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MEDICINA, JUSTIÇA, SEXUALIDADE E INFÂNCIA NO BRASIL DO INÍCIO

DO SÉCULO XX

Paloma Heller Dallagnol​1


Universidade Federal do Paraná - UFPR

Resumo. ​O presente artigo terá o intuito de discutir a relação entre a medicina e a Justiça na
construção de discursos sobre a sexualidade e práticas sexuais no Brasil durante a primeira
metade do século XX, principalmente na construção de um ideal de infância e de proteção da
crianças. O objetivo será perceber como a medicina entrou no campo legal e construiu
verdades sobre o corpo da mulher e da criança. Estes discursos foram analisados a partir de
teses médicas e processos criminais, especificamente crimes sexuais envolvendo crianças
entre 5 e 16 anos. O uso dessas fontes permite montar um cenário que de acordo com Celeste
Zenha (1985), tem como consequência a construção de uma “verdade” que seria o resultado
do conjunto de versões apresentadas por aqueles que foram interrogados durante o processo.
Para Foucault (2014), analisar o discurso não é saber a sua origem, mas sim qual é esse
discurso, como ele circulou e que verdades possibilitou criar. O meio jurídico e a medicina
apresentam intensamente essa relação entre saberes e verdades e tratando-se da sexualidade
a relação entre Estado e honra familiar torna-se essencial para a manutenção da ordem
pública, pois é a partir do corpo das mulheres, mesmo na tenra infância que será vigiada a
honestidade feminina e a construção lugar da mulher e da criança como sujeitos, bem como a
própria construção do ideal de família.

Palavras-chave: ​Infância; Justiça; Medicina; Sexualidade.

Financiamento: Bolsista CAPES.

O artigo pretende abordar algumas questões em torno da percepção de


infância voltada principalmente para a sexualidade e práticas sexuais nos
discursos médicos e jurídicos. Para compreender como os discursos
relacionados a estas práticas sexuais e à própria sexualidade durante a
infância foram construídos no início do século XX no Brasil, é necessário
suscitar como a medicina adentrou ao campo legal, jurídico, tornando-se
referência nos desfechos processuais, principal fonte da pesquisa.

1
Mestranda em História na Universidade Federal do Paraná pela linha de pesquisa
Intersubjetividade e Pluralidade: Reflexão e Sentimento na História orientada pela Professora
Dra. Priscila Piazentini Vieira.

1
O saber médico tornou-se social, adentrando as instituições políticas,
nas configurações da sociedade e na forma de organização das cidades, bem
como um instrumento de intervenção estatal durante os séculos XVIII e XIX
auxiliando no controle disciplinar e na organização espacial, com o intuito de
levar à modernidade (FOUCAULT, 1984, p. 79-98). Para Foucault, o saber
médico é um produto da era moderna​2​, pois durante o decorrer da busca
incessante pela modernidade​3 o corpo torna-se uma força de trabalho e
produção da visão capitalista burguesa. Sendo assim, este corpo precisa ser
domesticado, disciplinado, e o saber médico passa a exercer um papel
fundamental nas estratégias disciplinares e biopolíticas.
A medicina social surge e conquista seu espaço nas instituições
políticas durante o século XVIII, quando as cidades apresentam-se como locais
de conflitos sociais, focos de infecções, epidemias, problemas sanitários e para
lidar com essas adversidades as autoridades francesas buscam na medicina
como um instrumento no auxílio e na criação de medidas para intervir e
organizar os espaços e comportamentos.
Foucault salienta como os preceitos científicos médicos, neste
momento, se apresentam como fatores ligados à modernidade e à noção de
progresso capitalista, pensando aqui a realidade da França, Alemanha e
Inglaterra, durante o século XVIII e adentrando ao XIX. Utilizando o saber
científico médico como este símbolo, o Estado passa cada vez mais a atribuir
estes saberes em suas ações, tornando a medicina social e permitindo que
esta ultrapassasse seus limites de ofício.
No Brasil, durante o século XIX, a medicina social passa a intervir em
todas as questões políticas, sociais e de urbanização durante o processo de
medicalização (MACHADO et al, 1978) no qual, após sua institucionalização,

2 ​
A Era Moderna pode ser caracterizada como fruto das transformações de ordem política,
econômica e sociocultural iniciada no século XVII e XVIII na Europa e Chegando aos demais
locais no século XIX e XX. Marcada por um período de debate entre o considerado
antigo/arcaico que deveria ser superado pelo novo ligado ao progresso. Ligada também ao
cientificismo, o capitalismo a industrialização e urbanização.
3​
Para Foucault, a modernidade está ligada a instauração de políticas disciplinares e normativas
que buscam modelar o indivíduo e administrar a população, a partir de uma nova moral e novos
códigos morais ligados à produção de sujeitos. Ver mas em: FOUCAULT. M. ​Vigiar e Punir: o
nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.

2
passa a infiltrar-se nas áreas jurídicas e no estabelecimento de leis, normas​4 e
regulamentos de controle social para a prevenção de doenças e maus
comportamentos, principalmente relacionados à questão da moralidade.
A questão da moral foi amplamente discutida pelos médicos brasileiros
no final do século XIX e início do século XX. Para Margareth Rago, os
discursos médicos voltado, para as famílias e a sexualidade no Brasil,
buscavam práticas disciplinares, o principal objeto do olhar destes especialistas
torna-se principalmente mulheres e crianças, buscando higienizar, reformar e
modernizar e retirando e moldando os comportamentos considerados
perigosos e anormais das ruas da cidade (RAGO, 2014, p. 161). As esferas
públicas e privadas se mesclam ao confrontar e modernizar os códigos de
sociabilidade e sexualidade buscando uma nova moral. Segundo Foucault,
existem três formas de analisar e constituir uma história da moral:
[...] história das moralidades, história dos códigos e história da
constituição dos sujeitos morais. A primeira examina a conformidade
ou não das condutas individuais às regras e aos valores
prevalecentes em uma sociedade. A segunda aborda o sistema de
regras e valores e as formas e aparelhos de coerção moral. A terceira
privilegia o modo pelo qual os indivíduos são convocados a se
constituírem em sujeitos da conduta moral (FOUCAULT ​apud RAGO,
2008, p. 17).

Neste anseio pela discussão sobre a moralidade, o saber médico passa


a reivindicar seu espaço na resolução de casos penais, apresentando-se como
necessário no auxílio do saber jurídico e na construção das leis, principalmente
no que concerne a crimes sexuais e ao corpo das mulheres. Reivindicando a
obrigatoriedade de sua participação na execução de exames forenses e laudos
periciais que influenciavam fortemente nos vereditos e sentenças judiciais
(VÁSQUEZ, 2005, p. 52).

Esta articulação entre os saberes médicos e jurídicos começou a


ocorrer no século XIX. No início do referido século a relação entre
Medicina e Justiça era um tanto quanto conflituosa, pois os médicos
deste período começavam a reivindicar seu espaço na resolução dos

4
Para Foucault, a norma é um paradigma que embasará a distinção entre normal e anormal,
entendendo como anormal aquilo que está à margem da norma, aos quais são destinados os
instrumentos de correção pautados em mecanismos de exclusão. Ver em: FOUCAULT, M. ​Os
anormais​. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

3
casos penais, querendo adentrar no aparelho judiciário e ali
​ . 52)​.
demonstrar e exercer seu saber (​Ibidem, p

Uma das razões que leva a influência médica na justiça foi o


deslocamento da atenção do crime para o criminoso, a Criminologia criada no
século XIX tendo seu principal defensor Cesare Lombroso exerceu influência
não apenas na medicina, mas na Antropologia Criminal e no Direito, servindo
inclusive, de trampolim para os médicos travarem batalhas nos tribunais
(DARMON, 1991, p. 16). O criminoso torna se um doente e seu crime um
sintoma, o que leva ao choque entre a medicina e o direito clássico “esse
período foi marcado, claramente, pela disputa de poder, afirmações e
legitimidade acadêmica” e ainda “o debate criminal, no final do século XIX, é
praticamente centralizado entre juristas e médicos. De fato, é enorme a
quantidade de estudos, congressos e livros produzidos por indivíduos dessa
área que se viam como os únicos autorizados a tratar do tema.”(FONTELES
NETO, 2016, p.548). Da mesma forma, no Brasil o debate sobre a criminologia
foi amplamente recebido pelas faculdades de Direito e Medicina, nas quais
essas ideias “cientificamente comprovadas” passaram a influenciar os estudos
sobre o crime e a criminalidade no país.
No entanto, pode-se dizer que, embora estivesse associada a uma de
suas correntes, a nova perspectiva analítica beneficiou toda a
medicina legal, porque ajudou a consolidar a intervenção do
pensamento médico no campo do direito. A partir do final do século
XIX, até os médicos-legistas que não se sentiam atraídos pelas
concepções e teorias da antropologia criminal devotaram-se ao
estudo dos criminosos, procurando entendê-los nos moldes de seu
acervo doutrinário. Mesmo os médicos que, em oposição à
antropologia, pretenderam estabelecer uma "sociologia criminal",
centraram suas atenções sobre os criminosos, destacando aspectos
de sua inserção social (ANTUNES, 1999, p. 146).

A conexão entre a Medicina, Psiquiatria e a Criminologia transforma o


anormal em patológico surtindo efeitos no Direito Penal. É papel do direito
como produtor da norma jurídica de prescrever condutas e modificações de
comportamento, ou seja, como instrumento de normalização, diferenciando os
sujeitos para poder a partir destas diferenciações estabelecer o papel de cada
um e discipliná-los (FOUCAULT, 1987, p. 150).

4
O saber médico foi responsável, dessa forma, por construir verdades
sobre o corpo da mulher, e criar uma rede de saberes e práticas instituídas
como verdades científicas, que acabaram por alterar pouco a pouco os
costumes e as formas de entendimento em torno do corpo. Vásquez ressalta
que “o corpo torna-se um artefato cultural permeado de diferentes saberes e
discursos” (VÁSQUEZ, 2005, p. 89) e ainda, o corpo apresenta-se como
espaço de inter-relações com a subjetividade dos indivíduos. O corpo, assim,
além de ser pensado na esfera biológica, que para Foucault era a única
abordagem utilizada pelos historiadores, no estudo do desenvolvimento de
doenças, vírus, processos fisiológicos, de metabolismos, “mostraram até que
ponto os processos históricos estavam implicados no que se poderia
considerar a base puramente biológica da existência” (FOUCAULT, 1987, p.
25), agora este também é entendido como parte da esfera sociocultural, bem
como:
Mas o corpo também está diretamente mergulhado num campo
político; as relações de poder têm o alcance imediato sobre ele; elas
o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a
trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais. Este
investimento político do corpo está ligado, segundo relações
complexas e recíprocas, à sua utilização econômica; é, numa boa
proporção, como força de produção que o corpo é investido por
relações de poder e dominação; mas em compensação sua
constituição como força de trabalho só é possível se ele está preso
num sistema de sujeição (onde a necessidade é também um
instrumento político cuidadosamente organizado, calculado e
utilizado), o corpo só se torna força útil, se é ao mesmo tempo corpo
produtivo e corpo submisso (​Ibidem,​ p. 25-26).

Neste viés, a medicina torna-se, durante o século XIX e início do XX, o


campo de saber mais apto a regulamentar e discutir sobre o corpo, exercendo
controle sobre as práticas, costumes, comportamentos, prazeres e a moral. O
avanço da medicalização social (MACHADO et al, 1978, p. 156-161)
transformou cada vez mais os médicos em educadores e legisladores da moral
e seus discursos que, por muitas vezes, concordavam com discursos religiosos

5
e conservadores,​5 construíam e reforçaram padrões e normas vinculadas ao
corpo e às práticas, principalmente relacionadas à sexualidade.
Neste momento, é importante salientar que esses discursos não
existiam de maneiro coordenada, como um uníssono de vozes, na intervenção
médica na moral, haviam disputas acirradas que levaram a grandes polêmicas.
Como mencionado anteriormente, o saber específico da medicina era utilizado
como forma de ascender socialmente e politicamente, podendo a partir dele
projetar-se em diferentes áreas e atividades “é possível perceber que eles
vieram a público com muito empenho, para associar o prestígio de sua
atividade profissional às avaliações diagnósticas e prescrições terapêuticas
aplicadas aos fenômenos morais” (ANTUNES, 1999, p. 166-167).
O Médico projeta-se como autoridade e no âmbito do corpo feminino a
preocupação com a sexualidade, se dá pelo discurso de valorização da
maternidade​6 e da natalidade. Sendo assim, a mulher apresenta-se como a
responsável por gerar filhos fortes, saudáveis, aptos ao trabalho, dentro da boa
moral e honra familiar, garantindo seu progresso e crescimento. A perseguição
da prostituta, da mulher que exercia o sexo apenas pelo prazer cresce, pois o
corpo feminino é um corpo materno e para a maternidade, nesse sentido, a
preocupação com a infância também ganha força nestes discursos, pois neste
período serão geradas e formadas as futuras esposas e mães.

A MEDICINA E A SEXUALIDADE

No início do século XX, o Brasil intensifica suas políticas de higienização


e urbanização na ânsia de alcançar a modernidade tão desejada. Neste

5 ​
A historiadora Margareth Rago explica que esses médicos e especialistas da saúde são
herdeiros de uma tradição intelectual conservadora, marcados pelas concepções biologizantes
do século XIX, com um discurso normativo e com formulações de políticas de controle sexual
baseados em um inconsciente problemático na relação entre sexualidade e mulher. RAGO,
Margareth. ​Os Prazeres da noite​: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo
(1890-1930). São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 30.
6 ​
A autora Elisabeth Badinter aprofunda a discussão sobre o mito do amor materno e a
construção da mulher como mãe em: Badinter, Elisabeth. Um Amor conquistado: o mito do
amor materno; tradução de Waltensir Dutra. — Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

6
momento, a honra e a moral constituem elementos de extrema importância na
manutenção familiar. Há uma difusão do pensamento médico, sua imposição
social como “o veículo de transformação da forma de convívio familiar”
correlacionando a norma familiar “a disciplina doméstica da casa higiênica, a
proteção da infância, a regulação da prática sexual, o casamento como
instituição higiênica, o "manequim higiênico" do homem e da mulher”
(ANTUNES, 1999, p. 162). ​A moral, neste momento, faz parte de um controle
que excedia o corpo, adentrava aos espaços públicos e o controle popular.
As definições de honra e moralidade debatidas nos meios jurídicos e
médicos apresentavam divergências, podendo ser condensadas em duas
perspectivas principais: a noção genérica patriarcal de honra que era baseada
na família, e uma segunda definição liberal de honra percebendo esta como
uma virtude individual, porém todos debatiam a honra e a moral baseados
numa noção de honestidade feminina. Esta divisão discursiva apresentada no
debate de Sueann Caulfield (2001), demonstra que, no início do século XX, as
feministas, que buscavam igualdade na lei e os juristas da nova geração, que
acreditavam lutar contra o patriarcado e o autoritarismo, passaram a participar
dos debates sobre a formulação de novos códigos de lei e de conduta. Neste
momento, o debate jurídico centrava-se em torno da questão da virgindade da
mulher. Médicos e juristas travavam disputas pela definição de: o que é ser
virgem? Esta virgindade seria fisiológica ou seria uma virgindade moral?
O estudo da Himenolatria, fortemente implantada no início do século XX,
debruçava-se sobre o hímen de virgens, prostitutas, mulheres casadas. Afrânio
Peixoto (CAULFIELD, 2001, p. 183), grande crítico desta área da medicina,
apresentava concepções contrárias em relação aos estudos e exames
realizados, que para ele determinava de forma errônea a relação entre a
virgindade e a morfologia do hímen, o que levava a diagnósticos falsos em
exames médicos legistas e prejudicava ações judiciárias. Suas críticas eram
destinadas também às autoridades, como por exemplo, Francisco José
Viveiros de Castro e contemporâneos, que se empenharam em reforçar as
tradições religiosas e patriarcais, com grande preocupação com a virgindade e

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honra sexual feminina como indicador de progresso da nação e inclusive
baseando-se nisso nas primeiras legislações e códigos penais da Primeira
República.
Aliados aos saberes médicos, os inquéritos policiais apresentavam
também como esta noção de honra era percebida pelo meio jurídico,
fortemente influenciado pela medicina. Os processos criminais, fontes
importantes para esta análise, demonstravam dois elementos principais. O
primeiro se dá na busca pela reparação desta honra perdida por parte de
mulheres e suas famílias, denunciando crimes de sedução, defloramento,
estupro, vendo na justiça uma forma de remediar esta situação, seja por meio
da prisão do acusado ou por meio de casamento. O segundo elemento vai na
direção contrária, o uso da Justiça por moças que buscavam se livrar do
controle parental, principalmente do controle materno. Essas mulheres
buscavam uma forma de regulamentar seus romances, driblar a proibição
familiar, legitimar um filho, ascender socialmente, desta forma os processos
não buscavam punir seus agressores (ESTEVES, 1989, p. 129).
Neste sentido, as práticas jurídicas oscilavam entre as intenções
marginalizadoras e civilizadoras, no que concerne à sexualidade, constituindo
discursos e construindo perfis “culpados” e “inocentes”, padrões de
comportamento adequados e assim usar os processos e julgamentos como
forma de difundi-los. Esses perfis baseavam-se em cor, classe, ocupação,
sendo fator dominante na resolução dos processos, ou seja, quanto mais
pobre, preta, analfabeta menor a chance de vencer os processos. ​É importante
pensar que a integridade sexual da mulher, para esses médicos e juristas se
apresentava como uma honra não apenas dela, mas da família a qual
pertencia, sendo assim definida como bem social coletivo e cabia ao Estado
defender este bem, a honra era tratada como uma retórica de poder
(CAULFIELD, 2001, p. 116).
Durante a década de 1940, houve uma mudança no Código Penal
Brasileiro, os nomeados “crimes contra a segurança da honra e da honestidade
familiar” foram divididos em duas novas leis: os crimes contra a família

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(bigamia, abandono, maus-tratos de crianças, adultério) e crimes contra o
costume (estupro, atentado ao pudor, sedução, corrupção de menores, rapto).
Essa nova separação da lei apresentou seu foco de proteção contra os
chamados “menores” ao invés de uma preocupação com a virtude feminina
exclusivamente.
Os discursos sobre as definições familiares, seus comportamentos, sua
moral, adentram outro campo, não apenas o corpo e a moral da mulher, mas
também sobre o corpo infantil, sobre o nascimento, desenvolvimento, saúde e
crescimento das crianças, garantir seu crescimento dentro dos padrões de
moral e bom comportamento. Havia uma grande preocupação com a
criminalidade infantil para “evitar que os jovens se corrompessem, uma
preocupação comum com a infância, com sua necessidade intrínseca de
serviços sociais diferenciados em geral, a assistência médico-legal em
particular” (ANTUNES, 1999, p. 79-80) sendo a infância entendida como um
estado de carência e atenção especial, necessitando de auxílio de demais
setores além da própria organização familiar.
A modernidade e os discursos que cercam este conceito voltam sua
atenção para as constituições familiares. A família passa a ser o alvo das
políticas higienistas, assim como as crianças:
De uma posição secundária e indiferenciada em relação ao mundo
dos adultos, a criança foi paulatinamente separada e elevada à
condição de figura central no interior da família, demandando um
espaço próprio e atenção especial: tratamento e alimentação
específicos, vestuário, brinquedos e horários especiais, cuidados
fundamentados nos novos saberes racionais da pediatria,
puericultura, da pedagogia e da psicologia (RAGO, 2014, p. 156).

O novo domínio e objeto de saber, a infância, abriu portas para a


interferência dos médicos e demais especialistas para dentro das famílias. Com
as altas taxas de mortalidade infantil, no início do século XX, a medicalização
da família torna-se importante alvo da medicina higienista e do controle de
políticas sociais.
A legitimação do poder médico dentro das famílias precisou combater as
crenças e as práticas culturais no cuidado da criança, pois estas eram
qualificadas como primitivas, irracionais e nocivas, sendo necessária a

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intervenção do saber médico-científico para a manutenção e orientação das
famílias e cuidado com as crianças, evitando assim mortes prematuras. Outra
preocupação presente nos médicos que voltavam sua atenção para a infância
dizia respeito aos menores abandonados e à exploração do trabalho infantil,
que se intensificou no início do século XX com o aumento do número de
fábricas nos grandes núcleos urbanos.
Com relação à preocupação dos médicos com os menores
abandonados, seus discursos se entrelaçam aos discursos econômicos, os
quais se preocupavam com a necessidade de produzir trabalhadores sadios
para o futuro, ou seja, proteger a infância estava aliada à noção de proteger o
futuro econômico do país. Quanto mais crianças abandonadas, mais rebeldes,
delinquentes e espíritos descontentes, era preciso tirar essas crianças e jovens
das ruas:
No discurso do poder médico, a rua era representada como “a grande
escola do mal”, espaço público por excelência onde se gerariam os
futuros delinquentes e criminosos irrecuperáveis. [...] o Estado deveria
preocupar-se em formar o caráter das crianças, incutindo-lhe o amor
ao trabalho, o respeito pelos superiores em geral, as noções de bem
e mal, de ordem e desordem, de civilização e barbárie; enfim os
​ . 161)​.
princípios da moral burguesa ​(Ibidem, p

Havia uma dualidade nos discursos dos especialistas que tinham o


imaginário sobre a infância percebida como uma superfície ​plana que pode ser
moldada pelos bons comportamentos e pela moral, ao mesmo tempo que
percebia essa criança como dotada de vícios e características que deveriam
ser corrigidas. Os criminologistas apontavam a importância de correção e
disciplina dessas crianças, principalmente dos menores de rua, considerados
altamente perigosos, pois o contato direto com a rua e os espaços públicos
contaminava-os moralmente (CÉSAR, 1999, p. 02).
Outro dilema enfrentado pelos especialistas preocupados com a infância
era a mortalidade, apontando como causa fundamental as más condições
sanitárias e o trabalho infantil. Enquanto o discurso moralizador dizia que o
trabalho era importante para criar bons hábitos durante a infância, os médicos
preocupavam-se em alertar sobre os efeitos negativos que o trabalho nas
fábricas acarretaria nas crianças e procuravam dialogar com o Estado para

10
criar políticas que proibissem o trabalho infantil nas fábricas (RAGO, 2014, p.
167).
O discurso médico e higienista condenava as famílias pela precariedade
na criação destas crianças e pela necessidade de que estas trabalhassem para
completar a renda familiar. As famílias pobres eram apresentadas como
responsáveis pelos desvios morais e falta de recursos para garantir o cuidado e
educação de seus filhos. Esses discursos médicos científicos transformavam a
diferença econômica e sociocultural em patologia (CÉSAR, 1999, p. 02).
As mães também apareciam como culpadas e responsáveis pela
mortalidade infantil, devido à ignorância nos cuidados baseados em crenças e
costumes populares, que para os saberes médicos eram rudimentares e
ineficientes, e apenas o saber médico-científico era capaz de evitar as mortes e
doenças na infância. Outro fator importante repudiado pelos olhares moralistas
dos médicos, pedagogos e criminologistas era a constituição do ambiente
familiar, sua distribuição espacial e comportamentos dentro das casas. Para
esses especialistas, o amontoamento de pessoas em idades e sexos diferentes
dentro do mesmo cômodo era responsável pelo desvirtuamento das condutas
morais, produtores de comportamentos promíscuos e de desintegração da
unidade familiar:
São muitos os escritores que estudam a influência da promiscuidade
em habitações exíguas sobre a degradação dos costumes e,
consequentemente, a erosão da criminalidade. [...] não há palavras
capazes de exprimir o que de nefasto o comportamento único produz,
quer sob o aspecto físico, quer sob o ponto de vista moral. Conduz
sempre, como observado, ao sistema do leito único. [...] Casos há em
que, nos mesmos quartos em que dormem os filhos adultos, são
recebidos estranhos, desenvolvendo-se naturalmente a imoralidade
[...] uma grande quantidade de incestos e de casos de prostituição da
infância origina-se da aglomeração excessiva (NOÉ AZEVEDO ​apud
RAGO, 2014, p. 176).

Aqui chegamos a um ponto de convergência entre os assuntos


abordados até o presente momento, a moralização dos comportamentos, do
corpo feminino bem como do corpo infantil, tanto nos discursos médicos,
quanto jurídicos, pedagógicos, psicológicos apresentando o problema da
sexualidade envolvendo direta ou indiretamente as crianças. Neste sentido,
este breve ensaio que buscou elucidar a importância dos discursos médicos e

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jurídicos na constituição de princípios da moralidade e do que é o corpo, seja
feminino ou infantil, sendo que a partir desses discursos o local de
pertencimento da mulher e da criança foi estabelecido, seus comportamentos,
condutas, moral e honestidade firmadas.

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