cason Poa ra eres ee Poteet néstico, entender, Denar Perens erie Psicopatologia e semiclogia dos transtornos mentais, 69. rar o desafio de conhecer essa pessoa, for- mular um diagnéstico, entender, quando possfvel, algo do que realmente se passa em seu interior. Aqui, a paciéncia é um dos elementos mais fundamentais. Nao é pos- sivel saber quantas entrevistas ¢ quanto tempo serao necessdrios para conhecer adequadamente o paciente. A experiéncia a atitude do profissional, curiosa, atenta receptiva, determinam 0 qudo profundo ¢ abrangente ser o conhecimento extrat- do das entrevistas. A(S) PRIMEIRA(S) ENTREVISTA(S) Acentrevistainicial & considerada um mo- mento crucial no diagnéstico e no tra- tamento em saiide ‘mental. Esse primei- ro contato, sendo bem-conduzido, deve produzir no pacien- te uma sensacio de confianca e de espe- ranga em relagao ao alivio do sofrimento. Entrevistas iniciais desencontradas, desas- eee fori ers tamento coe ete Quadro 81 As ts regras trosas, nas quais o profissional é, involun- tariamente ou no, negligente ou hostil ‘com o paciente, em geral sao seguidas de abandono do tratamento. Logo no infcio, 0 olhar e, com ele, toda a comunicagao nao-verbal, é tem sua importéncia: & o centro da comunicacio, que inclui toda a carga emocional do ver € ser visto, do gesto, da postura, das ves- timentas, do modo de sorrir ou expressar sofrimento. Mayer-Gross, Slater e Roth (1976) assinalam, nesse sentido, que: “A primeira impresséo tem o seu valor pré- prio e dificilmente poder ser recapturada ‘em ocasides posteriores...” E prosseguem: .com maior freqléncia, essa impressio Ecorteta, mesmo que desapareca aos pou: ‘cos ou passe a ser consicerada como en: ‘ganosa, quando a atencio estiver voltada para os detalhes, as iddias e as informa- ‘goes fornecidas pelo paciente, Em um trabalho classico sobre o diag- néstico em psiquiatria, Sandifer, Hordern € Grenn (1970) observaram por meio de pesquisas empiricas que, em profissionais 70 Paulo Dalgalarrondo com alguma experiéncia clinica, a entre- vista em psiquiatria nao funciona como ‘uma “méquina de somar simples”, na qual © passar do tempo vai acrescentando in- formagées, em progressao linear. De fato, cesses pesquisadores verificaram que 08 pri= meiros trés minu- tos da entrevista so extremamente significativos, sendo muitas vezes titeis tanto para a identi- ficagdo do perfil do- minante de sintomas do paciente como para a formulacao da hipétese diagnés- tica final. ‘A primeira impressdo que o paciente produz.no entrevistador é, na verdade, 0 produto de uma mescla de muitos fatores, como a experiéncia clinica do profissional, a transferéncia que 0 paciente estabelece com ele, aspectos contratransferenciais do entrevistador e valores pessoais e precon- ceitos inevitdveis que 0 profissional, que- rendo ou nao, carrega consigo. Além disso, hhé grande dose de intuigao que, lapidada pelo estudo e amadurecida pela pratica clt- nica, pode se tornar instrumento valioso de conhecimento e aco. CE Pre Poe eee preareeen ee ae er cats ee paciente como para a is eee ete ASPECTO GLOBAL DO PACIENTE ‘Um fator importante nas fases iniciais da avaliago do paciente é notar e descre- ver 0 aspecto global do paciente, expresso pelo corpo e pela postura corporal, pela indumentéria (roupas, sapatos, etc.), pe- los acessérios (colares, brincos, piercing, etc.), por detalhes como maquiagem, per- fumes, odores, marcas corporais (tatua~ gens, queimaduras, etc.), porte e atitudes psicoldgicas especificas e globais do pacien- te. A aparéncia do paciente, suas vestes, seu olhar, sua postura, revela muito de set. estado mental interior e é recurso funda- mental para o diagnéstico. Nesse sentido, © Quadro 8.2, organizado a partir dos tra- balhos de Betta (1972) e de Cheniaux (2005), visa resumir os principais padrées observados no consultério, ‘Além disso, para descrever a aparén- cia do paciente, convém relatar o que se observou de forma detalhada, objetiva e precisa, mas sem precipitagées ou inferén- cias indevidas. O Quadro 8.3 apresenta os termos descritivos relativos & aparéncia ft- sica do paciente (Carlat, 2007). Apresentacao Logo no inicio da entrevista, é convenien- te que o profissional se apresente, dizendo seu nome, se necessario, sua profissao & especialidade e, se for 0 caso, a razio da entrevista. A confidenciatidade, a privaci- dade e o sigilo poderao ser explicitamente garantidos caso se note o paciente timido ou desconfiado ou se 0 contexto da entre- vista assim o exigit. Para isso, em alguns casos, é importante que o profissional ga- ranta explicitamente 0 que segue: 1. Aeentrevista e o tratamento ocor- rerdo com sigilo e discri¢ao. O profissional esclarece ao pacien: te (¢ aos familiares, quando ne- cessario) que aquilo que for rela- tado durante as entrevistas no seré revelado a ninguém. Caso isso se faga necessdrio por exigén- cia do préprio tratamento (enca minhamento a um outro profis- sional, carta a alguma instituicéo, informacao & familia para prote ger o paciente, etc.), s6 sera feito apés consulta e anuéneia do en- trevistado. O sigilo poderd ser rompido no caso de idéias, pla- nos ou atos seriamente auto ou heterodestrutivos. Psicopatologia e semiclogia dos transtornos mentais. 71 Quadro 8.2 ‘Aspectos fisicos e psiquicos dos pacientes verificados por meio da aparéncia ¢ da atitude global (modificado expandido a partir de Betta, 1972; e, sobretudo, de Cheniaux, 2005) Postura geral Roupas e acessérios segundo os quadros clinicos Alitudes globais 72 Paulo Dalgalarrondo Quadro 8.2 ‘Aspectos fisicos e psiquices dos pacientes verificados por meio da aparéncia e da attude global (modificado expandido a partir de Betta, 1972; sobretudo, de Cheniaux, 2005) (continuaedo) ‘ANitudes globais 2, Em qualquer caso, é preciso res- saltar a necessidade de colabora- ‘¢a0 miitua entre o profissional e 0 paciente. Ambos devem trabalhar ativamente para que 0 proceso terapéutico tenha bons resultados. Na primeira entrevista, 0 profissional deve inicialmente colher os dados sociode- mograficos basicos, como nome, idade, data de nascimento, naturalidade e proce déncia, estado civil, com quem reside, pro- fissdo, atividade profissional, religido, etc. ‘Apés colher tais informagées, que de fato situam quem é 0 paciente que chega ao ser- vigo de satide, deve-se solicitar que 0 paciente relate a queixa basica, 0 sofrimen- to, a dificuldade ou o conflito que o traz & consulta, Esse primeiro relato deve ocor- rer de forma predominantemente livre, para que o paciente expresse de forma es- pontinea seus sintomas e sinais. O profis- sional ouve o relato e observa, além do contetido daquilo que o paciente conta, como esse relato ¢ feito, 0 “estilo” do pa- ciente, sua aparéncia e suas atitudes bési- cas. O profissional deve, nesse momento, muito mais ouvir que falar. Suas interven- ges objetivam facilitar o prosseguimento da fala do paciente. O psiquiatra espanhol Vallejo Nagera (1944) aconselhava ao jo- vem profissional: El explorador hablaré poco y dejar que hhable mucho el enfermo; ia regla més importante del interrogatorio es que el alienista hable muy poco, para que sea locuaz el alienado. Cabe lembrar, entretanto, que, embo- ra aatitude basica do entrevistador na fase inicial da avaliacdo seja de escuta, isso nao significa colo- ees sica do entrevistedor Senn car-se em posicao [EY ores totalmente passiva Bem ao contratio, pois, como enfati- I ASmaiaes zado por Sullivan [Suaaibiblons (2983), os dados es- Parente) Psicopatologia e semiclogia dos transtornos mentais. 73 Quatro 8.3 “Termas descritivos reatvos & aparénciafsica do paciente(modificado e expandido de Calal, 20079" ‘Aspecto corporal Termos e possitilidades "uj misemosem partis que os mses TA Paulo Dalgalarondo senciais da clinica psicopatolégica emer- gem basicamente de uma observacio participativa, da interagao intensa entre paciente e profissional. Nesse sentido, Sullivan (1983) afirmava que © entrevistador desempenha um papel ‘muito ative na introdugdo de interroga- «es, no para mostrar que é inteligente ‘ou eético, mas literalmente para ter cet teza que ele sabe 0 que esta sendo dito [-] Quase toda vez que se pergunta, “Hem, voeé quer dizer assim e assado2", fo paciente & um poueo mais claro sobre o {que ele quer dizer. Oentrevistador deve lembrar que, nas fases mais iniciais da entrevista, o paciente pode estar muito ansioso e usar manobras ‘e mecanismos defensivos como riso, silén- cio, perguntas inadequadas, comentarios circunstanciais sobre o profissional, etc. Por ‘exemplo: “O senhor é jovem, néo?”; ou ‘A senhora é casada, tem filhos?”; ou, ainda, “Por que seré que todo psiquiatra € tao sé- rio (ou tem barba, ete)...?”. So estraégias involuntatias ow propositais que podem estar sendo utilizadas para que o paciente evite falar desi, de seu sofrimento, de suas dificuldades. 0 profissional deve lidar com tais manobras, lembrando polidamente ao paciente que a entrevista tem por finalidade ‘dentificar seu problema para, assim, po- der melhor ajudé-lo, Ele também deve de- xar claro para o paciente que a pessoa do entrevistador nao & 0 tema da entrevista. Nos primeiros encontros, o entrevis- tador deve evitar pausas e siléncios pro- ongados, que possam aumentar muito 0 nivel de ansiedade do paciente e deixar a entrevista muito tensa e improdutiva Alguns procedimentos podem facili- tar a entrevista no momento em que 0 entrevitador lida com o siléncio do pa- ciente: 1. Oentrevistador deve fazer pergun- tas e colocagées breves que asi nalem a sua presenca efetiva e ‘mostrem ao paciente que ele esté atento e trangilo para ouvilo 2. 0 entrevistador deve evitar per- guntas muito direcionadas, fecha das, que possam ser respondidas com um sim ou um nao categéri- cos; também deve evitar pergun {as muito longas e complexas, i ficeis de serem compreendidas pelo paciente. 3. E sempre melhor intervengGes do tipo “Como foi isso?”, “Explique melhor”, “Conte um pouco mais sobre isso”, que questes como “Por qué?” ou “Qual a causa?”, Estas tiltimas estimulam o pacien tea fechar e encerrar a sua fala. 4. 0 entrevistador deve buscar para cada paciente em particular o tipo de intervengio que facilite a con tinuidade de sua fala Mesmo realizando entrevistas aber- tas, nos primeiros encontros, o profissional deve ter a estrutura da entrevista em sua ‘mente, permitindo 20 mesmo tempo que 0 paciente conte sua prépria versao. Falar de forma livre permite que 0 entrevistador avalie melhor a personalidade e, por vezes, alguns conflitos do paciente. A fala livre também tem freqientemente uma dimen sdo catirtica, de “desabafo”, que pode ser muito itil servir de alivio para o paciente. ‘Amedida que o rlato feito pelo doen- te progride, tal relato vai sendo “encaixa do” em determinada estrutura de histéria, que esta na mente do entrevistador. Surgi ro lacunas nessa histéria, que saltardo & mente deste. Apés a fase de exposicio li vre, ele faré as perguntas que faltam para completare esclarecer os pontos importan- tes da histéria e da anemnese de modo geral ‘A duragao € o niimero de entrevistas iniciais, com fins diagnésticos e de plane. Jamento terapéutico nao séo fixos, depen Psicopatologia e semiclogia dos transtornos menteis. 75 dendo do contexto institucional onde se da a pratica profissional, da complexidade da gravidade do caso e da habilidade do entrevistador, Transferéncia e contratransferéncia Oconeeito de transferéncia, introduzido por Freud, é um elemento fundamental que 0 profissional deve conhecer para realizar as entrevistas de forma mais habilidosa, enten- dendo e tratando seus pacientes de modo ‘menos ingénuo, mais profundo e sensivel. ‘A transferéneia compreende atitu- des e sentimentos cuja origem sao basi- camente inconscientes para o paciente. Inclui tanto sentimentos positivos (como confianga, amor e carinho) quanto negati- ‘vos (como raiva, hostilidade, inveja, etc.) Esses sentimentos so uma repetigao in- consciente do passado; o analista (ou mé- ico, profissional de satide, professor, etc.) passa a ocupar, no presente, o lugar que 0 pai ou a mae ocupavam no passado. O pa- ciente nao se da conta, dizia Freud [1926] (1986), da natureza de tais sentimentos, € osconsidera como novas experiéncias reais, em ver de identificar o que eles realmente sao, ou seja, reflexos, repetigdes de senti- ‘mentos do passado. O préprio Freud assim descreveu a transferéncia: les desenvolvem com seu médico rela- ses emocionais, tanto de caréter afetuo- so como hostil, que nfo se baseiam na si ‘wagiio real, endo antes derivadas de suas relagGes com os pais (0 complexo de Edipo). A wansferéncia é a prova de que 108 adultos nio superaram sua dependén- cia infantil, Assim, para Dewald (1981), a trans- feréncia é uma forma de deslocamento que dirige para um objeto presente todos aqueles Impulsos, defesas, atitudes, sentimentos cerespostas que experimentou edesenvol- ‘vou no relacionamento com os primeiros ‘bjetos de sua vida, Segundo Jung (1999), a transferén- cia no € mais que 0 processo comum de projegio: 0 pacien- te tende a projetar [MOREE oe} inconscientemente |p Eugen eat no médico 0s afetos bésicos que nutria (e nutre) pelas figu- ras significativas de sua vida. Trata-se, entio, de um fend- meno geral, néo apenas exclusivo da rela- ‘cdo analitica. Para Jung, pode-se observar atransferéncia sempre que uma relacao tima entre duas pessoas se estabelece, O paciente projeta inconscientemente, no profissional de satide, os sentimentos pri- mordiais que nutria por seus pais na infan- cia. Sente 0 seu médico atual como o pai poderoso e onipotente (ou cruel e autori- tério) da infancia, ou a enfermeira como a mae carinhosa e preocupada (ou omissa e negligente) de seus primeiros anos. ‘A contratransferéncia é, em certo sentido, a transferéncia que o profissional festabelece com seus pacientes. Da mesma forma que o paciente, o profissional de sati- de projeta incons- cientemente, no pa- ciente, sentimentos ‘que nutria no passa- do por pessoas sig. nificativas de sua vida. Sem saber por [RAMMED Bes que, este ou aquele [UPASEPerraricen paciente desperta [RORPEEMUEE no profissional sen- timentos de raiva, medo, piedade, carinho, repulsa, etc. Ao identificar tais reagoes contratransferenciais e conscientizar-se que estas tém a ver com seus préprios confli- tos, 0 profissional poderd lidar de forma ‘mais racional e objetiva com 0 que esté ‘ocorrendo na relago profissional. Perce prem Cant) ees tener ne oes Poneto een? Sec rena 76 Paulo Dalgalarrondo A avaliacao psiquidtrica como um todo: ‘anamnese, exame psiquico, exames somaéticos ¢ exames complementares 1. Entrevista inicial, na qual se faz a anamnese, ou seja, sto colhidos todos os dados necessérios para um diagnéstico pluridimensional do paciente, 0 que inclui os dados sociodemograficos, a queixa ou 0 problema principal ea hist6ria des sa queixa, os antecedentes mérbi- dos somaticos e psfquicos pessoais, contendo os habitos e 0 uso de substancias quimicas, os antece- dentes mérbidos familiares, a his- t6ria de vida do paciente, englo ando as varias etapas do desen- volvimento somético, neurol6gico, psicoldgico e psicossocial e, final mente, a avaliacio das interagées familiares e sociais do paciente. 2. Exame psiquico, que é 0 exame do estado mental atual, realizado ‘com cuidado e mimicia pelo entre- vistador desde o inicio da entrevis. ta até a fase final, quando sao fei- tas outras perguntas. Detalhes do exame psiquico serdo desenvolvi dos no préximo item deste livro. 3. Exame fisico geral e neurolégi- co, que deve ser mais ou menos detalhado a partir das hipéteses diagnésticas que se formam com os dados da anamnese e do exa me do estado mental do paciente. Caso o profissional suspeite de doenca fisica, devera examinar 0 paciente somaticamente em deta- Ihes; caso suspeite de disturbio neurolégico ou neuropsiquidtrico, © exame neurolégico deverd ser completo e detalhado. De qual- quer forma, é conveniente que to dos os pacientes, mesmo os psi- quidtricos, passem por uma ava- liagdo somética geral e neurolégi ca suméria, mas bem-feita 4, Exames complementares, sendo exemplos as avaliacdes por meio de testes da personalidade e da cognicao (psicodiagndstico € tes tes neuropsicolégicos). 5. Exames complementares (se- miotéenica armada), como os exames laboratoriais (p.ex., exa- me bioquimico, citolégico e imu: nolégico do Ifquido cerebrospinal, hemograma, eletrélitos, meta: bélitos, horménios, etc.), exames de neuroimagem (tomografia computadorizada do cérebro, res sonancia magnética do cérebro, SPECT, etc.) ¢ neurofisiolégicos (EEG, potenciais evocados, etc.). Alguns pontos adicionais sobre 2 anamnese psiquidtrica Na anamnese, o entrevistador se interessa tanto pelos sintomas objetivos como pela vivéncia subjetiva do paciente em relagio Aqueles sintomas; pela cronologia dos fe- némenos ¢ pelos dados pessoais ¢ fa res, Além disso, o entrevistador permane ce atento as reagdes do paciente ao fazer 0s seus relatos. Realiza, assim, parte do exame psiquico e da avaliacao do esta- do mental atual durante a coleta da his- téria (anamnese). Em alguns casos, o paciente consegue formular com certa clarera e precisio a “queixa principal”, que, ao entrevistador, parece consistente e central no sofrimento do paciente e para o seu diagnéstico. Isso pode ajudar o entrevistador a limitar 0 “campo de procura” a ser investigado. Muitas vezes, entretanto, 0 paciente psi quidtrico nao tem qualquer queixa a fazer; ou simplesmente nao tem critica ou insight de sua situagio, de seu sofrimento. Outras vvezes, se recusa defensivamente a admitir Psicopatologia e semiclogia dos transtornos menteis 77. que tenha um problema mental, comporta- ‘mental ou psicolégico e que esteja sofrendo por ele (isso ocorre mais freqtientemente em pacientes do sexo masculino). Sobre isso, Mayer-Gross, Slater e Roth (1976, p. 38) esclarecem: Nenhum homem é capaz de avaliar devi- damente sua propria personalidade pos- toque esté ele mesmo dentro de suas pro prias fronteiras ~ tal como nossos astrd~ ‘nomas ndo so capazes de ver a forma da galixia na qual se move o sistema solar. Entrevista e dados fornecidos por um “informante” Assim, muitas vezes faz-se necesséria a in- formacio de familiares, amigos, conheci- dos e outros, Os dados fornecidos pelo “in- formante” também padecem de certo subjetivismo, que 0 entrevistador deve le- var em conta. A mie, 0 pai ou 0 cénjuge do(a) paciente, por exemplo, tém a sua visio do caso, e nio “a visio” (correta e absoluta) do caso. De qualquer forma, muitas vezes as informacbes fornecidas pelos acompanhantes podem revelar da- dos mais confiaveis, claros e significativos. Pacientes com quadro demencial, dé- ficit cognitivo, em estado psicético grave € em mutismo geralmente nao conseguem informar dados sobre sua histéria, sendo, nesses casos, fundamental a contribuicéo do acompanhante. Sobre a confiabilidade dos dados obtidos: simulagao e dissimulacao 0 profissional com alguma experiéncia em psicopatologia aprende prontamente que (0 dados obtidos em uma entrevista podem estar subestimados ou superestimados. Nao 6 raro o paciente esconder deliberadamente uum sintoma que vem apresentando, as ve- zes, de forma intensa; ou relatar um sinto- ‘ma ou vivéncia que de fato ndo apresenta. 0 profissional deve exercer toda a sua ha- bilidade para buscar diferenciar as infor- ‘mages verdadeiras, confidveis e consisten- tes das falsas e inconsistentes. Denomina-se dissimulagao 0 ato de esconder ou negar voluntariamente a pre~ senca de sinais e sir tomas psicopatolé- gicos. Ao ser ques- tionado sobre se tem algum temor, se tem cismas ou acredita que alguém quer prejudicé-lo, 0 pa- ciente, mesmo ten- do ideagio paranéide ou delirio persecu- (rio, nega terminantemente experimentar tais vivéncias, Em geral, tal negativa ocor- re por medo de ser internado, de receber medicamentos ou de ser rotulado como louco. O paciente nega alucinagdes auditi- vvas, mas cochicha freqiientemente com um ser imagindrio que esta ao seu lado, ou seja, apesar de dissimular as alucinagées para 0 profissional, revela indicios de sua presen- ‘ca por meio de comportamento que & in- capaz. de dissimular. Ja a simulacao a tentativa do paciente de criat, apresentar, como o faria tum ator, voluntaria- ‘mente, um sintoma, sinal ou vivéncia ‘que de fato ndo tem (Turner, 1997). 0 paciente diz ouvir vvozes, estar profun- damente deprimido ‘ou ter fortes dores nas costas, tudo isso no sentido de obter algo. Geralmente, 0 pa- ciente que simula sintomas est buscando obter algum ganho com isso: dispensa do trabalho, aposentadoria, internaco para nao ser encontrado por traficantes de drogas, etc, Deve-se ressaltar que a simu- lacdo é, por definigio, um ato voluntario e consciente, no se incluindo aqui os sin- Poe ne cere esconder ou negar erty tative’ aoe ae Cree Sarat oes eee 78 Paulo Dalgalarondo tomas psicogénicos (como paralisia histé- rica) sem base orginica, mas com suas ralzes em processos ¢ conflitos incons- cientes. Critica do paciente e insight em rela- 540 a sintomas e transtornos Em psicopatologia, um aspecto caracteris- tico da clinica é que parte dos pacientes, apesar de apresentar sintomas graves que comprometem profundamente suas vidas, nao of reconhece como tal (Lewis, 1 2004). Foi proposto que o insight néo é um fenémeno categorial e unidimensional, mas inclui varios niveis de intensidade e distin- tas dimensdes (Dantas; Banzato, 2004). Por exemplo, David (1990) propés sero insight ‘composto por trés componentes 1. consciéncia da doenca; 2. modo de nomear ou renomear os sintomas; 3. adestio a tratamentos propostos. Em particular, pacientes graves, como psicéticos (Dantas; Banzato, 2007), bipo- ares em quadro manfaco, alguns depen- dentes quimicos, com retardo mental, sindromes autisticas ou deméncias, apre- sentam graves prejulzos quanto ao insight (Antoine et al., 2004). Perspectiva transversal versus longitudinal A avaliagio psiquidtrica possui uma dimen. sao longitudinal (histérica, temporal) ¢ outra transversal (momenténea, atual) da vida do paciente. Ao se colher a dimensao longitudinal, deve-se buscar descrever re- lagdes temporais de forma clara e com- preensivel e observar como o paciente re- Tata, sente e reage aos eventos passados. Sem a dimensdo longitudinal, a trans- versal fica obscura e incompleta, sendo di fic a sua devida apreciagao. Assim, as re lagées temporais ficam perdidas. Relato do caso por escrito Ao final da entrevista, forma-se 0 esboco do caso na mente do entrevistador. O esta. do mental foi observado durante toda a co: leta dos dados, surgindo, dessa forma, a sintese do estado mental do paciente para © profissional. O relato do caso por escrito deve conter, de preferéncia, as préprias pa lavras que o paciente e os informantes usa- ram ao descrever os sintomas mais rele vantes. O uso de termos técnicos deve ser sébrio e proporcional ao grau de conheci mento que 0 profissional obteve do caso. J4 a caligrafia deve ser legivel, e 0 estilo, claro, preciso, com frases ¢ pardgrafos curtos. Deve-se evitar terminologia por de- ‘mais tecnicista que geralmente revela a in- seguranca do profissional, que busca com: pensar, na linguagem rebuscada, os vicu: os de sua ignorancia sobre 0 caso, ou que quer demonstrar de modo exibicionista sua erudigao e seu saber médico. Além disso, 0 profissional deve evitar a interpretagao precoce dos dados, seja ela psicolégica, psicanalitica, sociolégica ou biolégica. Uma interpretacao precoce, feita muitas vezes de modo apressado e excessivo pelo pro: fissional que quer logo ver um sentido em tudo, pode impedir que se enxergue o pa ciente que esta & sua frente. preciso lembrar que, apesar de se- rem descritos fendmenos irracionais em uma histéria psicopatoldgica, muitas vezes de forma desorganizada e caética, o rela- to deve ser organizado e coerente, faci- litando 0 estabelecimento de hipéteses diagndsticas e 0 planejamento terapéutico adequado, O paciente tem o direito de ser Psicopatologia e semiclogia dos transtornos mentais. 79. confuso, contraditério, légico; ja 0 profis- sional, ao relatar o caso, nao. ‘Além do aspecto médico essencial, que € 0 diagnéstico clinico, a entrevista e 0 seu relato devem fornecer uma compreen- sao suficientemente ampla da personalida- de do paciente, da dinamica de sua familia € de seu meio sociocultural imediato. O relato escrito de um caso tem, além de valor médico, importante valor legal. E um documento que, sendo bem-redigido, poderd ser decisivo em questoes legais fu- turas, impensdveis no momento em que a avaliagao est sendo feita No momento em que o entrevistador redige os dados que coletou, deve lembrar Quadro 8.4 Avaliaco inicial e perguntas introdutérias ‘que a histéria clinica deve ser redigida com ‘uma linguagem simples, precisa e compre- censivel. O relato deve ser pormenorizado, ‘mas nao prolixo, detalhado naquilo que éessencial 20 caso e conciso naquilo que & secundério. [Nao seré enfocada aqui a entrevista de criancas e adolescentes. Um bom protocolo de avaliagéo psicopatolégica desses grupos cetirios 60 sugerido pela American Academy of Child and Adolescent Psychiatry (1997). ‘Também sao recomendados os trabalhos de Shaffer, Lucas e Richters (1999), o livro de Michael Rutter e Eric Taylor (2002), assim ‘como a obra acessivel e didética de Robert Goodman e Stephen Scott (2004). 80 Paulo Dalgalarrondo Quadro 8.5 Fistéria psiquist | Identticagao I. Queixa principal e historia da doenga atual (Conia Psicopatologia e semiclogie dos transtornos mentais, 81 (Centinuseie) Il. Interrogatério sintomatoldgico complementar IV. Antecedentes mérbidos pessoais V. Habits VI, Antecedentes patolégicas familiares em consanglineos e parentes ndo-consangiineos. (descrever e desenhar o familograma) Vil, Relacionamento e dindmica familiar (descrever) VIL. Exame fisica (Coninuas 82 Paulo Dalgalarrondo Quadro 8.5 Histéria psiquidtrica (continuaedo) Vil, Exame fisico IX. Exame neuragico X. Exame psiquica (estado mental atual de preferéncia, as palevras do paciente) ros dias anteriores & consulta; utllzar, Conta) Psicopatologia e semiclogia dos transtornos mentais 83. (Centinuseée) XI, Histria de vida (descrever) Xil, Resultados das avaliagdes complementares XIl, Hipéteses diagnésticas (sindrBmica XIV. Planejamento teraptutico e agdes terapéuticas irmplementadas de acordo com 08 eritérios da CID-10) 84 Paulo Dalgalarrondo

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