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A Sedição dos Quebra-Quilos no Império do Brasil

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José Flávio Motta


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economia & história 71

eh

A Sedição dos Quebra-Quilos no Império do Brasil


José Flávio Motta (*)

“D. Pedro II, por graça de Deus e unânime aclamação dos povos, Imperador Cons-
titucional e Defensor Perpétuo do Brasil: Fazemos saber a todos os nossos súdi-
tos que a Assembleia Geral Legislativa decretou, e Nós queremos a Lei seguinte:
Art. 1.º - O atual sistema de pesos e medidas será substituído em todo o Império
pelo sistema métrico francês na parte concernente às medidas lineares, de su-
perfície, capacidade e peso.
[...]
Dada no Palácio do Rio de Janeiro aos vinte e seis de junho de 1862, 41.º da Inde-
pendência e do Império.
Imperador (Com rubrica e guarda).
João Luís Vieira Cansansão de Sinimbu”.
Lei n. 1.157, de 26 de junho de 1862.
(Apud SOUTO MAIOR, 1978, p. 21)

Em artigo recém-publicado, a his- de padronização até a tentativa de It [este artigo] argues that Bra-
toriadora Anne Gerard Hanley efetiva implementação daquele sis- zil’s interest in standardization
(2022) debruçou-se sobre o tema tema durante o Segundo Reinado. occurred early in its history as
da introdução do sistema métrico E radicou os inícios desse processo an independent nation and was
no Brasil do século XIX. A autora nas proximidades do momento de very similar to standardization
realizou uma interessante análi- ruptura do estatuto colonial, de advocacy in Europe: Brazilian en-
se do longo processo envolvendo conquista da nossa independência gineers, mathematicians, and sci-
desde as primeiras defesas da ideia política: entists engaged with their foreign

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counterparts through international bem obser vou A rmando Souto press-gang recruitment of the poor,
academies, learned societies, and Maior (1978, p. 22): prisoners, and others unprotected
conferences to promote the ben- by patronage. An abolitionist, Rio
efits of standards for international Não se diga que a Lei brasileira foi Branco advocated for the 1871 Law
exchange of ideas and trade. They precipitada e radical. Ao contrário, of Free Womb that declared all chil-
worked with government offi- foi cautelosa, pois determinava que dren born to slave mothers “shall
cials to promote standardization a substituição deveria ser feita gra- be considered free.” A slave regis-
through state financial support, dualmente, de modo que somente try was introduced in response to
international diplomacy, and legis- em dez anos cessasse totalmente this policy of gradual abolition, to
lative action. For the government’s o uso legal das antigas medidas distinguish between enslaved and
part, standardization offered the lineares, a vara, o côvado e a jarda, free. The cabinet waded into chur-
promise of expanding and con- e das medidas de volume que eram ch territory by mandating a civil
solidating its governing capacity onças, libras e arreteis, com as quais registry of baptisms, marriages,
across a continent-sized nation se quantificavam a carne-seca, o and deaths to capture vital records
by bringing its far-flung regions bacalhau e o açúcar. Os líquidos, of all Brazilians, Catholic and non-
together under a single system anteriormente, mediam-se às ca- -Catholic alike –something tried
of measurement to facilitate eco- nadas e aos quartilhos e os grãos and abandoned in 1851. The cabi-
nomic exchange and technological e a farinha em selamins, quartas e net oversaw a national census, the
advancement. (HANLEY, 2022, p. 2) alqueires. first of its kind. And it enforced the
introduction of the metric system
Um momento importante no pro- No entanto, decorrido o prazo es- of weights and measures to replace
cesso acompanhado por Hanley tabelecido, a substituição pouco regional variations with internatio-
foi a promulgação da Lei n. 1.157, avançara. Na primeira metade da nal standards.
de 26 de junho de 1862, da qual década de 1870, durante o Gabine-
selecionei alguns fragmentos para te conservador presidido por José A reação a essa medida imposi-
compor a epígrafe deste artigo. A da Silva Paranhos, Visconde do Rio tiva tornou-se talvez o elemento
lei determinava a adoção em todo Branco, o prazo original foi prorro- mais visível de uma revolta po-
o Império do sistema métrico. Em gado, estabelecendo-se que o novo pular conhecida como a sedição
seu artigo 2º, o Governo era au- sistema passaria a valer a partir do dos Quebra-Quilos. Meu objetivo
torizado a “mandar vir da França dia 1 de julho de 1873 (cf. SOUTO neste artigo é apresentar algumas
os necessários padrões do referido MAIOR, 1978, p. 22). Essa medida das características dessa revol-
sistema”. Ademais, era estabelecido juntar-se-ia a outras que marcaram ta, mediante um diálogo, sem a
um prazo de dez anos para a grada- o caráter reformista do governo do pretensão de ser exaustivo, com a
tiva substituição do atual sistema Visconde, assim sumariadas por historiografia disponível sobre o
de pesos e medidas, sendo que, Hanley (2022, p. 6): tema.1 A sedição ocorreu nos meses
durante esses dez anos, as escolas finais de 1874 e no início de 1875;
de educação primária, públicas e His cabinet introduced a number iniciou-se na Paraíba, logo esten-
particulares, deveriam incluir “no of major reforms that rocked tradi- dendo-se a Pernambuco, Alagoas e
ensino da aritmética a explicação tional Brazilian society. An urgent Rio Grande do Norte. Teriam sido,
do sistema métrico comparado com matter was modernization of the de acordo com Kim Richardson
o sistema de pesos e medidas atu- army in the wake of war. A new (2011, p. 1), “roughly fifty uprisings
almente em uso” (Lei 1.157, apud system of military service based in all, before finally being suppressed
SOUTO MAIOR, 1978, p. 21). Como on lists of eligible men replaced by the authorities”.

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A amplitude do movimento sedi- liberal ao governo conservador, à mento político nem protesto reli-
cioso foi suficiente para suscitar o qual se mesclou o envolvimento gioso” (MILLET, 1987, p. 41). No
comentário sobre ele feito por D. de parcela do clero.2 Esse entendi- entendimento do francês senhor de
Pedro II na Fala do Trono proferida mento encontrou ressonância nos engenho,
na abertura da Assembleia Geral, jornais situacionistas:
em sessão extraordinária ocorrida A sedição dos Quebra-quilos tem
aos 16 de março de 1875. A mani- Ao se referir aos conflitos de Fa- raízes mais profundas; nasce do
festação do Imperador apontava gundes e de Campina Grande [em mal-estar das nossas populações
já algumas razões da revolta, as outubro e novembro de 1874, que do interior; mal-estar de que não
quais não se limitavam à rejeição deram início à revolta], o articulista pode duvidar quem se acha em
à alteração no sistema de pesos e do Jornal da Parahyba, órgão ligado contato com elas, e prende-se pelos
medidas: ao partido conservador, procurou laços mais evidentes à tremenda
minimizar a gravidade dos fatos, crise pela qual está passando a
A ordem pública foi perturbada atribuindo-os a meras maquina- nossa agricultura e a das nossas
em vários pontos do interior de ções de políticos da oposição libe- [províncias] vizinhas do Norte e
quatro províncias do Norte. Ban- ral, no sentido de atingir o governo do Sul, desde que a alça do câmbio,
dos sediciosos, em geral movidos provincial. [...] Apenas no editorial junto à falta de crédito suficiente e
por fanatismo religioso e precon- do dia 09 de dezembro de 1874 foi a juro razoável, há tornado o preço
ceitos contra a prática do sistema que o jornal admitiu a gravidade dos nossos principais gêneros de
métrico, assaltaram as povoações, dos acontecimentos, atribuindo-os exportação inferior as mais das
destruindo os arquivos de algumas à oposição liberal, ao fanatismo re- vezes ao custo de produção. (ibi-
repartições públicas e os padrões ligioso e à ignorância das massas, as dem, p. 30)
dos novos pesos e medidas. mesmas razões reproduzidas mais
Felizmente, sufocou-se de pronto tarde pelo imperador em sua Fala. De fato, se a economia brasileira
o movimento criminoso, sendo (LIMA, 2011, p. 463) em seu conjunto se beneficiou,
a autoridade pública auxiliada durante o Segundo Reinado, do
por cidadãos dos mais prestantes No entanto, de acordo, por exem- dinamismo vivenciado sobretudo
daquelas localidades. (FALAS DO plo, com María Verónica Secreto pela expansão da lavoura de ex-
TRONO, 1977, p. 428) (2011, p. 113), a revolta dos Que- portação cafeeira, o Nordeste do
bra-Quilos teve maiores amplitude Império sofreu com a crise de seus
Menos de dois meses depois, na e duração, “estendeu-se por oito principais produtos de exportação,
Fala do Trono na abertura da As- províncias e durou mais de um ano o açúcar e o algodão. 5 Vale dizer,
sembleia Geral em 3 de maio de e meio”. 3 A crítica à narrativa do a natureza episódica que a fala de
1875, D. Pedro II reafirmou o con- governo imperial, em verdade, fez- D. Pedro II parece querer imputar
trole da sedição: “A ordem pública, -se já presente em uma análise con- ao Quebra-Quilos era equivocada.
há pouco perturbada em algumas temporânea daquela perturbação Viu-se lá a manifestação de pro-
províncias do Norte, acha-se comple- da ordem, publicada originalmente blemas mais profundos. Não à toa,
tamente restabelecida” (ibidem, p. em 1876. Refiro-me aos escritos de por exemplo Hamilton de Mattos
430). Na narrativa oficial, de fato, Henrique Augusto Millet (1987).4 Monteiro (1981) tratou a revolta de
ainda que digna de nota, a pertur- Para ele, a revolta ultrapassara Quebra-Quilos como uma das vá-
bação da ordem foi passageira, e decerto a mera inconformidade rias insurreições do período 1850-
em boa medida deveu-se à manipu- com o sistema métrico; todavia, 1890 das quais decorreu o título de
lação do povo pela então oposição “não podia ser tida por pronuncia- seu estudo: Nordeste insurgente. E

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a sedição de 1874-1875 colocou-se [...] grupos numerosos, embora as Quanto ao imposto do chão, como o
em linha com a revolta do “Ronco mais das vezes desarmados, têm próprio nome diz, era uma taxa fi-
da Abelha” (1851-1852), 6 desdo- invadido as povoações do interior xada em 200 réis por carga de pesar
brou-se na “Guerra das mulheres” na ocasião das feiras semanais, e 100 réis por carga de medir, que
7
(1875-1876), e manifestou-se no opondo-se à percepção dos direitos os feirantes eram obrigados a pagar
período também em diversas ou- municipais, quebrando ou disper- por cada mercadoria colocada no
tras revoltas urbanas: sando as medidas do novo padrão, chão do espaço da feira, gerando
atacando as coletorias e câmaras com isso encarecimento extra dos
As revoltas devem ser entendidas, municipais para queimar os respec- gêneros de primeira necessidade.
tivos arquivos, e praticando mais (LIMA, 2011, p. 477, nota 7)
sem excluir aspectos particulares
e conjunturais, a partir da crise alguns desses desacatos, próprios
das massas ignorantes quando Não deve causar surpresa que, de-
econômica que assola a região e
se acham desenfreadas. (MILLET,
flagrado o rastilho da indignação
que se aprofunda nas décadas finais
1987, p. 29)
pela cobrança do aludido imposto,
do século XIX.
a massa revoltada visse suas mo-
[...] tivações, independentemente do
Dos distintos alvos das revoltas po-
O Nordeste estava, neste período,
pulares do Segundo Reinado, três inegável espaço de extorsão decor-
à beira da efervescência revolucio- rente da cobiça dos arrematantes,
em especial são enfatizados nas
nária. Tudo era motivo para revolta amplificadas, ao menos em parte,
análises sobre o Quebra-Quilos,
e atos de violência. Nas principais por elementos que extrapolavam a
pois aparecem como elementos
cidades, de tempos em tempos, realidade:
comuns às turbulências que com-
ocorriam motins populares. As
puseram aquele movimento sedi-
decisões governamentais que não Porém, a fértil imaginação popu-
tinham apoio ou compreensão po-
cioso. Ao lado da inconformidade
lar se encarregava de agregar aos
pular não eram acatadas. A popu- com o sistema métrico, colocavam-
impostos reais, outros curiosos e
lação revoltava-se contra o recru- -se a insatisfação com as alterações
imaginários tributos. Dizia-se, por
tamento militar, contra o aumento recentemente introduzidas no que exemplo, que o governo passaria
de impostos, contra o registro civil respeita ao recrutamento militar, a cobrar taxas do marido que via-
dos nascimentos e óbitos, contra bem como as reclamações contra a jasse ou da mulher que amarras-
o censo geral da população do Im- cobrança de impostos. se os cabelos, notícias essas que
pério, contra a aplicação dos novos acrescentavam mais ingredientes
padrões de pesos e medidas etc. No que diz respeito aos impostos, na impaciência daquela mesma
Não realizava simples passeatas destacou-se como fator desenca- população. (ibidem, p. 477, nota 7)
e protestos, mas autênticas lutas deante da ira popular a cobrança
com mortos e feridos. (MONTEIRO, do “imposto do chão”. Por conta No caso do recrutamento militar,
1981, p. 23 e 30) disso, observou Monteiro (1981, p. a oposição popular tinha por alvo
50), “em grande número dos casos, a Lei n. 2.556, de 26 de setembro
Observador dos acontecimentos, as agitações têm início com discus- de 1874. Essa lei trazia mudan-
Henrique Millet forneceu uma des- sões nas feiras”, sendo os principais ças no modo e nas condições do
crição genérica das agitações de alvos da turba os arrematantes recrutamento para o Exército e a
1874-1875, posteriormente repro- que efetuavam a cobrança daquele Armada. Não obstante o discurso
duzida pelos distintos estudiosos tributo. É necessário entender suas governamental fosse no sentido de
que sobre elas se debruçaram: características: que a nova lei vinha democratizar

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as práticas do recrutamento, ao que todos os homens dessa idade casamento e isto assim não pode
povo pareceu reforçar-se a noção seriam efetivamente recrutados. continuar, a menos que a sociedade
do recrutamento como próximo de Outros diziam que era uma nova lei não queira atufar-se de uma vez nos
uma escravização. Como observou de escravidão para os trabalhadores profundos limbos do nada! (COR-
Souto Maior (1978, p. 181-182): rurais” (MONTEIRO, 1981, p. 75). REIO PAULISTANO, Domingo, 3 de
9
As consequências de mais uma mu- outubro de 1875).
O novo texto legal representava, dança produzindo impactos sobre
contudo, um avanço na legislação o cotidiano sofrido da população Amalgamaram-se, pois, em grande
militar, pois abolia os castigos físi- não se fizeram esperar: medida, as revoltas populares con-
cos, e, pelo menos teoricamente, o tra a adoção do sistema métrico,
alistamento seria feito por sorteio. Instaladas as juntas e tendo-se contra a cobrança de impostos e
A Lei, entretanto, logo, criou má iniciado os trabalhos, grupos de contra a nova lei de recrutamento
fama. A oposição liberal arrastou-a mulheres, em sua maioria, inva- militar. E vários foram os fazen-
nas páginas dos jornais, e, no inte- dem as igrejas, rasgam os editais e deiros apontados como líderes em
rior, as conversas sobre “recruta- exemplares da lei, destroem móveis muitas das agitações. Decerto as
mento” alimentaram a suspeita de e utensílios e partem ameaçando agruras do pano de fundo de crise
que quem não tivesse dinheiro iria voltar a qualquer momento. (ibi- econômica responderam em gran-
para o quartel. Em parte era ver- dem, p. 75) de medida pelo ocorrido. O que não
dade. Logo nos primeiros artigos significa que os condicionantes
do texto legal, tratava-se das isen- As agitações ocorreram, sobretu- econômicos expliquem tudo. Não
ções, e, entre elas, a do artigo 7.º, do, em diversas localidades das significa, outrossim, que a perspec-
declarava isento aquele que “pagar províncias do Ceará, Rio Grande do tiva do governo imperial estivesse
a contribuição pecuniária que for Norte, Paraíba e Alagoas.8 Num fo- totalmente apartada da realidade.
marcada em lei”. Estariam também lhetim publicado no jornal Correio Vale dizer, a oposição liberal ao
a salvo os graduados e estudantes, Paulistano, em sua edição de 3 de gabinete conservador do Visconde
quem apresentasse substituto outubro de 1875, o autor, num tom do Rio Branco procurou, sim, se
idôneo, quem fosse proprietário, debochado que claramente atesta beneficiar do movimento sedicioso;
administrador ou feitor de fazenda ser ele um crítico do motim femini- eventualmente, mesmo, dele par-
com mais de dez trabalhadores ou no, escreveu: ticipou ou procurou estimulá-lo.
caixeiro de casa de comércio, “que De outra parte, em meio à assim
10
tiver ou se presumir que tem de Estamos portanto em plena época chamada questão religiosa, com
capital 10:000$000 ou mais”. da desordem mulheril; a lei supra- os ânimos inflamados com a prisão
dita [do recrutamento] está muitís- do bispo de Olinda, Dom Vital, em
11
A reação à nova lei do recruta- simo ameaçada de levar um grande janeiro de 1874, verificou-se tam-
mento militar desdobrou-se, no boléo [...]. Correm já por aí novos bém a presença de religiosos en-
decurso de 1875, na “Guerra das boatos assustadores [...] Dizem que volvidos com a insubordinação da
Mulheres” mencionada anterior- as terríveis revolucionárias estão massa. Nas palavras de Hamilton
mente no texto. Se a legislação dispostas a apresentar aos poderes Monteiro (1981, p. 53): “Podemos
trazia os avanços da instituição das do Estado o seguinte formidando afirmar, portanto, que a sedição
juntas de alistamento e do recruta- dilema: ou anule-se a conscrição teve como seus principais atores os
mento por sorteio entre os homens por inteiro ou suspenda-se quanto grandes proprietários de terra, os
com idades entre 19 e 30 anos, “os antes a lei iníqua do celibato cle- ‘proletários’, os políticos da oposição
boatos correram dando conta de rical! Há falta de homens para o e o clero”.

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Evitar a desconsideração dos úl- mostra o quanto era uma questão JOFFILY, Geraldo Irenêo. O Quebra-Quilo. A
timos elementos apresentados no que só a eles incumbia. Não vamos revolta dos matutos contra os doutores
(1874). Revista de História, v. 54, n. 107,
parágrafo anterior, porém, por dizer que estes atuavam com total
p. 69-145, 1976.
seu turno, não implica adotar o independência, nem que em algu-
LIMA, Luciano Mendonça de. Sombras em
discurso imperial e emprestar a ma oportunidade não recorreram a movimento: os escravos e o Quebra-Quilos
tais fatores relevância indevida. algum “padrinho poderoso” para se em Campina Grande. Afro-Ásia, n. 31, p.
Em suma, a sedição dos Quebra- protegerem, nem que os liberais e 163-196, 2004.
-Quilos foi instrumentalizada em “jesuítas” não se regozijavam com a ______. Quebra-Quilos: uma revolta popular
alguma medida por proprietários desgraça conservadora, mas isto foi na periferia do Império. In: DANTAS,
de terras, por políticos da oposição Monica Duarte (org.). Revoltas, motins,
mais uma consequência das ações
revoluções: homens livres pobres e
liberal e por membros do clero. populares e da iniciativa popular libertos no Brasil do século XIX. São
Não obstante, mais importante do que sua causa. Paulo: Alameda, p. 449-483, 2011.
que esses fatores, a revolta nutriu-
MILLET, Henrique Augusto. Os Quebra-
-se das dificuldades econômicas Quilos e a crise da lavoura. 2.ed. São
então vivenciadas pelo Nordeste Fontes e referências
Paulo: Global; Brasília, DF: INL, 1987.
do Império; foi, por excelência, um MONTEIRO, Hamilton de Mattos. Nordeste
movimento da população pobre e, BARMAN, Roderick J. The Brazilian peas- insurgente (1850-1890). 2.ed. São
sobretudo, livre.12 E não era apenas antry reexamined: tthe implications of the Paulo: Brasiliense, 1981.
dirigida contra a adoção impos- quebra-quilo revolt, 1874-1875. Hispanic RICHARDSON, Kim. Quebra-quilos and
American Historical Review, v. 57, n. 3, peasant resistance: peasants, religion,
ta do novo sistema métrico, mas
p. 401-424, August 1977. and politics in nineteenth-century Bra-
contra um conjunto de medidas
CASALECCHI, José Enio. A proclamação da zil. [kindle edition] Lanham, Maryland:
do Estado que eram vistas, com ou University Press of America (UPA), 2011.
república. 2.ed. São Paulo: Brasiliense,
sem razão, como prejudiciais aos 1982. SECRETO, María Verónica. (Des)medidos:
interesses do povo. Há, pois, que
CORREIO PAULISTANO. Domingo, 3 de a revolta dos quebra-quilos (1874-
sopesar as palavras seguintes, de outubro de 1875. Periódico disponível 1876). Rio de Janeiro: Mauad X; FAPERJ,
María Verónica Secreto (2011, p. na Hemeroteca Digital Brasileira, da Bi- 2011.
115), das quais me valho para en- blioteca Nacional, no endereço http://me- SOUTO MAIOR, Armando. Quebra-quilos:
cerrar este artigo: moria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx lutas sociais no outono do Império. São
?bib=090972_03&pesq=%22guerra%20 Paulo: Companhia Editora Nacional; Bra-
das%20mulheres%22&pasta=ano%20 sília: INL/MEC; Recife: Instituto Joaquim
A grande quantidade de pesso- 187&hf=memoria.bn.br&pagfis=6433. Nabuco de Pesquisas Sociais, 1978.
as que mobilizaram a revolta do Acesso em: 16 mar. 2022.
quebra-quilos e a quantidade de
FALAS DO TRONO desde o ano de 1823
cidades e vilas em que se manifes- até o ano de 1889, acompanhadas dos
tou a violência da repressão – e, respectivos votos de graça da Câmara
apesar dela, a persistência da re- Temporária. Prefácio de Pedro Calmon.
1 Vali-me, em especial, dos trabalhos de Bar-
São Paulo: Edições Melhoramentos, 1977.
beldia – demonstram o profundo man (1977), Hanley (2022), Joffily (1976),
FURTADO, Celso. Formação econômica do Lima (2004 e 2011), Millet (1987), Monteiro
descontentamento com a situação,
Brasil. Edição comemorativa: 50 anos. São (1981), Richardson (2011), Secreto (2011)
que não pode ser resumido aos e Souto Maior (1978).
Paulo: Companhia das Letras, 2009.
fatores econômicos, como faz Milet 2 “The central government, for whom the
[...], nem à manipulação jesuíta, HANLEY, Anne Gerard. Men of science and revolt was never more than a peripheral
standards: introducing the metric system nuisance, viewed it as the work of a fanatical
nem a de alguns liberais. O fato
in nineteenth-century Brazil. Business mob masterminded by political opponents, in
de ser protagonizada por homens History Review, p. 1-29, 2022. doi: particular by the Jesuits” (BARMAN, 1977, p.
pobres-livres e suas reivindicações 10.1017/S0007680521000374. 401).

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3 Essa diferença no que respeita à amplitude capita desse sistema da economia brasileira, recursos à Coroa. O Conselho de Estado
e duração do movimento é explicada pelo se bem não seja possível quantificá-lo rigoro- aceita o recurso. Nesta altura, o bispo do
fato de María Secreto ter, por exemplo, consi- samente” (FURTADO, 2009, p. 217). Pará, D. Antônio de Macedo Costa, tomava
derado o “motim das mulheres” como parte idênticas medidas contra a maçonaria. O
6 “[...] nos meses de dezembro de 1851 e ja-
do Quebra-Quilos: “em algumas províncias, Conselho de Estado considera o bispo ‘um
neiro de 1852, as províncias de Pernambuco,
como Rio Grande do Norte, Ceará, São Paulo e empregado público’, dando-lhe 15 dias de
Paraíba, Alagoas, com maior intensidade, e
Minas Gerais, predominou a oposição à lei de prazo para suspender as interdições às
as do Ceará e Sergipe, de forma mais amena,
recrutamento mais do que ao sistema métrico irmandades. Os bispos não se retratam e
foram assoladas por movimentos armados
– embora também tenham sido chamados de são processados pelo Supremo Tribunal,
de oposição aos decretos 797 e 798, de 18 de
quebra-quilos – e com ela a atuação dos(as) condenando-os, em 1874, a quatro anos de
junho de 1851, que instituíam, respectiva-
rasga-lista. Em geral, essa ação era levada prisão com trabalhos. D. Pedro II comutou
mente, o Censo Geral do Império e o Registro
a efeito por mulheres. A historiografia tradi- a pena em prisão simples e em 1875 são
Civil dos Nascimentos e Óbitos” (MONTEIRO,
cional denomina este episódio d’o motim das perdoados” (ibidem, p. 62-63).
1981, p. 36).
mulheres” (SECRETO, 2011, p. 81). Voltarei
12 Utilizo o termo “sobretudo” pois há na
minha atenção, mais adiante no texto, a este 7 Ver nota 3.
historiografia quem tenha identificado
desdobramento do Quebra-Quilos, também
8 “[...] de todos os conflitos o que chamou mais a participação dos escravos. Assim, por
chamado de “guerra das mulheres”. exemplo, Luciano Mendonça de Lima
atenção foi o que ocorreu em Mossoró. O ca-
4 No prefácio escrito pelo autor no Recife, beça do movimento foi uma mulher chamada (2004, p.194-195) escreveu: “aqui busquei
em 9 de fevereiro de 1876, ele escreveu: “As Ana Floriano. Ela conseguiu reunir 300 priorizar a participação dos escravos no
páginas que seguem são as que [...] publiquei mulheres. [...] Periodicamente, ao se instalar movimento, aspecto que contemporâneos
durante o primeiro semestre do ano findo, a Junta de Recrutamento, em várias regiões e historiadores relegaram a último plano.
sob o título Os quebra-quilos e a crise da do país, grupos se organizavam e partiam [...] Os escravos se aproveitaram dessa
lavoura, nas colunas do Jornal do Recife” para a agressão. Nos anos finais do Império, conjuntura agitada e algum tempo depois
(MILLET, 1987, p. 24). Na introdução, escrita os relatórios ainda dão notícias, se bem que se agregaram ao movimento. [...] Assim,
por Manuel Correia de Andrade, esse histo- esparsas, desses atentados” (MONTEIRO, podemos dizer que os escravos entraram
riador apresenta o autor como “um francês 1981, p. 76). na festa sem serem convidados, à revelia
abrasileirado”: “Quem seria este francês de tudo e de todos. Tiveram que trilhar um
9 Em citações extraídas de fontes oitocentis- caminho próprio, com palavras de ordem e
que tão bem se adaptou ao Brasil a ponto
tas opto sempre, para a comodidade dos estratégias de luta específicas”. Esse autor
de aportuguesar o próprio prenome (Henri
leitores, por atualizar a ortografia, mantendo sugere que alguns escravizados teriam
August por Henrique Augusto)? Foi enge-
a pontuação original. se aproveitado da perturbação da ordem
nheiro de obras públicas, trazido pelo Conde
da Boa Vista com Vauthier e Boulitreau em 10 “A chamada Questão Religiosa, tida como para tentar amenizar os efeitos que o trá-
1840, a fim de implantar uma série de obras o mais sério choque entre Igreja e Estado, fico interno de cativos vinha acarretando
na Província [de Pernambuco] [...]. Aqui che- tem a sua origem quando, por ocasião da para a comunidade escrava de Campina
gando ambientou-se de tal forma ao trópico aprovação da lei do Ventre Livre [em 1871], Grande. E, segundo ele, “coincidência ou
que não mais voltou para residir em seu país, um padre católico fez, em loja maçônica, não, nos anos que se seguiram imediata-
trabalhando como engenheiro no serviço saudação ao Visconde do Rio Branco, presi- mente ao levante, a população escrava de
público, como senhor de engenho, pois casara dente do Conselho de Ministros, também Campina Grande tendeu a se estabilizar,
com a filha de um proprietário de terras e, maçom. [...] [D]iante da ação maçônica interrompendo por algum tempo o intenso
posteriormente, como engenheiro ferroviário. do sacerdote, que publicara o seu discurso fluxo de sua transferência para outras
Em setembro de 1894 foi acidentado e morto nos jornais, o bispo D. Pedro Maria Lacerda regiões” (LIMA, 2004, p. 183).
por uma locomotiva” (MILLET, 1987, p. 9). suspende-o do púlpito e do confessionário.
A reação das lojas maçônicas foi imediata
5 Celso Furtado, por exemplo, em suas
[...], unem-se na defesa do padre maçom”
estimativas acerca do nível de renda e do
(CASALECCHI, 1982, p. 62).
ritmo de crescimento na segunda metade
do século XIX, sugeriu ter sido a região 11 “Em 1872 torna-se bispo do Recife D. Vital
Nordeste a única a apresentar uma taxa de Maria Gonçalves de Oliveira, iniciando
crescimento da renda per capita negativa: campanha para que os católicos e dentre
“Em síntese, para que não houvesse redução eles padres das irmandades abandonassem
na renda per capita da região, teria sido os compromissos maçônicos. Dois padres
necessário que aumentasse substancialmente recusam-se a obedecer às ordens do bispo,
a produtividade no setor de subsistência, o sendo suspensos. Ao mesmo tempo, as ir-
que obviamente é uma hipótese inadmissível, mandades teriam que excomungar os seus
pois durante essa época já se tornara notória membros que não obedecessem ao bispado.
a pressão demográfica sobre as terras agri- Em janeiro de 1873, uma irmandade
colamente aproveitáveis da região. Portanto, declara-se contrária à ação do bispo e é (*) Professor Titular aposentado da FEA/USP.
cabe admitir que houve declínio na renda per suspensa. Outras são atingidas e interpõem (E-mail: jflaviom@usp.br).

abril de 2022
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