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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO (PUC-SP)

MARLI PITARELLO

SELEÇÃO SOCIOECONÔMICA: LEGITIMAÇÃO DA DESIGUALDADE SOCIAL


NA SOCIEDADE CAPITALISTA

Um estudo dos fundamentos sócio-históricos de sua operação na política social e no


Serviço Social

DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL

SÃO PAULO
2013
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO (PUC-SP)

MARLI PITARELLO

SELEÇÃO SOCIOECONÔMICA: LEGITIMAÇÃO DA DESIGUALDADE SOCIAL


NA SOCIEDADE CAPITALISTA

Um estudo dos fundamentos sócio-históricos de sua operação na política social e no


Serviço Social

DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL

Tese apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título
de Doutor em Serviço Social, sob orientação
da Profª Drª Marta Silva Campos.

SÃO PAULO
2013
B ANCA EXAMINADORA

___________________________________________________

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___________________________________________________

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i
À Ana Luiza, minha menina, com a qual compartilho o dia a dia e encontro nessa
convivência os motivos para renovar minhas esperanças na transformação do mundo.

ii
AGRADECIMENTOS

Agradecer é um ato de reconhecimento do significado positivo que algumas pessoas


têm em nossas vidas. Sem o apoio delas, não teria sido possível ter chegado até aqui.
Agradecer nomeadamente a todas que contribuíram nesta empreitada é certamente impossível,
mas, embora difícil, quero expressar meus agradecimentos especiais.
Primeiramente, sou grata à Profª Marta Silva Campos, pela orientação e pelo empenho
para que eu pudesse aproveitar, ao máximo, minha permanência em Portugal.
Ao Prof. Francisco José do Nascimento Branco, da Universidade Católica de Lisboa,
meu orientador português, com o qual estabeleci uma relação produtiva, agradeço seus
ensinamentos, que foram a base de minha vivência naquele país. E não poderia deixar de
agradecer, pela acolhida e pela colaboração na pesquisa, aos prezados colegas portugueses —
Bernardo Alfredo Henriquez, Alcina Martins, Fernanda Rodrigues, Filomena Novo, Isabel
Vieira, Maria Aurora Matias, Maria Inês Amaro, Teresa Salselas — que me permitiram
conhecer mais de perto o Serviço Social português. Além deles, Filomena Serra e Manuel
Villaverde Cabral, queridos amigos, que linda amizade construímos!
Às entrevistadas, as assistentes sociais portuguesas Alice, Fátima, Luísa e Tília, e as
brasileiras Eunice, Graziela, Isaura e Regina, que dedicaram seu tempo, toda a minha
gratidão, meu respeito e minha admiração pelo trabalho que realizam.
Meus agradecimentos a Bárbara e a Luciana Almeida pela transcrição das entrevistas.
E a Frank Ferreira, pela revisão do texto.
Às estimadas professoras Maria Carmelita Yazbek e Maria Rachel Tolosa Jorge,
agradeço a valiosa contribuição na qualificação. Aos colegas do Curso de Serviço Social da
PUC-SP, por terem compreendido minha ausência temporária em reuniões e na realização de
tarefas coletivas do Departamento. Aos professores e às professoras de pós-graduação, pelo
aprendizado e dedicação fora e em sala de aula. A Myriam Veras Baptista, querida professora
sempre gentil e atenciosa comigo, sou imensamente grata pelo carinho e pela generosidade.
Agradeço aos integrantes do NEPEDH da PUC-SP, com os quais tive convivência de
companheirismo e amizade: Maria Lucia Silva Barroco, Amanda Guazzelli, Eliane Nicoletti,
Laura Silva Santos, Luciano Alves, Maurílio Matos, Maria de Jesus de Assis Ribeiro, Vera
Martins, Rodrigo Diniz. Não poderia esquecer Cristina Brites, companheira e amiga, pela
insistência para que eu fizesse o doutorado. Aos meus atuais e ex-alunos, que me ensinam a
refletir e pensar nossa profissão com questões e desafios colocados em sala de aula.

iii
Um agradecimento especial às amigas e professoras Isaura Isoldi de Mello Castanho e
Oliveira e Graziela Acquaviva Pavez, pela convivência solidária, pela colaboração e paciência
que tiveram comigo durante o processo de elaboração deste estudo.
Aos colegas do Programa Foco, em especial às queridas companheiras Rosina Revolta
Gonçalves e Vania Ferreira de Sousa, pela amizade e pelo trabalho solidário que juntas
realizamos.
Às minhas prezadas amigas Dora Petreski, Edima Donabella, Maria Cecília Figueira
de Mello, Maria Aparecida Salomão Moraru e Regina Maria Ignarra, agradeço pela linda e
solidária amizade que construímos e que persiste há tantos anos. À Cleisa Moreno Maffei
Rosa, pela generosidade com que sempre me trata. É muito bom contar com uma amiga com a
qual posso falar de receitas culinárias ao destino que desejamos para o mundo. Ao igualmente
amigo de muitos anos, Alberto Abib Andery, pela confiança e esperança que sempre
depositou em mim e pelas tantas coisas que me ensinou na vida, especialmente o valor da
amizade leal e sincera.
Ao Sílvio Hotimski, que, de longa data, vem me ajudando a realizar escolhas em
benefício da minha felicidade.
Agradeço à Capes pela Bolsa de Estágio no Exterior, que me permitiu estudar em
Portugal, e à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo pela Bolsa Dissídio, que me
dispensou do pagamento das disciplinas cursadas no meu doutorado.
Por fim, quero agradecer às queridas amigas Cinira do Prado Francisco e Odília Alves
de Souza, a dedicação e os cuidados que dispensam à minha família. A vocês todo o meu afeto
e reconhecimento, sempre. Às amigas Ana Paula Pavan Dondon, Cíntia Constantino Menezes e
Duca Rachid e respectivas famílias, precioso legado dos tempos do Grão de Chão, pela bonita,
recíproca e cúmplice relação que temos até hoje e que torna a educação de nossos filhos mais
rica. Ao Paulo Roberto Pires, pela ajuda que me liberou de muitas tarefas cotidianas.
À minha família sou imensamente grata. Aos queridos primos Santa, Carla, Cristiane,
Douglas, Gilberto, Dete, João e a pequena Olívia, por nossos encontros à moda italiana,
sempre alegres e acompanhados de muita comida.
À minha amada irmã Marlene, pelo caminho que trilhamos juntas e por tudo. Sem a
sua presença cúmplice na minha vida não teria feito o que fiz.
A meus pais Olga e Alceu, já falecidos: eles são minhas referências, que, pela nossa
origem social, ensinaram-me o valor do trabalho, da união, da esperança e da luta,
especialmente a luta por um mundo mais igual e justo.

iv
RESUMO

Esta tese busca fundamentar a intervenção profissional do assistente social em relação à


seleção socioeconômica. Nas organizações sociais, esta representa um instrumento utilizado
pelo assistente social, na qualidade de funcionário, para possibilitar que a população
demandatária dos benefícios e serviços sociais possa concorrer ao direito ao acesso a bens e
serviços, muitas vezes constitucionalmente previstos, mas negados, na prática, como direito
social universal. Nessas condições, é da seleção socioeconômica, enquanto instrumento da
política social, operada pelos assistentes sociais na quase totalidade das organizações sociais
— tomadas estes como espaços sócio-ocupacionais da profissão — que este estudo se ocupa.
Na análise empreendida, localiza-se o surgimento da seletividade e de seus fundamentos, que
passaram a integrar as propostas historicamente construídas de proteção social, em particular
a partir dos séculos XVI e XVII no Ocidente Europeu, ainda presentes nos dias atuais sob a
égide do capitalismo neoliberal. O aprofundamento do significado dessa seletividade implicou
a análise dos direitos sociais em face da universalização e da focalização das políticas sociais
na atualidade, assim como do sentido das contrapartidas ou condicionalidades, como parte
integrante dessa seletividade. A pesquisa desenvolvida explicita ainda a fundamentação
atribuída à seleção socioeconômica quando esta passou a constituir atividade do assistente
social desde a emergência e a institucionalização do Serviço Social nos Estados Unidos, na
Europa Ocidental e no Brasil, destacando-se o papel da Igreja Católica na expansão do
Serviço Social no cenário mundial. O exame da relação entre seleção socioeconômica,
política social e Serviço Social revela a natureza, a utilidade e o significado dessa seleção,
tanto no âmbito da política social, como no da participação dos assistentes sociais nos
processos seletivos, no sentido de sua legitimação social na sociedade capitalista.
Problematizando essa articulação no exercício e na formação profissional do assistente social,
mediante a contribuição bibliográfica e um estudo de natureza qualitativa realizado com
profissionais do Serviço Social no Brasil e em Portugal, o estudo conclui que, apesar das lutas
empreendidas pelos trabalhadores, as mudanças em relação ao acesso aos serviços e benefícios
sociais ainda são pequenas e que os fundamentos da seleção socioeconômica praticada pelos
primeiros assistentes sociais ainda estão presentes de forma viva. Hoje, diante da tendência
mundial de focalização da política social, sendo Portugal e Brasil dois exemplos, a
seletividade de acesso da política social tem aumentado, o que aponta a necessidade de se
continuar a reflexão e a busca da construção de respostas, visando ao atendimento dos
interesses dos trabalhadores ou daqueles que dependem do trabalho para viver.

Palavras-Chave: Política social; Serviço Social; seleção socioeconômica; instrumentalidade


profissional; desigualdade social

v
ABSTRACT

This thesis’ objective is to provide a basis for the intervention of the professional social
worker in socioeconomic selection. In social organizations, socioeconomic selection is an
instrument used by the social worker, as an employee, to enable the benefits and social
services demanding population to qualify for access to goods and services, often
constitutionally provided, but denied in practice as universal social right. Under these
conditions, the socioeconomic selection, as instrument of social policy operated by social
workers in almost all social organizations — taken as socio-occupational profession spaces —
is what this study is concerned with. The analysis undertaken located the emergence of
selectivity and its grounds, which were incorporated into the historically constructed social
protection proposals, particularly from the sixteenth and seventeenth centuries on, in Western
Europe, and still present today under the aegis of neoliberal capitalism. To reach the
selectivity deeper significance involved the analysis of social rights in the face of today
universalization and targeting of social policies, as well as the sense of the compensatory
conditions as part of this selectivity. The research further explains the reasons attributed to
socioeconomic selection when it has become a social worker activity with the emergence and
institutionalization of Social Work in the United States, Western Europe and Brazil,
highlighting the role of the Catholic Church in the expansion of Social Work on the world
stage. An examination of the relationship between socioeconomic selection, Social Policy and
Social Work reveals the nature, the usefulness and significance of this selection, both in the
context of social policy, as in the social workers involvement in selection processes, in the
sense of its social legitimacy in capitalist society. Discussing this articulation in the work and
training of social workers, through the contribution of literature and a qualitative study
conducted with social service works in Brazil and Portugal, the study concludes that, despite
the struggles undertaken by workers, changes in the access to social services and benefits are
still small, and that the foundations of socioeconomic selection practiced by the early social
workers are still strongly present. Today, faced with the global trend of targeting of social
policy, Portugal and Brazil being two examples, the selectivity of access of social policy has
increased, indicating the need for further reflection and the pursuit of constructing responses
in order to meet the interests of workers or those who depend on work to live.

Keywords: Social policy; Social Work; socio-economic selection; professional instrumentation;


social inequality

vi
LISTA DE SIGLAS
Abepss: Associação de Ensino e Pesquisa em Serviço Social
APPS: Associação dos Profissionais de Serviço Social
BPC: Benefício de Prestação Continuada
Capes: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
Ceas: Centro de Estudos e Ação Social
CLT: Consolidação das leis do trabalho
COS: Charity Organization Society
Cras: Centro de Referência de Assistência Social
Creas: Centro de Referência Especializado de Assistência Social
Cress: Conselho Regional de Serviço Social
CSW: International Council on Social Welfare
Dieese: Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos
Funai- Fundação Nacional do Índio
IBGE: Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IPO: Instituto Português de Oncologia Francisco Gentil de Lisboa
ISSSL: Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa
LBA: Legião Brasileira de Assistência
MST: Movimento dos Trabalhadores sem Terra
NEPEDH: Núcleo de Estudos e Pesquisa em Ética e Direitos Humanos do Programa de
Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da PUC-SP
OIT: Organização Internacional do Trabalho
ONG: Organização não governamental
PAT: Programa de Alimentação do Trabalhador
PBF: Programa Bolsa Família
PFP: Programa de Formação Profissional
PIB: Produto interno bruto
PT: Partido dos Trabalhadores
PTC: Programas de transferência de renda condicionados ou com condicionalidades
PTCR: Programa de Transferência Condicionada de Renda
PUC-SP: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Rais: Relação Anual de Informações Sociais
RMG: Rendimento Mínimo Garantido
RSI; Rendimento Social de Inserção
SCML: Santa Casa de Misericórdia de Lisboa
Seade: Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados
Senai: Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial
Sesi: Serviço Social da indústria
Suas: Sistema Único de Assistência Social
TCC: Trabalho de conclusão de curso
Uciss: União Católica Internacional de Serviço Social
Uciss: União Católica Internacional de Serviço Social
UCP: Universidade Católica Portuguesa
UFSC: Universidade Federal de Santa Catarina
Unicamp: Universidade Estadual de Campinas
Unicsul: Universidade Cruzeiro do Sul
URSS: União das Repúblicas Socialistas Soviéticas

vii
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO, 1
Pressupostos da pesquisa, 6
O objeto, 8
A pesquisadora, 9
A organização do estudo, 11

CAPÍTULO 1 — A SELETIVIDADE PRESENTE NAS PROPOSTAS DE PROTEÇÃO


SOCIAL CONSTRUÍDAS HISTORICAMENTE, 13
1.1. Os direitos sociais entre a universalização e a focalização da política social, 35
1.2. Contrapartidas ou “condicionalidades”, 45

CAPÍTULO 2 — EM BUSCA DOS FUNDAMENTOS DA SELETIVIDADE


PRESENTES NA EMERGÊNCIA E INSTITUCIONALIZAÇÃO DO SERVIÇO
SOCIAL, 51
2.1. Os fundamentos da seletividade presentes na emergência e institucionalização do
Serviço Social nos Estados Unidos, 54
2.2. A aproximação do Serviço Social norte-americano e europeu, 69
2.3. O ideário católico presente na expansão do Serviço Social face à modernidade, 85
2.4. Sobre o indivíduo na religião cristã como fundamento para entender o Serviço
Social, 93
2.5 A seleção socioeconômica na emergência e constituição do Serviço Social no Brasil, 98

CAPÍTULO 3 — A SELEÇÃO SOCIOECONÔMICA, POLÍTICA, SOCIAL E


SERVIÇO SOCIAL, 112
3.1. Natureza e utilidade da seleção socioeconômica no âmbito da política social, 112
3.2. Modalidades das seleções socioeconômicas e critérios, 121
3.3. A utilidade da ação profissional do assistente social na seleção socioeconômica das
organizações sociais, 125
3.4. O significado da participação do assistente social na seleção socioeconômica para
análise do campo profissional do Serviço Social, 130
3.5. Formas de legitimação do assistente social como operador da seletividade de acesso
às políticas sociais, 134

CAPÍTULO 4 — A SELEÇÃO SOCIOECONÔMICA NO EXERCÍCIO E NA


FORMAÇÃO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL CONFORME AS
ENTREVISTAS REALIZADAS, 146
4.1. Definição dos instrumentos de pesquisa, 146
4.2. A definição dos sujeitos da pesquisa, 147
4.3. O conteúdo das entrevistas, 157
4.4. Análise das entrevistas, 159
4.4.1. Postura diante da seleção socioeconômica, 160
4.4.2. Natureza e significado da seleção socioeconômica, segundo o entendimento das
entrevistadas, 165
4.4.3. A definição e uso de critérios na seleção socioeconômica, 185
4.4.4. As contrapartidas como condição de acesso e permanência no atendimento, 214

viii
4.4.5. Os procedimentos e instrumentos de operação da seletividade de acesso aos serviços e
benefícios sociais, 228
4.4.6. As pressões políticas atuantes no processo seletivo, 240
4.4.7. Desafios colocados à profissão na atual conjuntura e a seletividade de acesso: as
condições de trabalho e os interesses dos usuários, 249
4.4.8. Como se deu a qualificação das entrevistadas para a realização da seleção
socioeconômica, 272
4.4.9. Os desafios do ensino da instrumentalidade profissional em tempos adversos, 284
4.4.10. A pesquisa da instrumentalidade profissional e a seleção socioeconômica, 299

CONSIDERAÇÕES FINAIS, 309

REFERÊNCIAS, 322

ANEXOS, 335

Anexo 1: Ficha de Identificação do Entrevistado, 336


Anexo 2: Roteiro das entrevistas realizadas em Portugal, 337
Anexo 3: Perfil das entrevistadas em Portugal (dezembro de 2010) e no Brasil (abril de 2012), 339
Anexo 4: Roteiro da entrevista coletiva com assistentes sociais brasileiras, 334
Anexo 5: Recorte da entrevista realizada com Tília na cidade do Porto, em dezembro de 2010, 346

ix
1

INTRODUÇÃO

A razão desta pesquisa tem caráter teórico-prático, uma vez que, desde 1998, sou
desafiada, através da vivência em dois projetos de extensão universitária que se realizaram no
âmbito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC- SP): o Cursinho do Grêmio
Politécnico, de 1998 a 2000, e o Projeto Suplementar Foco Vestibular, de 2006 até o primeiro
semestre de 2012.
A reflexão e o aprofundamento do meu estudo acerca das formas de acesso à política
social foram, desde então, impulsionados pelo fato de coordenar esses trabalhos na qualidade
de professora do Curso de Serviço Social da PUC- SP, tendo, ao mesmo tempo, que responder
pela sua operação no campo. Trata-se de duas experiências educacionais que se localizam no
âmbito da criação de possibilidades de acesso à educação universitária para um segmento da
população de baixa renda, advinda na sua quase totalidade da escola pública. Nos dois
projetos, a demanda inicial posta ao Serviço Social incide na construção de instrumentos de
operação da seleção socioeconômica, para a qual se respeita e se reconhece a experiência e a
qualificação do assistente social para assumir tal atribuição, após a avaliação das várias
tentativas praticadas terem sido consideradas não satisfatórias.
De início, aceitei o desafio apresentado pelo Grêmio Politécnico, mais pelo
envolvimento e pelo interesse em contribuir para que pudesse vingar aquele projeto inovador
e menos pelo acúmulo teórico-prático para realizar a seleção demandada. Até então, eram
genéricos meu conhecimento e minha reflexão acerca de processos seletivos como forma de
acesso a serviços e benefícios sociais. Contribuir para o acesso de um segmento da população
pobre à universidade pública era e continua sendo fundamental e urgente, principalmente se
nos referimos ao acesso à informação com qualidade, no qual a preocupação com a visão
crítica do aluno é preocupação constante e central de sua formação social.
Era esse o horizonte que me animava, quando deparava com a possibilidade de poder
contribuir com a criação de uma história na qual um segmento da classe trabalhadora estava
sendo atendido com respeito, participando de um projeto de ensino qualificado. Instigava-me o
fato de que, mesmo em projetos que veiculam os interesses dos trabalhadores, é necessário
selecionar alguns em detrimento de outros. Não bastava perceber que os recursos eram escassos
para atender número maior de alunos. Passei a desejar desvendar o que se escondia por trás
daquele ato seletivo, visando tirar da banalidade a ideia de que selecionar seria “natural”.
2

Foi nesse contexto que comecei a construir um pensamento acerca da seleção


socioeconômica ligada ao acesso às políticas sociais, procurando acumular experiência
teórico-prática sobre o tema. Desde então, tive oportunidades de assessorar vários grupos que
nos demandaram estudos e a criação de instrumentos para a operação de seus processos de
seleção socioeconômica, sendo que cada um deles nos trouxe novas e desafiantes questões.
Nessa trajetória, paradoxalmente, pude constatar que, por um lado, há esse
reconhecimento da experiência “acumulada” da profissão nos processos de seleção
socioeconômica; esta pode mesmo ser vista, ao longo da história, como uma das principais
atividades dos assistentes sociais nas organizações que os contratam. Contudo, apesar de presente
no cotidiano dos assistentes sociais, não recebeu por parte da categoria tratamento proporcional a
essa importância, no sentido de ser colocada na agenda do debate profissional qualificado.
A ressalva de sua importância se deve, entretanto, mais à alta incidência de sua
realização no dia a dia que ao engrandecimento e ao reforço de sua existência como prática de
controle social.
Nas organizações sociais que desenvolvem tal proposta, a seleção socioeconômica
representa um instrumento utilizado pelo assistente social, na qualidade de funcionário, para
possibilitar à população demandatária dos serviços sociais pleitear o direito de concorrer ao
acesso a bens e serviços, previstos constitucionalmente, mas negados, na prática, como direito
social universal. É dela, situada como instrumento da política social, operada pelos assistentes
sociais na quase totalidade das organizações sociais, tomadas como lócus do trabalho
profissional, que pretendo me ocupar nesse estudo.
O sentido desta pesquisa, orientado por categorias analíticas e reflexões teóricas,
responde, portanto, a uma necessidade de fundamentar a intervenção profissional do assistente
social em relação à seleção socioeconômica. Trata-se de dar importância a uma atividade
profissional do assistente social, reconhecida na Lei nº 8.662, de 7 de junho de 1993, que
regulamenta o exercício da profissão de assistente social. Consta em seu artigo 4º, item XI,

que é de competência do assistente social “realizar estudos socioeconômicos com os usuários,


para fins de benefício e serviços sociais junto a órgãos da administração pública direta ou
indireta, empresas privadas e outras entidades”.
Em outros itens dessa lei, aparecem como atribuições privativas do assistente social
diversas atividades relacionadas à elaboração, ao planejamento, à gestão e à execução das
políticas sociais, das quais fazem parte a definição e a execução das formas de acesso da
população a essas políticas. Constam dos itens I, II, IV e XII do art. 5º, entre outras atribuições:
3

• coordenar, elaborar, executar, supervisionar e avaliar estudos, pesquisas, planos,


programas e projetos na área do Serviço Social;
• planejar, organizar e administrar programas e projetos em unidades de Serviço
Social;
• realizar vistorias, perícias técnicas, laudos periciais, informações e pareceres sobre
a matéria do Serviço Social; e
• dirigir serviços técnicos de Serviço Social em entidades públicas e privadas.

Essa lei, que legitima o lugar do Serviço Social na divisão sociotécnica do trabalho,
representa o reconhecimento da sociedade brasileira de que o assistente social é habilitado
para realizar esse tipo de estudo social, dando-lhe, legalmente o direito e o poder para tanto.
Essa competência profissional do assistente social é parte integrante do atendimento dirigido à
população usuária dos programas da política social. 1 No entanto, não vem recebendo
tratamento proporcional à sua importância na agenda do debate qualificado da profissão.
Neste aspecto, há um silêncio no Serviço Social quanto ao âmbito de seus
fundamentos sócio-históricos e da sua sistematização operacional. Independentemente dessa
falta de avanço da produção teórica, processos seletivos vêm sendo realizados cotidianamente
pelos assistentes sociais. Interessa-nos decifrar o que se esconde sob tal desconsideração.
Se não há aprofundamento teórico relevante sobre as formas de acesso à política social
que dê aos assistentes sociais suficientes fundamentos e subsídios para sua intervenção,
pergunto-me de onde provêm suas ferramentas de operação. Sou levada a supor que, para
muitos, não passam de simples conjunto de regras e procedimentos, carregando o perigo de
reiteração de idéias presentes no senso comum, pensamento predominante no cotidiano.
Sabemos que não há atividade técnica em si mesma, pois sempre estão presentes
referências teórico-metodológicas e ético-politicas que subsidiam o fazer profissional. Na
falta da teoria que dê substância à prática, poderá ganhar relevo a simplificação e a
banalização das situações que se apresentam ao profissional. O uso da técnica sem crítica
acabará por levar o profissional a deixar as ações falarem por si mesmas contentando-se em
legitimar o julgamento, para si mesmo, e para a organização em que trabalha, do quanto foi
“justo” e “técnico” nos seus procedimentos.

1
Diferencio, com Iamamoto (2009a, p. 21), competência e atribuição. Competência é entendida como
“expressão de capacidade para apreciar ou dar resolutividade a determinado assunto, não sendo exclusiva de uma
única especialidade profissional [...]”. Atribuição é “prerrogativa exclusiva ao serem definidas enquanto matéria,
área e unidade de Serviço Social”.
4

Teoria e prática caminham sempre juntas. Sem uma sólida teoria, não se faz
intervenção séria, conseqüente e comprometida com os interesses das camadas sociais
subalternizadas. Como Bourdieu (1973, apud THIOLLENT, 2008, p. 44-47), entendo que a
técnica é a materialização em atos da teoria e das intencionalidades. Nessa perspectiva, não há
possibilidade de neutralidade profissional diante dos sujeitos tomados como objetos de
pesquisa ou da intervenção profissional. Se o profissional não realiza escolhas de ordem
teórica e política, reiterará o que já existe no cotidiano.
Não é possível haver neutralidade diante da realidade que se apresenta aos nossos
olhos. Portanto, quando aparentemente nos mantemos indiferentes ao que fazemos ou ao que
se passa em nossa volta, estamos reiterando o sentido que “outros” deram àquilo. O que
significa, então, o silêncio da profissão sobre a realização da seleção socioeconômica? O que
se esconde sob ela?
Em relação ao Serviço Social, percebemos que, apesar do significativo acúmulo
teórico sobre a natureza da profissão, situando-a no plano maior das relações sociais vigentes,
parece haver, quanto à seleção socioeconômica, uma dicotomização na prática dos assistentes
sociais brasileiros. Pauta-se esta, ainda, pela ideia de culpabilização do pobre por sua situação
de pobreza. Distinguindo entre bons e maus pobres, pratica-se uma forma de meritocracia.
Essa prática cotidiana, que entende a questão social como questão moral, não reconhece o
acesso aos bens e serviços sociais como direito humano e social dos indivíduos. Não enxerga
os usuários dos serviços sociais como sujeitos portadores de direitos e reforça a ideia de que o
acesso está atrelado ao favor das entidades sociais e dos governos e ao mérito dos indivíduos,
assim como considera “naturais” a existência da seleção e a não disponibilidade de recursos
para atender a todos.
Ir além das aparências pressupõe perceber sua decisiva utilidade social como
instrumento legitimador da desigualdade — de controle social, portanto —, uma vez que a
ação profissional fornece instrumentalidade e estatuto científico à seletividade presente nos
programas de política social, facilitando sua aceitação pública.
A análise dos processos técnicos vinculados à seleção socioeconômica enquanto uma
das competências e atribuições profissionais do assistente social que almejamos desenvolver
tem como referência básica o fato de o Serviço Social estar integrado às relações sociais que
se desenvolvem na ordem capitalista. Embora o assistente social trabalhe a partir da demanda
e com a situação de vida trazida pelo trabalhador, não é este, no entanto, quem o contrata e
remunera. Estabelece-se uma disjunção entre intervenção e remuneração (IAMAMOTO;
5

CARVALHO, 1985, p. 84), e está presente para o profissional, em diferentes níveis, um mandato
das classes dominantes junto à classe trabalhadora.
O objeto de estudo dessa pesquisa é a seleção socioeconômica como condição e forma de
acesso aos serviços e benefícios sociais, desvendando os fundamentos sócio-históricos de sua
operação na Política Social e no Serviço Social. Pretendemos tirar do silêncio a execução da
seleção socioeconômica, trazendo-a para o âmbito do debate da profissão, enquanto
atribuição/competência profissional. Da mesma forma, pretendemos explicitar de que modo a
seleção socioeconômica, enquanto atribuição profissional, vem sendo tratada pelos assistentes
sociais na literatura profissional, na formação e no exercício profissional propriamente dito. Mais
ainda, caracterizar a particularidade da seleção socioeconômica como atribuição/competência
profissional no Serviço Social e abrir debate qualificado no Serviço Social acerca dos processos
seletivos, construindo a problematização em torno das questões que os envolvem também se
levantam como horizontes a serem alcançados pela pesquisa.
Cabe destacar que, durante o doutorado, quando me deparei com a possibilidade de
ampliar meus estudos no exterior através de uma bolsa do Plano Doutoramento de Estágio no
Exterior (PDEE) da Capes, escolhi e fui aceita para realizar em Portugal um estágio sediado no
Programa de Doutoramento em Serviço Social da Universidade Católica de Lisboa no período
compreendido entre julho e dezembro de 2010.
Meu interesse por Portugal pautou-se nos bons e produtivos laços existentes entre os
Serviços Sociais brasileiros e portugueses, que vêm sendo construídos desde o início da
década de 1970. Naquele momento, o Serviço Social português começou a se questionar,
influenciado pelo movimento latino-americano denominado por Reconceituação do Serviço
Social (1965-1975), tendo como referência dois documentos brasileiros (os de Araxá e
Teresópolis) que passaram a ter papel decisivo na reorientação da prática profissional naquele
país (BRANCO; FERNANDES, 2005).
Mas é nos anos 1990 que tem início uma longa história de parcerias entre o Instituto
Superior de Serviço Social de Lisboa (ISSSL) e o Programa de Estudos Pós-Graduados em
Serviço Social da PUC- SP. O quadro de professores que implantou em Portugal o mestrado, em
1995, e o doutorado, em 2003, obteve sua titulação na PUC- SP, e, a partir daí, o intercâmbio
acadêmico entre os dois países tem sido constante.
Em relação à seleção socioeconômica, tinha interesse em conhecer as particularidades
de sua realização naquele país, partindo da apreensão de que se constitui em importante e
decisivo instrumento de controle social que contribui para manter e legitimar a desigualdade
social, inerente à ordem do capital, tendo uma natureza que é a mesma em qualquer país ou
6

lugar onde se realiza, embora adquira diversas peculiaridades nos diversos contextos e épocas
em que se realiza. Em Portugal, pude estudar e conhecer a história e um pouco do trabalho
realizado pelos assistentes sociais naquele país e observar como a reordenação do capitalismo
internacional, na era da globalização neoliberal, tem rebatido na política social praticada no
continente europeu, na especificidade lusitana.
Considero que o estágio realizado me possibilitou o aprofundamento dos estudos,
principalmente sobre o movimento universalização-focalização da política social, assim como
me estimulou a retomar o estudo e a reflexão sobre as origens da profissão, buscando entender
quando, como e quanto a seleção socioeconômica havia se colocado como atividade de
competência do assistente social. Em Portugal, como parte da pesquisa empírica, realizei
entrevistas com assistentes sociais, cujos perfis delinearei mais à frente. Através dos estudos e
entrevistas realizadas com assistentes sociais brasileiras e portuguesas, pretendi ampliar a
problematização acerca da prática de seleção de acesso aos serviços e benefícios sociais,
criando mais um diálogo entre os profissionais dos dois países em foco, sem a pretensão de
empreender um estudo de caráter comparativo. A tônica problematizadora dada à nossa
pesquisa justifica-se diante da quase inexistência de bibliografia sobre o assunto no Serviço
Social e da pretensão de apreender a seleção socioeconômica na perspectiva da totalidade,
destacando as determinações que conseguimos captar por meio do estudo realizado.
Neste estudo, minha intenção maior antes, durante e após a realização das entrevistas
foi a de questionar a seleção socioeconômica para configurar, detalhar e analisar as equações
envolvidas nessa atividade, visando dar visibilidade aos desafios presentes na criação das
respostas profissionais.
Considerei as colegas entrevistadas como parceiras no enfrentamento desse desafio,
tratando-as nessa condição e dando a elas a devida autoria de idéias expostas, a partir de
roteiro previamente estabelecido.

Pressupostos da pesquisa2

Explicitar o caminho trilhado na pesquisa é mencionar a perspectiva de análise que


orientou a abordagem do objeto de estudo nas referências teóricas utilizadas e na pesquisa de

2
Na construção destas referências, pautei-me basicamente pelos estudos realizados durante o curso “Origens da
ontologia do ser social: Marx e Lukács”, ministrado pelo prof. Celso Frederico durante o segundo semestre de
2008, no Programa de Estudos Pós Graduados em Serviço Social da PUC-SP, assim como nas aulas da disciplina
“Fundamentos filosóficos e questões do método nas ciências sociais”, ministradas pelo prof. José Paulo Netto,
durante o primeiro semestre de 2011, no referido Programa.
7

campo realizada para embasar e iluminar a apreensão da seleção socioeconômica enquanto


instrumento da política social operada pelo profissional.
Marx incita-nos a pensar sobre o árduo trajeto quando entendemos que o papel básico
da teoria é a busca incessante da verdade escondida nas coisas, que são tomadas como objetos
de nossa ação de pesquisar:

O concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é, unidade do


diverso. Por isso o concreto aparece no pensamento como processo de síntese, como
resultado, não como ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e,
portanto, o ponto de partida também da intuição e da representação (MARX, 1978b,
p. 116).

Partindo desse pressuposto, entendo que cada tema que pretendemos estudar já existe,
tem uma história, tem uma natureza que não se revela de imediato. Para conhecê-la, é preciso
realizar um caminho de deciframento, mediante aproximações sucessivas, para ir explicitando
as categorias que lhe dão existência e fundamentam o seu jeito de ser, a sua natureza.
Na aparência, há a ilusão de que os objetos sociais são prontos, dados e sempre
estiveram ali tal qual os vemos e, consequentemente, não são reconhecidos como as
construções históricas que, de fato, são. Todavia, as aparências nos enganam, pois esses
objetos, alvo de nossa ação de pesquisadores, são resultado de ações humanas e de complexas
mediações; portanto, contêm uma história de relações que os constituem, na qual a aparência
é a forma necessária da essência. Os objetos que vemos e com que deparamos na vida
cotidiana são o resultado de inúmeros processos, mediados por ações e intenções humanas,
tendo como fundamento a prática dos homens entre si e as relações de adaptação e
transformação que estabeleceram com a natureza através do trabalho para satisfazer suas
necessidades ao longo da história.
Isso significa dizer que a realidade existe antes do pensamento científico, artístico ou
filosófico se apossar do seu jeito de ser pela consciência. Mas, para apreendê-la, é preciso
percorrer longo caminho para juntar, em unidade contraditória, a aparência e a essência.
Em outras palavras, o objeto de pesquisa tem uma existência objetiva, que independe da
consciência do pesquisador: “[...] pela teoria, o sujeito [pesquisador] reproduz em seu
pensamento a estrutura e a dinâmica do objeto de pesquisa. E esta reprodução (que constitui
propriamente o conhecimento teórico) será tanto mais correta e verdadeira quanto mais fiel o
sujeito for ao objeto” (NETTO, 2009, p. 673). O fundamento dessa trajetória é, portanto, a
história relativa à prática dos homens. A teoria social é o concreto pensado: “[...] o
conhecimento teórico é o conhecimento do objeto tal como ele é em si mesmo, na sua existência
8

real e efetiva, independentemente dos desejos, das aspirações e das representações do


pesquisador” (NETTO, 2009, p. 673). Na concepção marxiana de teoria,

[...] a teoria é a reprodução no plano do pensamento, do movimento real do objeto.


Esta reprodução, porém, não é uma espécie de reflexo mecânico, com o pensamento
espelhando a realidade tal como um espelho reflete a imagem que tem diante de si.
Se assim fosse, o papel do sujeito que pesquisa, no processo de conhecimento, seria
meramente passivo. Para Marx, ao contrário, o papel do sujeito é essencialmente
ativo: precisamente para apreender não a aparência ou a forma dada ao objeto, mas a
sua essência, a sua estrutura e a sua dinâmica (mais exatamente: para apreendê-lo
como um processo), o sujeito deve ser capaz de mobilizar um máximo de
conhecimentos, criticá-los, revisá-los e deve ser dotado de criatividade e imaginação
(NETTO, 2009, p. 675).

Reconhecer que o objeto tem uma existência que independe da consciência do sujeito
que deseja conhecê-lo não significa dizer que a relação sujeito-objeto é neutra; muito pelo
contrário, trata-se de reconhecer e tratar dessa relação como relação datada, uma vez que
ocorre em espaço e tempo em que o sujeito está implicado com o objeto de forma
constitutiva: ambos vivem e existem como parte da totalidade social. Essa apreensão, no
entanto, não exclui a necessidade de objetividade na construção do conhecimento teórico.
Em qualquer estudo realizado na perspectiva sócio-histórica, o pesquisador quer
transcender a apreensão imediata de singularidade do objeto em pauta, uma vez que busca a
apreensão de sua universalidade. Este objetivo pressupõe estabelecer relações dos fatos entre
si, criando e explicitando mediações necessárias para tal intuito, onde os detalhes precisam ser
integrados ao fundamental, em face da hierarquização de importância que assumem, tendo em
vista a intencionalidade do projeto. Nessa categorização, os diversos complexos que
compõem a totalidade não têm a mesma importância uns em relação aos outros. A dimensão
econômica tem prevalência sobre as demais, porque as determina na origem.
A direção da busca é a apreensão do objeto na totalidade social da qual é parte
integrante e expresso em suas características e movimentos. O mundo é uno, não uma “colcha
de retalhos”, e, se a realidade é una, vamos nos referenciar a ela como totalidade. Nesse
sentido, cada objeto que tomamos para estudo não é um em si mesmo, mas um conjunto de
relações entre coisas e objetos.

O objeto

Esta explicitação de pressupostos fundamentou nossa intenção de, através da pesquisa,


obter um conhecimento que revele feições e modos de ser dos processos seletivos de corte
9

socioeconômico, a partir do desvendamento de sua natureza e utilidade na sociedade capitalista.


O processo seletivo de corte social é parte integrante, é constitutivo da política social do Estado
capitalista, e adquire materialidade mediante sua execução pelas instâncias organizacionais. Ou
seja: tomamos a seleção socioeconômica como instrumento de controle social operado pela
política social que, mediante sua realização, obtém como produto, no mesmo processo, a
inclusão de alguns e a exclusão de outros, em relação ao acesso aos serviços e benefícios
sociais. O assistente social, como profissional, se constitui no agente que dá materialidade à
seletividade de acesso, operando-a na qualidade de trabalhador assalariado das organizações
sociais. Torna-se, ele mesmo, um instrumento da organização que o contrata.
Diante dos pressupostos apresentados e da formulação do objeto-alvo, temos de
considerar que a seleção socioeconômica não tem vida própria nem autodesenvolvimento.
Nessas condições, será preciso tomá-la, de um lado, como parte integrante da política social
nas organizações que a materializam na sociedade capitalista e, de outro, situá-la na profissão,
buscando compreender os diversos posicionamentos, lógicas e estratégias que permearam o
pensamento e a ação profissional do Serviço Social sobre ela, desde a emergência do Serviço
Social nos Estados Unidos, Europa Ocidental e Brasil.
Este procedimento permite transcender a imediaticidade, a singularidade desse objeto-
alvo, buscando a apreensão de sua universalidade, bem como destacando o conjunto de
processos e relações que lhe dão vida e que conseguirmos apreender até o momento.

A pesquisadora

Iniciei a presente pesquisa já dotada de alguma bagagem sobre o tema, resultante tanto
de minha prática profissional e docente, como do interesse constante de reflexão, há vários
anos, acerca da seleção socioeconômica. Tomo assim este estudo como mais qualificado e
como continuidade de uma trilha anterior.
As análises que apresento são permeadas das primeiras e antigas, e das novas,
apreensões. Sem as primeiras, certamente não teria chegado a este produto que ora apresento.
Devo afirmar que foi nesse trajeto, permeado de vivências solitárias e coletivas, assim
como de estudos, inquietações, desafios e reflexões de ordem teórico-prática, que forjei e
consolidei um pensamento acerca da seletividade de acesso aos serviços e benefícios sociais e
de seu profundo significado para a profissão.
A busca de querer saber nos coloca em um movimento no qual vamos percebendo que
cada objeto está em relação com tudo o mais que existe numa totalidade. Por vezes, ficamos
10

digerindo as questões, até produzir algumas sínteses que nos levem a encontrar um jeito de
abordar assuntos tão complexos, sem perder o foco.
As incessantes idas e vindas, as encruzilhadas da trajetória, que, ao final, foram
permitindo o descortino do real e possibilitando a concretização do estudo, vieram
acompanhadas da desestruturação do que já conhecia — o que, por sua vez, gerou desconforto
e insegurança. Tudo sempre acompanhado da pergunta: e agora, para onde ir?
A reflexão, o estudo e a angústia que permeiam as dúvidas e as decisões foram os
elementos impulsionadores da construção do conhecimento acerca do objeto em pauta.
Penso que o processo de conhecimento nasce da crise, do desconforto, da dúvida.
Neste sentido, no caminho, muitas certezas vão sendo destruídas, porque, na verdade, se
tratava de falsos entendimentos, deixando-nos sem o ilusório “chão firme”.
E, em meio a essa turbulência, nasce também o gosto pelo saber, a sensação inédita da
maravilha que é descobrir que podemos recriar o que está dado, desejar outro jeito de ser da
vida e do mundo. Sempre surge a questão: poderia ser diferente? Nasce, também, o poder de
desejar que todos os homens, um dia, possam, de fato, ser um ser social, entendendo-se e
sendo entendidos como humano-genéricos. E o desejo de nos juntar para podermos mais.
Desde que comecei a pensar sobre os processos seletivos, de corte socioeconômico,
tenho me defrontado com situações e explicações que desenvolvi sobre o processo seletivo, e
que, portanto, para mim, hoje, parecem óbvias. No entanto, quando tenho oportunidade de
apresentá-las em diversos locais para outros colegas e estudantes, percebo olhares brilhando e
o interesse despertado em querer discutir e entender melhor a seleção socioeconômica — que,
a princípio, é percebida como tema entediante e sem novidades.
Aquilo que hoje para mim são apreensões óbvias, não são tão óbvias para os outros. Ou
melhor, apreensões que já significaram verdadeiras descobertas para mim e que hoje parecem
óbvias, porque já me encontro em outro momento, para os que me escutam são inéditas.
Situações desse tipo me permitem perceber o tanto que já caminhei e me fazem refletir
sobre a dificuldade que existe em delimitar onde começa um momento e quando se inicia
outro num estudo, e como uma produção passa a fazer parte de nossa vida.
Estudar, refletir, viver, experienciar, arriscar, executar são ações profundamente
interligadas numa pesquisa, e quando me deparei com o momento de tratar da escolha dos
sujeitos da pesquisa e dos instrumentos de operação, não podia entender que se tratava do
momento para o cumprimento de mera formalidade.
Devo esclarecer que a minha intenção inicial se dirigia para a realização de um estudo
de caráter documental acerca da seleção socioeconômica no Serviço Social. Porém, diante da
11

ausência de bibliografia a esse respeito, fui aconselhada, no exame de qualificação, a desistir


desse caminho. Tomando essa indicação como fato, e após construir as bases teóricas desse
estudo, passei a buscar os apoios da pesquisa empírica a ser realizada junto a assistentes
sociais, a partir de um perfil definido, visando construir uma problematização acerca do tema
no Serviço Social no âmbito do exercício profissional, do ensino e da pesquisa. Minha
indagação básica era a seguinte: o que vêm pensando e fazendo os assistentes sociais, tendo
em vista os processos seletivos de acesso? Como vêm sendo formados os assistentes sociais
para realizar essa atividade profissional?
A pesquisa empírica é, consequentemente, um momento constitutivo de um processo
iniciado há algum tempo, tem profunda relação com os outros momentos desse mesmo
processo e será apresentada de forma detalhada no Capítulo 4.

A organização do estudo

O estudo realizado está apresentado em quatro capítulos.


Os três primeiros se dirigem à explicitação dos fundamentos sócio-históricos da
seleção socioeconômica na política social e no Serviço Social inseridos na sociedade de
classes. O quarto capítulo, que está referenciado no material obtido através das entrevistas
realizadas, equaciona a seleção socioeconômica no exercício profissional e na formação
profissional na atualidade, assim como aponta lacunas existentes na pesquisa sobre a
instrumentalidade profissional.
No Capítulo 1, ponho em evidência a análise do surgimento da seletividade e dos
fundamentos com que passou a integrar as propostas de proteção social historicamente
construídas, em particular a partir dos séculos XVI e XVII no Ocidente Europeu, chegando aos
dias atuais, sob a égide do capitalismo neoliberal. A apreensão do significado da seleção de
acesso aos serviços e benefícios sociais implicou a análise dos direitos sociais em face da
universalização e focalização das políticas sociais na atualidade, assim como do sentido das
contrapartidas ou condicionalidades, como parte integrante da seletividade.
No Capítulo 2, busco explicitar como e com quais fundamentos a seleção
socioeconômica passou a se constituir em atividade do assistente social na emergência e
institucionalização do Serviço Social nos Estados Unidos, na Europa Ocidental e no Brasil,
com destaque para o papel da Igreja Católica na expansão do Serviço Social no cenário
mundial, em face das conquistas da modernidade, como referências para entender sua
realização no presente.
12

No Capítulo 3, analiso a relação entre seleção socioeconômica, política social e


Serviço Social, explicitando a natureza e a utilidade dessa seleção no âmbito da política
social, assim como a utilidade e o significado da participação dos assistentes sociais nos
processos seletivos, no sentido de sua legitimação social na sociedade capitalista.
No Capítulo 4, apresento como se deu a definição dos instrumentos e a escolha dos
sujeitos da pesquisa empírica, as quais analiso, problematizando a seleção socioeconômica no
exercício e na formação profissional do assistente social, destacando várias dimensões que a
compõem de acordo com as entrevistas realizadas.
Por fim, apresento minhas considerações finais.
13

CAPÍTULO 1 — A SELETIVIDADE PRESENTE NAS PROPOSTAS DE PROTEÇÃO


SOCIAL CONSTRUÍDAS HISTORICAMENTE

Como o objeto deste estudo é apreender a seleção socioeconômica em seus


fundamentos, devemos nos reportar à assistência social como forma inicial de proteção social,
pois é nesta prática que tem origem o means test como condição e forma para verificar se o
indivíduo ou sua família são elegíveis 3 para o recebimento de ajuda. Todavia, a apreensão da
assistência social nas suas origens e significados é tema difícil e exigente, pois as referências
são dispersas e ambíguas. Pereira (2008b, p. 217) atesta essa constatação.

Falar da assistência social não é fácil, porque vários são os preconceitos e ideias
equivocadas que ainda cercam a matéria. Embora esse tipo de assistência seja um
fenômeno tão antigo quanto a humanidade e esteja presente em todos os contextos
socioculturais, poucas ainda são as contribuições teóricas que ajudam a melhor precisá-lo
do ponto de vista conceitual e político-estratégico. Isso significa que a assistência social
tem sido sistematicamente negligenciada, não só como objeto de interesse científico, mas
como componente integral dos esquemas de proteção social pública [...].

Inicialmente, podemos dizer que “assistência” designa o ato ou efeito de amparar,


proteger, socorrer pessoas e grupos que se encontram em situação de desamparo e
desprotegidas diante das necessidades com que todos nos defrontamos para viver e sobreviver
enquanto indivíduos humanos. Várias são as situações que podem colocar em risco a vida
humana, mas esta essencialmente fica em risco quando os meios, o que o indivíduo precisa
para viver, não estão diretamente colocados ao seu dispor. A desproteção poderá ser eventual
ou definitiva na vida de um indivíduo, de um grupo de pessoas ou de uma coletividade. 4
O homem, como ser da natureza, se fez ser social ao transformar a natureza a partir de
prévia ideação. A partir de seus atos primeiros como ser social, foi criando a história dos
homens e enriquecendo o repertório de respostas humanas para suprir seus carecimentos. A
troca entre os homens acompanha essa longa história, assim como a dependência que cada um
tem em relação aos demais para sobreviver individual e socialmente.

3
Na língua portuguesa, o termo “eleger” significa “preferir entre dois ou mais”, “escolher”. “Elegível”, portanto,
refere-se à possibilidade de ser eleito, escolhido (HOUAISS; VILLAR, 2009).
4
Refiro-me, por exemplo, aos problemas de saúde que podem afetar a vida de uma pessoa ou grupo de pessoas.
Os indivíduos podem ter doenças eventuais ou definitivas. Quando se trata de doenças crônicas, estas podem se
constituir como definitivas na vida de um indivíduo; nesse caso, diremos que ele não está doente, mas que é
doente. Há condições que afetam grupos de pessoas, como a insuficiência renal, as mutilações de guerras, a
contaminação pelo HIV, entre outros exemplos. Todos necessitam de proteção social em relação à saúde e de
meios de sobrevivência dignas.
14

No decorrer dos tempos e com a complexificação da sociedade através das inúmeras


determinações e mediações que vão se impondo, a solidariedade humana, que inicialmente
poderia ser entendida como simples questão de âmbito das relações interpessoais, vai se
mascarando com elementos de dominação e adquirindo outros significados.
A desigualdade social se estabelece quando fica escondida a dimensão humano-genérica
do homem e vão se sobrepondo as relações de dominação entre os homens, ao se tornarem
escravos de outros homens. Se uns se tornam desiguais perante os demais, significa que alguns
obrigam outros a produzir para si, cabendo àqueles decidir como estes vão viver para não
morrer. Mudou o modo de produzir a satisfação das necessidades, assim como as relações
sociais passam a ser pautadas pela dominação. Nesse contexto, se um escravo precisa de
assistência, porque se feriu ou adoeceu, esta será providenciada pelo seu “dono”, que lhe
prestará ajuda — não porque o escravo se feriu e sofre, mas porque o senhor precisará dele forte
e sadio para continuar o trabalho, pois é o escravo, com seu trabalho, quem produz a riqueza.
Outro exemplo: uma pessoa religiosa pode ajudar a um necessitado mais por ação de barganha
porque espera ganhar o reino de Deus do que por ato de generosidade e solidariedade.
É importante lembrar também que, na espécie humana, há uma biodiversidade natural
que se expressa no fato de que uns nascem brancos, outros negros, uns altos, outros baixos,
uns de olhos azuis, outros verdes, uns têm cabelos crespos, outros lisos. Mas é possível que
uns nasçam cegos, outros sem braços, outros com dificuldades de respirar, e assim por diante.
Em algum momento da história, essas diferenças passaram a ser desigualdades, quando um
traço natural, biológico ou mesmo social (como pertencer a determinada etnia) que nos
diferencia foi usado para humilhar seu portador. Diferença não é sinônimo de desigualdade.
Ser negro faz parte da nossa biodiversidade, enquanto gênero homo sapiens; mas essa
“diferença” passa a ser desigualdade quando é usada para dominar e humilhar o outro.
Quando uma pessoa nasce cega ou sem um braço, enfrentará mais dificuldades, precisará de
mais proteção e cuidados em relação aos que não apresentam essas limitações.
Nessa mesma história dos homens, na época em que o jeito de viver humano era como
nômade, se alguém se feria profundamente, tinha por vezes que ser abandonado no caminho,
pois ainda não havia meios para cuidar dele socialmente. Com o tempo, cada descoberta foi
resultando e abrindo caminho para outras, e novos conceitos e formas foram se instituindo;
fomos descobrindo que era possível, que era mais fácil cuidar de vários doentes juntos e,
assim, surgiu o embrião dos hospitais e de muitos outros cuidados relativos a doenças e à
saúde, até chegar às formas atuais.
15

Os cuidados com a saúde também vêm sendo construídos ao longo da história,


apresentando particularidades no tempo e espaço onde são praticados. Da mesma forma, a
sociabilidade humana e a ajuda entre os homens são construções históricas.
Na história da humanidade foram e vem sendo criadas várias maneiras de suprir as
necessidades e proporcionar a proteção de que cada um de nós precisa, enquanto humanos que
somos, principalmente quando perdemos a condição de cuidar sozinhos de nossas vidas. É
quando algum recurso vital, necessário, não está à nossa disposição para sobrevivermos no
nível biológico ou como seres sociais que dependemos da ajuda dos outros, do grupo, da
sociedade da qual somos parte integrante.
Ao longo da história dos homens, foram sendo construídas várias respostas sociais
para lidar com as necessidades de proteção social, assim como com as suas faltas e carências,
com as quais cada indivíduo social vai se deparando nas diferentes conjunturas de sua vida
individual e social, visando à reprodução da vida individual e coletiva, pois sempre há
interdependência entre os homens.
Quando nomeamos a assistência social, nos referimos a uma atividade que, na história
da humanidade, teve e adquiriu diversos significados, dependendo do jeito de ser dos homens
nos diversos sistemas sociais que foram se instituindo ao longo do tempo. Mediados pelos
homens, foi se definindo o significado da ajuda naquele determinado contexto — colocando
regras, definindo normas sobre como os membros daquela sociedade deveriam se portar uns
diante dos outros que precisavam de ajuda. Bem assim, as desigualdades sociais e os processos
de dominação fizeram com que uns homens se colocassem como “melhores” diante de outros.
É como a assistência social, como forma de proteção social, deve ser entendida:
construção social e, em decorrência, fruto das ações humanas no longo caminho percorrido
até suas formas atuais, marcadas por processos sociais que foram lhe atribuindo significados e
jeitos de ser.

Ações governamentais com objetivos voltados para a proteção social começam a ser
produzidas contemporaneamente à consolidação dos modernos Estados nacionais,
no Ocidente Europeu, lá pelos séculos XVI e XVII. É então que se institucionaliza o
que Weber considera o núcleo definidor do Estado moderno: o monopólio da
violência legítima, e que se fazem presentes as condições que tornam possíveis e
necessárias ações governamentais naquele sentido. Num contexto de transição para o
capitalismo, de expansão do comércio e de valorização das cidades, a pobreza se
torna visível, incômoda, e passa a ser conhecida como um risco social. A primeira
fase da evolução da política social consistiu nas chamadas Leis dos Pobres, bastante
disseminadas pelos países europeus, embora com diferenças marcantes entre eles
(VIANNA, 2002, p. 2-3).
16

No modo de proteção feudal que marca a Idade Média, que constituía uma sociedade
pouco mercantilizada,

[...] o servo era vinculado ao senhor por relações de submissão e proteção (sobretudo
militar), encontrando satisfação de certas “necessidades” dentro das ações comunais
e principalmente religiosas. A religião servia para legitimar a esmola, o asilo e
certos cuidados de saúde (coação extraeconômica). Nesse modo de produção o servo
era proprietário dos meios de produção (FALEIROS, 1980, p. 9-10).

Já no modo de produção capitalista há um modo essencial das relações sociais,


presente em todos os seus momentos (mercantilista, liberal, monopolista ou oligopolista,
neoliberal). Do ponto de vista das teorias econômicas, é no mercado que o indivíduo deverá
suprir suas necessidades. No início dessa forma de produção, quando a sociedade se organiza
em classes sociais,

[...] produz-se uma ruptura entre a posse dos meios de produção e o trabalhador. Os
meios de produção passam a ser de propriedade do capitalista, pela expropriação, pela
reprodução simples e ampliada, pela acumulação. O homem, como disse Marx, se vê
livre, sem estar ligado ao senhor, pronto para oferecer a sua força de trabalho como
indivíduo, em troca de salário. [...] O salário é o meio de prover a sua subsistência.
Mas esse salário é obtido na produção de mais-valia e sob uma submissão total às
novas relações sociais que as fábricas suscitam (FALEIROS, 1980, p. 10).

Nessa sociedade de classes,

[...] aos que não foram incorporados no mercado de trabalho, temporária ou


permanentemente, se fez uma legislação repressiva. Assim, os considerados
vagabundos e mendigos eram açoitados, ou, em caso de reincidência, se lhes
marcava com ferro e os condenava à morte (coação direta e indireta ao trabalho).
Foram proibidas as esmolas aos mendigos não identificados como tais. Por outro
lado, os que não podiam se incorporar ao trabalho, eram socorridos pelas paróquias,
por intermédio das caixas de socorro, mas de acordo com os interesses das classes
dominantes, apresentando-se estas caixas como remédios contra o vício, a
vagabundagem e a imoralidade. O objetivo real da ajuda era forçar ao trabalho. Os
capazes de trabalhar eram enviados ao trabalho por salários muito baixos, e aos
incapazes se lhes dava uma ajuda arbitrária, segundo critérios da classe. É essa a
essência da Lei dos Pobres na Inglaterra (FALEIROS , 1980, p. 10).

A história da Lei dos Pobres, na Inglaterra e no País de Gales, pode ser dividida em
dois momentos; trata-se de dois estatutos distintos. A considerada lei antiga, datada de 1601,
foi instituída pelo Parlamento durante o reinado de Elizabeth I. A nova Lei dos Pobres foi
aprovada, também pelo Parlamento, em 1834. A Lei de 1601 formaliza as práticas anteriores e
uniformiza nacionalmente, na Inglaterra e no País de Gales, a assistência social a um
17

segmento preciso de população — os pobres. A forma de atendimento tem por base de


atendimento uma área em torno da igreja paroquial (havia mais de 1.500 paróquias).
A justificação para a perseguição aos mendigos considerados vadios e vagabundos
encontra-se na ideologia dominante, segundo a qual o trabalho é sinônimo de vida normal e
forma de mobilidade social, fazendo com que “se estigmatizem aqueles que venham a receber
dinheiro ou ajuda sem correspondente esforço para ganhá-los” ( FALEIROS, 1989, p. 110).
Decorre daí o entendimento de que se deve amparar os bons mendigos, “seletivamente, após a
triagem de sua capacidade e aptidão para o emprego, fazendo-se a seleção socioeconômica
entre capazes e incapazes de trabalhar, ou melhor, entre os aptos e inaptos para o trabalho”
(FALEIROS, 1989, p. 110; grifos meus).
Sustentada na caracterização de inspiração liberal- malthusiana entre fortes e fracos, a
assistência social não se destinava ao conjunto daqueles que não conseguem sobreviver por
seus próprios meios, mas se dirige unicamente àqueles que estão fisicamente impossibilitados,
como as crianças, os velhos, os acidentados e os doentes.
Nesse sistema de atendimento, havia um agente denominado “supervisor dos pobres”,
o responsável capaz, com autoridade para conhecê-los e lhes fiscalizar a vida, e assim
diferenciar dentre eles os que mereciam dos que não mereciam a ajuda. A norma rezava que
os considerados mendigos aptos para o trabalho tinham que aceitar o trabalho que lhes era
oferecido. Se viessem a se rejeitá-lo, eram colocados em casas de correção, como punição
pela recusa e para intimidar outros que pretendessem adotar o mesmo procedimento.
A Lei dos Pobres antiga serviu de referência para lidar com os pobres, na Inglaterra e
no País de Gales, por mais de 200 anos, porém sofreu grandes alterações em 1834.

O aumento dos gastos com a assistência aos pobres nos séculos XVII e XIX,
combinado com os ataques contra a Lei dos Pobres por Malthus 5 e outros
economistas políticos, assim como a revolta dos trabalhadores agrícolas em 1830-31
[...] levou o governo em 1832 a designar uma comissão real para investigar a Lei dos
Pobres (BOYER, 2002; minha tradução).

Sobre essa comissão, Faleiros (1980, p. 11) comenta que, “em sua visão moralista,
disse que eles (referindo-se aos pobres) viviam na ‘imprevidência, na imoralidade, em
comparação com os que trabalhavam, os quais sabiam conduzir as suas coisas’”.

5
Para Malthus, “a pobreza é um desequilíbrio entre a produção e a população. O auxílio para a distribuição do
excesso de alimentos entre a população faria aumentar o número de pobres, como faria aumentar o custo dos
alimentos, além de reduzir o rendimento dos trabalhadores independentes. Além disso, a distribuição só
favoreceria a preguiça e o vício” (FALEIROS, 1980, p. 11).
18

A propósito das condições de acesso na nova Lei dos Pobres de 1834, Martinelli
(1997, p. 58) discorre:

Com a reformulação da Lei, que nada perdeu de seu caráter rigoroso e excludente,
foram criadas as Casas de Trabalho e instituídas as Caixas dos Pobres para
concessão de auxílio semanal ou mensal. Tanto o acesso às Casas de Trabalho como
a concessão de auxílio dependiam de rigoroso inquérito da vida pessoal e familiar
dos solicitantes. Assim, a temida figura tudoriana do “inspetor da Lei dos Pobres”
voltava rediviva ao cenário do século XIX, cabendo-lhe a responsabilidade pela
realização do inquérito e pela fiscalização das condições de vida daqueles que
passavam a ser atendidos pelo sistema de assistência pública. O atendimento
implicava assumir-se como dependente do poder público e, portanto, preso a uma
vida controlada por normas e regulamentos (grifos meus).

Sobre a normatização do atendimento com esse formato, Faleiros (1980, p. 11) esclarece:

Essas medidas administrativas concretas de controle e repressão da força de trabalho


não pareciam contrariar os princípios do mercado, porque eram vistas como combate
ao vício, à preguiça e à imprevidência das classes pobres. O indivíduo era obrigado
a ingressar no mercado, onde seria “livre” para realizar contratos com salários
fixados pelos patrões (grifo do autor).

Releve-se que, no citado relatório elaborado pela Comissão proponente da lei de 1834,
constam dois princípios básicos de operação: o de “menor elegibilidade” e o “teste da Casa de
Trabalho”. Entendia-se por

• “menor elegibilidade”: que o mendigo deveria entrar para uma Casa de Trabalho
com piores condições do que as do mais pobre trabalhador livre que não estivesse
na Casa de Trabalho.
• “teste da Casa de Trabalho” que o auxílio só estaria disponível na Casa de
Trabalho. As Casas de Trabalho reformadas deveriam ser nada convidativas, de
tal modo que qualquer pessoa capaz de sobreviver fora delas as evitasse. 6

Pelo critério da “menor elegibilidade”, todo benefício assistencial deveria ser sempre
menor do que o pior salário existente, para não se ferir a ética capitalista do trabalho.

A importância do critério de menor elegibilidade (ou da menor escolha) para o


ideário liberal clássico decorreu do fato de que, com ele, seria possível conciliar a
ajuda aos desempregados (fato, antes, abominado) com o desenvolvimento do livre
mercado e com o espírito de empreendimento, previdência e independência do
trabalhador. [...] tal critério refletia e preservava, acima de tudo, os valores
comerciais da nova civilização do mercado (PEREIRA, 2000, p. 108).

6
Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/English_Poor_Laws>. Acesso em: 1º jul. 2012. Tradução nossa.
19

Em relação à execução da Lei dos Pobres de 1834, é importante frisar que foi
executada permeada de muita crueldade, tendo em vista que havia decisiva intenção de
desestimular a procura de ajuda pelos necessitados e estimular a busca de trabalho a qualquer
preço. Engels (2010) descreve, com riqueza de detalhes (escrevendo em 1844), como viviam
e eram tratados os trabalhadores nessa época. Com sua narrativa, podemos vivenciar e mesmo
como que entrar no dia a dia do trabalhador inglês e dos imigrantes irlandeses de então e,
portanto, conviver com a dramaticidade da miséria vigente entre os trabalhadores daquela
sociedade — no país que se configurava como a maior potência econômica desse tempo —,
assim como acompanhar, por meio dos exemplos apresentados pelo autor, o tratamento
desumano sofrido pelos desempregados que necessitavam de ajuda para sobreviver.

Todos os subsídios, em dinheiro ou in natura foram suprimidos; a única assistência


resumiu-se ao acolhimento nas casas de trabalho (workhouses), imediatamente
expandidas por todos os lados. A organização dessas casas — que o povo designa
como as bastilhas da lei sobre os pobres (poor-law bastilles) — é tal que dissuade
qualquer um que pretenda sobreviver apelando a essa forma de assistência. Com o
objetivo de que o recurso à caixa dos pobres só seja feito em último caso e de que os
esforços de cada indivíduo sejam levados ao extremo antes de procurá-la, a casa de
trabalho foi pensada para constituir o espaço mais repugnante que o talento refinado
de um malthusiano pôde conceber. A alimentação é pior que a de um operário mal
pago, enquanto o trabalho é mais penoso — caso contrário os desempregados
prefeririam a estada na casa à miserável existência fora dela. [...] Em geral, a comida
das prisões é menos ruim, e é por isso que, com frequência, os internados das casas
de trabalho intencionalmente cometem um delito para serem presos. De fato, as
casas de trabalho são prisões: Quem não realiza a sua cota de trabalho não recebe
alimentação; quem quiser sair depende da permissão do diretor [...] o tabaco está
proibido, assim como a recepção de doações de parentes [...] os trabalhos realizados
nas casas são especialmente inúteis: os homens quebram pedras [...] as famílias são
separadas: o pai vai para uma ala, a mulher para outra e os filhos para uma terceira,
de modo que só possam se encontrar em períodos determinados e raramente — e,
mesmo assim, se se comportarem bem, segundo o juízo dos funcionários [...] os
internados só podem receber visitas no parlatório, sob a vigilância dos funcionários,
e, de modo geral, não podem se corresponder com o exterior sem sua autorização ou
censura (ENGELS, 2010, p. 318-319).

A título de conclusão, Engels afirma:

Contrariando tudo isso, porém, a letra da lei determina uma alimentação sadia e um
tratamento humano. [...] O tratamento que a nova lei prescreve, na sua letra,
contrasta abertamente com o espírito que a informa; se, em substância, a lei declara
que os pobres são delinquentes, que as casas de trabalho são cárceres punitivos, que
seus internados são foras da lei, objetos repugnantes postos fora da humanidade, não
se pode aplicá-la de outra maneira. Na prática, portanto, o tratamento reservado aos
pobres nas casas de trabalho obedece, não à letra, mas ao espírito da lei (ENGELS,
2010, p. 318-319).
20

Na França, o atendimento aos pobres é realizado nos mesmos moldes.

Os hospitais gerais acolhiam todo o tipo de incapazes para o trabalho. Ao mesmo


tempo, todo o esforço era feito para punir os mendigos, obrigando-os a trabalharem
em serviços “públicos”, criados deliberadamente em terras dos senhores. Para coroar
esse esquema repressivo, os pobres eram obrigados a residir no lugar de ajuda para
que a mão de obra não fugisse dos senhores locais (FALEIROS, 1980, p. 10).

Tendo em vista que a pobreza apresenta-se como risco social preocupante na


sociedade de mercado, a ação do Estado visa então proteger a sociedade da ameaça
representada pela pobreza, por estar associada à indigência, à doença, ao furto e à degradação
de costumes — e também para proteger os pobres.
Vianna (2002, p. 3), a respeito das “leis dos pobres”, 7 comenta:

[Eram] ordenações de Estado que faziam compulsória a “caridade”, implicando a


criação de um fundo público — o imposto dos pobres, em geral recolhido pelas
municipalidades — e que tinham por finalidade tirar os pobres das ruas. Vigoraram
em grande parte dos países europeus entre os séculos XVII e XIX, e, a despeito de
terem apresentado variações expressivas no decorrer desse período, se
caracterizaram pela natureza caritativa, pela forma de assistência pública e pelo alvo
a que se destinavam: a pobreza.

Esses fatos e explicações aqui apresentados ilustram e permitem entender as


motivações que alimentaram as sangrentas lutas empreendidas pelos trabalhadores nos
levantes anteriores e posteriores à Revolução Francesa (1789), nos vários países europeus.
Também permitem entender a esperança que o lema “Igualdade, Liberdade e Fraternidade”
portava para grande parte da humanidade que vivia do trabalho e em condições tão
subumanas e cruéis.
A revolução burguesa representou, sem dúvida, um avanço na história da humanidade.
A burguesia, em seu movimento revolucionário, foi a porta-voz do progresso e da emancipação
do homem e representou os interesses da totalidade do povo naquele dado momento.

O pensamento da burguesia revolucionária aponta para a mudança das relações de


dominação imperantes no feudalismo, dando um protagonismo inusitado à
participação do povo, banindo todo o obscurantismo e dogmatismo, para pensar o
homem em suas relações tanto com a natureza como com outros homens, através do
prisma da razão. Como nova classe representante do capitalismo, esteve presente
tanto nos economistas clássicos ingleses como nos pensadores do iluminismo
francês. Sua luta contra o obscurantismo feudal das monarquias se evidenciou nas

7
Aqui, a autora não se refere apenas à experiência inglesa. Ela explica, em nota de rodapé, que as mais
conhecidas são as Poor Laws inglesas (referindo à de 1601 e à de 1834).
21

revoluções burguesas, adquirindo seu ponto culminante na Revolução Francesa de


1789 (PARRA, 1999, p. 55; tradução nossa).

O capitalismo representou evidentemente uma revolução no plano econômico, político


e cultural, ao destruir as relações feudais de produção. No capitalismo, o indivíduo deve ser
livre para poder vender a sua força de trabalho, o que significa um corte profundo com o
direito obtido pelo nascimento, típico da sociedade feudal.
Agora, o indivíduo pode vender sua força de trabalho em troca de um salário. Como os
meios de produção passam a ser de propriedade privada, dá-se, enfim, um passo fundamental
na direção da emancipação humana — mas é a emancipação política do indivíduo, que passa
a ser sujeito de direitos do ponto de vista da lei, do papel. Ainda que isso possa parecer pouco,
é muito, pois, “diante da lei, todos os homens passaram a partir daí a serem considerados
iguais, pela primeira vez na história da humanidade” (COVRE, 2002, p. 17).
O novo jeito de produzir rompe com o trabalho artesanal e gera um novo tipo de
cooperação, a partir da fábrica, e um novo jeito de produzir e competir, no mercado.
A partir de 1848, no entanto, a burguesia deixa de ser classe revolucionária que se
propunha a defender os interesses de todos. Passa a defender seus próprios interesses, aliando-se
aos segmentos sociais que antes combatia, e a reprimir duramente a luta dos trabalhadores, os
quais, por sua vez passam a se organizar enquanto classe para defender os seus interesses. A
partir daí, teremos que falar de questão social como expressão da luta de classes, assim como
das lutas empreendidas pela classe trabalhadora em seus diversos segmentos para conquistar e
ampliar seus direitos relacionados ao trabalho e à melhoria das condições de vida.
A partir desse momento, as conquistas precisarão ser entendidas no jogo da correlação
de forças presentes e relativas ao capital e ao trabalho. Quando a correlação de forças foi
favorável aos trabalhadores e chegou ao seu ponto culminante com a Revolução Russa de
1917, ao colocar em xeque a ordem do capital, quando há a ascensão dos partidos socialistas
na Alemanha, na Itália, na Espanha, na França, começa a haver uma ampliação de conquistas
diante das reivindicações dos trabalhadores por melhores condições de trabalho, saúde,
habitação e educação. “Agora organizavam-se como força política e apoiavam-se em partidos
para fazer a revolução e implantar uma nova sociedade — o que fazia parte das formas de
exercer e ampliar a cidadania” (COVRE, 2002, p. 43).
A ampliação e a efetivação dos direitos não ocorreram espontaneamente; são
decorrentes da ação dos segmentos que compõem a classe trabalhadora. É nesse contexto que,
logo a seguir, em vários países, começa a haver ampliação dos direitos sociais, quando o
22

acesso aos bens produzidos e a proteção do trabalho são ampliados através das medidas de
política social. Esta política coloca-se como forma de enfrentamento da questão social.
Em resumo, no que tange à proteção social pública, a primeira experiência registrada no
mundo ocidental8 dá-se sob a forma de assistência social e através da Lei dos Pobres, dirigida a
um segmento muito preciso de população, os pobres, mediante a comprovação da necessidade
com o means test. A prova de meios, ou a seleção socioeconômica, tem aí sua ancestralidade,
pois adquire então a marca como que “genética” que será transmitida aos seus descendentes.
Embora na Lei dos Pobres o tratamento dado à população designada como pobre tenha
sido repressivo e truculento, essa experiência foi referência para outros países, conforme já
pudemos expor.

Apenas em 1918, na Inglaterra, é que se descriminalizou a pobreza, permitindo-se


que fossem eleitos ao Parlamento cidadãos que tivessem recebido ajuda ou esmolas
[...]. Logo após, a assistência pública passou a ser articulada a nível nacional pelo
Ministério da Saúde, com políticas urbanas, mas a mentalidade discricionária em
relação aos assistidos [...] ainda persistia. A crise de 1930 acentua a questão de
falta de trabalho, e se cria um fundo para desempregados, sem que fossem obrigados
a submeter-se à comprovação de desemprego ou de pobreza (means test) e que
recebiam suas prestações após esgotarem-se as previstas pelo seguro desemprego.
Em 1939 essa assistência se estende às vítimas de guerra e em 1941 só a renda
pessoal é levada em conta para atribuição de ajuda e não mais a renda familiar
(SCHWEINITZ, 1975, apud FALEIROS, 1989, p. 111-112; grifos meus).

Embora essa forma de proteção social só tenha sido erradicada na Grã-Bretanha na


década de 1940, nunca desapareceu do mundo; tem sido perene a utilização desse modelo,
que convive, com as outras formas de proteção hoje existentes. Ou melhor, em 1948, a Lei
dos Pobres e as casas de trabalho (workhouses) deixam de existir quando é criado o Conselho
de Assistência Nacional, “para prover pagamentos para pessoas com idade acima de 16 anos
que possuíssem recursos abaixo do nível considerado necessário para suprir suas
necessidades” (BAUGH, 1977, apud PEREIRA, 2000, p. 112; grifos meus). Mas outros critérios
de acesso aos serviços sociais são estabelecidos e a seletividade não é abolida, mas atualizada.
A marca dessa tradição é a de que o acesso ao atendimento se dá mediante a prova de
recurso por parte do demandante do serviço social e não é, portanto, considerado direito de
cidadania. A pobreza, nesta fase, é vista como risco social eminente; assim, o Estado, através
de sua ação, visa proteger a sociedade da ameaça que a pobreza representa. Trata-se da

8
“Não se pode indicar com precisão um período específico de surgimento das primeiras experiências reconhecíveis de
políticas sociais [...] Sua origem é comumente relacionada aos movimentos de massa socialdemocratas e ao
estabelecimento dos Estados-nação na Europa ocidental do final do século XIX [...] mas sua generalização situa-se na
passagem do capitalismo concorrencial para o monopolista, em especial na sua fase tardia, após a Segunda Guerra
Mundial (pós-45)” (PIERSON, 1991, apud BEHRING; BOSCHETTI, 2007, p. 47).
23

assistência social de base meritocrática e se dirige ao atendimento de indivíduos ao nível da


sobrevivência, tendo como mínimo o patamar da simples reprodução biológica. Importante
considerar que as Leis dos Pobres

funcionaram, historicamente, em tempos de monarquia absoluta ou governos


oligárquicos. Já nos meados do século XIX, quando a produção industrial se
expandia a largos passos, exigindo crescentemente mão de obra disposta ao
assalariamento, as elites dominantes, afinadas com os preceitos liberais, passaram a
tecer severas críticas a esta forma de proteção social (VIANNA, 2002, p. 3).

Rupturas com tal concepção de pobreza — que reduz as causas dessa condição a
fatores de ordem moral, como as falhas de caráter dos indivíduos — começam a ser gestadas
no final do século XIX, no cenário de emergência das lutas operárias pelo reconhecimento de
seus direitos. “A partir desse momento, a perspectiva de responsabilidade individual em arcar
com os próprios custos da reprodução da própria vida cede lugar à noção de que todos devem
participar na provisão de bem-estar a todos os cidadãos” (MONNERAT et al., 2007, p. 1.454).
Vianna (2002, p. 3) observa:

9
Em fins do século XIX, uma segunda fase da política social se inaugura. Seguros
sociais compulsórios, para fazer face a riscos sociais associados ao trabalho
assalariado, despontam como o modelo dominante de proteção social. No novo
cenário, de capitalismo industrial consolidado, aparecem novos atores – sindicatos,
partidos políticos — e arranjos institucionais capazes de incluir, na agenda pública,
demandas de setores emergentes no mundo do trabalho (grifos meus).

Inaugurava-se, assim, outra tradição da política social denominada proteção social de


base contributiva, que se constitui em um seguro social compulsório. A primeira iniciativa é
consolidada na Alemanha, em 1883, durante o governo de Otto Bismarck, em resposta às
greves e pressões dos trabalhadores.

O chamado modelo bismarckiano é considerado como um sistema de seguros


sociais, porque suas características assemelham-se às de seguros sociais, porque suas
características assemelham-se às de seguros privados: no que se refere aos direitos,
os benefícios cobrem principalmente (e às vezes exclusivamente) os trabalhadores, o
acesso é condicionado a uma contribuição direta anterior e o montante das
prestações é proporcional à contribuição efetuada; quanto ao financiamento, os
recursos são provenientes, fundamentalmente, da contribuição direta de empregados

9
A autora, neste texto, trata da “evolução da política social na Europa Ocidental”, em suas diferentes fases.
Considera as Leis dos Pobres como a primeira fase da política social, e a dos seguros sociais compulsórios como
segunda fase da política social. A maioria dos autores, no entanto, considera que a política social é um produto
do capitalismo monopolista, tendo o seu marco de nascimento na Alemanha de Bismark. Tendo em vista meu
objeto de estudo, penso que o importante é frisar os legados dessas tradições. Portanto, não irei aqui entrar no
mérito dessa questão.
24

e empregadores, baseada na folha de salários; em relação à gestão, teoricamente (e


originalmente), cada benefício é organizado em Caixas, que são geridas pelo Estado,
com a participação dos contribuintes, ou seja, empregadores e empregados
(BOSCHETTI, 2003, apud BEHRING, 2009, p. 324-325; grifos meus).

Para Vianna (2002, p. 4), a ameaça à sociedade agora não está mais na pobreza, mas
na recusa dos trabalhadores ao assalariamento.

Recusa que se expressa passivamente no absenteísmo (em razão da doença, de


acidente, de maternidade, ou sem razão nenhuma) e ativamente de forma anárquica
como nos ataques e quebradeiras promovidos por trabalhadores ingleses em várias
ocasiões, ou de forma organizada pelos sindicatos operários, crescentemente
contestadores do próprio sistema capitalista. Para os trabalhadores, gradativamente se
definem os riscos a que estão submetidos pela estrutura produtiva industrial: o acidente
de trabalho, a cessação da capacidade laborativa, a doença, impedem temporária ou
permanentemente o autossustento via mercado, única alternativa disponível.

A criação da política social não foi um jogo parlamentar na Alemanha. Bismarck a


utiliza como forma de enfrentamento do movimento operário e de controle social, ou seja,
como forma de enfrentamento da questão social.

[Bismarck] buscava conter o avanço da social-democracia e, assim trocou benefícios


(a cobertura de riscos, para os assalariados, decorrentes de doenças, acidentes de
trabalho e incapacidade laborativa devido à idade) pelo cerceamento da atividade
sindical. [...] reprimindo reivindicações mais vigorosas, por um lado, e, por outro,
oferecendo concessões em termos de política social, infringiu uma derrota ao
movimento sindical e consolidou o recém-unificado Reich (VIANNA, 2002, p. 4).

O modelo utilizado por Otto von Bismarck difundiu-se rapidamente pela Europa,
ampliando-se com o direito ao voto, a legalização das centrais sindicais e a chegada dos
partidos trabalhistas e social-democratas ao Parlamento, e os seguros passaram a cobrir
contingentes cada vez mais significativos de trabalhadores.

A forma de seguro, implicando um contrato entre as partes (sendo o Estado, na


maioria dos casos, uma destas partes), retirava da política social seu caráter
meramente assistencialista. 10 Por sua natureza meritocrática- faz jus a um certo
benefício aquele que por sua inserção na estrutura ocupacional efetuou
preteritamente a contribuição correspondente — o seguro social destituía a política
social de estigma. Deslocando seu alvo principal, da pobreza para o trabalho
assalariado, a política social ganha papel proativo no sistema: assegura direitos
sociais aos que dele participam, hierarquiza o universo dos merecedores de tais
direitos segundo as suas (dele) conveniências, e provê mecanismos de controle sobre
os que dele se afastam (VIANNA, 2002, p. 5; grifos meus).

10
Vianna (2002, p. 5) esclarece, em nota de rodapé: “O que não quer dizer que políticas assistencialistas tenham
desaparecido. A Lei dos Pobres, na Inglaterra, por exemplo, só foi abolida nos anos 40.”
25

Outro momento significativo (ou outra tradição) da política social é forjado no


Ocidente desenvolvido, quando, nos desdobramentos da crise dos anos 1920 e das
transformações ocorridas no capitalismo, que agora é monopolista (não há alteração da
essência do capitalismo, mas, sim, sua complexificação, pois teve que se atualizar, ao
incorporar novas demandas).
É no contexto da constituição da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e
das duas guerras mundiais que a ideia de seguro é substituída pela de seguridade social, ao
surgir a proposta de políticas sociais universalistas, com alvo na cidadania. “Sistemas
políticos, estatais ou estatalmente regulados, se tornam os produtores de políticas destinadas a
garantir amplos direitos sociais a todos os cidadãos, configurando o que se convencionou
chamar Estados de bem-estar social” ( VIANNA, 2002, p. 5).
Em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, é formulado na Inglaterra o Plano
Beveridge, que, tecendo críticas ao modelo bismarckiano, propõe a criação do Welfare State,
ou Estado Providência, ou Estado Social. Essa proposta surge como resposta aos desafios
vividos pela Europa como fruto da grande depressão econômica de 1929; foi concebida como
o caminho do meio entre o comunismo e o capitalismo.

O modelo beveridgiano abarca quatro áreas programáticas: seguro social; benefícios


suplementares; subvenção á família; e isenções fiscais. Para cada uma dessas áreas a
base de qualificação para o benefício social era distinta. O seguro social era baseado
em contribuições previamente pagas, enquanto os benefícios suplementares eram não
contributivos e, portanto, sujeitos a testes de meios (comprovação de pobreza). As
subvenções familiares, por sua vez, eram pagas sem contrapartida e sem testes de
meio a qualquer assalariado que tivesse mais que uma criança como dependente, num
valor que variava de acordo com a renda do beneficiário. Assim, assalariados com
renda tão baixa que não lhes permitisse pagar impostos recebiam subvenções maiores
do que aqueles com renda mais elevada. Finalmente, as isenções fiscais recaíam sobre
aqueles grupos de alta renda que ficavam desobrigados de pagar taxas suplementares
de impostos (KINCAID, 1975, apud PEREIRA, 2000, p. 111; grifos meus).

Faleiros (1989, p. 112) esclarece que, para Beveridge, a seguridade social tem por base
o atendimento de um mínimo de necessidades básicas a serem garantidas pelo Estado, em
caso de perda dos rendimentos.
A proposta de Beveridge, transformada em lei pelo Parlamento inglês em 1946,

[...] estava fundamentada em dois grandes princípios, 11 identificados com a nova


concepção de proteção social. O princípio da unidade tinha por metas a unificação

11
Esses princípios influenciaram e deram origem à reformulação da seguridade social em outros países, como a
França e a Alemanha, em 1949.
26

das múltiplas instâncias da gestão dos seguros sociais existentes e a homogeneização


das prestações básicas. Universalidade, outro grande princípio, dizia respeito à
cobertura — todos os indivíduos — e aos escopos da proteção (todas as
necessidades essenciais) (VIANNA, 2002, p. 5; grifos da autora).

Beveridge, pautado em estudos e diagnósticos, propôs uma política social que


empenhava o Estado com as seguintes propostas:

• Lei de Subvenção à Família (Family Allowances Act), criada em 1945, para


garantir pagamentos semanais para cada criança;
• Lei de Seguro Nacional (National Insurance Act) e de acidentes industriais, criada
em 1946, para garantir a provisão compulsória de seguro contra a perda de ganhos
e, entre outras proteções, auxílios-desemprego, doença e invalidez e pensões aos
idosos;
• Serviço Nacional de Saúde, que introduziu, em 1946, um serviço de saúde
gratuito a todos;
• Assistência Nacional que, em 1948, aboliu a Lei dos Pobres e as workhouses,
criando um Conselho de Assistência Nacional para prover pagamentos para
pessoas com a idade acima de 16 anos que possuíssem recursos abaixo do nível
considerado necessário para suprir as suas necessidades (BAUGH, 1977, apud
PEREIRA, 2000, p. 111-112).

Esse modelo expande-se no mundo ocidental, configurando o Welfare State, e


instituindo outra tradição na política social, digamos assim, conhecida por proteção social de
base não contributiva, fundada nos direitos de cidadania e tendo Thomas Marshall como a
grande referência.
É amplamente conhecida a caracterização tripartite dos direitos de cidadania proposta
por Marshall, a saber: os direitos civis (direitos individuais básicos), os direitos políticos
(participação no poder político) e os direitos sociais (bem-estar econômico e segurança).

O centro da noção de cidadania em Marshall é atribuir a essa categoria um novo


significado — de acesso dos membros da comunidade a direitos sociais básicos que
permitam integrar os setores mais pobres à sociedade, dar-lhes um sentido de
inclusão, à medida que no próprio status de cidadão estejam incorporados
determinados direitos sociais e isso possa diminuir a desigualdade social
(BARCELLONA, 1996, apud WELMOWICKI, 2000, p. 76; grifos do autor).

Marshall pensa que “não haveria uma contradição entre uma política de
universalização progressiva de direitos sociais e a lógica do sistema capitalista. [...] As
conquistas não decorreriam de uma conversão das classes dominantes, mas uma adaptação
aos tempos atípicos do pós-guerra” (WELMOWICKI, 2000, p. 76).
27

É no contexto em que os governos passam a criar políticas que visam ao pleno


emprego e tendo por referência a proposta de Keynes 12 que são retomadas as discussões em
relação aos mínimos sociais. 13 A esse respeito, Pereira (2000, p. 112) assim se manifesta:

[...] os mínimos sociais passaram a ter uma conotação mais alargada, incluindo além
de políticas de manutenção de renda — geralmente sob a forma de uma rede de
segurança impeditiva do resvalo de cidadãos social e economicamente vulneráveis
para baixo de uma linha de pobreza legitimada pela sociedade —, outros mecanismos
adicionais de proteção social, como: serviços sociais universais (saúde e educação, por
exemplo), proteção ao trabalho (em apoio ao pleno emprego) e garantia do direito ao
acesso a esses bens e serviços e ao seu usufruto. Esta foi a fase de ouro das políticas de
proteção social, na qual a otimização da satisfação das necessidades humanas básicas
tornou-se uma tendência promissora, a partir da Europa.

A economia política que deu sustentação ao Estado de Bem-Estar Social tinha,


fundamentalmente, como características principais: o fordismo na produção, isto é, forma de
racionalização da produção fundamentada em inovações tecnológicas e de gerenciamento
(linhas de montagem em série), visando responder ao consumo de massa; o pleno emprego,
isto é, inclusão cada vez maior dos indivíduos no mercado de trabalho; e os monopólios e
oligopólios, que, mesmo se configurando como transnacionais, tinham como referência de
regulação o Estado nacional (CHAUÍ, 2011, p. 311).

Entre o final dos anos [19]60 e começo da década de 1970, o desenvolvimento


fordista, as políticas keynesianas e o projeto de Estado social, que vigorou nos
países centrais, são postos em xeque, e [com eles] os direitos derivados da relação
salarial. A nova fase de acumulação capitalista vai ser capitaneada pela esfera
financeira, e no campo ideológico o velho liberalismo se veste com a “nova”
roupagem, rebatizado de neoliberalismo (SALVADOR, 2010b, p. 609).

12
Keynes defende a ideia de que o Estado deve “regular variáveis-chave do processo econômico, como a
propensão ao consumo e o incentivo ao investimento, em consonância com s seguinte lógica: O Estado deveria
intervir na economia para garantir um alto nível de demanda agregada (conjunto de gastos dos consumidores,
dos investidores e do poder público) por meio de medidas macroeconômicas, que incluíam o aumento da
quantidade de moedas, a repartição de rendas e o investimento público suplementar” (PEREIRA, 2000, p. 112;
grifos da autora).
13
“O conceito proteção social mínima identifica-se, nas suas origens, com um mínimo de renda. Surge na Grã-
Bretanha, em 1795, sob a forma de abono salarial ou rendimento mínimo garantido [...] Respaldado pela Lei do
Parlamento do Condado de Speenhamland (Speenhamland Law), tal conceito marcou uma inflexão até então
jamais vista na política de proteção social que vinha sendo desenvolvida na Inglaterra. [...] se alguém não
pudesse auferir, mediante o seu trabalho, o suficiente para sobreviver, cabia à sociedade fazer a
complementação. [...] Além disso, houve a extensão da assistência social preexistente aos pobres capacitados
para o trabalho, porém mal pagos, fato inédito naquela época e até hoje considerado uma heresia pela lógica
capitalista liberal” (PEREIRA, 2000 p. 103-104; grifo da autora). Ou seja, essa lei, que será reformada pela Lei dos
Pobres de 1834, reconhece o direito dos pobres de receber uma renda mínima, independente de seus proventos,
uma vez que pretende garantir o direito de viver.
28

Behring (2006, p. 23) comparece nesta análise, acrescentando que os “anos de ouro”,
conforme designa Hobsbawm, começam a se esgotar:

As taxas de crescimento, a capacidade do Estado de exercer suas funções mediadoras


civilizatórias cada vez mais amplas, a absorção das novas gerações no mercado de
trabalho, restrito já naquele momento pelas tecnologias poupadoras de mão de obra,
não são as mesmas, contrariando expectativas de pleno emprego, base fundamental
daquela experiência. As dívidas públicas e privadas crescem perigosamente... A
explosão da juventude em 1968, em todo o mundo, e a primeira grande recessão —
catalisada pela alta de preços do petróleo em 1973/74 — foram os sinais contundentes
de que o sonho do pleno emprego e da cidadania relacionada à proteção social havia
terminado no capitalismo central e estava comprometido na periferia do capital onde
não se realizou efetivamente. As elites político-econômicas, então, começaram a
questionar e responsabilizar pela crise a atuação agigantada do Estado mediador
civilizador, especialmente aqueles setores que não revertiam diretamente em favor de
seus interesses. E aí incluíam as políticas sociais (grifos da autora).

O assim chamado “neoliberalismo”, que então surge, é a economia política proposta


por grupo de economistas, cientistas, políticos e filósofos, 14 que, reunidos na Suíça em 1947
sob a liderança de Friedrich Von Hayek e Milton Friedman, opunham-se severamente à
instalação da social-democracia em países como a Grã-Bretanha, a Suécia, a Dinamarca e a
Alemanha; eram adversários, portanto, do estabelecimento do Welfare State ao modo da
proposta de Keynes, assim como se opunham ao New Deal. As ideias desse grupo não
tiveram repercussão até que a proposta foi reavivada quando a crise capitalista se instalou no
início dos anos 1970, ao baixarem as taxas de crescimento e aumentarem significativamente
as taxas de inflação.
A partir de então, a proposta do grupo passou a ser ouvida e considerada. A explicação
dada à crise por eles era que se assistia no mundo ao resultado do excessivo poder que haviam
adquirido os sindicatos e os movimentos operários, os quais vinham pressionando para a
obtenção de aumentos salariais e para a obtenção de maiores encargos sociais do Estado.
Assim, teriam destruído os níveis de lucros demandados pelas empresas e desencadeado
processos inflacionários fora do controle (CHAUÍ, 2011, p. 313).
A proposta sugerida pelo grupo para o enfrentamento da crise pautava-se nestes pontos:

• fortalecimento do Estado para quebrar com o poder dos sindicatos e dos


movimentos operários e cortar de maneira drástica os encargos sociais e os
investimentos na economia;
• a meta principal de Estado deve ser a estabilidade monetária, com a contenção de
gastos e restauração da taxa de desemprego necessária para constituir um exército
de reserva no sentido de quebrar o poder dos sindicatos;

14
Merecem destaque, nesse grupo, Milton Friedman, Karl Popper, Lionel Robbins, Ludwig Von Mises, Walter
Eupken, Walter Lipman, Michael Polanyi e Salvador de Madariaga, entre outros (ANDERSON, 2000, p. 10).
29

• que o Estado realize uma reforma fiscal, visando estimular os investimentos


privados e reduzir os impostos sobre o capital e as fortunas e aumentando os
impostos sobre a renda individual, ou seja, sobre o trabalho, o consumo e o
comércio;
• o Estado deveria se afastar da regulação econômica, deixando por conta do
mercado a autorregulação. Ou seja, deveriam ser abolidos os investimentos
estatais na economia, assim como o controle estatal sobre o fluxo financeiro,
criação de vasto programa de privatização e drástica legislação antigreve (CHAUÍ,
2011, p. 313).

A tese central do neoliberalismo é que o setor público (o Estado) é o responsável pela


crise, pelos privilégios que concedeu aos trabalhadores e pela ineficiência do gerenciamento.
O mercado e o setor privado são vistos como sinônimos de eficiência, de qualidade e de
equidade. A saída torna-se, então, o Estado mínimo, no tamanho necessário à reprodução do
capital, e, portanto, colocando em causa todas as conquistas sociais relativas ao trabalho,
como a estabilidade de emprego, e os direitos direito à saúde e à educação, entre outros.
O neoliberalismo pode ser considerado a reatualização do liberalismo, ao propor novas
estratégias para o reajustamento estrutural em um plano mundial. O ideário do grupo de
Hayek e Friedman, aqui exposto em suas linhas mais gerais, é assumido e passa a ser
disseminado mundialmente pela intervenção do Banco Mundial, do Fundo Monetário
Internacional e do Consenso de Washington.
Anderson (2000, p. 22) considera o neoliberalismo como um

[...] movimento ideológico, em escala verdadeiramente mundial, como o capitalismo


jamais havia produzido no passado. Trata-se de um corpo de doutrina coerente,
autoconsciente, militante, lucidamente decidido a transformar todo o mundo à sua
imagem, em sua ambição estrutural e sua extensão internacional.

Na América Latina, essa proposta é aplicada inicialmente no Chile, com Pinochet no


governo, na Grã-Bretanha, com Margareth Tatcher como primeira-ministra, e nos EUA, com
Ronald Reagan na Presidência. Depois, expande-se para todo o mundo capitalista, com
exceção dos países asiáticos; posteriormente, com a queda do muro de Berlim em 1989,
espraia-se para o Leste europeu. No Brasil, a adoção do modelo neoliberal inicia-se no
governo de Fernando Collor de Melo e continua com os que se sucedem, sob a presidência de
Fernando Henrique Cardoso e de Luís Inácio Lula da Silva.
Nesse contexto, empresas e governos vêm alterando suas formas de organizar a
produção, adotando o modelo japonês (ou toyotismo) relacionado à flexibilização,
denominada “acumulação flexível”.
30

Busca-se uma flexibilidade no processo de trabalho, em contrapartida à rigidez da


linha de produção, da produção em massa e em série; uma flexibilidade do mercado
de trabalho, que vem acompanhada da desregulamentação dos direitos do trabalho,
de estratégias de informalização da contratação dos trabalhadores, uma flexibilidade
dos produtos, pois as firmas hoje não produzem necessariamente em série, mas
buscam atender as particularidades das demandas dos mercados consumidores e uma
flexibilidade dos padrões de consumo. Esse processo, impulsionado pela tecnologia
de base microeletrônica, pela informática e pela robótica, passa a requerer novas
formas de estruturação dos serviços financeiros, inovações comerciais, o que vem
gerando e aprofundando uma enorme desigualdade do desenvolvimento entre
regiões, setores, etc., além de modificar substancialmente as noções de espaço e
tempo (IAMAMOTO, 1998, p. 31).

Na forma atual do modo de produção capitalista, denominada “globalização


neoliberal”, o monetarismo e o capital financeiro tornam-se o centro nervoso do capitalismo e
estão “ampliando a desvalorização do trabalho produtivo e privilegiando a mais abstrata e
fetichizada das mercadorias, o dinheiro” (CHAUÍ, 2011, p. 319).
O capital financeiro passa a determinar a política de vários Estados. Nações do
Terceiro Mundo, por depender de financiamentos, ficam à deriva, aguardando a transferência
de recursos de um país para outro. Em relação ao monetarismo, significa que, por não haver
relação concreta entre a economia real e economia virtual, ocorre a circulação de somas
altíssimas de valores sem corresponder ao aumento real da riqueza, migrando de um país para
outro, acarretando, onde chegam, a ilusão de prosperidade e, ao se deslocar daquele país, vão
deixando rastros de miséria.
O Estado nacional passa a ser o

[...] enclave territorial para o capital e dispensa as formas clássicas do imperialismo


(colonialismo político-militar, geopolítica de influências, etc.). O centro econômico,
jurídico e político planetário encontra-se agora no FMI e no Banco Mundial, os quais
operam com um único dogma, proposto pelo grupo fundador do neoliberalismo:
estabilidade econômica e corte do déficit público. As decisões são tomadas,
portanto, em organismos supranacionais (verdadeiros detentores do poder mundial)
com os quais os Estados contraem dívidas públicas, isto é, os cidadãos devem pagar
para que os seus governos cumpram as exigências desses organismos (a maioria
deles, privados), os quais operam com base no segredo e interferem nas decisões de
governos eleitos, que deixam de representar os cidadãos e passam a gerir a vontade
secreta desses organismos (CHAUÍ, 2011, p. 321; grifo da autora).

Como consequência, o capitalismo agora dispensará e mesmo rejeitará a presença do


Estado, não somente no mercado, mas também na promoção da política social, de maneira
que a privatização de empresas e serviços públicos se impõe.

Em decorrência disso, a ideia de direitos sociais como pressuposto e garantia dos direitos
civis ou políticos tende a desaparecer, porque o que era direito se converte num serviço
31

privado regulado pelo mercado e, portanto, torna-se uma mercadoria a que têm acesso
apenas os dotados de poder aquisitivo para adquiri-la (CHAUÍ, 2011, p. 321).

A terceirização do setor de serviços passa a ser estrutural,

[...] deixando de ser suplemento da produção, uma vez que esta não mais se realiza sob a
antiga forma fordista das grandes plantas industriais que concentravam todas as etapas da
produção, mas opera por fragmentação e dispersão de todas as esferas e etapas da
produção, com a compra de serviços do mundo inteiro (CHAUÍ, 2011, p. 319).

Com a reestruturação produtiva imposta pelo novo jeito de produção, a classe


trabalhadora perde os referenciais que lhe permitem perceber-se como classe social. Além
disso, estabelece-se a precarização do trabalho e a crescente desregulamentação das profissões.

Surge nesse contexto o trabalhador polivalente, aquele que é chamado a exercer


várias funções, no mesmo tempo de trabalho e com o mesmo salário, como
consequência do enxugamento do quadro de pessoal das empresas. O trabalhador
deixa de ser um trabalhador “especializado” — e também o assistente social —,
sendo solicitado a exercer múltiplas tarefas, até então não necessariamente
envolvidas em suas tradicionais atribuições (IAMAMOTO, 1998, p. 32).

O desemprego passa a ser estrutural, uma vez que o capitalismo, na sua forma atual,
não atua para incluir todos no mercado de trabalho e de consumo, mas apenas uma parte dos
trabalhadores; desaparecem postos de trabalho. A exclusão impõe-se pela introdução da
automação e pela velocidade da rotatividade da mão de obra, que se torna desqualificada e
dispensável muito rapidamente, como resultado das mudanças tecnológicas.

Atualmente, segmentos cada vez maiores da população tornam-se sobrantes,


desnecessários. Essa é a raiz de uma nova pobreza de amplos segmentos da
população, cuja força de trabalho não tem preço, porque não têm mais lugar no
mercado de trabalho. Fenômeno que se observa hoje, inclusive, nos países
15
considerados desenvolvidos, cujos índices de desemprego estrutural eram
comparativamente baixos. São estoques de força de trabalho “descartáveis” para o
mercado de trabalho, colocando em risco para esses segmentos a possibilidade de
defesa e reprodução da própria vida (IAMAMOTO, 1998, p. 33).

No âmbito da proteção social,

15
A crise do capitalismo atual rebate em Portugal de forma muito violenta através da perda de direitos trabalhistas, de
direitos sociais e fechamento de significativo número de postos de trabalho devido à falência de empresas e do
comércio. Em 1º/6/2012, o desemprego em Portugal atingiu o recorde de 15, 2%; entre os jovens com menos de 25
anos, 36,6% (Fonte: <http://www.jornaldenegocios.pt/home.php?template=SHOWNEWS_V2&id=560331>; acesso
em 8 ago. 2012).
32

a novidade introduzida foi a parceria entre Estado, mercado e sociedade ou


esquemas pluralistas, os quais tiveram apelo muito mais ideológico do que prático.
Análises mais acuradas das tendências desse esquema plural ou misto de bem-estar
social [...] mostram que as soluções referentes à pobreza e à chamada exclusão
social têm sido cada vez mais procuradas na sociedade e baseadas no recurso
estratégico da solidariedade informal e voluntária, envolvendo a família, a
vizinhança, os grupos de amigos (PIERSON, 1991; JOHNSON, 1990, apud PEREIRA,
2008a, p. 39).

Isso significa que o Estado vem se desvencilhando de seu protagonismo de provedor


social, ao deixar desprotegidos amplos segmentos da população, que, para satisfazer suas
necessidades, recorre com cada vez mais frequência à rede informal de solidariedade. A
política social cada vez mais é focalizada e terceirizada.
Os rebatimentos em relação às políticas sociais, portanto, são nítidos.

Presencia-se a desorganização e destruição dos serviços sociais públicos, em


consequência do “enxugamento do Estado” em suas responsabilidades sociais. A
preconizada redução do Estado é unidirecional: incide sobre a esfera de prestações
de serviços públicos que materializam direitos sociais dos cidadãos, de interesse da
coletividade. [...] O fundo público é cada vez mais desigualmente distribuído, sendo
canalizado para a sustentação dos grandes capitais, em especial o capital financeiro,
como nos casos de socorro do Estado à quebra e saneamento dos bancos. Neste
contexto, o fetichismo do dinheiro e da mercadoria parece reinar com todas as
pompas: ao lado da exaltação do mercado, o cidadão é reduzido à condição de
consumidor (IAMAMOTO, 1998, p. 36).

Esses tempos de globalização neoliberal, que caracterizamos nas suas grandes


matrizes, rebatem em todos os cantos da terra, porém não da mesma forma. Por isso, vão
adquirindo particularidades e singularidades em cada país, região ou cidade; no jeito de ser de
cada lugar, pesam diferentes determinações de ordem econômico-social, política e cultural.
Assim, o sistema de proteção social de cada país poderá preservar ou perder traços da
universalização da proteção social já conquistada. A tendência é a focalização do
atendimento, é um mix de tradições da política social, convivendo entre si e com uma direção
mais decisiva na perspectiva liberal de base meritocrática, na qual o acesso aos serviços
sociais ocorre mediante a comprovação da necessidade ou do means test.
Para se compreender como a globalização neoliberal se reflete na particularidade do
Brasil, torna-se necessário considerar o fato de que a proteção social, aqui, se desenvolveu
segundo diretrizes muito diversas das que pautaram a já exposta proposição social-democrata
nos países europeus. O nosso sistema de proteção social

[...] se alinha, por um lado, à perspectiva liberal, preocupada não em superar o


mercado, mas em aperfeiçoá-lo, garantindo a sobrevivência do capitalismo. As
33

medidas iniciais, na década de 1920, se caracterizaram por um apelo à iniciativa


particular, como a das sociedades de ajuda mútua; dos sistemas de benefícios e
seguro administrados por empresas; da assistência social meritocrática, sempre com
ênfase em transferências monetárias. Ao mesmo tempo, a responsabilidade direta do
Estado na provisão de bem-estar social surge depois, especialmente voltada para a
regulação e controle da força de trabalho, fragmentada em diferentes categorias
profissionais e objeto de captação política (CAMPOS , 1999, p. 553).

Importante destacar a década de 1980, que, embora considerada “perdida” do ponto de


vista econômico, representou no Brasil uma época de reorganização da sociedade civil, visando
ao processo de redemocratização para pôr fim à ditadura militar. Nessa fase histórica, o
movimento social — as greves no ABC paulista e suas recorrências (por exemplo, a articulação
de centrais sindicais que deu origem ao Novo Sindicalismo), assim como o denso movimento
popular que se organizou nos bairros, reivindicando serviços básicos — representou uma
conjuntura que levou à expansão da conquista de direitos sociais. Nesse contexto, articulou-se o
Partido dos Trabalhadores, que aglutinou as forças sociais progressistas do País.
Essas forças, ao final, foram canalizadas para o Movimento Constituinte, que
culminou com a elaboração da Constituição de 1988, a qual representou verdadeiro avanço
em muitos aspectos do ponto de vista de ampliação dos direitos sociais. “Os avanços
constitucionais de 1988, de natureza reformista, foram possíveis numa conjuntura bastante
particular de elementos, numa conjuntura de radicalização democrática após uma ditadura de
20 anos” (BEHRING; BOSCHETTI, 2007, P. 151).

O texto constitucional refletiu a disputa de hegemonia, contemplando avanços em


alguns aspectos, a exemplo dos direitos sociais, com destaque para a seguridade social,
os direitos humanos e políticos, pelo que mereceu a caracterização de “Constituição
Cidadã”, de Ulisses Guimarães. Mas manteve fortes traços conservadores, como a
ausência de enfrentamento da militarização do poder no Brasil. [...] uma Constituição
programática e eclética, que em muitas ocasiões foi deixada ao sabor das legislações
complementares (BEHRING; BOSCHETTI, 2007, p. 142).

Pela primeira vez no Brasil criou-se um sistema de seguridade social, introduzindo-se


a noção de direitos sociais universais como condição da cidadania. Também se introduziu a
proteção social de base não contributiva, ao se reconhecer o direito de uma renda de
sobrevivência ou mesmo de aposentadoria a trabalhadores que não haviam contribuído
previamente para obtê-la.

Essa proteção não contributiva amplia os benefícios para grupo de pessoas inaptas
para o trabalho (os portadores de deficiências físicas e os idosos de mais de 65 anos,
através do Benefício de Prestação Continuada), além de ampliar os direitos
34

securitários dos trabalhadores rurais, através da Previdência Especial Rural (IVO,


2008, p. 165; grifos meus).

A Assistência Social foi reconhecida como política social de Estado e colocada no


campo da seguridade social, “em beneficio de um desenho institucional que implica formas de
participação e controle da sociedade civil sobre as políticas sociais” (IVO, 2008, p. 165).
Apesar das conquistas sociais inscritas na Constituição de 1988, vimos, desde a década
de 1990, perdendo consecutivamente muitos direitos. Vem sendo criada uma verdadeira
fratura entre o Brasil real e o Brasil legal, como bem sintetiza Guerra (2010, p. 32-33):

Concomitantemente ao avanço constitucional do ponto de vista da formalização


jurídica dos direitos, amplos segmentos da classe trabalhadora no Brasil e no mundo
vivenciam a sua destruição. Há uma investida neoconservadora para, de um lado,
considerar direitos como privilégios e, de outro, destituir os direitos dos seus
conteúdos de classe. Ambas as tendências operam um retrocesso sobre a concepção de
direitos sociais e o caráter adotado pelos mesmos na Constituição Brasileira de 1988.

Nessa conjuntura, a tendência predominante tem sido a de restrição de direitos, na qual


as políticas sociais passam a se reduzir a ações pontuais e compensatórias, visando responder
aos efeitos mais cruéis da crise. Dessa maneira, as “possibilidades preventivas e até
eventualmente redistributivas tornam-se mais limitadas, prevalecendo [...] o trinômio
articulado do ideário neoliberal, ou seja: a privatização, a focalização e a descentralização”
(BEHRING; BOSCHETTI, 2007, p. 156; grifos das autoras).
Em tempos de globalização neoliberal, a realização das políticas sociais vem
enfrentando dificuldades e restrições de várias ordens, a seguir sintetizadas.
• A atuação governamental tem ficado restrita ao enfrentamento da pobreza, do
ponto de vista programático à cobertura de renda mínima, deslocando a concepção
mais ampla de política social e restringindo “sua atuação à cobertura de carências
de um grupo mergulhado na pobreza, vista como absoluta, desconsiderando as
relações sociais e econômicas gerais” (CAMPOS, 1999, p. 554).
• A substituição da oferta de serviços sociais por pagamento de benefícios em moeda
pelo mínimo possível acentua a noção de livre escolha no mercado por parte dos
beneficiários, contribuindo para a diminuição do aparelho estatal. Este procedimento
é reconhecidamente proposta de recorte liberal (CAMPOS, 1999, p. 554).
• A discussão acerca do combate à pobreza em domínio nacional fica quase sempre
limitada “à proposta de implementação de ‘redes de salvação’ para os pobres,
35

reeditam-se a antiga ideia de recuperação individual dos ‘marginalizados’, hoje


designados mais elegantemente por ‘excluídos’” (CAMPOS, 1999, p. 554).
• A implementação da política social vem sendo gradativamente delegada às
iniciativas de organizações da sociedade, através da terceirização do atendimento.
É “crescente uma apropriação indevida da concepção de ‘solidariedade’ [...]
Converte-se numa solidariedade moral e individual, em que as pessoas mais
abastadas são instadas a oferecer ajudas eventuais aos pobres para suprir suas
necessidades imediatas” (CAMPOS, 1999, p. 554).
Merecem destaque as empresas-cidadãs que se multiplicam a cada dia, as campanhas
televisivas que visam sensibilizar os menos pobres a contribuir para formar fundos para as
entidades filantrópicas, assim como as empresas que se propõem a dar uma percentagem de
suas vendas, em determinado dia, de acordo com as vendas que realizarem. Nesse contexto, o
marketing evidencia-se, e a responsabilização do Estado pela realização da política social vai
sendo diluída.
Da Constituição de 1988 aos dias atuais, podemos afirmar, com Ivo (2008, p. 188),
que há hoje “uma ruptura entre trabalho e proteção, reorientando-se o equacionamento da
questão social para a eficiência do gasto público, pela qual se opera a transfiguração dos
direitos de proteção em ações de assistência e a política redistributiva em gestão técnica do
social”. A descentralização vem sendo tratada não como partilha do poder, como deveria ser,
mas “como mera transferência de responsabilidade para entes da federação ou para
instituições privadas e novas modalidades jurídico-institucionais correlatas” ( BEHRING;
BOSCHETTI, 2007, p. 156).
A análise aqui apresentada aponta para o aumento da seletividade na política social,
tendo em vista principalmente sua focalização e o refinamento dos critérios de sua operação.

1.1. Os direitos sociais entre a universalização e a focalização da política social

A universalização e a focalização da política social são aqui tomadas como dois


princípios que dão a direção predominante quanto à abrangência de acesso aos serviços e
benefícios sociais e se constituem em resultado das lutas sociais entre as forças do capital e do
trabalho. São tendências em que a predominância da focalização ou da universalização não se
dá, portanto, de forma tranquila e mecânica nem depende da simples vontade dos sujeitos
envolvidos. De um lado, há no movimento social a luta dos trabalhadores, que sempre
36

almejam a universalização dos serviços e dos direitos sociais; nesse sentido, sempre defendem
essa bandeira. De outro, há os representantes do capital, que, quando pressionados, sempre
pretendem dar e ceder o mínimo das reivindicações em pauta, e assim, tendo em vista seus
interesses, sempre envergam a bandeira da focalização.
A universalização dos serviços e benefícios sociais envolve inúmeras determinações
presentes no processo histórico, conforme já exposto quanto aos embates dos trabalhadores
pela conquista dos diversos direitos sociais — a qual, historicamente, vem se dando tendo
como referência as lutas empreendidas pelos subalternizados organizados e que tem na
Revolução Francesa um marco, chegando aos dias atuais.

Cada vez que um dos polos age de determinada forma, o outro também se modifica. Os
trabalhadores, por exemplo, sofreram intensa exploração no século XIX; para sobreviver,
reagindo a essa exploração, conseguiram com muita dificuldade se organizar em
corporações-sindicatos que pressionaram os capitalistas a diminuir a jornada de trabalho,
aumentar os salários e, assim, melhorar as condições de vida. O capital reagiu à ofensiva
operária, criando mais e mais tecnologia para diminuir sua dependência dos
trabalhadores. Então, os trabalhadores procuram se atualizar em relação com a
tecnologia. Os capitalistas acenam com o processo participativo de lucros da empresa,
para neutralizar a ofensiva trabalhista. Os trabalhadores precisam estar atentos para não
serem ludibriados. E assim continua a luta... (COVRE, 2002, p. 39).

Para os trabalhadores, a luta pelos direitos de cidadania coloca-se como categoria


estratégica permanente. “Luta que inclui pressões, greves e desobediência civil, se necessário,
mas com o fim de manter o processo civilizatório contra o processo anárquico e bárbaro, que
pode pôr abaixo conquistas anteriores” (COVRE, 2002, p. 40).
Os direitos sociais, portanto, não são dádivas, mas conquistas forjadas na batalha
histórica empreendida pelos trabalhadores. E é também na história com suas tendências e
forças presentes que os direitos podem ser perdidos, ficar somente no papel ou levar a
conseguir uma vida mais rica ou mais pobre.
Cabe lembrar que os capitalistas também têm seus interesses e que desejam sempre
ampliá-los, mesmo que à custa da miséria de grande parte da humanidade. Na denominada
globalização neoliberal, a perene luta entre as classes resultou no avanço do liberalismo com
nova roupagem, que faz recuar a possibilidade de ampliação de direitos sociais, havendo até
muitas perdas.
Em relação a essa discussão e tendo em vista a apreensão do meu objeto de pesquisa,
no período de seis meses (julho a dezembro de 2010) em que estive em Portugal, tive a
oportunidade de acompanhar o desenrolar de acontecimentos que vêm afetando a área da
37

Segurança Social16, em especial, através do corte do benefício a número significativo de


pessoas que sobrevivem do Rendimento Social de Inserção (RSI). 17
No tocante a esse beneficio, pudemos constatar de que forma vem sofrendo sérias
alterações, mediante uma política de cortes que, ao excluir do atendimento significativo
número de beneficiários, acaba por resultar na perda no quadro de direitos sociais antes
conquistados. Para se ter uma ideia do tamanho do corte realizado: “em julho [leia-se de
2010], os beneficiários eram 389 mil e há dois meses ficaram reduzidos a 364 mil, ou seja,
menos 6,4%, segundo o Diário de Notícias. E, em face a janeiro [leia-se: de 2010], há menos
32.507 pessoas a receber o apoio social”. 18
Outro dado de referência diz respeito à dimensão do corte que está sendo realizado nas
políticas sociais de Portugal: só no mês de setembro de 2010, o governo havia poupado € 10
milhões com a redução dos benefícios da segurança social. 19
Cabe perguntar: como isso foi possível? Quais foram os mecanismos utilizados pelo
governo para se conseguir tal façanha?
Foi possível com adoção de novas regras, ou seja, apertando as exigências na
aplicação dos antigos critérios. Uma dessas regras: “Os beneficiários dessa prestação social
estão agora obrigados a aceitar propostas de trabalho, ações de formação ou trabalho
socialmente necessário sob pena de perder o apoio.” 20 Dentre as novas exigências, consta
também que a Segurança Social, orgão público executor do RSI, passará a cancelar o apoio aos
beneficiários que tiverem entre os 18 e os 55 anos de idade que recusarem emprego
conveniente, trabalho socialmente necessário ou propostas de formação. 21
É preciso considerar ainda nesse contexto que havia a previsão de 11 milhões de
desempregados em 2011, em Portugal, sendo que a taxa de desemprego no país, no último
trimestre de 2010, foi de 10,9%.22
Vinculando essas duas notícias, podemos indagar: qual foi a intenção da cobrança
dessas exigências, em um contexto em que se conhecem as proporções do desemprego e das
consequências que deste advém?

16
Engloba as áreas da Previdência Social e da Assistência Social, que são tratadas pelo Ministério da
Solidariedade e Segurança Social português. Registre-se que se constitui historicamente em campo de atuação
quase exclusiva de profissionais do Serviço Social em Portugal (FERREIRA, 2009, p. 37).
17
A Lei nº 13, de 2003, revogou o rendimento mínimo garantido (RMG) previsto na Lei nº 19-A, de 1996, e criou
o RSI, regulamentado pelo Decreto-Lei nº 283, também de 2003. Trata-se de um benefício social de transferência
de renda.
18
Fonte: <http://www.agenciafinanceira.iol.pt>. Acesso em: 8 dez. 2011.
19
Fonte: <http://www.agenciafinanceira.iol.pt>. Acesso em: 8 dez. 2011.
20
Fonte: <http://www.agenciafinanceira.iol.pt>. Acesso em: 5 nov. 2011.
21
Fonte: <http://www.agenciafinanceira.iol.pt>. Acesso em: 9 out. 2011.
22
Fonte: <http://www.sapo.pt>. Acesso em: 26 dez. 2010.
38

Acompanhar a agenda política, econômica e social nesses meses de estudos em


Portugal significou vasta e inesgotável fonte de exemplos enriquecedores para o estudo que
estou empreendendo sobre a seleção socioeconômica como instrumento da política social para
realizar, através do mesmo processo, o duplo movimento de inclusão-exclusão.
Podemos nessa conjuntura perceber que, quanto menores os recursos destinados às
políticas sociais, tanto maior deverá ser o número de critérios e normas a preencher pelos
demandantes do benefício. Para restringir a demanda, aumentam-se as exigências de acesso.
Pudemos ainda observar que, nas circunstâncias atuais de Portugal, ocorre um
enxugamento do orçamento público, por meio da realização de cortes que visam diminuir o
déficit estatal, fazendo com que o objetivo básico da política social não seja o da inclusão,
mas o de exclusão. O discurso, principalmente dos gestores, fica entre a advertência de que se
deve considerar excessiva e demasiadamente permissiva a política social atual, pois “há gente
que não precisa do atendimento e está se aproveitando da situação de pouca fiscalização na
concessão”, e a grotesca e antiga ideia liberal de que “há muita gente vadia e preguiçosa
vivendo à custa do governo”. Nessa lógica e dessa forma, e aos poucos, as políticas sociais
estão perdendo sua perspectiva universalizante, conforme se observa na política neoliberal.
Em Portugal, podemos dizer que, de 1974, quando lá foi instituída a pensão social de base
não contributiva, logo após o 25 de Abril, 23 até 1996, quando foi consagrado o Rendimento
Mínimo Garantido (RMG) esteve presente uma perspectiva de fortes traços universalizantes,
fundada na ideia do direito social de cidadania. Hoje, as políticas sociais vão perdendo a
conotação de direito conquistado e adquirido e assumindo um caráter de focalização, ao se
discriminar cada vez mais os determinados segmentos da população que poderão ter acesso aos
benefícios sociais. 24 A ideia de direito ainda existe, porque consta na lei, é política de Estado; mas
está sendo substituída pela de que o indivíduo tem que provar a necessidade e se enquadrar nos
critérios colocados. O princípio da necessidade se pauta na obrigação do indivíduo provar sua
impossibilidade de suprir suas necessidades, por contra própria ou através de sua família, além de
que esteve e está à procura de emprego. Daí a necessidade de justificar caso a caso o atendimento,
instaurando-se um means test mais rigoroso.
23
A ditadura salazarista perdurou em Portugal por 41 anos, compreendendo o período de 1933 a 1974. Esse
período é denominado Estado Novo, constituindo-se em período de forte repressão social e política. A
Revolução dos Cravos é um período da história portuguesa que foi desencadeado por um golpe de Estado
iniciado por militares em 25 de abril de 1974, depondo o regime ditatorial vigente e iniciando um processo de
democratização do país. O cravo vermelho tornou-se o símbolo dessa Revolução, pois conta-se que, nessa data,
logo ao amanhecer, o povo juntou-se na rua, unindo-se aos soldados, e que no meio do povo havia uma florista
que levava flores para um hotel e, ao passar por ali, passou a oferecer cravos aos soldados, sendo que um deles
acabou por colocá-lo no cano da espingarda, ato imitado por outros soldados presentes. Esse ato foi registrado na
imprensa e se popularizou. Em Portugal, esse acontecimento é denominado por Revolução de 25 de Abril.
24
Assunto cuidadosamente tratado em Branco (2004a, 2004b).
39

Já na perspectiva de acesso aos serviços baseada no direito social ao trabalho, todos os


cidadãos — ou, no caso de Portugal, todos os que residirem em território português — que
não detenham renda terão direito a uma renda mínima preestabelecida em determinado
montante a ser pago pelo Estado. Ainda que tenham que provar sua situação de falta de renda
para viver, essa perspectiva é universalizante, porque contém o conceito de que não deve
haver nenhum cidadão sem renda no país, independente do que motivou esse fato. Mas exigir
do pleiteante ao benefício social a “prova” de que está em busca de trabalho, em uma
conjuntura de desemprego significa, de fato, uma clara política de corte dos benefícios, ou
seja, uma política de restringir o acesso, que se configura mais como de exclusão do que
como inclusão ao acesso.
Note-se que essa tendência de maior controle, visando à restrição ou à focalização, que
vem sendo praticada, não deve ser circunscrita à política social portuguesa, mas em Portugal
adquire determinadas particularidades.
Como já pudemos expor, o acesso aos serviços e benefícios sociais baseado na
necessidade ou mérito é a mais antiga e tradicional vertente da assistência social, podendo
englobar da esmola às reatualizações que foram se sucedendo. O seu objetivo é o de restringir
o acesso, focalizando através da aplicação de critérios o atendimento a segmentos precisos da
população.
Para receber o benefício pleiteado, o indivíduo tem que provar que ele e sua família
não detêm meios de suprir as necessidades mínimas ou básicas, reforçando a ideia da seleção
socioeconômica que, em Portugal, é mais comumente designada por prova de recursos.
Os fatos expostos permitem perceber que a condição para a aceitação pública da
seleção socioeconômica e do acirramento dos critérios que incluem-excluem pressupõe lidar
com a questão social de âmbito social, coletivo e público, transmutando-a em questão de
âmbito pessoal, particular, privado; ou seja, tirando o foco da intenção da contenção de gastos
do governo e colocando nos indivíduos a culpa pelo não acesso ou mesmo pela perda do
benefício — pois quem não cumprir as exigências estabelecidas e quando não preencher os
requisitos ficará sem o “direito” de acesso, e os que antes recebiam o benefício e agora o
perderam é porque, de fato, não o mereciam.
No sentido de prosseguir na análise, é importante a apresentação de alguns destaques
referentes à discussão atual da antinomia entre focalização e universalidade da política social.
Na atualidade, há
40

[...] tendência corrente de minimizar ou negar uma controvérsia de fundo entre esses
dois princípios reitores da política social, não há como esconder que, pelo menos nas
ações governamentais, tal controvérsia existe. Por conseguinte, admitem que tais
princípios são incompatíveis entre si, mesmo que no discurso atual a concepção de
universalidade venha sofrendo rearranjos restritivos. Com efeito, ultimamente,
fortaleceram-se ideias que ora desfiguram a concepção verdadeiramente universal do
princípio de universalidade — com expressões adjetivadas como universalismo
“segmentado”, “contido” ou “básico” — ora rejeitam essa concepção em nome de uma
suposta superioridade democrática da focalização, agora identificada com o respeito às
individualidades e às diferenças. Com isso o princípio da universalidade, de conotação
eminentemente política, cidadã e igualitária/equânime, vem perdendo terreno para um
discurso focalista neoliberal, de extração pós-moderna, para o qual o ser humano é
construído culturalmente e, assim, despossuído de vínculos universais e de
convergências éticas, políticas e cívicas (PEREIRA; STEIN, 2010, p. 107).

Na combinação do discurso pós-moderno com o tecnocratismo neoliberal, caiu em


desgraça falar-se da sociedade como diferente da soma de indivíduos, assim como dos
fundamentos da política, dos direitos e das relações sociais. No discurso focalista pós-
moderno, no que se refere à intervenção, aparece a lógica da fragmentação e do curto prazo da
política social, considerando-se que, para lidar com a realidade, basta apenas conhecimento de
pequeno alcance (PEREIRA; STEIN, 2010, p. 107).
Nesse quadro, as autoras refinam sua análise e afirmam que

[...] as prestações sociais são ditadas pelo imediatismo e pela rapidez de resultados,
geralmente quantitativos e referenciados na renda; o mérito desbanca o direito, até
mesmo entre os pobres, que se transformam em vítimas meritórias da proteção
social, por sua situação de penúria; as preferências individuais substituem as
necessidades sociais na definição das políticas; e a história, cujo sentido de
totalidade é essencial para se pensar em mudanças complexas e de longo prazo, se
restringe a acontecimentos localizados e isolados que requerem respostas pontuais
(PEREIRA; STEIN, 2010, p. 107-108; grifos meus).

Tendo em vista que tais questões têm rebatimentos diretos no entendimento de nosso
objeto de estudo, cabe retomar alguns conceitos fundamentais.
Em relação ao princípio da universalidade, é preciso considerar:

Uma razão histórica fundamental para a adoção do princípio da universalidade tem


relação direta com o objetivo democrático de não discriminar cidadãos no seu acesso
a bens e serviços que, por serem públicos, são indivisíveis e deveriam estar à
disposição de todos. Não discriminar, por essa perspectiva, significa não estabelecer
critérios desiguais de elegibilidade que humilhem, envergonhem, estigmatizem e
corrompam o status de cidadania de quem precisa da proteção social pública.
Significa também não encarar a política pública (especialmente a assistência social)
como fardo governamental ou desperdício a ser cortado a todo custo. Além disso,
outra razão histórica importante para a adoção do princípio da universalidade
decorreu da descoberta feita por várias forças sociais em pugna pela democracia da
ideia de prevenção nele contida (PEREIRA; STEIN, 2010, p. 111; grifos das autoras).
41

A autora explica que o princípio da universalidade passou a conter a ideia de


prevenção. Esta se constituiu em uma “bandeira de luta” defendida pelos reformadores sociais
britânicos, dentre os quais estava William Beveridge.

Associado à prevenção prevista no princípio da universalidade, o conceito de


direitos sociais se impôs como antídoto a toda sorte de agressões e constrangimentos
impingidos aos pobres no processo de satisfação de suas necessidades básicas e
como arma de luta coletiva por melhores condições de vida e cidadania. Todavia,
devido à complexidade da operacionalização desse princípio em sociedades de
classe e à prevalência da concepção de política social como receita técnica do
governo — ou compensação dos “desserviços” sociais prestados pela administração
pública — o princípio da seletividade se sobrepôs ao da universalidade, reforçado
pelo retorno do pensamento liberal nos fins dos anos 1970 (PEREIRA, 2007, p. 2;
grifo da autora).

A seletividade aparece aqui como sinônimo de focalização e, portanto, antagônico ao


de universalização, sendo que ambas vêm sempre justificadas como necessárias para fazer
frente à falta de recursos para atender a todos — sem mencionar, no entanto, que, do montante
do fundo público existente no país, só uma pequena parcela vem sendo destinada à realização
dessas políticas sociais. A discussão democrática da gestão do fundo público poderia indicar
outras opções políticas de seu uso e não simplesmente dizer que não há recursos, portanto
impondo a seletividade quase que como algo natural.
Em relação à focalização, pode-se dizer que

[...] é a tradução dos vocábulos ingleses targeting ou target-oriented,25 usados nos


Estados Unidos e nos países conservadores europeus [...] que encaravam a pobreza
como fenômeno absoluto, e não relativo, com todas as implicações que tal
concepção acarreta, a saber: restrição do papel do Estado na proteção social; apelo à
generosidade dos ricos e afortunados para aliviarem o sofrimento dos mais pobres;
ênfase na família e no mercado como principais agentes de provisão social;
aceitação da desigualdade social como fato natural. E mais: desvio do compromisso
da política social para com a satisfação das necessidades sociais — devido ao caráter
complexo e multideterminado dessas necessidades — e adoção de soluções técnicas
e pontuais, tidas como inovadoras, aparentemente neutras e facilmente controláveis
(PEREIRA; STEIN, 2010, p. 111; grifos das autoras).

De uma perspectiva pragmática, Ruíz-Huerta (2000, apud PEREIRA; STEIN, 2010, p.


115) pergunta: “como minimizar os indicadores de pobreza com uma dotação de recursos
escassa?” E logo a seguir, afirma: “A resposta a essa indagação tem se manifestado na

25
Respectivamente: “segmentação” e “orientação pelo alvo”.
42

tentativa de concentrar os benefícios do gasto público nos segmentos mais empobrecidos por
meio das atuações focalizadas (targeting).”
Diante dessa resposta, é importante desvendar o que a envolve. Trata-se de reconhecer
que a focalização em si já implica seletividade, não a seletividade como forma e condição do
acesso aos serviços sociais que certamente o indivíduo demandante daquele serviço terá que
se submeter, mas uma seletividade anterior, que passa a se constituir em mais um
afunilamento, em mais uma peneira para excluir amplos segmentos da população ao acesso.
Na conjuntura em que vivemos, é possível supor que haverá maior demanda por processos de
seleção socioeconômica com critérios cada vez mais sofisticados — leia-se: que dificultem mais
o acesso, para excluir maior número de demandantes de forma legitimada e controlada.
A avaliação da política social praticada por alguns países que substituíram programas
universais por outros mais seletivos indicam muitos pontos críticos, que, segundo Pereira e
Stein (2010, p. 116), referem-se

a) ao problema da identificação correta das necessidades de cada grupo e à


hierarquização das situações, de acordo com os objetivos estabelecidos; b) ao
aumento considerável dos custos administrativos que põe a necessária coleta de
informações para identificar os destinatários potenciais dos programas, o que pode
supor uma clara desvantagem em relação aos programas universais à medida que,
quanto mais se quer diferenciar (e controlar) os beneficiários, maiores são os custos;
c) à possível geração de efeitos de segunda ordem, como o assistencialismo, que
pode reforçar as cadeias de dependência em relação ao Estado, ou as chamadas
“armadilhas da pobreza”.

Em decorrência das análises e reflexões aqui apresentadas acerca da focalização da


política social nesses tempos de globalização neoliberal que vem se impondo com muita
força, vale lembrar que há outras possibilidades de lidar com os princípios da universalidade e
da seletividade, sem utilizá-los como antinomias. Atualmente,

[...] a seletividade prevalecente não é aquela que visa identificar necessidades mais
agudas para melhor atendê-las, com o objetivo de calibrar a balança da justiça. Mas,
pelo contrário, trata-se de uma seletividade iníqua, centrada na defesa dos gastos
sociais, que exige das políticas sociais (em particular da assistência) a criação de
estratégias que reduzam as necessidades humanas a sua mísera expressão animal, para
diminuir as despesas do Estado. Ou, em outras palavras, a seletividade, que poderia
manter relações dinâmicas com a universalidade, transformou-se em focalização e,
portanto, em um princípio antagônico a esta (PEREIRA; STEIN, 2010, p. 115).

Assim, vivemos hoje em uma conjuntura marcada, em geral, por redução, restrição e
perda de direitos, sob alegação da crise fiscal do Estado, circunscrevendo-se a política social
nos diversos países a ações pontuais e compensatórias. “O neoliberalismo, e sua política de
43

ajustes econômicos visando à estabilização, é incompatível com o padrão de política social


amplo, universal, de qualidade e gratuito [...] de modo que à massa da população brasileira
são negados direitos básicos” (GUERRA, 2010, p. 34).
Reaparece nesses tempos, com toda a crueza, a contradição entre uma ânsia de
progressiva cidadania social, cada vez mais estendida, 26 e a realidade imposta pela lógica do
mercado na sociedade capitalista. Para onde nos leva essa política? Welmowicki (2000, p. 76)
afirma que a concepção de cidadania omite que a sociedade é divida em classes, “que existem
cidadãos proprietários dos meios de produção e cidadãos despossuídos. Os interesses da
maioria explorada não são os mesmos da minoria explorada. Os lucros de um implicam na
miséria de outros” (grifos do autor).
Tratar da cidadania dissociada da consideração de que vivemos em uma sociedade de
classes — portanto, que envolve interesses de classes divergentes em jogo — é colocar a
cidadania nos marcos do ideário liberal, ou seja, no campo do direito de todos à igualdade de
oportunidades para competir, mas não no horizonte da busca da igualdade para todos.
Entender que a sociedade é feita por indivíduos e tratar dos pertencimentos (por
exemplo, de gênero, raça-etnia) desvinculados das relações de classe tem levado à segmentação,
ao sectarismo e ao enfraquecimento da luta por uma sociedade mais igualitária, que, para ser
alterada, requer a reversão da correlação de forças que hoje é claramente desfavorável aos
interesses dos trabalhadores e dos que dependem do trabalho para sobreviver.
No Brasil, fala-se em direitos do cidadão, mas a apuração da renda nos processos de
seleção socioeconômica é familiar. O Estado entra com “auxílios somente quando a família
não consegue dar conta da tarefa de manter financeiramente os seus membros”. Portanto, a
responsabilidade primeira pelo sustento de seus membros é da família. Resta perguntar: e os
tão enunciados direitos sociais dos cidadãos, onde estão?
No Brasil de hoje, a cidadania é reduzida ao conceito de direito ao consumo, pois

o paradigma da racionalidade econômica implica garantir novas fatias de


consumidores para o mercado, dinamizando a microeconomia através do subsídio
monetário direto de renda aos beneficiários (referindo-se à assistência social),
estimulando sua integração ao mercado, como consumidores e (ou) pequenos
empreendedores. A mercantilização da assistência, ou a constituição dos sujeitos da
assistência como sujeitos de consumo, tem a potencialidade de liberar os indivíduos
26
A cidadania aparece associada à velha política de colaboração entre as classes com outra roupagem,
questionando a ideia do sindicato cidadão que prega a colaboração entre trabalhadores e empresários na defesa
do emprego, na luta contra a miséria, ou o analfabetismo. Mas, diante dessa situação, afirma o autor: “para lutar
por esses direitos mínimos, que qualquer cidadão mereceria ter, se necessita de uma organização independente
dos trabalhadores contra a reação burguesa! Essa organização independente, política e sindical pressupõe
consciência de classe e uma ação classista. Do contrário não se travará a luta. A batalha contra o neoliberalismo
hoje exige uma luta de classes sem trégua” (WELMOWICKI, 2000, p. 76-77; grifos do autor).
44

da dependência implícita à condição de fome, dando-lhes liberdade de escolhas


quanto à decisão dos gastos e, segundo alguns autores, potencializando a
microeconomia e o pequeno comércio, sem interferir no sistema do mercado, já que
é gerenciado pelo governo (IVO, 2008, P. 189).

Diante da análise apresentada, é preciso levar em conta que cada indivíduo é ao


mesmo tempo único e igual em relação aos demais indivíduos humanos e é, também, igual e
diferente em relação aos demais. Mas é também, e ao mesmo tempo, mais igual a alguns do
que a outros. É preciso reconhecer as universalidades, particularidades e singularidades
contidas na vida de cada indivíduo. Iamamoto (1998), pensando no trabalho do assistente
social, já disse que é preciso enxergar nas demandas apresentadas pelo indivíduo as demandas
coletivas que carregam. É preciso enxergar os indivíduos como sujeitos coletivos, e é
imprescindível que os profissionais olhem e busquem enxergar na vida do indivíduo como a
sua inserção na classe trabalhadora rebate diretamente na sua vida e se expressa.
Penso que podemos concluir, afirmando que a universalidade é o horizonte desejado
pelo trabalho e a focalidade é o horizonte desejado do capital. Enquanto os representantes do
trabalho lutam por políticas sociais abrangentes para todos, pelo máximo possível para todos,
os representantes do capital pretendem realizá-las da forma mais reduzida possível, sempre
perto do mínimo dos mínimos possíveis e o mais circunscritas possível. A universalização é
um princípio associado aos interesses dos trabalhadores e a focalização é principio associado
aos interesses do capital, porque sempre alguma coisa terá que ser dado de serviços sociais
para que haja legitimidade no poder do Estado burguês. Porém, para que lado tende a balança
sempre dependerá dos pesos presentes e em combate permanentemente na luta pela posse da
riqueza socialmente produzida. A luta é a de que a grande maioria precisa conquistar direitos
para todos, e outros querem preservar os privilégios que mantêm e acumulam há séculos.
A universalização da política social constitui, portanto, bandeira de luta dos segmentos
espoliados, excluídos, explorados ou seja lá como queiramos denominá-los.
Diante desse fato, é indicado que, principalmente, não percamos a visão de totalidade
para demarcar os nossos horizontes enquanto cidadãos e profissionais, considerando e, portanto,
pensando que a luta das mulheres, dos negros, dos sem-terra, do acesso ao atendimento com
qualidade não são lutas só daqueles que nelas estão inseridas, mas de todos nós, para que todos,
de fato, possamos em algum lugar do futuro estar incluídos na humanidade como, de fato,
iguais nas universalidades e respeitados nas diferenças que nos caracterizam. Todas essas lutas
são lutas pelos direitos humanos; precisaremos até construir o entendimento de que as lutas
45

empreendidas por todos os segmentos oprimidos organizados para conquistar direitos se


constituem em luta pelo direito de todos os homens poderem ser humanidade.
Tratar de seleção socioeconômica é, portanto, tratar dos direitos que são considerados
como não-direitos em face ao abismo existente entre as necessidades sociais e a parcela de
recursos públicos e/ou privados a elas destinados para a realização da política social. É
necessário estar, assim, conscientes de sua capacidade de embaçar a contradição entre as
demandas da população e o caráter necessariamente excludente e seletivo dos serviços sociais.

1.2. Contrapartidas ou “condicionalidades”

Em muitos programas sociais baseados na transferência monetária, ou de renda, vêm


sendo exigidas contrapartidas dos beneficiários em troca ou como condição de acesso ou de
permanência no benefício. Esses programas têm sido denominados “por transferência
condicionada de renda” ou ainda “programas de renda mínima”. Trata-se do Programa de
Transferência Condicionada de Renda (PTCR). Além da seletividade de acesso, são colocadas
condicionalidades para permitir a permanência do usuário no atendimento, evitando sua exclusão.
Ressalte-se que uma das mais fortes expressões da focalização da política social na
Europa e na América Latina tem sido a expansão de programas de renda mínima ou de
transferência de renda (RMG), cujos destinatários são as famílias em situação de pobreza ou de
extrema pobreza.
Conforme já comentamos, a noção de proteção social mínima relaciona-se, nas suas
origens, com um mínimo de renda. Surge na Grã-Bretanha, em 1795, a Speenhamland Law,
na qual “é reconhecido o direito de todos os homens a um mínimo de subsistência, fixando
uma escala de auxílios proporcional ao preço do trigo e ao número de filhos” (ROSANVALLON,
1984, apud BRANCO, 2001, p. 74).

Desde essa época até os dias de hoje a ideia de um rendimento mínimo garantido
vem sendo recolocada em diversas circunstâncias, mas, regra geral, em contextos de
crise econômica ou de insegurança social. Mais recentemente e desde o início dos
anos 80 de modo mais vincado, assiste-se na Europa a um surgimento das
proposições e reivindicações do RMG. [...] Os dispositivos de garantia de rendimento
mínimo remontam na Europa aos anos 30, tendo sido instituídos pela primeira vez
na Dinamarca em 1933 e, mais tarde, em 1948 na Inglaterra, na sequência da
reforma Beveridge. Nos anos 60, no que é em regra designada como a segunda
geração de políticas de garantia de rendimento, são criados os sistemas alemão
(1961) e holandês (1963). Hoje, existem sistemas de rendimento mínimo garantido
em todos os países europeus com exceção da Grécia.
46

A abrangência desse tipo de programa é ampla: “com exceção da Grécia, todos os


países europeus dispõem hoje de uma renda mínima garantida geral ou de dispositivos
regionais (Espanha) ou locais (Itália). Portugal foi o último a estabelecê-la em 1996”
(EUZÉBY, 2004, p. 39-40).
A análise de experiências em curso em 2004 (podendo ou não estar articuladas com
outros benefícios sociais, cobrando ou não contrapartidas, sofrendo variações de um país a
outro) mostrava pontos em comum e divergentes. 27
Analisando dados da Cepal de 2009, Pereira (2010, p. 121) afirma que “19 países da
América Latina e Caribe desenvolvem PTC com cobertura superior a 22 milhões de famílias
latino-americanas e caribenhas, das quais 12 milhões estão no Brasil (Bolsa Família) e 5
milhões no México”. 28 Merece destaque o percentual irrisório investido nos PTC pelos
distintos países da América Latina em relação ao seu produto interno bruto: o maior
investimento não alcança 1%; o Brasil investe somente 0,41% do seu PIB. Trata-se, portanto,
de programas de política social de relativo custo, de forte retorno político, tendo em vista as
precárias condições de vida das populações a que atingem.
Há diferenças de sua realização nos diversos países, conforme já foi mencionado.
Porém, cabe enfatizar que

[...] nas diferentes experiências conhecidas, a renda mínima quase sempre representa
um diferencial entre a soma dos rendimentos de uma família (salariais ou não) e o
teto máximo do benefício, oficialmente estipulado. Além disso, tal beneficio não
deve impedir que o indivíduo procure uma ativa participação no mercado e
estabeleça elos de solidariedade familiar e comunitária (PEREIRA, 2000, p. 115;
grifos da autora em itálico e meus em negrito).

Esses programas de renda mínima geralmente são regidos pelas seguintes premissas:

focalização da pobreza; subjetividade do direito (deve ser demandado pelo


interessado); condicionalidade (admite prerrogativas e contrapartidas);
subsidiariedade (é renda complementar); e sujeição do interessado a testes de meios
ou comprovações de pobreza (PEREIRA, 2000, p. 115; grifos meus).

Outra dimensão condicionadora do acesso aos serviços sociais, além da seleção


socioeconômica pautada nos critérios estabelecidos, refere-se à cobrança de uma contrapartida
para que o usuário continue a ser atendido. Em Portugal, a condição do acesso e permanência

27
Maiores detalhes podem ser encontrados em Euzéby (2004).
28
“ PTC” refere-se a programas de transferência de renda condicionados ou com condicionalidades.
47

ao rendimento social de inserção (RSI) refere-se à comprovação de que o indivíduo esteja


procurando emprego ou impossibilitado de trabalhar. 29
Em vários países europeus, a contrapartida vem sendo justificada ou legitimada
através do discurso da autonomia do sujeito. Hoje se fala, na Europa e em Portugal, em
“políticas ativas”, “Estado ativo”. Como bem explica Cabral (2010, p. 3):

A expressão “ativo” remete, inevitavelmente, para a noção familiar nos países da


União Europeia de “políticas ativas”, segundo as quais os Estados se propõem
estimular a proatividade dos cidadãos objeto dessas políticas, no sentido de, por
assim dizer, eles “ajudarem a si próprios”, em suma, responsabilizando-os em
derradeira instância pelos seus fracassos, como tem sucedido tipicamente com as
chamadas políticas ativas de desemprego.

Através de observação e análise do processo de acesso versus seletividade atual do RSI


em Portugal, pudemos perceber que não está havendo somente a prova de meios de
subsistência, fundada em critérios de natureza socioeconômica, mas também prova e
avaliação de atitudes. Não basta mais o indivíduo provar que não tem rendimentos ou meios
para suprir suas necessidades; agora, será preciso estar inscrito também na bolsa de
empregos. 30 Isso demonstra que a seletividade tem aumentado e que, portanto, a forma de
acesso retrocede à meritocracia e perde a noção de direito na direção da universalização do
acesso, como já comentei. Vale, no entanto, destacar que o RSI é programa de Estado: por
conseguinte, todos os demandantes que preencherem o perfil delimitado terão acesso.
Em relação ao Brasil, foi criado em 2003 o Programa Bolsa Família (PBF), unificando
quatro programas já existentes: o Bolsa Escola, o Bolsa Alimentação, o Auxílio Gás e o
Cartão Alimentação. O PBF prioriza as famílias como unidades de intervenção, sendo
destinado àquelas que se encontram em situação de pobreza ou de extrema pobreza. O critério
de seleção é fixado a partir de determinado patamar da renda familiar, como todos os demais
programas semelhantes.

Ao unificar os programas de transferência monetária, o PBF incorpora as diversas


condicionalidades exigidas nos programas anteriores, sendo que a oferta de serviços
e o monitoramento das condicionalidades ficam a cargo dos municípios. Cabe a
famílias beneficiárias do PBF manter as crianças e adolescentes na escola, cumprindo
exigência de 85% de frequência escolar. As famílias também devem estar vinculadas
aos serviços de saúde para o acompanhamento de crianças de zero a seis anos, das

29
A pensão social, instituída “tardiamente” em 1974 em Portugal, foi uma medida de proteção social de base não
contributiva, ou seja, sem a contrapartida da contribuição anterior ao sistema de seguridade. É um ancestral do
RMG e do atual RSI. Em 1996, o RMG foi implantado em Portugal, o último país europeu a adotar essa proposta. O
RSI de Portugal inspirou-se no modelo francês. Ver Branco (2001, 2004a, 2004b).
30
Essa cobrança como contrapartida do RMG está presente na proposta de vários países europeus.
48

gestantes e nutrizes em programas de saúde específicos estando prevista ainda a


participação em atividades educativas sobre saúde e nutrição (MONNERAT et al.,
2007, p. 1459).

Não é estipulado o tempo de permanência das famílias neste Programa, mas os


motivos para o desligamento do atendimento são claros, 31 destacando-se como um deles o não
cumprimento das condicionalidades. É um programa de âmbito nacional, mas é no município
que são fiscalizados e gestadas as contrapartidas. A condicionalidade nesse sentido constitui
mecanismo de controle para a permanência do usuário no programa.
Merece destaque que a consequência política do estabelecimento de mecanismos de
controle das políticas focais carrega o sério risco de haver um retorno aos

[...] vícios arcaicos e anacrônicos, como os constrangedores e vexatórios testes de


meios (comprovação compulsória de pobreza); a fraudemania (mania de ver cada
pobre que recorre à proteção social do Estado como fraudador); condicionalidades
ou contrapartidas, como se o alvo da proteção tivesse alguma falta pessoal a expiar;
e o estigma, que transforma cidadãos de direitos em incômodos “dependentes” da
“ajuda” (PEREIRA; STEIN, 2010, p. 116; grifos das autoras).

Para contornar a crítica a essa tendência estigmatizadora de utilizar como parâmetros


dos programas de transferência de renda a condicionalidade e a seletividade, várias propostas
têm sido elaboradas. Dentre tais propostas, Pereira (2000, p. 115-118), referenciando-se em
Lavinas e Varsano (1997), destaca três.
A primeira refere-se “à defesa da renda de cidadania” ou “renda básica, assentada no
critério da incondicionalidade do benefício, por razões éticas e de justiça social”. Dirige-se
para a defesa da garantia de todo cidadão ter o acesso a um rendimento básico, sem
condicioná-lo a cobranças de contrapartidas, como “procurar emprego no prazo de alguns
meses, assistir a palestras ou reuniões ‘educativas’, estudar, etc., dissociando, assim, o
benefício de lealdades, de culpas, de sacrifícios, de suspeitas, de obediências e, portanto, do
estigma” (PEREIRA, 2000, p. 115). Essa proposta carrega a ideia radical de entender os sujeitos
de direitos como credores da enorme e histórica dívida pública, não devedores “manipuláveis
e oprimidos, ou quando não reféns dos caprichos e da arrogância da ajuda institucional”
(PEREIRA, 2000, P. 116). Tal perspectiva se contrapõe à ideologia e à prática do workfare.
Ressalte-se que o denominado workfare apresenta-se no discurso como forma de
valorização do trabalho e da integração social, mas, de fato, refere-se à velha visão liberal e
conservadora de que todos os beneficiários têm que pagar pelo que recebem, para que não

31
Contidos na Portaria Interministerial nº 551, de 9/11/2005.
49

caiam na passividade. O pagamento pode ser feito “aceitando a oferta de um emprego público
que lhe é imposta, ou, ainda, realizando tarefas ou serviços determinados pelo programa, em
troca da ‘ajuda’” (PEREIRA, 2000, p. 116); a autora ressalta que essa “prática de proteção social
referenciada na cobrança de respostas (induzidas) do beneficiário não é, portanto nova, apesar
do nome de efeito — workfare — que adotou, por oposição ao welfare”.
Pereira (2000, p. 116) — ainda apoiada em Lavinas e Varsano (1997), que, por sua
vez, citam Roche (1992) — ressalta que existe uma vertente dessa primeira posição que apoia
apenas parcialmente essa proposta, uma vez que, “apesar de encampar a reação contra a
incondicionalidade e o workfare, aceita o critério da seletividade ou a focalização de uma
renda básica (parcial) da pobreza” (grifos da autora). Refere-se à vertente que concebe a renda
mínima como imposto negativo, como a adotada na América do Norte. Essa forma opta pelo
critério da renda familiar (não da pessoal) como unidade de referência e visa “manter baixas
as demandas da população pobre por gastos sociais públicos sem necessariamente redistribuir
renda ou riqueza” (PEREIRA, 2000, p. 117).
A segunda proposta é constituída pela aceitação do workfare e da condicionalidade.

Por considerar que a não imposição de condições atenta contra a ética do trabalho e
incentiva o assistencialismo. Assim, em vez de a contrapartida do beneficiário ser
encarada como um mecanismo negativo de controle institucional, deve ser vista como
uma forma de valorizar o trabalho e a integração social. [...] entendem que, mesmo
havendo sanções contra os beneficiários se recusam a dar algo em troca da ajuda, a
contrapartida funciona mais como um direito do que uma obrigação ou constrangimento.
É dir-se-ia, uma coação para o bem, para valorizar o trabalho e os direitos a ele
vinculados e, portanto, um ato moralmente defensável (PEREIRA, 2000, p. 117).

A terceira proposta apresentada atravessaria as duas anteriores e teria uma


identificação com a perspectiva da justiça redistributiva:

[...] além da renda, privilegia outros mecanismos de proteção social básica (e não
mínima). Partindo do entendimento de que a universalização dos serviços sociais
não estaria necessariamente subordinada ao mercado de trabalho nem a esquemas
contributivos, a proteção social básica, que incluiria programas de manutenção de
renda, privilegiaria o status de cidadania como prerrogativa de todos, em oposição
aos contratos sociais apoiados na capacidade contributiva de cada um (em dinheiro,
tarefas, serviços, lealdades, sacrifícios) (PEREIRA, 2000, p. 117; grifo da autora).

Por fim, a autora conclui que tanto a primeira quanto a terceira proposta habitam o
“plano das utopias”. E considera que, de fato, os esquemas europeus de renda mínima
garantida começaram o debate, dando ênfase à renda básica ou de cidadania; contudo, esse
debate logo foi abandonado, e passou a se desenvolver a ideia da renda mínima garantida, que
50

“consiste na transferência do valor monetário diferencial já mencionado, acompanhada de


testes de meios rigorosos, da exigência de inserção do beneficiário no mercado de trabalho e,
consequentemente, do cultivo do famigerado estigma” (ABRAHAMSON, 1994, apud PEREIRA,

2000, p. 119). A autora considera ainda que, enquanto a renda básica ou de cidadania
significaria uma ruptura com essa tendência, a renda mínima garantida vigente recupera e
reforça que na Europa prevaleceram “os velhos critérios de elegibilidade e de gestão pública
que vêm transformando a assistência social em ‘armadilha da pobreza’” (FERREIRA, 1997,
apud PEREIRA, 2000, p. 119).
Diante do exposto, mais uma vez reiteramos a atualidade do debate sobre a seleção
socioeconômica, até porque esse assunto vem acompanhando a discussão da proteção social e
da desproteção social desde o século XVI, sendo necessário encampar, neste debate acerca da
seletividade de acesso aos serviços e benefícios sociais, o equacionamento das questões
relativas às contrapartidas ou condicionalidades, pois na atualidade estas se apresentam de
forma quase inseparáveis. No Brasil, a cobrança não tem sido o trabalho, mas são outras as
contrapartidas exigidas.
51

CAPÍTULO 2 — EM BUSCA DOS FUNDAMENTOS DA SELETIVIDADE


PRESENTES NA EMERGÊNCIA E INSTITUCIONALIZAÇÃO DO SERVIÇO
SOCIAL

Para entender a seleção socioeconômica — como condição e forma de acesso aos


serviços e benefícios sociais —, é necessário investigar os fundamentos-pilares que lhe dão a
devida sustentação, desde as suas origens. Trabalharei com a tese de que o Serviço Social,
surgindo como profissão no final do século XIX para dar respostas profissionais às expressões
da questão social, 32 recebeu, desde o início, demanda institucional para realizar processos
seletivos de acesso aos serviços sociais. Essa constitui condição e forma obrigatória de acesso
ao atendimento, independente do nome historicamente atribuído aos serviços sociais. 33
Meu intento não se limita à apresentação de uma sucessão de fatos, denominada de
história da profissão, mas é governado pela busca de compreensão de como e por que a
profissão, ao se apossar de fundamentos teórico-metodológicos e ético-políticos (que são
sempre sócio-históricos), foi adquirindo determinado jeito de ser e proceder para, assim, dar
visibilidade à verdadeira dimensão da seletividade para o acesso aos serviços sociais.
Netto (1996a) aqui comparece, referenciando com sua análise essa premissa inicial.
Diz o autor que, para fazer entender a origem do Serviço Social como profissão, é preciso
anunciar sempre a concepção de história que é assumida, já que há diversas elaborações
teóricas e ideológicas envolvidas. Trata-se de demonstrar em que medida a
“profissionalização do Serviço Social vincula-se decisivamente, em última instância, à
dinâmica da ordem monopólica” ( NETTO, 1996a, p. 69; grifo do autor) do momento histórico
em que esses fatos se deram. Não se trata apenas de registrar uma sucessão cumulativa de
fatos, como é o caso do que se configurou designar como protoformas do Serviço Social:
“evolução da ajuda”, “racionalização da filantropia”, “organização da caridade”.

32
Com Iamamoto e Carvalho (1985, p. 77), entendemos a questão social como “não sendo senão as expressões
do processo de formação e desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da
sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado. É a manifestação,
no cotidiano da vida social, da contradição entre o proletariado e a burguesia, a qual passa a exigir outros tipos
de intervenção, mais além da caridade e da repressão”.
33
Neste trabalho, a expressão “Serviço Social” será utilizada para designar a instituição que dá suporte e
legitimidade à prática da profissão dos assistentes sociais no âmbito teórico-metodológico, ético-político e
técnico-operativo, e abriga o assistente social como um sujeito coletivo. Os termos “serviços sociais” serão
utilizados para designar auxílios e benefícios oferecidos pelos programas assistenciais e de política social,
vinculados e veiculados pelas organizações sociais. Assim, quando me referir à profissão, os vocábulos
aparecerão com as letras iniciais maiúsculas.
52

Como dissemos, o Serviço Social construiu-se inicialmente sobre e a partir das formas
existentes criadas pela filantropia e pela caridade, mas isso não pode ser tratado numa
perspectiva de mera evolução.
Como bem conclui o autor,

[...] não é a continuidade evolutiva das protoformas ao Serviço Social que esclarece
a sua profissionalização, e sim a ruptura com elas, concretizada com o deslocamento
aludido, deslocamento possível (não necessário) pela instauração,
independentemente das protoformas, de um espaço determinado na divisão social (e
técnica) do trabalho. Substantivamente, a ruptura se revela no fato de, pouco a
pouco, os agentes começarem a desempenhar papéis executivos em projeto de
intervenção cuja funcionalidade real e efetiva está posta por uma lógica e uma
estratégia objetivas que independem de sua intencionalidade (NETTO, 1996a, p. 68-
69; grifos do autor).

Destas afirmações derivamos duas diretrizes importantes para a elaboração de nossa


análise nesta seção. A primeira é a de tomar o Serviço Social dentro de seu contexto particular
na divisão social e técnica do trabalho na sociedade. A segunda é a da identificação da
existência de lógica e estratégia objetivas da profissão, independentes da intencionalidade de
seus protagonistas.
Nessa perspectiva de compreensão do Serviço Social, aparecem claramente duas
dimensões indissociáveis e interdependentes da profissão, ao se apresentarem como duas
expressões do mesmo fenômeno: “como realidade vivida e representada pela consciência de
seus agentes profissionais e que se expressa pelo discurso teórico-ideológico de seus
agentes”; e como “atividade socialmente determinada pelas circunstâncias sociais objetivas
[...], ou seja, como o Serviço Social existe independente da vontade e/ ou da consciência de
seus agentes” (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 73; grifos meus).
Na emergência da profissão, o Serviço Social é apreendido como realidade vivida e
pensada nos marcos do conservadorismo. A apreensão como atividade socialmente
determinada pelas circunstâncias sociais objetivas, situado na divisão sociotécnica do
trabalho, tem início com a incorporação da vertente marxiana. Nesse sentido, a obra Relações
sociais e Serviço Social no Brasil (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985), publicada em primeira
edição no ano de 1982, é seminal.
Do ponto de vista de atividade socialmente determinada, a origem do Serviço Social
como profissão pauta-se pelo fato de que havia uma demanda social a ser respondida. Ou seja:
a nascente sociedade burguesa demandava o trabalho de agentes profissionalizados de
intervenção na realidade social. Tinham estes como objeto de trabalho as expressões da
53

questão social, que a cada momento mais se evidenciavam, sendo preciso mantê-las sob
controle para que não viessem a colocar em risco a ordem do capital.

A constituição do mercado de trabalho para o assistente social pela via das políticas
sociais — e recorde-se que aqui fazemos referência às políticas sociais do Estado
burguês no capitalismo monopolista — é que abre a via para compreender
simultaneamente a continuidade e a ruptura, [...] que assinalam a profissionalização
do Serviço Social (NETTO, 1996a, p. 71).

Trata-se, na perspectiva da mesma forma presente em Iamamoto e Carvalho (1985), de


entender o Serviço Social nas relações sociais, de acordo com o lugar que ocupa na divisão
sociotécnica do trabalho. Dá-se a incorporação do assistente social às organizações sociais
existentes na condição de assalariado, como seu funcionário e, portanto numa relação de
subordinação, agora na figura do contratado, não mais do voluntário. Esse contrato regerá
então a relação.
Surge a questão inerente ao profissionalismo e, consequentemente, à exigência de
formação e qualificação técnica para lidar com as situações de seu objeto de intervenção: sua
concreta formação implicará buscá-la, aproximando-o das fontes da teoria social, no sentido
de compreender os fundamentos da sua ação.
Nesse momento, no caso do assistente social, na persecução desse caminho,

de uma parte, recuperam-se formas já cristalizadas de manipulação dos


vulnerabilizados pelas sequelas da “questão social”, assim como parcela de seu lastro
ideal (ancorado no pensamento conservador, que aporta elementos para compatibilizar
as perspectivas “publica” e ”privada”) [...]. De outra, com a reposição no patamar das
políticas sociais, introduz-se-lhes um sentido diferente: a sua funcionalidade
estratégica passa a dimanar dos mecanismos específicos da ordem monopólica para a
preservação e o controle da força de trabalho (NETTO, 1996, p. 71).

Podemos assim afirmar que, desde o início da profissão do assistente social, foi
plasmada uma relação direta entre a prática do Serviço Social e o estabelecimento da política
social do Estado burguês. Falamos desta ligação estabelecida na era do capitalismo
denominada monopolista ou oligopólica, como resposta ao enfrentamento das sequelas e
expressões da questão social.
Dentro deste marco que é proposto para a análise histórica da profissão, examinarei as
formas assumidas pela prática profissional no tocante à questão da seletividade
socioeconômica em estudo. Acredito que este procedimento será capaz de levar ao
54

desvendamento, passo a passo, do caminho seguido, neste aspecto particular, pela


profissionalização no Serviço Social.

2.1. Os fundamentos da seletividade presentes na emergência e institucionalização do


Serviço Social nos Estados Unidos

De fato, recuperar os fundamentos da seletividade socioeconômica implica a


compreensão de um processo relativo à definição dos que possuem mérito para acesso aos
benefícios e serviços sociais, mediante comprovação da impossibilidade de satisfazer suas
necessidades com recursos próprios.
O nome amplamente definido para este procedimento é means test (teste de meios),
que inclui a investigação, por diversas maneiras, da veracidade da situação do indivíduo
quanto à carência alegada. O assistente social é o agente que, comprovando tal insuficiência, a
partir de estudos, emite seu julgamento e a aprovação do atendimento das solicitações,
mediante relatórios e pareceres, de acordo com as normas vigentes. A realização desta
requerida seleção exige sempre um embasamento conceitual, com decorrente definição de
normas e estabelecimento dos critérios operacionais, além da organização dos instrumentos
para sua concretização. Esse parece ter sido, ao longo do tempo, o caminho do acesso aos
serviços sociais.
Para o Serviço Social, a questão da seletividade da clientela a ser atendida em programas
e benefícios sociais pode ser traçada desde o trabalho de suas pioneiras mundiais. As
informações que pude colher, e que aqui são apresentadas, embora esparsas no tempo, permitem
verificar que nossa hipótese inicial sobre a presença do uso rotineiro e antigo de processos
seletivos, como forma e condição de acesso a benefícios e serviços sociais, confirma-se na
recuperação das atividades que as assistentes sociais tinham sob sua responsabilidade, desde a
origem da profissão. Profissionais que pertenceram aos primeiros tempos e seus comentaristas
mostram-nos essa preocupação presente na origem da história do assistente social.
Quanto a Mary Richmond, Ilda Lopes Rodrigues da Silva, estudiosa de seu pensamento,
ao apresentar e comentar a obra “Diagnóstico Social”, 34 publicada em 1917, assim abre seu texto:

34
A autora chama a atenção para o fato de que está se referindo à primeira parte da obra “Diagnóstico Social”,
intitulada “Evidências sociais”, que, por sua vez, é subdividida em cinco capítulos e que agora traz à baila o
primeiro capítulo, denominado “Origens”. Também destaca que, na tradução portuguesa dessa obra, o item
“Evidências sociais” está registrado como “Realidades sociais”.
55

Nesta parte inicial, ela [referindo-se a Richmond] trata da dimensão histórica do


trabalho baseado no “inquérito”. Percebe-se, logo na introdução, que o pensamento
das trabalhadoras sociais na Inglaterra era orientado por uma visão economicista,
baseada no liberalismo econômico e na sociologia de domínio positivista. Assim o
“inquérito geral” desenvolvido nas últimas décadas do século XIX estava
impregnado de um individualismo pragmático, não admitindo procedimentos fora
dos critérios. Seus princípios fundamentavam as normas do trabalho assistencial que
podem ser apresentadas resumidamente assim: é indispensável provar a
incapacidade de um necessitado; merece atenção verificar a inadequação do
solicitante em relação à sociedade. Por se vincular a estas normas, o papel da
trabalhadora social era reduzido a investigar a verdade da miséria, uma vez que
cada benefício era concedido em função da prova (SILVA, 2006, p. 3; grifos meus).

Richmond, segundo esta autora, teria até questionado a forma como os trabalhadores
sociais ingleses vinham realizando essa função.
Algumas referências a esse processo podem também ser encontradas em texto
disponível de Gordon Hamilton, autora norte-americana que, juntamente com Florence Hollis
e Helen Harris Perlman, foi amplamente conhecida dos assistentes sociais brasileiros.
Discípula de Richmond, ao tratar do direito à assistência social, em texto publicado nos EUA

em 1940, ela afirma:

Nos programas de bem-estar, o direito à assistência tem que ser comprovado,


explicando-se o processo estabelecido que deverá seguir certos trâmites, de acordo
com a natureza do pedido e necessidades do cliente. [...] Em todas as formas de
assistência pública, a elegibilidade segundo os estatutos e regulamentos impõe uma
estrutura através da qual se realiza a prática do Serviço Social (HAMILTON, 1982, p.
179; grifos meus).

Mais à frente, continua:

Quando o indivíduo recorre a uma obra social, passa por um processo de seleção.
O cliente faz um pedido; alguém se dirige a ele a fim de saber qual a dificuldade e se
pode ser tratada ali. Se não, ele deve ser encaminhado à Agência apropriada. A isso
se chama “matrícula”. Num hospital, a parte administrativa da matrícula chama-se
“admissão”; na Agência de Serviço Social, chama-se “plantão”. Não é comum
considerar-se o caso como tal, para fins estatísticos, senão após o plantão ou após a
seleção. No campo da assistência pública, como em outros mais, o “plantão” tem
por objetivo determinar se o caso pode ser aceito ou não, ou se o problema
apresentado pelo cliente pode realmente (e legalmente, se se trata de uma
instituição pública) ser ali resolvido (HAMILTON, 1982, p. 181; grifos meus).

O discurso de Hamilton especifica instrumentos e formas do processo seletivo que


implicam definição de seu objetivo: a comprovação da necessidade; o setor da instituição em
que sua realização está locada, o plantão; o nome do procedimento operativo, a triagem; o
agente responsável por esse procedimento, o assistente social; a autoridade quanto ao
56

veredito, o assistente social; a existência de bases conceituais e operacionais de aplicação


geral, regulamentos e estatutos, corporificados nas normas de elegibilidade aos serviços ou
benefícios pretendidos.
Silva (2006) confirma a realização do means test por trabalhadores sociais ingleses.
Nesse aspecto, mostra a posição crítica de Richmond quanto a sua realização. Acrescenta um
comentário sobre o fato de o Serviço Social de Casos ter tido outras bases de referência.
Richmond escreve a obra citada em 1917, nos EUA, mas reporta-se à prática dos
trabalhadores sociais ingleses das três últimas décadas do século XIX. Hamilton refere-se aos
EUA, e seu texto foi publicado em 1940.
Agora, torna-se necessário considerar mais detalhadamente quais são e de onde vêm as
referências, os fundamentos das ideias, das propostas e das práticas aqui expostas, que dão
sustentação à prática das organizações sociais privadas e públicas e ao Serviço Social.
Silva (1993), ao tratar da Organização da Caridade e do nascimento do casework nos
Estados Unidos (1887-1913), ajuda na tarefa de explicitar os fundamentos da seletividade. 35
Ela inicia sua análise, explicando que o crescimento industrial que sucede à Guerra Civil
norte-americana (1861-1865) fez emergir a pobreza e o conflito social de forma explosiva.
Com isso, ameaçou a estabilidade da ordem social, que não podia mais ser atribuída só aos
indivíduos e suas famílias, e acabou por provocar o aparecimento desordenado da caridade.
Anteriormente, o tratamento dado pelas organizações da caridade à pobreza nos
Estados Unidos, através do primeiro plano criado, propunha

a prestação de ajuda material, numa época em que a caridade já havia sido marcada
pela preocupação com a dimensão individual dos necessitados. Esta preocupação com
o indivíduo já se manifestara na fundação, em 1842, por Robert Hartley, da New York
Association for Improving the Condition of the Poor, criada para coordenar agências
privadas, investigar o aspirante à ajuda e torná-lo autossuficiente (SILVA, 1993, p. 11).

Essa explicação permite frisar que, em 1842 — mesmo antes da emergência da


profissão do Serviço Social nos Estados Unidos, em 1898, e que se constitui na primeira
matriz do Serviço Social no plano internacional —, 36 a ajuda da caridade já se realizava

35
Considero essa obra de Silva (1993) uma sistematização acerca do Serviço Social no seu nascedouro nos EUA.
Pautada na leitura dos autores da época e preservando os nomes dados ao Serviço Social e aos conceitos
utilizados nessa época, a autora destaca as contribuições de cada um deles. Esse estudo é tratado por mim como
fonte de registro histórico, ao me permitir localizar e explicitar os fundamentos que embasaram, na origem da
profissão, a realização do means test, ou atendimento mediante a comprovação da necessidade dos demandantes
dos serviços sociais.
36
A primeira escola de Serviço Social europeia foi criada na Holanda em 1899.
57

mediante a investigação do aspirante a ela, e que o objetivo pretendido era torná-lo


autossuficiente. Partindo dessa referência inicial, a autora avalia que

a distribuição desordenada de ajuda, própria do período em questão, caracterizou um


retrocesso, ao confrontar com o novo olhar sobre o indivíduo que emergira no
campo da filantropia. A ineficiência e o caráter meramente punitivo e repressor das
Leis dos Pobres, promulgadas com o intuito de proteger a comunidade contra as
demandas de seus pobres, dera lugar a uma nova estratégia filantrópica, centrada na
recuperação do indivíduo (SILVA, 1993, p. 11).

As Sociedades de Organização da Caridade, inspiradas na London Charity


Organization Society, surgem como resposta aos complexos desafios introduzidos pela
evidente pobreza e pela agitação social existente.
Nos EUA, a primeira Sociedade de Organização da Caridade, criada em 1870 na cidade
de Buffalo, importante centro manufatureiro do estado de Nova Iorque, mostra que essa
instituição, recuperando a noção de indivíduo, estabelece uma nova época da filantropia
naquele país. Essa forma de responder às expressões da questão social emergente, através da
chamada “organização da caridade”, multiplica-se rapidamente. Na virada do século, já
existiam tais organizações em 138 cidades norte-americanas.
Silva (1993, p. 12), ao observar que “as Organizações ‘refletiam o espírito de seu
tempo’ e que afetaram em todos os aspectos a vida americana no final do século XIX”, associa
o feminismo à filantropia moralizadora como uma aliança “tranquila” e “boa”: “[...] graças,
em grande parte, à emancipação feminina que eclodiu durante e depois da guerra civil, muitos
de seus agentes eram mulheres, configurando uma aliança entre um feminismo de promoção
da mulher e a filantropia moralizadora”.
Essas Sociedades, “na tentativa de organizar os recursos da comunidade e aliviar o
sofrimento da maneira mais eficiente e econômica possível, [eram similares] à monopolização
dos grandes negócios”, ou seja, se organizavam como “empresas”, pautando-se em dois
planos de ação: plano administrativo, que visava enfrentar a miséria de forma eficiente,
evitando a duplicidade de ações; plano de colaboração, tendo como horizonte a construção
“de uma civilização de costumes que se atribuiu o objetivo de ajudar as classes pobres,
moralizar seu comportamento e facilitar sua educação” (SILVA, 1993, p. 13).
58

Nessa forma de organização, comparecem as ideias de racionalização no uso dos


recursos existentes. 37 Por um lado, impedia-se que o indivíduo fosse duplamente atendido. Por
outro, destacava-se a educação da população no sentido da transmissão de novos valores, uma
vez que o indivíduo poderia apresentar comportamento considerado imoral.
A pobreza é vista e tratada como questão moral de âmbito individual, e a indigência é
percebida como punição infligida ao pobre por sua falta de esforço e moralidade,
consequência direta da preguiça e do pecado. Silva (1993), apoiada em Hofstadter (1965),
reforça com sua análise essas ideias, ao registrar que, nos Estados Unidos, nas três últimas
décadas do século XIX, a apropriação de teorias filosóficas e políticas construídas a partir do
pensamento de Darwin deram sustentação a essa visão do “necessitado de ajuda”. Este se
apresentava como destituído de virtudes e sujeito ao tratamento desumano com que a
população pobre era tratada nas organizações sociais. A autora explica que

a interpretação que confinou o pobre ao purgatório do fracasso social e tornou-o um


pária da sociedade foi reforçada pelos ensinamentos do filósofo político inglês Herbert
Spencer (1820-1903) e seus discípulos americanos, que tentaram aplicar as descobertas
de Darwin no campo da biologia ao pensamento social (SILVA, 1993, p. 13).

Considerando que a “teoria da evolução das espécies” de Darwin veio a se difundir


amplamente, consagrando a noção de seletividade natural, acreditamos na sua importância
para nossa discussão e procuramos aqui explorá-la em seu desenvolvimento.
Esta seletividade seria resultante da luta empreendida pelos seres vivos na natureza em
ambientes que, ao sofrerem alterações, passam a demandar novos quesitos para a
sobrevivência, exigindo daqueles seres uma adaptação. Como fruto da seleção natural, só
resistem os que podem apresentar mecanismos adaptativos adequados para conviver com as
novas determinações impostas. A partir daí, serão estes, através da reprodução biológica, que
transmitirão os seus “bons genes” à sua descendência, garantindo assim a continuidade da
espécie pautada nas novas condições. Há espécies que, nesse processo, são extintas; outras
permanecem fortes. A apreensão da lógica da seleção natural das espécies é transportada para
o mundo sócio-histórico e passa a ser referência para vários autores, dentre os quais Herbert
Spencer, no sentido de explicar a relação entre os homens e entre estes e a sociedade,
considerada como meio ou ambiente social.

37
Vieira (1970, p. 172) observa que, nos EUA, “a preocupação em bem aproveitar os recursos, em coordenar os
esforços, em não duplicar a assistência originou a criação dos ‘Fichários Centrais de Assistidos’. O primeiro foi
fundado em Boston em 1876”.
59

A transposição da lógica da interpretação da seleção natural para o mundo social como


mundo dos homens, que é histórico, 38 significa naturalizar o que não é natural. O homem,
decerto, é uma das espécies presentes na natureza, mas a esta não se reduz. O homem é um ser
social que, através do trabalho, transforma a natureza e cria a si próprio como ser histórico.
A naturalização de processos sociais traz como consequência o entendimento de que a
realidade sócio-histórica é o resultado de determinações que independem do homem e, portanto,
diante da qual não é possível fazer nada. 39 A desigualdade social, por exemplo, que é um
produto do modo de produção, passa a ser considerada como natural e fruto da seleção natural.
A noção de competição, tão presente no liberalismo, encontra-se relacionada à
interação social que se faz sob a direção da disputa, sendo esta voltada para vários objetivos,
tais como a conquista do alimento, do território, do parceiro sexual — e, em âmbito social, do
emprego e de bens, entre outros exemplos. Nesse quadro de referência, a agressividade, a
violência praticada é condição da luta pela sobrevivência do indivíduo e a dos seus
descendentes, no sentido de garantir o futuro da espécie, e instituindo-se, assim, em fator
regulador da densidade populacional, ao contribuir para evitar a superpopulação das espécies,
tendo em vista que os recursos em disputa são geralmente escassos.
Explicar e difundir a noção da desigualdade social como fruto da luta natural, mediada
pela competição, é ideologicamente mais interessante à manutenção da ordem social do que
enxergá-la como fruto da exploração de uma classe social por outra — ou, melhor, como fruto
da luta de classes. É de mais fácil compreensão associar os processos sociais aos processos da
natureza do que entendê-los para além da imediaticidade dos fatos, enxergando-os como
históricos. Do entendimento do mundo social como mundo natural deriva a concepção de
duas classes de indivíduos: os ganhadores e os perdedores. A burguesia apresenta-se como
expressão dos ganhadores.
Silva (1993, p. 14) referenda a lógica aqui explicitada e de forma resumida ressalta os
fundamentos significativos que deram a devida sustentação para se entender a intolerância e o
implacável controle assumido pelos agentes da caridade nos EUA diante dos “pobres”:

No campo social, o darwinismo converteu-se no baluarte do conservadorismo da


época, constituindo-se numa associação da doutrina do laissez-faire, da economia
clássica, com a lei da seleção natural do mais apto, da biologia darwinista, ambas as

38
Quando uma concepção filosófica-ontológica de homem é histórica, a essência dos fenômenos será buscada
“no próprio homem entendido como autor e construtor de sua própria história” (BARROCO, 2004, p. 15).
39
Refiro-me ao fato de que as determinações sócio-históricas não são eternas e imutáveis. E exatamente porque são
históricas envolvem contradições — e é exatamente essa característica que indica a possibilidade da mudança.
Contudo, para que ocorram, as transformações sociais não dependem da simples vontade imediata de alguns homens.
Entender o contrário implica uma concepção voluntarista, negando-se as determinações históricas.
60

doutrinas apoiadas na lei natural. Para os darwinistas sociais a competição era a lei
da vida logo, o remédio para a pobreza era a autoajuda. Afinal de contas, os pobres
eram os inaptos e protegê-los na luta pela existência apenas permitiria que se
multiplicassem, levando ao enfraquecimento das espécies e impedindo o plano da
natureza do progresso evolucionário para formas mais elevadas de vida social.

Os pobres são vistos como perdedores, desadaptados e fracos. Portanto, deveriam ser
eliminados, para que não transmitissem sua fraqueza à humanidade.

Spencer encarava o progresso como resultado de uma constante luta entre os seres
humanos, luta essa que tinha uma natural função seletora, baseada em fatores
biológicos e naturais: o fraco, o doente, o malformado, o ocioso, o imprudente, o
imprevidente — que não se adaptavam às formas de vida civilizada — deveriam ser
impedidos de se reproduzir, porque protegê-los socialmente era não só agir contra a
lei da natureza mas contra a lei do progresso (PEREIRA, 2000, p. 107).

Esse raciocínio ganha força quando é conectado à ética do trabalho, que consiste na
direção intelectual e moral disseminada pelo puritanismo de grande força no século XIX, na
consolidação da sociedade burguesa.

Trata-se de uma sociedade fundada no mérito de cada um potenciar suas


capacidades naturais. O liberalismo [...] combina-se a um forte darwinismo social,
em que a inserção social dos indivíduos se define por mecanismos de seleção
natural. Tanto que Malthus,40 por exemplo, recusava drasticamente leis de proteção,
responsabilizando-as pela existência de um número de pobres que ultrapassava os
recursos disponíveis (BEHRING, 2000, p. 24).

O pensamento de Spencer aproxima-se ao de Malthus, também amplamente aceito na


época. Para esses autores,

[...] não haveria porque criar sistemas de proteção social aos pobres, nem mesmo no
âmbito das instituições privadas, pois tal atitude impediria o processo de adaptação
social por meio do qual os indivíduos adquiririam a necessária capacidade para
participar de um mundo mais diferenciado e complexo. Portanto, só havia um tipo
de assistência que Spencer admitia: a que ajudasse o pobre a se autoajudar; ou, de
acordo com o popular provérbio chinês: “Em vez de se dar o peixe, deve-se dar-lhe a
vara de pescar e ensiná-lo a pescar” (PEREIRA, 2000, p. 107; grifo da autora).

Se cuidar de si mesmo pressupõe a detenção de meios para tal intento, então a noção
do indivíduo se ajudar surge como desafio, prova e até oportunidade de fortalecimento por

40
Para o pastor protestante inglês Thomas Robert Malthus, a ajuda aos pobres minava-lhes o espírito de
independência e incentivava a ociosidade. Estas justificações, segundo Pereira (2000, p. 106), fortaleceram
sobremaneira a ideologia liberal, que relacionava o trabalho às liberdades negativas e via o indivíduo como
detentor de um direito natural à liberdade, oposto ao direito artificial à proteção institucional.
61

meio do trabalho, como condição de sua subsistência. A autoajuda, a autossuficiência


pretendida pelas Organizações de Caridade têm o significado de que o indivíduo possa contar
unicamente consigo mesmo para sobreviver. Deveria ser capaz de se autossustentar e não
solicitar ajuda e quem a requer é porque é fraco e incapaz.
Diante do exposto, podemos perceber que é certo que a seletividade do acesso ao
atendimento não foi inventada pela profissão, mas o Serviço Social participa da sua realização
desde a sua emergência, tratando-a como se fosse natural a sua realização, sob as formas
antecedentes herdadas, realizadas segundo seus fundamentos.
Em relação ao atendimento realizado pelo assistente social e ao relacionamento que se
estabelece entre o assistente social e o “cliente”, Silva (1993) afirma, pautada em Robinson
(1939), que “o objetivo básico da caridade organizada é atingir o indivíduo” e “o controle do
pauperismo”. Pergunta, no entanto: qual é o olhar que seus agentes dirigiam ao indivíduo, para
diagnosticar, em cada caso, as causas da miséria?
Silva (1993) apoia-se em Trattner (1979) para responder e sustentar:

A preocupação com o indivíduo tornou-se a alma e a cabeça do movimento, na


medida em que elevou a “Caridade Científica” ao estatuto de uma atividade
superior, qualitativamente diversa da simples doação de esmola e de ajuda pública
que até então vinha sendo praticada. [...] A base desta nova ciência da terapêutica
social, que pretendia livrar a filantropia do sentimentalismo e da ajuda
indiscriminada, além de erradicar o pauperismo, era a combinação da prática das
friendly visitors 41 aliada ao uso do registro, da cooperação e da coordenação entre as
agências. Neste contexto, a ajuda material passou a ser combatida com veemência,
na medida em que se esgotava em seus próprios fins. Na melhor das hipóteses, era
um mal necessário, o “último recurso” destinado aos incapacitados de fazer face à
luta pela sobrevivência — velhos, doentes, crianças órfãs ou viúvas com filhos
dependentes (SILVA, 1993, p. 15).

A ajuda material é, nessa perspectiva, vista como “último recurso”. Que pretendiam as
organizações realizar com os demandantes de seus serviços? Silva (1993, p. 15) responde:

Os agentes da caridade organizada, ao contrário, tinham pretensões bem maiores.


Eles acreditavam que o pobre, mais do que esmola, necessitava de supervisão para
ajudá-lo a combater ou superar a intemperança, a indolência e a imprevidência. Por
isto mesmo orgulhavam-se de fazer vigorar o lema do movimento — Not alms, but a
friend —, a melhor tradução para o ideal de substituir a esmola pelo contato pessoal
entre o rico e o pobre.

A pobreza no contexto do Serviço Social norte-americano dessa época é concebida e


tratada partindo do princípio de que é de inteira responsabilidade do indivíduo fraco, que não

41
Voluntárias, pessoas que faziam as visitas domiciliares para as obras sociais.
62

lutou e que é, portanto, um perdedor. Então, fortalecer o espírito se colocará como um dos
horizontes do trabalho a ser realizado pelos profissionais.
Esse processo, que realiza a separação entre o “pobre” (como o incapacitado, o
desintegrado da sociedade, porque não trabalha e, portanto, não detém meios para sobreviver)
e o “trabalhador” (considerado como integrado à sociedade, por estar inserido no sistema
produtivo) desfoca a apreensão da pobreza como expressão da questão social, desvinculando-
a de seus fundamentos econômicos.
Nunes (2004) propõe a questão nos seguintes termos:

O Serviço Social como grupo profissional é reconhecido para julgar as ações dos
indivíduos e simultaneamente tratar estas mesmas ações que representavam uma
ameaça para a ordem social e o desenvolvimento industrial. O Serviço Social
desenvolve-se na perspectiva do controlo e cura. [...] O Serviço Social desenvolve-
se como um dos dispositivos privilegiados da Assistência Social para disciplinar os
improdutivos, integrando- os na sociedade produtivista e difundindo uma ética do
trabalho assalariado. Realiza simultânea e contraditoriamente objetivos de reparação
e promoção social. Contribui para a percepção dos problemas sociais
transformando- os em problemáticas [...] (AUTÈS, 1998, apud NUNES, 2004, p. 26).

O indivíduo é concebido não como genérico-humano, ou mesmo enquanto membro


integrante das classes sociais, mas como ser isolado, único, que se explica em si mesmo, em
que a personalidade e as características herdadas irão se constituir nas explicações básicas do
seu jeito de ser. Na medida em que o indivíduo não é visto como expressão de singularidades,
particularidades e universalidades e em relação com a totalidade social e em relação aos
demais homens, destaca-se a cristalização da expressão “cada caso é um caso”, que se refere
apenas à dimensão da singularidade do indivíduo.
Os agentes das Sociedades da Organização da Caridade, constituídos por mulheres de
prestígio social e econômico, atendiam os que necessitavam de auxílio a partir da investigação
das solicitações de ajuda, fazendo distinção entre merecedores e indignos pautada em
julgamentos morais. Após a seleção dos considerados dignos, a atuação dos agentes se dirigia
para apoiar materialmente e regenerar o caráter dos pobres, partindo do princípio de que “não
eram depravados por natureza”, mas imaturos (SILVA, 1993, p. 16).
Podemos perceber que os demandantes dos serviços sociais eram vistos como
indivíduos fracos, perdedores e preguiçosos e também como indolentes, imprevidentes,
imaturos e, sobretudo, perigosos. Era preciso controlá-los, porque poderiam contaminar
outros com seu jeito e a sua preguiça. Ou seja, o controle sobre o pobre se colocava como o
63

principal alvo da atuação. Controlar carrega o significado de dobrar o espírito, da


domesticação para evitar o alastramento de um mal.
A filosofia das organizações da caridade se pautava, por conseguinte, em visão
preconcebida acerca da pobreza, fundada no conceito moral individual da pobreza,
culpabilizando os próprios pobres por sua desgraça, ao considerar como uma falha de caráter
o indivíduo recorrer à ajuda, em vez de ir trabalhar para sobreviver. 42 “Além do mais,
baseava-se numa visão pessimista do homem, por considerá-lo fadado a se deteriorar
moralmente caso recebesse como presente o que lhe caberia obter à custa do próprio trabalho”
(SILVA, 1993, p. 17).
Embasada nessa lógica, a autora enfatiza que essa abordagem moral utilizada na
emergência da profissão justificava-se, uma vez que, embora houvesse interesse pelo
indivíduo, pouco se sabia, na época, acerca da personalidade humana.

Na verdade, usavam a “abordagem moral”, baseada em atitudes de julgamento e


valores de classe média, para distinguir entre o pobre merecedor e o indigno de
receber ajuda. Por isto limitavam-se a investigar o necessitado e, de vez em quando,
tentavam levá-lo a mudar de vida ou libertá-lo das más influências, pois
reconheciam o poder modelador do ambiente. [...] As causas da pobreza, por sua
vez, eram imputadas ao que mais tarde passou a ser considerado sintoma: a
intemperança, a incapacidade e a imoralidade (SILVA, 1993, p. 17).

Importante destacar que, se nessa época não se conhecia muito sobre a personalidade
humana, já se sabia muito sobre a luta pelos direitos humanos e sobre o indivíduo forjado na
luta de fazer a história, tendo em vista seus interesses. Já se falava de liberdade e de igualdade
perante a lei; já havia corrido muito sangue dos trabalhadores na conquista de direitos. 43
Para o Serviço Social, as demandas da população também não são vistas como
direitos, mas como manifestações de carências que precisam ser comprovadas com visitas e
estudos profissionais.
Tendo em vista a argumentação apresentada até aqui sobre os fundamentos que dão
sustentação à nascente profissão do assistente social, podemos afirmar que as profundas
contradições que a sociedade burguesa carrega se dirigem para reforçar a direção de sua

42
Schons (1999, p. 64) chama a atenção para o fato de que a Lei dos Pobres, enquanto assistência aos mais fracos, era
entendida como desestímulo ao trabalho, visto que a ética protestante que alimenta o surgimento do capitalista,
segundo Weber, entende que a salvação se dá pelo trabalho. Então, é preciso combater a ociosidade.
43
Abreu (2008, p. 184) destaca o fato de que, nos Estados Unidos, “[...] a ordem jamais sofreu a pressão de um
forte movimento operário, trabalhista ou socialista, que deslegitimasse os seus fundamentos, o reordenamento
capitalista desenvolveu-se sem necessidade de pactuar com um ‘inimigo’ potencial ou real, como ocorreu na
maioria das nações do ocidente europeu. [...] o processo de reprodução social norte-americano jamais precisou
transferir excedentes, na mesma proporção das nações europeias que enfrentaram a insurgência proletária”.
64

preservação, operando nos aspectos que geram desequilíbrios e disfunções, vistos como
naturais, culpabilizando os indivíduos que procuram ajuda pela sua própria situação. A
mesma sociedade capitalista que gera a riqueza gera a pobreza, pelos mesmos meios e
processos. Quando, porém a pobreza é vista e analisada de forma separada dos processos que
a produzem, pode se colocar como “questão dos pobres”, permitindo ser tratada como questão
de foro íntimo, privado, individual.
Nos textos de autores norte-americanos aqui citados, que tratam do nascimento do
Casework, podemos perceber, através das análises apresentadas acerca da conjuntura, que
essas são apreendidas de forma restrita, local, não abrangendo aquilo que se passava no
mundo. Da mesma forma, o Serviço Social é concebido em si mesmo, como se fosse possível
explicá-lo simplesmente pelas ações que os profissionais realizam.
A sistematização da prática, como teorização da prática, é, então, a reiteração do
existente e vista pelos autores como fato dado no cotidiano, no seu aspecto de repetição,
naturalizando os processos sociais.
Diante das análises aqui apresentadas acerca da fundação da “Caridade Científica” nos
EUA, podemos perceber que, no final do século XIX, naquele país, o acesso ao atendimento
nas organizações da caridade ocorria mediante processo seletivo, pautado em visão de
pobreza como questão de âmbito individual. Quer dizer: a seleção para o acesso era
individualizada, tratada como de foro privado, tratada como questão moral.
Os problemas apresentados pelo indivíduo na triagem de acesso serão avaliados à luz
da moral, para verificar se, de fato, ele é merecedor da ajuda ou se é indigno desta. Nesse
caso, podemos dizer que a seleção se dá mediante avaliação, embora já seja denominada por
estudo —. 44 ou seja, por estudo de caráter avaliativo pautado na comprovação da necessidade.
Silva (1993), citando Bruno (1964), pondera que a seleção, como fruto da
investigação, embora criticada na forma de sua realização, era necessária no atendimento.
Buscava-se a melhor forma de ajudar as pessoas:

[...] o processo de investigação era a pedra angular do “tratamento”, e embora


severamente criticado pela função “negativa” de separar o merecedor do indigno,
evitar a duplicidade de ações e detectar pedintes crônicos e impostores, seus
defensores vislumbravam no método a possibilidade de descobrir uma melhor forma
de ajudar as pessoas. Além disto, preocupavam-se não apenas em excluir, mas evitar
julgamentos inadequados que impedissem a compreensão das reais necessidades da
família. Em tais afirmações, identificamos o prenúncio do espírito do casework que
nos próximos anos se desenvolveria como um método de trabalho social com
indivíduos (SILVA, 1993, p. 18).

44
Importante distinguir que a análise é sempre substantiva e a avaliação, normativa, valorativa. Embora
caminhem sempre juntas, são distintas.
65

A autora sintetiza, então, que nos EUA, “até o final do século [refere-se ao XIX], os
três fundamentos do Serviço Social eram: o conhecimento dos fatos, a ajuda adequada para o
corpo e a supervisão moral para a alma” ( SILVA, 1993, p. 18).
Por outro lado, é preciso aqui considerar o trabalho realizado nos Estados Unidos por
Jane Adams (1860-1935), 45 como porta-voz de outra forma de trabalhar com a população.
Silva (1993) destaca que ela e seus adeptos criticavam duramente a prática dos agentes da
Caridade Organizada pela importância dada à investigação minuciosa e ao tratamento
individual. Consideravam os agentes desta caridade frios e sem emoção, muito impessoais e
avarentos, além de impregnados de espírito pseudocientífico (SILVA, 1993, p. 18).
Apesar do antagonismo inicial, havia semelhanças entre o Movimento da Caridade
Organizada e o das Residências Sociais, uma vez que “tinham concepções parecidas a
respeito dos direitos individuais e das relações de classe, [...] enfatizavam o sacrifício e a
solidariedade humana como expressão da necessidade de promover a harmonia entre as
classes sociais” (SILVA, 1993, p. 22-23).
A esse respeito, Martinelli (1997, p. 107) escreveu:

Mary Follet e Jane Adams, companheiras de Richmond, consideravam que a ação


social devia voltar-se para a harmonização das relações industriais, para a
administração dos conflitos sociais, portanto atuando em um nível mais global. A
tese de Richmond, mais reacionária, sensibilizava muito a burguesia, que entendia
que aquele tipo de prática respondia à função econômica da assistência, de modo
indireto, uma vez que a ação social individual, “seja reformadora do caráter”, seja
promovendo a melhoria das condições de saúde, contribuía para a recolocação do
trabalhador no mercado de trabalho.

Os dois grupos expressavam compromissos com o reformismo conservador. Mas é


necessário explicitar o que isso quer dizer.
Na virada do século XX, no contexto dos Estados Unidos, surge o denominado
Movimento Progressista, criando as condições para uma aproximação entre os Agentes da
Caridade Organizada e o Movimento de Residência Social, que passam a se engajar nas

45
Em 1889, Jane Adams fundou em Chicago a Hull House, ideia que se difundiu com muita rapidez pelo país. Por
volta de 1900, chegaram a ser criadas cerca de cem, subindo a 400 unidades em 1910. A Hull House era uma
proposta em que jovens de formação universitária, “oriundos de segmentos sociais mais abastados”, se dispunham a
conviver com as classes trabalhadoras, uma vez que não viam o indivíduo como ser isolado, mas trabalhavam com
a noção de solidariedade para tornar aquele local melhor. “Esta visão da sociedade levou à conclusão de que a ação
para ajudar algumas pessoas poderia ter um alcance mais amplo. Lamentavam o isolamento entre as classes sociais,
cuja barreira buscaram ultrapassar de modo conciliatório. Membros das classes média e alta mudaram-se para as
comunidades mais pobres das redondezas, com o propósito de conhecer de perto as condições de moradia e
trabalho destas comunidades, para então ajudá-las a melhorar tais condições” (SILVA, 1993, p. 22).
66

reformas sociais, assim como realizam atividades em cooperação, quando “começaram a


contratar e assalariar seus agentes e a reconhecer a necessidade de treiná-los, o que foi de
fundamental importância para o desenvolvimento do casework” ( SILVA, 1993, p. 23).46
Nos primeiros anos do século XIX, como desdobramento do trabalho realizado pela
Charity Organization Society, os primeiros assistentes sociais passam a se inserir no mercado
de trabalho. “Registra-se nos Estados Unidos a inserção em equipes de equipes de saúde,
tribunais de justiça, área educacional e hospitais” (CAMPAGNOLLI, 1993, p. 96).
Em 1915, como decorrência do crescimento do número de escolas de Serviço Social,
aumenta significativamente o número de assistentes sociais: só na cidade de Nova York já
existiam cerca de 4 mil, atuando profissionalmente em instituições públicas. “Desses,
seguramente a maioria realizava suas ações através da abordagem individual, valendo-se de
entrevistas e visitas domiciliares” (MARTINELLI, 1997, p. 111).
Quando o Serviço Social se institucionaliza nos EUA, ocorrem modificações em
relação ao entendimento da pobreza, que passa a ser vista não mais centrada no
comportamento moral do indivíduo, mas nas suas condições de vida. O termo caridade passa
a ser entendido sob o conceito de filantropia, “com sua conotação positiva na prevenção da
desordem social e na promoção do bem-estar social” ( SILVA, 1993, p. 26).
Afirmar que o Serviço Social norte-americano estava comprometido com o
reformismo social significa dizer:

Em certo sentido, a ideia que sustentava os reformadores sociais era antagônica ao


credo darwinista social, pois tinham o firme propósito de que salvar e prolongar
vidas era socialmente desejável. Não repudiavam a teoria evolucionista, mas
simplesmente reinterpretaram-na de modo a tornar-lhes útil. Argumentavam que não
se propunham simplesmente a promover a sobrevivência do menos apto, mas a
recuperar e reintegrar sua capacidade de ser útil. Assim sendo, substituíram a
“seleção natural” pela “seleção” racional (SILVA, 1993, p. 27).

46
O progressivismo, “um novo espírito político”, “tornou-se muito influente nos Estados Unidos entre o início
da década de 1890 até a entrada americana na Primeira Guerra Mundial, em 1917. Muitas pessoas que se
autointitulavam ‘progressistas’ viam seu trabalho como uma cruzada contra chefes políticos urbanos e barões
corruptos. A era foi caracterizada pela crescente exigência de uma regulação efetiva do comércio e da indústria,
um renascimento do serviço público e a expansão do governo para garantir que os interesses do país e dos grupos
pressionando por estas exigências. Quase todas as figuras notáveis do período, seja em política, filosofia,
educação ou literatura, estavam conectadas, ao menos em parte, com o movimento reformista. [...] O impacto
profundo de escritores ditos ‘progressistas’ incentivou certos setores da população — especialmente uma classe
média tomada entre uma guerra entre grupos trabalhistas e grupos de grandes industriais e comerciais — para
tomar ação política. Muitos estados aprovaram leis para melhorar as condições sob as quais pessoas viviam e
trabalhavam. Sob a crescente pressão de renomados críticos sociais tais como Jane Addams, leis contra o
trabalho infantil foram gradualmente criadas e fortalecidas, que aumentavam a idade mínima de trabalho,
diminuíam a carga diária de trabalho, restringiam trabalho noturno e requerendo atendência escolar” (disponível
em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_dos_Estados_Unidos_(1865-1918)->; acesso em 25 ago. 2012).
67

Nessa direção, as ideias de adaptação são substituídas pelas de reintegração, salvação e


prolongamento da vida dos clientes atendidos, assim como a prevenção da desordem social se
coloca como a direção da prática profissional.
O darwinismo social de Spencer passa a não mais responder às necessidades, ao não
dar conta sozinho da explicação da realidade social. Assim, outras referências são buscadas.
“As manifestações filosóficas do novo progressivismo encontram o pragmatismo de Willian
James e a filosofia pedagógica de John Dewey que respeitam a liberdade democrática”
(SILVA, 2004, p. 58; grifos da autora).
O quadro recessivo relacionado à crise econômica de 1929 faz com que aumente
expressivamente o atendimento de desempregados nas organizações públicas e privadas,
possibilitando que os cursos de Serviço Social estudem as reações dos indivíduos atendidos e
se utilizem de técnicas psicológicas “através de entrevistas planejadas, tecnicamente dirigidas
e minuciosamente relatadas para serem, em seguida, cuidadosamente estudadas” ( VIEIRA,
1970, p. 30). O Serviço Social passa, então, a reconhecer “a importância de fortalecer o
indivíduo na posição por ele ocupada, respeitando a sua personalidade e sua liberdade”,
(VIEIRA, 1970, p. 30), assim como a verificar e a cuidar da influência da personalidade do
assistente social na relação que se estabelece entre o assistente e o cliente.
É na década de 1930 que, no Serviço Social,

[...] foram introduzidas as teorias psicanalíticas no Serviço Social com indivíduos,


principalmente através da “escola funcional” (Escola de Serviço Social de
Filadélfia), cujas representantes eram JESSIE TAFT e VIRGÍNIA ROBINSON, discípulas
de OTTO RANK e da “escola diagnóstica”, liderada por GORDON HAMILTON e
FLORENCE HOLLIS , da Escola de Serviço Social da Universidade de Columbia, Nova
York, ambas adeptas das teorias freudianas. A supervisão de alunos e Assistentes
Sociais tornava-se mais sistematizada, recebendo também a influência de teorias
egocentralizadas (VIEIRA, 1982, p. 58).

Essa produção norte-americana é considerada por Vieira como grande impulsionadora


do Serviço Social em direção à cientificidade, embora não tenha atingido de maneira
significativa os países europeus.
Diante dos fundamentos pautados no darwinismo social que referenciaram e deram
sustentação à intervenção do assistente social nos primeiros passos da profissão nos EUA,

podemos claramente entender por que o respeito à personalidade e à liberdade do indivíduo


produziu tantos impactos na prática profissional e representou um avanço da profissão. Assim
como trouxe avanço à percepção de que a personalidade do assistente social interferia no
trabalho e na relação como o “cliente”.
68

O alargamento dos interesses dos assistentes sociais nos Estados Unidos visava à
qualificação de sua atuação, pretendendo responder às demandas colocadas pela sociedade
naquela conjuntura e é percebido por Silva (2004, p. 59) da seguinte forma:

A experiência dos norte-americanos de relação com os “necessitados” e a clara


percepção das influências ambientais sobre a pobreza permitem que aperfeiçoem-se
propostas de trabalho social. O período de “profissionalização” busca desenvolver
uma imagem profissional integrando as diversas formas de práticas de interesse para
o trabalho social: a reforma social, o trabalho de caso, a pesquisa, o trabalho com
pequenos grupos, as residências sociais e outras manifestações de elevação da
qualidade das relações sociais constituídas pelas pessoas.

O nascente “Serviço Social de Casos” se aprofundará, ao encontrar suportes teóricos


na teoria psicanalítica e na teoria de matriz positivista, e será com essas referências que o
Serviço Social se profissionalizará, institucionalizando-se primeiramente nos Estados Unidos,
através da organização da assistência social, da criação de escolas e da abertura dos primeiros
locais de trabalho para os assistentes sociais nas primeiras décadas do século XX.
A matriz positivista se colocará como suporte teórico-metodológico necessário à
qualificação técnica da intervenção. “Esse horizonte analítico aborda as relações sociais dos
indivíduos no plano das vivências, como fatos, que se apresentam em sua objetividade
imediata” (YAZBEK, 2009a, p. 147).
Essa perspectiva assimilada pelo Serviço Social dará a sustentação para a prática do
assistente social fundada em uma visão fragmentada, reiterativa do cotidiano, apontando para
mudanças no sentido dos ajustes, das adaptações, integrações e reformas.
O estudo realizado acerca da emergência do Serviço Social nos Estados Unidos, no
sentido da busca de referências sobre a realização da seleção socioeconômica, permite-me
afirmar que a seletividade do acesso ao atendimento das Organizações da Caridade já se
apresentava mesmo antes da emergência da profissão. Assim como a questão social era
tratada como questão moral, o acesso ao atendimento através de triagens e seleções também
se fundamentou nessa apreensão. Foi a partir dessas referências de pensar o social que a
seletividade e a forma de acesso passaram a se constituir como uma das atividades
realizadas pelo assistente social nas organizações sociais públicas e privadas então
existentes naquele país.
69

2.2. A aproximação do Serviço Social norte-americano e europeu

As profissões nascem para responder às demandas sociais, são criadas com determinada
utilidade social. Enquanto produtos históricos que são, podem se ampliar, reduzir-se ou mesmo
desaparecer no curso da história. Quando conseguem responder satisfatoriamente às demandas
sociais postas, tendem a se consolidar e se ampliar; quando não respondem, perdem a sua
utilidade e desaparecem. Assim também sucedeu com o Serviço Social.
O surgimento do Serviço Social deve ser localizado no cenário do desenvolvimento
capitalista, na idade do monopólio, “quando o Estado requer um profissional com
características executivas para a implantação de políticas sociais que permitam o
enfrentamento da ‘questão social’“ (PARRA, 1999, p. 96; tradução nossa).
No plano mundial, o Serviço Social nasce nos Estados Unidos, inspirado inicialmente
no modelo inglês da Caridade Organizada, conforme já tratamos anteriormente, e, a partir daí,
vai se consolidando e se expandindo. Nesse movimento, o assistente social passa a se
constituir em trabalhador assalariado que se insere em processos de trabalho. “O serviço
social não desempenha funções produtivas, mas se insere nas atividades que se tornaram
acólitas dos processos especificamente monopólicos da reprodução, da acumulação e da
valorização do capital” (NETTO, 1996a, p. 72).
A partir do seu nascedouro, vai adquirindo particularidades, ao assimilar específicas
influências nos diversos locais e países onde passa existir a profissão.
No sentido de continuar na explicitação de como a seletividade se apresentou na
emergência e na institucionalização do Serviço Social, extrapolando a discussão para além do
Serviço Social norte-americano, apresentarei uma breve incursão ao tema, através do destaque
de alguns elementos que contribuem para iluminar a apreensão do seu significado em um
plano mais internacional. Trata-se de tema muito complexo, porque envolve a explicitação da
história europeia, que, ao contrário da estadunidense, foi construída à custa de muito sangue
derramado, através das sucessivas e decisivas revoluções que acabaram por dar novos rumos à
história da humanidade, o que não será tratado no âmbito desse estudo.
Segundo Netto (1996a, p. 106), 47 “o desenvolvimento [...] do Serviço Social na Europa
ocidental prende-se a três fenômenos, aliás desconhecidos no outro lado do Atlântico: uma

47
Netto (1996a) realiza uma profunda e densa análise acerca de como se deu o a fusão ideológica e científica
entre o Serviço Social norte- americano e o europeu, no contexto em que o capitalismo se refaz, na sua fase
monopolista, tornando-se mais complexo, ao incorporar novas demandas, no sentido de ampliar a acumulação do
capital em um plano internacional. Martinelli (1997) também apresenta séria pesquisa sobre a emergência e a
institucionalização do Serviço Social norte-americano, europeu e brasileiro.
70

traumática herança de experiências revolucionárias, a forte presença de uma cultura social


restauradora e o peso específico da tradição católica” (grifos do autor).
Martinelli (1997, p. 65-66) aqui comparece, demarcando elementos significativos da
história europeia que, na conjuntura em que se gestava a Grande Depressão, 48 “a fusão dos
sindicatos nacionais, entre as décadas de 1850 e 1860, trouxe um novo impulso para o
movimento dos trabalhadores europeus, cuja presença política e social, para a grande
preocupação da burguesia, ultrapassava os muros das fábricas, os umbrais dos sindicatos”.
Segundo a autora, encontramos nessa época a população operária europeia

[...] vivendo uma vida minada pela doença, pela fome, pelas adversidades das
condições de trabalho, e habitando em locais insalubres e impróprios à vida humana,
a família operária tinha a sua expectativa de vida reduzida, sendo frequentes óbitos
de adultos, jovens e crianças. Em algumas cidades da Inglaterra, bem como da
França e da Itália, mesmo em momentos de prosperidade como forma os de 1840 e
1860, a generalização da miséria era tão intensa que chegava a atingir cerca de 20%
da população. Instaurava-se um clima de verdadeira “guerra social” que, como
sequela da febre do progresso e do lucro que dominava os donos do capital,
alastrava-se por todo o continente. Em alguns países, como a Inglaterra, a população
operária ocupava uma faixa de até três quartos da população, o que dava dimensões
muito amplas aos problemas da classe trabalhadora (MARTINELLI, 1997, p. 70-71).

Para fazer frente à organização operária, “burguesia, Igreja e Estado uniram-se em um


compacto e reacionário bloco político, tentando coibir as manifestações dos trabalhadores
eurocidentais, impedir suas práticas de classe e abafar sua expressão política e social”
(MARTINELLI, 1997, p. 66).
A autora computa que, como um dos resultados dessa união, “que representa os
interesses do capital”, é criada a Sociedade de Organização da Caridade, em Londres, em
1869, “congregando os reformistas sociais que passavam agora a assumir formalmente, diante
da sociedade burguesa constituída, a responsabilidade pela racionalização e pela normatização
da prática da assistência” (MARTINELLI, 1997, p. 66).
No final do século XIX, em um quadro de pobreza generalizada, o avanço político da
classe operária colocava sérios riscos à ordem do capital: ao mesmo tempo em que era criada
a riqueza, pelos mesmos meios era produzida a generalização da miséria, tornando-se
imperativo repensar a assistência social sob o prisma de sua racionalização.

48
Martinelli (1997, p. 65) explica que essa denominação refere-se a “uma crise histórica do capitalismo em
escala mundial, cuja vigência se situou aproximadamente entre os anos 1873 e 1896, interrompida por pequenos
surtos de recuperação em 1880 e 1888, e continuando a se manifestar organicamente até a década de 1930,
quando surge o capitalismo monopolista”.
71

Desde a era medieval [...] a assistência era encarada como forma de controlar a
pobreza e de ratificar a sujeição daqueles que não detinham posses ou bens
materiais. Assim, seja na assistência prestada pela burguesia, seja naquela praticada
pelas instituições religiosas, havia sempre intenções outras além da prática da
caridade. O que se buscava era perpetuar a servidão, ratificar a submissão
(MARTINELLI, 1997, p. 97).

Racionalizar a prática da assistência social, nesse contexto, significa atribuir-lhe uma


função econômica, ao colocá-la com a finalidade de garantir a expansão do capital sem
grandes entraves, assim como uma função ideológica, tão importante quanto aquela, ao
constituir-se como forma “tácita ou explícita repressão sobre a organização da classe
trabalhadora e sobre sua expressão política” (MARTINELLI, 1997, p. 99).
Na Europa, o Serviço Social, como profissão, surge para responder às expressões da
questão social, com a tarefa ideológica clara de controle social. Dos seus agentes espera-se a
“qualificação” e a “racionalização” da prática da assistência social.
Verdès-Leroux (1986) ajuda a entender como a assistência social se coloca como
prática fundada no conservadorismo, como um contramovimento diante dos valores da
modernidade, que tem a função ideológica de afastar a classe operária do socialismo.
Portanto, trata-se de prática desmoralizadora e desmobilizadora que pretende demonstrar a
inutilidade da revolução para se conseguir melhorar as condições de vida dos trabalhadores. A
assistência social, nesse sentido,

é concebida, financiada e conduzida por elementos da fração da classe dominante


despojada do poder político, após a derrota de 16 de maio de 1877: uma fração
constituída por grandes burgueses e aristocratas, agarrados às tradições autoritárias e
à religião, contrários à República ou adesistas resignados. Nesse período a
assistência social é, essencialmente, um assunto de mulheres, [...] esposas de
aristocratas que dominam os comitês de patrocínio — e capazes, assim, de atrair,
graças aos seus nomes, donativos e boas vontades — [...] Católicos, em sua maioria,
mas independentes da Igreja, que, na mesma época, multiplica as iniciativas
infrutíferas em direção ao mundo operário, os pioneiros da assistência social provêm
de um meio restrito possuidor de um nível de integração suficiente para conduzir a
práticas comuns, orientadas para um mesmo objetivo — se ainda não preciso, pelo
menos claramente indicado: assegurar a paz social, dentro do processo. “Derrubar as
barreiras”, alcançar a “fusão entre os homens”, a “união íntima e fecunda de todas as
classes”, a sua “interpenetração”: tal é o projeto, insistentemente lembrado, desse
grupo que alia, a um conservadorismo político profundo, um reformismo social
limitado — mas suficiente, apesar disso, para imprimir a marca de sua originalidade,
no momento em que outras frações da classe dominante apenas optam, face ao
despontar do movimento operário, em favor do reforço da coerção (VERDÈS -
LEROUX, 1986, p. 11).

A assistência social, nesse contexto, era entendida ora como forma de caridade, ora
como forma de assistência pública. Mas, de fato, estabeleceu-se a partir da crítica que dirigiu
72

a essas duas formas de assistência. Criticou a benemerência cristã por servir somente para
manter e reproduzir a pobreza, pela incapacidade demonstrada de não conseguir se opor à luta
de classes, assim como criticou a assistência pública por se colocar como impotente e nociva,
uma vez que se fundava nos direitos sociais:

Ao dar a entender que noção de direito é cega e, sobretudo, acanhada, a assistência


social camufla a sua queixa real: é perigoso levar em consideração os direitos, pois
isso equivale a admitir, ao mesmo tempo, que as dificuldades sociais não são apenas
fenômenos singulares e aleatórios (os desígnios da Providência), mas são, sim, a
consequência de processos socioeconômicos; e que a correção das desigualdades
mais gritantes não se situa na esfera da benemerência, e, sim, de uma negociação,
que é função de uma correlação de forças (VERDÈS-LEROUX, 1986, p. 11).

A autora analisa que a crítica dos resultados obtidos pela assistência pública e pela
caridade veio acompanhada da crítica de seus métodos que por vezes, foram
responsabilizados pelo fracasso das duas formas, definindo assim, seletivamente as
populações que ela se propunha a assistir através de ação educativa. Ao se constituir, a
assistência social aponta o define o seu alvo: a classe operária urbana, que passa a ser
diferenciada da “massa dos assistíveis”, significando que a assistência social abandona, nas
mãos da assistência pública e da caridade, os indigentes, ou outros “irrecuperáveis”, que
constituem um grupo improdutivo e, para ela, politicamente inofensivo ( VERDÈS-LEROUX,
1986, p. 11; grifos da autora).
Os grupos de Ação Social atuarão com programas de assistência dirigidos à classe
operária urbana. 49
Por volta de 1920, enquanto nos Estados Unidos as Sociedades de Organização da
Caridade lutavam para impulsionar “o processo organizativo dos assistentes sociais de forma
a tornar autônomo este novo agregado profissional, liberando-o da influência da Igreja
[protestante?], as europeias caminhavam em rota oposta, colocando-se a serviço desta
instituição [católica?]” (MARTINELLI, 1997, p. 113).
Nessa época, no continente europeu, a Inglaterra, que se apresentara inicialmente
como referência de intervenção junto aos pobres, vai perdendo sua liderança no âmbito do
Serviço Social.
Com o intuito de contrariar a orientação do Serviço social anglo-saxônico, “que
baseava a sua ação reformadora em conhecimentos científicos sem estar sob a dependência
doutrinária da igreja”, e visando recuperar sua hegemonia perdida com o advento da

49
Esses grupos se constituem em referências fundamentais da Ação Católica que se encontram na origem do
Serviço Social no Brasil.
73

modernidade, a Igreja desencadeia um movimento internacional, fundando a União Católica


Internacional de Serviço Social (Uciss) no I Congresso de Escolas, Associações e Assistentes
Sociais Católicas, em Milão, em 1925 (MARTINS, 1999, p. 275).
A Uciss realizará, até o final da Segunda Guerra Mundial, quatro conferências
internacionais, em que será reconhecida a necessidade de estabelecer um programa da
formação doutrinal de base dirigido aos agentes do Serviço Social, para lhes assegurar uma
visão de conjunto, visando à restauração da ordem cristã no mundo.
É na moral católica, nos ensinamentos da Igreja e nas encíclicas Rerum novarum,
divulgada por Leão XII em 15 de maio de 1891, e Quadragesimo anno, divulgada por Pio XI

em 15 de maio de 1931, que serão colocados os princípios que constituirão as bases morais e
políticas do Serviço Social. Martins (1999, p. 275) afirma:

[...] Para que as assistentes sociais “se devotem ao bem-estar dos seus irmãos e à
renovação da sociedade”. A Uciss em 1935 atribui grande importância às escolas,
empregando todos os meios possíveis para promover novas escolas de Serviço
Social nos países onde há necessidade delas, e coordena o esforço de trabalhadores
sociais e assistentes sociais das quinze nações onde já conta com filiados.

É na articulação desses processos que o Serviço Social europeu vai emergir e se


fortalecer sob forte influência da Igreja Católica, que, desejosa de difundir sua doutrina social,
assumirá um papel de estímulo à expansão de escolas pelo mundo para formar assistentes
sociais, visando à organização de grupos de Ação Católica.
As duas vertentes em pauta do Serviço Social, a norte-americana e a europeia,
começam a interagir com mais força a partir de meados dos anos 30.

Na vertente americana, a concepção evolucionista (de raiz spenceriana) apresentava-


se inteiramente diluída. O balanço da Era Progressista aparecia como francamente
anódino. [...] Por outra parte, o conteúdo do rigorismo ético também se esvaía na
cultura norte- americana: o American way of life estava se consolidando. Os
vínculos que enlaçavam a reforma e a reflexão social tornavam-se laços frouxos: o
pragmatismo convertia-se em instrumentalismo e operacionalismo. Paradoxalmente,
neste quadro que poderia sugerir uma precipitação do desenvolvimento profissional,
acentuando as preocupações sociocêntricas que existiam em germe e tenuemente nas
proposições de Richmond, ocorre um movimento de viragem, que tende a
psicologizar o projeto profissional. O giro não é tranquilo nem, muito menos
pacífico: desata confrontos entre os assistentes sociais. [...] É esse giro – que, em si
mesmo, não colide com os fundamentos do período anterior, que tinham por suporte
uma concepção de sociabilidade vigorosamente individualista — que vai facilitar a
interação com a tradição europeia, fundamente vincada pela redução da
problemática social às suas manifestações individuais, com hipertrofia dos aspectos
morais (NETTO, 1996a, p. 118, 119).
74

Em relação à vertente europeia, esta

[...] também registrara modificações — a mais significativa destas era, no seio do


campo católico a retomada do legado de São Tomás de Aquino. Estimulada
oficialmente pela alta hierarquia (mais exatamente, por Leão XIII, na encíclica
Aeterno patris), a construção da “nova escolástica”, o neotomismo. A sua síntese
social comparece claramente na reflexão de um de seus mais respeitados
elaboradores, Maritain (NETTO, 1996a, p. 121).

Do ponto de vista do sincretismo ideológico operado pelo Serviço Social em relação a


duas tradições em pauta, conclui-se:

Se o rompimento com o evolucionismo e a voga psicologista desobstruíram as vias,


na tradição norte-americana, para a interação com a tradição europeia, nesta
componente que favoreceu o processo foi a afirmação neotomista. [...] E os influxos,
naturalmente, foram de mão dupla: a tradição europeia abriu-se às técnicas e aos
procedimentos já desenvolvidos pelos norte-americanos (NETTO, 1996a, p. 123).

Diante desse quadro e na busca de referências sobre a seleção socioeconômica na


emergência e institucionalização do Serviço Social europeu, encontrei no registro de Vieira
(1982) sobre o I ICSW, ocorrido em Paris, em 1928, importantes referências que permitem
acercar-me de mais alguns elementos sobre os fundamentos da seleção socioeconômica
presentes nos primeiros passos da profissão, e será sobre esses elementos que passarei a tratar
a seguir, dando-lhes um devido contexto, ainda que de forma breve. 50
Trata-se de encontro que contou com a participação de 2.481 participantes de 42
países, dentre os quais registra-se a presença de oito países latino-americanos; o Brasil foi
representando por dois pernambucanos (um deles era chefe do Serviço de Saúde Mental e o
outro, tesoureiro da Cruz Vermelha Brasileira).
Em 1928, havia 111 escolas oficializadas de Serviço Social no mundo, ligadas a
universidades (EUA e Reino Unido), reconhecidas oficialmente pelo governo (Alemanha) ou
se constituindo como membros de associações de escolas (França, Bélgica). Além da Europa

50
A Conferência Internacional de Serviço Social foi criada em 1928 pelo belga dr. René Sand. Em Vieira (1982),
acerca do I ICSW, René Sand aparece citado inúmeras vezes, porque foi o presidente do encontro e responsável
pela elaboração do relatório final. Em 1967, a Conferência passou a ser denominada Conselho Internacional de
Bem-Estar Social. O nome original em inglês era International Conference of Social Work; o atual é
International Council on Social Welfare; ambos são designados pela sigla ICSW. Neste trabalho, utilizaremos a
sigla I ICSW para designar a Primeira Conferência Internacional de Serviço Social. Vieira (1982) apresenta
estudo sobre as 19 ICSW que se realizaram no período de 1928 a 1978, destacando em linhas gerais os principais
temas e polêmicas tratados nesses encontros. Em Castro (1987, p. 152) encontramos que “[d]esde o pós- guerra,
a Conferência Internacional do Serviço Social (CISS ) converteu- se em órgão consultivo das Nações Unidas, da
Unesco e da OMS. Em consequência, como a própria CISS o reconhece, ela renovou a sua busca de novas idéias e
passou também a proporcionar aos diferentes países a chance de compreensão das novas experiências,
favorecendo a internacionalização do Serviço Social”.
75

e da América do Norte, existiam ainda escolas no Chile, no Japão, na China e na Índia


(VIEIRA, 1982, p. 16, 33, 53).
No I ICSW,

[...] os debates enfocaram as novas formas de auxílio governamentais, exigidos pelo


desemprego em massa e os atritos entre serviços públicos e obras privadas, em
virtude das medidas agressivas às quais estas obras eram submetidas. [...] Serviços
sociais foram definidos como um complexo de esforços para “aliviar os sofrimentos,
reintegrar as pessoas em condições normais de vida, melhoras de condição social,
elevação de nível de vida” (VIEIRA, 1970, p. 59; grifos da autora).

A definição de Serviço Social que serviu de referência para as sucessivas discussões


foi a seguinte:

O Serviço Social inclui esforços visando aliviar os sofrimentos oriundos da miséria,


recolocar indivíduos e famílias em condições normais de existência, prevenir
flagelos sociais, melhorar condições de vida e elevar o nível de existência, seja pelo
emprego do Serviço Social de Casos Individuais, seja pelos Serviços Sociais
Coletivos, ou, ainda, pela ação legislativa e administrativa, assim como pesquisas e
inquéritos (VIEIRA, 1970, p. 33).

Nos registros, podemos constatar que o Serviço Social aparece ora como caridade, ora
como profissão fundada em conhecimentos científicos. Sand (1928, apud VIEIRA, 1982, p. 34)
afirma que “o Serviço Social inclui a caridade, os socorros, a filantropia; no entanto, os
ultrapassa e deles se distingue pelo seu caráter científico e metódico, pela procura das causas
e pela crítica constante de seu campo de estudo e de ação”.
No texto em pauta, a caracterização e as causas da “pobreza” são apresentadas de
forma confusa, apontando ora para a culpabilização dos indivíduos pobres pela sua condição,
ora para a vaga ideia de que são “vítimas de condições sociais generalizadas” ( VIEIRA, 1982,
p. 33-34).
No I ICSW, segundo a referida autora, ocorreu calorosa discussão em torno da questão
se o atendimento aos demandantes dos serviços sociais deveria ou não ser assumido pelo
Estado, em face ao monopólio existente dos serviços privados das obras sociais. Registro aqui
parte dessa discussão, porque, nos seus meandros, posso demarcar alguns fundamentos da
seletividade de acesso aos serviços sociais presentes.
Essa discussão foi registrada da seguinte forma:

O interesse pelos problemas econômicos como causas dos males e a emergência da


atuação do Estado no campo social levaram as Sociedades de Organização da
76

Caridade, na Inglaterra, “a se opor a uma legislação com pretensão à reestruturação


da atuação da sociedade sobre um plano econômico”; afirmavam que “serviços
prestados pelo governo, como sopas populares, cuidados médicos para escolares,
pensões para a velhice, medidas previdenciárias contra o desemprego, poderiam
destruir a independência do indivíduo e qualquer ação neste sentido, suprimir a
iniciativa, os motivos para esforços e até o elemento moral da existência
acreditavam que “estas medidas socialistas levariam as classes fracas a uma falta
total de iniciativa” (sic). Estas sociedades levantam-se assim contra a intervenção do
Estado no campo da legislação social e na prestação de serviços. É verdade que, nas
primeiras décadas do século XX, as intervenções do Estado no campo social eram
timidamente ensaiadas. Todo o campo da beneficência era ocupado por obras
privadas, em geral confessionais. O abade Viollet (França) defendeu calorosamente
durante a II CSW o monopólio dos serviços pelas obras privadas e definiu o Serviço
Social como “o meio de aplicar as regras da moral cristã aos necessitados” (VIEIRA,
1982, p. 34).

O discurso liberal e conservador da organização inglesa Charity Organization


Societies, fundada em 1869, aparece apoiado por representante da Igreja Católica, não sob os
mesmos argumentos, mas de que os serviços aos necessitados devem ser prestados pelas obras
privadas como meio de realizar a moral cristã. 51 O argumento básico apresentado pela
organização inglesa no combate ao atendimento público dirige-se às medidas consideradas
socialistas, como “a oferta de sopas populares, os cuidados médicos para escolares, as pensões
para a velhice e as medidas previdenciárias contra o desemprego”, sob a justificativa de que
“podem destruir a independência do indivíduo”.
Em meio a essa crítica, posso destacar argumentos expostos que apontam na direção
de como deveria ser o atendimento concretizado pelas entidades privadas: temporária
(esporádica, provisória, pelo mínimo tempo possível) para não tolher a iniciativa do
indivíduo (de não procurar trabalho) e mesmo para não torná-lo dependente do benefício
(acomodado a certa segurança). 52
Esse discurso institucional indica que o profissional, no processo de acesso aos
serviços da organização, deve atentar para que a ajuda aos demandantes do seu atendimento
seja dificultada, mínima, fiscalizadora, e que os serviços não devem ser tão bons, para que o
indivíduo não se acostume a ser bem atendido e venha a se acomodar à ajuda.

51
Nunes (2004, p. 24) explica que, na Charity Organization Society, havia duas abordagens, conhecidas como
“Relatório da Maioria” e “Relatório da Minoria”, correspondentes a duas tendências entre as quais, embora
representassem concepções distintas sobre o tratamento a ser dado à pobreza, não havia contradições de fundo,
uma vez que ambas convergiam para o atendimento do casework. Somente a tendência minoritária defendia que
a pobreza deveria receber tratamento de âmbito público e do Estado. A autora, ao final, conclui que em face dos
perigos criados pela sociedade industrial e à necessidade de maior proteção social, ambas foram se
encaminhando para a defesa da intervenção pública e pela afirmação dos direitos sociais.
52
Minha análise carregada nas cores deve-se ao esforço empreendido para desvendá-las no seu conteúdo, uma
vez que esse pensamento ainda é presente nos dias atuais entre os assistentes sociais, apresentando-se mesmo
como uma das tendências da profissão.
77

No entendimento presente na constituição do Serviço Social como profissão, é preciso


reconhecer que há um movimento de continuidade e ruptura, convivendo simultaneamente em
relação às denominadas “protoformas” da profissão. Os discursos apresentados pelas Charity
Organization Societies e pelo abade francês Violet na I ICSW constituem exemplos
reveladores da face do movimento que resiste à ruptura com a filantropia e, portanto, se põe
em defesa da continuidade da forma privada dos serviços sociais, marcada pela filantropia,
quando resiste à forma pública da nascente política social por ser considerada socialista.
Revelam, também, que o Serviço Social nascente no âmbito das organizações de
caridade e de assistência social herda a concepção presente nas suas operações dessa
perspectiva. Os dirigentes das organizações sociais são inclusive contra o Estado se ocupar da
assistência social.
Nesse período, confrontam-se movimentos de natureza conservadora contrários ao
modelo fundado na intervenção do Estado e movimentos que defendem a presença mais
efetiva do Estado, demonstrando que há diferentes modelos, projetos de mudança social em
disputa. “O Serviço Social na sua gênese identifica-se predominantemente com as formas de
regulação privada da ajuda social individual, centrada na reabilitação e educação dos
inadaptados e pobres para o trabalho” (NUNES, 2004, p. 23).
A política social, como resposta às expressões da questão social, nasce, portanto,
acompanhada de severas críticas, por ser considerada mais rígida e pior, com critérios de
atendimento mais definidos, se comparada com aqueles utilizados no atendimento das obras
sociais existentes nesse momento histórico.
Trata-se do pensamento conservador que resiste às mudanças, porque teme que o
futuro venha a lhe trazer significativas perdas. Por isso, tem os olhos voltados para o passado
e para a manutenção e reprodução da tradição e da sociedade da desigualdade social.
Nunes (2004, p. 23) comparece nesse debate:

Como movimento pioneiro, destaca-se na Inglaterra a COS — Charity Organization


Society —, considerada um dos berços históricos da profissão e que marca a
emergência e natureza do Serviço Social. As primeiras intervenções profissionais
realizadas nesse âmbito e na sequência das iniciativas de voluntários,
(predominantemente de mulheres), têm como referência a filantropia mais do que os
valores emergentes da modernidade de afirmação dos direitos sociais, mais a iniciativa
privada do que a iniciativa pública do Estado [...] Confrontam-se movimentos de
índole conservadora contrários a um modelo de regulação de maior intervenção do
Estado e movimentos defensores de uma regulação estatal mais interventiva. 53

53
Maria Helena Nunes é uma autora portuguesa que, segundo suas próprias palavras, se localiza em termos teóricos
como adepta de uma interpretação menos determinista dos limites do Serviço Social quanto a constituir-se como
instrumento dominante de reprodução de interesses hegemônicos (tomando como referência Netto e Iamamoto).
78

A palavra Serviço Social é, em 1928, empregada para designar tanto o conjunto de


serviços, como a maneira de agir do assistente social. 54 Nesse sentido, Balbina Ottoni Vieira
considera que não foi fácil para ela distinguir como os serviços assistenciais funcionavam
tecnicamente. A esse respeito, a autora diz que Sand

descreve as diversas situações socioeconômicas e políticas de vários países e liga


essas situações com a política social e a natureza do governo. A natureza do governo
e a política são dois fatores principais que influem sobre os serviços sociais; mas não
despreza os fatores culturais e as tradições que podem influir sobre a política
adotada (VIEIRA, 1982, p. 39).

Dentre os modelos de Serviço Social apresentados no I ICSW pelos representantes de


diversos países, encontro nos denominados “modelo francês” e “modelo alemão” importantes
referências sobre a seletividade do acesso aos serviços sociais, já inscritos na e como política
social. No “modelo francês de Serviço Social”, denominado esquematizado ou planejado,
encontram-se pautadas as ações realizadas pelos assistentes sociais no pós-guerra, dirigindo-
se ao aumento da população, através do incentivo à reprodução e à natalidade. A justificativa
apresentada é que a França, depois da Primeira Guerra Mundial, tinha uma população
diminuída em 1/3, devido às baixas da guerra que dizimou parte de sua população jovem,
trazendo como consequência a diminuição da taxa de natalidade, assim como havia zonas do
país que precisavam ser reconstruídas. O processo de industrialização acelerado que se
operava no país demandava mais mão de obra. Diante desse quadro sociodemográfico, o
governo, para conseguir reverter tal situação, propõe três esteios: a modernização da
legislação, a criação de serviços públicos e o aumento da natalidade.
A legislação como resposta a esse quadro incentiva o aumento da natalidade, através de
prêmios de gestação e de natalidade, vantagens para as famílias numerosas através da redução
de aluguéis em habitações populares, nas viagens de férias, nas conduções para o trabalho ou
para a escola, etc. Assim como se pretende difundir hábitos de higiene e a prevenção de
doenças, são também criados meios para se elevar o nível de instrução da população.

Permite pensar o Serviço Social como atividade que reflete interesses não só do projeto das classes dominantes, mas
também das classes e grupos socialmente oprimidos e desfavorecidos (NUNES, 2004, p. 25).
54
Conforme Campagnolli (1993, p. 97), a designação da profissão como Social Work (“trabalho social”) foi
proposta por Mary Richmond em 1916 e aceita por unanimidade na Conferência Nacional de Obras de Caridade,
Correção e Filantropia nos Estados Unidos. No continente europeu, o nome utilizado era Social Service
(“Serviço Social”). O nome oficial “Serviço Social” foi aprovado em 1928 na Primeira Conferência
Internacional do Serviço Social, ocorrida em 1928. Ressalta a autora que não se trata de mera questão de ordem
semântica, mas espelha as diferenças existentes entre a experiência americana e a europeia, fato que iria
contribuir para o caráter do Serviço Social brasileiro.
79

Os serviços públicos foram regulamentados nos mínimos detalhes e organizados em


níveis nacional e municipal, através de “nacionalização parcial para certas categorias de
necessitados: velhos, gestantes, famílias numerosas, crianças e vítimas da guerra” ( VIEIRA,
1982, p. 40).
As assistentes sociais (no texto também aparece no feminino) e as enfermeiras são
empregadas também nos serviços privados. Observa-se que esses serviços, em relação aos
públicos, “eram mais livres e mais flexíveis; em geral confessionais e muitos preocupados em
obter fundos para a sua manutenção. [...] Dedicam-se principalmente às famílias pobres e
procuram a cooperação dos interessados, reunindo-os em ‘Associações Familiais’” ( VIEIRA,
1982, p. 40).
O Serviço Social, nos serviços sociais públicos, era apreendido como método e

era realizado por enfermeiras visitadoras e por assistentes sociais, que


acompanhavam a clientela através de visitas domiciliares, velava pela aplicação das
leis (visita às gestantes para a frequência ao ambulatório pré-nupcial, por exemplo) e
pela boa utilização dos benefícios (visita às famílias que recebiam abonos
familiares). (VIEIRA, 1982, p. 41; grifos meus).

Nessa minúscula referência, que no texto da autora também é conciso, podemos


perceber que as ações do assistente social pautam-se basicamente na verificação e vigilância
da aplicação da lei, averiguando se suas prescrições estavam se realizando adequadamente por
parte dos beneficiados e se os recursos estavam sendo bem utilizados. Ou seja: as atividades
relacionam-se ao controle do indivíduo, tendo por referência as normas e leis. Como pano de
fundo, coloca-se a ideia da necessidade de boa gestão, visando à boa utilização dos recursos
que, por serem limitados, precisam ser bem empregados pelo beneficiário e bem
administrados pelo profissional.
Aqui se fala em observação empírica in loco como forma de verificação através de
provas, se estava havendo ou não boa utilização dos recursos recebidos.
Nesse momento da profissão, pudemos observar que toda a comprovação de
veracidade é empírica, certamente porque nessa época havia dificuldades no acesso à leitura e
à escrita. Então, a forma de registrar a comprovação da necessidade se dava através da visita
domiciliar; não havia comprovação através de documentos como nos dias atuais. É preciso
considerar, no entanto, que essas formas de proceder do profissional veiculam ideias voltadas
para a mudança na maneira de ser, de ver, de sentir e de agir dos indivíduos e representam a
presença do Estado que fiscaliza a vida privada das pessoas. Essas mudanças, no entanto,
80

poderiam e podem ou não ser orientadas para a integração à sociedade, dependendo da


direção social imprimida pelo profissional.
Aqui, a mudança pretendida se dirige à adaptação dos indivíduos às regras e normas
colocadas, utilizando-se do reforço que se expressa da seguinte forma: se o indivíduo obedece
às normas é “premiado” com a continuidade do atendimento; se não as obedece, é “castigado”
com o desligamento.
Esse parece se constituir em um pilar importante que vem dando sustentação à ideia da
seletividade. É preciso fiscalizar se o beneficiário está utilizando bem o recurso recebido, se
ele o está empregando em coisas “úteis à sobrevivência”, como forma de atendimento bem-
sucedido. Ou melhor: a seletividade como condição de acesso e depois o controle de
confirmação do bom uso como condição de permanência do usuário na lista dos atendidos
acontece mediante a verificação empírica de certos procedimentos.
A metodologia proposta visa ao controle sob a forma do bom uso do recurso, em
coisas “úteis”, “necessárias” ou “acordadas com o profissional” por parte do beneficiário. Esta
bem que poderia ser concebida como uma condicionalidade do atendimento; se o usuário não
agir de acordo com o esperado, ele poderá ser desligado do atendimento. Torna-se mesmo
uma obrigação do usuário cumprir essa regra.
Na execução das atividades apontadas, o profissional se apoiará “na ajuda individual,
ao nível das pessoas e das famílias, baseado em observações empíricas, no bom senso, no
interesse pelos outros e pelo amor ao próximo. Ao nível coletivo ou de estrutura, no setor
privado; o nome empregado era o de Ação Social” ( VIEIRA, 1982, p. 41; grifos meus).
Essa prática se pauta nas observações empíricas do profissional, que deve considerá-
las e tratá-las com “bom senso” e nos valores morais do assistente social, como “o interesse
pelos outros” e “o amor ao próximo”. Consta que, “na França, a individualização era aplicada
às gestantes para que comparecessem à clínica pré-natal, e às famílias que recebiam abonos
familiares para verificar a utilização conveniente dos abonos em benefícios das crianças”
(VIEIRA, 1982, p. 51).
Conforme podemos perceber, o processo de trabalho no qual se insere o profissional
impõe fortes limites à autonomia profissional, quando determina o que fazer com usuários,
mas antes conforma como deve ser a prática do assistente social com eles.
O “modelo de Serviço Social alemão”, denominado generalizado, consiste em outro
padrão de Serviço Social inserido em uma política social, cuja referência era a da Alemanha
sob o governo da República de Weimar. Pauta-se pela justificativa de que a Alemanha, ao sair
vencida da Primeira Guerra Mundial, apresentava um quadro de profunda recessão,
81

provocando uma descomunal inflação, acompanhada do fechamento da maioria de suas


indústrias e do desemprego em massa, sem considerar que havia perdido grande parte de sua
juventude em combate.
Nesse quadro social, o Estado intervém, uma vez que,

[...] outrora fenômeno individual, a miséria tornava-se uma catástrofe coletiva.


Recorrer à assistência não era mais resultado de uma vida desorganizada, mas a
sorte de qualquer um. Os recursos das obras privadas não mais existiam e só os
poderes públicos encontravam-se mais ou menos disponíveis. A concepção
sociológica da assistência, que lhe dava um papel preventivo, achava-se confirmada
com essas circunstâncias (SAND, 1932, apud VIEIRA, 1982, p. 42).

Face à abolição da monarquia e à proclamação da República, foi elaborado o


denominado Programa Unitário de Ação Social, constando na Constituição de Weimar, de
1919, nos 10 primeiros artigos, a extensão da previdência social e a assistência social a todos
os cidadãos. A operação desse Programa ocorreu descentralizadamente, e através dele são
oferecidos à população socorros materiais em natureza, cuidados médicos, habitações
populares, educação a crianças, reeducação aos prisioneiros liberados, colocação de mão de
obra e assistência jurídica e judiciária.
Há aqui nova institucionalidade, uma vez que o Programa Unitário de Ação Social é
orientando por quatro sistemas de assistência pública: os seguros sociais, as pensões
nacionais, a organização administrativa e a proteção aos jovens.
A assistência pública, embora extensa na proposta, é limitada na implementação,
justificada pela rigidez de seus regulamentos e pela precariedade de seus recursos. É por isso
que o governo passa a incentivar as obras privadas para completar o atendimento (VIEIRA,
1982, p. 43).
Aqui aparece embutida a ideia de subvenção às obras sociais para realizar a política
social, como plano de governo — ou, melhor: no plano governo já aparece a subvenção como
parte integrante de sua política de atendimento.
Os serviços públicos e privados recrutam os assistentes sociais para trabalhar nos seus
programas nas 36 escolas de Serviço Social existentes em 1928 na Alemanha.
As diretrizes de operação da política governamental prescrevem:

A assistência moderna deve criar valores e não apenas conservá-los. Sua finalidade
é fortalecer, no necessitado, a vontade e a saúde para que chegue a se bastar a si
mesmo, pelos próprios meios, pelo seu próprio trabalho. As formas de assistência
devem respeitar a dignidade humana; esta não desaparece com a miséria. A
assistência deve intervir em tempo oportuno, com meios suficientes e, sempre que
82

possível, de maneira preventiva. Sua atuação será assim de mais eficácia e mais
econômica, pois contemporizando, a necessidade piora e sua solução fica
impossível. É necessário retirar o auxílio a tempo, quando o assistido não mais
precisa dele, a fim de que não se acostume com as “muletas” que não mais lhe são
úteis. A assistência não pode ser uniforme: estuda o caráter específico de cada
situação, para deduzir quais os meios a serem empregados. Sua atuação principal
não é a distribuição do socorro em espécie, mas uma ajuda de homem para homem
(SAND, apud VIEIRA, 1982, p. 43; grifos meus).

Nessa breve citação — a qual, no texto que me serve de base, também assim se
apresenta, e que passo a analisar —, podemos perceber que a lei afirma os direitos e as
medidas desejáveis, já reconhecendo que, na prática, se tornam impraticáveis. Não se
realizam na totalidade, sob a alegação de que os recursos são poucos diante de tanta demanda
e (por que não dizer?) de que, diante de tão poucos recursos disponibilizados para atender a
tanta necessidade, têm que ser bem gastos, ou seja, naquilo que vale a pena.
Aparece aqui novamente a lógica de justificar a necessidade de seletividade no
atendimento social tendo em vista o abismo existente entre necessidade e recursos disponíveis.
Podemos, diante dessa apreensão, consequentemente, interpretar que a distribuição do recurso
dentre os necessitados deve ser feita de forma racional e que se expressará no dinheiro bem
gasto com os que comprovadamente necessitam de forma a atender o maior número possível de
indivíduos. A ajuda, portanto, terá que ser mínima para fazer render o pouco dinheiro/recurso
disponibilizado ao atendimento. Ou seja, espera-se que o recurso se multiplique, aumentando o
número de pessoas atendidas, portanto dividindo-o entre muitos demandantes, cabendo ao final,
uma parte ínfima para cada indivíduo solicitante.
Mas haverá nesse processo, pautado por regras estabelecidas, aqueles que não serão
contemplados com o auxílio e os que perderão o benefício porque desobedeceram as orientações.
Com base nesses pressupostos, aparecerá a necessidade da triagem, da seleção
socioeconômica de forma criteriosa, mediante a realização de estudos individuais pelo
assistente social para a comprovação da veracidade dos fatos alegados pelos demandantes dos
serviços sociais. Nessa lógica, os recursos devem ser bem distribuídos, de “forma justa” e
parcimoniosa, porque são poucos e, ainda, porque se forem generosos, se correria o risco do
indivíduo se acostumar a eles e ficar acomodado à ajuda. Depois será preciso o controle sobre
o bem gastar do usuário, repetindo-se, portanto, a mesma ideia do controle já apresentada na
oportunidade em que tratamos do modelo de política social francesa.
Nesse processo, as regras e critérios se constituem nas expressões do controle que
permitirão realizar o processo de inclusão–exclusão do acesso e exclusão do atendimento. São
83

eles que fornecem a intensidade do corte e do acesso; quanto mais detalhados, mais
dificultado se torna o acesso aos benefícios sociais.
Aqui comparece também uma forma de contrapartida, ao se exigir que o usuário faça
um “bom uso do recurso recebido”, pois, caso não cumpra essa regra, será excluído do
atendimento. Refere-se ao “bom gasto do pobre”, que deve se realizar com coisas úteis,
destinados à sua sobrevivência biológica e de sua família. E como, por vezes, se considera
que o usuário não sabe bem gastar, deverá receber uma prescrição para orientá-lo nessa tarefa.
A ação do assistente social na Alemanha, no período indicado, se pautava em diretrizes
da política social que bem poderiam ter sido elaboradas por assistentes sociais, indicando que a
assistência pública deve intervir nas situações em tempo adequado (leia-se: no tempo certo,
igual ao mínimo), com meios suficientes (leia-se: mínimo, nem mais nem menos) e de
preferência de modo preventivo (leia-se: que ele não venha a se repetir). Se assim se proceder, a
ação será mais efetiva e mais econômica (leia-se: sairá mais barata, custará menos).
Quando a situação é contemporizada (leia-se: protelada, delongada), a situação piora e
a solução fica impossível (leia-se: produzirá mais sequelas, custará mais caro e será de
controle mais difícil). Porém, é necessário se retirar o auxilio a tempo (leia-se: a tempo de o
indivíduo não se acomodar a ter uma vida um pouco melhor).
Conforme podemos aqui também perceber, a proposta da política social é formulada
de forma justa, apertada e enquadrada a forma de operá-la. Ou seja, enquadra ao mesmo
tempo o profissional e o usuário, cabendo ao profissional, que materializa a ação da ajuda,
realizar junto dela o controle indicado, junto ao atendido.
Podemos perceber que, para a ação profissional, todas as orientações e diretrizes são
apresentadas de forma muito apertada, arrochada, comprimida, diminuída, desconfiada,
dirigida, cobrada, vigiada, sob o manto de se fazer o bem ao próximo. Ou seja, o atendimento
do assistente social aos necessitados de assistência deve ser realizado com essas características.
Isso aparece na recomendação de que a pobreza deve ser tratada de forma controlada
enquanto é possível cuidá-la no âmbito do indivíduo. Senão, poderá expressar-se de forma
coletiva, tornando-se mais perigosa e de mais difícil controle. Individualizar a demanda se
coloca como a forma de controle mais segura, uma vez que os problemas sociais (leia-se:
expressões da questão social) serão tratados como problema do indivíduo e não de âmbito
social entendido como expressão da sociedade de classes.
Em relação aos “métodos” empregados pelo Serviço Social na Alemanha, pode-se
dizer que assumiam formas distintas nos seguros sociais, nas pensões e na assistência.
84

As duas primeiras decorriam do fato do indivíduo ter o direito advindo de sua


contribuição, portanto, estendia-se a todos que apresentassem a condição de contribuinte.
A terceira forma que se referia à assistência, fundada no Sistema de Elberfeld, 55 do
século XIX, consistia na concessão de auxílios de acordo com a necessidade apresentada pelo
indivíduo, regulamentada por legislação social assistencial.

O estudo de cada situação era obrigatório por lei para ser concedido o socorro ou
prestado o serviço. A lei se expressava através de “princípios federais” que
determinavam as condições, natureza e valor do socorro: “1) fornecer ao assistido meios
indispensáveis de sobrevivência; 2) torná-lo capaz de se sustentar a si mesmo; 3)
fortificar suas energias e vontade, de maneira que possa tomar conta de si mesmo e dos
seus; 4) a assistência deve intervir no momento oportuno e se retirar logo que o assistido
tenha se recuperado; 5) a organização pode intervir na situação do assistido, mesmo se
este não a procurou, a fim de evitar o agravamento da situação ou um prejuízo à
comunidade; 6) a avaliação das necessidades não deve obedecer a um esquema rígido,
mas tomar em conta as circunstâncias de cada caso”‘ (VIEIRA, 1982, p. 51).

Aqui se reafirma mais uma vez o acesso mediante a comprovação da necessidade,


cabendo ao profissional avaliar suas necessidades, considerando as “circunstâncias de cada
caso” dentro de um esquema flexível, a partir dos seis pontos indicados que se constituem em
referências para a concessão do auxílio. Observe-se que o montante em natureza ou espécie
fornecido ao demandante visa atender suas necessidades indispensáveis. Ou seja, reduzido ao
mínimo, mas definido a partir do estudo da situação apresentada por cada indivíduo necessitado.
Aqui se encontram claramente expostos os elementos do estudo socioeconômico
avaliativo de corte seletivo. Ou melhor: a seletividade está colocada pela política social e o
Serviço Social a executa através dos seus estudos, observações e relatórios.
Diante do exposto, podemos claramente apreender que a seletividade como forma de
controle do acesso e a permanência no atendimento caminham juntas e mesmo não se
separam uma; a cobrança da contrapartida exige acompanhamento para a vigilância do gasto.
Assim, a seletividade passa a integrar quase que, constitutivamente as ações profissionais do
assistente social nas organizações que o contratam para dar materialidade à política social.
As concepções de profissão e de pobreza utilizadas reforçam o foco do controle,
embora o “conceito de pobreza, pelo seu caráter histórico, possua características que variam

55
“Inspirado em trabalho desenvolvido por volta de 1750, na cidade alemã de Hamburgo, Daniel von der Heydt
elabora o chamado ‘Plano Elberfeld’. Consubstanciava-se na divisão da cidade de Elberfeld em 564 setores (com
cerca de 300 pessoas), cada possuindo ‘um visitante benévolo’ que, voluntariamente, permanecia na função por
três anos. A operacionalização de tal Plano previa: a) estudo das necessidades de cada pobre do setor; b) estudo
das necessidades de cada setor; c) trabalho preventivo com colocação dos pobres no mercado de trabalho; d)
reabilitação dos indigentes; e) supervisão do trabalho por quarenta ‘supervisores’ que, Poe sua vez, ficavam sob
a vigilância de um comitê de nove pessoas, responsável por toda a cidade” (CAMPAGNOLLI, 1993, p. 84).
85

no tempo e no espaço, como variam as interpretações feitas pelos contemporâneos acerca das
razões de sua origem e das diversas alternativas de sua redução” ( VISCARDI, 2011, p. 179).
Na Alemanha, em 1928, orientar e acompanhar o indivíduo atendido passa a ser
sinônimo de tentativas de enquadramento às pautas estabelecidas de ensinar o “indivíduo a
viver”, pautando-se na tão proclamada relação profissional.
Podemos constatar que há, igualmente, na Europa Ocidental, uma relação direta,
simbiótica entre a Política Social e o Serviço Social, entre ser profissional e ser funcionário.
Na nascente profissão, a busca é pela ciência que indica o que fazer. E há sem dúvida um
avanço na forma pública dos serviços sociais, porque passam a se constituir em direitos do
cidadão, embora, na prática, ele não tem sido tratado enquanto tal.

2.3. O ideário católico presente na expansão do Serviço Social face à modernidade

Interessa-nos agora tratar sobre como o Serviço Social se expandiu no mundo, sob a
influência da Igreja Católica, tendo por base que esta pretende recuperar seu lugar de “grande
importância” na Idade Média, perdido com o advento da Modernidade. Isto porque
pretendemos analisar os pilares da fundação do Serviço Social europeu e brasileiro para poder
entender o Serviço Social nos dias atuais.
No sentido de adensar os pilares que dão sustentação ao nascimento da profissão no
Brasil e em vários outros países de credo católico, torna-se então necessária a explicitação do
significado e do conteúdo das duas encíclicas papais já referidas.
Para Wehrle (2007, p. 4), a encíclica Rerum novarum56 representa uma resposta da
Igreja ao mundo, tardia em mais de cem anos que necessitou para digerir o alvorecer da
modernidade:

Efetivamente, “o último quartel do século XVIII e o século XIX foram um tempo


traumático para a Igreja Católica”. Em 1789 inicia a Revolução Francesa e coloca
fim ao “Ancien Régime”, isto é, ao modelo absolutista-feudal. Concomitantemente,
a Inglaterra acelera seu processo de industrialização abrindo caminho para “os
progressos incessantes da indústria […] e à alteração das relações entre os operários
e os patrões”. Em 1847 na Alemanha, Karl Marx e Friedrich Engels fundam a Liga
Comunista e publicam, em 1848, o Manifesto Comunista, como clara expressão da
“opinião mais avantajada que os operários formam de si mesmos e a sua união mais
compacta” (WEHRLE, 2007, p. 4-5).

56
O texto utilizado pelo autor foi consultado, em 2 de setembro de 2007, em
http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum_po.html.
86

A nova ordem burguesa abala profundamente a Igreja Católica, porque


indubitavelmente se constituía no principal instrumento ideológico da aristocracia feudal
tendo em vista que:

Seu “Deus criador e conservador do mundo” se espelhava na organização


absolutista-feudal, tornando o exercício do poder “uma espécie de mandato realizado
por delegação divina”. “A autoridade vem de Deus e é uma participação da Sua
autoridade suprema”. Evidentemente, “essa concepção cristã do mundo entrou em
colapso quando as novas condições econômicas e sociais, suscitadas pelo
desenvolvimento comercial e industrial, asseguraram espaços institucionais para a
articulação e propagação do pensamento moderno” (WEHRLE , 2007, p. 5).

As reflexões contidas nessa encíclica podem ser consideradas expressões dos


profundos sinais deixados pelo choque ocorrido entre a tradição católica e a ideia de liberdade
contida nos princípios da Revolução Francesa pelo seu conteúdo humanista e ateu. Entretanto,
a mira prioritária de suas críticas não se dirige aos Estados liberais e ao capitalismo, mas à
resposta socialista dada à condição dos operários.
Apesar de a Igreja Católica não se conformar com os novos tempos e, por conseguinte,
com a sua perda de poder, essa encíclica deve ser entendida como uma estratégia dessa
instituição social para se recolocar na sociedade moderna na luta para a obtenção de poder. Há
nela o reconhecimento de que não pode rejeitar inteiramente as práticas do liberalismo e da
modernidade, sob pena de comprometer sua sobrevivência enquanto instituição. No entanto,
“a Rerum novarum faz repetidas referências às ideias de ‘regresso’ e ‘restauração’ e manifesta
de forma explícita seu saudosismo dos tempos destruídos pela sede ‘das coisas novas’”
(WEHRLE, 2007, p. 6).
Passados, porém, mais de cem anos desde a Revolução Francesa, “a burguesia
revolucionária já não era nem progressista e nem revolucionária”, mas é exatamente o
contrário o que se verifica; agora a burguesia quer continuar no poder e, portanto, os seus
esforços se dirigem para conservar os espaços conquistados (WEHRLE, 2007, p. 6).
A burguesia, que na origem se constitui como classe revolucionária, porta- voz do
progresso social, representando objetivamente os interesses da totalidade do povo no combate
à reação absolutista-feudal, começa a ser conservadora quando passa a defender somente os
seus próprios interesses, aliando-se a segmentos sociais que anteriormente combatia
(COUTINHO, 1972, p. 8).
Importante frisar que, no primeiro semestre de 1848,
87

a maioria das regiões da Europa central e ocidental — França, Alemanha, Itália,


Áustria, Hungria, Polônia, Balcãs — foi tomada por insurreições de conteúdo
nacionalista, antimonárquico, democrático ou operário (às vezes tudo isso junto).
Todas foram vitoriosas a princípio e, logo a seguir, todas foram esmagadas com
muito sangue. A grande novidade da Primavera dos Povos, destacadamente na
França, foi a emergência dos operários reivindicando “uma república democrática e
social” — muito além do que estavam dispostos a ir os liberais das revoluções
anteriores (TRINDADE , 2002, p. 128).

Daí em diante, o medo da revolução social passa a unir os liberais às forças mais
retrógradas da Europa, num vasto “partido da ordem”, e essas revoltas populares são isoladas
e reprimidas com truculência exemplar (TRINDADE, 2002, p. 128).
O ano de 1848, quando o povo vai para as ruas, exigindo o direito ao trabalho, a partir
de sua auto-organização, representa um divisor de águas na história da cultura ocidental. É
quando o proletariado aparecerá na história como classe autônoma, em-si e para-si, apto para
dar respostas na direção progressista às novas contradições e aos desafios gerados pelo
capitalismo. A partir desse momento, só o socialismo irá defender a teoria do valor trabalho.
Quando a burguesia já havia realizado a revolução, torna-se classe conservadora,
passando a se unir aos “feudais” na defesa da conservação das estruturas sociais vigentes, não
abrindo mão dos meios de produção e do excedente econômico. A partir de agora, as
mudanças deverão ser graduais e pacíficas. Progresso só na ordem, uma vez que qualquer
mudança que possa colocar em risco a ordem burguesa deverá ser abolida. É quando a
burguesia se associa à nobreza e começa a combater a democracia. Agora, não se fala mais
em valores revolucionários, mas em valores de classe e de seus interesses. À burguesia não
interessa mais o pensamento crítico. A partir daí, a burguesia deixa de ser uma força
revolucionária, passando a ser conservadora.
A esse respeito, Netto (1991a, p. 14) explica:

A inflexão histórica de 1848, circunscrevendo o espaço sociopolítico da burguesia e


explicitando a natureza de classe da sua dominação, selou a sorte do bloco cultural
progressista: suas conquistas foram apropriadas pelos revolucionários e isso bastou
para que os representantes da ordem rechaçassem a sua influência. A partir daí, os
ideólogos burgueses, para responder ao movimento operário e combater a respectiva
revolução, recorrem cada vez mais ao arsenal de ideias contidas nas propostas
restauradoras 57 e românticas. Como se vê, a evolução do pensamento sobre a
sociedade burguesa tem em 1848 um divisor de águas: desde então, ele se fratura em
dois campos opostos- o que se vincula à revolução e o que contrasta com ela. [...]

57
Netto (1991a, p. 13) refere-se ao pensamento restaurador como aquele “de claras conotações católicas e ranços
místicos, que lamentava a ‘anarquia’ trazida pela revolução burguesa e a liquidação, pelo capitalismo, das
‘sagradas instituições’ da feudalidade — e recusava firmemente as novas formas sociais embasadas na
dessacralização do mundo e no intercâmbio mercantil. O protesto romântico, criticando a prosaica realidade
burguesa, escapava dos dilemas sociais do presente mediante a idealização da Idade Média e, em face das
misérias contemporâneas, refugiava-se num passado idílico”.
88

dois campos delimitam o terreno das grandes matrizes da razão moderna: a teoria
social de Marx e o pensamento conservador [...].

Importante então destacar que o desenvolvimento do pensamento conservador é


contemporâneo e caminha paralelo à obra de Marx. Quiroga (1991, p. 44) aqui comparece
para explicar essa relação. Diz a autora:

O desenvolvimento do positivismo é contemporâneo à obra marxiana, ou seja,


ambos são produtos de toda uma trajetória da história e aparecem como respostas às
exigências de forças sociais que emergem e se desenvolvem no decorrer do século
XIX. [...] são linhas de pensamento que se opõem e informam maneiras opostas de se
conhecer a realidade; no entanto, conformam dois polos de uma mesma relação
contraditória entre proletariado e burguesia.

Essas duas vertentes do pensamento moderno apoiam-se em projetos societários distintos:

A teoria social de Marx tem como objeto a sociedade burguesa e como objetivo a
sua ultrapassagem revolucionária: é a sociedade burguesa sob a ótica do
proletariado, buscando dar conta da dinâmica constitutiva do ser social que assenta
na dominância do modo de produção capitalista. [...] A outra matriz importante
procede da transformação subsequente do pensamento restaurador e romântico que
se adéqua às necessidades de conservação, gestão e reforma da sociedade burguesa
(NETTO, 1991a, p. 19).

Essas duas grandes matrizes fundantes do pensamento moderno podem ser


caracterizadas como segue.
1. Um bloco identificado pelo pensamento crítico-progressista que se expressa,
fundamentalmente, pelas obras de Marx, buscando articular o mundo do trabalho com o
mundo da cultura, através da crítica da economia política, a partir da economia política
inglesa (Smith e Ricardo), do socialismo utópico (Saint-Simon, Proudhon) e da filosofia
clássica alemã (Hegel, Feuerbach).
2. Outro bloco expresso pelo pensamento conservador, que se constitui na busca de
explicação para a intervenção na vida social, criando uma teoria/ideologia da ordem social,
tendo em vista a conservação do poder burguês; já tendo a burguesia realizado o seu projeto
revolucionário de tomada do poder contra o absolutismo e a aristocracia, necessita agora de
conservá-lo. Essa matriz teórica parte da concepção dos fatos sociais como coisas, aceitando
acriticamente a aparência imediata dos fenômenos sociais. “A esse pensamento conservador
[...] devemos a constituição e o florescimento das chamadas ciências sociais, disciplinas
89

particulares e autônomas que, nas suas especializações e procedimentos, reproduzem as


cristalizações e as divisões que existem na superfície da sociedade” (NETTO, 1991a, p. 20).
Porém, ela se torna profundamente conservadora quando passa a naturalizar a vida
social, separar o econômico do político, abandonar a noção de movimento social e a noção de
historicidade, assim como abandona a noção de totalidade da vida social. E passa a fazer
apologia do capitalismo, descartando qualquer possibilidade de transformação social.
Agora não se falará mais de valores revolucionários, não se falará mais de todos, para
todos, mas dos interesses da burguesia enquanto classe. E a essa classe não interessa mais o
pensamento crítico. Então, suas referências passarão a ser balizadas no pensamento positivo.

Ao tornar-se uma classe conservadora, interessada na perpetuação e na justificação


teórica do existente, a burguesia estreita cada vez mais a margem para uma
apreensão objetiva e global da realidade; a Razão é encarada com um ceticismo cada
vez maior, renegada como instrumento do conhecimento ou limitada a esferas
progressivamente menores ou menos significativas da realidade. [...] Entre o que a
burguesia agora apressava-se a abandonar estava, talvez em primeiro lugar, a
categoria da Razão (COUTINHO, 1972, p. 8-9).

A ponte do irracionalismo ao “racionalismo” formal é constituída pelo agnosticismo. 58

Confundindo a razão com o intelecto, a apropriação humana da objetividade com a


manipulação técnica ou burocrática dos “dados”, as correntes formalistas
desembocam num agnosticismo mais ou menos radical. Esferas fundamentais da
realidade objetiva — exatamente as denominadas pelas categorias de dialética,
história e humanismo — são declaradas incognoscíveis, “falsos problemas”, e,
consequentemente lançadas no terreno da irrazão e do irracionalismo. Os limites do
“racionalismo” formal, portanto, são o ponto de partida para a arbitrariedade
irracionalista (COUTINHO, 1972, p. 3).

É preciso considerar que o predomínio do irracionalismo ou do realismo formal


sofrerá variações, dependendo das conjunturas em pauta.

Quando atravessa momentos de crise, a burguesia acentua ideologicamente o


momento irracionalista, subjetivista; quando enfrenta períodos de estabilidade, de
“segurança”, prestigia as orientações fundadas num “racionalismo” formal. Do
ponto de vista filosófico essa unidade essencial das duas posições aparentemente
opostas reflete-se no fato de ambas abandonarem os três núcleos categoriais que o
marxismo herdou da filosofia clássica — elaborada pela própria burguesia em sua
fase ascendente — e que são, precisamente, o historicismo concreto, a concepção de
mundo humanista e a Razão dialética. Renunciando a esses instrumentos categoriais,
caracterizados por sua dimensão crítica, o pensamento “modernista” — em suas
duas faces — capitula diante da positividade fetichizada do mundo contemporâneo
(COUTINHO, 1972, p. 3).

58
O agnosticismo pauta-se pela crença de que não é possível a apreensão da essência das coisas.
90

Diante do exposto, podemos claramente perceber por que a ideologia liberal burguesa
concebe os direitos sociais e humanos como abstrações. O que está em jogo é o direito do
homem burguês, liberdade para o burguês e não para todos os homens. Essas referências são
fundamentais para podermos entender o conservadorismo moderno do qual a Igreja Católica
tem sido uma importante porta-voz.
O conservadorismo, enquanto forma de pensar, constitui-se como reação ao
Iluminismo e como um contramovimento à Revolução Francesa e a tudo o que esta
representa. É uma reação à Revolução por parte daqueles que perderam riqueza e o poder
político com o fim do feudalismo, sendo a Igreja Católica um desses perdedores. Porém, após
1848, a ala dos conservadores se ampliará com os burgueses que a partir de então se
posicionarão contra um dos dois projetos presentes na Revolução Francesa, ou seja, aquele
que defende a emancipação humana.
As palavras de Wehrle estão densamente colocadas quando afirma:

Assim, a transformação conservadora da burguesia revolucionária e a necessidade da


Igreja em assegurar uma estratégia de sobrevivência foram fatores decisivos para um
entendimento entre Igreja e Estado burguês. E juntos encontraram no avanço
socialista seu inimigo comum. “O conservadorismo católico assumia,
progressivamente, matizes liberais, enquanto que os liberais se pareciam cada vez
mais com os conservadores. Tanto os católicos quanto os liberais conservadores
passaram a interpretar o socialismo como o autêntico herdeiro do radicalismo
revolucionário iluminista (que, segundo eles, representava uma constante ameaça a
todo o poder constituído)” (WEHRLE, 2007, p. 7).

Nesse sentido, a encíclica Rerum novarum se constitui como reação católico-liberal ao


ameaçador movimento socialista, desejando urgentemente marcar uma “posição que
reforçasse a coesão ideológica da sua hierarquia e dos seus membros” (CASTRO, 1987, p. 54).
Essa encíclica deve ser apreendida também como um documento de caráter político,
colocando-se como “proposta articuladora da conciliação entre as classes, reafirmando a
condição de exploração da classe operária e apelando à reflexão dos capitalistas e do Estado
sobre os riscos morais e políticos da sua conduta voraz” (CASTRO, 1987, p. 54).
Essa análise é reforçada por Wehrle (2007, p. 7), ao observar que a referida encíclica

[...] ressalta de forma impressionante e apaixonada a defesa do direito natural à


propriedade privada e não hesita em apontar uma desigualdade natural e necessária
entre os seres humanos. [...] a carta encíclica distribui tarefas aos operários, aos
patrões e ao Estado e afirma que a simples obediência ao “roteiro proposto” trará a
solução para a melhoria da condição dos operários.
91

A solução estratégica proposta pela Igreja é a de se contrapor ao pensamento e à


proposta socialista, “mediante a qual se busca colocar o discurso religioso acima das classes
sociais, recorrendo à autoridade suprema da religião e fazendo um apelo para que as coisas
terrenas dos homens se submetam ao poder divino” (CASTRO, 1987, p. 54).
A conclusão de Castro (1987, p. 54) é que a “encíclica, finalmente, traça formas de
ação para as classes e o Estado e, em particular, para a própria estrutura organizativa geral da
Igreja, sustentando a colocação da reforma social como instrumento político social para
enfrentar os problemas da época”.
Wehrle (2007, p. 7) desvenda a matriz de análise que permeia a Rerum Novarum e afirma:

Trata-se de uma compreensão organicista das relações sociais. A partir desta


compreensão pressuposta, a Rerum novarum atualiza na sua conjuntura específica o
“velho mito do paraíso perdido”, isto é, aponta tendências conjunturais como fatores
de destruição de um aparente equilíbrio anterior. Aponta o abismo social
consequente deste “desvio” do caminho natural e deslegitima a resposta socialista
como proposta válida de superação da “miséria imerecida” dos operários. À negação
da proposta socialista como alternativa real segue a afirmação da Igreja como
caminho único de solução da questão social.

A Igreja propõe, nesse sentido, “o exercício do assistencialismo sob a ótica da


conciliação das classes. [...] A encíclica converte-se em elemento doutrinário que reorienta o
seu esquema de atuação frente ás classes sociais, [...] de forma que lhe permita colocar-se à
cabeça dos programas de caráter geral” (CASTRO, 1987, p. 55).
Em relação à encíclica Quadragesimo anno, apresentada 40 anos após a Rerum
novarum, em 15 de maio de 1931, pouco depois da Revolução Russa e da Primeira Guerra
Mundial e em meio à crise de 1929, Castro (1987, p. 57) diz que essa encíclica “desenvolveu-
se em tom mais radical, embora dentro do mesmo espírito da anterior”.
Wehrle (2007, p. 24) destaca de forma esquemática que, no texto da Quadragesimo
anno, consta “a análise para além da questão dos operários (a ordem social), advoga a unidade
entre capital e trabalho, trata dos abusos do capitalismo e do socialismo, apela para a renovação
moral da sociedade, defende uma vigorosa ação em favor da justiça com base na caridade”.
Aguiar (1985, p. 18) acrescenta que as bandeiras dos cristãos na época da referida
encíclica são a restauração de costumes e a reforma social, menciona que há um subtítulo do
documento intitulado “Sobre a restauração e aperfeiçoamento da ordem social em
conformidade com a Lei Evangélica” e acrescenta:
92

Após analisar vários pontos, como direito à propriedade, relação capital e trabalho,
liberação do proletariado, salário justo, passa a falar a respeito da restauração da
ordem social. E afirma [citando a pág. 33 da referida encíclica]: “Já alguma coisa se
faz nesse sentido; para realizar o muito que ainda está por fazer e para que a família
humana colha vantagens melhores e mais abundantes, são de absoluta necessidade
duas coisas: a reforma das instituições e a emenda dos costumes”.

Em face às referências aqui apresentadas, podemos entender que a Uciss, fundada em


1925, funcionou não só como centro de difusão da doutrina da igreja, mas também como
espaço importante de balanços e fonte de inspiração de novas ações.

O próprio Serviço Social da época, europeu e latino-americano, não é somente, em


parte, resultado de uma proposta da Igreja, mas ator e autor da gênese do novo
pensamento social cristão, como depois o seriam- em grau e amplitude superiores-
os próprios partidos políticos de cariz cristão (CASTRO, 1987, p. 57).

O trabalho de beneficência, antes realizado pelos clérigos, agora será assumido pelos
assistentes sociais católicos, entre outros profissionais leigos, “acrescentando ao espírito
caridoso a perícia técnica” (CASTRO, 1987, p. 59). Assim, Castro (1987, p. 59) considera que “a
caridade, o messianismo, o espírito de sacrifício, a disciplina e a renúncia total passam a ser
parte dos aspectos doutrinários e dos hábitos que acompanharam o surgimento da profissão sob
a perspectiva católica, e não só por autodefinição interna, mas por desígnio do Vaticano”.
Na encíclica Quadragesimo anno é enfatizada a necessidade de o trabalho assistencial
absorver aspectos técnicos, o que significou uma inovação na América Latina, uma vez que a
Igreja passou a estimular diretamente a criação de centros de formação superior com a
incumbência de qualificar quadros técnicos para assumir o trabalho.

O assistencialismo, exercido a partir de iniciativa da igreja e do estímulo decisivo


das grandes senhoras da época, adquiriu uma nova dimensão, ao se converter em
profissão. Para o seu desempenho agora se fazia preciso um ciclo de treinamento
que colocava os estudantes — a maioria deles procedente das camadas burguesas ou
oligárquicas — em contato com uma formação sistemática e com o conhecimento de
algumas disciplinas. Destarte, passou a ser uma exigência o manejo de certos
instrumentos técnicos para o cabal exercício da atividade, ao mesmo tempo em que
— e este é um aspecto de especial relevância —, mediante o trabalho, os
profissionais reforçavam a fé católica (CASTRO, 1987, p. 60).

Aguiar (1985, p. 20), ao analisar as afirmações do papa Pio XI na encíclica


Quadragesimo anno acerca da importância da Ação Católica, conclui: “[...] percebemos que a
preocupação da Igreja se coloca na perspectiva de uma reforma da sociedade (retorno ao ideal
93

da Idade Média), dada a decadência da moral e dos costumes, produzida pelo liberalismo e
comunismo”.
Conforme já pudemos tratar, a Igreja Católica teve influência decisiva na expansão do
Serviço Social nos países católicos, dentre os quais o Brasil e muitos países da América
Latina. Portanto, analisar as encíclicas papais contribui para desvelar os fundamentos do
Serviço Social e entender a prática dos assistentes sociais onde essa influência foi
significativa. Busco aprofundar essas referências, expondo a seguir, em linhas gerais, as bases
de fundação da religião católica como religião cristã.

2.4. Sobre o indivíduo na religião cristã como fundamento para entender o Serviço Social

Chauí (2002) traz importante contribuição, no sentido de iluminar o entendimento


acerca do significado do indivíduo e da relação entre os homens na perspectiva do
cristianismo, no sentido de fundamentar a análise da concepção do indivíduo e da
individualização presente no Serviço Social desde as suas origens como profissão.
Vale ressaltar o peso da Igreja Católica Romana na expansão do Serviço Social, que,
sob o mote de evangelizar a humanidade, ampliou seu domínio de influência na sociedade.
Na origem, o cristianismo era uma dentre muitas religiões orientais.

Suas raízes encontravam-se na religião judaica que, como todas as religiões antigas,
era nacional ou de um povo em particular. No entanto, havia nele algo inexistente no
judaísmo e nas outras religiões antigas: a ideia de evangelização, isto é de espalhar a
“boa nova” para o mundo inteiro, a fim de converter os não-cristãos e tornar-se uma
religião universal (CHAUÍ, 2002, p. 222).

O problema que então se colocava era o de como converter pessoas de outras religiões
ao cristianismo. Os evangelizadores usaram certamente muitas estratégias para conseguir esse
intento partindo das condições e o que pensavam os que deveriam ser convertidos. No texto
que me serve de referência, a autora pretende unicamente explicitar a evangelização que se
dirige à conversão dos intelectuais gregos e romanos, isto é,

daqueles que haviam sido formados não só em religiões diferentes da judaica, como
também haviam sido educados na tradição racionalista da Filosofia. Para convertê-
los demonstrando a superioridade da verdade cristã os primeiros Padres da Igreja ou
intelectuais cristãos (São Paulo, São João, Santo Ambrósio, Santo Agostinho, entre
outros) adaptaram as ideias filosóficas à religião cristã e fizeram surgir a Filosofia
cristã (CHAUÍ, 2002, p. 222).
94

A autora considera que, por se tratar de uma religião de salvação, o cristianismo não
precisava de uma filosofia, uma vez que o seu interesse fundamental encontrava-se na moral,
na prática dos preceitos virtuosos deixados por Jesus e não em uma teoria sobre a realidade.
Assim como, em se tratando de uma religião nascida do judaísmo, tinha clareza acerca do Ser.
Deus disse a Moisés: “Eu sou aquele que é, foi e será. Eu sou aquele que sou.” E, mesmo
porque, em se tratando de uma religião, o seu foco encontrava-se na fé e não na razão teórica.
“Foi, portanto, a intenção de converter os intelectuais gregos e os chefes e imperadores
romanos (isto é, aqueles que estavam acostumados à Filosofia) que ‘empurrou’ os cristãos
para a metafísica” (CHAUÍ, 2002, p. 223).59
Importante destacar, por conseguinte:

Diferentemente de outras religiões da Antiguidade, que eram nacionais e políticas, o


cristianismo nasce como religião de indivíduos que não se definem por seu
pertencimento a uma nação ou a um Estado, mas por sua fé num mesmo e único Deus.
Em outras palavras, enquanto nas demais religiões antigas a divindade se relacionava
com a comunidade social e politicamente organizada, o Deus cristão relaciona-se
diretamente com os indivíduos que nele creem. Isto significa, antes de mais nada, que
a vida ética do cristão não será definida por sua relação com a sociedade, mas por sua
relação espiritual e interior com Deus (CHAUÍ, 2002, p. 342-343).

Assim, segundo Marilena Chauí, o cristianismo introduz duas diferenças fundamentais


na antiga concepção ética. A primeira refere-se “à ideia de que a virtude se define por nossa
relação com Deus e não com a cidade (a polis) e nem com os outros”. É por isso que as duas
virtudes e das quais decorrem todas as outras são a fé (atributo de nossa relação com Deus) e
a caridade (o amor e a responsabilidade pela salvação dos outros). Essas duas virtudes são
privadas, uma vez que se trata de relações dos indivíduos com Deus e com os demais, “a
partir da intimidade e interioridade de cada um” (CHAUÍ, 2002, p. 343).
A segunda refere-se à postulação de que somos dotados de livre-arbítrio.

O primeiro impulso e nossa liberdade dirigem-se para o mal e para o pecado, isto é,
para a transgressão das leis divinas. Somos seres fracos, pecadores, divididos entre o
bem (obediência a Deus) e o mal (submissão à tentação demoníaca). Em outras
palavras, enquanto para os filósofos antigos a vontade era a faculdade racional capaz
de dominar e controlar a desmesura passional de nossos apetites e desejos, havendo,

59
Vale a pena ler Chauí (2002, p. 223-227) quando demonstra, na sequência dos seus escritos, como a metafísica
cristã se apossou, ou seja, reelaborou a metafísica grega em muitas ideias, não na totalidade. O cristianismo
incorpora o platonismo e o aristotelismo. Porém, como as obras de Platão e Aristóteles tinham ficado por vários
séculos perdidas, o cristianismo toma contato com três tradições metafísicas que formaram as primeiras
elaborações metafísicas cristãs, que foram: o neoplatonismo, o estoicismo e o gnosticismo. E dessa forma a
autora explica como se formou o ideário cristão nas suas bases.
95

portanto, uma força interior (a vontade consciente) que nos tornava morais, para o
cristianismo, a própria vontade está pervertida pelo pecado e precisamos do auxílio
divino para nos tornarmos morais (CHAUÍ, 2002, p. 343).

Sem o auxílio divino, a vida ética seria impossível, porque devemos obedecer
obrigatoriamente e sem exceção a lei divina revelada.

O cristianismo, portanto, passa a considerar que o ser humano é, em si mesmo e por


si mesmo, incapaz de realizar o bem e as virtudes. Tal concepção leva a introduzir a
ideia moral de dever. Por meio da revelação dos profetas (Antigo Testamento) e de
Jesus Cristo (Novo Testamento), Deus tornou sua vontade e sua lei manifestas aos
seres humanos, definindo eternamente o bem e o mal, a virtude e o vício, a
felicidade e a infelicidade, a salvação e o castigo. Aos humanos cabe reconhecer a
vontade e a lei de Deus, cumprindo- as obrigatoriamente, isto é, por atos de dever.
Este é o único que torna morais um sentimento, uma intenção, uma conduta ou uma
ação (CHAUÍ, 2002, p. 343).

A ideia do dever permanecerá como uma das marcas fundamentais da concepção ética
ocidental, mesmo que, a partir do Renascimento, a filosofia moral tenha se distanciado dos
princípios teológicos e dos fundamentos da ética religiosa.
Anexa à ideia de dever, a moral cristã introduziu a ideia de intenção.

Até o cristianismo a filosofia moral localizava a conduta ética nas ações e nas
atitudes visíveis do agente moral, ainda que tivessem como pressuposto algo que se
realizava no interior do agente, em sua vontade racional ou consciente. Eram as
condutas visíveis que eram julgadas virtuosas ou viciosas. O cristianismo, porém, é
uma religião da interioridade, afirmando que a vontade e a lei divinas não estão
escritas nas pedras nem nos pergaminhos, mas inscritas no coração dos seres
humanos. A primeira relação ética, portanto, se estabelece entre o coração do
indivíduo e Deus, entre alma invisível e a divindade. Como consequência, passou-se
a considerar como submetido ao julgamento ético tudo quanto, invisível aos olhos
humanos, é visível ao espírito de Deus, portanto, tudo o que acontece em nosso
interior. [...] Eis porque um cristão, quando se confessa, obriga-se a confessar
pecados cometidos por atos, palavras, intenções. Sua alma, invisível, tem o
testemunho do olhar de Deus, que a julga (CHAUÍ, 2002, p. 344). 60

60
Diante da pergunta se o dever não comprometeria a nossa autonomia ao ser imposto por um poder estranho a
nós, Rousseau, no século XVII, vai defender a ideia de que homem nasce bom e puro, porque somos “a voz da
natureza” e “o dedo de Deus” está em nosso coração. “Se o dever parece ser uma imposição e uma obrigação
externa, imposta por Deus aos humanos, é porque nossa bondade natural foi pervertida pela sociedade, quando
esta criou a propriedade privada e os interesses privados, tornando-nos egoístas, mentirosos, destrutivos” (CHAUÍ ,
2002, p. 315). E Kant, também no final do século XVIII, vai se manifestar, opondo-se a Rousseau e afirmando o
papel da razão na ética em oposição à ideia da “moral do coração”. “Não existe bondade natural. Por
consequência, diz Kant, somos egoístas, ambiciosos, destrutivos, agressivos, cruéis, ávidos de prazeres que
nunca nos saciam e pelos quais matamos, mentimos, roubamos. É justamente por isso que precisamos do dever
para nos tornarmos morais” (CHAUÍ, 2002, p. 315).
96

Diante das explicações apresentadas por Chauí, podemos claramente perceber que, a
partir do cristianismo — ou, melhor, da visão fundada no cristianismo —, a relação básica do
homem cristão não é com a sociedade, mas a de cada homem com Deus que tudo vê.
Acrescentem-se a essas ideias as do bem e do mal, e a de que as nossas ações serão
julgadas após a morte por Deus, que tudo vê e registra, e então seremos julgados. Como
resultado deste julgamento, poderemos ser premiados ou castigados com o céu ou o inferno,
dependendo de nossas ações boas.
Nessa direção, a preocupação central da religião cristã, enquanto projeto para a
humanidade, não se dirigiu para melhorar a vida terrena dos homens, visando à felicidade de
cada um e de todos, tendo em vista que o projeto de felicidade encontra-se para além da vida,
ou seja, após a morte. Depois da morte, poderemos, se assim merecermos e segundo o
julgamento de Deus, ir para o céu e sermos felizes para toda a eternidade, ou sermos
colocados no inferno para todo o sempre. Aqui na terra, portanto, o homem deve enfrentar o
sofrimento com resignação, uma vez que toda humilhação e sofrimento serão recompensados
no dia do Juízo Final.
Se o objetivo da evangelização era tornar a religião cristã universal, sua doutrina, “a
boa nova”, deverá servir a todos; então, é condição que os valores não tenham nuances de
particularidades, mas que se constituam em valores a-históricos diante dos quais os homens
não podem modificá-los, assim como são predeterminados metafisicamente, associados à
ideia de pecado e culpa.
A relação entre Deus e os homens, então, passa a se dar através dos intermediadores de
Deus, que são os santos da Igreja. Na terra, os intermediadores entre Deus e os homens serão os
padres, que, por sua vez, terão que agir de acordo com os preceitos da Santa Madre Igreja. As
relações entre os homens, por sua vez, passarão a ser mediadas pela hierarquia da Igreja.
A religião, todavia, se materializa através da Igreja, que, enquanto instituição humana,
é histórica — portanto, produto da ação dos homens historicamente situados. Podemos então
perceber que, na intenção de evangelizar, a Igreja Católica lutou com as forças sociais
presentes que se lhe opunham, tendo como horizonte a ocupação de espaços de poder e o
domínio do mundo — e fez isso, quase sempre, ao preço de muito sangue derramado, para
que pudesse se impor enquanto força e assim mostrar o seu poderio diante dos que não
comungavam de suas orientações, assim como se colocou com muita crueldade diante
97

daqueles que tentavam pensar sob outros pressupostos. Veja-se a Inquisição na Idade Média e
a venda de indulgências, 61 entre outros exemplos.
A ideia que perpassa a Igreja Católica é a de que a sociedade é composta por indivíduos,
não por estamentos ou classes sociais, talvez porque também a hierarquia da Igreja tenha se
colocado ao lado dos que detinham a riqueza e o poder político, sendo que também se colocou
na sociedade feudal e capitalista como um poder político em nome de Deus.
No pensamento católico, há sempre referências acerca do indivíduo, porém a relação
entre os homens aparece no discurso católico enquanto compaixão e caridade. Parece que a
compaixão e a caridade se colocam mais em relação a uma obrigação do cristão “para ganhar
o céu” e menos como compromissos com a solidariedade, a cumplicidade, a justiça e a busca
de igualdade entre os homens. No princípio da perfectibilidade humana, por exemplo, não se
fala da necessária relação entre os homens para que possam desenvolver as suas
possibilidades humanas.

A pessoa que sou eu não é o resultado de um processo interno solitário; só pode


construir-se encontrando-se no foco dos olhares dos outros. Não só essa pessoa é
alimentada com todas as contribuições dos que me rodeiam, mas na sua realidade
essencial é constituída pelas trocas com eles; eu sou os vínculos que vou
estabelecendo com os outros. Com essa definição, deixa de haver qualquer corte
entre mim e os outros (JACQUARD, 1998, p. 2; grifos do autor).

O discurso da evangelização se pauta por ideias que se assentam para além da história,
visando ao todo sempre da eternidade. Mas a prática histórica é terrena e deve ser procurada,
analisando-se o papel e as ações da Igreja na sociedade da qual é parte e na qual se expressa,
para desvendar a verdadeira intenção política da prática de seus agentes. As encíclicas,
portanto, são referências para se entender o significado real da prática da Igreja situada no
âmbito das relações sociais na história dos homens. 62

61
Com a Reforma Protestante, “[...] não havia mais como assegurar o plano divino com a compra de
indulgências (pedaços do Céu) pelos ricos em doações à Igreja, como acontecia antes. O Reino dos céus já cabia
aos pobres pelo seu sofrimento. [...] Não havia mais salvação assegurada. Como já não se sabia quem estaria
entre os escolhidos, o que se podia fazer era seguir a ética religiosa, na tentativa de estar entre os que seriam
salvos. E a ética dizia que o homem devia trabalhar, e não trabalhar por trabalhar, mas fazê-lo produtivamente
[...] Eis a ética que influenciou todo o comportamento do burguês e empresário no início do capitalismo: leva a
uma ideologia que é a própria mola da acumulação do capital. Assim, o empresário deve trabalhar, viver
asceticamente e acumular” (COVRE, 2002, p. 22).
62
Nossa análise não abarca a Teologia da Libertação, que, na década de 1970, foi um movimento cristão que
assumiu historicamente a luta para a libertação de pobres e oprimidos. O termo foi criado em 1971 pelo padre
peruano Gustavo Gutiérrez, que escreveu um dos livros mais famosos do movimento, A Teologia da Libertação.
Leonardo Boff é um nome expoente dessa perspectiva no Brasil.
98

2.5 A seleção socioeconômica na emergência e constituição do Serviço Social no Brasil

O Serviço Social no Brasil nasce na década de 1930 sob a influência da Igreja Católica
e se institucionaliza quando o Estado passa a enfrentar a questão social através de políticas
sociais, estas utilizadas como forma de regulação social.
É em um quadro sócio-histórico tenso entre as classes sociais que a profissão do
assistente social dá os seus primeiros passos no País. Quando o nascente operariado urbano se
coloca como sujeito histórico, reivindicando direitos de proteção social relativos aos riscos do
trabalho, o governo de Vargas passa a reconhecer e a tratar a questão social através da criação
de políticas social como forma de seu enfrentamento.

Desde novembro de 1930, quando foi criado o Ministério do Trabalho, Indústria e


Comércio [...] Seguiram-se leis de proteção ao trabalhador, de enquadramento dos
sindicatos pelo Estado, e criaram-se órgãos para arbitrar conflitos entre patrões e
operários — as Juntas de Conciliação e Julgamento. Entre as leis de proteção ao
trabalhador estavam as que regularam o trabalho das mulheres e dos menores, a
concessão de férias, o limite de oito horas da jornada normal de trabalho (FAUSTO,
1999, P . 335).

Em uma conjuntura de intensa movimentação social, o Estado assume o papel de


mediador entre as classes, ao atender parte das reivindicações apresentadas pelos
trabalhadores, mediante o estabelecimento de medidas no âmbito das políticas sociais, dentre
as quais se destacam a instituição da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e do salário
mínimo, com o intuito de desmobilizar e regular as relações entre as classes sociais.
É nesse contexto que, em 1936, é inaugurada em São Paulo a primeira escola brasileira
de Serviço Social, como fruto da iniciativa do Centro de Estudos e Ação Social (Ceas),
relacionado à Ação Católica que fora criado em 1932 com a finalidade de difundir a doutrina e a
ação social da igreja. O Serviço Social no País é concebido e criado por iniciativa da Igreja
Católica como estratégia de, através da ação militante de leigos, colocar-se o horizonte de
divulgação de seu ideário, exposto nas encíclicas papais Rerum novarum e Quadragesimo anno.
Com o intuito de formar quadros para o Serviço Social brasileiro, o CEAS envia as
duas sócias Maria Kiehl e Albertina Ramos à Bélgica para estudar na Escola de Serviço
Social de Bruxelas, recebendo a influência do cardeal Mercier e das Ligas Operárias cuja
perspectiva era a Ação Social. 63 Estudaram na Bélgica por três anos e no retorno, já como
assistentes sociais, se empenharam na organização da escola em criação (YAZBEK, 1977).

63
Na Europa, antes de surgir o Serviço Social, nasce a Ação Social. O Serviço Social vai se constituir como
instrumento da Ação Social. A Ação Social “é uma ação mais ampla (do que o serviço social). Exercida sobre a
99

Havia no Ceas outras sócias formadas na Europa. Esse é o caso de Odila Cintra
Ferreira, que se formara na Escola Superior de Estudos Sociais de Paris e realçava a formação
para a intervenção junto ao meio operário (YAZBEK, 1977).
A formação ética, social e técnica dos assistentes sociais brasileiros é inicialmente
influenciada pelo Serviço Social francês e belga, que se alinha à visão do bloco católico no
panorama do Serviço Social internacional daquela época. Essa formação estimulava as alunas
para a reflexão e a ação planejada fundada no método do “ver, julgar e agir”.
A profunda relação entre Serviço Social e ideário católico faz com que a profissão seja
vista como missão e lhe dará “caráter de apostolado fundado em uma abordagem da ‘questão
social’ como problema moral e religioso e numa intervenção que prioriza a formação da
família e do indivíduo para solução dos problemas e atendimento de suas necessidades
materiais, morais e sociais” (YAZBEK, 2009a, p. 145).
Nesse momento, os objetivos profissionais pautam-se por “posicionamentos de cunho
humanista conservador contrários aos ideais liberal e marxista na busca de hegemonia do
pensamento social da Igreja face à ‘questão social’” (YAZBEK, 2009a, p. 146).
A questão social, influenciada pelo pensamento social da Igreja, é abordada como
conjunto de problemas de responsabilidade individual dos sujeitos que os vivenciam. “Trata-
se de um enfoque individualista, psicologizante e moralizador da questão, que necessita para
seu enfrentamento de uma pedagogia psicossocial que encontrará no Serviço Social efetivas
possibilidades de desenvolvimento” (YAZBEK, 1999, p. 92).
A perspectiva do Serviço Social, nesse momento, se dirige à mudança de
comportamento de seus “clientes” na perspectiva de integrá-los às relações sociais vigentes.
Merece atenção que nem o doutrinarismo nem o conservadorismo que marcam
profundamente o Serviço Social brasileiro na emergência da profissão se constituem em
teorias sociais.

A doutrina caracteriza-se por uma visão de mundo abrangente fundada na fé em


dogmas. Constitui-se de um conjunto de princípios e crenças que servem como suporte
a um sistema religioso, filosófico, político, entre outros. O conservadorismo como
forma de pensamento e experiência prática é resultado de um contramovimento aos
avanços da modernidade, e nesse sentido, suas reações são restauradoras e
preservadoras, particularmente da ordem capitalista (YAZBEK, 2009a, p. 147).

estrutura mesma da sociedade, visando transformar ou adaptar os quadros existentes de acordo com a época, o
lugar, a civilização. É mais um movimento de ideias, um trabalho legislativo no qual os políticos e os juristas
desempenham papel preponderante" (RAMOS, s/d, apud AGUIAR, 1985, p. 31).
100

O Serviço Social brasileiro, a partir da década de 1940, agregará a essa formação


doutrinária inicial o suporte técnico-científico assimilado via Serviço Social norte-americano,
de inspiração teórica positivista.
Tendo em vista o mercado de trabalho, que já se delineia para o assistente social no
Brasil como um trabalhador assalariado, há a necessidade de qualificação técnica para atuar
nas organizações sociais que passam a contratar esse profissional. A resposta a essa
necessidade surge quando alguns assistentes sociais brasileiros vão aos Estados Unidos,
convidados e financiados pelo governo norte-americano, para estudar e se especializar em
diversas universidades daquele país. No retorno ao Brasil, as bolsistas trazem do Serviço
Social norte-americano a tríade do Serviço Social de Casos, de Grupo e de Comunidade.
A razão instrumental que dará sustentação às ações prescritivas do assistente social
diante de sua “clientela”, fundadas em modelos de estudo, diagnóstico e tratamento contidas no
Serviço Social de Casos, Serviço Social de Grupo e Organização de Comunidade, é absorvida
pelo Serviço Social brasileiro e passará a ser ensinada, pelo menos nas duas décadas seguintes,
nas escolas de Serviço Social, que já são várias no País. “Essa matriz assimilada dará uma
configuração à profissão, configurando para a profissão propostas de trabalho ajustadoras e um
perfil manipulatório, voltado para o aperfeiçoamento dos instrumentos e técnicas para a
intervenção, com as metodologias de ação” (YAZBEK, 2009a, p. 148).
A esse respeito, Aguiar (1985, p. 57-58) acrescenta:

Na década de 40, um fato novo vai marcar a vida do Serviço social brasileiro: o
Serviço Social norte- americano, cuja presença será marcante nas décadas seguintes.
Nesse período, a presença europeia ainda é muito significativa, mas gradativamente
o eixo de influência mudará. Na segunda metade da década de 40 e no início da de
50, constamos a presença da filosofia tomista aliada às técnicas norte- americanas.
Nesse período não haverá ruptura radical da ideologia católica, pelo contrário,
haverá uma convivência das duas posições: o Serviço Social permanece na base dos
princípios católicos e neotomistas, inclusive via Estados Unidos, e ao mesmo tempo
incorpora as técnicas norte-americanas.

Se a criação da primeira escola de Serviço Social no Brasil e de outras que surgirão


deve-se à Igreja Católica, a consolidação da profissão “não pode ser considerada como fruto
de uma iniciativa exclusiva do Movimento Católico Laico, pois já existe presente uma
demanda — real ou potencial — a partir do Estado, que assimilará a formação doutrinária
própria do apostolado social” (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 180).
101

Na emergência do Serviço Social brasileiro, já existe demanda pelo trabalho de


profissionais que possam atuar nas expressões da questão social, uma vez que diante da
consolidação do operariado urbano e da organização operária,

[...] o Estado novo, então instituído, defronta-se com duas demandas: absorver e
controlar os setores urbanos emergentes e buscar, nesses mesmos setores,
legitimação política. Para isso adota uma política de massa, incorporando parte das
reivindicações populares, mas controlando a autônoma dos movimentos
reivindicatórios do proletariado emergente, através de canais institucionais,
absorvendo- os na estrutura corporativista do Estado (SILVA, 1995, p. 24).

Nessa direção, são criados serviços assistenciais com o intuito de esvaziar e controlar
os trabalhadores organizados e ao mesmo rebaixar os salários. Nesse fundamento encontra-se
a criação das grandes instituições assistenciais 64 e previdenciárias que, conjuntamente “aos
setores dominantes, procuram responder às pressões dos setores urbanos em
desenvolvimento, passando as iniciativas assistenciais, incorporadas pelo Estado, a constituir
mecanismos de apoio à aceleração do processo de desenvolvimento capitalista no País”
(SILVA, 1995, p. 24; grifo da autora).
Essas iniciativas, que constituem conquistas dos trabalhadores, são, no entanto,
tratadas como doações pelo governo de traços paternalista e populista como foi o de Getúlio
de Vargas, na busca de legitimidade social.
Iamamoto e Carvalho (1985) destacam a importância dessas conquistas:

Historicamente, passa-se da caridade tradicional levada a efeito por tímidas e


pulverizadas iniciativas das classes dominantes, nas suas diversas manifestações
filantrópicas, para a centralização e racionalização da atividade assistencial e da
prestação de serviços pelo Estado, à medida que se amplia o contingente da classe
trabalhadora e sua presença política na sociedade. Passa o Estado a atuar
sistematicamente sobre as sequelas da exploração do trabalho expressas nas condições
de vida do conjunto de trabalhadores (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 78).

Dentre as iniciativas em curso no País, sobressai a criação, em 1935, do Departamento


de Assistência Social do estado de São Paulo (primeira iniciativa do gênero criada no Brasil),
subordinado à Secretaria da Justiça e Negócios Interiores, com as seguintes atribuições:

a) superintender todo o serviço de assistência e proteção social; b) celebrar, para


realizar seu programa, acordos com as instituições particulares de caridade, assistência
e ensino profissional; c) harmonizar a ação social do Estado, articulando- a com a dos

64
Dentre as quais se encontram: o Conselho Nacional de Serviço Social, em 1938; a Legião Brasileira de
Assistência e o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, em 1942; o Serviço Social da Indústria e a
Fundação Leão XIII, em 1946.
102

particulares; d) distribuir subvenções e matricular as instituições particulares


realizando seu cadastramento. Caberia além dos itens relacionados acima, a
estruturação dos Serviços Sociais de Menores, Desvalidos, Trabalhadores e Egressos
de reformatórios, penitenciárias e hospitais e da Consultoria Jurídica do Serviço
Social. A maior parte dos artigos da lei é, no entanto, dedicada à assistência ao menor-
sua organização científica em relação aos aspectos social, médico e pedagógico e à
fiscalização das instituições públicas e particulares que a ela se dedica. Apenas um
artigo se refere ao Serviço de proteção ao Trabalhador, para remetê-lo ao
Departamento Estadual do trabalho (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 178-179).

O Estado, através da Lei nº 2.497, de 24 de dezembro de 1935, assume a atribuição de


controle e fiscalização dos serviços, públicos e privados, relativos à assistência e proteção social
existentes, através da normatização, da criação de cadastro e matrícula das instituições
particulares, inclusive passa a existir critérios para a concessão de subvenções. Os serviços
sociais dirigidos ao atendimento de vários segmentos da população, que já são divididas em
diversas áreas de atuação, passam a receber tratamento de controle através de normatizações.
Destaque-se que as obras de caridade mantidas pelo clero e por leigos remontam a
uma longa tradição no Brasil, desde o período colonial. “A parca e precária infraestrutura
hospitalar e assistencial existente até fase bastante avançada do Império se deve quase
exclusivamente à ação das ordens religiosas que se implantam e se disseminam no Brasil”
(IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 169).
A separação entre a Igreja e o Estado, que se realiza na Constituição da República de
1891, trazendo como decorrência a perda dos privilégios que a Igreja detinha no Império, uma vez
que o catolicismo até então se colocava como religião oficial, não pode ser muito considerada.
Lima (1987, p. 24) analisa esse fato e afirma que nunca houve, de fato, tal separação.

Se por um lado, a Igreja perdeu suas regalias, por outro lado obteve a liberdade de
que não desfrutava, desvencilhando-se das incompatibilidades existentes entre o
poder imperial e o clerical, resultantes da intolerância do regalismo, unido à
maçonaria e aos liberais, contra o espírito clerical. Consequentemente, implantou-se
no Brasil o laicismo. Todavia, a Igreja conservou, por tradição, suas relações com o
Estado nos planos político e social.

Alceu Amoroso Lima (1973, apud Lima, 1987, p. 24) explicita melhor as
características dessa relação, ao dizer que a Igreja Católica,

[...] politicamente, vinculou-se aos grupos dirigentes, que detêm o poder na esfera
federal, estadual e municipal, de cujos favores muitas vezes depende. Esses favores
em geral são pagos pelo apoio prestado às autoridades públicas ou pela influência
exercida pelo clero secular junto aos fiéis em véspera de eleições.
103

Ressalte-se que a ação social da Igreja Católica no Brasil, no final do século XIX e
início do século XX, reduzia-se a obras beneficentes e educacionais mantidas por organizações
religiosas. Ainda não pautava a sua ação nos fundamentos contidos na encíclica Rerum
novarum, pois “a alta cúpula da Igreja tinha suas atenções voltadas para o combate aos seus
inimigos — protestantes, maçons e espíritas — [e] se mantinha afastada, indiferente aos
problemas operários resultantes da passagem de uma economia agrícola para industrial”
(LIMA, 1987, p. 24).
As significativas ondas imigratórias que passaram a chegar ao Brasil a partir de
meados da década de 1870, trazendo imigrantes europeus com forte formação católica, para
substituir a força de trabalho escrava, criam a demanda para que a Igreja amplie os seus
quadros, para cuidar aqui do seu “rebanho europeu”, uma vez que parte dele para aqui se
dirigira. Essas ordens, muitas delas advindas do continente europeu, pretendiam dar apoio
espiritual e material, aos imigrantes, mas também cuidar para que não fossem influenciados
pelas ideias anarquistas e comunistas, conforme bem expressam as encíclicas papais.
As entidades sociais de base confessional ocupam lugar de destaque no trabalho
assistencial, antes de tais iniciativas serem incorporadas pelo Estado, e muitas continuam a
operá-las, em parceria com o poder público, através de subvenções.
No Brasil como em outros países, o Serviço Social como profissão assalariada, surge
quando o Estado passa a intervir diretamente na relação capital-trabalho, aliviando-lhe a tensão
através da criação dos programas de política social, nos quais os assistentes passam a atuar.
Lidar com a questão social através da criação de políticas sociais passa a se constituir em outro
jeito do Estado lidar com as manifestações da questão social. Somente com o uso da força de
polícia corria-se o perigoso risco de sua deslegitimação diante do operariado em organização.
O Serviço Social é legitimado pela sociedade como profissão, o que é expresso por seu
assalariamento, e passa a ocupar um espaço na divisão sociotécnica do trabalho, como
mediador entre as classes sociais e como executor das políticas sociais (IAMAMOTO;
CARVALHO, 1985).
A partir daí, a questão social deixa de ser vista como questão de ordem social e
política, e é transfigurada em questão de ordem técnica, que, portanto, poderá ser tratada por
profissionais, dentre os quais o assistente social, através dos programas da política social.
Amortecer e controlar a população demandante dos serviços sociais dá um caráter
eminentemente político à intervenção do assistente social como trabalhador assalariado, desde
as suas origens.
104

Nessa época, o Serviço Social brasileiro se institucionaliza e se reorienta para


responder às novas configurações do desenvolvimento capitalista, que exige qualificação e
sistematização do seu espaço de atuação, visando responder às demandas do Estado, o qual
começa a desenvolver políticas sociais.
Nessa perspectiva, em 1938, portanto dois anos após o início da Escola de Serviço
Social de São Paulo, é organizada a Seção de Assistência Social paulista, que, logo após sua
criação, nesse mesmo ano, passa a ser denominado Departamento de Serviço Social.

A seção de Assistência Social tem por finalidade “realizar o conjunto de trabalhos


necessários ao reajustamento de certos indivíduos ou grupos às condições normais de
vida”, organiza para tal: o Serviço Social dos Casos Individuais, a Orientação Técnica
das Obras Sociais, o Setor de Investigação e Estatística e o Fichário Central de Obras e
Necessitados. O método central a ser aplicado é definido como sendo o Serviço Social de
Casos Individuais, devendo-se “estimular o necessitado, fazendo-o participar ativamente
de todos os projetos que se relacionam com seu tratamento [...] utilizar todos os
elementos do meio social que possam influenciá-lo no sentido desejado, facilitando sua
readaptação” e propiciar auxílio material reduzido ao mínimo indispensável, “para não
prejudicar o tratamento” (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 179).

Nessa origem, podemos perceber claramente que o Estado assume o papel de


subsidiário das instituições particulares geridas pela Igreja Católica, merecendo destaque o
registro de que o poder estatal assume a competência de distribuir subvenções, porque
certamente as verbas públicas eram e continuam sendo sempre menores que a demanda
colocada pelas instituições.
A administração de convênios e subvenções sempre envolve pareceres técnicos acerca
do estudo do mérito da solicitação e são realizadas por profissionais. Aqui aparece a dimensão
do caráter seletivo das políticas sociais mediada pela solicitação de verbas públicas das
instituições privadas ou da sociedade civil.
Diante desse fato, podemos perceber que a seletividade de acesso aos serviços sociais
envolve tanto a distribuição de recursos da esfera pública para a privada, visando à realização
da política, assim como a necessidade de as instituições fazerem a gestão dos recursos
recebidos selecionando os demandantes que terão acesso e os que não terão em função dos
critérios estabelecidos.
A seletividade aqui aparece no nível da decisão política, quando o acesso às
subvenções por parte das organizações sociais deverá se dar mediante a verificação dos
critérios estabelecidos e normas estabelecidas. Esse fato se coloca como mais um elemento
escamoteador do acesso como direito, uma vez que está intimamente relacionado à liberação
105

ou não de recursos através das subvenções e da seleção do indivíduo que preenche os critérios
de elegibilidade prescritos.
A profissão do assistente social, embora criada sob o impulso da Igreja Católica,

apenas pode se consolidar e romper o estreito quadro de sua origem no bloco


católico a partir e no mercado de trabalho que se abre com aquelas entidades
(referindo-se ao SESI, LBA). A partir desse momento só é possível pensar na
profissão e seus agentes concretos — sua ação na reprodução das relações sociais de
produção — englobados no âmbito das estruturas institucionais. O assistente social
aparecerá como uma categoria de assalariados — quadros médios cuja principal
mandatária será, diretamente ou indiretamente, o Estado. O significado social do
Serviço Social pode ser apreendido globalmente apenas em sua relação com as
políticas sociais do Estado, implementadas pelas entidades sociais e assistenciais
(IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 315).

Para desvendar o significado sócio-histórico da profissão, assim como as


possibilidades e limites da profissão, torna-se imprescindível apreender a relação direta
existente entre Serviço Social, política social e expressões da questão social.
Conforme vai ocorrendo a profissionalização dos assistentes sociais, o Serviço Social
“deixa de ser uma forma de distribuição controlada da exígua caridade particular das classes
dominantes, para constituir-se numa das engrenagens de execução das políticas sociais do
Estado e corporações empresariais” (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 316).
Os autores chamam a atenção para o fato de que o processo de institucionalização da
profissão ocorre ao mesmo tempo em que ocorre a profissionalização dos seus agentes.

As grandes instituições assistenciais desenvolvem-se num momento em que o


Serviço Social, como profissão legitimada dentro da divisão social do trabalho —
entendido o Assistente Social como profissional que domina um corpo de
conhecimentos, métodos e técnicas — é um projeto ainda em estado embrionário; é
uma atividade profundamente marcada e ligada à sua origem católica, e a de
determinadas frações de classes, as quais ainda monopolizam seu ensino e prática.
Nesse sentido, o processo de institucionalização do Serviço social será também o
processo de profissionalização dos Assistentes Sociais formados nas Escolas
especializadas (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 315).

Nas organizações que materializam a política social, o assistente social transforma-se


em agente de intervenção que executa a política social, recebendo mandato institucional para
falar em seu nome à população que demanda pelos serviços sociais oferecidos por tais
organizações. Dentre suas competências profissionais, encontra-se a seleção socioeconômica.
A seletividade é tratada pelos autores de forma crítica, ao observar a contradição presente
entre oferta e demanda.
106

O Assistente Social é chamado a constituir-se no agente institucional de “linha de


frente” nas relações entre a instituição e a população, entre os serviços prestados e a
solicitação dos interessados por esses mesmos serviços. Dispõe de um poder,
atribuído institucionalmente de selecionar aqueles que têm ou não direito de
participar dos programas propostos, discriminando, entre os elegíveis, os mais
necessitados, devido à incapacidade da rede de equipamentos sociais existentes de
atender todo o público que, teoricamente, tem acesso a eles (IAMAMOTO;
CARVALHO, 1985, p. 113; grifos meus).

No período de institucionalização de Serviço Social brasileiro, as demandas trazidas


pela população não são entendidas como direitos, mas como expressão de carências. Nesse
sentido, conforme bem colocam Iamamoto e Carvalho (1985, p. 325), o atendimento,

especialmente a distribuição de auxílios materiais, se faz acompanhar de uma


pressão moral que tem por horizonte impedir as acomodações e afirmar a ausência
de alternativas fora de um comportamento “racional e equilibrado” integrado à
ordem vigente. Partindo da noção de que todos poderiam obter um mínimo de bem-
estar que aquela ordem lhe reservaria, as situações de dependência, ao mesmo tempo
que alimentadas, são caracterizadas a partir de critérios morais. E às doses
homeopáticas de auxílios materiais se acrescenta um volume desproporcional de
controle e inculcação ideológica (grifos dos autores).

Aqui no Brasil, em relação à seleção socioeconômica, reaparece o reforço à ideia de


que a ajuda solicitada às organizações sociais pelo usuário deve ser concedida mediante a
comprovação de sua necessidade através da avaliação socioeconômica realizada pelo
assistente social. A seleção realizada pelo profissional deve obedecer aos critérios, atentando
para os poucos recursos existentes diante da demanda que é sempre maior que a oferta.
Espera-se, portanto, que sejam bem gastos pelo assistente social, que assim se torna um gestor
desses parcos recursos.

Nesse sentido, o profissional é solicitado a intervir como “fiscalizador da pobreza”,


comprovando-a com dados objetivos in loco, quando necessário, evitando assim que
a instituição caia nas “armadilhas da conduta popular de encenação da miséria”, ao
mesmo tempo em que procura garantir, dessa forma, o emprego “racional” dos
recursos disponíveis (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 114).

Esses autores, ao pesquisar e escrever sobre a emergência e institucionalização do


Serviço Social no Brasil, acabam por apresentar ricas informações e análises sobre a seleção
de acesso aos serviços e benefícios sociais praticada pelas diversas organizações pesquisadas,
especialmente a Legião Brasileira de Assistência (LBA), o Serviço Nacional de Aprendizagem
107

Industrial (Senai), o Serviço Nacional da Indústria (Sesi), a Fundação Leão XIII e a


Previdência Social. 65
É desses registros realizados por Iamamoto e Carvalho que passo a tratar a seguir, com
a intenção de apontar as referências relacionadas à seleção socioeconômica e à triagem e
assim dar visibilidade à significativa presença da profissão no controle de acesso aos serviços
sociais na institucionalização do Serviço Social brasileiro.
No que se refere à Associação Lar Proletário, primeira grande obra particular do Rio
de Janeiro a implantar o Serviço Social, em 1939, aparece:

As assistentes sociais desenvolverão atividades semelhantes (em creches, casas de


crianças, maternidades, escolas primária e de formação moral para o lar), além das
atividades relativas ao conjunto residencial (230 casas) construído pela instituição:
seleção das famílias após apurada pesquisa, orientação da distribuição dessas
famílias pelo Vila, seguir de perto a ocupação de cada uma das coisas,
“conquistando a simpatia dos assistidos” (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 194;
grifos das autoras em itálico e meus em negrito).

Ao tratar da atuação do serviço social na LBA, consta:

No referente às técnicas do Serviço Social, os relatos de práticas desenvolvidas parecem


mostrar que estas se manem basicamente dentro dos padrões preexistes. O inquérito, a
pesquisa social, as visitas domiciliares e entrevistas continuam sendo o fundamento do
serviço social de casos individuais. Este será utilizado para a determinação de auxílios
financeiros, encaminhamentos para serviços médicos, internação de crianças, obtenção
de empregos, regularização de documentos, regularização de vida conjugal, etc.
(IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 259; grifos meus).

Ao tratar do Serviço Social no campo médico, encontra-se registrado:

As iniciativas são ainda extremamente embrionárias. Estarão ligadas inicialmente à


puericultura e à profilaxia de doenças transmissíveis e hereditárias. As funções
exercidas se referirão à triagem (o que o cliente ou família pode pagar),
elaboração de fichas informativas sobre o cliente (“dados importantes que o médico
muito atarefado teria gasto muito para obter”), distribuição de auxílios financeiros
para possibilitar a ida do cliente à instituição médica, conciliação do tratamento
com os deveres profissionais do cliente (entendimentos com o empregador), o
cuidado quanto aos fatores “psicológicos e emocionais do tratamento”, e a
adequação do cliente à instituição através da “obtenção de confiança”
(IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 200; grifos das autoras em itálico e grifos meus
em negrito).

65
Em Iamamoto e Carvalho (1985), há 18 registros significativos relacionados diretamente à operação da
seletividade pelo assistente social nas organizações sociais que demandam seu trabalho na emergência e
institucionalização do Serviço Social no Brasil. Referências à seleção socioeconômica e à triagem podem ser
encontradas em Iamamoto e Carvalho (1985, p. 113, 114, 182, 194, 200, 259, 263, 273, 283, 289, 308, 310, 311,
319, 320, 321, 323, 324-325).
108

Ao tratar do Serviço Social no Senai, consta:

Como trabalhador assalariado, o assistente social aparece como produtor de


serviços- não diretamente produtivos — que são, no entanto, necessários à
existência e maior produtividade dos trabalhos diretamente produtivos, fato no qual
coincide com outras funções técnicas. Aparecerá como particularidade sua o fato de
coordenar- na instituição — a utilização de parcela dos outros serviços tornados
consumo produtivo. Atuará aí através da seleção e encaminhamento no sentido
de minimizar o seu custo per capita, concorrendo indiretamente para o aumento do
domínio do trabalho excedente (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 272-273; grifos
das autoras em itálico e meus em negrito).

Ao tratar da atuação do Serviço Social no Sesi, fica assinalado:

Terá assim a função de “coordenação das atividades da obra” atuando nos serviços
de plantão (primeiro contato e encaminhamento), na divisão médica (aspecto moral,
social e psicológico da doença), na divisão econômica (principal área de atuação
do Assistente Social, centrando-se nos estudos para concessão de auxílios,
orientação para o equilíbrio orçamentário, orientação quanto à utilização dos
recursos oferecidos, etc.), na divisão de lazeres e movimentos sociais e nos
trabalhos de ligação com as empresas e em seu interior (IAMAMOTO; CARVALHO,
1985, p. 283; grifos meus em negrito).

Nos programas e funções que o Setor do Serviço Social da Previdência Social


enumera como atividades dos assistentes sociais, consta:

3. Seleção econômico-social:
• para a obtenção de benefícios pagos (imóveis, etc.);
• para distribuição de auxílios.
4. Distribuição de auxílios:
• fornecimento de medicamentos gratuitos;
• compra de aparelhos ortopédicos;
• auxílios destinados à manutenção quando atrasam os benefícios;
• auxílios diversos em dinheiro, para regularização da situação civil, para
realização de tratamentos (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 308-309; grifos
meus em negrito).

Em face das atividades realizadas pelos assistentes sociais na Previdência Social,


consta uma análise que referencia a seleção socioeconômica como ferramenta, instrumento de
controle de acesso aos serviços e benefícios sociais:

Há, nesse quadro — e se verdadeira essa colocação — um fosso profundo entre as


necessidades prementes de grandes parcelas da população, lançada em
diferentes níveis de pauperismo, e o campo restrito dos benefícios que o seguro
social pode ou pretende propiciar. Surge inicialmente, a necessidade de triagem
da população que demanda a instituição. Tem por sentido eliminar aqueles que
não têm vinculação com o aparelho produtivo e encaminhar para outra instituição
de seguro aqueles que não são vinculados ao setor de atividade próprio daquela
109

instituição em particular. Cabe, em seguida, um segundo nível de triagem, que se


refere a estar ou não o segurado apto a requerer determinados benefícios e/ou
se aquela demanda se enquadra dentro dos programas preestabelecidos. Há
assim, esquematicamente, um primeiro nível de contradição entre as imensas
carências da população segurada e aquilo que pode obter do seguro, o leque
limitado de benefícios e sua qualidade (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 309;
grifo em itálico das autoras e grifo meu em negrito).

Na citação acima, fica exposta claramente, na análise empreendida pelos autores, que
as triagens e seleções se impõem para lidar com o fosso existente entre as necessidades de
grandes parcelas da população e o campo restrito dos benefícios sociais. Aqui, aparece a
busca dos fundamentos para explicar a necessidade da realização de triagens e seleções como
forma de acesso e condição de acesso aos benefícios sociais. Há a procura de apreensão da
prática profissional na sociedade capitalista, a partir do ponto de vista que interessa aos
trabalhadores. Pela boca e pelo pensamento dos autores, não fala um assistente funcionário
das organizações sociais, mas pesquisadores críticos que desejam fundar a prática profissional
em outras bases. Conhecer o que se esconde nas nossas atribuições e competências é entender
e reconhecer como o Serviço Social existe, o que se impõe como condição da decisão sobre
de que forma vale a pena realizar a profissão explicitando os compromissos e depois como
poderemos realizá-los.
Penso que, aos moldes da ética, sempre cabe perguntar que Serviço Social vale a pena
ter e de que jeito podemos e queremos ser assistentes sociais, diante de um mundo tão
desumanizado e cruel para com grande parte da humanidade.
Ainda tratando do Serviço Social no âmbito da Previdência Social, os autores
assinalam que, na distribuição de auxílios, a triagem econômica e social é uma das atividades
básicas do Serviço Social naquela instituição e nos apresentam outra faceta que confirma a
dificuldade do acesso aos serviços e, por isso, se coloca no horizonte profissional. Trata-se da
alternativa do encaminhamento como forma de satisfação daquela demanda trazida pelo
usuário que não é possível atender, e mesmo para lidar com aquelas em relação às quais não
se sabe o que fazer.

Encaminhar a população sem “cidadania social” às obras caridosas da comunidade,


encaminhar os usuários cujos problemas não se enquadram nos programas do
seguro a instituições semelhantes, possibilitar algum tipo de auxílio que,
acompanhado e como base do aconselhamento moral, procure neutralizar o
inconformismo (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 311; grifo em negrito meu).

Tendo em vista que, na ordem institucional, o atendimento às demandas da população


são parcializadas, segmentadas e subdividas em áreas de atuação, atender o indivíduo
110

pressupõe recorrer ao encaminhamento, buscando satisfazer às necessidades apresentadas por


ele. Só que em cada organização há triagens, critérios de funcionamento e deveres a serem
cumpridos pelos demandantes de seus serviços. Embora seja a mesma população que recorre
aos diversos serviços sociais, com história e necessidades semelhantes, porque forjadas pelos
mesmos processos, na ordem institucional, geralmente, não se tem essa compreensão.
Então, afinal, para o demandante dos serviços, é uma história que se repete; para os
profissionais, aquelas histórias se constituem em “casos”, tratados a partir da premissa de
“cada caso é um caso”, pautado na visão de que cada indivíduo é único e, por esse motivo,
deve-se individualizar a compreensão e o atendimento. Se não se consegue nem lidar com o
que há de comum, de social nas situações, quanto mais difícil será cuidar das especificidades.
Então para que individualizar tanto o acesso?
Iamamoto e Carvalho (1985, p. 311), ao analisar o significado do tratamento dado ao
segurado da Previdência Social, fornecem elementos para responder a questão colocada.

O amortecer das contradições torna necessário, também, obscurecer a regularidade


estatística dos casos, sua base de classe, procurando desvinculá-los das relações
sociais de produção e do próprio seguro. A individualização do seguro, a negação
dos casos gerais, a consideração da totalidade do problema, permite a partir do
histórico familiar e da formação moral e social do usuário cliente do Serviço Social,
um novo diagnóstico de sua situação carencial

No sentido de localizar as triagens e seleções socioeconômicas presentes nas políticas


sociais como forma e condição de acesso aos serviços sociais, é preciso também elucidar:

A institucionalização das atividades assistenciais a nível do Estado e a própria demanda


de profissionais especializados para atuação nesse campo expressa, de um lado, a
ampliação e intensificação das tensões sociais que acompanham o desenvolvimento
social e a necessidade de mobilizar recursos no sentido de atenuá-las ou preveni-las,
controlando-as segundo parâmetros de racionalidade e eficiência. De outro lado,
expressa, também, o reconhecimento oficial das diferenças sociais crescentes e da
situação de pobreza de parcelas expressivas da população. Paradoxalmente, porém, as
medidas mobilizadas pelo Estado não são suficientes para alterar substancialmente as
situações diagnosticadas à proporção que lhes cabe preservar os pilares da organização
vigente na sociedade (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 112).

As medidas incorporadas são pertinentes para realizar outro objetivo que se dirige ao

contorno político dos “problemas sociais”, abafando, momentaneamente, as tensões


e estabelecendo ou fortalecendo vínculos de dependência da população carente com
o Estado através das instituições de cunho assistencial ou previdenciário. Na busca
de contornar a desigualdade econômica, reforçando a “sensação” de uma
participação mais efetiva do cidadão no poder e nos “benefícios sociais”, o que se
111

obtém como resultado é a reprodução da desigualdade social e do poder segmentado


de uma base de legitimamente popular (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 112).

A comprovação da carência, por sua vez, realizada pelo profissional mediante a


comprovação dos fatos apresentados pelos candidatos aos serviços sociais, através do
diagnóstico da situação, torna-se condição e forma de acesso aos serviços sociais. Mas, ao
final, não são critérios que especializam a demanda? Não são os critérios que restringem e
afunilam o acesso? Qual é a relação entre individualização e afunilamento do acesso?
Iamamoto e Carvalho respondem:

O Serviço Social atuará, então, no sentido de aplainar as arestas; individualizar os


casos; propiciar alguma solução paliativa como satisfação às demandas; jogar
para frente o problema insolúvel, se encarado em seu conjunto, em sua
manifestação social, nos limites do modo de produção vigente. Funcionando a
partir de plantões, na seleção, triagem e encaminhamentos, nos esclarecimentos
e viabilização de acesso às instituições e programas, colocando-se como anteparo
entre estes e a população-cliente, etc., parte substancial da atuação do Serviço Social
apenas aflora as práticas materiais que justificam, teoricamente, a existência dessas
instituições e programas (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 323; grifos das autoras
em itálico, grifos meus em negrito).

Como fruto do rastreamento e da análise aqui apresentada na emergência e


institucionalização da profissão, nos EUA, na Europa ocidental e no Brasil, permito-me concluir
que a via de acesso aos serviços sociais foi e tem sido seletiva, antes mesmo da constituição da
profissão do assistente social, uma vez que dar acesso a todos —, ou seja, universalizar o
ingresso — seria e continua sendo ir contra a própria natureza da ordem capitalista.
O acesso ao atendimento dos serviços sociais, por conseguinte, desde o surgimento da
ordem burguesa, vem ocorrendo mediante a prova de recursos, isto é, após o demandante do
atendimento preencher os quesitos estabelecidos, depois de ficar comprovada sua necessidade
e se houver recursos disponíveis para atendê-lo, sendo que nesse processo seletivo de acesso,
os assistentes sociais tiveram papel de destaque nos primórdios da profissão.
112

CAPÍTULO 3 — A SELEÇÃO SOCIOECONÔMICA, POLÍTICA, SOCIAL E


SERVIÇO SOCIAL

Após explicitar como a seleção socioeconômica integrou as propostas de proteção


social historicamente construídas e de que forma se incorporou ao Serviço Social como
atividade do assistente social, neste capítulo se analisa especificamente a maneira como a
seleção socioeconômica vincula-se à política social enquanto forma de enfrentamento da
questão social e provedora de instrumentos para a realização de mediações que legitimam a
desigualdade inerente à sociedade de classes. Para tanto, examina-se como tal seleção
contribui para realizar a inclusão e a exclusão das pessoas no acesso aos serviços e benefícios
sociais ao mesmo tempo e pelos mesmos meios. Em seguida, aborda-se a utilidade da
intervenção profissional no sentido de legitimar a seleção socioeconômica enquanto
instrumento da política social que realiza, pelo mesmo processo, o duplo movimento de
inclusão-exclusão aos serviços e benefícios sociais.

3.1. Natureza e utilidade da seleção socioeconômica no âmbito da política social

É fato amplamente reconhecido a vinculação do surgimento das políticas sociais à


constituição da sociedade burguesa, não desde seu início, mas

[...] quando tem-se o reconhecimento da questão social inerente às relações sociais


nesse modo de produção (refere-se ao capitalista), vis-à-vis ao momento em que os
trabalhadores assumem um papel político e até revolucionário. Tanto que existe
certo consenso em torno do final do século XIX como período de criação das
primeiras legislações e medidas de proteção social, com destaque para a Alemanha e
a Inglaterra, após um intenso e polêmico debate entre liberais e reformadores sociais
humanistas (BEHRING, 2007, p. 14).

Não se pode falar do Estado (e da sociedade) como fenômeno genérico e estático,


tornando-se indispensável qualificá-lo e situá-lo na história, pois, não obstante todos os tipos
de Estado se apoiem na ideia de poder, existem particularidades marcantes que os distinguem.

O Estado não é um fenômeno dado, a-histórico, neutro e pacífico, mas um conjunto


de relações criado e recriado num processo histórico tenso e conflituoso em que
grupos, classes, ou frações de classe se confrontam e se digladiam em defesa de seus
113

interesses particulares. É por isso que o Estado é uma arena de conflitos e interesses
(PEREIRA, 2008b, p. 26).

Aqui, referimo-nos ao Estado na época do capitalismo monopolista ou oligopolista,


configurando-se como elemento claramente interessado nos conflitos que envolvem a relação
entre capital e trabalho, e assumindo um papel regulador dessa relação que desejamos afirmar.
Nesse contexto, cabe explicitar que:

O Estado, como instância da política econômica do monopólio, é obrigado não só a


assegurar continuamente a reprodução e a manutenção da força de trabalho, ocupada
e excedente, mas é compelido (e o faz mediante os sistemas de previdência e
segurança social, principalmente) a regular a sua pertinência a níveis determinados
de consumo e a sua disponibilidade para a ocupação sazonal, bem como a
instrumentalizar mecanismos gerais que garantam a sua mobilização e alocação em
função das necessidades e projetos do monopólio (NETTO, 1996a, p. 23).

O Estado, na sociedade capitalista, é um Estado burguês. Mas, para se legitimar diante


da sociedade como um todo, necessita passar a ideia de que defende os interesses de todos e que
está acima das classes sociais. Nesse sentido, para se legitimar diante dos trabalhadores ou
daqueles que dependem do trabalho para viver, precisará incorporar algumas de suas demandas.

O Estado, como centro de exercício do poder político, é a via privilegiada através da


qual as diversas frações das classes dominantes, em conjunturas históricas
específicas, impõem seus interesses de classe ao conjunto da sociedade, como
ilusório interesse geral. [...] No interior da classe dominante encontram-se presentes
interesses divergentes entre suas frações, que lutam entre si pelo controle do poder e
pela apropriação da maior parcela possível do excedente produzido sob a forma de
lucro industrial e comercial, juros e renda da terra. O Estado supõe, pois, a aliança
de segmentos sociais, cujos interesses são conflitantes, embora não antagônicos.
Porém, se o poder de Estado exclui as classes dominadas, não pode desconsiderar
totalmente as suas necessidades e interesses como condição mesma de sua
legitimação (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 81-82).

O Estado que é burguês, para manter a hegemonia, necessita expressar os interesses


das partes (frações das classes dominantes) que representa, como se fossem do interesse de
todos, inclusive das classes dominadas. Nesse cenário, surgem as políticas sociais tidas como
um dos espaços de concretização das demandas da força de trabalho, visando apaziguar e
controlar tensões que potencialmente possam afetar o curso de desenvolvimento do projeto
das classes que se pretendem hegemônicas.

O Estado [...] ao buscar legitimação política através do jogo democrático, é


permeável a demandas das classes subalternas, que podem fazer incidir nele seus
interesses e suas reivindicações imediatas. [...] este processo é todo tensionado, não
114

só pelas exigências da ordem monopólica, mas pelos conflitos que esta faz dimanar
em toda a escala societária (NETTO, 1996a, p. 25).

Dentro dessa concepção, entendemos que a política social é constituída por um campo
de forças e que, para compreendê-la, é indispensável atentar para o movimento real e concreto
da conjuntura em pauta e para as forças sociais em jogo. É preciso levar em consideração a
correlação de forças existente entre o movimento do capital, que visa defender seus interesses,
e o movimento concreto do trabalho ou dos trabalhadores, que luta por melhores condições de
vida e trabalho.
A política social, através de seus programas, visa garantir fundamentalmente a
reprodução da força de trabalho e manter sob controle e tutela os excluídos do “pacto de
dominação”. 66 Como resultantes da luta de classes, dependendo da correlação de forças
presentes no cenário social, em suas diversas conjunturas, tais programas poderão ser mais
ousados ou mais tímidos quanto ao atendimento das demandas colocadas. Quando a
correlação de forças é favorável aos trabalhadores, os recursos aumentam e, portanto, um
número maior de indivíduos será beneficiado; quando é desfavorável, alguns direitos já
conquistados passam a ser questionados. O atendimento às classes dominadas, como
consequência, deve ser absorvido pelo Estado desde que não afete o “pacto de dominação”,
sob o qual este se concretiza e sobre o qual se apoia na defesa dos interesses das frações
dominantes. Para manter sua legitimidade, no entanto, há necessidade também de atender as
demandas dos excluídos, incluindo-os como subordinados.
Tendo em conta que o desenvolvimento capitalista é complexo e não pode ser tomado
de forma mecânica, é importante destacar que “o bloco dominante não responde sempre com
concessões às pressões sociais, mas também com desarticulação, fragmentação, cooptação,
esvaziamento do bloco dominado e no horizonte da repressão que se faz presente implícita e
explicitamente” (FALEIROS, 1989, p. 126).
Face ao exposto, pode-se compreender claramente que a ampliação ou o enxugamento
das políticas sociais nas diversas conjunturas têm relação direta com a capacidade de pressão
e ameaça que a luta dos trabalhadores possa exercer sobre o projeto de dominação. Quanto

66
Aqui, “pacto de dominação” é utilizado como sinônimo de Estado, conforme Kowarick (1979). Faleiros (1980,
p. 59-60) reforça esse entendimento, ao explicar que o Estado capitalista “não realiza a política dos capitalistas
individualmente tomadas. Ele realiza os ‘interesses gerais do capital’, como uma instituição especial,
independente dos capitais individuais. Isso o coloca numa situação contraditória, obrigando-o a realizar
compromissos entre as distintas frações da burguesia (por exemplo, entre o capital financeiro e o industrial) entre
as exigências do capital como um todo e as pressões dos trabalhadores e de outras forças sociais [...] O Estado
capitalista é uma garantia de manutenção das condições gerais de reprodução do capital e da produção, isto é, da
acumulação capitalista”.
115

maior for a pressão, maior e melhor terá que ser a resposta dos grupos dominantes, pois seu
objetivo é manter a legitimidade do poder estabelecido (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985).
Em outras palavras, as medidas e os programas sociais só podem ser entendidos e
decifrados se forem situados no contexto da sociedade capitalista no âmbito do movimento
histórico das classes ou frações das classes sociais em presença.

É necessário compreender dinamicamente a relação entre Estado e o processo de


acumulação do capital para poder visualizar o significado dos programas e medidas
dos quais estamos tratando [...] A política social é uma gestão estatal da força de
trabalho, articulando as pressões e movimentos sociais dos trabalhadores com as
formas de reprodução exigidas pela valorização do capital e pela manutenção da
ordem social (FALEIROS, 1980, p. 55-59).

Os programas de política social, articulando entes públicos e privados, procuram


também criar uma imagem de neutralidade do Estado e das organizações particulares que,
“imparcialmente”, estariam interessadas em abrir oportunidades a todos, visando o bem-estar
do conjunto da população. No discurso, pretenderiam, através dos seus programas, dar acesso
aos interessados nos serviços, fazendo justiça num mundo tão injusto ao criar para os
injustiçados, possibilidades de acesso (desde que estes atendam aos requisitos estabelecidos).
Porém, apesar do discurso dirigido a todos os interessados, a justificativa de que os
recursos são insuficientes 67 para abarcar toda a demanda coloca em cena a seleção
socioeconômica, tornando-se condição para determinar a escolha dos que serão beneficiados e
dos que não o serão. A seleção implicará selecionar alguns e descartar outros. Ou melhor: a
seleção socioeconômica de acesso aos serviços sociais enquanto instrumento da política social
realizará o movimento de inclusão-exclusão ao mesmo tempo e pelo mesmo processo.
Assim procedendo, aqueles programas acabam por promover a exclusão de uma parte
da demanda de forma aceitável pela sociedade em geral, e realizam o principal objetivo da
seleção socioeconômica, que é o de institucionalização da desigualdade social — justificada
com base no sistema de meritocracia dos critérios para verificação e comprovação da
necessidade alegada pelo demandante do serviço ou benefício social.
Como forma de acesso diante da insuficiência de recursos a serem alocados para
atender a todos, a incidência de processos seletivos é tão significativa na nossa sociedade
injusta e desigual que estes acabam compondo o nosso cotidiano, como se fossem naturais.
Vejamos, entre tantos outros possíveis, dois exemplos.

67
Entenda-se que os poucos recursos podem ser de pessoal, de verba e de equipamento, entre outras
possibilidades. São as faltas de recursos humanos, materiais e financeiros que impedem o acesso da população
aos serviços que viriam para responder ou suprir necessidades.
116

• Programas de distribuição de cestas básicas pelos governos e entidades


assistenciais são abertos a todos — desde que fiquem comprovadas a pobreza e as
necessidades dos beneficiados. Toma-se geralmente como parâmetro de análise o
nível da indigência, ou seja, aquela condição que não concede aos indivíduos
recursos nem para se reproduzirem biologicamente.
• Programas habitacionais destinados à aquisição da casa própria são abertos a
todos — mas é necessário que o candidato, de um lado, demonstre que é pobre e,
de outro, comprove que pode pagar a mensalidade estabelecida. A escolha dos
beneficiados pode ser, por exemplo, mediante sorteio, criando-se assim a ideia, aos
olhos da população, de que quem conseguiu uma unidade habitacional teve “sorte”
e, portanto, os outros concorrentes estavam com “azar”. Consequentemente, não é
colocada em questão a insuficiência de recursos destinados ao atendimento
habitacional que beneficia uns, enquanto uma parcela significativa da população
(com o mesmo perfil dos “sorteados”) continuará sem acesso à moradia.
Portanto, o fundamento do processo de seleção socioeconômica reside na necessidade
de “naturalização” das desigualdades sociais, inevitavelmente existentes na sociedade de
classes. Esse processo de dar acesso apenas a uma parcela dos demandantes existe —
repetimos — para que o Estado e as organizações sociais obtenham legitimação diante da
população em geral e, principalmente, dos segmentos excluídos.
Para Iamamoto e Carvalho (1985), a sociedade do capital supõe uma contradição
inevitável na sua continuidade: o discurso da igualdade e a realização da desigualdade.

[De um lado, tem-se] a afirmação da liberdade individual e da igualdade de direitos e


deveres de todos os cidadãos, como condição de funcionamento pleno da economia de
mercado. [...] Em polo oposto, tem-se a desigualdade inerente à organização da
sociedade como unidade de classes sociais distintas e antagônicas assentadas em uma
relação de poder e exploração (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 91).

Ou seja, o discurso jurídico, que consta na lei, é o dos direitos sociais que têm por
justificativa a cidadania, embora seu fundamento seja a da desigualdade de classes. Isso indica
a impossibilidade de haver no capitalismo serviços sociais universais e incondicionais,
reforçando a ideia de que, na prática, o que existe é o direito do indivíduo poder se candidatar
ao acesso. A seletividade das políticas sociais espelha a sua natureza de inclusão-exclusão. O
que se pretende com a realização da seleção socioeconômica, como forma e condição de
acesso, é tornar o não acesso de alguns aceitável por eles mesmos, diminuindo-se assim as
possibilidades de questionamento da própria seleção e da desigualdade que carrega. Da
117

mesma forma, ficará desfocado o fato que deu origem à seletividade, ao se colocar em foco a
alegada falta de recursos para atender a todos.
Demo (1997) enfatiza esse processo de inclusão-exclusão:

A pobreza é inerente ao capitalismo no plano estrutural porque não poderia colocar-se


fora da estrutura de desigualdade e no plano político porque o mercado a reproduz como
dinâmica própria. Significa também dizer que não é viável acabar com a pobreza no
capitalismo — já que dela em grande parte vive — bem como é possível confrontar-se
com ela, pois é fenômeno histórico, e nisto “mexível” (DEMO, 1997, p. 48-49).

Esses argumentos corroboram que a exclusão e a pobreza não podem ser tratadas
separadamente dos processos que as produzem, sob pena de se colocar nos indivíduos o peso
e a culpa de sua situação, ao não entendê-la como desigualdade social, produto da exploração,
da dominação de classe. Por outro lado, por ser produto histórico, pode ser transformada na e
pela luta social. Nesse quadro, cumpre entender que não é possível acabar com a pobreza
somente com medidas de políticas sociais, sem mexer no processo que produz a pobreza e os
pobres que a carregam como marca e jeito de viver. Na sociedade do capital, o mesmo
processo que produz a pobreza, pelos mesmos meios também produz a riqueza.
A seletividade das políticas sociais reitera e materializa esse embasamento, expondo
claramente essa contradição, especialmente quando o discurso de muitas dessas políticas
aparece como universalista. Mas a simples existência da necessidade da seletividade (acesso
mediante comprovação) acaba por reescrever esse discurso na prática. O que era um direito
universal, finalmente, se restringirá ao direito de se inscrever ao acesso, provando que
preenche os requisitos, os critérios estabelecidos. Aquilo que era um direito do cidadão, na
prática, muitas vezes, só se realizará depois que ficar comprovado que a família não pode
arcar com o custo do bem solicitado, através do means test.
Essa natureza excludente dos serviços sociais, inerente às políticas sociais — das quais
a seleção socioeconômica, como já apontamos, tornou-se instrumento básico — mostra-se
então saturada de mediações que não se revelam na imediaticidade da prática. Nessas
circunstâncias, impõe-se um árduo trabalho de desvendamento, para perceber o que se
esconde por e através da seleção socioeconômica.
A própria forma como se desenvolve a seleção, ressaltando o mérito como fator de
acesso aos serviços, já carrega um poder de convencimento. É preciso ter claro também que
esse acesso nem sempre é considerado pela população como direito. Na sociedade brasileira,
seu entendimento como favor é historicamente consagrado, dando habitualmente margem ao
uso eleitoreiro de sua oferta. Daí a ocorrência de pressões políticas de várias ordens, ligadas
118

aos processos seletivos, atravessando-os mediante demandas particularistas advindas de


políticos profissionais dos vários poderes da nação e de outras personalidades, em benefício
de seus apadrinhados, com desrespeito aos critérios seletivos estabelecidos para todos.
É bem conhecido como os bens públicos são tratados e apropriados por
administradores públicos em geral, como se fossem privados. As escolas, as creches, os
centros esportivos, dentre outros equipamentos, são quase sempre gerenciados como se seus
diretores fossem seus donos, uma vez que não se veem na obrigação de prestar contas da sua
gestão aos usuários dos serviços. Entender os bens públicos enquanto tal pressupõe
participação direta da população na gestão dos equipamentos sociais.
Ainda que Weber tenha formulado, em outro contexto, sua concepção de “dominação
patrimonialista”, ressaltando a apropriação do público, de forma privada, pelo governante,
podemos identificar sua presença no Brasil atual. Referindo-se ao País, Schwartzman (1988,
p. 59-60) fala num “neopatrimonialismo”, ou patrimonialismo moderno dos Estados que se
formaram à margem da revolução burguesa, que “não é simplesmente uma forma de
sobrevivência de estruturas tradicionais em sociedades contemporâneas, mas uma forma
bastante atual de dominação política por um ‘estrato social sem propriedades e que não tem
honra e mérito próprio’, ou seja, pela burocracia e a chamada ‘classe política’”. No Brasil, é
muito comum o uso da máquina pública, por parte de políticos em geral, incluindo dentre
eles, prefeitos, governadores, deputados, etc., para promover favores pessoais “aos
apadrinhados” ou aos “cabos eleitorais”, à margem dos critérios estabelecidos para o acesso
aos serviços.
Essa forma de lidar com interesses públicos, como se fossem privados, também
comparece nas seleções em geral e em especial nas de corte socioeconômico, sob a forma de
pressão através de “cartinhas” e “telefonemas” para que o profissional dê um “jeitinho” de
“encaixar” no atendimento os seus eleitos. Isso tem contribuído para criar uma imagem
estigmatizada das seleções socioeconômicas, principalmente as que ocorrem nos plantões
sociais, como serviço desqualificado na intervenção profissional — portanto, desprezível.
Note-se que a população recorre a esses favores exatamente porque reconhece a seletividade e
a dificuldade de acesso.
Ainda uma vez, observa-se que os disfarces para a falta de acesso aos serviços sociais
aparecem como decorrentes da “politicagem” no processo, omitindo-se a falta de recursos
disponíveis para atender a todos interessados e necessitados.
Ninguém ousa questionar, pois “sempre foi assim e assim continuará sendo”. São
poucos na profissão do assistente social os que, por livre escolha, se interessam de fato por
119

realizar a seleção socioeconômica adequadamente. Desse modo, a ingerência política continua


legitimada pelo silêncio do funcionário, que se sobrepõe ao do profissional.
Se a seleção socioeconômica pauta-se pela alegação institucional de que os recursos
são poucos ou que não há recursos para atender a todos, é preciso agora perguntar: de onde
vêm os recursos destinados aos serviços sociais?
A fonte dos recursos destinados aos serviços sociais, geridos direta ou indiretamente
pelo Estado, não são doações. Esses recursos são parte da riqueza socialmente produzida, cuja
distribuição poderia ser feita de outra forma, ou seja, mais justa e equitativa.

A riqueza social existente, fruto do trabalho humano, é redistribuída entre os


diversos grupos sociais sob a forma de rendimentos distintos: o salário da classe
trabalhadora, a renda daqueles que detêm a propriedade da terra, o lucro em suas
distintas modalidades (industrial, comercial) e os juros daqueles que detêm o capital.
Parte da riqueza socialmente gerada é canalizada para o Estado, principalmente sob
a forma de impostos e taxas pagos por toda a população. Assim, parte do valor
criado pela classe trabalhadora e apropriado pelo Estado e pelas classes dominantes
é redistribuído à população sob a forma de serviços, entre os quais os serviços
assistenciais, previdenciários ou “sociais”, no sentido amplo. [...] tais serviços,
públicos ou privados, nada mais são do que a devolução à classe trabalhadora de
parcela mínima do produto por ela criado, mas não apropriado, sob a forma de outra
roupagem: a de serviços ou benefícios sociais (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 92).

Essa explicação é reforçada por Behring (2010). Para esta autora, o fundo público

se forma a partir de uma punção compulsória — na forma de impostos,


contribuições e taxas — da mais-valia socialmente produzida, ou seja, é parte do
trabalho excedente que se metamorfoseou em lucro, juro ou renda da terra e que é
apropriado pelo Estado para o desempenho de múltiplas funções de reprodução do
capital e da força de trabalho (BEHRING, 2010, p. 31).

Os recursos destinados à realização das políticas sociais expressam, portanto, o trato


que uma sociedade dá à riqueza socialmente produzida. Como já ficou dito, na sociedade
capitalista, a alocação de recursos tem a ver com as correlações de forças existentes e
presentes nas diversas conjunturas, sendo que a ampliação dos recursos tem a ver mais com as
conquistas obtidas pelos trabalhadores por meio de suas lutas e menos com a realização de
justiça e igualdade; não obstante, no discurso dos governantes das organizações sociais e dos
governos que ocupam o Estado os serviços sociais são apresentados como se fossem doações
e atos de humanidade. Em face desse entendimento, podemos considerar que a insuficiência
de recursos para o atendimento de toda a população tem a ver mais com a distribuição da
riqueza de uma sociedade e menos com a pobreza de uma nação, ou seja, a inexistência real
120

desses recursos. O Brasil não é um país pobre, possui recursos e riquezas em abundância que
se encontram concentradas nas mãos dos que representam o capital.
É importante considerar também que os serviços sociais não são concebidos e
pensados da mesma forma por todos os segmentos sociais. Para os empresários, os recursos
destinados aos benefícios sociais são investimentos que visam ao aumento da produtividade
de seus empregados e/ou ao marketing; são recursos que podem ser descontados do
pagamento do imposto de renda e, por isso, significam a remuneração fiscal paga pela
sociedade em geral. Para os trabalhadores, no entanto, os serviços sociais sempre significam
ganhos, benefícios, acesso, melhoria de condições de vida. Nesse sentido, aquilo que parecia
doação, de fato, é dinheiro público usado de forma privada para se apresentar de maneira
humana e solidária, sob a forma de doações.
Entretanto, como observa Demo (1997, p. 10), “[...] toda política social no capitalismo
consegue, no máximo, combater a pobreza nos limites do mercado capitalista, donde retira
sua tendência recorrente de tornar-se mecanismo de controle e desmobilização social”.
Assim, é importante destacar que as políticas sociais configuram-se como novo modo
de enfrentamento da questão social imposta pelo desenvolvimento e pela ampliação do
capitalismo industrial e da expansão urbana. A intervenção estatal sobre a questão social dá-se
através da política social, que se expressa nas particularidades das políticas sociais
(setorizadas), e é dessa forma que a questão social é fragmentada e parcializada. Os
programas dessas políticas setorizadas passam a atuar nos resíduos, consequências e sequelas
da questão social. “E não pode ser de outro modo: tomar a ‘questão social’ como
problemática e configuradora de uma totalidade processual específica é remetê-la
concretamente à relação capital/trabalho o que significa, liminarmente, colocar em xeque a
ordem burguesa” (NETTO, 1996a, p. 28).
Recortar a questão social em problemáticas particulares, em problemas sociais, não é
mecanismo qualquer de que o Estado burguês se utiliza através dos organismos sociais que a
materializam. O sentido dessa fragmentação é polarizar para permitir tratar das consequências
e transfigurar os ditos “problemas sociais” em problemas pessoais, entendidos como se
fossem, exclusivamente, de foro íntimo e privado — portanto, cada um torna-se responsável
único pelo acesso, dependendo do seu mérito. Em decorrência, entendemos que a
competência profissional pressupõe entender os processos econômicos e políticos envolvidos
e encobertos nas ações seletivas, assim como entender que as seleções e triagens têm profunda
relação com escolhas e valores. É essencial revelar e considerar, na prática dessas escolhas, os
compromissos ético-políticos de quem as realiza.
121

Falar do capitalismo na era da globalização neoliberal é falar do desemprego


estrutural, acompanhado da diminuição das funções do Estado, que passa a delegar a
execução das políticas sociais, mediante terceirizações do atendimento, assim como da
redução dos gastos públicos, ao mesmo tempo em que aumenta a demanda pelas políticas
sociais. Nesse quadro traçado em breves linhas, podemos constatar que a tendência é a de
aumentar a seletividade das políticas sociais, embora, no Brasil, paradoxalmente, o discurso
seja o da universalização do atendimento desde a Constituição de 1988 — mas a prática da
focalização e da privatização do atendimento vem se intensificando.
Na conjuntura atual — tendo em vista a correlação de forças que não é favorável ao
trabalho, com o enfraquecimento dos sindicatos e da organização da sociedade civil em geral,
depois de mais de vinte anos de neoliberalismo acompanhado do crescente e preocupante
individualismo —, além de não haver novas conquistas, ocorreram perdas de direitos
conquistados anteriormente conquistados como fruto de muita luta dos trabalhadores
organizados. Vivemos, então, diante de muitos paradoxos, um dos quais é o da população
que, ao ver sua vida empobrecida pela conjuntura de desemprego e de salários muito baixos,
tem que recorrer com maior frequência aos programas sociais e assistenciais e aos
profissionais que os executam. Num momento como este, a explicitação do significado das
seleções socioeconômicas é muito necessária, tendo em vista que, na sua operação, a
tendência é a de aumentar a seletividade, ou seja, os critérios de operação.

3.2. Modalidades das seleções socioeconômicas e critérios

Do que conseguimos apreender até o momento acerca das formas ou modalidades de


acesso, percebemos duas modalidades básicas de acesso, a partir da forma como os recursos
encontram-se alocados no serviço ou benefício social.
A primeira modalidade refere-se às situações nas quais há um montante de verba ou
recursos predeterminados sujeitos a alterações nas diversas conjunturas sociais e políticas que
se colocam. Não estão garantidos na lei nem constituem direitos conquistados de fato;
mostram-se, portanto, vulneráveis às diversas conjunturas sociais e políticas e às mudanças de
governo. São programas que podem ter muito êxito em um governo, mas, com a
descontinuidade administrativa, serão desativados ou morrem aos poucos, porque não haverá
destinação orçamentária para a sua realização. O serviço é prestado diretamente pelo poder
122

público ou mediante convênios com entidades sociais; também pode se constituir em


atendimentos realizados com recursos não públicos.
Neste caso, existem recursos que serão administrados ou gerenciados por profissionais.
O acesso dos indivíduos ficará vulnerável e dependente do número de candidatos “inscritos”. Se
dois candidatos apresentarem as mesmas condições e houver recursos para atender somente um,
serão necessários critérios de desempate, que poderão estar claramente definidos ou não.
Quando os critérios são claramente definidos, adquirem mais transparência e podem ser objeto
de controle da população. Se os critérios ficarem em aberto, geralmente, cabe ao profissional,
por meio de seus estudos socioeconômicos, de caráter avaliativo, escolher caso a caso os
candidatos que terão acesso ao benefício. Programas assistenciais de cesta básica, vales
transporte, empréstimos a funcionários em empresas, bolsas de estudos em escolas particulares
no Brasil, são alguns dentre os muitos exemplos possíveis.
Na segunda modalidade, a diferença do acesso é que os critérios de acesso são
formulados sob a forma de leis e, portanto, se configuram como direitos. Todos os que se
enquadrem no perfil serão atendidos. Não é o montante de recursos que delineia o acesso, mas,
sim, a circunstância de o indivíduo preencher os requisitos legalmente delineados. Nesse caso, o
acesso é mais universalizado: todas as pessoas que apresentarem comprovadamente o perfil
traçado serão atendidas. A seletividade reside no fato de que o indivíduo deve solicitar esse
acesso e participar da triagem para averiguação dos quesitos estabelecidos na lei. Ou seja: o
acesso é fundado no direito juridicamente reclamável. No Brasil, esse é o caso do Benefício de
Prestação Continuada (BPC); em Portugal, do Rendimento Social de Inserção (RSI).
Há políticas sociais em que as duas modalidades se apresentam entrelaçadas. É o caso
das políticas afirmativas, que são programas destinados ao atendimento de segmentos
específicos da população com determinados traços considerados discriminatórios e que
dificultavam o acesso daqueles segmentos. A seleção de acesso é realizada a partir da
discriminação positiva e se faz por critérios definidores da população que se pretende atender.
Esse tipo de política teve origem na Índia, cuja população é constituída por castas, para dar
acesso à política social a segmentos populacionais segregados por pertencerem às castas
consideradas inferiores. Essa política foi muito utilizada nos EUA para lidar com a
segregação da população negra daquele país.
A política afirmativa vem acompanhada da ideia de defesa da equidade. Entretanto,
convém enfatizar que esse critério ou princípio comporta diversos entendimentos.
123

Na visão dos adeptos da focalização ou de um universalismo segmentado, considera-se


que a atuação pública deva ser seletiva pelas seguintes principais razões: aplicam-se com
mais eficácia e moralidade critérios redistributivos e igualitaristas; enfrentam-se
situações de pobreza e de exclusão de forma mais orientada (sem perder o foco) e
efetiva; gasta-se menos; e, tecnicamente, atua-se de forma mais eficaz na gerência de
programas e projetos a serem desenvolvidos (PEREIRA; STEIN, 2010, p. 113).

Embora estas autoras não se refiram diretamente, no texto em foco, à política


afirmativa, as explicações por elas apresentadas a seguir são pertinentes à análise que
empreendemos nesse momento:

[...] na implantação de políticas públicas, a seletividade [deve] ser observada com o


propósito de assegurar o seu acesso por grupos sociais previamente considerados
meritórios. Estes, por seu turno, devem dispor de uma “vantagem comparativa” ou
“discriminação positiva” em relação a outros grupos em melhores situações
socioeconômicas e capazes de adquirir serviços por conta própria. Ou seja, nessa
perspectiva, a seletividade — que não é outra coisa senão a focalização na pobreza, ou
a seletividade dos gastos sociais — significa garantir que os subsídios públicos
cheguem aos cidadãos mais necessitados, sem que os grupos menos necessitados deles
se apropriem “indevidamente” (MORENO, 2000, apud PEREIRA; STEIN, 2010, p. 113).

Entre nós, essa política se manifesta através da reserva de vagas para candidatos
portadores de deficiência em concursos públicos, afirmada no § 2º do art. 5º da Lei nº
8.112/90 e no § 1º do art. 37 do Decreto nº 3.298/99, que devem ser interpretados em
conformidade com o disposto no inciso VIII do art. 37 da Constituição Federal de 1988. Trata-
se de política social que expressa um direito conquistado.
No dia 26 de abril de 2012, em meio a muita polêmica (da qual não trataremos aqui), o
Superior Tribunal Federal considerou constitucional a reserva de vagas nas instituições
federais de ensino superior para afrodescendentes e indígenas, respeitando-se a autonomia de
cada universidade para adotar ou não o sistema de cotas. As cotas podem ser raciais (para
afrodescendentes e índios) e sociais (para alunos provenientes de escolas públicas e para
deficientes físicos); pode haver uma união dos dois modelos. Geralmente, para poder entrar
nesta cota, basta que o estudante se autodeclare negro. A autodeclaração como critério e o
sistema de cotas para negros tem sido considerados conquistas do movimento de negros
organizados. No entanto, quando há um número de vagas previamente definido: pode haver
dois candidatos que apresentam a mesma condição, e deverá haver desempate entre eles.
Em algumas políticas afirmativas, além do traço étnico-racial, poderá haver uma
avaliação socioeconômica que servirá de referência para a escolha dos mais pobres.
O denominado “sistema de cotas” configura-se, de fato, como um critério básico de
acesso; não significa que todos os negros inscritos terão acesso, mas que há uma cota para
124

atendê-los. Hoje, mais de 40% das universidades federais do País têm cotas para negros e
índios. Esse sistema não é restrito às universidades públicas. Na Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC- SP), por exemplo, existe o Programa Pindorama desde 2001 que
atende indígenas de várias etnias mediante bolsa de estudos para que possam ter acesso aos
diversos cursos universitários da PUC- SP.
O sistema de cotas representa, portanto, o critério indicador de acesso e sofre dois
níveis de seletividade. Primeiramente, do total de vagas é determinada uma cota para os
segmentos visados. Depois, os candidatos devem responder aos requisitos estabelecidos e
serão pontuados, para ao final sair a lista dos selecionados. Este segundo momento pressupõe
por parte dos selecionadores ou de quem estabelece aquela política a definição acerca do que
se entenderá por ser afrodescendente ou o que é ser indígena, para se estabelecerem os
critérios para a operação do processo seletivo e, em seguida, como cada candidato será
considerado em relação aos demais. Ou seja, é pressuposto que haja a qualificação substantiva
de afrodescendência e questão indígena 68 para depois se poder tratá-la.
Consegui apreender que há também a forma do que se poderia denominar
“seletividade indireta”. Trata-se de situações em que há afirmação do direito universal de
acesso aos demandantes, porém estes não conseguem ter resposta à sua necessidade; são
situações em que faltam recursos para que o atendimento se efetive. A título de exemplo,
podemos citar a realização de exames em equipamentos da saúde pública: o indivíduo tem a
prescrição para realizar determinado exame, mas os aparelhos são poucos, ou estão
quebrados, ou o médico que realiza o exame está de férias, ou um medicamento demorou
porque uma licitação não foi concluída, ou a lista é grande e o paciente foi agendado para ser
atendido após um prazo de seis meses. Diante desse quadro, pode-se perguntar: por que não se
compram mais aparelhos, se contratam mais funcionários, etc.? É para justificar a
privatização, reforçando o diagnóstico de ineficiência do serviço público? Entretanto, se o
atendimento fosse de fato universal, modos haveria para melhorar o atendimento.
Em face da análise que realizamos nesta seção acerca da natureza e da utilidade da
seleção socioeconômica no âmbito da política social, podemos concluir que a seletividade é
parte constitutiva desta política. Portanto, está presente em todas as políticas sociais, com suas
respectivas peculiaridades, ou mesmo adquirindo peculiaridades regionais ou nacionais,
segundo as forças sociais que se defrontam e estão em disputa nas diversas conjunturas.

68
Em relação aos indígenas é preciso entender todas as questões advindas do desaldeamento, pois para a Funai,
não são considerados indígenas os que vivem fora de suas aldeias.
125

O término ou a extinção da seletividade não dependerá, por conseguinte, da atuação de


uma ou de várias profissões. Mas qualificar sua realização de forma consciente e crítica,
entendendo o que nela se esconde, poderá nos indicar novos ou outros caminhos a seguir. É
evidente, pelo exposto, que, para realizar ou se inserir em processos seletivos, não basta o
domínio de teorias de pequeno alcance ou de instrumentos técnicos desvinculados da teoria,
da ética e da política.

3.3. A utilidade da ação profissional do assistente social na seleção socioeconômica das


organizações sociais

Inicialmente, podemos vê-la como um instrumento utilizado pelas organizações


sociais para distinguir os perfis dos candidatos interessados em usufruir dos serviços que
oferecem, com o objetivo de selecionar os que têm as características desejadas para ser
aceitos. Isto certamente ocorre porque há superioridade da demanda em relação à oferta, em
face da insuficiência de recursos disponibilizados para aquele serviço social específico. 69
Essas organizações sociais, responsáveis por operar as políticas sociais, ao dar
materialidade a essa seleção, necessitam delegar a agentes profissionais sua decisão sobre os
selecionados. Esta é feita, na maior parte das vezes, de acordo com critérios e normas
técnicas, determinados antecipadamente. Há eventualmente situações em que o
estabelecimento desses critérios é transferido totalmente ao próprio profissional, o que
significa a completa delegação do processo a este profissional, para que tome livremente
decisões em seu nome.
A competência exigida do profissional no processo de seleção socioeconômica consiste
em saber realizar um estudo comprobatório, avaliativo e comparativo do conjunto dos
candidatos, para ajuizar o mérito de cada um, em quesitos estabelecidos nas normas e critérios
já mencionados, condição essencial para o acesso ao atendimento por eles demandado. O
profissional utiliza-se, para tanto, de procedimentos técnica e cientificamente elaborados.
Por certo, é desnecessário lembrar que a população-alvo do processo de seleção
pertence aos estratos de baixa renda, trabalhadores que vivem da venda de sua força de
trabalho, muitos dependentes do mercado informal, desempregados, idosos ou impedidos de
trabalhar por motivos de saúde e outros. São obrigados a solicitar assistência do sistema de

69
Serviço social ou serviços sociais, aqui entendidos como os recursos disponibilizados pela política social que
são materializados pelas organizações sociais.
126

proteção social exatamente pela impossibilidade de garantir para si recursos suficientes para
viver sua vida.
São, portanto, os segmentos empobrecidos da classe trabalhadora que a seleção
socioeconômica atinge. Ninguém imagina que os ricos, os detentores do capital, participem
desses processos de seleção. 70
Em sua operação concreta, a seleção socioeconômica tratará de estudar e avaliar a
presença ou a ausência de disponibilidade de recursos sociais, bens materiais e financeiros
para o indivíduo e sua família, essenciais para o atendimento das suas necessidades e da
realização de suas expectativas. Utilizará, para tanto, estudos, questionários e cadastros, entre
outros instrumentos. Neste sentido, é preciso entender, com Yazbek (2001, p. 34), citando
Martins (1991), que “a pobreza como fenômeno multidimensional, [...] é categoria política
que implica em carências nos planos espiritual, de direitos, das possibilidades e esperanças”.
Todo o processo de seleção desenvolvido pelo assistente social terá, ao final, como
produto do levantamento das condições financeiras e sociais dos candidatos, um retrato de sua
situação, de modo a permitir a comparação entre eles. Permitirá quantificá-los e qualificá-los,
revelando os que reúnem maiores méritos em face ao perfil traçado e desejado pelas
organizações sociais, tomado como base na escolha dos aceitos, dentro da população já
considerada elegível mediante critérios fixados anteriormente.
A ação do assistente social na realização de triagens ou seleções socioeconômicas,
como formas de acesso aos serviços sociais, tem a finalidade de fornecer credibilidade e
legitimidade ao processo diante dos candidatos e à população em geral, uma vez que estão
sendo realizadas por técnico com competência científica, preparado para realizar tais tarefas.
O principal efeito de legitimação, porém, não vem do reconhecimento do público
atendido — composto majoritariamente por pobres e iletrados — quanto ao caráter científico
emprestado à seletividade pelo seu processamento institucional. Tem essa parte importância
por eles acharem que, permeado de conferências de dados e controles, o processo é sério,
justo e deve ser respeitado. Mas tal legitimação vem, principalmente, do fato de terem sido
escutados e considerados e por terem conseguido algum benefício.

70
Considero como situação de exceção a presença de pessoas, principalmente jovens, que estão acima do nível
de pobreza, competindo por vagas nas universidades públicas e privadas, dentro da atual política de cotas. Este
tipo de política social, conhecida como de “ações afirmativas”, de caráter focalizado, procura exatamente
diminuir o efeito da disputa desigual, pela ocupação de vagas na universidade brasileira por jovens que
estudaram em boas escolas privadas em detrimento dos oriundos da escola pública. Origina-se, entre outras
motivações, da comprovação de que as vagas existentes nas universidades públicas estão ocupadas,
principalmente nos cursos de maior procura, pelos segmentos mais abastados da população.
127

Vasconcelos (2003, p. 416) apreende com sensibilidade essa questão, ao dizer: “É o


médico que diagnostica e receita, mas é junto ao assistente social que o usuário depara-se com a
falta do medicamento, da alimentação especial e/ou necessária e das informações indispensáveis.”
Nas organizações sociais, o assistente social, através das atividades que realiza, faz a
mediação entre instituição e clientela, representando diante desta população a própria
instituição, tornando-se necessário analisar a complexidade que envolve essa relação.
Para o usuário, os serviços sociais sempre trazem benefícios, ganhos, melhoria de
determinadas condições vividas; para os contratantes do trabalho do assistente social, quando
se trata de empresários, esses mesmos serviços são tidos como investimentos na
produtividade e instrumentos de controle. O significado dos serviços sociais, portanto, não
tem o mesmo sentido para o trabalhador que recebe o benefício e para o empresário. O
trabalho profissional carrega essa contradição.
Para que as organizações e suas ações sejam reconhecidas e legitimadas pela
população em geral e, em especial, por aquela que usa ou deseja seus serviços, é necessário
que apareçam como detentoras de seriedade e de justiça, ao se apresentar através do discurso
humanista e humanizador, selecionando, entre os candidatos, os que serão atendidos.

Neste processo de autodissimulação e dissimulação das contradições, as instituições


se apresentam discursivamente, com qualificações tidas como ideologicamente
superiores: sua capacidade produtiva (padrão de produtividade), competência técnica
(racionalização, especialização, etc.); unidade e coesão internas (homogeneidade de
objetivos e de prática); neutralidade (bem comum, técnica em si, etc.); e
normalidade/moralidade (a ética de uso de que ela própria faz internamente e na
relação com a clientela externa) (SANTOS, 1980, p. 118).

As organizações que corporificam as medidas de política social adotam um discurso


estratégico para legitimar e reforçar a ideia de que os serviços sociais visam consertar
eventuais desatenções e descasos, ao se apresentar como interessadas e sensíveis quanto aos
problemas vividos pelos necessitados. Esse discurso, porém,

é rebatido pelo cotidiano do trabalhador, no qual o caráter desumano da organização


social, mais além das propagandas político-ideológicas, se expressa na miséria de
seu dia a dia e no trabalho alienado que só escraviza, mortifica, parecendo-lhe algo
estranho, que só lhe pertence enquanto sofrimento e desgaste pessoal (IAMAMOTO;
CARVALHO, 1985, p. 113).

As articulações realizadas pelas organizações para garantir sua hegemonia não


aparecem claramente no nível do aparente. É o que Luz (1979, p. 31) defende, ao afirmar:
128

Trata-se de ver as instituições como conjunto articulado, como ligação vital entre
saberes e práticas com efeitos fundamentalmente políticos, envolvendo uma
estratégia e luta não necessariamente aberta entre grupos e classes sociais
constitutivas destas instituições em um bloco histórico.

Os organismos institucionais são concebidos como espaços em que se dão a produção e a


reprodução das relações sociais, uma vez que é neles que acontecem as mediações das relações
entre indivíduo e sociedade. Nenhuma relação social ocorre fora desses espaços. As organizações
constituem-se no chão, no espaço-tempo miúdo da reprodução social que se opera na
cotidianidade. Nos espaços em que se materializam as políticas sociais, ocorre a preocupação de
vender — à população em geral e aos usuários em particular — a imagem de que sua intenção é
atender as necessidades da população através dos “benefícios” que concede. Aqueles organismos
garantem assim seu consentimento e reconhecimento. A intenção é fazer com que as normas, os
critérios e os procedimentos sejam transmitidos e percebidos pelos usuários como necessários,
transformando seu caráter impositivo em algo aceito voluntariamente.
As instituições, embora aparentemente se apresentem como organismos autônomos,
estruturados em torno de normas e objetivos manifestos, são, de fato, organizações específicas
de política social e centros de micropoder. São transversais a toda a sociedade, aparecendo
como mecanismos reguladores das crises do avanço capitalista em todos os níveis ( FALEIROS,
1985). Essa forma de ação controladora passa pela estratégia de esconder a ideologia presente
nas suas operações, simulando que agir cientificamente é agir com neutralidade e declarando
que se faz o melhor que se pode no sentido de garantir o atendimento a todos os usuários, com
imparcialidade e justiça.

Enquanto organizações que envolvem funcionários, normas e regras, recursos e


poderes específicos, saber e técnicas particulares, colocam-se aos olhos da clientela
e do público como organismos sociais dotados de vida própria com um sistema de
funcionamento automatizado e, portanto, em certa medida, independentes e neutras
(SANTOS, 1980, p. 118).

Esse pensamento é reforçado por Iamamoto e Carvalho (1985, p. 114-115):

Importa que as diretrizes institucionais sejam transmitidas como necessárias e


válidas, tanto para o “cliente”, como para a garantia de eficiência dos serviços,
transformando o caráter impositivo da normatização em algo internalizado e aceito
voluntariamente por aqueles a quem se dirige e aos quais não foi dada a
oportunidade de opinar.
129

Quase sempre, na hora da execução dos programas sociais, os demandantes dos serviços
sociais, assim como os profissionais, deparam-se com o fato de que sempre falta algum tipo de
recurso para que o atendimento possa se dar em sua plenitude: ora faltam funcionários para operar
o serviço, ora a verba não chegou; o aparelho do exame está quebrado ou a sala de cirurgia está
interditada devido à existência de infiltrações; ou ainda está em processo de licitação aquele
produto exigido pelo atendimento — para falar apenas de alguns exemplos possíveis.
O discurso que dificulta o acesso ao atendimento contribui, ao final, para passar à
população e aos profissionais a ilusão de que, quando tudo funcionar, todos poderão ser
atendidos. As próprias dificuldades, afinal, contribuem para disfarçar que nem todos serão
atendidos de fato. Ou melhor, mascaram que, no fundo, está se procedendo a uma restrição de
acesso, com o seu protelamento constante. No quadro apresentado com tais traços, a
permanente escassez de recursos humanos, materiais e financeiros para o atendimento de toda
a demanda aparece, nas instituições, como elemento de dissimulação, pois serve para
justificar as deficiências de atendimento, mediante a ilusão de que, com os recursos que estão
em falta “no momento”, não é possível atender a todos, o que dá à população a ilusão de que,
em algum momento do futuro, os recursos chegarão para atender a todos.
Para atender a todos, entretanto, seria necessário negar a natureza do próprio
capitalismo, que se manifesta no jeito de ser dos serviços sociais. A seleção
socioeconômica como condição e forma de acesso, por mais bem qualificada que seja a
sua realização, não conseguirá reverter a incapacidade institucional de atender a todos. Na
verdade, é da sua natureza constituir-se em instrumento privilegiado de legitimação da
desigualdade social, embora possa parecer instrumento destacado para o acesso e a
realização da justiça social e humanização da pobreza.
Humanizar a pobreza encerra a ideia de torná-la mais suportável. Mas o fato de
querer amenizá-la é diverso de querer exterminá-la de fato, enquanto desumanização e
desigualdade social. Entretanto, reconhecendo o modo de ser das organizações sociais e
da seleção socioeconômica, o profissional tem a possibilidade de criar outras posturas
estratégicas para o trabalho que realiza junto à população para reforçar a afirmação de
seus interesses e direitos.
130

3.4. O significado da participação do assistente social na seleção socioeconômica para


análise do campo profissional do Serviço Social

Na sociedade liberal e competitiva em que vivemos, faz parte do nosso cotidiano


passar por inúmeros processos nos quais temos que demonstrar que somos “melhores” ou
“piores” que os outros e, consequentemente, detentores de “maiores” ou “menores” méritos.
Assim como faz parte do nosso cotidiano nos deparar com um exército de homens e mulheres
que, sem encontrar trabalho e sem acesso aos serviços básicos, necessitando de auxílio para
sobreviver, lutam para conseguir o pão, a consulta médica, o meio de subsistência; para tanto,
têm, entretanto, de provar todo dia que merecem ser atendidos por deter méritos de
necessidade e pobreza suficientes para obtê-los.
Para além da imediaticidade, o que se apresentava e continua a se apresentar, como
questão central a ser respondida, é: que fazer com tanta necessidade, com tamanha demanda
exposta, se os recursos disponíveis não são suficientes para atender a todos?
O fato de não haver recursos disponíveis para atender a todos é certamente tema do
âmbito sócio-político-histórico. Envolve, nada mais, nada menos, que o equacionamento de
como se dá a distribuição da riqueza socialmente produzida em uma sociedade.
Na passagem da questão de âmbito sócio-político para outra, a de âmbito instrumental do
“tratamento técnico e científico”, ocorre a institucionalização da desigualdade social, na medida
em que a seleção socioeconômica é colocada como instrumento que permite operar a inclusão-
exclusão de acesso aos serviços e benefícios sociais, diante da escassez de recursos. Na ordem
institucional dos serviços e organizações sociais isoladas, não há muito tempo para pensar nisso,
uma vez que a cotidianidade exige respostas rápidas e eficientes. As questões políticas menos
evidentes, ainda que subentendidas no nível da ação técnica, tendem a passar despercebidas.
Evidentemente, a seleção socioeconômica apresenta-se com essa característica: é uma
resposta técnica para um problema político.
Pode ser vista, em primeiro lugar, como uma estratégia para tornar aceitável o acesso
restrito aos benefícios e serviços sociais, em conformidade com as dificuldades de extensão
de cobertura colocadas pela política social, em sua materialização. Neste espaço, no entanto,
as providências mais caras aos planejadores e gestores serão, em geral, 1) colocar ordem no
processo seletivo — ou seja, ordem na lista, na fila dos demandantes, criando e definindo
regras e critérios passíveis de ser negociados com a população demandante — e 2) garantir
legitimidade ao processo com sua organização visível, a fim de lidar com a defasagem
existente entre a demanda e a oferta de serviços sociais.
131

Em seguida, será preciso criar condições para que os “poucos recursos” sejam bem
administrados — isto é, que sejam bem gastos com quem realmente precisa ou com quem
realmente valha a pena investir.
Historicamente, uma dessas formas de promover a aceitação do resultado das seleções
é distribuir de preferência os recursos entre o maior número possível dos demandantes, para
que a limitada verba anteriormente disponibilizada “renda”, “multiplique-se” ao máximo
possível, procedimento que encontra justificativa no fato de que o processo de atribuição de
oportunidades aos demandantes tem a ver com bens de sobrevivência, de mínimos sociais.
Por exemplo, segundo o senso comum, “é melhor que o usuário receba pouco do que
nada”, argumento acrescido da ideia de que esse mínimo deve ser concedido “pelo menor
tempo possível”, “para que o indivíduo não se acomode numa situação de dependência
prolongada dos benefícios”, seguindo inclusive o caráter do modelo da política social atual.
Ao mesmo tempo, a organização do processo de seleção econômica a partir do exame
da demanda caso a caso — individualizando, portanto, a resposta e verificando os recursos
pessoais ou familiares que cada candidato tem, ou não, para satisfazer a necessidade
apresentada — dificulta e embaça a apreensão das necessidades insatisfeitas de uma família
como uma questão de muito mais gente. 71
Assim, uma questão de âmbito sociopolítico — portanto, de âmbito coletivo — passa,
muitas vezes, a ser tratada como questão de foro privado e íntimo. Instaura-se, como pano de
fundo, a desconfiança, porque “nem todos precisam” e porque “há muita mentira contada
pelos usuários”. Tal movimento significa que já se desfocou a questão política (não há
recursos para atender a todos) que motivou a realização de uma seleção por critérios técnicos,
pois nem todos poderão ser atendidos. Coloca-se então o foco nos indivíduos-candidatos que
deverão provar falta de recursos para satisfazer suas necessidades e corresponder aos critérios
e normas colocados.
Finalmente, todos acreditarão que não foram selecionados porque não fizeram bem “a
prova de seleção”, quer porque “não souberam se portar direito”, quer porque “não estavam
preparados” e ainda, em outras situações, porque “havia outros mais necessitados”.

71
É preciso reconhecer que a seletividade pode ser tratada através da organização do acesso por ordem de
chegada, como vem acontecendo nas áreas da educação e da saúde. Quando, por exemplo, um indivíduo
necessita realizar um exame prescrito por médico, mas o número de equipamentos se apresenta como menor que
a necessidade, o candidato é colocado em uma lista de espera de atendimento. Ou, quando não há vagas para
atender a demanda da educação recorre-se às provas, selecionando os melhores ou referencia-se pela ordem de
chegada. A grande imprensa tem sido farta em nos apresentar exemplos dessa prática, quando o indivíduo dorme
por dias na porta de uma organização para que possa ser um dos primeiros a ser chamado, portanto, com chances
de receber atendimento. Os poucos recursos poderão ser em dinheiro, bens, serviços e também em pessoal,
equipamentos, etc.
132

Nessa direção, a questão pública, política, referente à insuficiência de recursos para


atender a todos, torna-se problema de foro íntimo e privado, ao fazer com que o indivíduo se
perceba como não merecedor e até acredite que, se não pode usufruir dos serviços e
benefícios, foi porque não teve detenção de mérito para tanto. A seleção funciona certamente
como controle técnico para permitir o acesso de alguns e o descarte de outros, ocultando sua
origem na presença da desigualdade econômica e social de partida. Um dos resultados da
seleção socioeconômica é, portanto, a institucionalização da demanda sob a forma de
controle. Ou seja, obtêm-se os demandantes controlados.
Do ponto de vista que aqui nos interessa, da atuação do assistente social, é preciso
considerar que o profissional, às vezes, sem mesmo perceber, tratará daquela expressão da
questão social como questão moral, incriminando os demandantes por sua precária condição
de vida, ao desconsiderar os indivíduos como personificação de categorias econômicas que
determinam “sua posição no processo produtivo” (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 106).
Quanto à seleção socioeconômica, apesar do significativo acúmulo teórico sobre a
natureza do Serviço Social pela profissão, situando-a no plano das relações sociais vigentes,
parece haver uma dicotomização na prática dos assistentes sociais brasileiros. Pauta-se esta,
ainda, pela ideia de culpabilização do pobre pela sua situação de pobreza. Distinguindo os
bons dos maus pobres, pratica-se uma meritocracia.
Essa forma de proceder pauta-se pela falta de reconhecimento, pelo profissional, dos
usuários dos serviços sociais como sujeitos portadores de direitos, reforçando a ideia do
acesso aos benefícios como favor. Naturaliza-se, no mesmo gesto, tanto a existência da
seleção como a falta de recursos para atender a todos.
Ir além das aparências pressupõe perceber sua decisiva utilidade social como
instrumento legitimador da desigualdade social e, portanto, do controle social: a ação
profissional fornece instrumentalidade e estatuto científico à seletividade dos programas de
política social, facilitando sua aceitação pública. A análise que almejamos desenvolver dos
processos técnicos vinculados à seleção socioeconômica, como uma das competências e
atribuições profissionais do assistente social, tem como referência básica o fato de que o
Serviço Social está integrado às relações sociais que se desenvolvem na ordem capitalista.
Embora o assistente social trabalhe a partir da demanda e com a situação de vida
trazida pelo trabalhador, não é este, no entanto, quem o contrata e remunera. Estabelece-se
uma disjunção entre intervenção e remuneração, estando presente para o profissional, em
diferentes níveis, um mandato das classes dominantes junto à classe trabalhadora (IAMAMOTO;
CARVALHO, 1985, p. 84).
133

A profissão do Serviço Social, de caráter eminentemente político, realiza assim suas


ações de forma mediada pelos interesses do capital e/ou do trabalho. Situar o Serviço Social
na divisão sociotécnica do trabalho é condição fundamental para a apreensão do significado
do papel que desempenha nas relações sociais.
A atuação do assistente social

reproduz também, pela mesma atividade; interesses contrapostos que convivem em


tensão. Responde tanto a demandas do capital como do trabalho e só pode fortalecer
um ou outro polo pela mediação do seu oposto. Participa tanto dos mecanismos de
dominação e exploração como, ao mesmo tempo e pela mesma atividade, da
resposta às necessidades de sobrevivência da classe trabalhadora e da reprodução do
antagonismo nesses interesses sociais, reforçando as contradições que constituem o
móvel básico da história (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 75).

Esse modo de ser na sociedade capitalista dá à profissão um caráter contraditório. A


ação de seus agentes tanto pode reforçar o polo que se dirige a atender aos interesses do
capital quanto o que fortalece os do trabalho. É na verdade a direção estratégica escolhida,
referenciada num projeto ético-político que, de fato, dará o sentido à ação profissional
(IAMAMOTO; CARVALHO, 1985; IAMAMOTO, 1992, 1998, 2002; NETTO, 1991b, 1996; YAZBEK,

2009a, 2009b). Esta direção estratégica está presente em todos os níveis de participação do
assistente social.
Embora na sua exterioridade as formas de acesso e permanência aos serviços,
inclusive triagem, seleção socioeconômica e pareceres, aparentemente só envolvam execução,
colocando-se simplesmente como atividades cotidianas do assistente social, implicam
processos complexos de estabelecimento, acompanhamento e execução de políticas sociais,
públicas e privadas.
Ainda que o assistente social seja conhecido e se reconheça como profissional da
prática direta com a população, é preciso destacar que há assistentes sociais que participam da
formulação e da gestão de políticas, assim como há os que estudam e avaliam seus impactos
sobre a vida da população, entre outras formas.
O exercício das atividades do assistente social nos organismos institucionais estatais,
paraestatais e privados explicita que o profissional dedique-se ao planejamento, à
operacionalização e à viabilização de serviços sociais dirigidos ao atendimento da população.
Na realização dessas atribuições, o assistente social exerce funções de suporte à
racionalização do funcionamento dessas organizações, assim como funções técnicas
propriamente ditas, apresentando-se, na listagem de tarefas “corriqueiras” realizadas pelo
134

profissional, a seleção socioeconômica (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 113-114). Podemos


perceber então que, em todo nível de trabalho profissional, o assistente social encontra-se
comprometido com os objetivos da política geral presente na reprodução das relações sociais
na sociedade capitalista, mantendo sempre determinado nível de responsabilidade.
A apreensão da natureza e da utilidade social da seleção e da triagem pressupõe situá-
las na totalidade da sociedade onde se realizam e se expressam, de forma a levar sempre em
consideração a seguinte pergunta: que política o assistente social faz na seleção
socioeconômica, tendo em vista os interesses em jogo e em pauta?
Interessa-nos, sobretudo, a explicitação do caráter contraditório presente no trabalho
de seleção socioeconômica do assistente social, em suas múltiplas expressões. Tomando tal
seleção como totalidade, procuro caminhar para além do empirismo e do pragmatismo,
rompendo com importantes mecanismos de naturalização da desigualdade social nela
escondidos e resgatando-a da sua aparência entediante como tema.

3.5. Formas de legitimação do assistente social como operador da seletividade de acesso


às políticas sociais

Para a apreensão critica da seleção socioeconômica como instrumento sócio-histórico,


cuja realização tem sido atribuição do assistente social, torna-se necessário, então, demarcar a
natureza do trabalho deste profissional, localizando como se dá sua inserção nos espaços
sócio-ocupacionais da profissão.
Ao lado de outras profissões, o Serviço Social participa da divisão social e técnica do
trabalho na tarefa de implementação de condições necessárias ao processo de reprodução
social, especialmente a partir do capitalismo monopolista, quando surgem diversas iniciativas
de intervenção social como forma de enfrentamento das expressões da questão social.
O assistente social vem se constituindo historicamente como agente executor terminal
de políticas sociais (NETTO, 1991b), mas, na atualidade, participa claramente tanto da sua
execução quanto da formulação, da gestão e da avaliação das políticas sociais. (IAMAMOTO,
1999, 2009a; YAZBEK, 1999a, 1999b). É importante destacar que, em todas essas políticas, é
chamado para construir respostas para as demandas e desafios postos.
Nessa perspectiva, a política social constitui-se
135

na base de sustentação funcional-laboral do Serviço Social, determinando assim a


sua funcionalidade, dando-lhe legitimidade através da demanda de sua intervenção
e, portanto, criando um campo de trabalho próprio para este profissional. Assim, a
política social, por constituir fonte de legitimação, instrumento de intervenção e
campo de atuação do assistente social, passa a ocupar um espaço preponderante nas
reflexões teóricas destes profissionais (MONTAÑO, 2000, p. 8).

A política social ocupa e deve ocupar lugar de destaque nas reflexões teóricas do
Serviço Social, por se constituir em campo de intervenção e instrumento de atuação do
assistente social. Mas torna-se necessário incluir no debate o chão que dá sentido tanto à
profissão quanto à política social que é a questão social em suas diversas manifestações.
Para a apreensão do significado da profissão na sociedade capitalista nos seus
fundamentos sócio-históricos, é preciso tomar a questão social, em suas múltiplas expressões,
e o trabalho profissional, situado nas relações sociais, como categorias centrais, assumindo a
política social como mediação.
Incluir a questão social como discussão permanente responde à exigência de que o
profissional se veja para além de sua constituição como funcionário assalariado das
organizações sociais quando se assume compromissos com a luta dos trabalhadores.
A política social expressa a institucionalização da parte da demanda que foi atendida,
como fruto da luta empreendida pela população organizada na peleja por mais e melhores
serviços. Exprime o que foi possível obter no jogo da correlação de forças em pauta, travada
entre os representantes do trabalho e do capital, agora aparecendo sob a forma de programas e
benefícios. Trata-se, portanto, não de doações, mas de direitos conquistados, embora as pautas
de reivindicações levantadas pela população, organizada ou não, indiquem o tanto que ainda
há por conquistar.
Guerra (2010, p. 37) aqui comparece, observando que,

na sociedade burguesa desenvolvida, dentre outros mecanismos, encontra-se o


discurso do direito a ter direito, o qual tem sido recorrente nas práticas
profissionais, em especial na dos assistentes sociais. Por se constituir em uma
metodologia de controle social, que atua como mecanismos de individualização de
conquistas coletivas e psicologização das relações sociais, ainda que o assistente
social não tenha consciência, tal procedimento operativo porta a tendência de falsear
a realidade na qual os sujeitos/usuários das políticas e dos serviços sociais
encontram-se inseridos, concorrendo, no mínimo, para a despolitização dos mesmos
(grifo da autora).

Embora concordemos em conceber os usuários dos serviços sociais como sujeitos de


direito, pois o acesso ao atendimento não é favor nem benesse, é preciso considerar, no
136

entanto, que o acesso aos ditos “direitos de fato” é limitado — veja-se a existência das
triagens e da seleção socioeconômica.
A seletividade de acesso aos programas sociais significa que, realmente, o que há para
todos é o direito de concorrer como candidato, é o “direito a ter direito”.
As instituições/organizações sociais quando implantam e executam os serviços sociais
através dos programas sociais estão materializando a política social. Note-se nesse fato a
importância de considerar a relação entre esfera pública e esfera privada, diante do processo
de privatização crescente do Estado que vem se operando no Brasil, expresso em profundo
colaboracionismo entre empresa e Estado, através da “prática da renúncia fiscal do Estado,
tecnicamente nomeada de incentivos fiscais” (MOTA, 1989, p. 132).
O que vem ocorrendo é que, em vez de “o Estado se apropriar de parte do excedente
via taxação de lucros e da riqueza patrimonial, ele abdica de tal receita para que o
empresariado faça a sua ‘justiça social’” — assim como permite que seja retida parte do
excedente que deveria lhe ser transferido “quando considera não tributáveis as chamadas
despesas operacionais das empresas, aí incluídos os custos dos programas sociais” (MOTA,
1989, p. 133). 72
Ao se tratar dos atendimentos públicos e privados, é preciso considerar essa ação
escondida do Estado, porque a aproximação com o setor privado é bem mais profunda e
distinta daquela que se mostra na exterioridade dos fatos. Aquilo que aparentemente parece
privado, de fato é fundo público, transvestido de privado.
A desregulamentação das políticas sociais e a perda consecutiva de direitos sociais têm
carreado a atenção à pobreza para o âmbito privado e individual, motivada por apelos
solidários de benemerência dirigidos à sociedade civil, dessa forma desresponsabilizando
publicamente o Estado do encargo da proteção social como direito de cidadania. Nesse
quadro, torna-se profundamente relevante considerar os vários espaços sócio-ocupacionais da
profissão que, embora inter-relacionados, precisam ser considerados nas suas particularidades,
tendo em vista que imprimem determinadas características ao trabalho do assistente social,
como funcionário assalariado que é. Neste estudo, não trataremos de tais espaços de forma
aprofundada, 73 embora, com Iamamoto (2009a), reconheçamos:

72
A autora refere-se, entre outros, ao Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT), ao vale transporte, ao
Programa de Formação Profissional (PFP) e à previdência privada.
73
Refiro-me ao trabalho do assistente social que se opera na esfera pública, nas instâncias públicas de controle
democrático, nas empresas capitalistas, nas fundações empresariais, nas organizações privadas não lucrativas e
nas organizações da classe trabalhadora. Mais detalhes podem ser encontrados em textos de Alencar, Amaral,
Bravo, Cardoso, Cesar, Iamamoto, Lopes e Raichelis, em: CFESS/ABEPSS, 2009.
137

Esses distintos espaços são dotados de racionalidades e funções distintas na divisão


social e técnica do trabalho [condicionando] o caráter do trabalho realizado (voltado
ou não à lucratividade do capital), suas possibilidades e limites, assim como o
significado social e efeitos na sociedade (IAMAMOTO, 2009a, p. 19).

Os diversos espaços nos quais se realiza o exercício da profissão restringem em


diversos graus a autonomia profissional. Isso tem por referência a direção social pautada na
defesa dos interesses dos segmentos componentes da classe dos trabalhadores, ao demandar
do profissional a consecução de metas e determinada forma de operar os serviços indicados
pelas diretrizes da política social ou da empresa capitalista, assim como os controles exercidos
sobre o assistente social como funcionário. Estou, assim, admitindo e reforçando o
entendimento de que o assistente social, como trabalhador assalariado, constitui-se em força
de trabalho, uma mercadoria inseparável do trabalhador — no entanto, “para ser consumida e
transformada em atividade, a força de trabalho exige meios ou instrumentos de trabalho e
uma matéria-prima ou objeto que sofrerá alterações diante da ação transformadora do
trabalho” (IAMAMOTO, 1998, p. 99; grifos da autora).
Quem dispõe dos meios de trabalho (materiais humanos e financeiros) é a entidade
estatal ou privada que emprega o profissional. Dessa forma, os meios e as condições em que
se realiza a atividade profissional “não podem ser encarados como componentes ‘externos’ ao
trabalho profissional, mas, ao contrário, contribuem para moldá-lo tanto material quanto
socialmente” (IAMAMOTO, 1998, p. 100).
Nesse sentido, é preciso reconhecer que não existe processo de trabalho do Serviço
Social: “Existe, sim, um trabalho do assistente social e processos de trabalho nas quais se
envolve na condição de trabalhador especializado” (IAMAMOTO, 2009b, p. 369). Esta mesma
autora destaca que a inserção do assistente social nos processos de trabalho exige apreendê-
los em duas determinações: “a de valor de uso e do valor, isto é, como processo de produção
de produtos ou serviços de qualidades determinadas e como processo que tem implicações ao
nível da produção, ou da distribuição do valor e da mais valia” (IAMAMOTO, 1998, p. 102).
Quando o trabalho se realiza no interior do aparelho do Estado, no âmbito da prestação
de serviços sociais e nas ONGs, os produtos “não estão submetidos à razão do capital — que
é privada, expressa na busca incessante da lucratividade, isto é, da produtividade e da
rentabilidade do capital inicialmente investido” (IAMAMOTO, 1998, p. 103).
O exercício da profissão do assistente social se dá sob a forma do trabalho. Envolve o
contrato de compra e venda da força de trabalho; portanto, o profissional não é um voluntário.
A sua intervenção é mediada pelos interesses da organização que o contrata, a qual impõe
138

regras e formas de controle, e os da população que pretende atingir. A população atingida


pelos programas da organização tanto poderá ser constituída pelos próprios funcionários de
uma empresa capitalista, quanto pelas pessoas que recorrem aos serviços públicos.
A profissão, em qualquer espaço que se insira, tem uma dimensão marcadamente
política; no entanto, não se confunde com partido político. “Não se identifica também com as
relações de poder entre governados e governantes, ainda que o assistente social também possa
exercer funções de governo; e nem o Serviço social se confunde com a política social, esta
uma atribuição do Estado” (IAMAMOTO, 2009a, p. 36). A autora destaca ainda que não se trata
de reduzir a dimensão política “à pequena política”, mas de reclamar a autonomia do projeto
profissional diante dos partidos e os governos (IAMAMOTO, 2009a, p. 36).
Esse entendimento da profissão nos indica que não bastam teorias de pequeno e médio
alcance para trabalhar e construir respostas qualificadas face às demandas, questões e desafios
históricos colocados à profissão pelos diversos segmentos de classe que compõem a sociedade.
Merecem destaque, dentre tais segmentos, “o Estado, os setores empresariais, os setores
populares organizados e a massa desorganizada representam mandatários do Serviço Social, os
quais expressam o conjunto de forças sociais antagônicas presentes na sociedade” (SILVA, 1995,
p. 64). Acrescentem-se ainda as ONGs e as organizações de classe, dentre outras.
A natureza interventiva do Serviço Social nos indica que a competência do assistente
social é de caráter teórico-prático, uma vez que ele necessitará se apropriar de categorias
teóricas para referenciar a necessária leitura crítica das situações que se lhe apresentem no
cotidiano institucional, onde se desenrola o trabalho profissional — situações às quais terá
que dar atenção sob a forma de respostas/propostas profissionais.
Na sociedade, a profissão tem possibilidades e limites:

A profissão é tanto um dado histórico, indissociável das particularidades assumidas


pela formação e desenvolvimento da sociedade brasileira no âmbito da divisão
internacional do trabalho, quanto resultante dos sujeitos sociais que constroem sua
trajetória e redirecionam seus rumos. [...] agentes que a ela se dedicam em seu
protagonismo individual e coletivo (IAMAMOTO, 2002, p. 9).

Se a maneira de ser da profissão na sociedade capitalista impõe limites, também


apresenta possibilidades. Por isso mesmo, podemos pensar que há vários jeitos de ser
profissional, o que implica escolha entre alternativas possíveis; se a prática fosse totalmente
determinada, esse horizonte da possível transformação não surgiria. O que foi produzido na
história pelos homens também poderá ser mudado por eles, se essa for a decisão; contudo, as
139

mudanças não demandam simples vontades e atos isolados. Não se trata nem de voluntarismo
nem de determinismo. 74
O assistente social pode se integrar num esforço coletivo como categoria, propondo
direção alternativa àquela proposta pelos setores dominantes. Ou seja, o assistente social,
enquanto sujeito coletivo, expressão de uma categoria profissional, deve ser sujeito de suas
ações e pode, mesmo com determinados limites, pautar seu exercício profissional em uma
direção social condizente com os interesses dos trabalhadores. Essa possibilidade exige dele
atenção permanente, para que consiga analisar a correlação de forças presentes na sociedade e
nas organizações sociais, identificando aliados e adversários em face aos projetos que venham
a entrar em pauta e em disputa, posicionando-se, então, como sujeito protagonista diante do
que se apresenta.
Isso significa que o profissional deve se preparar não como simples técnico que sabe
manejar instrumentos, mas como intelectual capaz de decifrar o que se esconde por detrás de
suas ações de funcionário assalariado. Ou seja, pressupõe-se que, fundamentado na teoria
social crítica, ele se torne capaz de traduzir suas responsabilidades institucionais como
funcionário, imprimindo determinada direção social que atenda aos interesses da população
com a qual trabalha.
O desafio constante do profissional é responder às questões/demandas colocadas no
seu cotidiano pela organização que o contrata e pela população que se utiliza de seus serviços,
sob a forma de propostas, pautado naquela orientação de “ir além das rotinas institucionais e
buscar apreender o movimento da realidade para detectar tendências e possibilidades nela
presentes passíveis de serem impulsionadas pelo profissional” (IAMAMOTO, 1998, p. 21).
Se a constituição do profissional implica domínio para operar tecnicamente seus
instrumentos, responder às demandas colocadas vai muito além. Implica que, partindo da
apreensão crítica da realidade, o profissional consiga perceber as possibilidades e os limites
estabelecidos nessa realidade e, a partir daí, consiga criar propostas condizentes com o projeto
profissional com o qual se compromete.
Embora a burocracia institucional favoreça as ações repetitivas, heterogêneas,
imediatas, fragmentadas, espontâneas, próprias da vida cotidiana, esse jeito de ser, no entanto,
não indica que necessariamente precisem ser reproduzidas dessa forma ad aeternum. A
condição para a recriação do dia a dia deve se orientar por uma reflexão crítica que permita a
ultrapassagem da cotidianidade e da singularidade. É a “suspensão da cotidianidade que

74
O aprofundamento dessa análise pode ser encontrado em Iamamoto (1992).
140

permite ao indivíduo enriquecer-se, tornar-se mais consciente e motivado por exigências que
passam ser incorporadas à sua individualidade” (BARROCO, 2012, p. 72).
Os estudos sobre a reprodução social da sociedade capitalista e das classes sociais
constituem recursos teóricos fundamentais para o entendimento da profissão inserida em uma
totalidade sócio-histórica na qual se insere e se expressa e dos indivíduos com os quais
trabalhamos como partes integrantes dessa mesma totalidade. Pautar as ações profissionais
somente no que os olhos possam ver e no que o coração possa sentir poderá se constituir em
uma forma de o profissional reforçar o senso comum que é a forma de pensamento
predominante no cotidiano, acabando, ao final, por banalizar e naturalizar os fatos contidos na
situação-alvo de sua ação e intenção.
Essas referências são importantes para o entendimento de que o assistente social não é
ou não deveria ser um mero executor mecânico de normas e programas, mas sim “tradutor” de
políticas sociais com possibilidades de recriação na sua execução terminal, reinterpretadas à
luz das condições existentes (na instituição e no profissional) e das demandas da população.
Em outras palavras: não é preciso estudar quatro anos num curso de Serviço Social para
simplesmente entregar uma cesta básica, preencher uma ficha ou incluir o usuário numa lista
de acesso a um serviço. Mas é preciso estudar a vida inteira para dos serviços fazer meios de
realização de intenções pautadas nos compromissos assumidos num projeto profissional.
Ser capaz de criar o seu próprio texto no atendimento a indivíduos e grupos nos
organismos institucionais pressupõe não se contentar em ser mero ator que decora o papel de
uma personagem e o representa, todo dia, do mesmo jeito, e a cada atendimento que realiza. É
necessário também conceber os usuários dos serviços sociais como sujeitos portadores de
direitos, entendendo-os como sujeitos históricos.
A condição para que o profissional possa ser sujeito de suas ações pauta-se na postura
crítica diante da realidade, visando à criação de respostas e saídas de âmbito coletivo para
lidar com suas atividades cotidianas. Ou seja, não basta decifrar o que se esconde por detrás
de fatos, situações, atividades. É preciso ir além, no esforço de criar respostas profissionais a
partir da crítica. Essa é a tarefa presente que deve nos desafiar enquanto categoria dos
assistentes sociais, uma vez que o Serviço Social, na divisão técnica do trabalho, tem um
caráter interventivo. Isto quer dizer que do Serviço Social se esperam respostas e propostas
aos desafios e demandas que se apresentam. O tempo e lugar em que a política social foi
elaborada e o tempo e lugar em que é executada não são exatamente os mesmos. É possível
reinterpretá-la, dando-lhe novos significados e, portanto, imprimir-lhe outras possibilidades,
pensando na sua operação concreta.
141

Entendo que “as ordens” e as “tarefas” precisam ser decifradas, pois há vários jeitos de
realizá-las e, certamente, há um jeito de fazer que se alinhe mais às nossas escolhas
profissionais. A mesma atribuição pode ser realizada de vários modos, porque não há um
único jeito de ser profissional, cabendo a cada um de nós realizar escolhas. Esses vários
modos de exercer a profissão são expressões dos vários projetos profissionais, fundados em
concepções teórico-metodológicas e ético-políticas diversas. 75
Já dissemos que é preciso que o assistente social se veja como um sujeito que pode e
deve interferir na maneira de realizar as tarefas e atividades que lhe são atribuídas pela
organização que o contrata, imprimindo-lhe uma direção social, condizente com o projeto
ético-político profissional. Se é ingênuo dizer que o assistente social goza de total autonomia,
o que pressupõe ignorar as determinações presentes, é mecânico e cristalizado afirmar que ele
não tem espaço nenhum de negociação nas organizações que o emprega, cabendo-lhe apenas
o papel de “ator” ou “fantoche” a serviço do capital ou do trabalho.
Tratar, portanto, da seleção socioeconômica como forma e condição de acesso aos
serviços sociais é falar sobre a instrumentalidade que envolve a intervenção e a forma de sua
operação pelos profissionais nas organizações sociais, não de forma linear e única. Sua
apreensão comporta revelar seus fundamentos em vertentes do pensamento social
contemporâneo. Abordar e transmutar questões de âmbito sócio-histórico, tratando-as como
se foram de simples âmbito técnico, como é o caso das seleções de acesso aos serviços
sociais, pressupõe que haja reconhecimento da profissão como apta para preparar o
profissional para realizar tal competência.
O assistente social é contratado pelas organizações sociais e recebe um salário, porque
tem um saber que ancora sua intervenção, confirmado e reconhecido por um diploma de nível
universitário. Dessa forma, é visto como especialista por quem o contrata e pela sociedade,
por deter poder advindo do saber que lhe dá o direito de falar e atuar sobre o assunto de sua
especialidade e ser ouvido enquanto tal.
A qualificação da ação do assistente social se alicerça no fato de ser detentor de um
saber especializado. Entretanto, o que se espera dele é a intervenção, que se constitui em uma
mercadoria que as organizações compram quando empregam os seus veiculadores. O saber
profissional dá certa garantia de qualificação de respostas, para que as organizações, ao
transformar o profissional em seu funcionário, legitimem-se diante da sociedade e se
imponham diante dos usuários.

75
Como bem aponta Netto (1991a), no processo de renovação do Serviço Social brasileiro, este se torna plural,
ao incorporar, a partir de meados da década de 1960, as vertentes do pensamento contemporâneo.
142

A Lei nº 8.662, de 7 de junho de 1993, que regulamenta a profissão no país, representa


o reconhecimento da sociedade brasileira acerca da capacitação profissional que o assistente
social tem para realizar determinadas competências e atribuições profissionais legalmente
enumeradas, dentre as quais constam os estudos socioeconômicos que dão acesso aos serviços
sociais. Nestas condições, os profissionais são contratados para representar as organizações
sociais, esperando-se que, através de sua atuação e postura, expressem e se apresentem diante
da população como profissionais competentes que dominam o saber de especialista. 76 E
também que tenham domínio de parâmetros de justiça e imparcialidade de julgamento para
lidar com os limites dos recursos disponíveis para o atendimento da população. É o
profissional com essas características que as organizações sociais das classes dominantes
necessitam e querem contratar para representá-la.
Essa formulação, no entanto, contém disfarces e ocultamentos que precisam ser
enumerados e desvendados e que colocamos em forma de pergunta. De onde advém a ideia do
saber que sustenta o poder que municia o profissional para atuar nas organizações sociais?
Segundo Chauí (2011), provém do saber competente que se apresenta como discurso
do conhecimento, mas que, de fato, é discurso ideológico. O discurso competente é um
discurso ideológico, uma vez que

o discurso ideológico é aquele que pretende coincidir com as coisas, anular a


diferença entre o pensar, o dizer e o ser e, destarte, engendrar uma lógica da
identificação que unifique pensamento, linguagem e realidade para, através dessa
lógica, obter a identificação de todos os sujeitos sociais com uma imagem particular
universalizada, isto é, a imagem da classe dominante (CHAUÍ, 2011, p. 15).

O discurso competente interessa enquanto discurso que carrega a possibilidade de


controlar e intimidar quem o escuta. Ou seja, quando é usado para calar quem ouve, para se
impor diante da população, revestido de características ditas científicas que legitimam o
especialista, pois, para ser questionado, é preciso dominar o seu conteúdo. Não podemos nos
esquecer de que, diante dos usuários dos serviços sociais, o assistente social quase sempre é
tido como alguém que sabe e, portanto, deve lhes dizer o que fazerem diante de tanta
dificuldade vivida.
É preciso reconhecer, com Chauí (2011), que sempre falamos de determinado lugar e
nos manifestamos sob um ponto de vista. Não é qualquer um que pode dizer qualquer coisa

76
Não nego com isso a concepção do Serviço Social inserido na divisão sociotécnica do trabalho, na qual se
apresenta com caráter eminentemente interventivo, mesmo quando participa da gestão e da elaboração de
políticas sociais.
143

em qualquer lugar e ser ouvido. Para tanto, é preciso ter o que dizer como especialista; isto se
impõe como condição para o exercício do controle, como poder de dominação.
O poder do discurso competente, enquanto discurso do conhecimento, emana do
reconhecimento e do prestígio da ciência de orientação positivista, ao oferecer a imagem de
que é possível determinar, manipular e prever totalmente o objeto que se estuda por meio de
procedimentos científicos nos quais as ideias de racionalidade e objetividade assumem lugares
centrais. Nesta perspectiva, as ideias de objetividade, racionalidade e poder passam a ser
inseparáveis, na medida em que a ideia de poder dominar teoricamente um objeto carrega a
ideia de poder dominá-lo praticamente. A noção de competência (poder para apreciar e julgar
questões, qualidade de quem é capaz) advém dessa autoridade sobre o assunto que esta
concepção de ciência lhe dá, a qual, aliada à noção de neutralidade da ciência, disfarça, por
sua vez, a sua relação com o poder. Transforma-se, no entanto, sob a noção de cientificidade,
em dominação (CHAUÍ, 2011, p. 45).
É nesse quadro que, como dissemos, os profissionais são contratados pelas instituições
por serem detentores de um saber de especialista, o que os torna também competentes e
merecedores de crédito para representar a instituição diante da população atendida. Amortecer
tensões, disfarçar e reiterar os poderes (do saber especializado e da instituição) pela vivência
de papéis e funções diferenciadas como agentes institucionais, estas são as formas como os
profissionais legitimam o controle como dominação. Comprometer-se, então, com os
interesses das classes subalternizadas pressupõe a construção do saber sob outros
fundamentos teórico-metodológicos e ético-políticos.
Iamamoto (2009a, p. 17), ao analisar criticamente as bases de sustentação do discurso
competente, propõe seu reverso: a competência crítica, “capaz de desvendar os fundamentos
conservantistas e tecnocráticos do discurso da competência tecnocrática”.
Essa autora considera que o discurso competente é crítico “quando vai à raiz e
desvenda a trama submersa dos conhecimentos que explica as estratégias de ação”
(IAMAMOTO, 2009a, p. 17). A competência crítica, nessa perspectiva supõe:

a) um diálogo crítico com a herança intelectual incorporada pelo Serviço Social


[que] passa pela história da sociedade e pelo pensamento social na modernidade,
construindo um diálogo fértil e rigoroso entre teoria e história; b) um
redimensionamento dos critérios da objetividade do conhecimento para além
daqueles promulgados pela racionalidade da burocracia e da cultura. A teoria [...]
como “concreto pensado” [...]; c) uma competência estratégica e técnica (ou técnico-
política) que não reifica o saber fazer, subordinando-o à direção do fazer. [...] a
partir da elucidação das tendências presentes no movimento da própria realidade,
[...] Uma vez decifradas, essas tendências podem ser acionadas pela vontade política
144

dos sujeitos, de modo a extrair estratégias de ação reconciliadas com a realidade


objetiva (IAMAMOTO, 2009a, p. 17).

O domínio do saber crítico coloca-se para o profissional como condição para a


intervenção qualificada e competente, podendo se pautar no espectro das diversas teorias
sociais que têm profundas inserções sócio-históricas quando localizadas na totalidade da
sociedade de classes. Tendo em vista, porém, que o Serviço Social participa da divisão
sociotécnica do trabalho como profissão interventiva, mesmo quando seus profissionais são
chamados para elaboração, gestão e avaliação das políticas sociais — uma vez que são
chamados exatamente porque detêm condições para construir respostas a aos desafios
colocados pela realidade social ou de sua operação concreta —, é preciso considerar que, se
legitima e qualifica a intervenção, o saber não basta, no entanto, a um profissional da
intervenção. Para uma profissão caracterizada como de intervenção, o saber se apresenta
como condição para a ação orientada por finalidades, mas não se limita a isto. O que muda a
realidade, de fato, são as ações orientadas para a manutenção ou alteração daquilo que está
dado; o saber não tem a capacidade, em si mesmo, de mudar ou transformar a realidade.
Torna-se importante, então, destacar, com Netto (1996), que, embora a autoimagem do
Serviço Social suponha que “a raiz de sua especificidade (ou parte substantiva dela)
profissional advém de um estoque ‘científico’” (NETTO, 1996, p. 84). Com efeito, porém,

o desenvolvimento de um estatuto profissional (e dos papéis a ele vinculados) se


opera mediante a intercorrência de um duplo mecanismo: de uma parte, aquele que é
deflagrado pelas demandas que lhe são socialmente colocadas; de outra, aquele que
é viabilizado pelas suas reservas de forças (teóricas e prático-sociais), aptas ou não
para responder às requisições extrínsecas — e este é, enfim, o campo em que incide
o seu sistema de saber. O espaço de toda e cada profissão no espectro da divisão
social (e técnica) do trabalho na sociedade burguesa consolidada e madura é função
da resultante desses dois vetores (NETTO, 1996a, p. 85; grifo do autor).

Este autor aqui comparece para esclarecer com todas as letras:

Qualquer que seja, [...] a razão cabível para [a] hipoteca da base profissional ao seu
lastro “científico”, o que é certo é que ela desconsidera o primordial, isto é, o
erguimento de uma configuração profissional a partir de demandas histórico-sociais
macroscópicas. O aspecto nuclear de uma intervenção profissional institucional não é
uma variável dependente do sistema de saber em que se ancora ou de que deriva; é o
das respostas com que contempla demanda histórico-sociais determinadas; o peso dos
vetores do saber só se precisa quando inserido no circuito que atende e responde a
estas últimas (mesmo que, em situações de rápidas mudanças sociais, a emersão de
novos parâmetros do saber evidencie implementações susceptíveis de oferecer inéditas
formas de intervenção profissional) (NETTO, 1996a, p. 83; grifos meus).
145

Esse entendimento nos permite entender que às organizações pode interessar a


intervenção do profissional pautada na repetição e na burocratização dos procedimentos, uma
vez que seu objetivo principal é passar a ideia de que está cuidando das situações-alvo de sua
atuação de forma controlada. À categoria profissional, entretanto, cabe constantemente se
perguntar, aos moldes da ética, sobre que Serviço Social vale a pena e de que jeito podemos e
queremos ser assistentes sociais diante de um mundo tão desumano e cruel para grande parte
da humanidade.
Em relação ao nosso objeto de estudo, certamente não cabe à profissão decidir se quer
ou não realizar seleção socioeconômica, uma vez que, mesmo que a decisão seja pela sua não
realização pelo Serviço Social, ela não será extinta, dada sua utilidade social para legitimar o
não acesso de parcela da população que necessita dos serviços e benefícios sociais para viver.
Em artigo do jornal Socialist Standard, publicação do Partido Socialista da Grã-
Bretanha, de janeiro de 1936, sob o título “O means test pode ser abolido?”, há esta análise;

podemos ter como certo que nenhum governo, liberal, trabalhista, conservador ou
qualquer outro que administre o capitalismo, abolirá o means test sem reintroduzi-lo
sob outro nome ou como algo de efeito semelhante e igualmente desagradável. [Isto
porque] não exige muita análise para se ver por que a questão dos testes de meios é
vital para o capitalismo. [...] Por razões de estabilidade e segurança da propriedade,
os governantes devem fornecer algo para os trabalhadores cujos serviços não são no
momento necessários, mas devem ser cobertos de restrições, não permitindo que os
trabalhadores recebam de todas as fontes mais do que o mínimo que irá mantê-los
vivos (CAN THE MEANS TEST..., 1936, p. 7; tradução minha).

Tendo em vista essas observações, considero que, para entender o processo de seleção
socioeconômica que os profissionais realizam, é necessário levar em conta mediações de
várias ordens, porque não há atividade técnica em si mesma: a técnica é a expressão de
concepções teóricas e políticas em atos.
Teoria e prática caminham sempre juntas. Sem uma sólida teoria, não se faz
intervenção consequente e comprometida com os interesses das camadas sociais
subalternizadas. O projeto ético-político hegemônico da categoria dos assistentes sociais, do
qual o Código de Ética de 1992, as Diretrizes Curriculares e a Lei nº 8.662/93 são expressões
que não deixam dúvidas sobre a direção estratégica da ação profissional no sentido da luta
pela universalização de acesso às políticas sociais públicas. No entanto, mais do que nunca, os
agentes desta categoria profissional têm sido acionados para criar ou aplicar critérios seletivos
que reforçam a lógica da exclusão, sob o discurso de inclusão.
146

CAPÍTULO 4 — A SELEÇÃO SOCIOECONÔMICA NO EXERCÍCIO E NA


FORMAÇÃO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL CONFORME AS
ENTREVISTAS REALIZADAS

Após tratar nos capítulos anteriores dos fundamentos sócio-históricos que dão sentido e
utilidade à seleção socioeconômica na política social e na profissão do assistente social situadas
na sociedade capitalista, analisaremos e problematizaremos a seleção socioeconômica operada
no tempo presente pelos assistentes sociais, tendo como fundamentos os referenciais teórico-
metodológicos já expostos. Antes, apresentaremos como se deu a definição dos instrumentos e
do processo de escolha sujeitos da pesquisa empírica.

4.1. Definição dos instrumentos de pesquisa

Escolher os instrumentos da pesquisa empírica pressupôs equacionar as possibilidades


e limites das diversas possibilidades que eu conhecia, a fim de decidir por aquelas que se
mostravam como o melhor jeito de abordar os sujeitos da pesquisa, pois embora conteúdo e
forma sejam indissociáveis, entendo que a forma deve estar sempre a serviço do conteúdo.
Os instrumentos da pesquisa empírica se constituem em meios, ferramentas
disponíveis, para que os pesquisadores possam obter informações, no processo de apropriação
do objeto de estudo, tendo em vista os objetivos traçados.
Pautada nas orientações teórico-metodológicas já apontadas, após vários ensaios, a
decisão incidiu na realização de entrevistas semidirigidas, diante do caráter qualitativo e
dialógico pretendido e tendo em vista a busca de problematização das questões que cercam o
objeto em pauta. Realizei essa escolha, portanto, tendo em vista o meu objetivo que era o de
obter informação qualitativa importante.
Entendo que a entrevista é relação face a face na qual entrevistado e entrevistador são
sujeitos datados, concretos, sendo que a própria entrevista constitui relação social que sempre
necessita ser situada no tempo e no espaço onde ocorre, da mesma forma como as situações e
os discursos precisam necessariamente ser contextualizados e referenciados à prática em que
são produzidos e que lhe dão sentido.
A entrevista é uma situação objetiva, permeada de subjetividades. Nela sempre estão
presentes, de forma velada ou explícita, as posições dos sujeitos em relação à classe social,
147

assim como o seu pertencimento a diversos grupos (políticos, religiosos, etc.), e mesmo outras
pertinências (nacionalidade, geração, religião, cultura, sexo, etc.) que permeiam o discurso e o
olhar, o que pode gerar, no entrevistador e no entrevistado, antipatias e simpatias,
preconceitos, dentre outras reações possíveis (LÖWY, 1998, p. 213).
Neste estudo, as entrevistas foram realizadas com assistentes sociais portugueses e
brasileiros, uma vez que o estágio realizado em Portugal, conforme já exposto, me abriu a
possibilidade de trabalhar sobre o meu tema de estudo, com profissionais dos dois países.

4.2. A definição dos sujeitos da pesquisa

Nossa pesquisa de campo foi realizada em dois momentos distintos. O primeiro, em


Portugal, quando realizei as entrevistas, em dezembro de 2010; o segundo, no Brasil, quando
dei continuidade às entrevistas em abril de 2012, levando em conta a riqueza do produto
obtido naquele país, o que me fez repensar e recriar o jeito e a forma de colocar em pauta, no
Brasil, os conteúdos relacionados à seleção socioeconômica. As entrevistas realizadas com
assistentes sociais dos dois países devem, no entanto, ser entendidas como dois momentos do
mesmo processo, que indicam a necessidade de tratá-los nas suas especificidades.
Em relação a Portugal, em um primeiro momento, o Serviço Social português se
apresentava a mim como um campo que eu não conhecia, mas, com o auxílio e sob orientação
do tutor português, passei a estudar a história da profissão naquele país, para que pudesse me
situar no meio profissional e como condição para estabelecer um diálogo respeitoso com as
colegas portuguesas.
Apresento seguir, em breves traços, o entendimento que tive acerca do Serviço Social
português, que me serviu de base na construção do perfil para selecionar as entrevistadas
portuguesas — no Brasil o perfil é o mesmo, aqui apreendido, porém, na especificidade da
realidade brasileira.
No tocante ao desenvolvimento da profissão de Serviço Social naquele país, é
importante destacar que as primeiras escolas para a formação de assistentes sociais em
Portugal, assim como no Brasil, são criadas na década de 1930, sob a tutela da Igreja Católica,
e só admitem moças. Embora haja particularidades da Igreja Católica nos dois países em
pauta, essa origem dá à profissão, nos dois países, um caráter confessional que se expressará,
naquele momento, tanto na formação como na prática das assistentes sociais.
148

Em 1939, há o reconhecimento, pelo Decreto-Lei nº 30.135, da formação realizada


pelo Instituto de Serviço Social de Lisboa (ISSL), desde 1935, e pela Escola Normal Social em
Coimbra, desde 1937, que se constituem nas duas primeiras escolas de Serviço Social em
Portugal. Em 1961, a formação em Serviço Social passa a ser considerada de nível superior.
No ano seguinte, alunos do sexo masculino passam a ser admitidos no Instituto Superior de
Serviço Social (ISSS) de Lisboa, e o ensino sofre algumas alterações, inspiradas em modelos
de outros países (MARTINS, 1999).

Inicia-se então uma reorientação paulatina da formação profissional, com uma


progressiva introdução em termos curriculares das disciplinas em Ciências Sociais e
dos métodos em serviço social (case work, group work e community work) sob a
influência do serviço social americano e à semelhança do que ocorria nos países
desenvolvidos e democráticos (APSS/ CES, 2009, p. 19).

Desde o início do Serviço Social português, em 1935, até a entrada da década de 1990,
ou seja, pelo período de 55 anos, a formação de assistentes sociais se realizou em três
principais agências formadoras; o ISSSL, o Instituto Miguel Torga de Coimbra e o ISSS do
Porto, criado em 1956.
Martins (2002, p. 3), chama atenção para o fato de que, em tempos de ditadura, 77 não
se pode falar do Serviço Social de forma homogênea, identificado somente com o
assistencialismo e conivente com a opressão vigente, uma vez que existiam, certamente desde
1958, assistentes sociais que concebiam o Serviço Social de outra forma. A autora apresenta,
ao longo do texto, inúmeros exemplos de colegas que se comprometeram na luta social que se
travava para pôr fim à ditadura e às diversas formas de opressão existentes. A autora também
observa que um dos primeiros questionamentos das assistentes sociais

prende-se ao carácter assistencialista do serviço social [...] e à constatação da


ineficácia do atendimento individualizado no superar das necessidades da
população. O confronto com as situações de desigualdade e opressão provoca em
algumas assistentes sociais inconformismo, indignação e revolta, levando-as a
afastarem-se da profissão ou a repensarem as práticas existentes, com vista a
ultrapassar esse mal-estar (MARTINS, 2002, p. 7).

Partindo desses questionamentos, segundo a autora, algumas assistentes sociais


começam a perceber que já não se podia culpabilizar os indivíduos por suas situações, o que
exigia análises mais profundas relativas ao modo de organização da sociedade.

77
A autora se refere à ditadura que perdurou em Portugal por 41 anos (1933-1974). Esse período é denominado
“Estado Novo” e pauta-se pelo autoritarismo corporativista, constituindo-se em período de forte repressão.
149

No início dos anos 1970, sob influência da produção brasileira (Documentos de Araxá,
de 1967, e Teresópolis, de 1970), começa a haver um estreitamento de relação entre Brasil e
Portugal. Em ambos os países, surge um questionamento amplo acerca do Serviço Social
tradicional, uma vez que os ditos “métodos de serviço social de caso, grupo e comunidade”
não se mostram mais como suficientes para responder às novas demandas que a profissão
tinha que então responder.
Em Portugal, o acesso à problematização emergente no Movimento de Reconceituação
Latino-Americano do Serviço Social e ao New Social Work (BARTLETT, 1970, e KHAN, 1973,
apud BRANCO; FERNANDES, 2005, p. 6) traz muitas indagações e gera polêmica entre os
profissionais (BRANCO; FERNANDES, 2005, p. 6).
Ressalte-se que, de fato, a crise do Serviço Social “tradicional”, fundado no modelo
norte-americano de caso, grupo e comunidade e que vem à tona nos anos 1960, é um
fenômeno de âmbito internacional. O Movimento de Reconceituação Latino-Americano
(1965-1975) é uma resposta da profissão no sentido de se renovar, para conseguir responder
às demandas colocadas pela reordenação capitalista internacional, que impõem à América
Latina um estilo excludente e subordinado. 78 A profissão assume as inquietações e
insatisfações desse momento histórico e direciona seus questionamentos ao Serviço Social. O
Movimento fará com que o Serviço Social se repense a si mesmo em relação aos
compromissos assumidos até então. Esse processo, ao final, fará com que a profissão adquira
um traço plural, ao passar a conviver, em seu interior, com as principais vertentes do
pensamento social contemporâneo. A partir daí, não será mais possível falar da profissão de
uma única perspectiva, uma vez que o Serviço Social será fecundado pelas teorias sociais
existentes e presentes na contemporaneidade, de forma consistente.
O Movimento de Reconceituação, na especificidade do Serviço Social brasileiro é
denominado Renovação do Serviço Social (1964-1985), de acordo com Netto (1991a).
Em Portugal, embora nas leituras que realizei não apareça a designação de Movimento
de Reconceituação do Serviço Social português, o marco do 25 de Abril parece significar um

78
O Movimento de Reconceituação do Serviço Social é um processo de renovação que ocorre na profissão,
visando dar consistência ao arcabouço teórico-metodológico, uma vez que o Serviço Social sofre um processo de
erosão que não lhe permite responder às novas demandas enfrentadas pela profissão (NETTO, 1991a). Trata-se de
um Movimento de complexo entendimento que rebaterá no Serviço Social de cada país latino-americano com
certas particularidades, tendo em vista a sequência de rupturas e continuidades impostas pela realidade vivida,
quando vão se instalando governos ditatoriais, ao longo do período de 1965 a 1975. Não podemos desconsiderar
o papel da Teologia da Libertação como perspectiva da Igreja Católica que, informada pela perspectiva marxista,
assume o compromisso de lutar ao lado do povo no sentido de sua libertação, que também precisa ser citado,
tendo em vista a profunda relação que existia então entre Igreja Católica e profissão; assim como precisa ser
lembrada a forte influência de Paulo Freire no Serviço Social. Embora não seja objetivo deste texto aprofundar
essas relações, não enunciá-las poderia prejudicar o entendimento do tema (NETTO, 1991a).
150

divisor de águas, no sentido de fecundação do Serviço Social de uma forma abrangente, com
novas perspectivas teórico-metodológicas e ético-políticas, novas práticas advindas de novo
arsenal explicativo da realidade e novos compromissos assumidos.
Note-se que, quando a Revolução dos Cravos acontece, em abril de 1974, encontra um
Serviço Social já aquecido por intenso questionamento em relação ao papel que a profissão
deveria ter em sociedades subdesenvolvidas e nas governadas por ditaduras, mesmo porque
havia assistentes sociais que lutavam bravamente para pôr um fim ao regime ditatorial vigente.
O Serviço Social — até então identificado com o regime deposto pelo 25 de Abril — começa a
emergir em novas bases, impulsionado pelas demandas advindas do alargamento das funções do
Estado e pelas novas alianças que se estabelecem entre vários segmentos de profissionais e os
movimentos populares, dando origem a propostas inovadoras de intervenção, construídas em
parcerias com estes movimentos, e a novos campos de intervenção.
Após o 25 de Abril e no processo de democratização do país, as escolas de Serviço
Social de Lisboa e do Porto passam a se constituir como cooperativas de ensino (entidades
autônomas, sem fins lucrativos), autogestionárias e com direções eleitas. Desligam-se, assim,
da origem confessional e se tornam entidades de caráter laico (BRANCO; FERNANDES, 2005;
NEGREIROS, 1998).

O quadro de mudanças e questionamentos presentes na sociedade, na Igreja Católica e


no Serviço Social impõe aos assistentes novos posicionamentos e compromissos. É nessa
conjuntura que o Serviço Social vai se tornando plural, passando a ser influenciado e
permeado pelas várias perspectivas teóricas existentes, com destaque para a posição
hegemônica que a perspectiva marxiana tem, nesse momento. A partir daí, várias perspectivas
teóricas começam a se expressar na produção acadêmica e na prática profissional do Serviço
Social em Portugal.
Na década de 1980, o ISSSL desenvolve esforços para dar início à formação pós-
graduada de assistentes sociais portugueses, nos níveis de mestrado e doutorado, priorizando a
qualificação de docentes e a formação de pesquisadores. Assim, estabelece em 1987, um
protocolo com a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo para a formação acadêmica
pós-graduada em Serviço Social.
Em 1989, após um longo e complexo processo, é reconhecido o grau de Licenciatura
aos cursos de Serviço Social existentes no país, ministrados por institutos particulares.
151

O reconhecimento, em 1989, do grau de Licenciatura, aos cursos de Serviço Social


ministrados por aquelas escolas,79 actualiza a disposição legal de uso exclusivo do
título profissional de Assistente Social aos licenciados em Serviço Social. Refira-se
que, em julho de 1956, o Decreto-Lei nº 40.678, que revê o Decreto-Lei nº 30.135,
estabelecendo a formação em quatro anos curriculares, consagra a designação de
assistentes sociais (cf. art. 1º), título profissional que se mantém até ao presente
(APSS/CES, 2009, p. 35).

A década de 1990 é marcada por profundas transformações que ocorrem no mundo


numa dimensão planetária, e marcam a sociedade portuguesa, imprimindo-lhe certas
especificidades, as quais, por sua vez, rebatem no Serviço Social e

[...] podem apontar-se quer a profunda transformação da formação em Serviço


Social no nosso país, quer a mutação da estrutura do mercado de trabalho dos
assistentes sociais com o sector privado social a tornar-se o sector predominante em
detrimento do sector público em consequência da transferência de funções sociais do
Estado para as IPSS e da retracção do emprego público, a par de uma dinâmica de
desregulamentação do mercado de trabalho (APSS/CES, 2009, p. 21).

Em meados da década de 1990,

[...] multiplica-se a criação de novos cursos de Serviço Social, registando-se uma


alteração completa do panorama da formação em Serviço Social em Portugal. Às três
escolas históricas, sediadas nas três mais importantes cidades do país, junta-se uma
significativa diversidade de estabelecimentos e cursos, sendo de salientar o
funcionamento, desde 2000/2001, da primeira licenciatura no quadro do ensino
universitário público, na Universidade dos Açores (BRANCO; FERNANDES, 2005, p. 8).

Merece relevo ainda que, em 1995, são criados, em Portugal, os primeiros Programas
de Mestrado em Serviço Social, sob responsabilidade dos Institutos Superiores de Serviço
Social de Lisboa e do Porto. Atualmente, em Portugal, existem nove programas de Mestrado e
dois de Doutoramento em Serviço Social.
A Universidade Católica Portuguesa, na qual fui estagiária em 2010, implantou seu
Curso de Licenciatura em Serviço Social em 1996, e o Mestrado (2º ciclo) e o Doutorado (3º
ciclo) em Serviço Social em 2003.
É digno de nota, ainda, o fato de que, em 2006, o ISSSL, primeira escola de Serviço
Social em Portugal, foi incorporado à Universidade Lusíada de Lisboa, num processo que

79
A importância dessa medida jurídica decorre do fato de que o “[...] Decreto-Lei nº 30.135, de 14 de dezembro
de 1939, que estabelece as condições a que devia obedecer a formação em Serviço Social, estatuiu que Assistente
Social é o título autorizado por lei, exclusivamente, para os diplomados em Serviço Social, formação ministrada
até 1995, exclusivamente, pelos Institutos Superiores de Serviço Social de Lisboa, Coimbra e Porto. Conforme
estipula o art. 9º, o título de assistente de serviço social é privativo das diplomadas nos termos deste decreto-lei
[...] Decorrendo o uso da designação de diplomados do facto de, então, o ordenamento educativo não prever que
aos cursos ministrados em instituições particulares de ensino pudessem ser conferidos graus académicos”
(APSS/CES, 2009, p. 34; grifos no original).
152

custou muitas demissões e que, aparentemente, deixou um vazio até os dias atuais; pode-se
perceber que entre os assistentes portugueses há um sentimento de tristeza, quando se toca no
assunto “da extinção do ISSSL ”. O sentimento e a fala é a de que o ISSSL já não existe e que foi
extinta a primeira e a mais forte referência da história de Serviço Social de Portugal.
Em 2008, havia em Portugal 13.971 assistentes sociais formados no período de 1935 a
2008 pelos cursos portugueses de Serviço Social. Desse total, 4.540 foram formados pelas três
primeiras escolas de Serviço Social de Portugal, no período compreendido entre 1935 e 1992
(APSS/CES, 2009, p. 42).
Em 2009, existiam em Portugal 21 cursos formadores de assistentes sociais do 1º ciclo
(licenciatura em Serviço Social) que surgiram numa conjuntura de densa complexidade.
Entretanto, as principais e mais significativas agências formadoras de assistentes sociais
nesses 75 anos de institucionalização do Serviço Social português continuaram a ser o
Instituto de Serviço social de Lisboa, que surgiu em 1935, a Escola Normal Social de
Coimbra, de 1937 80, e o Instituto de Serviço Social do Porto, de 1956.
Destaque-se que,

neste movimento, assistiu-se ao surgimento da formação em Serviço Social no


Ensino Politécnico, reintroduzindo-se nesta área, após a sua extinção nos anos 70, a
questão da formação bietápica e de graus diferenciados 81 em termos profissionais.
Este aspecto, entendido como particularmente crítico pelas organizações
profissionais, veio a ser minorado pela reforma de Bolonha e a unificação dos títulos
universitários nos ensinos Politécnico e Universitário (APSS/CES, 2009, p. 22).

Desde o início do Serviço Social português em 1935 até a entrada da década de 1990
— portanto, pelo período de 55 anos — a formação de assistentes sociais se realizou nas três
principais e já citadas agências formadoras. Só a partir da segunda metade dos anos 1990
começou a se dar a multiplicação de novos cursos de Serviço Social em Portugal, o que
provocou significativa alteração no quadro da formação em Serviço Social no país.
Em relação ao mercado de trabalho profissional, 82 a Segurança Social se constituiu
historicamente como área profissional “natural” dos assistentes sociais, e, até há quase bem
pouco tempo, quase exclusiva, na qual os profissionais exercem funções no âmbito de
diferentes programas de assistência social, participando, dentre outras ações, da

80
Esse estabelecimento de ensino é hoje designado por “Instituto Superior Miguel Torga”.
81
Ver mais detalhes dessa complexa discussão em: http://www.apross.pt/apssbo/upload/Assistente_Social_.pdf;
http://www.apross.pt/interna.php?idseccao=10; http://www.apross.pt/apssbo/upload/CarreiraTecnicosSupSS.pdf.
82
No relatório denominado “O campo profissional do Serviço Social: estudo sociológico tendo em vista a
Constituição da Ordem Profissional dos Assistentes Sociais”, elaborado pela APSS/CES como subsídio à constituição
da Ordem dos Assistentes Sociais e Portugal, obtive valiosos dados sobre a situação atual da profissão.
153

implementação do Rendimento Mínimo Garantido, criado em 1996 (hoje transformado em


Rendimento Social de Inserção), tendo ali papel preponderante. Os assistentes sociais têm
sido chamados para responder às funções de apoio técnico em organismos associativos, no
âmbito de processos de direito de menores e família (quer na assessoria aos tribunais, quer na
execução de medidas de proteção de crianças e jovens em risco social), no apoio ao trabalho e
ao emprego, através da inserção de desempregados no mercado de trabalho, e em outras
estruturas estatais, sindicais e empresariais (APSS/CES, 2009, p. 37-38).
Em relação a entidades agregadoras e organizativas da categoria dos assistentes
sociais, consta que em 2010 existiam, em Portugal:
• a Associação dos Profissionais de Serviço Social (APSS), 83 fundada em 1978, de âmbito
nacional e com sede em Lisboa, que se apresenta “[...] como a organização mais
representativa a nível da profissão. Em termos de filiação, o número de associados da
APSS representa 15% dos efectivos no mercado de trabalho” (APSS/CES, 2009, p. 27-29);
• o Sindicato Nacional dos Profissionais de Serviço Social, “associação sindical fundada
em 1950, sedeada em Lisboa, é integrada por assistentes sociais e titulares de cursos já
desaparecidos como assistentes familiares e auxiliares sociais designadamente. Essa
atividade tem participado ativamente na construção da profissão em Portugal”
(APSS/CES, 2009, p. 28);
• a Associação de Investigação e Debate em Serviço Social (AIDSS), 84 fundada em 1993,
associação de assistentes sociais sedeada no Porto criada para formar, divulgar e
estimular o debate científico, que publica desde 1994 a Revista Investigação e Debate,
com periodicidade anual e que, em geral, tem uma organização temática (APSS/CES,
2009, p. 29);
• o Centro Português de Investigação em História e Trabalho Social (CPIHTS), 85 surgido
em 1993 com o objetivo de apoiar estudos dos problemas e das politicas sociais, assim
como da intervenção social na realidade portuguesa; o desenvolvimento de estudos
históricos do Serviço Social e a elaboração e execução de projetos de investigação, a
divulgação e publicação dos resultados de estudos e investigação na mesma área,
também se colocam no seu horizonte de atuação (APSS/CES, 2009, p. 29-29);
Em 2010, época do meu estágio no país, o Serviço Social em Portugal, enquanto
profissão, encontrava-se diante de um quadro complexo, que envolvia desde a titulação e a

83
O site da APSS pode ser visitado no endereço eletrônico http://www.apross.pt.
84
O site da AIDSSP pode ser visitado no endereço eletrônico http://www.aidssp.com.
85
O site do CPIHTS pode ser visitado no endereço eletrônico http://www.cpihts.com.
154

regulamentação da profissão até a fiscalização do exercício profissional. A grande tarefa das


entidades representativas da categoria, naquele momento, era somar esforços das entidades
para a constituição da “Ordem Profissional dos Assistentes Sociais de Portugal”. Essa tarefa
tinha posição central na pauta de discussões profissionais, dada a urgência da Ordem como
instrumento jurídico e político que permitiria dar unidade e visibilidade à profissão na
sociedade portuguesa, sem falar da necessidade que havia de fiscalizar o exercício
profissional, a partir de parâmetros claramente definidos.
O II Congresso Nacional de Serviço Social, realizado em 18 e 19 de novembro de
2010 na cidade de Almada, nos arredores de Lisboa, do qual tive a oportunidade de participar,
teve como tema central a discussão “Espaços e compromissos da profissão”, visando
aprofundar a reflexão sobre a necessidade urgente de haver regulação do exercício
profissional, o lugar e o papel da formação na qualificação de profissionais, os espaços
emergentes e exigentes da criação profissional, a descentralização da ação profissional, a
reforma do sistema de saúde e o Terceiro Setor.
Nesse panorama complexo, que expus em breves linhas, encontrei respaldo para as
decisões tomadas em relação ao perfil das participantes da pesquisa.
O processo de escolha das pessoas entrevistadas foi desencadeado na prática, quando
indiquei, aos colegas professores universitários que conhecia e que me ajudariam na seleção
dos dois sujeitos da pesquisa, um perfil de referência com os seguintes traços: licenciados em
Serviço Social, que, de preferência, haviam vivido a efervescência do Serviço Social
português na segunda metade da década de 1990, que tivessem experiência na realização de
estudos sociais de corte socioeconômico (formulação e /ou execução da política social) e que
fossem reconhecidos pelos colegas pela seriedade, competência e compromisso profissional.
Minha intenção inicial era realizar duas entrevistas com assistentes sociais portugueses
que estivessem trabalhando com a seleção socioeconômica e que também tivessem uma
reflexão a respeito — daí a inclusão de docentes dentre as pessoas entrevistadas.
Embasada em tais referências, entre o final de novembro e início de dezembro de
2010, recebi a indicação de quatro nomes de assistentes sociais para entrevistar, sendo um da
cidade do Porto e as outras de Lisboa. Os assistentes sociais indicados pelos colegas são todas
mulheres e, embora a proposta inicial fosse realizar apenas duas entrevistas, a ampliação
desse número para quatro deu-se pelo fato de que me encontrava às vésperas de retornar ao
Brasil; então, levei em conta que ainda poderia ocorrer algum imprevisto na realização das
entrevistas, como, por exemplo, a desistência de participação de alguma delas, etc. Dessa
forma, decidi naquele momento que a seleção das duas entrevistas poderia se dar
155

posteriormente; mas, ao final, dada a riqueza dos testemunhos, a resolução final foi a de
incluir todas na análise da pesquisa. Com essa decisão, Portugal adquiriu um lugar maior no
estudo em relação ao que havia inicialmente estabelecido.
Devo salientar que a diversificação de áreas de atuação das entrevistadas não foi
intencional, mas considero que constituiu uma amostra aleatória significativa e muito rica.
Saliento ainda que, antes de cada entrevista, enviei ao entrevistado, via internet, o roteiro de
questões que serviria de base no encontro marcado (ver Anexo 2). Na oportunidade da
realização das entrevistas, solicitei às pessoas entrevistadas que preenchessem a ficha de
identificação do entrevistado (reproduzida no Anexo 1).
O material gravado de Portugal rendeu mais de 100 páginas de transcrição, tarefa a
cargo de uma portuguesa remunerada para isso. Levei em conta a facilidade que esta pessoa
teria para entender o sotaque das entrevistadas — que, por vezes, para uma brasileira, dificulta
a compreensão das falas — e a pouca disponibilidades que eu tinha para realizar pessoalmente
tal atividade. O meu papel foi a de ler o material e voltar às gravações para resolver dúvidas.
Após minhas correções, enviei às entrevistadas, de novo por internet, o produto obtido
nas entrevistas para o conhecimento delas e para a realização das alterações que porventura
desejassem assinalar. Recebi retorno somente de Alice, 86 que propôs pouquíssimas alterações
e assim se manifestou a respeito: “Foi bom ver escrito o que disse. Acho que você refletiu
bem o meu pensamento, ainda que em algumas respostas pouco claro, mas isso já é da minha
cabeça pouco arrumada.”
Na continuidade da pesquisa empírica no Brasil, através da realização das entrevistas
com assistentes sociais brasileiras, que ocorreu após ter transcorrido mais de um ano, pude,
nesse intervalo de tempo, categorizar melhor, analisar e amadurecer a apreensão da seleção
socioeconômica a partir do que havia conseguido com as entrevistas realizadas em Portugal.
Tendo em vista que meu objetivo não é apresentar um estudo de natureza comparativa
entre Brasil e Portugal, mas realizar a problematização da seletividade de acesso aos serviços e
benefícios sociais na sua operação concreta, considerei que não fazia sentido reproduzir no Brasil
o processo realizado em Portugal. O material obtido no primeiro momento era rico, as questões do
âmbito da prática da realização da seleção socioeconômica já estavam bem enriquecidas com sua
prática direta e havia muitos pontos comuns à realidade que conhecia do Brasil.

86
As assistentes sociais entrevistadas em Portugal são designadas de modo fictício, devido ao fato de que uma
delas não me autorizou a revelar seu nome real, temendo possíveis represálias. Nessas condições, optei por
alterar o nome das entrevistadas portuguesas. Em relação às brasileiras, preservei seus nomes, depois do
consentimento de todas. Entendo que citar os nomes das entrevistadas é ato de respeito e reconhecimento da
autoria das formulações de idéias expostas ao longo do capítulo.
156

As entrevistas com as brasileiras foram pensadas então para complementar e


problematizar o material já conseguido até então, considerando que ainda era necessário
aprofundar alguns aspectos da seleção socioeconômica no âmbito de sua realização,
destacadamente sobre a natureza avaliativa dos estudos implicados na seleção
socioeconômica e a formação do assistente social para operar a seletividade de acesso aos
serviços e benefícios sociais.
Como decorrência dessa decisão, resolvemos reformular o roteiro de entrevista para
que, partindo-se do material já obtido em Portugal, fosse possível a incorporação da
problematização da experiência brasileira, a partir de três blocos de questões (Anexo 4).
O segundo grupo de assistentes sociais foi selecionado pela docência e pela prática. O
perfil traçado para selecionar os sujeitos da pesquisa no Brasil destacou os seguintes traços:
experiência prática no âmbito da intervenção profissional junto à população usuária dos
serviços sociais, experiência docente no âmbito de disciplinas que tratam da
instrumentalidade profissional e apreensão da produção teórico-prática dos estudos
socioeconômicos, numa perspectiva crítica. Praticamente é o mesmo perfil das assistentes
sociais portuguesas entrevistadas, com a diferença de que a totalidade das entrevistadas
brasileiras é docente em Cursos de Serviço Social no Brasil, ao mesmo tempo em que
apresentam o lastro de atuação direta com a população usuária dos serviços e benefícios
sociais no âmbito da realização de estudos socioeconômicos, conforme pode ser conferido no
Anexo 3, no quadro que trata do perfil real das entrevistadas.
Em abril de 2012, realizei no Brasil duas entrevistas, envolvendo quatro profissionais.
A primeira foi uma entrevista coletiva que contou com a participação de três entrevistadas
(Isaura, Graziela e Regina). A outra ocorreu sob a forma individual (com Eunice), respeitando
as possibilidades da agenda de todas.
Antes da realização das entrevistas, contatamos as quatro assistentes sociais
selecionadas para convidá-las a participar, expondo a natureza, os objetivos e os
procedimentos da pesquisa. Ao final, todas prontamente se dispuseram a contribuir com a
trabalhosa empreitada proposta que exigia uma preparação prévia.
Antes da entrevista propriamente dita, cada participante recebeu com antecedência, via
internet: o roteiro das entrevistas utilizado em Portugal (Anexo 2); o Quadro 1, referente ao
perfil das entrevistadas portuguesas (Anexo 3), posteriormente completado com as
informações das entrevistadas brasileiras; uma das quatro entrevistas transcritas de Portugal,
para que pudesse “se aquecer”, lendo e refletindo sobre o material, e, na oportunidade do
157

nosso encontro, se manifestar livremente a respeito, acrescentando o que desejasse; o roteiro


de questões que serviria de base para as entrevistas com as brasileiras (Anexo 4).
A proposta era de que nessas entrevistadas as participantes pudessem apresentar seus
comentários sobre as três principais matérias apontadas no roteiro, distinguindo como elas
aparecem nas entrevistas das assistentes sociais portuguesas e como têm aparecido em suas
experiências pessoais de docentes e “profissionais da prática”.
Na transcrição das entrevistas, também contei no Brasil com a ajuda de uma brasileira
remunerada para realizar tal tarefa. O material de 80 páginas obtido nas duas entrevistas foi
corrigido e tratado por mim, da mesma forma que havia tratado das outras já realizadas. A
entrevistada Eunice teve interesse em ler o material obtido na entrevista coletiva;
posteriormente, pode ler e revisar livremente sua própria entrevista (foi com a versão revisada
que trabalhei a análise de sua entrevista).
Os sujeitos dessa pesquisa são oito mulheres representativas da profissão em Portugal
e no Brasil, com vasta experiência profissional. A mais jovem das entrevistadas é uma
assistente social portuguesa que hoje tem 45 anos. Seis são docentes, e todas exerceram ou
exercem a profissão que se realiza nas organizações sociais, com experiência em estudos
socioeconômicos. Declaradamente, seis tiveram participação direta e ativa na construção do
Serviço Social nas últimas três décadas, numa perspectiva crítica. Isto significa, para as
portuguesas, ter vivido os desdobramentos da Revolução de 25 de abril de 1974 e, para as
brasileiras, ter participado do processo de redemocratização da sociedade brasileira (a partir
de 1985) e do denominado Processo de Renovação do Serviço Social no Brasil.
Minha interlocução se deu, portanto, com um grupo de profissionais altamente
qualificado e representativo da categoria dos dois países, uma vez que foram indicadas e são
reconhecidas por seus pares como tendo o que dizer sobre a seleção socioeconômica de
acesso aos serviços e benefícios sociais, porque fazem ou estudam sobre o assunto e que se
dispuseram a refletir e problematizar a seleção socioeconômica como atividade profissional,
inscrita na profissão e nos espaços sócio-ocupacionais em que os assistentes sociais atuam.

4.3. O conteúdo das entrevistas

Os roteiros utilizados nas entrevistas com as assistentes sociais portuguesas e


brasileiras — apresentados nos Anexos 2 e 4, respectivamente — objetivaram a abordagem de
quatro ordens de assuntos relativos à explicitação das determinações que incidem na operação
158

da seleção socioeconômica como instrumento da política social, operada por assistentes


sociais, pautada em referências construídas e já apresentadas em capítulos anteriores.
Em um bloco, pretendi explicitar a apreensão das entrevistadas sobre a natureza, a
utilidade, o papel e o significado social da seleção socioeconômica como instrumento da
política social operada pelo assistente social, visando apresentar-lhes desafios teórico-práticos
e ideo-políticos implicados na reflexão sobre o assunto. Também pretendi explorar a
motivação dos profissionais, entendida como a predisposição para responder à seleção
socioeconômica como atividade profissional, partindo da hipótese de que não gostavam de
realizá-la. Compõem esse bloco as questões 1, 3, 5 e 7 do Anexo 2 e o item 3 do Anexo 4.
Em outro bloco, desejei estimular as entrevistadas na explicitação das pressões
políticas que ocorrem nos processos seletivos de acesso aos serviços e benefícios sociais,
assim como trazer à tona como os assistentes sociais têm lidado no cotidiano institucional
com as pressões advindas dos candidatos desclassificados do processo, que se sentem
injustiçados, e com aquelas que chegam através da hierarquia organizacional, advindas de
“políticos” e “indivíduos influentes” para que seus apadrinhados tenham acesso garantido.
Compõem esse bloco as questões 6 e 8 do Anexo 2.
No terceiro bloco, pretendi abordar a operação da seletividade de acesso aos serviços e
benefícios sociais, trazendo à tona a discussão de questões presentes no estabelecimento e na
aplicação dos critérios utilizados e as diversas formas de mensuração dos recursos financeiros
de que o indivíduo dispõe para viver, que se tornam importantes referências utilizadas pelo
profissional no processo seletivo. Pretendi também abordar os instrumentos profissionais
utilizados na realização de tal atividade. Também aspirei pautar a discussão das possibilidades
e limites da ação profissional, uma vez que o processo seletivo de acesso a serviços e
benefícios sociais se realiza segundo regras, normas e critérios, ou seja, orientado por balizas
e sob condições estabelecidas pelas organizações sociais que contratam o trabalho do
assistente social e que impõem limites ao trabalho, porém as possibilidades se apresentam
quando o assistente social lida com a contraditoriedade do trabalho profissional, reforçando a
direção social que indica o atendimento dos interesses dos usuários dos serviços e benefícios
sociais. Parti da hipótese de que a política social não implica, necessariamente, ser realizada
exatamente da mesma forma como foi formulada e, portanto, há possibilidade do profissional
interpretá-la, para o atendimento dos interesses daqueles que vivem ou dependem do trabalho
para sobreviver. Há vários jeitos de ser assistente social: diante da realidade e dos recursos, o
assistente social pode assumir diferentes perspectivas de análise e de compromissos.
Compõem esse bloco as questões 1, 9 e 10 (a, b, c) do Anexo 2 e o item 2 do Anexo 4.
159

No quarto bloco, desejei abordar como se deu a formação das entrevistadas para a
realização da seleção socioeconômica como atividade profissional do assistente social,
destacando como e onde haviam aprendido a fazer seleções ou estudos de avaliação
socioeconômica e quais haviam sido suas referências teórico-práticas. Pretendi ainda levantar
e explicitar uma pauta de temas a ser trabalhada na formação e na pesquisa no âmbito do
Serviço Social, visando à qualificação de sua realização na profissão, uma vez que já conhecia
a falta de bibliografia sobre o assunto. Compõem esse bloco as questões 11, 12 e 13 do Anexo
2 e o item 1 do Anexo 4.
As questões foram formuladas de forma direta, mas abertas, com o sentido de
apreender como as atividades desenvolvidas pelos profissionais se traduziam em experiência e
prática efetiva no que diz respeito à realização da seleção socioeconômica.
A seguir, apresento a análise do material obtido com as entrevistas realizadas.

4.4. Análise das entrevistas

Quem são, como e onde os assistentes sociais pesquisados aprenderam fazer a seleção
socioeconômica? Como entendem a utilidade sociopolítica dessa atividade profissional? Qual
é o significado atribuído as ela? Quais são os desafios vividos pelos assistentes sociais no
âmbito de sua formação, da pesquisa e do próprio exercício profissional, em relação à seleção
socioeconômica nos espaços sócio ocupacionais da profissão?
Neste capítulo, as assistentes sociais entrevistadas comentam suas experiências, suas
reflexões, suas dúvidas e certezas, os desafios com os quais se deparam na docência e no
exercício da profissão nas organizações sociais que contratam seu trabalho.
Da mesma forma falam das respostas e das estratégias criadas que sempre são
pautadas em projetos de âmbito societário e do entendimento que têm acerca da realidade
social e das possibilidades de alterá-la. Através de suas palavras, expressam modos de ser e
existir da categoria dos assistentes sociais, em Portugal e no Brasil.
Neste momento, ao estabelecer um diálogo entre as assistentes sociais brasileiras e
portuguesas entrevistadas, pretendi apresentar um exame acerca do objeto de estudo, em meu
papel diferenciado de pesquisadora, no contexto da contribuição à análise crítica. Procuro
assim organizar e articular as análises que todas nós pudemos conjuntamente produzir nas
entrevistas realizadas sob as formas individual e coletiva.
160

Saliento que a busca de uma apreensão da seleção socioeconômica na perspectiva da


totalidade propiciou-me ampliar o leque de problematização das categorias envolvidas em
detrimento de um detalhamento mais aprofundado de cada uma delas, tendo em vista a quase
inexistência de estudos sobre o tema e o tempo disponível para a realização do presente
estudo. Esclareço que tratei o material obtido na pesquisa empírica tomando por base as
referências teóricas explicitadas nos capítulos anteriores e os pontos definidos no roteiro das
entrevistas sob a forma de perguntas, procurando me manter aberta para ouvir, perceber e
decifrar a contribuição de cada uma das protagonistas, a partir de suas versões e, assim
apresentar uma análise pautada no diálogo com elas e entre elas.
Tendo por base que as participantes dessa pesquisa são sujeitos significativos da
profissão em Portugal e no Brasil, considero que dialogar com elas é dialogar com versões
presentes na categoria dos assistentes sociais.
Penso que a escolha de tratar pelo nome as entrevistadas faz parte de um estilo que
valorizo, por me permitir reconhecer a autoria dos ricos conteúdos trazidos por elas nos
encontros que tivemos, sendo que o meu objetivo em momento algum foi ou será o do
enquadramento e da rotulação de suas falas, mas um esforço para entendê-las na e a partir da
lógica que dão sustentação às idéias e respostas colocadas.
Apresentarei a análise mesclando o pensamento expresso nas falas das assistentes
sociais portuguesas e brasileiras sob a forma de diálogo, quando considerei que não havia
significativas diferenças a considerar. Quando, no entanto, ponderei que era preciso
estabelecer distinções entre os trabalhos profissionais que se realizam em cada país -como,
especialmente no item que trata das condições de trabalho, procurei tomar os devidos
cuidados no sentido de demarcar as particularidades de cada um desses trabalhos,
estabelecendo as semelhanças e diferenças.

4.4.1. Postura diante da seleção socioeconômica

As assistentes sociais entrevistadas, ao serem abordadas sobre como se sentiam diante


dessa atividade profissional, foram unânimes em expressar o desconforto e os
constrangimentos vividos, chegando mesmo a declarar rejeição. De fato, nenhuma das
entrevistadas gosta de fazer seleção socioeconômica. Podemos perceber, no entanto, que cada
uma delas trata dos seus incômodos, criando alternativas e explicações diversas.
Luísa afirma que nenhum assistente social gosta de realizar seleção socioeconômica
diante da dificuldade que sente, principalmente para lidar com aqueles que são eliminados no
161

processo seletivo de acesso aos serviços e benefícios sociais; o profissional passaria a


materializar “a cara da exclusão”.

— Eu creio que é sempre muito, muito, muito redutor, é sempre algo


frustrante. Ninguém gosta de fazer a seleção socioeconômica,
sobretudo quando o indivíduo que está a ser alvo dessa situação fica
excluído, e nós somos a cara da exclusão...

Tília, cujo trabalho é supervisionar assistentes sociais, embora nunca tenha atuado na sua
realização, refere-se a essa atividade, especificamente, como “acesso/não acesso” ao recurso
financeiro. Ela exprimiu durante o tempo todo da entrevista forte desejo de tirar o assistente social
do lugar burocrático onde hoje se encontra na realização do RSI. Mas, talvez por não reconhecer
que o assistente social se insere em processos de trabalho na condição de funcionário assalariado
das organizações sociais, que impõem limites à intervenção, acaba por culpabilizar unicamente os
profissionais, por não levarem sua intervenção para além da seleção (penso que ela se refere ao
fato de que o assistente social se mantém na dimensão burocrática do atendimento). Ao não
expressar a contraditoriedade presente nesse movimento, acaba por considerar suficiente haver o
desejo ou vontade de dar novo rumo à prática, sem levar em conta as condições e possibilidades
objetivas presentes na realidade que na atualidade.

— Eu acho que não encontro no meu trabalho, e trabalho com muitos


profissionais, e não encontro nenhum que goste de dar dinheiro e que
sinta que é o seu espaço profissional quando está a dar dinheiro. É
interessante isto, mas não se faz mais nada. Além disso, também, não
cria condições... Mas eu também não quero analisar muito isso,
porque tenho receio de não ser muito objetiva. Corro mesmo esse
risco, porque eventualmente, muitas vezes, zango-me com eles [os
colegas assistentes sociais].

Fátima, assim como as demais, gostaria de atender a todos, mas, como não pode, põe-
se a pensar sobre “quem teria mais direito”, fazendo-a concluir que a realização de seleção
socioeconômica se apresenta como “atividade desagradável, incômoda e frustrante”.

— É assim, eu posso falar por mim. Um processo seletivo é sempre


um processo desagradável, eu não gosto de fazer um processo
seletivo. É evidente que, se eu pudesse, eu gostaria de poder ter
condições para atribuir uma bolsa a todos os alunos que se
candidatam, a todos que têm aproveitamento. Eu, por acaso, acho que
há que ter algum cuidado com o aproveitamento. Mas pronto, porque
há alunos que, não todos... E, também, há que ter atenção com esse
162

aspecto. Mas há estudantes que andam um pouco a passear os livros


ao fim de seis ou sete anos. Andarem aqui a estudar e não fazer o
curso de três anos. Enfim, há que perceber por quê. Também há
situações e situações, e essas, também, são previstas, se podem prever.
Mas pronto, de qualquer forma é evidente que, não me parece que…
O estudo seletivo, a seleção é uma atividade pouco agradável, pouco
simpática, mas tem que ser feita.

Alice se manifesta, dizendo que, para ela, é penosa e árdua a realização da seleção,
mas seus questionamentos se dirigem primeiramente à dificuldade de entender as solicitações
trazidas pelos demandantes de serviços sociais, que, por vezes, adotam uma perspectiva
individualista. Ela considera que, entretanto, é preciso ir além dos fatos objetivos
apresentados, fazendo-os entender que alguns não são atendidos por falta de recursos
disponíveis, de forma que, num outro momento, possa refletir com eles sobre “o porquê de
não haver os recursos necessários para atender a todos”. Assim procedendo, reconhece que
faz um trabalho político, e é assim que considera que deve ser tratada a questão.

— É muito duro, é muito duro. Eu parto do principio de que quem


pede é porque necessita. Em princípio, eu acredito sempre nas
pessoas, embora eu saiba que algumas pessoas têm perspectivas
individualistas e que pensam que só elas é que precisam, portanto, não
têm uma visão social mais ampla. Eu acho que é nosso papel também
reconhecer as pessoas nas suas necessidades subjetivas e confrontá-las
um pouco com as dificuldades que apresentam. Eu acho que é muito
duro. A mim, custa-me muito fazer, custa-me fazer porque eu acredito
que aquela pessoa tem uma necessidade concreta, mas o que é que eu
faço? Eu procuro, um pouco, explicar o condicionamento mais geral, e
o porquê, não fico só na explicação de que não tem recursos, tititi,
tititi. Não há recursos, porque eles não são distribuídos para esse fim,
mas são distribuídos para outro fim. Faço trabalho político, não tenho
vergonha de dizer que faço trabalho político. Trabalho político no
sentido de que... No meu entendimento de que as coisas não são
geridas no sentido de proteger os mais desfavorecidos.

Fátima problematiza a questão, afirmando que não basta ter acesso à universidade: é
preciso dar apoio para que os alunos possam permanecer nesta, e seu trabalho, embora
voltado basicamente para a seleção socioeconômica, deve estar aberto para atender a todos os
alunos que apresentem, a qualquer momento, dificuldades para continuar os estudos.

— É, é verdade, nós temos alunos aqui que vêm de situações de


agregados familiares de tal maneira desestruturados... Nós temos aqui
alguns que, ainda crianças, foram retirados da família, que vêm de
163

instituições e que nós achamos, às vezes, muito estranho. Como é que,


com aqueles percursos de vida, os alunos conseguem chegar ao ensino
superior, conseguem entrar para o ensino superior? E depois, aqui, com
algum apoio da nossa parte, conseguem concluir os seus cursos e
conseguem cortar com aqueles ciclos de pobreza que existem. E temos
alunos que vêm de agregados economicamente muito complicados,
com muitas dificuldades econômicas e que, às vezes, eles precisam
muito de apoio e, às vezes, chegam aqui, por exemplo... Uma das coisas
que... Uma das regras que nós temos aqui no serviço é que todo o aluno
que vêm aqui fazer um requerimento a dizer para anular a candidatura à
bolsa, nós temos que saber o porquê da anulação da bolsa. E uma das
questões que nós pomos sempre é se a anulação da bolsa é motivada por
questões econômicas ou se é porque não está a gostar do curso ou se é
porque quer mudar de curso. Mas, sempre que nos dizem que,
efetivamente, vão anular a matrícula por uma questão econômica, aí nós
não deixamos e dizemos logo: “Tenha calma, vamos conversar, e
vamos ver até que ponto, se calhar, a bolsa que atribuímos não é
correta.” Vamos lá analisar a sua situação e rever a sua situação, para
podermos, então, atribuir um apoio, desde que o aluno queira mesmo
fazer o curso e goste mesmo do curso; essa regra nós temos aqui. Não
há nenhum aluno que venha cá fazer um requerimento a dizer “Eu
quero que me cancelem a bolsa, porque vou deixar de estudar”, que nós
não falemos e não tentemos esclarecer o porquê.

Ela, no entanto, admite que seja possível obter alguma recompensa profissional de
algo que não é tão agradável de realizar, como a seleção socioeconômica.

— É muito agradável, por exemplo, ver algum aluno num curso e que
nos escreva uma carta em que diz: “Terminei o meu curso; muito
obrigado pelo apoio que me prestaram, se não tivesse tido direito, se
não me tivessem atribuído uma bolsa de estudos, eu não poderia ter
feito o meu curso.” É evidente que, embora o processo de seleção seja
sempre um processo desagradável, ele tem que ser feito, e nós temos
consciência disso. E isso é agradável que... Se não houvesse
possibilidade de atribuir estes apoios, muitos dos alunos não poderiam
estudar, ficariam pelo caminho — e não só em termos econômicos,
mas também muitas vezes noutros aspectos. Por exemplo, o apoio
psicológico que nós damos aqui, alguns alunos têm algumas
dificuldades que não são só econômicas. Mas pronto, nesse aspecto
estamos a falar das questões seletivas.

Entre as entrevistadas brasileiras, duas se manifestaram claramente a esse respeito,


reforçando a ideia do desconforto sentido diante da atividade seletiva.
Regina, ao se deparar com essa tarefa e constatar que, onde trabalhava, a atuação do
assistente social se reduzia à seleção socioeconômica, embora denominada de “estudo
164

socioeconômico”, dirigiu seu esforço para demonstrar naquele lugar que o assistente social
era preparado e podia fazer muito mais naquele lugar onde atuava.

— Tinha uma certa rejeição, que, quando eu trabalhei na psiquiatria e,


teoricamente, eu deveria fazer estudo socioeconômico com todos os
usuários, eu pensava que isso não era só o que o assistente social
fazia. Então, eu tive que me colocar num outro patamar e dizer “Olha,
o assistente social trabalha com famílias, é um outro patamar!”, para
não ficar reduzida à ideia de que eles (ou nós) só tinham que fazer um
estudo socioeconômico.

Isaura chega a dizer que trabalhar no Plantão Social, que tem na triagem e na seleção
socioeconômica uma de suas principais marcas, durante muito tempo foi visto e considerado
pelos assistentes sociais como um castigo. 87
A resistência do Serviço Social quanto a assumir o lugar em que foi colocado acabou
por levar Isaura e Regina a proporem e assumirem novas frentes de trabalho. Isaura conta:

— Eu fui trabalhar num hospital onde trabalhei durante 30 anos, onde


se fazia isso mesmo: tinha o “Plantão”, que era castigo, e todo mundo
sabia disso, porque era no “Plantão” que você atendia as requisições
imediatas das pessoas e dava medicamento, dava auxilio transporte.
Depois, isso foi se alargando no hospital, e a gente fazia estudos com
pacientes internados. Tinha o diretor no hospital, que nos ajudou muito,
porque, quando a gente falava para ele “Isso eu não vou fazer, isso eu
não quero fazer”, quando ele nos mandava desocupar o leito. A gente
dizia para ele: “Quer que desocupe o leito, e assistente social não tem
que fazer isso!” Ele dizia: “Muito bem, eu concordo, mas vocês vão
fazer o quê?” E essa pergunta dele — “Vocês não querem desocupar o
leito, não querem trabalhar com isso ou isso?” — nos desafiou a
procurar o que fazer, qual era o nosso papel. Mas, durante todo o
tempo, a gente trabalhou com a ideia de fazer estudo, que era baseado,
naquela época, exclusivamente no percapita... E depois foi melhorando.

87
É fato amplamente conhecido na categoria profissional que, durante dois longos períodos (na ditadura militar e
depois do término da administração da prefeita Luiza Erundina de Souza), na Prefeitura Municipal de São Paulo,
os profissionais considerados “de esquerda” não eram bem vistos pela administração superior e/ou por chefias
imediatas, devido à sua atuação política como lideranças. Assim, eram colocados no “Plantão” como castigo,
uma vez que nenhum profissional competente ou compromissado iria para lá de boa vontade ou por escolha. Lá
também eram colocados os profissionais que se encontravam em readaptação profissional, porque tinham
apresentado problemas de competência em outros setores. O “Plantão” era considerado, portanto, o pior lugar, o
lugar de castigo, e sinônimo de assistencialismo. Depois, graças à atuação de colegas mais politizados nesse
setor, teve início, em vários locais, atendimento coletivo e mais qualificado nesse espaço de atuação de
assistentes sociais.
165

As falas de Regina e Isaura reforçam a ideia da seleção socioeconômica se apresentar


como uma das primeiras e mais tradicionais tarefas realizadas pela profissão em São Paulo, na
época em que atuaram na área da Saúde.
A seleção socioeconômica mostrou-se, na fala de todas, como uma atividade carregada
de alto teor de frustração. O profissional tem que se defrontar com contradições de várias
ordens e com os limites do trabalho, colocados por regras e critérios que impedem o acesso de
todos os candidatos, assim como tem que lidar com pressões de natureza política, conforme se
analisará mais detalhadamente, logo mais à frente.
Há várias maneiras, no entanto, de lidar com a seletividade presente no acesso: uns
fazem disso momento de politização dos candidatos; outros dizem que não há nada a fazer.
Uns ficam pensando sobre as diferenças entre os alunos, e outros pensam sobre as diferenças
entre os profissionais. Há aqueles que, insatisfeitos com o que lhes foi atribuído fazer, tentam
abrir novas frentes ou mesmo qualificar a realização dos processos seletivos de acesso. E há
quem, ao contrário, considera que a profissão tem que deixar de realizar tal atividade.

4.4.2. Natureza e significado da seleção socioeconômica, segundo o entendimento das


entrevistadas

Nesta seção, as entrevistadas refletem acerca da utilidade sociopolítica e do


significado social da seleção socioeconômica, referindo-se a seus outros fundamentos, bem
como à atribuição desse processo ao assistente social.
Convidada a falar sobre a utilidade e significado social da seleção socioeconômica,
Alice declarou:

— A seleção socioeconômica existe porque não há [...] benefícios


universais mínimos, porque se houvesse benefícios universais
mínimos e adequados às necessidades das pessoas, não era necessário,
não era preciso a seleção econômica. É para um ter direito e o outro
não ter direito.

Esse tipo de entendimento afirma como causa direta da necessidade da seleção


socioeconômica a ausência de acesso universal aos benefícios mínimos — modo de ver
compartilhado por Fátima.
166

— [...] existe porque não tem para todo mundo. Exatamente porque, se
não tem para todo mundo, deixa de ser um direito universal e passa a
ser um direito só para alguns.

Para Alice, dessa referência à contradição entre direito de todos e direito de alguns
decorre um significado importante da seleção:

— [...] uma forma de manter as pessoas, portanto, os pobres, de certa


forma na expectativa de receberem alguma coisa e de terem algum
apoio, mas nunca é aquilo que efetivamente precisam para saírem
daquela situação de pobreza, e esta é uma forma de gestão e controle.

Aqui comparece a ideia de que a seleção é um disfarce, porque sempre cria nos
sujeitos a expectativa de apoio e atendimento, sem que o acesso seja, de fato, de antemão,
universal. Assim, a seleção mostra-se como forma de gestão e controle da situação da falta de
acesso para todos, na mesma perspectiva do entendimento que vimos adotando nesse estudo.
Luísa já não tem tanta certeza a esse respeito. Surpreende-se e procura refletir melhor.

— Boa pergunta: eu não sei. Aí manifesto a minha grande ignorância e a


minha ausência de reflexão em profundidade sobre esses aspectos. [...] A
utilidade da seleção socioeconômica, eu creio que, por um lado, poderá
ser a de racionar os recursos; por outro lado, há um outro componente de
interesses, que eu, esse aí, não consigo chegar lá, não domino. [...] Mas
eu não sei se os que estão mais numa situação econômica... Porque a
comunicação tem veiculado que, por exemplo, nomeadamente em
Portugal, cada vez mais se assiste a um fosso entre os ricos e os pobres...
Há ricos muito ricos e os pobres estão mais pobres.

Embora de imediato tivesse dito que não sabia, logo a seguir começa a pensar em voz
alta, para afirmar que a seleção existe para racionalizar o uso dos recursos, ou seja, para
empregar bem os escassos recursos disponíveis. Desconfia, porém, que há algo escondido
referente a interesses de que suspeita, embora reconheça não saber quais são. Aí abandona a
busca de resposta nessa direção, e, imediatamente, sua fala passa a espelhar certeza em
relação à sua utilidade. Luísa até propõe saídas:

— [...] Eu creio que tem que haver uma seleção socioeconômica, não
da maneira que existe hoje, que é demasiado rígida, e que aí provoca
um nível de desigualdade muito grande. Porque cada vez mais os
critérios são muito grandes, são enormes, são de um volume muito
grande e que levam a que haja uma determinada desigualdade...
167

Aqui parece que é a rigidez da seleção que provoca desigualdade, ou seja, cada vez
que se enrijece o processo e se aumentam as exigências, mais excludente se torna o acesso.
Luísa pensa que para dar acesso de fato, seria necessário rever e flexibilizar os critérios.
Apoiamos esta hipótese da entrevistada, acreditando que é certo que, quanto mais
critérios estiverem presentes no processo, mais complexo e, portanto, mais seletivo se torna o
processo de decisão quanto ao acesso. Na atual conjuntura portuguesa, essa parece ser a
finalidade do aumento de critérios: o maior controle no acesso.
Luísa reitera a importância da seleção socioeconômica, agora ao nível da prática
profissional, indagando: se tal seleção não existisse, como se realizaria a escolha de acesso?
Reconhece que, sem ela, o processo ficaria mais vulnerável e, sujeito ao poder das influências e
pressões políticas, provocaria “maior desigualdade” (talvez quisesse dizer “maior injustiça”).

— [...] Eu sou a favor, eu sou favorável à existência de seleção


socioeconômica, mas não da forma que existe hoje, porque creio que,
se não houvesse seleção econômica, existia um maior grau de
subjetividade, e aí podia o poder político, o poder pessoal, as
influências, limitar de alguma forma aquilo que é a minha ação e
determinar uma maior desigualdade.

E, então, conclui que os critérios impõem limites à intervenção profissional, mas


também dão mais condições ao profissional para sustentar o acesso como direito, pautado em
quesitos mais transparentes, uma vez que pode justificar a seleção e os usuários podem
reclamar e recorrer se se sentirem injustiçados. Ou seja, se anteriormente reclamava que é
bom quando o critério é aberto, agora avalia que são os critérios claramente definidos que
protegem o profissional, enquanto funcionário, em caso de pressões políticas e permite ao
usuário exigir equidade de tratamento.
Luisa também afirma a importância do balizamento que a definição de critérios de
seleção dos beneficiários oferece a estes, dando-lhes garantia de poder “reclamar e recorrer”
das decisões feitas pelos profissionais.
Alice, ao pensar sobre o significado das seleções socioeconômicas, trata também do
significado dos serviços sociais e das expectativas dos usuários presentes nos processos
seletivos, sobre os quais os profissionais nem sempre param para refletir.

— Se uma pessoa tem expectativas, isso faz parte do seu plano, de sua
aspiração de realização pessoal. Portanto, uma pessoa que vem pedir
ajuda, e nós, se nós tivermos níveis de avaliação muito baixos... Ela diz
que quer estudar, quer ir para a universidade, ou quer... E nós, quer
168

dizer, por dentro rimos, mas ela quer ir à universidade! Poderemos


pensar, por que o individuo quer estudar, quer ir para a universidade? E
nós por dentro rimos, “Olha, este quer ir para a universidade!”, quando
o outro que não tem a 4ª classe... Já não tem direito a ir? Mas ele não
tem o direito? Ou seja, têm direito de se construir como pessoa, para
mais nada. E as ajudas e os recursos deveriam ser para nós nos
constituirmos como pessoas, nos realizarmos como pessoas. Para que
são os recursos? Para que são os bens materiais? Não são para cada um
de nós se realizar? E cada um não se realiza de forma diferente?

Na realização da seleção socioeconômica, o profissional depara-se com alguns dilemas


com os quais terá que lidar, porque há diferenças de necessidades entre os demandantes dos
serviços, tornando-se imperativa a detenção de referências que lhe permitam uma leitura
crítica sobre a realidade alvo de sua avaliação profissional, se a perspectiva é atender as
demandas reais dos usuários dos serviços e benefícios sociais. Alice comenta:

— Eu sempre tive dificuldade de lidar com essa seleção


socioeconômica, até porque nós, por exemplo, aqui temos muito
poucas formas das pessoas provarem que têm [recursos]. Há pessoas
— vamos lá a ver, como é que eu hei de explicar isso? Nós temos aqui
pessoas que não têm dinheiro e que pedem menos do que pessoas que
têm mais dinheiro. Por exemplo, temos aqui rurais com reformas
[aposentadorias] muito baixas. Mas porque, se calhar, produzem as
suas coisas, eles têm uma organização familiar com que conseguem
viver melhor, com melhor qualidade de vida, do que, por exemplo,
pessoas que vivem na cidade e que não conseguem, com mais dinheiro
do que esses tais rurais, fazer face às múltiplas necessidades da
cidade. E, portanto, nós temos, às vezes, muito mais pedidos de
pessoas aqui à volta de Lisboa, que vivem neste meio urbano, porque
não conseguem, com as suas reformas de 270 euros, fazer face a uma
renda de casa e fazer face a outras coisas.

A mesma entrevistada expressa a necessidade de o assistente social conhecer as


particularidades da população atendida pelas organizações sociais, por entender que a seleção
socioeconômica não é simples enquadramento aos critérios estabelecidos.

—Os que vivem na cidade têm a sua casa própria, têm a sua horta
própria, etc. É verdade que, possivelmente, essas pessoas do campo
também não têm aspirações e bens e expectativas como as pessoas da
cidade têm. As pessoas da cidade têm expectativas de vestir de
determinada forma, de viver de determinada forma, etc. E isto, a mim,
faz-me alguma dificuldade, mas eu acho que os critérios de seleção
devem ter em conta estas múltiplas realidades e não só critérios de
natureza estritamente econômica.
169

Fátima também considera que é muito redutor realizar processos seletivos


considerando somente a situação econômica no seu aspecto financeiro.

— [...] este estudo não pode ser só econômico, tem que ter mais
vertentes, tem que ser avaliado por outras áreas que não só a questão
das rendas, a questão dos rendimentos, não só os per capita. Tem que
se perceber também as questões sociais, as redes sociais, os apoios
sociais. Eu lembro-me, por exemplo, de uma das questões que nós
pomos aos alunos quando fazemos a entrevista, que é se eles se
consideram carenciados. Eu lembro-me que uma vez tinha aqui uma
aluna, mãe de três filhos, divorciada, sem apoio nenhum do ex-
marido, com uma situação econômica gravíssima. E, quando eu lhe
perguntei se ela se considerava uma aluna carenciada, ela respondeu:
“Carenciada, não. Olhe, tenho uma rede de amigos que me apoia em
todos os aspectos, os vizinhos vão buscar os meus filhos aos colégios,
ficam com os meus filhos em casa quando eu estou nas aulas. A
roupa, eles não têm roupa de marca, também não precisam, têm outra,
estão quentinhos na mesma. Os brinquedos, não têm os brinquedos
‘X.p.t.o.’, 88 mas têm brinquedos. E eles não pedem, porque até já
sabem que eu não posso... Eu não me considero uma pessoa
carenciada, sou uma pessoa rica de afetos, de rede social, de apoios.
Portanto, é evidente que eu preciso do apoio para pagar as propinas
[refere-se às mensalidades], para pagar os meus estudos. Mas
carenciada eu não me sinto.” Em contrapartida, tenho outros alunos
que vêm aqui com um carro do último grito, e, quando se pergunta
“Então, você acha que é um aluno carenciado, precisa do apoio da
bolsa para fazer o seu curso?”, respondem “Ah, sim, sim! Preciso
muito.” “Mas precisa por quê?” “Porque não consigo comprar os
livros todos que eu quero, não consigo.” Estás a ver? A própria pessoa
tem formas de estar diferentes e projeta a sua própria necessidade de
maneiras diferentes e depois... Por isso, acho que esta avaliação coloca
algumas pessoas no sitio certo, mas não as coloca todas.

Aqui as entrevistadas demonstram conhecimento das falácias a que a forma de


estabelecimento dos critérios pode levar, no tocante a sua pretensão de justiça.
Elas deixam ver também como as formas de realização da seletividade de acesso estão
na dependência da forma cuidadosa e criteriosa adotada pelo profissional na apreensão e no
tratamento de complexas questões envolvidas nas análises e decisões profissionais,
destacando dentre os muitos possíveis elementos a considerar: as diferenças da vida campo-
cidade, o consumo diferenciado nestes locais, as aspirações nos diversos estratos, o que
consideram riquezas, como, por exemplo, a rede de apoios.

88
Sigla que designa a excelência ou alta qualidade de um produto.
170

Quando tratamos do entendimento que as entrevistadas têm acerca da relação entre


direitos sociais e seleção socioeconômica e se entendem sua realização como forma de
realização da justiça social e promoção da igualdade, surgiram várias polêmicas e
inquietações. Em um misto de constatação, indignação e certo constrangimento, expressaram
um pensamento sobre o que fazer e como poderiam sair dessa situação tão incômoda. Por um
lado, a apreensão da desigualdade social; por outro e ao mesmo tempo, a pergunta sobre o que
fazer. Como lidar com essa contradição diante dos processos seletivos?
O equacionamento da questão de forma crítica envolve o domínio da apreensão do
jeito de ser das políticas sociais na sociedade capitalista, assim como expressa o horizonte
societário desejado. Nas entrevistas, aparecem os diversos entendimentos de como deveria ser
a política social, assim como o trato das expressões da questão social. Nesse procedimento,
foram explicitando o jeito de entender a profissão e a sociedade.
A política social na sociedade capitalista expande-se ou se amplia a partir da
correlação de forças presentes, sempre visando à manutenção da ordem do capital. Nesse
cenário, a seleção socioeconômica comparece como forma de gestão da pobreza e dos poucos
recursos a esta destinados, com muita injustiça.
Esse é o entendimento apresentado por Alice:

— Eu acho que nem sempre há uma base de estudos socioeconômicos


que levam à definição das políticas sociais. Penso que as políticas
sociais são definidas de forma muito circunstancial, de forma
contextual. Talvez contextual seja mais exato, de acordo com a
correlação de forças presentes e de acordo com os interesses políticos
de determinado momento, e nem sempre tem na base estudos
fundamentados de natureza socioeconômica sobre como utilizar os
recursos públicos. [...] É uma gestão e um controle da questão da
pobreza, não é? [...] É da manutenção, portanto, das relações
capitalistas de produção. Nós sabemos que é isso [...].

Ela, assim como nós, também entende que os direitos sociais existentes foram obtidos
por meio das lutas empreendidas pelos trabalhadores, que não são, portanto, simples doações
e que, na atual conjuntura, a dramática a perda dos direitos conquistados vem ocasionando
sérios danos à qualidade de vida, anteriormente alcançada, daqueles que dependem do
trabalho para viver.

— [...] nós também sabemos... Vamos lá ver que o Estado de


Providência, o Estado do Bem-Estar Social, também, conseguiu aquilo
que o trabalhador não tinha; que, ao ter alguns direitos e um
171

rendimento independente do salário, ele ficou mais livre para fazer


greves, para se opor, etc. Por isso é tão grave esse momento de
retrocesso, de perda mesmo de direitos conquistados. Estamos a
perder os direitos todos, não é? Sabemos como isso foi importante,
mas também sabemos que isso aconteceu devido às lutas dos
trabalhadores, dos sindicatos, dos movimentos sociais, etc. Também
para poder manter este modelo de sociedade em que o lucro e a mais-
valia continuam, portanto, a ser intocáveis, não é? Sabemos que a
economia não está a serviço do desenvolvimento das pessoas, mas ao
contrário, e, enquanto as coisas forem assim, quer dizer... Não quer
dizer que não haja progresso, não quer dizer que não lucramos muito,
que não avançamos, e tudo isso. Mas a verdade é que continua a ser a
mesma coisa, continua... [...]

Embasada nessa apreensão, a entrevistada reforça a ideia de que a seleção


socioeconômica não se constitui em instrumento de promoção da justiça.

— Sim, não tem a ver com esta promoção. Isso é apenas um


instrumento [refere-se á seleção socioeconômica] para gerir os fracos
recursos que existem, e, mesmo assim, com muita injustiça. Porque
quem é que sabe, de fato, que aquele que não recebeu benefício, se não
precisaria, se calhar, mais, sob todos os pontos de vista, do que aquele
que os recebeu? Ou seja, o que ele queria e o que ele precisava?

Isaura, entrevistada brasileira, participa dessa discussão, endossando essa perspectiva


de entendimento, ao concluir, de forma sintética e crítica, que a seleção socioeconômica não
se apresenta como forma de promoção da justiça social e da igualdade.

— Mas não é instrumento de igualdade de direitos, que é um campo


minado e escorregadio. É um campinho muito trabalhoso de achar que
a seleção pode ter a ver com a promoção de igualdade. [...] O mercado
de seleção dá acesso a algumas coisas. Ela não promove a igualdade
social. A igualdade social está na renda, no sistema, na produção. [...]
Eu acho que a política, a seleção socioeconômica não promove
igualdade, ela dá acesso a alguma situação. Ela permite você entrar na
faculdade, ela permite você ter uma prótese porque a igualdade está no
sistema, na detenção de... [...] Mas, a seleção socioeconômica nem
diminui... Ela dá acesso a alguma coisa. Ela pode estar orientada se
são direitos sociais ou universais, ela pode estar orientada por isso,
mas não promove a igualdade. Porque a justiça social estaria num
patamar de emprego para todos, tudo para todos. A justiça social é o
caminho oposto da seleção socioeconômica. Se houvesse justiça e
igualdade não precisava seleção.
172

Regina, outra entrevistada brasileira, reafirma o pensamento de que, “se há políticas


universais de direitos sociais, pode ter uma diminuição de desigualdade”, o que é muito
diferente de interferir para a sua extinção.
Nesse sentido, Alice conclui que as políticas sociais e a seleção socioeconômica não
são formas de promover a igualdade social. Ela defende a ideia de que de que é preciso, no
entanto, haver o reconhecimento das diferenças entre as pessoas, ao propor um horizonte de
igualdade social que contemple, ao mesmo tempo, as diferenças de interesses e necessidades
das pessoas. Trata-se da igualdade com equidade social.

— Como hei de dizer? Não acho que se promova a igualdade.


Igualdade realiza-se quando há serviços universais fundamentais a
nível da educação, etc., e a tal discriminação positiva em relação
àqueles que saem da escola, como você diz, têm insucesso escolar,
aqueles que abandonam o ensino; deveria haver programas
complementares e todos terem direito básico de ir para o ensino, de
terem direito à saúde, etc., e depois, os programas complementares são
para que essas pessoas que saíram... O que falta àquelas pessoas,
como podem ser ajudadas? Não tem a ver, porque vamos lá ver.
Temos que ir ao fundo das políticas sociais e o que significam. É uma
gestão, enfim, um bocado hipócrita, da gestão da pobreza.

Nas falas das entrevistadas, pode-se verificar o entendimento de que a seleção


socioeconômica está incorporada a processos sociais mais gerais do que um exame inicial
poderia supor. Fátima reafirma:

— Isso quer dizer que, para responder se a seleção socioeconômica é


um instrumento para realizar a justiça social e promover a igualdade,
isso tem a ver com processos muito mais amplos. É preciso decifrar...
É assim... Pode-se promover alguma justiça social. Alguma, no
sentido de que, por exemplo, em relação a nós, se calhar, muitos
alunos... Se nós não atribuíssemos a bolsa de estudo, não poderiam
estudar, não poderiam tirar os seus cursos, e, portanto, não poderiam
ter outro tipo de renda, enfim de trabalho e de educação, sem a bolsa.
A atribuição, por exemplo, do subsidio de doença para quem está sem
renda, mas está doente, é evidente que a situação seria muito
complicada sem a atribuição do subsídio. Eu acho que possibilita
alguma justiça social, mas não é total, como é evidente, porque alguns
ficarão sempre de fora. Alguns ficam sempre de fora!

Luísa, que na entrevista se colocou mais como funcionária e técnica, como ela mesma
se reconhece, apresenta uma compreensão baseada na experiência de funcionária da
organização e no que ouve dizer no cotidiano e na imprensa de massa. Ela demonstra grande
173

preocupação em realizar um trabalho competente, ao procurar, em todos os momentos da


entrevista, criar respostas profissionais a partir do entendimento que tem. Agora fala sobre a
sua compreensão das relações entre estudos socioeconômicos e direitos a serem reconhecidos
pelo Estado. Sua argumentação se dirige à defesa da ideia de que alguns detêm méritos e
outros não, tornando assim necessária, a comprovação da situação real para legitimação das
decisões quanto ao acesso.

— Eu, por acaso, creio que a questão não está por aí, está antes disso.
E agora vamos nos situar ao nível do Rendimento Social de Inserção e
daquilo que eu conheço. Eu, de alguma forma, também percebo a
perspectiva do Estado, e eu, enquanto assistente social, de alguma
forma, eu partilho das circunstâncias, porque nós temos os indivíduos
que recorrem ao Rendimento Social de Inserção porque estão
verdadeiramente numa situação de privação, e que estão numa
situação de desemprego, e que estão efetivamente numa condição de
pobreza. Mas depois temos também outro número significativo
daqueles que estão para além dessa situação, mas que o sistema não
consegue filtrar e que também usufruem. E por isso eu percebo que, se
um indivíduo está numa situação de desemprego, não tem qualquer
benefício e precisa do Rendimento Social de Inserção, para ele é o
mínimo. [...] Nós temos a consciência de que essa forma de seleção
não leva em conta todos os aspectos da vida do indivíduo, leva uma
parte, e, de alguma forma, isso nalgumas situações é muito frustrante,
sobretudo quando um indivíduo fica excluído da situação.

Ao pensar se as seleções de acesso se constituem ou não em formas de se fazer justiça


social e promover igualdade, Luísa expressa dúvidas, porque percebe a desigualdade social
existente, mas não chega a uma conclusão. Nesse momento, ela vai além de sua apreensão
inicial, quando entende que há processos e interesses escondidos por detrás de fatos cujo
entendimento não domina.

— Eu creio que não, embora, se calhar, vá entrar numa contradição de


que sim, que tem que haver algumas balizas, quando, de fato, os
recursos... Voltamos à questão dos recursos, que, se calhar, não dá
para atender todos, para todos; ou, então, a de que tem que haver
políticas sociais diferentes, em que os que ganham muito têm que
repartir a sua riqueza. A questão pode passar também por esta
situação, mas na qual eu não me sinto à vontade para entrar, porque,
de fato, a minha ignorância — ou ausência de reflexão — nesta
matéria não me permite ir por aí. Mas já tenho equacionado que, se
calhar, se uma parte dos que vivem... não tivessem tanto, tanto, tanto,
tanto, havia uma outra parte que tinha as suas necessidades
asseguradas. Por isso, não havia países desenvolvidos, nem países
174

subdesenvolvidos, nem países superdesenvolvidos; se calhar, então,


tínhamos o mundo todo desenvolvido, não é? Mas isso passa por
interesses, por outras questões a nível macro e que, de alguma forma,
se aplicam a nível micro. [...] Quanto mais eu vou trabalhando e mais
vou caminhando, mais vou tendo consciência disso, que aquilo que se
define em termos de políticas não responde, não visa efetivamente
responder àquilo que são as necessidades. E a minha dúvida, que acho
que tenho uma resposta, mas não a vou dizer, é que se isso é feito por
ignorância ou se é feito de uma forma intencional.

Fátima, que analisa a realidade do ponto de vista da utilidade e a partir dos limites
impostos pela conjuntura de contenção de gastos pelo Estado e da perda de direitos —
situação essa fortemente sentida e presente em todas as entrevistas que realizei em Portugal
—, detecta a presença de processos maiores presentes. Ela se manifesta a respeito das relações
entre estudos socioeconômicos e direitos sociais:

— Estou um pouco nervosa com isto [a situação de ser entrevistada],


mas é assim... Bom, até certo ponto, considerando a situação
econômica em que, de um ponto de vista geral, os países se
encontram, é extremamente difícil que todos, independentemente das
suas situações socioeconômicas, tenham acesso a tudo, que possam
disponibilizar a todos os direitos sociais. Por exemplo, posso falar da
área que eu conheço relativamente melhor, que é a área do ensino
superior, que à partida será um direito universal. O ensino será um
direito universal para todos os indivíduos; agora, que é um fato que
não é possível, que não tem condições para todos poderem aceder,
isso é um fato. Até que ponto os estudos socioeconômicos permitem
que isso aconteça? Havendo em termos econômicos uma situação
complicada, o Estado, neste momento, a gente gostando ou não, não
tem forma de poder assumir o ensino gratuito para todos, o que, no
fundo, faz parte da nossa Constituição. Agora já vai tendencialmente
gratuito, qualquer dia desaparece, desaparece o tendencialmente,
desaparece o gratuito, desaparece tudo. Portanto, era gratuito; depois
já era tendencialmente gratuito — enfim! Mas, de qualquer forma,
face à situação econômica que se vive atualmente, realmente não há
hipóteses economicamente... Condições para todos terem acesso aos
tais direitos que deveriam ser universais e gratuitos para todos.

É importante notar que nenhuma assistente social portuguesa entrevistada analisa


claramente a crise portuguesa no contexto do capitalismo internacional, na era da globalização
neoliberal, ou se refere ao uso de significativas quantias do fundo público de Portugal para o
pagamento da dívida externa. Nem mesmo se menciona a reestruturação produtiva e suas
consequências. Todas elas expressam, no entanto, preocupação, angústia e inquietação diante
da grandeza da crise que atinge profundamente o cotidiano do país, das organizações onde
175

trabalham e de suas próprias vidas. A situação atual é percebida de forma tão grave, ao trazer
mudanças significativas, que torna-se difícil para as entrevistadas ter clareza ou manter
objetividade diante do forte impacto emocional em que vivem.
Fátima expressa e reconhece a crise através das mudanças que vêm ocorrendo nas
normatizações do Ministério da Educação, o qual impõe o manejo dos critérios de forma mais
estrita, e no empobrecimento das famílias que se veem endividadas e angustiadas por não
saberem como sairão da situação em que se encontram. Dessa forma, ao mesmo tempo em
que critica o aumento de restrições ao acesso ao benefício, entende a necessidade dos
processos seletivos. Eis como exprime sua apreensão acerca do objeto-alvo da nossa reflexão
no momento atual:

— O estudo socioeconômico é uma forma de encontrar limites, enfim


de apoiar com as verbas existentes, de poderem ser apoiados aqueles
que têm mais dificuldades para aceder, para conseguirem aceder aos
direitos universais, a esses direitos. Agora, dir-me-ia que os estudos
socioeconômicos são os mais corretos, são os mais adequados? Porque
o limite é 100, e quem é o 101 já não vai... E será que esse que é o 101
tem as condições necessárias e suficientes para poder aceder sem
necessidade do apoio? Pois aí eu já acho que não há. Acho que
realmente os estudos socioeconômicos são necessários, porque acho
que, face às dificuldades em termos econômicos, eu falo de Portugal,
país que eu conheço. Portugal tem neste momento, para prestar
apoios, portanto, verbas para esses efeitos... Haverá, terá que haver
uma forma de se conseguir fazer uma seleção. Agora, o fato é que a
seleção não é correta, não é absoluta... Não pode ser... Nós não
podemos ficar... Pelo fato de o rendimento socioeconômico dizer que
este aluno... Já estou a falar de aluno! [...] O estudo socioeconômico
diz que este aluno não está em condições de receber apoio, e nós
ficamos satisfeitos. Dizemos “Não, senhor, você não tem direito!”, e
pronto, já está arrumado. Não ficamos! É evidente que nós tentamos
paralelamente encontrar formas alternativas de apoiar os alunos
quando verificamos que, apesar do estudo socioeconômico dizer que
ele não tem condições para ter, aceder aos apoios. [...] Já na semana
passada, o primeiro-ministro falava que vai rever também as leis do
trabalho e cobrar produtividade, já reduziu no subsídio de
desemprego, porque já lhe expliquei isto… [...] Mas, é isso porque
duvido muito que atualmente se consiga universalizar os direitos, acho
que a sociedade tem mesmo que mudar para que isso deixe de ser...
Não sei como está no Brasil, mas em Portugal cada vez mais nós
sentimos que é cada vez menos o social e cada vez mais o econômico.
E os próprios jovens e as próprias pessoas cada vez mais se
preocupam menos no que é do aspecto social e se preocupam mais
com os aspectos relacionados à aquisição, o ter. [...] Nós estamos
numa sociedade capitalista que está cada vez mais... Cada vez mais
capitalista, cada vez mais individualista, cada vez mais cada um por si.
176

[...] De qualquer maneira, relativamente a esta primeira questão do


entendimento das relações [refere-se à relação entre seleção
socioeconômica e direitos sociais], considero que é necessário o
estudo socioeconômico, mas que eles se contrapõem no sentido em
que a necessidade de haver estudos socioeconômicos para atribuir um
direito já significa que o direito deixa de ser um direito. Deixa de ser
um direito a partir do momento que todos não têm acesso.

Tília, de todas as entrevistadas portuguesas, é a que expressa claramente e de forma


dramática os rebatimentos da atual crise europeia na prática dos assistentes sociais que
trabalham com o Rendimento Social de Inserção (RSI); ela mesma está em crise e em
sofrimento, ao constatar que está ruindo tudo aquilo que ajudou a construir, em termos de
direitos sociais, a partir de 25 de abril de 1974. Não admite que o assistente social possa
realizar a seleção socioeconômica, o que, no momento, significa participar da política de
cortes de beneficiários atendidos.
A partir do que vive e de como apreende a crise, faz uma análise de caráter avaliativo
acerca das suas consequências no trabalho do assistente social que atua com o RSI. Os
rebatimentos da conjuntura sociopolítica de Portugal no trabalho profissional perpassam todo
o seu discurso de que, se o RSI é direito, não deveria haver seletividade. Embora esteja um
pouco desnorteada sobre o que fazer diante da profunda mudança com que se depara, admite
que a realidade vem lhe impondo novos posicionamentos políticos, tendo em vista as
circunstâncias que se apresentam.

— O meu entendimento é que não devia haver relação entre o direito e


o estudo socioeconômico, quer da família, quer do individuo, porque
aqui, no contexto europeu, e é só sobre este contexto que eu tenho
refletido, nos países latino-americanos não sei, não vivo no Brasil,
portanto, não sei, não faço ideia. Eu própria tenho vindo não é bem a
mudar de opinião, mas ir fazendo algum balizamento de posição, à
medida que também a posição social vai mudando. Portanto, nesta
fase, penso que na questão dos direitos sociais, do direito social, devia
haver um mínimo social independente de qualquer estrutura. Houve
uma fase em que eu não defendia isto, mas nesta fase, neste momento,
penso que num país em desenvolvimento ou desenvolvido, a questão
da sobrevivência devia estar assegurada, porque nasceu, porque é um
cidadão; mesmo que não tenha condições para suprir as necessidades
mínimas de comer, de abrigo; que tenha necessidades de
sobrevivência, penso que o acesso devia ser automático. É aquela
ideia dos mínimos sociais, sem comprovação de nada. O acesso
deveria acontecer sem qualquer intervenção de ninguém. [...] Isso
seria as finanças que fazia, não era preciso intervenção profissional.
Isso é o que eu penso agora relativamente aos mínimos, porque me
177

parece que a intervenção, quando se fala da situação de mínimos... Ou


melhor, se quiser dizer de extremos sociais, a intervenção de um
profissional de Serviço Social ou de outro, na área do social... Quanto
a mim, penso que é até perigosa, perversa e nunca é, exatamente...

Tília expressa entendimento claro de que a seleção socioeconômica realiza também a


exclusão do acesso. Ao verificar a impossibilidade de realizá-la com objetividade, manifesta-se
contrariamente à participação dos assistentes sociais nessa escolha e denuncia o caráter
ideológico presente. Faz objeções à prática dos assistentes sociais que tratam a questão social
como questão moral, preferindo “os bons pobres”, que passam a ser julgados moralmente. Esse
é outro motivo que a leva a questionar a presença de assistentes sociais nos processos seletivos.

— Porque não há para todos e porque é preciso sempre escolher, e


essa objetividade, que teria de ser necessária, não é possível,
exatamente porque, conforme conversava há bocado, do ponto de
vista da política social, tem sempre uma instância ideológica que é
sempre interiorizada e lida, interpretada por um profissional. E,
conforme a sua ideologia, ele aplica de uma forma ou de outra e,
pronto. Isto é conhecido, não é nenhuma ideia nova, e nós todos
sabemos que há assistentes sociais com fome do bom pobre, que é o
que se comporta bem. Não gosto disso, e há outros que acham que as
pessoas têm o direito de gastar onde bem entenderem o seu dinheiro,
porque os custos que têm são independentes de nós. Não precisam de
moralizadores da forma de como as pessoas gastam o dinheiro. Mas
esta polêmica interessa-me e está viva de alguma forma. Neste
momento, em Portugal, a propósito da questão do Rendimento
Mínimo Garantido, ou melhor, do Rendimento Mínimo de Inserção,
que se chamava Rendimento Mínimo e que agora se chama
Rendimento Social de Inserção... Eu, por mim, preferia que fosse um
rendimento mínimo só. E, depois, se houvesse pessoas que, para, além
disso, precisassem de outros apoios, eventualmente, poderiam ser
atendidas por um profissional. [...] Mas eu, mesmo assim, gostaria de
ver o profissional, o assistente social desligado do dinheiro. Vou
explicar por que e qual é o meu entendimento da intervenção do
profissional. Nesta fase, na atualidade, e, sobretudo, nesta fase agora
de recuo do Estado de Previdência, ela tem nos aproximado muito
mais do assistencialismo. O assistencialismo não é por si depreciativo,
realmente para mim, do ponto de vista dos direitos, estava garantido,
porque não é pedido mais nada às pessoas. Por exemplo, há países
onde esse rendimento mínimo é garantido e não é preciso pedir mais
nada às pessoas. Aqui em Portugal, estava garantido esse mínimo,
desde que a pessoa se disponibilizasse para contrapartidas, e eu
sempre achava que a parte do dinheiro devia ser [cuidada por] um
departamento, e era assim que era. E a parte das contrapartidas que o
cidadão tinha que dar é que poderiam ser trabalhadas pelo
profissional. Faço-me entender? [...] Não, eu acredito que os
178

trabalhadores que têm baixos salários precisam, podem precisar de


apoios, se tiverem uma família numerosa ou muitas despesas, mas não
é essa a minha questão. A questão não é essa, mas a de que eles se
façam ouvir. Há os que têm outros meios de se fazerem ouvir, porque
têm sindicatos, têm formas, ainda têm laços com o trabalho, com os
colegas. A minha questão é esta questão que tem a ver, se nós
atribuímos dinheiro ou não. Portanto, para me centrar aqui na questão
da sua tese, e ligarmos àqueles que precisam de apoio, de todo
apoio,,,, porque não têm outros meios e porque não estou de acordo
que sejamos que nós os profissionais para fazer isto. A pergunta aqui é
se nós teremos capacidade para fazer isto. Temos e, se calhar, também
temos legitimidade. Agora, acho que é muito perverso isso. O que me
parece é que é um caminho muito tortuoso.

Eunice, assistente social brasileira, comparece nesse debate, posicionado-se também


contra o assistente social realizar processos seletivos que impliquem apenas a efetuação das
operações matemáticas de somar e dividir. Vê sentido em o profissional participar de
processos seletivos, desde que seja para tratar das necessidades apresentadas pelos usuários
dos programas sociais através de análises mais consideradas, em que tenha poder de decisão.

— Se eu vou ver o número de membros da família, renda per capita,


fazer a divisão e a soma, eu não preciso de um assistente social, a não
ser que, se eu tivesse a possibilidade, enquanto assistente social — e
isso deveria ser uma conquista —, de ampliar, como a Luísa
[entrevistada de Portugal] fala, que ela se sente de fato exercendo a
profissão dela com competência quando ela pode ir além daquela
seleção objetiva, quando ela pode trazer outras necessidades; a pessoa
tem direitos e necessidades, e ela pode trazer outras necessidades que
precisam ser supridas. Eu acho que talvez isso coubesse, mas, para
fazer conta e preencher “X”, não precisa ser assistente social.

Nas falas de Eunice e Tília podemos perceber que há uma preocupação, presente no
Serviço Social português como no brasileiro, em colocar a profissão em um lugar mais
qualificado, sendo que em relação à seleção socioeconômica merece destaque o sério
questionamento apresentado pelas entrevistadas ao tratar a sua operação reduzida à simples
equações matemáticas de soma e divisão e ao preenchimento de “X” em formulários.
Essa ideia é reforçada por Alice, que já trabalha noutra direção, ou mesmo por Fátima,
que propõe cuidados e atenções na direção de contemplar as diversas situações apresentadas
pelos demandantes dos serviços e benefícios sociais.
Eunice, que vem pesquisando e escrevendo sobre o estudo social no Serviço Social
brasileiro que se realiza no âmbito do Judiciário, avalia e se posiciona claramente contra a
179

participação de assistentes sociais na realização de seleção socioeconômica nas políticas


sociais consideradas de acesso universal, por se constituir em direitos sociais:

— Nós, assistentes sociais, nessas políticas de saúde, educação e tudo


mais, acho que jamais deveríamos aceitar trabalhar numa seleção
socioeconômica.

Esse parecer indica o posicionamento político claro de que os assistentes sociais não
devem atuar em processos seletivos nos quais não tenham qualquer poder de decisão.
Significa dizer que os assistentes sociais não deveriam trabalhar em simples triagens quando
solicitados a intervir só para verificação de documentos e lançamento de dados em fichas e
planilhas, tendência forte nos dias atuais, tendo em vista o processo de informatização que
integra os processos de trabalho. E, para Eunice, há ainda outros motivos:

— Se o programa continuar, com a informatização, eu tenho certeza


que não vai mais precisar do assistente social para isso, percebe? [...]
Aí tem a outra crítica que você ouve muito: quem está no poder hoje
transfere... Para que as coisas continuem como estão... Preenchendo
“X”, fazendo conta de divisão... Eu não preciso fazer quatro anos de
graduação, e mesmo se hoje é uma exigência, e há anos atrás foi mais
ainda, com o avanço da tecnologia não vai ser, graças a Deus que não
vai ser, se for só isso. Agora, o que a gente, enquanto assistente social,
propõe e de fato executa enquanto nossa possibilidade de intervenção
consequente, competente, numa política de assistência social, num
Cras e num Creas, é poder deixar de fazer plantão, porque grande
parte dos Cras e Creas está fazendo isso, um atendimento de plantão, e
o principal objetivo do nosso trabalho lá não deveria ser esse. Eu
conheço algumas poucas diferenças, por parte de pessoas que tentaram
ampliar esse trabalho com a população, no sentido de empoderamento
das pessoas, de conhecer seus direitos, de começar a ter uma ação
mais coletiva, e foram cortadas, não a pessoa, mas o projeto foi
finalizado, porque não há um interesse político...

Eunice reforça o depoimento anterior de Luísa a esse respeito: hoje, faz parte da rotina
do assistente social, nas organizações sociais, o preenchimento de fichas, planilhas e
questionários, assim como introduzir informações no computador ou mesmo realizar o seu
preenchimento on-line. Se, a priori, não há problemas em realizar essas tarefas, mostra-se como
questão séria e preocupante assistirmos hoje a forte tendência à burocratização do atendimento,
quando só o produto passa a ser valorizado, em detrimento do processo de atendimento, sempre
tão valorizado desde o início da profissão. Com isso, o profissional perde a dimensão da
180

possibilidade de realização de um trabalho que possa interferir na forma de ver, pensar e agir da
população atendida, tendo em vista seus interesses como classe subalternizada.
Nas entrevistas realizadas com as brasileiras, aparece ainda a discussão sobre a
natureza da seleção socioeconômica do ponto de vista instrumental. Regina, que também vem
pensando e escrevendo sobre o estudo socioeconômico há algum tempo, afirma que é
necessário fazer uma distinção entre o estudo social e a seleção socioeconômica:

— [...] uma coisa é o estudo social e a outra coisa é a seleção


socioeconômica. Talvez o que está acontecendo com essa
massificação é que se está reduzindo o estudo social e a seleção
socioeconômica. Isso é o que se poderia chamar de retrocesso. [...] Ele
está se reduzindo, pode chamar estudo social e fazer seleção
socioeconômica; neste sentido ele se reduz. O estudo social tem uma
função dentro da própria função, que são as decisões profissionais.
Isso é uma perícia que eu estou fazendo e que eu vou dar... Exige a
opinião de outra pessoa, que é a do juiz. A seleção socioeconômica é:
eu vou incluir ou excluir isso ou aquilo. O estudo social tem uma outra
conotação, que seria: qual é a decisão profissional que nós vamos ter
em determinadas situações? Que pode incluir isso e pode incluir uma
seleção socioeconômica, mas ela não se restringe a isso. [...] Eu acho
que é um dos desdobramentos que nem é a perícia social no
Judiciário. Você pode fazer um estudo social que não seja
necessariamente uma seleção socioeconômica e nem uma perícia.
Você vai, no estudo social, definir o que vai fazer, porque o assistente
social não faz mais que estudar a situação e ter uma decisão. Esse
processo é que está encurtando.

Isaura, outra professora brasileira que vem pensando a respeito, participa do debate,
reafirmando a necessidade de distinguir seleção socioeconômica e estudo social, porque são
usados em situações e contextos diferentes. Ela apresenta exemplos esclarecedores:

— Eu entendo que são coisas diferentes, usadas em situações distintas.


Acho que a seleção socioeconômica, o nome diz: é quem eu vou
escolher para ter acesso àquilo que eu estou oferecendo presidido pelo
econômico. O estudo social, ele não tem o caráter de escolha grande
(no sentido de envolver número grande de indivíduos). Ele é de
decisão sobre a vida das pessoas de outro jeito. Por exemplo, se você
pode adotar uma criança ou não, se eu vou tirar uma criança sua por
denuncia de abuso. É mais amplo e que eu vou tomar decisões, muitas
vezes definitivas, na vida das pessoas. [...] E o estudo socioeconômico
[...] é uma decisão que pode ser revista de algum jeito com coisas
menores. Eu não consigo uma cesta básica na paróquia de lá, mas eu
consigo naquela; não consigo este mês, mas consigo no próximo. E
quando o estudo social se coloca, abrange muito mais além dele, as
181

decisões são muito mais definitivas; você não revê... Você revê se
houver denúncia. A guarda da criança, se pode adotar ou não, é muito
mais definitivo.

Eunice e Graziela, que também têm experiência prática a esse respeito, acrescentam
ao debate que, no Judiciário, a seleção socioeconômica quase não se aplica como instrumento
de trabalho, pois não se trata de decisão circunscrita ao âmbito do assistente social. No
Judiciário, o estudo socioeconômico é realizado tendo em vista a emissão do parecer social
para a apresentação do laudo ao juiz, constituindo-se sempre em parte integrante de um
processo judicial, podendo envolver outros profissionais na análise da situação, mas ao final,
caberá ao juiz dar a palavra final. Nesse âmbito de ação, há uma tramitação já traçada para
garantir o direito de acesso ou o acesso ao direito, e são vários os cuidados que devem ser
observados pelo profissional na sua elaboração. 89 Trata-se de decisões quase sempre
definitivas, que comprometem decisivamente o futuro das pessoas envolvidas.

— [...] o que a gente tem chamado de estudo social, que eu também


acho que é diferente da seleção socioeconômica [...] porque eu falo do
estudo social a partir da experiência no âmbito do Judiciário, que tem
outro tipo de controle, um controle social do Estado sobre a
população, mas numa situação diferente do que é uma seleção
socioeconômica. [...] quando propomos discutir o estudo social e
realizar o estudo social, [...] Então qual é a proposta? Conhecer a
realidade social do sujeito, mas de uma maneira ampla. Não é se ele
trabalha ou não, ou quanto ele ganha; isso pode até servir de alguma
maneira para contribuir para eu conhecer sua realidade, mas eu tenho
que ir além disso, conhecer a realidade sociofamiliar desse sujeito, o
processo de socialização, como é o território onde ele vive, o acesso a
serviços e a direitos no seu território, o acesso coletivo a direitos
sociais, a questão do trabalho, como é que se coloca na vida desse
sujeito — com toda essa precarização, essa transformação (Eunice).

— Quando você atende vitimas de violência, a questão socioeconômica,


mesmo trabalhando no Estado, ela é um dos elementos, porque o direito
de acesso a essa política tem que ser garantido. Na Vara da Infância e
da Juventude, não interessa se você tem condições, se você vive na
exclusão ou se você é rico, está lá o direito da criança que tem que ser
protegido, cuidado pelo Estado (Graziela).

Diante das reflexões apresentadas, torna-se necessária, mesmo que de forma


abreviada, a explicitação de um entendimento acerca das decisões profissionais, destacando
aquela que envolve a realização da seleção socioeconômica de acesso aos serviços e
89
Esse assunto é densamente tratado em Fávero (2003, 2009) e Mioto (2001, 2009).
182

benefícios sociais, pois nesse ato está o fundamento básico dessa atividade profissional, ao se
colocar em questão as escolhas e a decisão sobre o acesso/não acesso dos candidatos aos
serviços e benefícios sociais.
As decisões profissionais são atos de poder, que envolvem sérias questões no âmbito
da ética e da política, tais como a liberdade e a autonomia, mesmo que relativas. Todo
processo decisório é indissociável da prática da liberdade: “Para poder opinar, é preciso que o
profissional tenha liberdade para decidir sobre os caminhos que o levarão à formação de tal
opinião” (MIOTO, 2001, p. 149).
Embora as decisões profissionais relativas à seleção socioeconômica sejam pautadas
por critérios estabelecidos, acabando por tornar a autonomia profissional relativa, o exercício
da liberdade e da autonomia profissional deve ser valorizado e estar presente em qualquer
apreciação e avaliação que o assistente social realiza acerca das situações apresentadas pelos
demandantes dos serviços e benefícios sociais, conforme informam os compromissos sociais e
profissionais indicados no Código de Ética dos Assistentes Sociais de 1993. 90
Chauí (2002, p. 309), ao tratar das características do sujeito ético, observa que “a
liberdade não é tanto o poder para escolher entre vários possíveis, mas o poder de
autodeterminar-se, dando a si mesmo as regras de conduta”. A liberdade assim concebida
exige, do ponto de vista da ética, que se faça a distinção entre passividade e atividade diante
das questões que se colocam ao sujeito.

Passivo é aquele que se deixa governar e arrastar por seus impulsos, inclinações e
paixões, pelas circunstâncias, pela boa ou má sorte, pela opinião alheia, pelo medo
dos outros, pela vontade de um outro, não exercendo sua própria consciência,
vontade, liberdade ou responsabilidade. Ao contrário, é ativo [...] aquele que
controla interiormente os seus impulsos, suas inclinações e suas paixões, discute
consigo mesmo e com os outros o sentido dos valores e dos fins estabelecidos,
indaga se devem e como devem ser respeitados ou transgredidos por outros valores e
fins superiores aos existentes, avalia sua capacidade para dar a si mesmo as regras de
conduta, consulta a sua razão e sua vontade antes de agir, tem consideração pelos
outros sem subordinar-se nem submeter-se cegamente a eles, responde pelo que faz,
julga suas próprias intenções e recusa a violência contra si e contra os outros. Numa
palavra, é autônomo e, como tal, verdadeiramente livre (CHAUÍ, 2002, p. 309).

Para escolher, é determinante que haja autonomia do profissional, tendo em vista que a
decisão exige que o profissional emita uma opinião profissional fundada em preceitos teórico-
metodológicos e ético-políticos. O que é autonomia?

90
Outros elementos dessa discussão podem ser encontrados em Barroco e Terra (2012).
183

A palavra autônomo vem do grego autos (“eu mesmo, si mesmo”) e nomos (“lei,
norma, regra”). Aquele que tem o poder para dar a si mesmo a regra, a norma, a lei é
autônomo e goza de autonomia ou liberdade. Autonomia significa
autodeterminação. Quem não tem capacidade racional para a autonomia é
heterônimo, palavra que vem do grego hetero (“outro”) e nemos (“receber do outro a
norma, a regra ou a lei”) (CHAUÍ, 2002, p. 309).

Entendo que as definições de Chauí cabem tanto no caso do assistente social como ser
singular, quanto no seu pertencimento à categoria profissional que o torna um sujeito coletivo
e como cidadão. Quando um assistente social fala, a profissão manifesta-se.
Não estamos tratando aqui da liberdade e da autonomia na perspectiva liberal do
indivíduo jogado à sua própria sorte e decisão, mas como possibilidade de o assistente social
se afirmar enquanto sujeito que tem o que dizer, o que implica lidar com as contradições
existentes, dando-lhes clara direção social, posicionando-se a favor daqueles que dependem
do trabalho para viver.
Com essas considerações, não estamos querendo dizer que o assistente social, nas
organizações que o contratam como funcionário, possa agir orientado unicamente por sua
vontade, pois é preciso considerar sempre o contexto sócio-histórico em que a ação
profissional se realiza —, mas que ele age sempre pautado por determinada posição política
estratégica, na qual funda sua autonomia.
Quero, dessa forma, contrapor-me à postura profissional que pretende se
desresponsabilizar das decisões tomadas ou endossadas pelo assistente social que, alicerçada
na submissão, se afiança na afirmação “eu estava simplesmente cumprindo ordens”. Embora
não exima o profissional das responsabilidades assumidas e das consequências advindas dessa
forma de escolha, é preciso caminhar para além da ação profissional pautada na passividade
da simples obediência.
No Brasil, o projeto ético-político é coletivo e se expressa através do Código de Ética,
da Lei que Regulamenta a Profissão e das Diretrizes Curriculares de Abepss, que se
constituem em instrumentos fundantes da autonomia do profissional diante das organizações
sociais e dos usuários. Os princípios e valores com que nos comprometemos foram de escolha
coletiva e estão claramente consignados nesses instrumentos de luta da profissão. As decisões
profissionais devem se pautar, portanto, por referências nas quais, ao se colocar como
especialista no exame das expressões da questão social, o assistente social encontra os
elementos que afirmam o projeto profissional com o qual se compromete.
A decisão do assistente social como atribuição profissional refere-se à ação de
escolher, de decidir a partir de referências teórico-metodológicas, ético-políticas e técnico-
184

operativas existentes na profissão e que o profissional assimila e aciona, de forma consciente


ou não, para realização de estudo socioeconômico de cunho avaliativo. Nessas condições,
podemos dizer que a seletividade de acesso ao BPC, ao RSI e às bolsas de estudos nas
universidades portuguesas não envolvem escolhas, porque é mais uma triagem, implicando
basicamente a conferência de documentos para a certificação de que o indivíduo se enquadra
no perfil e preenche os requisitos estabelecidos. Essas situações não envolvem decisões
profissionais, propriamente ditas, porque já estão decididas na lei sobre quem deve ter acesso
e quem não deve; são direitos consagrados em lei.
A análise aqui apresentada indica que o Serviço Social adquire importância no
processo seletivo quando pode neste interferir, com algum poder de decisão para ampliar e
contribuir para o acesso da população aos serviços ou benefícios sociais. Refiro-me a
situações em que o assistente social pode atuar para a construção e a apresentação de provas
para dar acesso ao direito a alguns dos demandantes, a partir da reinterpretação das leis, dos
regulamentos e dos critérios, então colocados a favor dos interesses dos usuários.
No início da profissão, o acesso se dava mediante o crivo do means test, quando havia
unicamente a cobrança de provas comprovativas da necessidade, através das visitas
domiciliares. Hoje, mediante algum esforço, é possível ao assistente social ajudar o
demandante de atendimento a construir algumas “provas” que podem lhe dar o acesso aos
benefícios sociais. 91
Quando não há decisão envolvida e também não há estudos implicados, devemos nos
perguntar: o assistente social, nesses casos, deve participar dos processos seletivos? Ou seja: o
assistente social deve participar de seleções nas quais realiza somente a triagem, preenchendo
formulários e conferindo documentos, sem qualquer poder de decisão?
É preciso considerar que o profissional, quando atua nessas situações, fica
subaproveitado. O assistente social é qualificado, tem um saber especializado que lhe permite
ir além da tarefa subalterna de fiscalização e controle do acesso. Quando, porém, a seleção
socioeconômica envolve decisões profissionais, a atribuição fica condizente com a formação
universitária recebida e a profissão fica valorizada.
Embora carregada de grandes contradições, é preciso que, na condição de categoria
profissional, nos debrucemos sobre essa questão, uma vez que é a sociedade de classes que
colocou e continua a colocar a demanda de sua realização à sociedade e, historicamente,
desde o início da profissão, a tarefa da seletividade de acesso vem sendo assumida pelos
assistentes sociais, ainda que não de forma exclusiva. É preciso considerar que, se o assistente
91
Essa possibilidade foi muito bem apresentada e explorada por Silva (2000).
185

social deixar de operá-la, outras profissões poderão vir a assumir sua execução, porque tem
utilidade social e política fundamental, no sentido de legitimar as desigualdades sociais.
É preciso, então, indagar se é possível, reinterpretá-la, visando atender o interesse dos
trabalhadores no acesso aos serviços sociais, nesse momento em que a focalização das
políticas sociais é reforçada. Isto é: qual deve ser o nosso papel diante desse fato? Que lugar é
possível construir na sua formulação e na sua operação concreta?
Oliveira (2007, p. 2), ao indicar as diretrizes orientadoras do estudo social e do estudo
socioeconômico, explicita e indica o que o assistente social deve saber e abordar na leitura das
situações-alvo de sua avaliação e decisão. A autora indica que os estudos devem ser pautados por:

• conhecimento teórico substantivo, em todas as áreas necessárias à compreensão da


questão social e suas expressões históricas, matéria prima do assistente social;
• apropriação teórico-política do significado da ética e dos compromissos desta
decorrentes, expressos no trabalho profissional;
• escolhas político-ideológicas ancoradas no conhecimento e nas explicações sobre
causas e razões da desigualdade social e da pobreza e consequente construção do
relacionamento com a população usuária dos serviços sociais;
• conhecimento/reconhecimento das conjunturas sócio-históricas que alargam, reduzem,
minimizam a atenção das políticas públicas às expressões da questão social, com
rebatimento imediato no trabalho;
• competência técnica instrumental, orientadora das melhores e mais adequadas
abordagens no atendimento cotidiano;
• aprofundamento da capacidade de ver, nas demandas individuais, as dimensões
universais e particulares que contêm.

Diante dos desafios aqui expostos, podemos perceber quanto já sabemos e quanto
ainda há a percorrer para que a categoria dos assistentes sociais possa realizar um trabalho
mais crítico e qualificado, teórica e politicamente situado nos estudos socioeconômicos em
geral e nos de cunho avaliativos, em especial.
Regina, assistente social, reflete sobre nosso papel profissional nesse âmbito:

— A gente não pode perder de vista que está cumprindo um papel do


Estado extremamente perverso [...] dentro do Estado social, de um
Estado capitalista, de como efetivar quem tem acesso e quem não tem.
Essa ação, de alguma maneira, está sempre dentro desse terreno
capitalista da perversidade, da exploração, da distribuição de renda. Só
para a gente não entrar de ingênuo no conceito de justo e injusto.

4.4.3. A definição e uso de critérios na seleção socioeconômica

Neste item, estará em pauta a problematização da definição e do manejo dos critérios


na seleção socioeconômica pelo assistente social.
186

A seletividade de acesso aos programas e benefícios sociais é um instrumento de


cunho político que permite às instituições sociais controlar politicamente a desigualdade
social tornando-a tolerável através do gerenciamento dos demandantes dos serviços sociais e
dos recursos disponibilizados quando não se pretende atender a toda demanda.
Para os assistentes, a seleção socioeconômica ou triagem se constitui em uma
atividade executada segundo saberes e instrumentos, na qual o profissional é, ao mesmo
tempo, agente de uma profissão e funcionário de uma organização social que o contrata e lhe
paga um salário. Portanto, na sua realização, o assistente social tem uma autonomia relativa.
O ato de selecionar para o profissional se pauta na realização de estudos sociais de
caráter avaliativo, envolvendo decisões profissionais sobre as situações colocadas pelos
candidatos. Nessa atividade, o assistente social é chamado a apreciar e ajuizar sobre as
diversas situações socioeconômicas apresentadas pelos candidatos ao acesso, tendo em vista
que a decisão a respeito das escolhas possíveis é feita a partir de critérios definidos.
Critérios aqui são entendidos como quesitos e balizas que se colocam como referências
utilizadas pelo profissional para fundamentar suas decisões. São os indicadores utilizados para
apreciar as situações apresentadas pelos candidatos no processo de seleção socioeconômica ou
triagem. Sejam, decididos pelo próprio profissional, sejam traçados nas políticas sociais por leis
que criam ou regulamentam o acesso aos benefícios sociais, os critérios sempre são expressões
de como se entende e se trata a pobreza em face da questão social em determinado local,
expressando-se através de como se apreende e se lida com o socioeconômico.
O público a quem se dirige o serviço ou benefício social põe demandas específicas,
indicando determinados cuidados no estudo socioeconômico. Para abordar essas diversas e
complexas questões, é necessário que o profissional conheça e se posicione do ponto de vista
ético-político diante de como a sociedade, nos seus diversos segmentos, as pesquisas e os
movimentos sociais vêm tratando da deficiência física ou mental, dos negros e dos indígenas,
das crianças e dos adolescentes, dos idosos, das questões de gênero, dos moradores de
determinada região, da população que vive nas ruas, entre outros.
É a leitura fundada na teoria e no compromisso ético-político que dá origem aos critérios
que se apresentam como as bases fundamentais de referência do assistente social para analisar as
situações apresentadas pelos candidatos na seleção. Na execução propriamente dita, o profissional
também faz suas leituras e interpretações daquilo que consta na lei e nos regulamentos, a partir de
suas referências teóricas, éticas e políticas. As políticas sociais nem sempre são executadas da
forma como foram concebidas, porque quem as executa faz interpretações, dando-lhes novos
sentidos, o que abre possibilidades de novos horizontes de ação.
187

O assistente social afinal realiza a seleção e os estudos nesta implicados orientado por
suas leituras acerca das configurações socioeconômicas apresentadas pelos candidatos, à luz
dos critérios, pautado na sua compreensão sobre tais configurações. Nesse processo, pesam
também como o profissional percebe e usa o seu poder de decisão e como entende e exerce a
sua autonomia profissional, dada e conquistada.
Se a análise é substantiva, a avaliação é valorativa, pois implica atribuir valor ou
merecimento às coisas e situações, alvos de nossa atenção. Destaque-se que tal avaliação
acarreta fundamentalmente atribuir valor a coisas e processos. Ou melhor, é olhar e considerar
os objetos, alvos da avaliação, filtrados por valores.
Nesse sentido, é preciso problematizar, o que significa dizer que toda seleção é fruto de
avaliações e, portanto, permeada por valores claros ou não. São os valores envolvidos que
permitirão elevar e engrandecer determinados aspectos e desconsiderar outros, pois é o valor
que nos permite sair da indiferença, dando cor e vida às situações que se colocam à nossa frente.
O saber assimilado e os compromissos assumidos pelo profissional, ao final, indicarão
a direção do que olhar e o que considerar nas avaliações, diante da situação com a qual se
depara, quando alguns aspectos serão marcados com cores vibrantes, outros com tons suaves e
delicados, aparecendo assim o vermelho da vida, o preto da morte e o roxo da dor, assim
como ficará invisível, sem valor, aquilo que não mereceu atenção, pois há elementos que,
embora presentes no real, não são percebidos e considerados na análise e na avaliação.
Não é possível, na relação do sujeito diante do objeto que se coloca sob o seu olhar,
haver indiferença, ou seja, considerar as situações com as quais se depara o sujeito como sem
cor, sem cheiro, sem gosto, portanto com neutralidade. A indiferença, ou o não valor, sempre
significa não dar importância àquilo com o que se depara o sujeito. E assim tudo continua
como sempre foi, porque somos indiferentes ao que se passa à nossa volta. É preciso treino
para se desenvolver um olhar que repara nos detalhes, buscando enxergar o que esconde por
detrás destes. As construções teóricas se colocam como instrumentos disponíveis que
oferecem sustentação para essa postura profissional.
Comprometida com a atribuição de valores às situações, a avaliação está diretamente
vinculada aos compromissos ético-políticos da profissão, assumidos pelos profissionais como
sujeitos coletivos. Em toda seleção socioeconômica estarão presentes, de forma consciente ou
não, noções daquilo que o profissional entende por justiça, direito e igualdade.
O acesso pode ser concebido como direito de cidadania ou como doação. O indivíduo
pode ser visto como pobre ou como integrante das classes sociais, assim como a profissão
pode ou não ser entendida inserida na divisão social e técnica do trabalho. Essas noções
188

aparecem nas indagações e nas respostas às perguntas do tipo: o que é mais justo? Quem
precisa mais? Quem tem mais direito? Quem deve estar dentro do acesso? Somente quem
disse a verdade tem direito? O que esconde sob a alegada mentira? É justa a reserva de vagas
na universidade para os negros e nos concursos públicos para pessoas deficientes? Por quê?
Quem tem celular, tênis importado, carro, compra papinha da Nestlé para o seu filho tem
menos direito que os demais candidatos? É justo fiscalizar a vida, invadir a privacidade da
vida do indivíduo em um processo seletivo? Qual é o significado do que está escrito nos
regulamentos e nos critérios estabelecidos?
Aparecem também quando se pergunta: que justiça é essa? Para quem? Interessa a
quem? Serve a quê? Que igualdade é essa que deixa tantos de fora do atendimento, jogados à
própria sorte? É possível alterar esse quadro injusto? Como o assistente social deve lidar com
as contradições entre o que vê e enxerga e como considera o que deveria ser?
O profissional, ao realizar a seleção de acesso, defronta-se e tem que lidar com vários
conflitos de natureza moral, que acabam por colocar à prova seu senso de justiça e a
legitimidade das suas próprias escolhas. Quando se instaura o conflito moral, o profissional
fica se perguntando sobre o que fazer e o melhor jeito que teria de resolver o dilema.
A seguir, as entrevistadas são chamadas a falar de suas reflexões, inquietações e
experiências construídas sobre essas referências, destacando-se o papel dos critérios a partir
de suas inserções na categoria dos assistentes sociais.
Fátima, uma das entrevistadas, aborda essa questão de maneira clara, quando explica
que, no processo de seleção, por vezes, se depara situações em que as informações trazidas
pelos candidatos lhe geram dúvidas sobre a sua veracidade, mas, diante do fato de não
enxergar caminhos de resolução, fica impotente. Ela tem tido que se perguntar
constantemente como lidar com a corrupção que atravessa a sociedade e que também aparece
nos processos seletivos.

— Nós temos, em Portugal, um problema de fuga aos impostos, de fuga


às declarações de rendimentos. Sabendo nós que a grande parte das
regras do estudo socioeconômico estão baseadas na renda dos
agregados, e sabendo nós também que parte dos agregados não são
honestos nas suas declarações de renda, porque nós temos um problema
enorme de corrupção e de fuga aos impostos... Eu tenho sempre a noção
de que estou a fazer análise de uma situação... Posso estar a fazer
análise de uma situação econômica que, por exemplo, entre dois alunos
em que um me apresenta uma renda baixíssima e que fica beneficiado
digamos assim face ou outro. Não é uma situação real, eu sei que não é
uma situação real... [refere-se às informações apresentadas pelos
189

candidatos na seleção] Só que eu não tenho forma de poder alterar essa


situação. Isto passa-se fundamentalmente nas situações de pessoas que
trabalham por conta própria, que nós sabemos que não declaram os
impostos na totalidade. Mas, depois como é esse documento que é
considerado, que é a base da avaliação, esses, no fundo, ficam e
penalizam o Estado por duas formas. Por um lado, porque não fazem as
declarações corretas e, portanto, não pagam os impostos que deveriam
pagar comparativamente com os outros, com o resto da população. E
por outro lado, ainda recebe mais apoios do Estado, porque fez, porque
não declarou a renda toda. Portanto, é assim... Eu acho que tem que
haver critérios, mas os critérios não se podem...

A situação é partilhada por Luísa, ao traçar um quadro das dificuldades com que se
depara para elaborar um “verdadeiro” diagnóstico diante das contradições presentes na
obtenção de informações. Em uma realidade contraditória, pergunta-se sobre o que fazer.

— É muito difícil, às vezes é difícil fazer um verdadeiro diagnóstico.


Há aqueles que declaram por sua honra e isso é difícil, às vezes, gerir
com os outros que se sentem excluídos... Há pouco eu não falei disso,
mas há outros que têm o papel e que ficam fora e os outros que
assinam um papel [refere-se à autodeclaração de renda], não têm papel
e que ficam dentro do sistema. E o outro que ficou de fora diz: “mas
aquele trabalha, mas aquele isto e aquilo” e eu digo “pois, mas eu
pedi. O sistema funciona... Eu não vivo lá, eu não sei se ele trabalha.
Eu enquanto técnica eu pedi um número de documentos, mas...” Eles
têm razão, porque quem é verdadeiro, às vezes, quem apresenta a sua
documentação fica fora, mas, isso acontece comigo enquanto
utilizadora de outro tipo de serviços também. Mas, eu queria também
colocar isso em foco, essa questão do diagnóstico e esta complexidade
que, muitas vezes, também, de alguma forma, provoca injustiça,
provocam desigualdade, porque de fato a forma, o método, o processo
de avaliação, às vezes também é propiciador de alguma desigualdade.
Isso depois, também, de alguma forma se relaciona com a ausência de
formação do técnico ou a insuficiência de formação ou do excesso de
trabalho ou a carga de trabalho.

Essas situações, que desafiam nosso senso de justiça, levam à indagação sobre como
devemos nos portar diante delas. Diante de nossa impotência, que fazer?
Alguns profissionais respondem a esses incômodos, saindo do seu papel de assistente
social, assumem o papel de “juiz” e “fiscal” e passam a agir baseados no senso comum e na
sua intuição. Tratam a questão social como questão moral, ao não reconhecer nessas ações
estratégias utilizadas pelos candidatos para conseguir o acesso ao serviço ou benefício social
pleiteado. Pretendem fazer justiça “com as próprias mãos”, através da seleção que premia os
corretos e exclui aqueles que faltam com a verdade.
190

Noções de justiça, de igualdade, de legitimidade estão presentes tanto quando o


profissional julga o mérito da solicitação referente à concessão de uma cadeira de roda ou de
uma cesta básica em um programa assistencial, quanto nas situações que envolvem
solidariedade e cumplicidade às greves e pressões sociais, entendendo o direito social como
conquista de âmbito coletivo na luta pela posse da riqueza socialmente produzida.
A seleção socioeconômica é uma situação objetiva, permeada por análises e avaliações
e pautada em critérios transparentes ou obscuros, carregando possibilidades de várias
interpretações de cunho subjetivo acerca das situações e dos critérios.
Fátima apresenta ricos exemplos, sob a forma de reflexão, a respeito de diferentes
tratamentos dados aos critérios por assistentes sociais de um mesmo serviço. Algumas delas
vão por um caminho que extrapola o âmbito profissional, não respeitando a privacidade do
usuário. Tornam-se autoritárias e donas da verdade, quando passam a tomar decisões
informadas por balizas que fogem do foco da avaliação profissional, acabando ao final por
trair a confiança do usuário e dificultar o seu acesso aos serviços e benefícios sociais,
comprometendo assim a possibilidade de ampliação do seu trabalho.

— Trabalhei durante um ano num serviço também da Segurança


Social, embora eu não fizesse atendimento estava a fazer o
acompanhamento, uma assessoria. Mas, as minhas colegas tinham
sempre muita dificuldade [...] na atribuição dos apoios, dos subsídios
que davam, não era balizada por regras. Era, portanto, nós... No
principio do mês, tínhamos um orçamento mensal, e, de acordo com o
numero de situações que cada colega tinha, era distribuído esse
orçamento por essas colegas todas, e o que nós víamos é que, numa
população que era toda da mesma zona, porque mais ou menos com o
mesmo tipo de problemas, havia colegas que chegavam a meio de mês
e já não tinham verbas e havia colegas que chegavam ao final do mês
com sobra de verbas. Quer dizer, portanto, que havia ali uma
desproporção muito grande na análise que se fazia porque embora
parecendo que não, cada um de nós é um ser humano e cada um de
nós tem os seus próprios valores, os seus próprios... Eu lembro-me,
por exemplo, que fiquei muito chocada quando fui para um serviço
onde se fazia análise socioeconômica e estávamos a começar,
iniciamos o serviço e tivemos que fazer critérios. Havia uma
legislação, mas nós também tivemos que fazer alguns critérios, porque
normalmente a legislação que havia antes de esta era uma legislação
geral, que nos dava uma regra, digamos assim. Mas, depois, aquela
regra podia ser balizada por nós, podia sermos nós a defini-las, e nós
tentamos fazer isso e falamos com alguns serviços, e eu ficava muito
chocada, por exemplo, quando num serviço em que estava à frente
uma assistente social e tinha umas capitações baixíssimas,
baixíssimas, e quem tinha uma capitação de um valor baixíssimo já
191

não tinha direito a nada. Nós ficamos chocadas, porque achávamos tão
baixo e como é que elas já não davam apoio a essas capitações tão
baixas? Depois havia outros... Pronto, precisamente é preciso pensar
esta questão porque nós todos temos valores diferentes; temos formas
de estar diferentes. [...] Capitação é a renda por pessoa, por elemento
do agregado familiar, per capita, capitação, per capita, exatamente.
Aquele serviço, por exemplo, achava que quanto mais filhos o
agregado tivesse mais baixava a capitação. E nós dizíamos, mas como
é que tu estás a baixar tanto a capitação? “Porque as roupas dos mais
velhos passam para os mais novos, os sapatos passam para os mais
novos” e porque não sei quê. E nós dizíamos, “como é que vocês
fazem as contas assim?” Como é que eles podiam fazer as coisas
assim? Eles diziam que podiam. O fato de cada um de nós ou cada no
seu serviço ter as suas próprias regras...

Podemos perceber que os critérios nem sempre estão claramente definidos pelas
organizações. Ou, mesmo em situações em que o estejam, o profissional pode escolher,
portando-se de forma “mais realista que o rei”, quando utiliza seu poder de decisão, o livre-
arbítrio, para tratar cada caso na sua especificidade. Resolvendo fazer justiça a seu modo,
colocando-se frontalmente contra os interesses dos usuários, coloca-se na defesa da
moralidade, reiterando, assim, valores profundamente conservadores. Às vezes, ajudar no
acesso ao serviço social é o profissional não complicar e atrapalhar com detalhes que fogem
do foco em pauta.
Fica evidenciado através desses exemplos e de outros tantos, exibidos no decorrer
deste capítulo, da importância de refletir sobre o poder profissional presente nas ações
profissionais cotidianas que se apresentam sob a forma de diversas posturas.
Há necessidade de repensar o poder profissional à luz de referências mais claras. É
indicado que no Serviço Social haja estudos e pesquisas que coloquem às claras a questão das
decisões profissionais e dos valores envolvidos nos estudos sociais e nas seleções
socioeconômicas, conforme já indicado. No momento, perguntamos: devemos defender o
horizonte de que os critérios devem ser de decisão de cada profissional? Quais são as
implicações desse posicionamento a favor ou contra ele?
Graziela faz uma avaliação do período que iniciou o trabalho na Prefeitura de São
Paulo, época em que a política era mais definida, mais transparente e de mais fácil operação.
Quando, porém, não há nem critérios e nem processo seletivo estabelecido, é preciso criá-los,
para que o trabalho profissional tenha visibilidade.

— A política parece que era mais definida, então, quando você ia fazer
estudo social para conceder autorização para uma viúva ficar com um
192

ponto de banca de jornal, [...] isso era claro; era para deficiente físico,
deficiente visual, para viúvas, para pessoas pauperizadas. Parece que as
definições eram mais claras. [...] E eu e a Isaura (outra entrevistada)
tivemos uma experiência da seleção socioeconômica de bolsa de
estudos aqui na PUC-SP para os alunos, no tempo em que a Fundação em
1986 não tinha nenhum critério estabelecido; a gente ficou horrorizada
porque não tinha uma ficha mínima de reconhecimento desse aluno...
Tinha todas as arbitrariedades.

O fato de não haver critérios claramente definidos, dá chances para diversas


arbitrariedades, fazendo com que o profissional fique desprotegido e vulnerável para lidar
com as inúmeras pressões sempre presentes nos processos seletivos para ele “dar um jeitinho”
para o atendimento de determinado candidato.
Regina, que também trabalhou com a concessão de bolsa de estudos em universidade
paulista, tem um entendimento de que o seu trabalho na seleção era

— [...] mais para excluir os ricos, porque só tinha acesso quem tinha
determinadas condições; era mais para exclusão e não para inclusão.

Esse é outro jeito de olhar para um processo seletivo na especificidade das bolsas de
estudo, talvez mais simples. Ou seja, a questão é como excluir os ricos, diante do fato de não
haver recursos para atender a todos, quando se pretende atender os mais pobres.
Fátima defende a importância da definição de critérios para que o profissional possa
tratar das questões trazidas pelos candidatos sob as mesmas referências, em detrimento de ter
que decidir no caso a caso. Sua análise sobre as consequências do tratamento caso a caso na
seleção socioeconômica é a seguinte:

— Havia uma legislação [anterior à atual] que também tinha as suas


regras e uma das regras dizia o seguinte: são considerados os
rendimentos anuais do agregado familiar. Ponto final. O que é que
acontecia? Havia serviços que consideravam os rendimentos anuais do
agregado familiar, o vencimento mensal do agregado vezes os 12
meses do ano, pronto. E considerava esse valor. Havia outros de nós
que considerava que o rendimento anual do agregado familiar é o que
é declarado na declaração de impostos, ou seja, são os 12 meses de
vencimento mais os subsídios de férias e os subsídios de Natal, ou
seja, são 14 meses e não são 12 meses. O que é que isto fazia? Isto
fazia com que a mesma legislação... Nós tínhamos alunos, irmãos
porque estavam em sítios diferentes. Uns tinham bolsa e outros não
tinham porque o entendimento era diferente. Portanto, a regra era a
mesma e os rendimentos anuais do agregado familiar. Mas depois, a
interpretação que era feita por cada serviço, fazia com que o tal estudo
193

socioeconômico, a tal atribuição do apoio, já fosse diferente. Eu tinha


aqui irmãos, que noutros serviços tinham bolsa e aqui não tinham e
vive versa; que tinham aqui e noutros serviços não tinha. Porque
apesar de a regra ser a mesma, depois cada serviço tinha a sua própria
forma de interpretar a regra. Essa interpretação levava a que não
houvesse uniformidade e que não houvesse... Pronto, situações
idênticas que não fossem tratadas da mesma forma. Por isso eu digo
que, apesar de tudo e apesar dos erros todos e apesar desta legislação
que nós temos hoje não ser melhor... E para mim choca-me em muitos
aspectos... Mas acho que é preferível haver uma uniformização na
forma de atribuir o apoio do que ser cada um de nós a decidir o que
como é que faz.

Isaura apresenta um exemplo no qual o critério de acesso pautava-se no quesito “ser


negro”, que foi avaliado pelo selecionador como fenótipo, 92 gerando um sério problema.
Aparentemente, uma foto pode se apresentar como critério objetivo, mas, de fato, pode
remeter a uma visão estereotipada da questão. A raça negra é conceito de caráter
sociopolítico, uma vez que, no gênero humano, não há várias raças de homens. Nossa
entrevistada, partindo de referências conceituais diversas daquelas utilizadas pelo
selecionador do exemplo em foco, discute e critica a forma e o fundamento presente no
critério utilizado que aparece na notícia de jornal.

— É muito complicada essa discussão. Eu estava lendo no jornal hoje


a história dos gêmeos idênticos em que um ganhou cota e o outro não.
Pela fotografia o avaliador achou que um era branco e outro negro.
Não pôs junto, ele viu a foto de um e depois de um tempo a do outro.
Uma avaliação de cota racial feita por foto é o fim, não é nem
autodeclaração, é a foto bem tirada ou mal tirada.

Eunice, que participa e orienta inúmeras pesquisas, expõe algumas dificuldades


encontradas para lidar com esse quesito cor da pele. Em pesquisa que está realizando a partir
do estudo de processos judiciais, aparecem dilemas a esse respeito, que ela assim explicitou:

— Essa pesquisa que estamos fazendo tem um item sobre cor da pele,
como aparece nos processos, mas dificilmente alguém faz esse
registro; às vezes tem a foto e aí o que fazer? Deixar em branco, pois
eu não posso dizer a cor a partir da foto. Se tem a declaração,
anotamos; se não tem? Nós não vamos contar como “não consta”,
embora pelas fotos seja possível observar que a grande maioria é de
pessoas de origem, de pele da cor preta?

92
A título de referência para discussão, é indicada a leitura do rico estudo realizado por Bento (2008), em que se
apontam e analisam alternativas de classificação racial, problematizando-as nas suas possibilidades e limites.
194

Fátima, em face dessas possíveis situações, defende a importância de critérios claros e


transparentes para que profissional e usuários possam estabelecer relações mais democráticas
e que o aluno possa conhecer e lidar com o benefício como direito. Avalia que sair dos
critérios criados no caso a caso faz o assistente perder o “poder” de entrar no mérito da
solicitação do candidato, mas propicia uma intervenção mais transparente, pautada na noção
de direito do sujeito.

— Claro, é mais transparente. Neste momento, qualquer pessoa que me


pergunte “você acedeu esta bolsa a este aluno, por quê?”, é claro, eu
digo “olhe, dei por isto, dei por isto e dei por isto!” E por outro lado, eu
perdi o poder. Nesse aspecto, os poderezinhos de eu poder decidir, que
é que não sei quê, eu não tenho e também não quero ter, e acho que
nenhum de nós deve ter. Nós temos que ter é critérios claros,
transparentes, para que aqueles a quem eles se dirijam saibam, tenham
conhecimento deles e saibam quando vão pedir, seja lá que tipo de
apoios; eles saibam exatamente... [...] Eles vêm falar comigo, por
exemplo, vem pedir uma bolsa de estudos, mas eles sabem quais são os
critérios e não é quando eu estou analisar o processo que eu decido. Se
esse aluno, porque foi mais simpático comigo, ou menos simpático
comigo, lhe dou um valor, este valor ou outro valor de bolsa. Eu acho
que os critérios têm que ser muito claros, muito transparentes e
idênticos para toda a gente. Semelhantes para toda a gente saber aquilo
que pode ter. Aliás, se eu não souber aquilo a que posso ter direito,
também não posso exigir aquilo a que tenho direito, e, portanto, é difícil
eu exigir seja o que for, de quem for, se à partida eu não souber que eu
tenho direito a isto. Se a pessoa me disser não senhor, me disserem que
eu não tenho. Pronto, eu não tenho! Mas se estiver claro quais sãos
critérios, se for tudo transparente, se todas as pessoas souberam mesmo
que me digam que eu não tenho direito. Mas se estiver claro quais sãos
critérios, se for tudo transparente, se todas as pessoas souberam mesmo
que me digam que eu não tenho direito.

O horizonte proposto pela entrevistada só poderá ser perseguido com êxito se for
referenciado em pesquisas e em conhecimento de caráter crítico, e incorporado pelos
profissionais. De outro lado, não adianta ter conhecimento crítico disponível, se este não é
publicizado. Essa constatação indica a necessidade de que o profissional tenha uma formação
permanente. É preciso considerar que, se o profissional desejar reverter esta situação,
simplesmente estabelecendo critérios com os demandantes dos serviços sociais sobre quem
deverá ter mais direito ao atendimento pode se constituir em prática de uma falsa democracia,
pois este processo geralmente tem servido para amortecer as demandas dos sujeitos, ao não se
195

colocar em questão que é a escassez de recursos que gera a necessidade das escolhas. Essa
experiência é trazida de forma crítica por Isaura.

— Eu me lembro de uma coisa que acho muito importante na


evolução histórica do Serviço Social que foi o tempo que, na
Prefeitura [de São Paulo] tinha aquele auxílio que vinha para reforma
de casa, atendimento de emergência, atendimento da população com
problemas de subsistência. Houve um tempo em que a população é
quem decidia para quem ia o auxílio. Então, foi um momento em que
os assistentes sociais se confundiam com a população; saiam na frente
nas passeatas e aí faziam uma reunião de grupo. E eu me lembro,
porque sempre discuto isso com os meus alunos... Votavam, tinha a
coisa emocional e no fim se dizia para quem deveria ir o auxílio. No
auxílio direto de dinheiro era de pessoas no grupo. Aí o assistente
social... Saía a seleção, aí tinha uma decisão coletiva da população.
Depois, foi se discutindo se isso era uma saída da sua
responsabilidade, da sua decisão. Quais seriam os critérios que a
população considerava... Construir os critérios juntos torná-los
públicos e transparentes, mas que o enquadramento seria feito a partir
daí e não a população escolhendo, porque eu acho sempre importante
a gente saber que quando se diz que a população mente; ela mente
para ela se enquadrar nos critérios que a gente inventa e ela sabe que
se ela não for muito pobre ela não vai se enquadrar; se ela tiver dois
filhos é muito pouco, enfim... E a população aprende. Quando você
faz esse sistema de roda ela já vai aprendendo a falar um pouco pior
do que a situação da outra.

Luísa defende que o processo de seleção de acesso contemple exceções e que o


profissional deve ficar atento e trabalhar para auxiliar o candidato no acesso e não dificultá-lo,
enquadrando-o simplesmente às regras estabelecidas. Também critica o processo de
elaboração dos critérios e das normas, por não ser fruto do diálogo com quem está próximo
dos usuários.

— O outro é que, de fato, os critérios não [...] [devem ser] critérios


para se cumprir cegamente, porque [...] às vezes não está dentro, por
uma margem muito pequenina eu tenho a liberdade e o dever... E o
faço algumas vezes, como outros colegas o fazem. Fazer uma proposta
para que, não estando rigorosamente dentro daquele critério, por esse
ou por aquele motivo, aquela pessoa devia, ainda assim, beneficiar-se
de determinado benefício. Isso habitualmente é possível, e eu acho
que, por via desta flexibilidade, [...] a realização em termos
profissionais é muito maior, porque pode imaginar o grau de
frustração que há, quando nós estamos numa realização de ajuda, de
apoio, [...] que nós podemos resolver, minimizar e que, às vezes,
porque o critério ultrapassou, não é possível, e aquela pessoa não vai
196

conseguir de outra maneira? Isso é altamente frustrante, mas, como


disse, em termos dos critérios da Misericórdia há regras, mas também
há muitas exceções. Aí eu acho que o meu campo de liberdade é muito
grande e, sobretudo, há outro aspecto: obviamente, os regulamentos e
os critérios, quer a nível organizacional, eu acho que isso não é
cientifico, é muito empírico, mas quer a nível organizacional, quer a
nível geral, quando são definidos, eu acho que são definidos não por
conhecimento real daquilo que são os problemas, [...] E muitas vezes
quem define habitualmente, [...] e eu não sei se é por ignorância ou se
porque quer definir assim, não procura verdadeiramente, junto
daqueles que têm o conhecimento real da realidade, quais são os
verdadeiros problemas e quais seriam as respostas que realmente
poderiam resolver ou minimizar as situações.

Regina, em relação à definição dos critérios, manifestou-se desta maneira:

— Eu acho que nunca deveria ser reduzido ao assistente social porque


também a gente tem julgamentos e julgamentos. Tem que ter critérios
institucionais, mas que não sejam critérios engessados que, desde que
justificados, eles possam ser alterados. A política social tem que ter
critérios de incluir as diferenças de região ou de tipo de população.

Diante do que pude expor, com o apoio das entrevistadas, cabe perguntar: como
aplicar conhecimentos para definir e operar os critérios, sem retirá-los da apreensão de
totalidade e a partir daí determinar valor às características apresentadas pelos indivíduos?
Como comparar a situação socioeconômica dos candidatos entre si? Apesar de regras, normas
e critérios, a seleção deve contemplar exceções? Em que circunstâncias estas se justificam?
Em relação aos “jeitinhos”, Isaura observa que podem levar à corrupção:

— Eu acho que o jeitinho não resolve. Tem que trabalhar na discussão


com os critérios que estão estabelecidos. [...] Tem assistente social
ganhando dinheiro para dar o jeitinho, tem denuncia no Judiciário da
Associação de Pais Separados, que é uma associação feita por homens
pais, para a discussão da perícia e do parecer social para transformar
tudo em perícia para poder ter o direito de fazer a contra prova e há
inúmeras denúncias de corrupção de assistente sociais que decidem.
Está lá no site, tem um monte... Que decidem a favor do homem ou da
mulher de acordo com o que ganhou e a gente já passou da idade de
achar que assistente social é incorruptível. Essa coisa do critério que
está lá estabelecido, eu sou contra o jeitinho, mas é o trabalho de
mostrar a quem faz os critérios que não estão funcionando. É aquilo
que a gente discute com os alunos que reclamam, contam para nós que
os meninos não querem entrar no Pro Jovem porque os adolescentes
falam “tia eu ganho muito mais vendendo droga do que no Programa”.
197

Essas questões merecem, portanto, discussões da categoria dos assistentes sociais, pois
as exceções, dentre os quais a dos “jeitinhos”, podem incluir vários entendimentos, incluindo
desde aquele exposto por Isaura e outros advindos das pressões políticas. Aqui me refiro a
questões que devem ser respondidas tanto pelos profissionais que atuam na execução terminal
das políticas sociais, quanto por aqueles que elaboram e fazem a sua gestão, e que também
são assistentes sociais.
Isaura, a esse respeito, indica a necessidade de juntar quem estabelece o critério e
quem os executa:

— Eu fico pensando que os critérios, a gente sabe disso, mas a gente


esquece no cotidiano, que os critérios da Política do Suas são feitos
pelos assistentes sociais, porque a gente trata como critérios do
governo, mas são critérios feitos pela categoria profissional e a base
não discute. Quem está na operação... Eu acho que a gente precisa ter
uma organização que nos permitisse discutir os critérios com que os
fazem para melhorar isso, porque os critérios estão inclusive... E isso é
sabido e dito pelos alunos, que já estão ensejando muita corrupção.

Graziela reforça essa ideia e propõe outras estratégias para lidar com a situação de um
jeito mais coletivo.

— Acho que tem que ter o cuidado metodológico, e acho que os


critérios políticos e institucionais têm que ter uma comissão para tratar
de tudo que fica diferente; pelo menos até a gente chegar a um outro
patamar de refinamento. Enquanto a gente está nesse imbróglio, a gente
tem que tentar construir algumas alternativas. Então, talvez, a gente
poderia contribuir mais, organizando mais o nosso conhecimento a
respeito disso que é para estar ofertando essas possibilidades.

Luísa apresenta alternativas que vem criando para lidar com os critérios:

— E, como há bocadinho eu falava, nós temos os critérios, temos


acesso aos benefícios de saúde e quem faz o estudo socioeconômico é
o assistente social; muitas vezes, há um regulamento, mas às vezes, as
pessoas ficam fora do regulamento, por 3, 4, 5 euros, e eu tenho
conseguido fazer com que a situação seja reversível. Dá mais trabalho,
aí é a outra parte, porque nós já temos muito trabalho e vamos buscar
ainda mais trabalho, mas o meu entendimento enquanto assistente
social é ser facilitadora da vida do outro. Então, eu faço a informação
[relatório], fundamentando. É uma forma de eu combater a minha
frustração e de percorrer um caminho que está ao meu alcance, depois
o resto, eu trabalho dentro de uma organização a esse nível, ao nível
198

dos critérios econômicos. [...] Há critérios, mas às vezes, são critérios


cegos, que apenas contemplam os rendimentos e as despesas de
coabitação. Contudo, às vezes, as pessoas têm despesas com a saúde
astronômicas, enormes, têm despesas com a eletricidade, com a água e
isso o regulamento não contempla. E então, quando eu considero, e aí
entra o caráter subjetivo, e que pode fazer a diferença em várias
intervenções, é quando eu considero que aquela família necessita
mesmo daquele apoio, e se não tiver aquele apoio, ela vai ficar numa
má situação... Então, eu faço o meu procedimento e eu arranjo, uso as
minhas armas que são aquilo que é a minha capacidade de elaborar um
diagnóstico profundo, de expor no papel, de mostrar ao meu superior
de que se não autorizar isto, aquele individuo ou família vai ficar mal
e a pessoa pode ir para a comunicação social e aí nos vamos dar...
Estes são os instrumentos que eu vou utilizando, porque eu acho que
enquanto assistente social eu tenho o dever e o direito de também
contribuir para que estas políticas e os critérios se possam ir alterando.

Além das sérias questões já apresentadas, é importante destacar e incorporar ao debate


que a seleção socioeconômica pressupõe a resolução de questões relativas à “definição de
critérios a utilizar, à definição do limiar de rendimento mais adequado a considerar, à escolha
da unidade de análise e a escolha das fontes estatísticas de maior confiança a ser utilizada”
(ALMEIDA, 1992, p. 13).
Em relação ao estabelecimento dos indicadores a utilizar ou de quesitos que serão
utilizados na seleção de acesso aos serviços sociais, várias são as possibilidades que se
colocam aos planejadores e aos executores da política social, uma vez que a definição de
critérios funda-se no entendimento que se tem da relação entre questão social e pobreza, 93 as
quais abarcam várias interpretações, assim como expressam a apreensão que se tem das
desigualdades de raça e etnia, de gênero, entre outras.
Partilho com Yazbek (2012, p. 289) o entendimento da pobreza como

[...] uma das manifestações da questão social, [...] como expressão direta das
relações vigentes na sociedade, localizando a questão no âmbito das relações
constitutivas de um padrão de desenvolvimento capitalista, extremamente desigual,
em que convivem acumulação e miséria. Os “pobres” são produtos dessas relações,
que produzem e reproduzem a desigualdade nos planos social, político, econômico e
cultural, definindo para eles um lugar na sociedade. [...] Este lugar tem contornos
ligados à própria trama social que gera a desigualdade e que se expressa não apenas
em circunstâncias econômicas, sociais e políticas, mas também nos valores culturais
das classes subalternas e de seus interlocutores na vida social.

A pobreza é assim concebida como demonstração direta das relações sociais, não se
reduzindo às privações materiais. Constitui-se em forma de inserção na vida social. “É uma

93
Ver importantes referências a esse respeito nos sérios estudos de Montaño (2012) e Yazbek (2012).
199

categoria multidimensional, e, portanto, não se caracteriza apenas pelo não acesso a bens, mas
é categoria política que se traduz pela carência de direitos, de oportunidades, de informações,
de possibilidades e de esperanças” (MARTINS, 1991, p. 15, apud YAZBEK, 2012, p. 290).
Trata-se de categoria histórica, construída socialmente. Portanto, não se trata de
fenômeno natural, embora dessa forma já o quisessem considerar, por exemplo, Spencer e
Malthus no século XIX.
A noção de pobreza é ampla e compreende várias interpretações (MONTAÑO, 2012;
YAZBEK, 2012), que, nos processos seletivos, aparecerão nas análises dos profissionais quando
operam tais processos, assim como nos critérios de acesso apresentados nos documentos que
oficializam os programas e benefícios sociais — que, por sua vez, também contam com a
colaboração de assistentes sociais na sua elaboração.
Yazbek (2012, p. 290-291) problematiza o que se esconde por detrás dos indicadores
utilizados nos estudos sociais e, nesse sentido, aponta as dificuldades envolvidas na definição
de critérios, sempre pautada em concepção acerca da pobreza na sociedade capitalista:

A noção de pobreza é [...] ampla e supõe gradações e embora seja ‘uma concepção
relativa, dada a pluralidade de situações que comporta. Usualmente vem sendo
mediada por meio de indicadores de renda e emprego, ao lado do usufruto de recursos
sociais que interferem na determinação do padrão de vida, tais como saúde, educação,
transporte, moradia, aposentadoria e pensões, entre outros. Os critérios, ainda que não
homogêneos e marcados pela dimensão de renda, acabam por convergir na definição
de que são os pobres aqueles que, de modo temporário ou permanente, não têm acesso
a um mínimo de bens e recursos, sendo, portanto, excluídos, em graus diferenciados,
da riqueza social. Entre eles estão: os privados de meios de prover à sua própria
subsistência e que não têm possibilidades de sobreviver sem ajuda; os trabalhadores
assalariados ou por conta própria, que estão incluídos nas faixas mais baixas de renda;
os desempregados e subempregados que fazem parte de uma vastíssima reserva de
mão de obra que, possivelmente não será absorvida.

Embora haja muitos caminhos para se considerar a pobreza nas seleções


socioeconômicas, a maneira mais tradicional tem sido considerar a renda como critério único;
embora restritiva, é reconhecida por ter o mérito de ser a de mais fácil manejo.
Mesmo quando se trabalha apenas com a renda, há aí várias definições necessárias
para que se possa operá-la em processos seletivos. Uma delas se refere à definição do limiar
de renda mais pertinente a utilizar, que implica estabelecer as linhas da pobreza e da
indigência, e há controvérsia a esse respeito. Cada política ou programa social acaba por
defini-la de um jeito. No Brasil, o acesso ao benefício de prestação continuada ( BPC), por
exemplo, atua com a referência de acesso de até um quarto do salário mínimo per capita,
200

enquanto que o Programa Renda Cidadã, do governo paulista, atua com a referência per
capita de acesso de até meio salário mínimo.
O limiar da renda é definido baseado nas fontes estatísticas de maior confiança, tais
como as da Fundação Seade, do Ipea e do IBGE. Esses órgãos de pesquisa utilizam critérios
para estudar a população brasileira do ponto de vista socioeconômico, assim como
estabelecem o limiar para a definição da pobreza relativa e absoluta. Nessas definições,
encontra-se a utilização de vários critérios para estudar as condições socioeconômicas da
população, incluindo a pobreza.
Pobreza absoluta ou extrema significa que o indivíduo não tem acesso aos bens e
serviços essenciais, exprimindo sintomas de carências profundas. É a pobreza reduzida à
miséria e à indigência. É o afastamento de um mínimo necessário à manutenção da
sobrevivência física do indivíduo. Expressa vulnerabilidade, desamparo, fragilidade. Nesta
situação encontram-se os indivíduos cuja renda não lhes permite nem mesmo suprir a
necessidade mais básica de qualquer ser vivo, que é a de se alimentar. Sobrevivem de forma
primitiva e não dispõem de recursos nem mesmo para a manutenção da reprodução biológica,
que implica a ingestão diária de 2 mil calorias. Trata-se de uma população que pouco
consome, que nem entra na equação econômica, porque a economia pode funcionar ignorando
sua existência. Por ser “sobrante”, talvez não haja nem interesse em sua sobrevivência.
Portanto, pode morrer, porque não vale o que custa. Veja-se a população que vive em situação
de rua. Será esta uma das razões para o descaso com que este segmento é tratado no Brasil? É
a essa população, embora nem todos vivam nas ruas, que se dirigem os Programas de
Transferência de Renda (PTR) no Brasil.
A pobreza relativa extrapola o indicador de renda como fator exclusivo: “[...]
denuncia, além da desmonetarização dos pobres e do desemprego, a ausência de políticas
públicas adequadas, a falta investimentos públicos em áreas vitais (saúde, educação, moradia,
etc.) e desigualdades relacionadas à questão de raça, religião, gênero, idade, nacionalidade,
etc.” (PEREIRA, 1996, p. 27). Nesta situação encontram-se os indivíduos cuja renda não lhes
permite cobrir os custos mínimos de manutenção da vida humana, tais como: moradia,
educação, vestuário e transporte.
Em relação aos estudos sobre pobreza (também denominada de pobreza relativa) que
implicam a adoção de critérios que extrapolam a renda, um merece destaque no Brasil, pelo
seu pioneirismo. Trata-se do estudo denominado Pesquisa de Condições de Vida (PCV) na
Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), que vem sendo realizado pela Fundação Seade
201

desde 1989. Os primeiros resultados desta pesquisa foram apresentados em 1991 e, desde
então, ao longo destes anos, são atualizados os dados sobre pobreza-riqueza da RMSP.
A abordagem da PCV diferencia-se da tradicional por levar em conta, no estudo da
pobreza, informações sobre emprego, habitação, educação, saúde e rendimentos. Pretende-se
com isto caracterizar a população segundo vários aspectos de sua realidade socioeconômica,
ao criar diversas combinações de carências e não carências. Outra importante questão diz
respeito à unidade de análise utilizada para tratar de renda, podendo-se tomar como referência
a renda individual do candidato ou a familiar, sendo que essa poderá ser tratada tomando-a no
âmbito da renda bruta ou liquida ou do per capita a partir daquela definição.
Graziela problematiza a utilização da renda per capita de forma isolada na seleção
socioeconômica e indica algumas atenções que devem ser dadas à questão:

— Se você trabalhar com per capita isoladamente ele é problemático


em si. Eu acho que se ele for articulado a outros indicadores,
provavelmente você pode ter um outro tipo de refinamento. E eu diria
mais: quem sabe, talvez, a gente não pudesse pensar em ter
refinamentos diferenciados em relação ao Brasil — o que são os
povos da floresta, o que são os indígenas, o que são os negros, o que
são os pequenos agricultores em área de seca, quem vive em área
alagadiça, o que é o meio urbano. Eu fico pensando o que é uma
família com cinco pessoas se não tiver uma boa geladeira e todo
mundo trabalhar fora. Será que isso é uma necessidade de consumo
irrisória? Ou é uma questão de você manter o trabalho doméstico
dentro da casa, as necessidades dessa família, e a geladeira serve para
armazenar alimentos. Não sei se a gente precisa ter tudo
absolutamente igual, até porque não é tudo igual. [...] Eu acho que
comecei a pensar outros elementos, talvez a nossa profissão não use
tanto..., talvez fossem os indicadores sociais. Como é que a gente lida
com os indicadores sociais, com os dados censitários, com as bases
que a gente tem hoje, para poder reorientar que critérios a gente usa
para realizar a seleção socioeconômica, até porque vai para muito
além da renda.

Cada uma dessas definições acarreta a demarcação de outras, como, por exemplo, o
que se entende por família e como esta será considerada na seleção.
Regina, que vem estudando o tema da família, manifestou-se da seguinte forma:

— O critério sempre tem problemas, todos têm problemas. Mas, em


relação à família eu tenho tentado discutir e nem sei até onde vai essa
discussão. Talvez, de trabalhar numa correlação entre recursos que a
família conta e necessidades que as famílias têm, e fazer um
cruzamento... E aí você ia usando indicadores, por exemplo, se a
202

família tem... E usando um pouco da ideia do Seade, que ele usa


aquela história do ciclo vital. Você tem um parâmetro do que tem uma
família, como está vivendo com as crianças, quais as necessidades que
ela tem nesse momento, quais os acontecimentos que estão presentes
neste momento e quais os recursos que a família conta sem ser os
recursos da família? Porque essa daqui [referindo-se à entrevista de
Alice que leu] vai falar muito da assistente social que vai fazer uma
capitação do recurso familiar, mas quais os recursos que ela
efetivamente tem para dar conta dessas necessidades? E aí você pode
estruturar em o que essa família precisa ou não, mas isso numa
seleção socioeconômica...

Graziela, que vem estudando a questão das mulheres vítimas da violência, acrescenta
outros elementos ao debate.

— Do ponto de vista da profissão, acho que a gente está colada por


demais nessa definição do Estado de atender esse segmento
populacional, e depois a gente não trabalha com esse outro segmento
que está muito próximo. Ele tem que cair nessa rede para poder ser
atendido. Mas, o que você faz para fazer com que as pessoas não
caiam nessa rede? Não é porque elas não estão abaixo dos três salários
mínimos que elas não vivem questões importantes do ponto de vista
da responsabilidade do Estado, até porque a gente não tem nenhuma
política de apoio à família, a gente divide tudo, não é? Acho que,
talvez, ter colocado a assistência à família dentro da assistência social
é bastante delicado porque a gente não tem uma política de Estado
para as famílias; a gente enfiou as famílias pobres dentro da
assistência social e o Estado brasileiro continua se responsabilizando
dessa assistência à família. E fala muito em família quando na
verdade, não sei a Regina [outra entrevistada] que é especialista nisso,
mas eu trabalhei 20 anos com mulheres; a gente trabalha sempre com
um representante familiar junto à política pública, junto ao serviço
público como se esse representante familiar tivesse poder para
interferir, a partir de uma representação, como se ele representasse a
família e como se ele pudesse fazer essa interlocução. Eu sinto que,
quando a gente está falando em seleção socioeconômica, a gente
acaba esbarrando em situações mais cruciais.

A mesma entrevistada enfatiza ainda a ideia da necessidade de pautar a seleção


socioeconômica em outras referências existentes:

— Às vezes, a nossa profissão, ela entra de rasteira sem considerar


patamares que já foram discutidos mundialmente do ponto de vista de
direitos humanos, do ponto de vista da cor, do ponto de vista do
gênero, do ponto de vista de como você pode trabalhar com essas
diferenças. Provavelmente, quem mora na floresta tem exigências, por
203

exemplo, de transportes que são muito diferenciadas das nossas do


meio urbano. Teria que respeitar as particularidades. A gente já tem
conhecimento científico e metodológico e tecnológico para poder
respeitar essas diferenças. Se for para falar em refinamento, talvez a
gente tivesse que pensar em critérios maiores, mais amplos para
pensar esse refinamento. Eu não consigo mais ver a seleção
socioeconômica feita prioritariamente pelos indicadores de renda. Eu
acho que a gente deveria se aproximar sim da discussão metodológica
que o Seade fez; pode ser um diálogo crítico. Pode até não ser a
verdadeira, mas talvez eles tenham encontrado uma metodologia para
avaliar as condições de vida muito diferente do que é o Programa
Bolsa Família, o mapa da inclusão-exclusão social.

Regina reforça esse pensamento, acrescentando:

— Eu acho que a profissão acaba não contribuindo onde poderia


contribuir no debate. Tem um texto do Ipea que fala que o Bolsa
Família só teve o impacto que teve porque quem fez a seleção foi
muito bem e pode focalizar. Quem fez a seleção fomos nós. Tem um
reconhecimento, tem os critérios e a gente não discute esses dados.

É da densa e complexa criação e operação dos critérios que, através das contribuições
das entrevistadas, trataremos a seguir.
Os critérios são referências que contribuem para colocar ordem, controle, impor
limites e legitimar as práticas institucional-profissionais, mas podem ser tratados e entendidos
de diferentes formas. Ou seja, podem ser entendidos como regras a cumprir ou serem
reinterpretados por quem os manipula, dando-se-lhes novos significados.
Alice trabalha em uma organização na qual a equipe de assistentes sociais tem mais
autonomia em relação às outras colegas portuguesas entrevistadas para definir os critérios
diante das situações que vão se apresentando no cotidiano dos atendimentos. Nessa
organização, por exemplo, para a obtenção de remédios, o usuário tem que cumprir a regra de
apresentar dois orçamentos obtidos em farmácias diversas, sendo que a decisão recairá sobre
aquela que os vende pelo menor preço. Diz ela:

— Fazemos a avaliação neste papelinho [mostra-o à entrevistadora]. E


as farmácias... Há um acordo... Não passamos nada, só passamos o
que a pessoa vai levantar junto com as receitas. As receitas têm de
passar por aqui, pelo hospital e eles [os usuários] vão a duas farmácias
que estão aqui perto e que a Liga paga. Nós não mexemos em
dinheiro. Nós fazemos a avaliação e dizemos aqui das duas receitas,
três receitas, este medicamento não. Pomos aqui porque se o doente
tem... Uma das coisas que a gente faz, é assim, traga o saco dos
204

medicamentos, porque senão é comprar medicamentos sobre


medicamentos, que, por vezes, é o mesmo medicamento, só que por
vezes está só numa caixa diferente, estas a ver? Trazem, e é assim,
duas receitas, mas não este e este. [...] Nós estávamos, portanto, a falar
do trabalho que nós temos aqui, onde não há muito trabalho de seleção
socioeconômica para acesso a benefícios. [...] Nós aqui fazemos uma
parte de Ação Social que é este apoio, que é apoio nos medicamentos
para as pessoas que têm reformas [aposentadorias] baixas ou que não
têm rendimentos. Por exemplo, às vezes, vêm para aqui doentes que
não têm nenhum trabalho ou reformas de espécie alguma e enquanto
não tem rendimentos, vive a partir do dinheiro da Liga. Nestes casos,
nós damos medicamentos e seja o que for, tudo o que eles precisam.
Não há limite; o que o médico receita e o que o doente precisa dá-se.

Essa entrevistada, que atua na área da saúde, trabalha com critérios mais flexíveis e, ao
contrário da invasão da privacidade, tenta fazer leituras das situações que vão se apresentado no
seu cotidiano, pautada nos conhecimentos que detém, para enxergar o que se esconde sob as
reações e necessidades dos usuários que atende. Faz isso de forma sensível, respeitosa, orientada
pelo domínio teórico que tem. Dentre essas leituras, aparece a apreensão de questões de gênero.
Ela expõe como define os critérios que utiliza no atendimento a pacientes oncológicos:

— Nós é que definimos os critérios [...] Porque vamos lá a ver,


imagina que... Diz o seguinte [refere-se aos regulamentos]: deve ter
apoio na medicação todo, ou em parte, as famílias que têm uma
capitação inferior, por exemplo, ao salário mínimo, que são mais ou
menos 200 euros. Mas, por exemplo, a atribuição de uma prótese, uma
prótese mamária, uma prótese tal, etc., aí já vamos mais longe, porque
é uma atribuição, de uma vez... Já vamos a uma capitação de 500
euros. E por exemplo, se uma família tem mais de 500 euros de
capitação, mas se a mulher não tem boa relação com o marido e há ali
uma relação de conflito na qual ela se sente humilhada em ir pedir
dinheiro ao marido, nós atribuímos a ajuda da prótese a esta mulher.
Ou seja, temos em conta, não só os critérios econômicos, mas também
as relações existentes, a dignidade da pessoa, o fato dela sentir-se ou
não humilhada, ou não querer sobrecarregar a família com esse gasto
ou outros elementos, como não querer ser um peso para a família,
porque aqui, como tu sabes, nós funcionamos bem, se calhar também
no Brasil, com capitações familiares. Ora, por vezes as pessoas
sentem-se profundamente mal, porque sentem que a sua doença, está a
prejudicar o resto do agregado familiar e aumentar os gastos. Além do
medo da morte, do sofrimento, etc., ainda aumenta o prejuízo que eles
sentem que estão a fazer para a família. Isto faz perder, por vezes, às
pessoas, o autorrespeito por si porque pensa, “eu já não valho nada, já
não comparticipo com nada para a minha família, já não tenho
utilidade social, já não tenho obrigação social nem familiar”. E isto
precisa ser trabalhado. Por exemplo, uma mulher doméstica, que
205

aparece aqui a dizer, “eu já não presto para nada, eu já não cuido da
minha família”, é preciso fazer todo um trabalho, não é? Para apoiar
esta mulher que sempre cuidou dos outros, sempre foi cuidadora. Por
um lado, dar oportunidade é importante, mas dar, também,
oportunidades aos outros para serem cuidadores também é. E por
outro lado, é importante ela imaginar que há coisas que podem
continuar a fazer por eles e que nunca tinham feito antes.

Em relação à experiência do uso da melhor unidade para análise da renda, Alice


apresenta uma problematização crítica acerca dos prós e contras presentes nas escolhas em
relação ao uso da renda individual, familiar ou per capita. Analisa criticamente as implicações
de se tomar uma regra, um critério ao “pé da letra”, sem considerar as circunstâncias presentes e
o que se esconde por detrás das decisões acerca delas. Destaca os interesses e vantagens de o
Estado indicar o uso da renda per capita ou renda familiar em detrimento da renda individual.

— Não sei se é gostar, quero dizer que é um bocado a tradição da nossa


constituição, das nossas regras etc., porque eu acho que os fenômenos
de individualização eu acho que tem vantagens e desvantagens,
portanto, trabalhar com sujeitos individuais ou familiares tem aspectos
positivos e negativos. [...] Portanto, trabalhar com critérios familiares...
Como eu hei de dizer? É responsabilizar a família pela sorte, pelos seus
componentes, só que isto poderia ser feito de uma forma mais
interessante, ou seja, deveria haver um patamar mínimo que era de
proteção de um individuo e depois funcionar a rede familiar. Porque em
famílias pobres em que... A própria Constituição vinha num Estado
autoritário, em que a família tinha obrigações, ajudas, etc. E hoje estas
ajudas familiares estão a diminuir. Que ajuda pode dar uma família a
um de seus membros, se ela própria está a empobrecer e está pobre, em
pôr uma carga muito grande na responsabilidade familiar? Alguns
aspectos nomeadamente à atribuição das próteses etc., nós só damos
importância ao valor e, portanto, à renda individual. Em relação, por
exemplo, à nossa norma que aponta para a necessidade dos filhos
ajudarem os pais, portanto, se os filhos vivem bem com os idosos
obrigam-nos à apresentação dos rendimentos dos filhos, isso se torna
complexo, não é? Agora imagine quando há relações cortadas entre
eles, em que os filhos não foram criados por eles; os pais foram
obrigados a abandonar os filhos. Então, como é que o Estado vai exigir
agora que os filhos deem o apoio? Compreende isto? É muito
complicado, eu acho que a família já faz muito, eu acho que devemos
permitir a coesão familiar, mas não em termos de demissão do Estado.
Ou seja, o Estado diz que usa os critérios familiares para… Mas isto é
hipocrisia, é para a família não se desresponsabilizar... O Estado é que
se desresponsabiliza perante a família, mas usam a ideologia de que é
assim para as famílias não se desresponsabilizarem, o Estado está a
impor uma carga demasiado grande em cima das famílias.
206

Luísa apresenta sua experiência referente à utilização das unidades de análise da


renda que vem, ao longo do tempo, empregando na análise da seleção socioeconômica. É
necessário que, no Serviço Social, haja debate sobre esse assunto. A seguir, apresento nosso
diálogo a esse respeito, visando publicizar a experiência. Diz ela:

— [...] Nós utilizamos o critério da renda, daquilo que são os recursos


econômicos que o indivíduo ou de que a família dispõe mensalmente
para viver. É renda e gastos. Isso é o mais comum, embora os gastos,
por exemplo... E aí utilizamos muito o per capita; se é uma família, é o
per capita familiar que serve como…

A entrevistadora indaga se ela trabalha com renda bruta ou renda líquida. Ela responde:

— Renda líquida, então bruta, o individuo não usufrui… [...] Os


critérios que nós utilizamos, partem daquilo que é o rendimento
líquido, os nossos critérios dão-nos uma margem muito grande para
depois chegarmos àquilo que é o líquido. Se o individuo faz horas
extraordinárias, eu tenho que avaliar se ele faz sempre ou não, se ele
não fizer sempre eu não vou contabilizar, justifico. Agora se ele tem
todos os meses um prêmio, então faz parte, nós aí temos isso em
consideração. Depois nós consideramos a despesa, que nos nossos
regulamentos é apenas contemplada a despesas com a habitação.

A entrevistadora pergunta: — O per capita é tirado depois que você exclui as despesas
com habitação? E Luísa responde:

— Sim, é a divisão da renda por todos os elementos, é a quantia que fica.

E para confirmar o entendimento, a entrevistadora pergunta se é depois que já tirou os


gastos. Ela confirma que sim.
Destaque-se que aqui está colocada em pauta a questão de um único critério, a renda
— que, poderá, no entanto, não ser único a ser considerado no processo da seleção, mas a
renda estará presente em todas as seleções de caráter socioeconômico. Podemos perceber que,
embora sem aprofundamento da análise a esse respeito, a sua manipulação implica inúmeras
decisões e operações, assim como conhecimento mais abrangente para manejá-la para além do
cumprimento da regra institucional presente nos regulamentos.
Isaura problematiza se a seleção socioeconômica deve incorporar a análise do
consumo familiar e os tipos de gastos a considerar porque sempre envolvem decisões e
207

valores, tanto dos sujeitos demandantes dos serviços sociais, como dos profissionais que
realizam a seleção. Ela discute a questão e apresenta exemplos:

— Essa moça aqui diz [refere-se à entrevista de Fátima que leu] que
ela não fica satisfeita quando alguém diz para ela que não vai estudar
porque não pode pagar e ela revê. Aí ela conta que “outro dia veio
aqui uma mãe que me dizia que se nós não déssemos a bolsa, a filha
iria deixar de estudar até porque o pai tinha que lhe comprar um carro
para filha estudar e eu também disse à senhora os senhores é que
sabem o que é mais vantajoso para vocês se é pagar a propina da vossa
filha ou se é comprar um carro, mas não venha por o ônus em cima de
nós.” É uma discussão que está posta: como é que não pode ter o
carro? Senão a gente se atrapalha, senão você não tem critério de
inclusão. Tem um lugar aqui o Juizado Especial Federal que trabalha
com reclamações de BPC que tem estar escrito na ficha a marca do
eletro doméstico que a família tem, se é uma geladeira ou fogão Dako
tudo bem, está incluído; se for Bosch está fora. É a qualificação do
que você pode ter e eu sempre discuto isso com os alunos “você vai lá
ela tem um Brastemp e eu não tenho aí ela fica muito zangada porque
o usuário tem e eu não tenho.” Eu não acho que não tem nada a ver, eu
acho que tem que ter alguma mediação aí senão a gente se atrapalha.
Você pode fazer o que quiser com o seu dinheiro, mas o seu per capita
faz com que você ganhe uma bolsa de estudos ou não.

Regina reage à fala de Isaura, questionando que a autonomia do indivíduo não é


considerada e tratada quando se trabalha com a renda de toda a família.

— Olha que complicado que é quando você está falando o que está
vivendo, você está colocando a família na roda. Você mora numa casa
que a sua família tem uma geladeira. Agora quando o senhorzinho que
não tem renda nenhuma e essa situação que a família inteira tem uma
renda, ele vai viver como dependente dessa pessoa que é uma situação
de total falta de autonomia que ele deveria ser contemplado para ele
ter autonomia, ter isenção da família.

Eunice, que vem se dedicando ao estudo da produção de pareceres e laudos pelos


assistentes sociais, também problematiza a incorporação do consumo como critério do estudo
social, uma vez que, conforme as demais entrevistadas brasileiras e algumas das portuguesas,
esse critério pode se realizar permeado de preconceitos e assim pode mais prejudicar do que
facilitar o acesso dos usuários aos serviços e benefícios sociais. Ela nos conta com indignação
contagiante a seguinte situação:
208

— Eu vi numa outra pesquisa que eu fiz, nem sei se vocês [refere-se


ao Curso de Serviço Social da PUC- SP] chegaram a receber a pesquisa
de famílias com crianças abrigadas; eu participei da coordenação,
fazem uns dois ou três anos. As pesquisadoras, que também na maior
parte eram pessoas que estavam na intervenção nas unidades de
acolhimento e no próprio Judiciário, ouviram famílias de crianças que
estavam em abrigos, e eu me lembro de uma mãe que falou que a
assistente social deu um parecer negativo em relação a ela ficar com a
criança, porque a assistente social descobriu que ela dava “papinha
Nestlé” para a criança. Aí a assistente social falou que se ela dá
‘papinha Nestlé’, primeiro que ela era preguiçosa, não queria fazer
comida para o filho, segundo que se ela pode comprar ‘papinha
Nestlé’, teria condições de cuidar dessa criança e não deixar acolhida
em uma instituição, e se deixou é porque era negligente. Veja só, o
fim do mundo! Porque eu não posso dar papinha Nestlé para o meu
filho? Todo mundo dá papinha Nestlé para o filho! Veja o preconceito
na ação profissional, como se manipula a vida das pessoas, então tem
algumas situações em que às vezes é bom nem ter o profissional,
dependendo de como ele vai analisar...

Através dessa breve pauta apresentada em relação aos critérios, podemos deduzir a
complexidade que envolve a realização de estudos socioeconômicos. Quanto maior o número
de critérios para além da renda familiar ou individual ou per capita — tais como instrução,
inserção no mercado de trabalho, condições de habitação, raça e etnia, dentre outros inúmeros
exemplos possíveis —, mais complexo se torna o estudo e, portanto, mais estudos são
necessários por parte dos profissionais que operam esses critérios.
Quando o assistente social trabalha com a seleção de acesso a serviços balizados em
legislação, como dever do Estado, o que pesa na análise do acesso é o preenchimento pelo
candidato dos critérios estabelecidos, não a disponibilidade de verba. Nesta situação, o
assistente realiza um trabalho mais de triagem, ao verificar se o indivíduo atende ou não aos
requisitos ali colocados, conforme já tratado anteriormente..
Alice, que atua em entidade que recebe o recurso da “Liga contra o Cancro”, embora
não tenha se queixado de problemas relativos aos limites de verba, conta que o acesso é
atrelado e dependente da existência de recursos disponíveis e à apresentação de avaliação
socioeconômica, fundamentado na necessidade e no mérito, que, por sua vez, é definido em
função de critérios. Esse também é o caso de Luísa, quando atua com os programas da Santa
Casa de Misericórdia de Lisboa e tem que realizar estudos e apresentar relatórios para que o
recurso seja liberado para o atendimento do usuário.
Fátima explica que, para realizar a triagem dos candidatos às bolsas de estudo, precisa
ter domínio profundo da lei e das medidas complementares, como elementos orientadores do
209

seu trabalho, e acompanhar o cumprimento da contrapartida relativa aproveitamento do aluno


e do cumprimento da regra de que ele deverá terminar o curso em quatro anos.

— Nós em Portugal não temos verbas delimitadas para atribuição de


bolsas. Ou seja, o que eu quero dizer é o seguinte, imaginando o tenho
“n” alunos com direito a bolsa e só tenho 1000 euros e tenho que dividir
esses 1000 euros pelos alunos todos. Não, não é assim que acontece em
Portugal. Em Portugal acontece exatamente o contrario, eu faço análise
das situações socioeconômicas dos alunos e todos aqueles que tiveram
direito à bolsa recebem-na e o dinheiro terá que se encontrar em
qualquer lado, mas eles recebem a bolsa. Não há limitação nem do
valor da bolsa, nem do numero de bolsas atribuídas, por causa do
orçamento; isso não acontece. Portanto, a nossa legislação impõe
condições para se fazer o estudo socioeconômico, dizem de acordo com
aquelas condições quais são os alunos que têm direito e aqueles que não
têm direito a bolsa. E desde que esses alunos têm direito, eles têm que a
receber. [...] Mas tenho trabalhado sempre em serviço em que existe
uma legislação que baliza a minha atividade e que diz quais são as
formulas, quais são os rendimentos que são considerados, as despesas
que são consideradas. Portanto, não é uma situação como, por exemplo,
se vive em termos de outro tipo de apoios em que o estudo
socioeconômico é feito sem que haja este balizamento legal, portanto,
nós podemos analisar um processo e considerar que essa situação...
Fazer uma informação [relatório] e dizer que esta situação está em
condição de ser apoiado ou não. No meu caso não, no meu caso tem
sido sempre com uma baliza legal. [...] Relativamente à situação atual
há uma legislação que diz que têm direito à bolsa de estudos, os alunos
que se candidatam a ela, porque os alunos até podem ter direito, mas se
não se candidatarem, se não a pedirem não têm direito. Portanto, os
alunos que se candidatam à bolsa, os alunos cujo [...] cujo patrimônio...
Isto é uma legislação que saiu em julho de 2010, portanto há muito
pouco tempo. É a primeira vez que estamos a aplicar esta legislação; a
anterior era um pouco diferente. Portanto, neste momento, a legislação
exige que [...] o do agregado familiar do aluno não possa ter um valor
superior a um determinado montante. Neste patrimônio, incluem-se
contas bancárias, valores em contas bancárias, ações, valores de tudo
que seja depósitos, tudo o que seja bens patrimoniais. [...] Têm que ter
aproveitamento, aproveitamento que não é um aproveitamento total.
Bologna, 94 eles têm normalmente quatro anos para fazer o curso, têm
94
“A cidade italiana que em 1088 viu nascer a primeira Universidade europeia (Alma Mater Studiorium) serviu de
palco, em 1999, à assinatura da Declaração ou Acordo que compromete os seus subscritores no propósito de
contribuírem para a construção de um novo espaço europeu de ensino superior. Tal intenção é agora partilhada por
45 países europeus e a Declaração original foi sendo trabalhada e ampliada por múltiplas comissões e grupos de
trabalho, de modo a operacionalizar e tornar efectivo o seu conteúdo programático. O balanço das iniciativas
convergentes tem sido feito bienalmente (Praga 2001, Berlim 2003, Bergen 2005), tornando Bolonha no símbolo de
um processo que procura devolver ao mundo universitário europeu uma renovada e acrescida grandeza. O Processo
de Bolonha faz hoje parte integrante do léxico de referência de todo o ensino superior e funciona como símbolo da
mudança anunciada na estrutura de graus e na organização de planos de estudos e metodologias de ensino e
aprendizagem (disponível em: https://www.utl.pt/admin/docs/61_O_Processo_de_Bolonha_de_A_a_Z.pdf; acesso
em: 2 fev. 2013).
210

que fazer o curso dentro desses quatro anos. Se nós percebermos, a


partir do segundo ou do terceiro ano, que o aluno já não tem condições
para concluir o curso nesses quatro anos, já não tem direito à bolsa. Mas
do ponto de vista do cálculo econômico, é o rendimento, o tal
rendimento acima de um determinado montante. E depois são os
rendimentos do trabalho, todos os rendimentos obtidos, rendas de casa...

Luísa oferece uma problematização, traçando comparações entre os critérios do RSI e


os da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa, que estabelece critérios diferentes para cada
programa e as implicações de atuar a partir de legislação do Estado que institui o benefício
como direito e os regulamentos que registram os critérios, normas e procedimentos para o
acesso aos seus serviços sociais a partir da detenção de mérito.

— [N]um paralelo entre a Ação Social e o Rendimento Social de


Inserção, a Ação Social é mais flexível, [...] E porque a Ação Social é da
minha organização, enquanto o Rendimento Social de Inserção é de uma
outra. É por via de um protocolo, tem uma lei, o Rendimento Social de
Inserção tem uma lei subjacente e a Ação Social não tem lei. [...] O
Rendimento Social de Inserção é um direito desde que o utente responda,
mas tem que responder a muitas coisas, e que há coisas que ele não
consegue responder, não só por via da sua vontade, mas por via do
sistema. E isso é uma outra polêmica. [...] Mas, voltando à questão da
Ação Social e do Rendimento Social de Inserção, uma das diferenças é a
lei, ou seja, eu enquanto assistente social administro uma lei, e isso traz-
me responsabilidades, se eu não cumprir ou se eu não a fizer cumprir, é
sério. Enquanto a Ação Social é da minha organização, é da minha casa
onde eu trabalho, e aí dá-me uma maior liberdade. Ou seja, embora
existindo critérios, embora existam orientações, eles são mais flexíveis e
quando eu digo que me dão uma maior liberdade, [...] [é] porque a Ação
Social da Misericórdia é muito rica, para além da questão econômica, e
mais procurada [...] dentro da organização onde eu trabalho e eu acho que
de uma forma geral, o assistente social têm sempre uma margem para
lidar, ou, às vezes, contrapor os critérios, às vezes é maior, outras vezes é
menor. Muitas vezes... [...] um profissional de Serviço Social quando
trabalha, trabalha dentro de uma organização que tem determinados
critérios e para desenvolver a sua profissão, para ter o seu trabalho de
alguma maneira, tem por norma que deve os cumprir, às vezes, é a
condição para... [...] depois nós temos vários regulamentos, isso é outra
questão. Para ter acesso ao cartão de saúde há um regulamento onde não
se contabilizam determinadas coisas para ter acesso a um apoio
econômico. Há outro regulamento para ter acesso a um subsídio de apoio
econômico para o lar. Há outro regulamento para ter acesso aos
equipamentos, às creches, ao jardim-de-infância. E aos lares há um outro
regulamento. Eu creio que, neste momento, há uma preocupação
organizacional, de tentar haver um só regulamento, embora eu não saiba
se isso vai ser favorável, mas essa é uma situação que está em estudo.
Mas, em todos eles, as despesas são deduzidas da renda, são as despesas
211

de coabitação. Depois, há uma outra possibilidade, que eu também já


referi, que é quando eu avalio que aquela situação tem encargos muito
elevados com medicação, sobretudo, em população idosa. [...] Quando se
trata de doenças crônicas, eu apelo aos decisores para esses aspectos...
[...] Há um manual de documentos, um manual de identificação,
documento da renda. Se trabalhar tem que trazer o recibo do vencimento
e se não tem todos os meses o mesmo vencimento, então, traz dos
últimos três meses para podermos fazer uma média do seu vencimento.
Se estiver desempregado, então, vai ter que trazer um comprovativo em
como está à procura de emprego, se é isso que refere. Embora isso
depois, não que seja linear, porque a pessoa pode de alguma forma,
trabalhar informalmente e não estar a fazer descontos e ser possível
manter uma inscrição.

Ao refletir sobre se seria mais democrático o profissional ter plena liberdade para lidar
com os critérios ou haver balizas postas mais amplamente, ela defende a ideia de que é melhor
haver critérios em aberto.
Sobre essa questão, estabeleceu-se, no momento da entrevista, este diálogo com Luísa:

— É melhor, claro! Tem que haver balizas! Eu aí não tenho dúvidas,


porque aí entra um caráter de subjetividade muito grande.

A entrevistadora provoca a entrevistada, dizendo: — Quando você tem um critério, é


duro pensar que ele é para todo o mundo, mas ele coloca a possibilidade de um olhar comum,
um mesmo jeito de lidar com todas as situações que se apresentam, pautado nos mesmos
parâmetros. E ela diz:

— Mas, como eu disse e já fui falando naquilo que é a minha prática,


há um critério, e eu a partir do critério posso utilizar a minha
apreciação, aquilo que é a minha subjetividade, a minha leitura da
situação. Se for ao contrário é mais difícil, se se partir de um caráter
subjetivo [não havendo critérios]. Ou seja, se não houver seleção
socioeconômica, então como vamos chegar...? Não vamos!

A respeito dos critérios, Alice, que tem tido mais autonomia de trabalho, diz:

— Os critérios têm de servir para aquilo a que se destina o serviço.


Não é o critério que é importante, há o serviço, há os meios, para que
é que eles servem, para que é que eles são...? E os critérios têm de se
moldar a isso...

Tilia reafirma as suas críticas, em relação aos critérios:


212

— A questão é que não há critérios, quer dizer que se houvessem


critérios, tinham que ser objetivos e se houvesse critérios objetivos,
não era preciso ser uma profissão, quer dizer, podia ser qualquer
pessoa administrativa que poderia responder a esta questão.

Eunice, que defende que a profissão só deve participar de seleções socioeconômicas se


for para ir além do critério da renda, indica o caminho que temos a pesquisar sobre nossa
pratica profissional, para que possamos pensar na criação de respostas profissionais diante dos
sérios desafios impostos pela realidade social atual. Considera que a construção dessas
respostas deve envolver a categoria dos assistentes sociais que é sedenta de novos recursos
teóricos para uma intervenção crítica. A esse respeito, ela teceu as seguintes considerações:

— Mas uma coisa é uma mãe com criança pequena, outra é uma mãe
com filho já jovem, adulto. É uma diversidade muito grande. Acho
que aí sim caberia à gente entrar com um estudo e mostrar essa
diversidade, tanto no atendimento “caso a caso”, em pesquisas, porque
eu acho que cada vez mais precisamos fazer pesquisas sobre a nossa
prática. Eu acho que a academia tem que fazer pesquisa para saber
como estamos trabalhando e o que precisamos. Tenho certeza que as
pessoas vão colaborar porque muita gente que está nessa profissão
sente essa necessidade.

Esta entrevistada, de jeito entusiasmado e determinado, continua sua problematização


dos critérios, indicando algumas saídas para lidar com as balizas dos estudos socioeconômicos:

— Você usar o poder do conhecimento com base nesses referenciais e


explicar a realidade socioeconômica cultural e familiar daquele sujeito
para que aquela criança tenha o direito de viver com a sua família de
origem. Eu penso que esses elementos são essenciais, mas eu acho que
ainda a gente se “atrapalha” muito por aqui, acho que quando falamos
no trabalho, na própria família... Hoje temos avançado mais a
discussão de considerar a diversidade de formas das pessoas se
organizarem, de se cuidarem, de conviverem, a questão das políticas
sociais, mas acho que temos ainda que avançar. O que é você ter uma
moradia e ter acesso aos serviços da moradia, o que é uma moradia
adequada? Eu tenho buscado um pouco da discussão de moradia como
direito humano que a Raquel Rolnik vem trabalhando, e a cultura. Isso
é fundamental, a gente precisa desenvolver mais, os fundamentos do
serviço social têm que ser trazidos para o dia a dia, acho que isso é um
estudo. Agora, é muito difícil. Eu lembro que fui dar uma capacitação,
e o debate foi que não damos conta disso, que é um processo, que tem
prazos. Mas, se a gente não fizer isso, o que vamos fazer?
213

Graziela, na entrevista coletiva, apresentou ampla problematização dos critérios a


serem considerados nos vários espaços sócio-ocupacionais da profissão, como na saúde, na
assistência social, no atendimento às mulheres vítimas de violência e nas cotas de negros. Em
relação á área de saúde, ela disse que:

— O campo da seleção socioeconômica é muito amplo. Estou


pensando em transplante de órgãos, aquele apoio que tem em São
Paulo para as pessoas transplantadas dos rins. Tem mais de três mil ou
cinco mil pacientes em São Paulo que sofreram transplante, e essa
organização faz todo o processo de apoio, assistência, orientação,
abrigo quando vem para São Paulo. Acho que na saúde essas situações
são para algumas cirurgias especiais.

No campo da violência contra a mulher, a entrevistada apresenta denso


questionamento sobre o fato de o atendimento na Assistência Social se dirigir somente às
mulheres pobres e não a todas que precisarem do atendimento.

— Eu fico pensando no meu campo de trabalho de violência contra a


mulher. O embate todo com a Assistência Social na cidade de São
Paulo era o quesito dos três salários mínimos até hoje. O Suas está
encampando a discussão da relação da violação de direitos, mas na hora
que vai discutir a violação de direitos e transforma isso em violência
doméstica. Vários profissionais que estão lá decidindo a verba para
montar Casas Abrigo para as mulheres, por exemplo, monta uma casa
abrigo onde vai ficar moradora de rua, mulher que foi despejada,
mulher que sofreu violência doméstica e poderá ir também à mulher do
traficante. Na hora de pensar a seleção socioeconômica, quando a gente
pensa na flexibilização, e até no controle, como é que a gente pode
pensar no sentido de garantir esses direitos para essa universalidade do
acesso? Eu fico pensado até no programa Bolsa Família. A presidente
[da República] acabou de anunciar que a maior parte são mulheres
porque concentram a pobreza no Brasil desde a década de 80, mas o
Programa Bolsa Família não decidiu que as mulheres têm prioridade
para isso, que tem flexibilidade na aplicação do indicador para as
mulheres terem prioridade no programa Bolsa Família e muito menos
para as mulheres negras é que na peneira acabou somando isso. Se você
vai para discutir vítimas de violência, por exemplo, como é que você
discute essa flexibilização? O pessoal da assistência não aceita se uma
mulher tem seis salários mínimos ir a um abrigo com situação de risco
de vida, aliás, a assistência nem sequer aceita abrigos para... Não pode
escrever no projeto de uma ONG que vai receber financiamento da
Prefeitura, do Suas, que está escrito vítimas de violência em situação de
risco. Tem que estar escrito: situações de vulnerabilidade de risco
social, agora o que é risco social, o que é vulnerabilidade? Onde é que
as situações de violência numa metrópole como essa entre...
214

Quanto à reserva de vagas para negros, mediante cotas sociais, Graziela problematiza:

— Nós conquistamos várias coisas, mas temos outros problemas: as


cotas dos negros nas universidades, uma parte dos negros é contra
essas cotas, porque elas são favoráveis à pobreza, porque a pobreza
vai pegar mais negros, e os negros que vão chegar à universidade são
quem não é tão pobre. Então, como nós vamos trabalhar com isso?
Agora para auxiliar dentro das universidades a construção desse
critério para não ferir nosso projeto ético.

Na construção de padrões de referência para lidar com os critérios de âmbito mais


coletivo, ela propõe:

— Na seleção socioeconômica, eu fico pensando nessa flexibilização


e o que a gente colocaria de indicadores sociais, de IDH, salário
mínimo condizente com uma vida digna, diferencial de gênero e cor.
Nós estamos agora com um problema.

Regina, ao apresentar a crítica, também indica um caminho para sair de onde estamos
na profissão em relação à realização da seleção socioeconômica e ao manuseio dos critérios:

— Acho que a gente tem que deixar de ser genérica. A gente faz a
crítica da política genericamente. A política responsabiliza, a política
isso ou aquilo e nós não sabemos do que estamos falando, é tudo no
genérico. E os assistentes sociais aprendem, mas na hora de fazer eles
fazem exatamente tudo igual.

A problematização apresentada com a contribuição das entrevistadas acerca do


estabelecimento e do manejo dos critérios na seleção socioeconômica operada pelos assistentes
sociais nos indica, em grandes traços, as lacunas existentes e o tanto que temos ainda que
estudar, pesquisar e discutir no Serviço Social para qualificar a realização da seleção
socioeconômica.

4.4.4. As contrapartidas como condição de acesso e permanência no atendimento

O estudo da seletividade de acesso aos serviços e benefícios sociais comporta a


discussão da contrapartida ou condicionalidade, uma vez que a aceitação desta como condição
imposta para o acesso e permanência do usuário no atendimento torna-se em si um critério, ao
215

passar a integrar o acesso e a permanência no benefício de forma inseparável. Ou seja: a não


aceitação das condições ou o não cumprimento “do contrato estabelecido” impede o acesso e
a permanência do indivíduo no benefício ou serviço social.
Informar sobre as exigências estabelecidas e depois cobrar sua realização tem se
constituído como mecanismo de controle para a permanência do usuário nos programas,
diante da qual o assistente social aparece como um daqueles que fazem o acompanhamento e
a certificação do seu cumprimento.
Em benefícios sociais, como o caso do RSI em Portugal, do Programa Bolsa Família no
Brasil e de outros tantos programas sociais, estão colocados hoje a cobrança da contrapartida
ou condicionalidades, embora essa prática seja muito antiga na assistência social, mesmo
antes de sua cobrança no papel, por escrito.
Em 2010, época em que realizei as entrevistas em Portugal, era possível perceber
claramente, através dos meios de comunicação (televisão e imprensa), que o Estado buscava
apoio político para a cobrança da contrapartida do RSI, sob alegação de que era necessária
diante da existência de grande número de “indivíduos que não queriam trabalhar” e que,
portanto, viveriam à custa do Estado; ou mesmo de que muitos beneficiários do RSI não
necessitavam deste e se utilizavam da falta de fiscalização para se aproveitar do Estado. A
cobrança da busca de um emprego pelos atendidos pelo RSI, que se colocava como a
contrapartida exigida, era apresentada à população como medida justa. Assim como a
fiscalização para a averiguação da pobreza do beneficiário, impunha-se como uma
necessidade na conjuntura de contenção de despesas do Estado.
Naquele país, a contradição que se apresentava e continua a se apresentar é a seguinte:
se o indivíduo arruma um emprego, deixará de ser beneficiário daquele benefício; portanto, a
pressão para que haja uma cobrança rígida da contrapartida visa ao corte do número dos
benefícios atuais. Já se presumia que o corte seria grande, pois essa cobrança se dava e
continua a se dar num quadro de agravamento de desemprego estrutural. Em outras palavras:
delineia-se o horizonte da focalização do benefício que deverá atender somente grupos
específicos da população.
É preciso considerar que o RSI vem sofrendo alterações ao longo do tempo, desde a
aprovação, em 1974, da Pensão Social, de base não contributiva, e da implantação do
rendimento mínimo garantido, em 1996, 95 adquirindo hoje o jeito das consideradas políticas
sociais de nova geração, denominadas por políticas sociais ativas.

95
Maiores detalhes a esse respeito podem ser encontradas em Branco (2001, 2004a, 2004b).
216

A considerada nova geração de políticas sociais dá ênfase à cobrança das


contrapartidas, pois “ninguém deve se beneficiar de uma medida de política social sem que
activamente realize alguma acção no sentido de alterar as circunstâncias que o levaram a
necessitar de recorrer ao sistema de bem-estar” (BRANCO; AMARO, 2011, p. 660).
Essa questão da contrapartida coloca-se como medida integrante da política social
ativa (workfare), justificada na crítica de que os sistemas de bem-estar social do pós-guerra
que se fundamentavam no princípio da universalidade e na garantia de direitos e benefícios
levaram à inatividade e à passividade dos sujeitos beneficiados por essas políticas. Nessa
perspectiva, o trabalho como contrapartida do benefício recebido é validado na lógica da
inserção social, na qual o mercado de trabalho passa a ser considerado como o principal lócus
de integração social do indivíduo, esperando-se que ele se comprometa com a sociedade
através do trabalho (BRANCO; AMARO, 2011, p. 661). Isso está colocado em uma conjuntura de
amplo desemprego estrutural presente no continente europeu, destacadamente em Portugal e
na Espanha.
Wehrle (2011, p. 682-683) observa que a reconfiguração do Welfare no ponto de vista
do workfare vem se dando nos países europeus de forma sutil, não pressupondo o simples
desmonte dos sistemas de proteção social, mas

transforma a assistência social em instrumento de controle social a serviço do


capitalismo globalizado. [...] Bem-estar, nesse contexto, se transfigura em
capacitação para o trabalho. Por conseguinte, integração não significa outra coisa
que inserção no mercado de trabalho. Não importa como: quem é ativo também tem
que ser flexível. Assim, a integração discursivamente afirmada não é nada mais que
a adaptação a uma vida na precariedade invisibilizada e a submissão a condições
exploradoras, muitas vezes ilegais de trabalho. Quem não se integra, isto é, quem
não se submete aos trabalhos obrigatórios é caracterizado como indisposto para o
trabalho e como resistente à integração. Em consequência, sofrerá cortes dos
benefícios sociais.

As consequências dessa tendência que informa as políticas sociais atualmente são


dramáticas para o Serviço Social:

A questão do estabelecimento do contrato e da negociação torna-se crítica para os


assistentes sociais. [...] por um lado, pressupõe-se a existência de uma relação
simétrica entre as partes e a existência de efectivas oportunidades; por outro,
salienta-se a fragilidade moral e a incapacidade do outro, que não é capaz de gerir a
sua própria vida sem recorrer a um contrato que define os aspectos mais básicos e
nucleares da vida cuja gestão está ao alcance de todos os outros (BRANCO; AMARO,
2011, p. 662).
217

Essas exigências, colocadas pela política social que pressupõe cobranças e


negociações para que os usuários tenham o benefício, acabam por colocar sérios desafios à
profissão, pois o assistente social tem sido colocado para realizar essas tarefas. Nesse quadro,
aparece a intervenção profissional caracterizada como

[...] cada vez mais confinada à instrução e ao desenvolvimento de processos


administrativos, majoritariamente associados á questão do controlo. Em larga medida,
a prática está a tornar-se mais instrumental que substantiva, mais preocupada com os
resultados do que com os processos. Os assistentes sociais hoje dirigem a sua atenção
para a apreciação do posicionamento dos indivíduos perante a adesão ao contrato e a
apresentação dos resultados (BRANCO; AMARO, 2011, p. 662).

Essas referências são fundamentais para que possamos entender os discursos de nossas
entrevistadas acerca da contrapartida.
Alice concorda com a cobrança da contrapartida, desde que não seja imposta. Devo
reconhecer que, no momento da entrevista, não explorei essa afirmação, mas hoje considero
que é estranho pensar em contrapartida que não seja uma exigência, uma imposição, uma
condição para o acesso e permanência no serviço ou benefício social que integra um contrato;
então, concordar com a contrapartida desde que não seja cobrança, não seria se colocar contra
essa prática? Alice assim se expressou a respeito das contrapartidas:

— Eu posso concordar com as contrapartidas se elas não forem


impostas, se fizerem parte do plano de vida das pessoas, se fizerem
parte de uma motivação das pessoas para fazer algo. Eu não concordo
com contrapartidas impostas porque nunca funcionam. Eu acho que as
contrapartidas deveriam vir surgindo da própria relação e da própria
construção, em alguns casos é um privilégio ter uma pessoa que se
debruça sobre elas, que as estimula a ter outra forma de ver a
realidade. Então, desta relação deveriam surgir, necessariamente,
perspectivas de futuro para aquela pessoa, para melhorar, se promover
etc. e a partir daí poderia vir esse tipo de coisa, mas nunca de forma
imposta. Sei que há situações de ameaças pelos ciganos porque os
professores dizem que as suas crianças não vão à escola, então,
ameaçam a professora por fazer queixa à assistente social.

Através de um comentário de Regina é possível agora pensar que possa haver um


pedido de colaboração que nem parece uma contrapartida. É o caso dos hospitais que, em
nome da humanização do atendimento permitem que o indivíduo internado possa ser cuidado
por familiares no hospital. Como há falta de funcionários em número suficiente para cuidar
adequadamente dos doentes, essa medida, então, quase que se impõe.
218

— A política de saúde é um... Porque em tese ela não tem


contrapartida; em tese, porque ela tem. Ela pede para o cara... A
família fica, tem que dar comida.

Fátima destaca a importância da contrapartida, por considerá-la em medida de âmbito


educativo, não como ação fiscalizadora.

— Eu acho que é importante, as contrapartidas são importantes. Acho


que não devem, nem podem ser entendidas como fiscalizadoras. Acho
que devem ser entendidas do ponto de vista educativo. Ou seja, por
exemplo, você só recebe o benefício se os seus filhos forem à escola.
Eu acho que isso tem de ser visto, não como... Você vai receber o
dinheiro, mas os filhos têm de ir para a escola, mas como é importante
que os seus filhos vão à escola, [...] e em contrapartida receber o
benefício. [...] porque a contrapartida, não é a obrigatoriedade de se
fazer as coisas, mas a contrapartida é o beneficio.

Essa forma de apreender a contrapartida como medida de âmbito educativo deve


merecer nossa atenção, por se apresentar como uma forte tendência presente também no
Brasil, exigindo o deciframento de seus fundamentos. Ou seja: o que significa considerar a
contrapartida como medida educativa? Qual é o entendimento de educação nela presente?
É preciso ter presente nessa discussão que o trabalho do assistente social tem um
caráter educativo, porque, na relação estabelecida com o usuário, sempre se interfere na sua
forma de ver, sentir e pensar, quer pela forma como se estabelece a relação, que é sempre de
poder (autoritária ou participativa) ,quer pelo saber, ideia e conceitos que esta relação veicula.
Diante do fato que não há uma só concepção de educação, em que perspectiva
educacional se pode encontrar os fundamentos da contrapartida como forma educativa?
Se a contrapartida é forma de educação, o entendimento que desta se tem pauta-se na
perspectiva comportamentalista do reforço positivo de prêmio-castigo, quando premia com o
acesso ao serviço ou benefício social aqueles indivíduos que respondem afirmativamente ao
que é exigido e esperado deles no contrato estabelecido. Quando assim é entendida,
desaparece a ideia do acesso ao benefício social como um direito. Dessa forma, reatualiza-se a
velha ideia liberal — que se opõe ao acesso por direito — de que, para o indivíduo ter acesso,
é preciso que detenha mérito, provando que merece, e que dê algo em troca.
Quando assim se procede, exigindo do indivíduo-cidadão, por exemplo, a colocação
do filho na escola ou a apresentação de carteirinha atualizada de vacina para que receba o
benefício social, a relação do cidadão com o programa passa a se dar de forma submissa, sem
que o indivíduo possa participar, de fato, da decisão e dos meios para realizá-los. Se não
219

cumprir a regra estabelecida, prevista como contrapartida ao atendimento, será “castigado”


com o desligamento. Nesse caso, o poder presente na relação estabelecida entre a organização
(na qual o assistente social se apresenta como seu porta-voz) e a população passa a se guiar
pelo autoritarismo, que é forma de dominação.
Mas, a mudança de hábitos e comportamentos prescinde da participação reflexiva do
sujeito alvo da ação?
Luísa estimula a continuidade da nossa análise, considerando a contrapartida como
medida justa:

—Acho que quando há a possibilidade ou quando alguém se beneficia


de algo têm que haver uma contrapartida. Eu para ter um vencimento
ao final do mês tenho a contrapartida de trabalhar, e por isso ao nível
dos utentes, têm que haver uma contrapartida também. [...] E eu acho
que tem que haver sempre uma contrapartida, porque também tenho
para mim, isto não é cientifico, é empírico, porque se nós dermos
tudo, se o Estado der tudo, nós não vamos ajudar muitos, ou grande
parte daquilo que é a população que acede ao rendimento social de
inserção e à Ação Social; nós não vamos ajudá-los a perspectivar uma
vida de uma outra maneira, uma alternativa de uma outra maneira,
uma vivência de uma outra maneira.

Esta fala, que coloca em pauta a ideia da contrapartida, entendendo-a “como forma
justa de pagamento” ao benefício recebido pelo usuário, permite explicitar uma outra
dimensão dessa questão, que também está presente de forma significativa no Brasil. Refere-se
ao entendimento de que, “se o Estado oferecer tudo, sem exigir nada em troca, os usuários vão
se acomodar e não darão valor ao que recebem”.
Fátima, na sua fala, considerou a própria contrapartida como sendo um benefício. Luísa,
por sua vez, entende que a cobrança da contrapartida pode contribuir para que o indivíduo se
torne mais autônomo e inserido na sociedade, se for tomada como processo e não como uma
cobrança fechada em si mesma, o que se torna uma possibilidade importante a ser considerada.

— Isso depois passa por uma outra questão: passa pela questão
daquilo que é a inserção na sociedade, daquilo que é a sua
autonomização, daquilo que é o seu crescimento enquanto indivíduo.
[...] Agora, a autonomia, a autonomização é a capacidade de cada um
decidir por si, aquilo que quer fazer. É uma verdade... Mas quando
não se tem nada, eu também não sei se nós não temos... [...] da minha
experiência a coisa não funciona logo assim. Há famílias, há
indivíduos para os quais as contrapartidas são de acordo com aquilo
que são as capacidades daqueles indivíduos e daquelas famílias
220

naquela altura; se aquelas famílias não conseguem ter rotinas diárias,


não conseguem implementar rotinas diárias para os filhos, eu não
posso exigir que façam outra coisa a não ser que se comece por ali.
[...] Ou se por esta via, nós podemos, de alguma forma, ajudar aquela
pessoa, por via daqueles compromissos... [...] para conquistar
determinadas coisas, têm que fazer outras, e isso passa por uma
questão [...] que parece que é burocrática, que é do tipo toma lá dá cá
e a questão também não é assim. Eu não vejo assim, a contrapartida é
algo que está presente num processo ou deve estar, [...] que deve fazer
parte de um processo mais abrangente, de um processo de trabalho
com as competências de um indivíduo que está à nossa frente, de
perspectivar qual é o seu projeto de vida, de fazer com ele construa
um processo de construção identitária. No fundo, a contrapartida tem
que estar ou deveria estar inserida num processo mais vasto de apoio,
de ajuda, de construção, de acompanhamento. E não da
contrapartida... Por aí, se calhar, não era preciso um assistente social
para fazer isso, era um processo administrativo. Têm dinheiro, então,
têm que fazer isto, não fez, então tem uma consequência. Daquilo que
eu identifico que é a minha prática, daquilo que eu conheço que é a
prática dos meus colegas, a coisa não é assim tão, tão, tão rígida.

É importante dizer que há um pensamento muito presente no Brasil, até entre


assistentes sociais, de que é preciso sempre ser cobrado algo em troca do atendimento, sob a
alegação de que “tudo que é dado de graça a pessoa não valoriza” ou da importância de
sempre se cobrar algo em troca (“para se dar valor ao que se recebe” e “se paga algo, ele [o
usuário] não se acomoda”). Nesse entendimento, o acesso é visto como mérito e não como
direito, mas como favor que precisa ser reconhecido e valorizado por quem o recebe, sob a
forma de contrapartida.
É preciso que reconheçamos o autoritarismo presente nessa medida e saibamos
apresentar a crítica da perversidade que se esconde por detrás da denominada “educação por
adestramento do sujeito”.
Essa ideia de cobrança é criticada por Tília, quando apresenta uma situação de
apreensão e mesmo de sofrimento vivido por um grupo de pessoas sem abrigo da cidade do
Porto, que se sentem ameaçados diante dos cortes que vem se operando no RSI. E, a partir
desse entendimento, a entrevistada começa a expressar desconforto ao verificar em que o
lugar que os assistentes sociais e outros profissionais estão colocados ao terem que realizar a
cobrança da contrapartida.

— Eu vinha agora dessa festa dos sem-abrigo [provavelmente está se


referindo a uma festa comemorativa de final de ano] e agora eles
voltaram... Todos vão ser chamados para trabalhar, com um
221

rendimento que, ainda por cima... Com um rendimento que diminuiu.


E um deles estava cheio de medo que o chamassem para trabalhar,
para além das circunstâncias de saúde que ele tem; uma pessoa sem-
abrigo. Ele punha também a questão: “mas eu vou comer às
instituições, porque o dinheiro do rendimento mínimo não chega para
as refeições, se me põem a trabalhar longe, então eu fico sem tempo
para ir comer à instituição, então eu fico sem comer.” Veja lá o drama
que isto quer dizer. Aliás, já nem há estômago para isto. E eu acho que
os assistentes sociais conhecem esta situação, e vão fazer o quê? E não
há outra forma, senão o mínimo? E nós não temos nada a ver com
isso? [...] Neste momento a questão da inserção social coloca-se muito
importante, como uma guerra. [...] o novo desafio que é feito ao
Serviço Social ou às profissões do trabalho social, porque agora há
uma aresta concorrencial no terreno, há muita gente que trabalha com
o beneficiário, quer dizer, com os povos, se quiser.

A entrevistada, ao criticar o lugar ocupado pelos assistentes sociais na realização do


RSI na perspectiva de uma política ativa, aos moldes do que analisamos anteriormente,
começa a firmar e indicar outras possibilidades para a profissão, delineando quais poderiam
ser as saídas para os profissionais em geral e para os assistentes sociais em particular.

— Eu acho que estaria muito mais no nosso papel, nós legitimávamo-


nos muito mais se recriávamos um espaço mais próprio, se
trabalhássemos os laços sociais. E nesse contexto, sobretudo, de
exclusão extrema, aqueles que podem trabalhar são pobres
trabalhadores, e eventualmente esses podem se organizar e têm outros
meios para se organizar; não me preocupa. Agora o que me preocupa
neste momento, no campo do Serviço Social é que é aí que nós temos
um vazio, mas que devíamos estar lá, com eles que são exatamente
aqueles que, estão em situações de exclusão extrema, que são aqueles
que não têm voz, que não têm voz ativa, no sentido literal. Não têm voz,
nem ninguém os ouve, não têm sítio, não têm espaço, não existem
socialmente. Esta ideia, de fato, esta teorização da exclusão social,
como a ausência de laços, é em última instância a que muitos autores
trabalham. Penso que é aí que nós temos de entrar e que é também aí
que nós temos de criar espaços, se queremos de alguma maneira
defender, ajudar a criar as condições, a dar a volta àqueles que não o
têm. Por exemplo, é claro, que me preocupam as pessoas que
trabalham, e que ainda recebem o Rendimento Mínimo, só que isto quer
dizer que os que trabalham recebem salários tão baixos que ainda
precisam do rendimento de inserção. Não sei se têm este dado, mas há
pessoas no RSI e, [...] só que não sei a porcentagem; mas é muito grande
a percentagem de pessoas que recebem o RSI e trabalham em
simultâneo; mas a questão que se põe é a dos baixos salários.
222

Por meio de seu discurso, podemos assistir o que vem ocorrendo na prática, com a
implantação da política social ativa, de um “Estado ativo” neoliberal que, de um lado, delega
parte das suas responsabilidades à sociedade civil e, de outro, desenvolve políticas sociais que
vêm perdendo o sentido e o traço de políticas universais, ao focalizar o atendimento por meio
da cobrança do arrocho na operação dos critérios, dentre os quais a severa cobrança da
contrapartida. Primeiro, a organização cobra e fiscaliza o trabalho do profissional; depois, ao
ser acuado, este reproduz a cobrança na relação com o usuário.
Tília, ao recordar da sua história vivida na luta de construção para o estabelecimento
RSI como um direito e que, enquanto tal, não tinha relação com cobranças para o usuário
permanecer no atendimento, afirma que ali o próprio trabalho era visto como um direito. E
hoje, diante de toda a destruição que vê se realizando, coloca-se contra a cobrança da
contrapartida, assim como critica a postura profissional que se apresenta como justiceira e
moralizadora da questão social, uma vez que, nessa perspectiva, o profissional nem sempre
percebe que se perdeu a dimensão dos direitos sociais, comprometendo assim a possibilidade
de realização de um trabalho com participação dos usuários. Ou seja, um trabalho profissional
que contemple o processo. Diz ela:

— Como é que eu vejo isto? Eu via, numa fase quando estávamos


muito entusiasmados, numa primeira fase do Rendimento Mínimo, eu
achava que era um espaço profissional quase perfeito. Eu achei. Eu
era uma entusiasta muito grande do rendimento mínimo, exatamente,
por causa da inserção. Porque acho que criava um novo campo de
intervenção profissional. Ainda por cima, porque veio acompanhado
de guiões, de uma filosofia, de uma metodologia que me parecia que
era possível nós fazermos uma viragem desse assistencialismo de dar
dinheiro, do dar de uma forma que poderia levar à criação de uma
cultura atravessada pelos novos valores que ia promover. Quer dizer,
criava as condições para nós promovermos a criação da cultura da
inserção visando à autonomia das pessoas. Não se cobraria a
contrapartida, porque era um direito. Mas o que acontece é que a
sociedade não quer este caminho, a sociedade portuguesa não fez este
caminho, nem os profissionais, no meu ponto de vista. Quando digo
isto, estou a falar em termos gerais, como é evidente. Não se fez aqui
um caminho de interiorização de um caminho na cultura de inserção.
Isto quer dizer o quê? Que as pessoas teriam direito à inserção, como
tinham a uma prestação mínima, tinham de ter direito também à
inserção. E não se punha como contrapartida, punha-se como um
direito. Eu penso que passados de 20 e tal anos da instituição desta
medida política, eu já não penso assim. Toda a reflexão que tenho
vindo a fazer, ao longo deste tempo, eu acho que levou este tipo de
política para uma moralização, para uma obrigatoriedade, para uma
imposição a que os assistentes sociais foram arrastados. Portanto,
223

neste momento, tanto me faz pensar em termos de prestação, como em


termos da inserção, acho que o que é dominante neste momento, é
uma posição do Serviço Social justiceira e moralizadora. [...]
Exatamente, a pessoa não tem dinheiro, então tem que trabalhar, ora
isso não tem sentido, se trabalhasse tinha um salário, não tinha o
rendimento mínimo.

Essa apreensão, que leva ao desconforto e à reflexão para buscar saídas de como
reverter o quadro atual, é compartilhada por Branco e Amaro (2011, p. 675-676), os quais,
através de análise de três pesquisas realizadas junto a assistentes sociais e usuários de
organizações sociais de Lisboa, buscam entender o que está acontecendo no atendimento à
população hoje naquele país. Ao analisar a fala de uma assistente social que trabalha no
atendimento social de um Serviço de Assistência Social, os autores assim se expressaram:

Parece que há qualquer coisa invertida quando os assistentes sociais do atendimento,


que é o lócus por excelência de construção de um espaço de aproximação e
compreensão do utente, assinalam a falta de tempo e de condições para explorar as
situações individuais, para identificar as causas dos problemas e para relacionar as
situações umas com as outras de forma a equacionar respostas colectivas para os
problemas. Ressaltou que os assistentes sociais não estão a fazer este trabalho
porque o seu tempo é subsumido na linha de montagem dos atendimentos e da
atribuição dos subsídios. Nessa ‘luta’ não chegam sequer a ter uma percepção sobre
quais são os resultados do seu trabalho. Parece que o Estado Social activo produz as
condições sociais e institucionais para um “Serviço Social activo”, e
simultaneamente para um “Serviço Social fordista”.

A questão do trabalho mecânico feito sem pensar, do fazer por fazer, também apareceu
com muita força nos depoimentos das entrevistadas brasileiras.
No Brasil, não vivemos sob o domínio do workfare; portanto, aqui não há a cobrança
do trabalho como contrapartida, mas há outras condicionalidades exigidas do usuário para a
sua permanência no atendimento: o cumprimento de sua realização por parte dos usuários é
“fiscalizada” pelos profissionais de várias formas, dentre as quais também aparece
evidenciado o jeito tarefeiro e mecânico de sua operação.
Graziela expõe uma situação de seu conhecimento, na qual a contrapartida é tratada
pró-forma pelos profissionais, quando o que interessa é que o indivíduo cumpra a obrigação
prescrita, não importando a forma e o conteúdo veiculados através dela.

— No Creas que tem em São Paulo... As famílias que estão com


processo de suspeita no Judiciário, então, a contrapartida para ter seu
filho de volta é ir aos trabalhos socioeducativos dos Creas. Aí, é a
parafernália total, porque não pode ir toda semana das 2:00h às 5:00h,
e os Cras também não mudam os horários, fazendo um esquema de
224

compensação com os profissionais, mas aceita a possibilidade da


pessoa ir uma vez por mês. Então, esses trabalhos de grupos
socioeducativos são absolutamente formais. O representante da
família vai uma vez por mês, o trabalho de grupo socioeducativo não
tem a continuidade. Então o grupo que participou numa quarta-feira,
na outra quarta-feira o processo do grupo continua, mas as pessoas
que estão lá são outras e o assistente social assina parecer no final do
trabalho, dizendo que a pessoa compareceu a tantas reuniões. Eu fico
pensando como é essa discussão nossa em relação a essa
contrapartida, porque a contrapartida aqui é da família que está com
alguma suspensão do seu poder familiar em função de uma suspeita de
abandono, maus tratos, negligência. Então, o Estado teria que dar
algum tipo de orientação para esses pais poderem rever, mas...

Diante da situação exposta, podemos perceber que desde o horário da reunião até os
assuntos tratados não têm relação com o sentido da contrapartida colocada, cabendo à pessoa
envolvida unicamente se adequar às condições impostas.
Como contraposição a esse jeito mecânico de cumprir uma regra de contrapartida,
através de um exemplo apresentado a seguir, podemos indicar como poderia se dar a atuação
do profissional que dá sentido à realização da regra, no caso a contrapartida, visando
contribuir para mudança de valores, já iniciada anteriormente por Luísa. Aqui aparece como
através do cumprimento de uma contrapartida, poderia ser realizado um trabalho de cunho
educativo numa outra perspectiva. Essa discussão surgiu mediada pela questão de fundo de
como é cumprir a regra em si mesma e como deveria ser um trabalho comprometido com a
transformação, interpretando a demanda colocada à luz de uma reflexão crítica. O diálogo se
realizou da seguinte forma:

— Numa das supervisões que eu dei para os alunos, estava discutindo


o ECA e que não se deve bater em criança, aí eu falei “por que, você
acredita que os 25 pais que você tinha lá, eles não sabiam que não
podiam bater nas crianças? Você já discutiu por que eles ainda usam
bater? Eles sabem substituir a palmada e a cinta pela conversa?”
“Como assim, professora?” Eu falei: “Esse é um valor colocado que
você tem que substituir; a palmada e o uso da cinta pela palavra.” Mas
para as pessoas fazerem isso, elas têm que ter fôlego, sustentação. Não
é só uma questão legal de dizer que não pode fazer, mas você tem que
mudar valores culturais (Graziela).

— Tem que mexer com a memória. Ela tem que esquecer que ela fala
que a palmada foi boa para ela (Isaura).
225

— Como é que você lida com isso? “Meu pai me bateu e eu não virei
malandro. Por que, então, que a palmada que eu dou hoje não vai fazer
meu filho não virar malandro?” Eu penso hoje, como a gente coloca
essa reflexão sobre a contrapartida na seleção socioeconômica, nos
trabalhos do PETI? Também tem isso, os pais têm que comparecer às
reuniões formais e não às reuniões que tenham um conteúdo mesmo
do que significa a exploração do trabalho infantil (Graziela).

— Você falou em PETI e eu me lembrei... Ontem eu fui para Minas e


eu parei na casa da irmã do meu marido e o filho dela estava lá muito
bravo com a vida porque ele tem um filho com 15 anos que teve um
filho com uma menina de 19 e a semana passada ele ficou sabendo
que ela vai ter outro e ele é avô dos dois. O menino e a menina
resolveram ter outro. Um dia, ele ficou bravo, brigou, e a menina
entrou na justiça, pedindo pensão, porque pelo ECA o menino não pode
trabalhar, e o juiz determina que o avô pague. Não tem intermediação,
não tem discussão. O cara tem dois filhos e não... (Isaura).

— Ele não aprende a se responsabilizar nunca. (Graziela).

Isaura participa desse debate, apresentando as seguintes considerações sobre as


dificuldades existentes para o cumprimento da contrapartida:

— A discussão da contrapartida é muito complicada do jeito que ela é,


do jeito que a política é. Não tem escola para todo mundo, não tem
recurso saúde para todo mundo e a escola é fundamental e a vacinação
é fundamental [refere-se às contrapartidas do Programa Bolsa
Família], mas não deveria ser necessário fazer isso. Deveria ter escola
para todo mundo, mas nem todo mundo está na escola, deveria ter
vacina... Não é garantido o direito à escola, não tem escola para todo
mundo. Eu acho que essa discussão é complicada demais, como é que
você discute, como é que você implanta?

A entrevistada expõe uma situação em que se evidencia a falta de acompanhamento e


controle por parte da escola em relação à presença de seus alunos, o que acaba por questionar
esse tipo de exigência pelo Programa Bolsa Família. Diante desse exemplo, podemos perceber
a dificuldade vivida pelos usuários para cumprir o contrato estabelecido da contrapartida.

— Outro dia aconteceu que a moça que trabalha lá em casa contou e


era uma coisa inacreditável. Ligaram para casa dela, para dizer: “Por
que a filha não estava indo a escola?” Ligaram da escola, e aí ela
falou: “Como minha filha não está indo à escola? Todo dia a perua
pega ela e depois traz para casa, e ela faz lição de casa.” A escola
disse: “Não, ela não está vindo!” Aí ela falou: “Qual o nome da
226

professora dela?” Aí a mãe da menina perguntou o nome da


professora, e aí eles disseram: “Eu vou ver e depois eu ligo para a
senhora.” Conclusão: a menina estava frequentando a sala onde o
nome dela não estava na lista, o nome estava na lista de outra
professora, e a menina estava na sala de aula havia três meses
passados já, e constando como falta. Aí a professora fala assim “eu
faço chamada e ela nunca disse” “a senhora não me chamou.” A
menina de seis anos não falou. A coisa é muito louca. [...] A
contrapartida é isso: você não leva na escola, bloqueia seu cartão. Não
quer saber por que, se leva ou não leva. Não quero nem saber se tem
escola perto ou se está na sala errada. Isso é real, aconteceu com a
filha da moça que trabalha lá em casa.

Eunice, em relação às cobranças e aos controles como condição de permanência no


benefício, toma como alvo de sua reflexão uma situação que viveu e a partir da qual apresenta
uma rica problematização acerca das implicações da contrapartida na vida dos usuários, assim
como explicita o controle do Estado nela contida.

— Eu trabalhei um período no Judiciário, em um programa


creche/escola para filho de servidores. Para os servidores até o nível
de escreventes recebe um “X” valor para ter a criança na escola e
aquele dinheiro tem que ser usado para isso e mensalmente ele precisa
provar que a criança frequentou a escola. Era uma briga direita porque
algumas pessoas achavam que era isso mesmo, o judiciário está dando
dinheiro para ele e ele tem que por o filho na escola. É o fim do
mundo exigir essa contrapartida. Por quê? Primeiro, quem tem que
cuidar do filho é o pai e a mãe, decidir se ele vai precisar de dinheiro
para comprar uma comida, se ele vai precisar do dinheiro para pagar
um cuidador para olhar aquela criança, se ele prefere deixar com um
cuidador até uma determinada idade do que deixar numa escola em
período integral. A pessoa tem que ter autonomia, mas o
Judiciário/Estado neste caso controla se está ou não na escola.

Como decorrência de sua análise, ela conclui que a contrapartida é uma forma de
controle que discrimina, porque é dirigida à população pobre e ainda merece muito debate,
para que se possa de fato entendê-la de forma mais profunda.

— É uma invasão na privacidade da vida da pessoa que cada vez mais o


Estado está fazendo e cada vez mais vem sendo judicializada, tanto
essas questões do controle de um “benefício” como em outras esferas
da vida privada o Estado está invadindo cada vez mais. Cada vez mais
estão aprovando legislações para controlar quem está tomando conta do
filho. Eu não estou dizendo que essa criança não deve ser protegida. Se
o seu direito for violado ela tem o direito de ter um espaço que garanta a
proteção, mas é o cúmulo da invasão da vida das pessoas que vem
227

acontecendo, e “preferencialmente” você invada a vida dos pobres. Se


você pegar, por exemplo, denúncia de crianças com problemas nas
escolas, o que chega na justiça? Você acha que da classe media, media
alta chega? Não chega. A escola denuncia para o Conselho Tutelar, que
manda para a psiquiatria ou psicologia, que manda para o judiciário
esperando o que a justiça dê um “corretivo” para aquele pai daquela
criança, para ela não dar mais problema na escola. E qual é a função da
escola? Ela está repassando para o judiciário um papel que lhe cabe na
educação, na relação com essa família, seja lá de que forma ela vai
desenvolver. Eu acho muito sério; a questão da contrapartida vai ser um
trabalho para se investigar muito.

Ao final, a entrevistada coloca várias e sérias questões que não têm sido bem tratadas
pelas instituições envolvidas, pois tramitam de mesa em mesa, de lugar para lugar, em um
jogo de “empurra-empurra”. Mais uma vez, aparecem em cena questões tratadas pró-forma,
através do encaminhamento administrativo, reforçando a ideia do produto, pois não se
consideram os processos em pauta nas situações.
Nesta pesquisa, em relação à questão da cobrança da contrapartida, considero que a
contribuição deste estudo se apresenta sob a forma de problematização em função dos
entraves à sua realização, que acabam por colocá-la sob suspeita e até mesmo desmoralizá-la
como meio de responder aos objetivos educativos pretendidos oficialmente, e que, por vezes,
o profissional não questiona e simplesmente cumpre como ordem.
Com esta breve discussão, podemos perceber que ainda há muito que pesquisar sobre
as contrapartidas e sobre o que se esconde por detrás delas, uma vez que não são apenas uma
regra ou um critério, mas uma forma de controle e dominação. Para os usuários, são forma de
treino do comportamento submisso, paciente e conformado, sempre tão conveniente para a
continuidade da exploração do sistema vigente.
Sua realização implica leituras das situações, porque é execução, intervenção
profissional. Parece que a contrapartida chega aos atendimentos mais para dificultar o acesso,
ao burocratizá-lo, do que para algo mais. Significa mais entrave a ser respondido pelo
indivíduo que deseja ter acesso a alguns programas e serviço sociais. Ao impor tantas
condições a quem terá tantas dificuldades a transpor, que aqui aparecem como simples
exemplos, essa medida já representa, em si, a exclusão de muitos que desistem no meio do
caminho, ao terem que ir atrás das comprovações solicitadas.
Embora a justificativa oficial se refira à contrapartida como mal necessário para
realizar mudanças de comportamento, essa exigência contém perversidades que necessitam
ser mais bem estudadas e explicitadas.
228

Convidei Eunice para fechar esta seção, pois faz decisiva questão para reflexão:

— Eu acho que temos que enfrentar essas questões da contrapartida.


Porque que para o pobre tem que ter contrapartida, porque que ele tem
que provar que o filho está na escola? É uma tutela do Estado sobre a
vida do sujeito.

4.4.5. Os procedimentos e instrumentos de operação da seletividade de acesso aos serviços e


benefícios sociais

Este estudo pode ser colocado no campo da problematização da instrumentalidade


profissional, ao tentar explicitar como a teoria impregnada de intenções se apresenta em atos
contraditórios na ação cotidiana do assistente social em diversos espaços sócio-ocupacionais
da profissão que operam a seletividade de acesso aos serviços e benefícios sociais visando à
realização do projeto profissional, este entendido como um produto coletivo da categoria dos
assistentes sociais brasileiros.
Meu esforço nesta pesquisa é iluminar como se dão e o que se esconde por detrás das
ações cotidianas dos assistentes sociais na realização de processos seletivos, para além da
imediaticidade, como estes profissionais entendem os processos sociais presentes e atuantes
na sua intervenção e de que forma têm lidado com aqueles processos na operação concreta.
Entendo, com Guerra (1999, p. 8), que a instrumentalidade do Serviço Social “é
um campo saturado de mediações que não foram suficientemente discutidas na e pela
categoria profissional”.
Mas, embora a produção de textos e pesquisas a respeito do instrumental técnico-
operativo na perspectiva histórico-crítica seja ainda escassa e dispersa, não posso deixar de
reconhecer o sério trabalho que vem sendo realizado por vários profissionais no sentido de
responder a essa demanda. Dentre eles, destaco a produção bibliográfica de Campagnolli
(1993), Faleiros (1980, 1985), Fávero (2003, 2009), Guerra (1999, 2000a, 2000b), Mioto
(2001, 2009), Santos (2005), Sousa (2008), Torres (2007, 2009), Trindade (2001),
Vasconcelos (2003) e Pires (2007). Também não posso deixar de mencionar a qualificada
produção bibliográfica no âmbito dos estudos sociais e estudos socioeconômicos, que vem
sendo produzida motivada pela discussão da perícia social como atribuição privativa do
assistente social em Fávero (2003, 2009) e Mioto (2001, 2009).
229

Partilho com Guerra (1999, 38-39) o entendimento da instrumentalidade como suporte


do fazer profissional que vai muito além do formalismo metodológico, pois tem outro
fundamento ao se dirigir à apreensão das condições e das possibilidades visando à construção
de respostas profissionais às situações colocadas.

Se o “fazer” do assistente social é dado pela sua instrumentalidade, pela


manipulação de variáveis empíricas, esta dimensão da profissão, sendo a mais
desenvolvida, é capaz de designar os processos que se manifestam no âmbito da
profissão, dentre eles, as racionalidades que a sustentam. [...] Porém, a racionalidade
não se reduz à concepção instrumentalista da razão, ou seja, a adequação dos meios
às necessidades imediatas, cujos resultados independem dos fundamentos que os
determinam. Neste sentido, há que se considerar tanto os supostos que estão a
balizar as ações dos profissionais, os projetos e perspectiva de classe nos quais se
apoiam e, ainda, se e em que medida a modalidade da razão que sustenta as ações
profissionais permite não apenas ultrapassar as ações instrumentais, como, ainda, a
apreensão das condições e possibilidades que a situação contém, sua negatividade
(grifos da autora).

A racionalidade que dá suporte à concepção de instrumentalidade apoiada por nós e


defendida pela autora pauta-se na “razão dialética, que afirma a cognoscibilidade da essência
contraditória do real” (COUTINHO, 1972, p. 17). Razão que se coloca na direção de apreender a
realidade nas determinações que a constitui nos seus diversos movimentos.
Pautada nessa apreensão Guerra (1999, p. 169) entende que

os agentes profissionais, enquanto desenvolvem uma atividade, não são apenas


técnicos, como também críticos, já que o domínio do instrumental requisita-lhe um
conhecimento das finalidades e das formas de alcançá-las, e estas não se encerram
na razão de ser do Serviço Social. Antes, incorporam a razão de conhecer a
profissão, suas condições e possibilidades.

Em outra direção, porém, quando se “atribui autonomia às metodologias de ação e ao


instrumental técnico, ao separá-los e torná-los independentes do projeto profissional, o
assistente social acaba por transformar o que é acessório em essencial”; aí se explicita o
pensamento positivista que reduz as múltiplas determinações que aparecem nos fatos,
fenômenos e processos à dimensão técnica, resultando numa racionalidade formal (GUERRA,
1999, p. 169). O pensamento racionalista formal não aceita a unidade teoria-prática, uma vez
que o entendimento é o da “teoria, reduzida a um método de intervenção e caucionada pela
experiência, ao extrapolar o âmbito do pensamento, objetiva-se numa prática burocratizada”;
o método, nesse sentido, passa a ser entendido como conjunto de procedimentos a serem
adotados na ação (GUERRA, 1999, p. 171).
230

Tendo em vista que a profissão apresenta um caráter eminentemente interventivo,


pode-se pensar que,

ao exercer funções executivas, o assistente social pensa poder eximir-se da reflexão


teórica in totum e fixar seu foco de preocupações no seu cotidiano profissional, para
que os modelos analíticos e interventivos, testados e cristalizados pelas suas
experiências e de outrem, são suficientes (GUERRA, 1999, p. 170).

Quando assim se entende, entretanto, a prática passa a ser sinônimo de burocracia, ao


ser realizada sem a crítica dos fundamentos que lhe dão vida e sentido, e a experiência
cotidiana passa a ser a grande referência do caminho a ser seguido. Assim, o fazer profissional
torna-se um conjunto de procedimentos, quase que um ritual de reiteração do passado e da
continuidade naturalizada.
Em relação à burocratização, Coutinho (1972, p. 27-28) explica que esta acontece

quando determinados procedimentos práticos são coagulados, formalizados e


repetidos mecanicamente; com isso, empobrece-se a ação humana, que é desligada
de sua relação com a realidade (transformada na práxis burocrática em simples
objeto de manipulação) quanto com suas finalidades (cuja racionalidade ou
irracionalidade a práxis burocrática não questiona). Esse caráter repetitivo da ação
burocratizada bloqueia o contato criador do homem com a realidade, substituindo a
apropriação humana do objeto por uma manipulação vazia de ‘dados’, segundo
esquemas formais pré-estabelecidos. [...] Na prática burocrática, o conteúdo se
sacrifica à forma, o real ao ideal, o particular concreto ao universal abstrato. A
burocratização, assim, aparece como um momento da alienação, na medida em que
fetichiza determinados elementos da ação humana, transformando-os em ‘regras’
formais pseudo-objetivas. E sua generalização serve diretamente à perpetuação do
capitalismo, pois reproduz incessantemente a espontaneidade da economia de
mercado, desligando-se da totalidade (do conteúdo social, das possibilidades de
renovação, da finalidade humana do todo social) e submetendo todas as contradições
reais a uma homogeneização formalista.

A metodologia, os instrumentos, procedimentos e estratégias devem ser entendidos


como meios que a profissão dispõe para a realização do projeto profissional que, iluminados
pela teoria que os informam, explicitam determinado jeito de se colocar a profissão na
sociedade. Assim, a “energia dos agentes potencializada no instrumental permite a
operacionalização do projeto” (GUERRA, 1999, p. 169).
Esse entendimento é compartilhado com Trindade (2002, p. 27), que afasta “qualquer
possibilidade de autonomia do instrumental, pois ele também compõe o projeto profissional,
como elemento fundamentalmente necessário à objetivação das ações profissionais; assim, o
instrumental é parte integrante da direção teórico-política da prática profissional”.
Nessa perspectiva teórica, não há um método para conhecer e outro para agir; é o
mesmo em outra dimensão. O método, por sua vez, não tem existência em si mesmo, uma vez
231

que se materializa pela ação de um sujeito que deseja apreender um objeto em seus elementos
constitutivos. Ou seja: conteúdo e forma caminham sempre juntos.
O Serviço Social se constitui pelas dimensões teórico-metodológica, ético-política e
técnico-operativa, que, embora distintas, são indissociáveis, ao necessitar das demais para se
sustentar. Cada uma dessas dimensões, porém, quando evidenciada, se expressará a partir de
sua natureza, fazendo com que as demais, embora caladas, ali permaneçam, alicerçando as
demais. Articular essas dimensões como unidade é tarefa árdua que se apresenta à profissão
como grande desafio a ser enfrentado através das pesquisas e no trabalho cotidiano do
assistente social.
Parto do pressuposto de que a intervenção tem profunda relação com a teoria. A teoria
só não teria nada a ver com a prática se perdesse seu poder explicativo, o que não é o caso.
Mais do que nunca, a crítica fundada em Marx e seus seguidores tem fornecido valiosos
instrumentos críticos para entender a sociedade capitalista e o presente, para que se possa
decidir e envolver na criação do futuro que queremos para nós e para a humanidade desde já.
Na perspectiva crítica dialética, na qual me referencio, não existe, portanto, a
dicotomia entre teoria e prática. A propósito, Brites e Sales (2004, p. 16) esclarecem:

As categorias de análise da realidade social são teóricas justamente porque


expressam modos de ser realmente existentes. A teoria e suas categorias são o
concreto pensado. Essa construção teórica é o resultado do método dialético que
busca captar o movimento do real e reproduzi-lo intelectivamente. Portanto, na
perspectiva de análise crítico dialética, não há separação entre teoria e prática.

A teoria, no entanto, parece ficar dissociada da prática, quando não sabemos ou temos
dificuldades de lidar com as mediações. 96 A mediação é constitutiva do real e dimensão do
método dialético responsável pela realização das moventes passagens e “costuras” entre a
universalidade e singularidade do objeto em pauta e na ultrapassagem da aparência à essência
por aproximações sucessivas na busca de apreensão da totalidade, configurando as contradições.
Para enxergar nas demandas individuais as dimensões universais e particulares que contêm, é
preciso entender e saber lidar com leituras que, ao incorporar a categoria da mediação como
elemento do método dialético histórico, articulam dialeticamente a aparência e a essência, assim
como a apreensão da universalidade, das particularidades e das singularidades.

96
Mediação é uma dimensão do método dialético crítico e também categoria ontológica e, portanto, constitutiva
do real, responsável pelo movimento, pelas passagens do imediato ao mediato e pelas passagens que articulam o
singular, o universal e o particular. Sem as mediações, as análises ficam soltas, sem costuras e sem movimento
(PONTES, 1995). A mediação permite ao profissional relacionar teoria e prática. Pode parecer que a teoria na
prática é outra coisa. Mas a teoria na prática é a mesma, em outra dimensão, se tivermos recursos teórico-
metodológicos para realizar as passagens que relacionam elementos singulares e universais.
232

Tendo em vista que a prática não tem um sentido em si, torna-se necessário, então, para
entender seu real significado, ir para além da sua imediaticidade, da aparência, enfrentando os
desafios postos pelo cotidiano com ferramentas críticas que levem à superação das primeiras
impressões. Não é possível tratar de instrumentos, estratégias e procedimentos separados dos
fundamentos que lhe dão sentido e direção. Tratar da dimensão técnico-operativa é tratar de
meios para a objetivação de projetos. Nessa perspectiva, os instrumentos devem ser vistos como
recursos, meios de que o profissional dispõe para, fundamentado na teoria (concreto pensado),
transformá-la em atos, direcionado e orientado pelos valores e princípios pautados no projeto
profissional, o qual imprime uma direção política à prática profissional.
O instrumental técnico-operativo é repertório interventivo do Serviço Social, de que seus
agentes se utilizam para intervir nas expressões da questão social, objeto da profissão, tendo como
referência o projeto ético político profissional. Como não há um único projeto profissional, não há
um único jeito de entender e abordar o instrumental técnico-operativo da profissão.
Esta breve análise indica que os meios não estão acima dos objetivos, mas a serviço
destes. Seu uso adequado certamente depende da habilidade do profissional para utilizá-los a
favor dos objetivos profissionais colocados.
O instrumental é construção humana, e tornar-se de fato meio para a realização dos
objetivos profissionais, orientado pelos valores e princípios do projeto profissional, implica
denso aprendizado, para que o profissional possa realizar leituras das situações singulares
vividas pelos indivíduos com os quais trabalha, localizando as determinações de classe — e
para que, com sua operação possam ser construídas relações democráticas propiciadoras de
troca de conhecimentos.
Ir da análise do Serviço Social para o exercício da profissão exige a incorporação de

um complexo de novas determinações e mediações essenciais para elucidar o


significado social do trabalho do assistente social. Sintetiza tensões entre o
direcionamento socialmente condicionado que o assistente social pretende imprimir
ao seu trabalho concreto, condizente com um projeto profissional coletivo, e as
exigências que os empregadores impõem aos seus trabalhadores assalariados
especializados (IAMAMOTO, 2009a, p. 39).

O Serviço Social é uma atividade regulamentada como profissão liberal segundo


parâmetros legais que lhe dão autonomia na condução do exercício profissional. No entanto,

o exercício da profissão é tensionado pela compra e venda da força de trabalho


especializada do assistente social, enquanto trabalhador assalariado, determinante
fundamental na autonomia profissional. A condição assalariada — seja como
funcionário público ou assalariado de empregadores privados, empresariais ou não
233

— envolve, necessariamente, a incorporação de parâmetros institucionais e


trabalhistas que regulam as relações de trabalho, consubstanciadas no contrato de
trabalho. Eles estabelecem as condições em que esse trabalho se realiza: intensidade,
jornada, salário, controle do trabalho, índices de produtividade e metas a serem
cumpridas. Por outro lado os organismos empregadores definem a particularização
de funções e atribuições consoante sua normatização institucional, que regula o
trabalho coletivo. Oferecem ainda, o background de recursos materiais, financeiros,
humanos e técnicos indispensáveis à objetivação do trabalho e recortam as
“expressões da questão social” que podem se tornar matéria da atividade
profissional. Assim as exigências impostas pelos distintos empregadores, no quadro
da organização social e técnica do trabalho, também materializam requisições,
estabelecem funções e atribuições, impõem regulamentações específicas ao trabalho
a ser empreendido no âmbito do trabalho coletivo, a além de normas contratuais
(salário, jornada, entre outras), que condicionam o conteúdo do trabalho realizado e
estabelecem limites e possibilidades à realização dos propósitos profissionais
(IAMAMOTO, 2009a, p. 38-39).

Essa análise não deixa dúvidas quanto à complexidade envolvida no exercício da


profissão: é mesmo um desafio ao profissional colocar-se nesse exercício de forma crítica e
comprometida com os interesses dos usuários dos serviços e benefícios sociais. As entrevistas
desta pesquisa ilustram, com inúmeros exemplos, como se dá esse desafio na atualidade.
Vale também ressaltar que os instrumentos básicos tradicionalmente utilizados pela
profissão para realizar seus objetivos no trabalho direto com a população usuária dos serviços
sociais são a observação, a entrevista, a reunião e os registros escritos. Essas ferramentas, não
exclusivas do Serviço Social, são recursos colocados à disposição de todas as profissões que
lidam com as relações sociais para a consecução de seus objetivos.
Os profissionais orientados por fundamentos teórico-metodológicos e ético-políticos
se utilizarão dos instrumentos e estratégias para dar materialidade ao projeto profissional e ao
projeto da organização social que os contratam, que podem se complementar ou se contrapor.
“Projeto”, aqui, é entendido não como previsão do futuro, mas como antecipação do futuro.
Diante das demandas das organizações sociais nas quais trabalham e da população
usuária dos serviços sociais, os profissionais devem ser capazes de imprimir direção e
conteúdo no manejo dos instrumentos profissionais.
Dependendo dos fundamentos que informam a ação profissional, o instrumento será
utilizado e manejado de determinada forma. A título de mais um exemplo, podemos citar a
observação, que, na perspectiva histórico-crítica, é utilizada como forma de apreensão das
singularidades das situações e como forma de obtenção do conhecimento provisório, aparente,
disfarçado: o profissional, ao se utilizar da mediação, poderá caminhar no sentido de superar a
imediaticidade posta, relacionando questões de classe social, gênero e idade presentes, para
adquirir um conhecimento mais totalizado, balizando até as contradições presentes. A
observação, se informada por fundamentos da perspectiva positivista, será utilizada pelo
234

profissional para descrever o que ele vê e ouve, pautado por uma relação sujeito-objeto que se
pretende neutra, isenta de juízos de valor.
A entrevista, dependendo dos fundamentos que informam a ação do profissional,
poderá ser entendida e realizada como simples sequência de procedimentos — como simples
interação humana ou tratada e manejada como relação de poder, que poderá ou não reproduzir
as relações sociais vigentes, quando realizada com participação ou não, valorizando o
processo e o produto ou não.
O manejo do instrumento sempre expressa, independentemente da consciência do
profissional, uma perspectiva educativa, no sentido de interferir na forma de ver, sentir e agir
da população atendida. Não existe uma única perspectiva educativa. É com o manejo dos
instrumentos que se transformam princípios, valores e teoria em atos, segundo a forma e os
conteúdos que através deles veiculamos.
Aqui, as assistentes sociais falam dos instrumentos que utilizam para operar a triagem
e a seleção socioeconômica nos espaços sócio-ocupacionais onde trabalham. Nesse contexto,
comparece a entrevista, a visita domiciliar, o tratamento que vêm dando aos documentos,
fichas e papéis. Assim como aparece o uso da computação que se interpõe cada vez com mais
força nas relações sociais, trazendo prejuízos à relação de troca entre o profissional e os
usuários dos serviços sociais, comprometendo a autonomia profissional.
Quando discorrem sobre a operação dos instrumentos, aparece como entendem a
profissão e o tratamento dado às expressões da questão social com as quais se deparam no
cotidiano — que, de fato, surge através das diversas questões ora tratadas e de outras tantas
que não trouxemos à tona nesse estudo.
Neste momento, não é possível apresentar uma análise, passando por dentro da
operação instrumental que uma análise acurada e profunda exigiria. Mas indico, por meio da
problematização apresentada, algumas lacunas que deverão ser preenchidas e tratadas pelo
Serviço Social, em próximas pesquisas sobre o tema.
A entrevista é mencionada nos depoimentos das três assistentes sociais portuguesas
que operam diretamente a seletividade de acesso como o instrumento básico utilizado. Em
relação ao uso da visita domiciliar, fala-se de sua utilização como recurso eventual. Enquanto
Luísa a usa com maior frequência, embora não em todas as situações, Alice e Fátima
empregam-na esporadicamente.
Em relação à inscrição de candidaturas de acesso, a forma on-line aparece no trabalho
de Fátima que atua em uma universidade, enquanto no discurso de Alice consta de forma
aberta e informal, pois depende da ocasião em que a necessidade se apresenta ao usuário que
235

se trata no Instituto de Oncologia. Luísa, que trabalha na Santa Casa de Misericórdia, tem que
observar as exigências de acesso, ora da Ação Social da instituição, ora do RSI, pois,
dependendo daquilo que aciona para realizar o atendimento dos que demandam pelos
serviços, terá diferentes exigências a cumprir.
Em relação ao uso dos instrumentos utilizados na realização da triagem ou seleção
socioeconômica, as entrevistadas assim se manifestaram:

— Na seleção eu uso as entrevistas, as visitas, a pesquisa documental


e nalgumas situações eventualmente um contacto interinstitucional,
que me dá… [...] Muitas vezes, há situações que nos aparecem que,
apesar da documentação pedida, apesar da visita, apesar da
entrevista... Não é em todas as seleções sociais, econômicas que eu
faço os procedimentos todos, tipo não vou fazer a visita domiciliária
em todas as seleções socioeconômicas, porque há situações que para
mim são claras, portanto, ir lá a casa não me vai trazer mais-valia,
nem maior elemento. Não é para perceber se a senhora têm móveis
bonitos, também, não é por ai. Se calhar, comprou numa altura em que
podia e agora não pode. O que importa é o agora (Luísa).

— É apenas a entrevista e a ajuda não depende da apresentação de


comprovativos, aqui a ajuda depende mais da relação criada e menos
do que as pessoas dizem. Se num determinado momento, e isso eu
explico às pessoas, tivermos duvidas sobre se o que a pessoa está a
faltar é verdade, aí, sim, peço os comprovativos, porque senão a
ajuda… (Alice).

— Normalmente, fazemos a entrevista ao aluno e a visita domiciliária,


eventualmente. [...] A nossa intenção nessa entrevista não é de
fiscalizar, não é essa a nossa intenção quando fazemos a entrevista.
Quando fazemos a entrevista é no sentido de conhecer a situação
relativa ao aluno, para ver até que ponto o que está ali declarado,
reflete efetivamente a situação do aluno. [...] Os alunos fazem as suas
candidaturas on-line, cada vez vêm menos aqui ao serviço. Alguns
deles nem sabe onde o serviço fica. [...] Mas, é também para o aluno
saber que nós existimos e que pode, em determinadas circunstâncias
que não estejam de acordo com a regra inicial, digamos assim, contar
conosco e pedir-nos algum apoio ou solicitar apoios que, às vezes, não
estão previstos, mas que nós podemos até apoiá-lo em algumas
circunstâncias. Nós tentamos fazer isto nas entrevistas e a intenção é
sempre essa, é o objetivo. Mais o objetivo de nos darmos a conhecer
do que propriamente fazer fiscalização. [...] A nossa entrevista aos
alunos também normalmente é nesse sentido, nem sempre é fácil
declarar por escrito, nem sempre o que é apresentado reflete
exatamente a situação socioeconômica daquele agregado (Fátima).
236

A maior tensão, no entanto, vem à tona quando se referem à utilização da visita


domiciliar, que é tratada por elas sob a forma de crítica cuidadosa, pois é percebida
claramente como forma de controle na história da profissão.
Quando empregada no sentido do controle, foi considerada como um mal necessário
para comprovar ou descartar hipóteses de fraude. Isso significa, afinal, um bom sinal, de que o
manejo dos instrumentos vem sendo alvo de críticas da profissão e dos profissionais que os
operam. Parece que, quanto mais controlado e fiscalizado é o trabalho de um profissional,
mais este reproduz essa relação com os usuários, utilizando-se com maior frequência a visita
domiciliar como forma de averiguação da verdade.
Alice, pautada por referências críticas, questiona a realização da visita domiciliar com
o objetivo de fiscalização e controle:

— Eu não faço visitas familiares. Penso que na Ação Social fazem.


[...] Na Ação Social, aí sim as pessoas percebem que os assistentes
vão ver o que tem ou não em casa para ver se realmente… [...] Eu não
acho correto, porque as coisas que as pessoas têm em casa podem ser
o reflexo, não podem invalidar uma ajuda, até porque a situação em
que a pessoa vive hoje tem a ver com o pedido atual, pode não ter a
ver com as condições que as pessoas conseguiram criar. Uma pessoa,
uma família que cria algumas condições como uma casa agradável etc.
demonstra mais razões para ser apoiada para progredir e para
melhorar. Acho que as pessoas não têm que ser porcos, sujos e feios
só porque são pobres. Eu acho que as pessoas podem ser pobres, ter
direito à ajuda e serem arranjadas e serem organizadas. Aliás, eu
considero que os pobres são muito mais organizados que nós, se não
fosse assim, não conseguiam sobreviver. Para sobreviver tem
estratégias muito mais eficazes que as nossas, senão como
sobreviviam? Como sobreviviam com 270 euros, se eu tenho
dificuldade em sobreviver com 1.500 euros? Como? É ginástica que
fazem, é estratégias que têm e alguns vivem com determinada
dignidade, com necessidade, mas com dignidade. E então, eles têm
mais competências que nós.

Luísa, que tem o trabalho mais controlado — digamos, mais fiscalizado —, se


comparado com as outras assistentes sociais, e em face do entendimento que tem acerca da
realidade portuguesa e do Serviço Social, conta como realiza a visita domiciliar; suas
justificativas para assim proceder são as seguintes:

— Também faço [visita domiciliar] para controlar, fiscalizar não,


porque eu não gosto dessa palavra. Mas, para controlar, faço. Em
situações destas, muitas vezes eles aparecem como vivendo
237

separados, tipo separei-me do meu marido e quando há duvidas, nós


fazemos uma visita nessa circunstância para perceber, e, às vezes, dá
resultado. Tratar dessa informação com o utente é muito delicado,
mas temos que trabalhar com ele. Em situações de acordos de
proteção aplicados em tribunal, que nos obrigam a acompanhar e a
ver regularmente as situações habitacionais. Em variadíssimas
situações, situações em que os utentes não se podem deslocar ao
serviço, isso é óbvio, nós temos que ser nós a deslocar em relação
aos idosos, deficientes, sei lá. Controle de acompanhamento e de
atendimento, sobretudo. [...] Às vezes, deveria partir sempre desse
princípio [o utente diz a verdade], mas às vezes, porque a entrevista
tem muitas incoerências, então, aí vamos ver. O profissional do
Serviço Social tem que ter conhecimento de muitas coisas, diante da
riqueza das situações que aparecem e tem que ter conhecimento de
muitas coisas porque facilmente pode ter uma situação onde fica tão
ignorante. Embora eu não tenha problemas, eu não domino tudo, mas
eu vou procurar saber sobre essa nova questão que apareceu. De
qualquer maneira nós temos que ver muitas questões. Não trabalha e
então? Mas recebe alguma prestação, não recebe? Não trabalha por
que não pode? Não está disponível, porque não tem qualificações?
Por que, por quê? E a pessoa responde, não, não, eu não trabalho
porque não há emprego, não consigo. Então, e o senhor encontra-se
inscrito no centro de emprego? Não? E então? E o senhor já se
deslocou alguma vez àquela instituição y ou z que de alguma forma
pode ajudar o senhor a encontrar um emprego? Não? Então, e o
senhor já tentou ir ao centro comercial, onde está aplicado no vidro
que “precisa-se de trabalho”? Como é que eu posso atribuir um
benefício a este indivíduo, se ele não traz nenhum documento sobre
se está efetivamente desempregado e está à procura de emprego.
Então, nesta circunstância, se ele diz que quer encontrar emprego,
ele tem que ir à instituição oficial, que não é aquela que sempre
arranja um emprego, mas é a oficial para trazer o comprovativo de
como estava inscrito. Ou seja, eu ou os meus colegas, nós temos que
dominar, muitas vezes, até para depois nos salvaguardarmos, porque
depois, em termos organizacionais, nós também temos auditorias e
temos que provar se cumprimos o regulamento ou não cumprimos.
Atribuímos de acordo com o regulamento ou não atribuímos,
favorecemos alguém ou descriminamos alguém porque não
gostamos, e essas questões para mim colocam se, aos outros colegas
não sei. Eu tento ter sempre presente a questão da justiça, da
igualdade. Procuro mas, se calhar, não consigo sempre.

Fátima faz críticas à fiscalização que acompanha a prática dos assistentes sociais ao
longo da historia, na realização das visitas profissionais:

— As visitas domiciliárias são mais para situações que nos levantam


muitas dúvidas, dúvidas de analise, dúvidas sei lá, de situações... Às
vezes, não apresentam renda nenhuma, rendimentos nenhuns e nós
238

dizemos, mas como é que você sobrevive, como é que você... Às


vezes, é mais fácil deslocar-nos nós, falar com o agregado familiar
como um todo, do que propriamente só com o aluno. Pronto, para
tentar esclarecer estas situações. A visita domiciliária é mais, não direi
que é para fiscalizar, mas é mais para confirmar situações. A
entrevista não, mas, nós não vamos visitar toda a gente, vamos visitar
àquelas situações que nos levantam dúvidas na análise.

A visita domiciliar também aparece com outras finalidades, colocando-se, portanto,


para além do controle. Essas outras formas aparecem na fala de Luísa e Alice.

— Faço visitas domiciliárias para situações de acompanhamento, para


situações de diagnóstico que não são puramente econômicas, porque
há questões que não são puramente de ordem econômica, e eu preciso
perceber, em termos de organização habitacional, da forma como a
pessoa, o utente interage comigo no seu espaço habitacional, às vezes,
para perceber a linguagem e a relação entre os elementos coabitantes,
porque no seu domicílio a comunicação é feita de determinada
maneira (Luísa).

— A visita domiciliária eu só a faço aqui para quando há pessoas que


estão a ser acompanhadas no domicilio, para discutir a nível de
domicílio e ver se as condições em que o utente está… [...]
normalmente são sempre visitas realizadas a pedido, que as pessoas
pedem porque as pessoas se sentem bem (Alice).

Tília, que não realiza o trabalho direto com a população atendida pelo RSI, reconhece
a importância desse debate com a expectativa de inovação, partindo da crítica do tanto que os
assistentes sociais servem para amortecer o descontentamento dos usuários que têm tido
cortes nos direitos conquistados:

— Pois, nesta questão é que nós temos de inovar, que é assim, nesta
mudança social o problema maior não é da falta de instrumentos
teóricos. Eu acho que, pelo menos, existem alguns. Há aqui uma
falta de mobilização, que eu não sei por que é em relação aos colegas
que estão no terreno. Eu entendo que, como há bocado disse uma
expressão, que é estão empacotadas, são almofadas realmente,
quando se cortam direitos.

A entrevistada reconhece que, para sair da situação em que se encontram, há


necessidade de que os profissionais se mobilizem politicamente
Podemos citar ainda o relatório como instrumento de registro do estudo realizado, que
se coloca como recurso político para lidar com as pressões e para dar acesso ao serviço ou
239

benefício social ao usuário, embora com o reconhecimento do tanto que é trabalhoso esse
caminho. Luísa já se referiu a essa estratégia em diversas passagens desta pesquisa,
designando-a como “informe”.
Alice refere-se ao encaminhamento de forma crítica, enquanto estratégia de
atendimento, quando avalia o que o usuário precisa e o que ele poderá encontrar nos diversos
serviços existentes na cidade. Ou seja: ela, por conhecer os serviços existentes, avalia se vale
a pena ou não encaminhar, diante das chances que o usuário terá ou não de ser, de fato,
atendido. Nas suas considerações, podemos perceber que o encaminhamento não é utilizado
por ela para se livrar das situações, mas como forma de atendimento.

— Às vezes, aparecem pessoas dizendo “Eu tenho direito”, achando


que devem ir à Ação Social, e então eu digo que podem ir, têm o
direito de ir, mas os critérios são estes, e lá eles estão a trabalhar com
estes mínimos, se você for lá... É possível outra solução, vamos
renegociar a sua divida, vamos ver com o banco como é que é, vamos
fazer assim, desta ou de outra maneira, não sei se me estou a fazer
entender. [...] Sim, para dizer às pessoas que elas têm razão, que elas
precisavam de ajuda, mas que as nossas ajudas são muito limitadas, e
ver se há outras alternativas... É isso que eu quero dizer, é assim
quando a pessoa recebe alguma coisa, eu sempre tento explorar... [...]
Outras vezes, quando há situações graves eu recorro mesmo à Ação
Social, se vão perder casa ou outra situação, recorro mesmo. [...] Eu,
por exemplo, não envio doentes oncológicos de classe média baixa,
com toda a vida reestruturada para a Ação Social, que não vale a pena.
Tento resolver aqui, estas a ver? Através das ajudas da Liga em
medicamentos etc. e através de associações não governamentais
porque se vão para a Ação Social perdem tempo, desgastam-se
quando já estão doentes, porque ficam mais doentes e não conseguirão
nada porque os nossos níveis para o auxílio aqui são muito baixos.

Em se tratando da seleção socioeconômica, cabe mencionar que os documentos


comprobatórios, a legislação e os critérios claramente definidos são instrumentos estratégicos
importantes a serem utilizados pelo profissional para facilitar o acesso dos demandantes aos
serviços e benefícios sociais.
Embora neste item tenhamos tratado formalmente dos instrumentos utilizados pelos
assistentes sociais para operar a seleção de acesso, a instrumentalidade compreende o domínio
de todos os elementos tratados neste estudo, se a perspectiva for a de apreendê-la na
totalidade da sociedade capitalista.
240

4.4.6. As pressões políticas atuantes no processo seletivo

Conforme venho tratando neste estudo, a seleção socioeconômica, através do seu


processo, realiza simultaneamente a inclusão e a exclusão do acesso aos serviços e benefícios
sociais, porque se constitui em instrumento privilegiado de controle social para tornar
aceitável a desigualdade social. A seletividade presente na política social pauta-se no discurso
da igualdade, mas, na prática, reitera a desigualdade social intrínseca à organização da
sociedade “como unidade de classes sociais distintas e antagônicas assentada em uma relação
de poder e exploração” (IAMAMOTO, 1985, p. 91).
A seleção socioeconômica é instrumento de caráter eminentemente político, embora
possa parecer à primeira vista que se trata de simples processo técnico entediante que visa ao
mero cumprimento de formalidade institucional.
A política social, como forma de enfrentamento da questão social, objetiva, dentre
outras intenções, o controle e o disciplinamento da classe trabalhadora, a partir do
reconhecimento pelos setores que representam o capital da ameaça que representa à ordem
social. Nesse quadro, aqui apenas esboçado, o Serviço Social é chamado a intervir de forma
legitimada desde sua origem, enquanto profissão, nas expressões da questão social,
transmutando questões de âmbito político em questões de domínio técnico.
A seleção socioeconômica operada pelos assistentes sociais tem esse caráter
essencialmente político, e não é pelo fato de ser operada pelo profissional, como atividade
profissional, que perderá esse caráter político: as contradições que carrega se expressarão de
outro jeito — agora aparecerão sob a forma de pressões de várias ordens que o profissional
terá que administrar, para esvaziamento da ameaça presente, uma vez que as organizações
sociais que contratam seu trabalho lhe delegam essa tarefa. Como a seleção é realizada caso a
caso, uma vez que a demanda e o tratamento já foram individualizados, as pressões serão
diretas, vindas de vários lados, conforme poderá ser percebido, a seguir, nos exemplos
oriundos da vivência das pessoas entrevistadas desta pesquisa.
Considero que o momento mais tenso e difícil vivido pelo profissional que realiza
processos seletivos é aquele que ocorre depois da divulgação do resultado da seleção. É
quando os indivíduos que não tiveram acesso tentam reagir do jeito que podem, na tentativa
de reverter a condição de não terem sido escolhidos para poder usufruir do serviço ou
benefício social que pleiteavam. A reação mais comum é aquela em que o candidato
desqualifica o processo, colocando em dúvida sua lisura.
241

As pressões, no entanto, não vêm somente sob essa forma direta, dos candidatos que
se sentiram prejudicados, mas chegam, também, através de seus “porta-vozes”, que fazem
ressoar seus questionamentos e pedidos pelas diferentes instâncias da hierarquia institucional,
visando reverter a situação de não acesso daqueles que passam a ser tomados como seus
apadrinhados. Os políticos e pessoas influentes, tanto no Brasil como em Portugal, interferem
e pressionam o acesso de seus afilhados, tentando usar sua autoridade e prestígio como
critério, na tentativa de incluir alguns indivíduos, em detrimento dos critérios e regras
estabelecidas para todos.
Das quatro entrevistadas portuguesas, é de Luísa que vem a maior contribuição para esse
debate, pois é quem apresenta com maior riqueza de detalhes as diversas pressões recebidas
pelos assistentes sociais como fruto do resultado da seleção de acesso, que têm que administrar
e responder aos solicitantes de explicações, que chegam via hierarquia institucional.
Luísa, inicialmente, diz que não tem sofrido pressões políticas. Porém, a cada exemplo
que traz, aumenta a tensão de quem a ouve, embora ela mesma já tenha se acostumado com
tais pressões, ao tratá-las como se fossem “normais” e “naturais” no seu cotidiano de trabalho.
Reconheço que, a cada situação exposta, teve a paciência de expor como tem lidado com elas.
Nas entrelinhas do seu discurso, podemos perceber o tanto que, por vezes, se sente sozinha e
frustrada ao ter que se defender das ingerências unicamente com sua argumentação
profissional a respeito do não acesso de determinado candidato. Assim procedendo, ao se
defender, acaba por defender também e, sobretudo, a organização na qual trabalha.
Exponho a seguir o diálogo inicial travado entre entrevistada e entrevistadora sobre
esse assunto.

— Eu pessoalmente, não tenho memória de ter tido alguma pressão


política porque eu trabalho no fim da cadeia, mas quando digo pressão
pode ser pressão de superior hierárquico (Luísa).

A entrevistadora lhe pergunta se nunca ninguém veio com carta de político para ser
atendido ou recebeu telefonema de algum político ou de uma pessoa influente para que... Ela
imediatamente responde:

— Isso, não, mas posso receber um telefonema de um outro de aqui,


diretor ou outro diretor, mas aí tenho um procedimento muito
institucional; isto de ser avaliado pela sua própria casa é sempre muito
complicado, mas tem a ver até com as minhas características pessoais,
aí há um critério, aí eu vou ao critério. Nessas situações em que,
242

hipoteticamente, eu posso achar que estou a ser pressionada, às vezes,


são pressões de apelo à hierarquia e, como eu conheço aquilo que é a
minha prática, então aplico o critério, porque é o critério que me vai
defender. Ou então, se eu também percebo que há o critério, mas
como eu já referi, também há a exceção, que eu posso utilizar e que
tem aquela carga muito grande de subjetividade e que eu acho que
isso, de alguma forma... Me vai trazer um problema, eu não vou ficar
sozinha com ele. Isto depois depende muito das situações, então, além
da carta, se é um pedido... Isso acontece muito nas situações dos lares
de apoio para os idosos que são no fundo, apoios honrosos, que são
dispendiosos e de que o filho de A, B ou C ou o amigo de não sei
quem, tem pouco, e tem fraca qualidade... Às vezes, por exemplo, os
nossos equipamentos de apoio a idosos são de extrema qualidade e
todos querem ir para lá. Só que há critérios, e, isso, às vezes, traz aqui
algumas questões. Habitualmente, eu vou muito pelo critério, mas
quando eu vejo que a situação está a tomar proporção de que me está a
pôr em causa e eu não quero ficar em causa, tipo há critério... [...]
Mas, eu não tenho tido problemas a esse nível, agora, que isso
acontece em termos diretos, acontece. Acontece àqueles
conhecimentos do deputado x ou y da proteção institucional e de que
nós, às vezes, somos obrigados a prestar um apoio, que é de uma
injustiça total, mas o chefe diz, o administrador manda. [...] Existe,
mas creio que não é o corrente da minha prática profissional. Em foco,
o que eu gostava de colocar aqui é que quando isso acontece, então, aí
é que faço uso muito objetivo do critério, quando eu percebo que há
uma pressão porque a injustiça... [...] Eu tenho lidado... [referindo-se
às pressões] Bem, aí eu pego a situação, solicito toda a documentação,
toda, toda, toda, e faço uma informação [refere-se ao relatório] e
apresento à diretora ou, antes de apresentar por escrito, vou consultar
com ela: “Olhe, aconteceu isto, isto, isto, isto, não está dentro do
critério, pode haver este problema.” Eu já levo, às vezes, as soluções.

A entrevistadora, então, diz: — Eu também tenho muitos anos de prática, não é? E eu


já vivi várias situações em que a minha chefe vinha me dizer o que é que eu tinha que
escrever no processo. Mas, se o processo passa de mão em mão, ela tinha o direito de falar
que ela não concordava com o meu parecer. Às vezes, você sofre pressão para assumir a
decisão de negar ou aceitar, mas ela pode também não aceitar, mas como ela não quer se
comprometer... Nós precisamos ter certa esperteza para lidar com isso porque não é uma mera
situação boba colocada, é muito séria porque, se de repente, você vai perguntar o que é que
deve fazer, ela pode te dizer o que você deve fazer e depois como é que você sai dessa?
Porque ela pode não concordar com a sua resposta, então, o melhor é ir conversar, levando
logo uma estratégia e a solução, dizendo: “Olhe, eu penso lidar desta forma.” E, de outro lado,
quando há discordância, acho que a gente tem de dizer para o chefe: “Olhe, você pode não
aceitar, mas o meu parecer é este.” O que acha disso?
243

A entrevistada diz:

— Aconteceu-me uma vez, um diferendo [essa palavra significa um


modo de pensamento característico que remete para o testemunho do
poder da linguagem; são modos de escrever e falar] em que eu tive
que manifestar o meu desagrado, porque depois isso envolvia uma
continuidade de confrontos entre mim e o utente, e a coisa foi séria.
Mas eu tenho tido a felicidade nestes últimos anos de, em face à
situação destas ou parecidas...

Luísa apresenta, também com riqueza de detalhes, exemplos que expressam as diversas
estratégias de pressão utilizadas pelos usuários no sentido de reverter a situação de excluídos do
acesso pela seleção socioeconômica, e expõe como tem lidado com essas estratégias.

— Quando eu digo pressão política, às vezes, é a pressão do utente, do


utente que não acredita na assistente social e que vai fazer queixas ao
chefe, e que pede para falar com o chefe e tem toda a legitimidade, e, às
vezes, isso é mais complicado. Para mim isso é mais complicado do que
propriamente estas pressões políticas que vem pontualmente porque
essas eu sei que não tenho muito poder diante delas, então, se o chefe
manda, eu posso ficar... Mas, depois há outra questão que é a
hierarquia, eu posso dizer olha “parece-me que...”, mas eu já percebi
que não vale a pena eu dizer nada, que há situações que não vale a pena
me indispor, o meu gasto de energia será inútil e aquilo... Nem que eu
diga que não vai para frente... Eu não vou arranjar uma guerra... Mas,
essas situações acontecem de forma muito, muito, muito pontual. Mas,
depois existem as outras situações, essas sim, podem ter uma
implicação, um maior grau de desagrado em mim de frustração, de
desilusão, de desacreditação, e às vezes, até de conflito. São aquelas que
não vêm por via política, que não vêm por via de pressão, mas que vêm
por via da pressão do utente, em que o utente fica fora do critério e fica
de fora e quer... Então, ele adota estratégias que levam as organizações
a ir contra aquilo que definiram, a ir contra aquilo que são o parecer do
técnico porque vão pela via... Se calhar, mais fácil, na minha
perspectiva. Mas, eu também escolhi sempre a forma mais difícil de
tratar, que é os indivíduos poderem conhecer o A ou B e reclamam
muitas vezes. E de fato, dá muito trabalho estar a responder às
reclamações. É mais fácil atribuir aquilo que eles querem. Indivíduos
que adotam a violência dentro do serviço e, ainda que com algum
constrangimento, se chama a policia para pôr o individuo... que está a ir
contra a ordem pública. Mas, o desrespeito pelo técnico, pelo
administrativo e seja pelo quem for, isso privilegia muito o indivíduo
coitado, em detrimento de outras circunstâncias, e isso aí é um
bocadinho complicado. Quando, eu num processo eu digo, “o senhor
está fora” e ele diz, “eu quero falar com a sua chefe”. Eu digo, “sim,
sim!” Eu vou falar... Não tem acontecido, por isso eu digo que tenho
tido o privilegio, pelo menos nos últimos anos, porque isso não tem
244

acontecido. Agora quando o chefe toma uma decisão diferente daquilo


que é o parecer do técnico e o parecer está fundamentado para não ter
problemas, isso é muito doloroso, é muito difícil. Agora eu também
tenho aprendido a estratégia com estes anos, e com muito erro, e com
muita questão, que é de quando há um problema, eu também levo logo
uma resposta... E, às vezes, isso funciona.

É sempre conflitante para o profissional lidar com situações em que o benefício é


concedido como decorrência da pressão política exercida por um candidato não selecionado
e/ou de seu “padrinho”, independente dos critérios estabelecidos, na qual o profissional não
terá qualquer de decisão, porque outro poder superior se sobrepôs ao seu. Luísa se manifesta
sobre como tem lidado com a situação.
A entrevistadora pergunta: — Como você leva a questão para o chefe? A
entrevistadora responde:

— Sim, o senhor fulano tal tem este problema tal, tal, tal, e eu disse
isto e isto; eu acho que pensei nesta possibilidade eu não sei o que
vai… Outras vezes, é para ser atribuído acabou, porque está fora dos
critérios. Mas, também, eu não autorizo nada, eu só fundamento e por
isso, têm que haver uma assinatura de quem autoriza; por isso o auge
da responsabilidade não fica do meu lado, quer numa situação quer
noutra mesmo, quando não é autorizado.

Embora a questão colocada seja muito difícil de lidar e envolva sérios conflitos de
natureza ética, a entrevistada resolve a tensão, dando-se por vencida e considerando que não
tem nada a fazer, uma vez que a responsabilidade é de quem autoriza.
Alice reconhece os exemplos apresentados por Luísa, pois é de conhecimento público,
dentre os assistentes sociais portugueses, que os profissionais que trabalham na Ação Social
recebem muitas pressões.

— [...] Não, aqui não, mas tenho sabido de colegas da Ação Social
que sim. Por exemplo, quando há utentes que reclamam, que fazem
confusão, como os ciganos, 97 que ameaçam, etc. De cima, despacham
tudo e dizem para dar o recurso, mesmo que o profissional queira
dizer não. Não querem reclamações lá! E esta é uma das formas de
manter, portanto, alguma estabilidade, portanto, a paz social.

97
Vale destacar que, na Europa em geral e em Portugal em específico, os ciganos são um grupo social muito
estigmatizado. Parece que, em tudo o que ocorre de mal no país, eles são considerados implicados.
245

Fátima, assim como as demais, afirma que na sua prática não tem sofrido pressões de
natureza política para que privilegiasse alguém em detrimento dos critérios colocados e, por
isso, fica aliviada pela possibilidade de, no seu exercício da profissão, não ter tido que
enfrentá-las. Essa expressão de alívio a que se refere, revela/esconde um sentimento de
sofrimento vivido pelo profissional quando é pressionado a fazer algo com que não concorda,
quando é ferido na sua dignidade e na sua autonomia profissional.

— Mas, eu acho que apesar de tudo, eu tenho tido muita sorte no meu
trabalho e no meu percurso porque eu tenho trabalhado sempre em
sítios onde nós somos respeitadas e o nosso trabalho é considerado e,
talvez, até por isso, as pessoas não se sentem à vontade para
pressionarem-nos para isto ou para aquilo, para fazermos uma situação
ou a outra. Pronto, acho que respeitam o nosso trabalho e, portanto,
acham que nós somos isentas e por isso não tenho passado por esse
tipo de problemas.

Quando provocada para pensar sobre situações nas quais os assistentes sociais
recebem pressões políticas, estabeleceu-se o seguinte diálogo: — Bom, Fátima, o que é que
você faz ou ouviu falar o que as suas colegas fizeram quando aqueles não selecionados se
sentem injustiçados e tomam providências? Que providências eles tomam? Como você tem
lidado com isso? Como é que isso aparece aqui em Portugal e no seu serviço? Ela responde:

— Ou é meu eleitor e eu quero que você faça... Não é fácil dizer-lhe,


mas ele não cumpre as regras. Como é que eu faço se ele não cumpre
as regras e os requisitos para eu lhe poder atribuir uma casa? Quer
dizer, eu até posso dizer isso ao meu patrão, mas ele até pode
responder, mas eu quero que você atribua. Quer dizer, e eu, então,
como que eu posso dizer que não? Eu acredito que haja esta postura e
que é muito complicado uma assistente social dizer que não, numa
situação assim. Eu não tenho passado por essas situações. Eu devo lhe
dizer que eu estou a falar por mim, que não estou a falar pelos outros
assistentes sociais, mas eu acho que tenho passado por serviços que
respeitam o nosso trabalho. Tenho tido a sorte de ser dirigida sempre
por assistentes sociais, que eu lhe disse dessa diretora, ela era uma
assistente social, das primeiras em Portugal, mas era uma assistente
social, era a diretora deste estabelecimento. No outro onde estive a
responsável pelo serviço também era uma assistente social. Aqui ele é
economista e respeita-nos e aceita aquilo que nós lhe dizemos.

As pressões políticas sofridas pelos profissionais — que, em algumas situações,


chegam a se configurar como assédio moral —, são tão comuns na profissão que Fátima, por
246

não ter tido que lidar com esse tipo de ingerência no seu trabalho, julga-se privilegiada e com
sorte diante das colegas.
Faz parte do processo seletivo que aqueles que se sentem injustiçados por não terem
sido selecionados façam reclamações ao próprio profissional, às organizações diretamente ou
através de “padrinhos”, procurando explicações sobre os motivos de não terem sido
selecionados, tentando reverter a situação. Fátima expõe a situação em riqueza de detalhes,
pois, afinal, tem cabido à equipe de assistentes sociais gerenciar a situação.

— Olhe! Eles põem em causa a avaliação dizendo que a avaliação não


foi correta, não foi feita de acordo com as regras, com o estipulado,
achando que foram feitos erros pelo serviço. Portanto, eles reclamam,
reclamam para todos os sítios [lugares] que são possíveis. Primeiro,
para nós porque nós somos a primeira entidade para quem eles
reclamam, e posteriormente, podem reclamar por tudo quanto é sítio.
As reclamações são sempre um pouco... Eu acho que as reclamações
são muito desvirtuadas. Imaginando que ele faz uma reclamação para o
ministro, o ministro reencaminha para nós, para sermos nós a
responder. Portanto, por vir parar ao mesmo serviço, nós temos por
norma, como eu disse há bocadinho, eu não analiso processos, mas
analiso processos de reclamações. Todos os processos sou eu que faço e
nesse sentido tentamos esclarecer. Primeiro, tentamos esclarecer a
situação e o porquê. Claro, que nos defendemos com a legislação
também. E dizemos: “Olhe, você está nesta e nesta situação. Com a
legislação, é isto que acontece. Agora, se você tiver uma situação
diferente desta que você nos apresentou, que você perceba, também,
que nós a revemos sempre.” Pomos sempre estas questões ao aluno e
tentamos ao máximo sempre expor sobre o motivo que levou à sua não
consideração para atribuição do benefício. Tentamos ser transparentes,
tentamos ser claras, tentamos que o aluno perceba... A reclamação é
sempre feita por escrito, mas nós tentamos sempre, damos sempre essa
indicação que, antes de o aluno fazer a reclamação por escrito, que
venha falar conosco, precisamente porque o aluno, muitas vezes, o
aluno... Eu também entendo que é uma legislação e é chata de ser lida.
As pessoas não gostam de ler leis, é desagradável. E, muitas vezes, o
aluno candidata-se à bolsa e considera que a situação lhe dá acesso
àquele direito, sem verificar qualquer tipo de condições. E, quando lhe é
dito que não, porque ele não reuniu as condições, ele acha isto muito
estranho, porque considera, pela análise que fez da sua própria situação,
que terá direito. Por isso, muitas vezes, nós dizemos: “Venham
conversar conosco, para nós vos explicarmos!” Então, aí nós
perguntamos: “Você já viu a legislação, você já viu quais são as
condições?” “Não, não sei; quais são?” E aí nós dizemos: “São estas e
estas. Como vê, você não cumpre esta, esta e esta. Estás a perceber?”
“Ah, sim, estou!” Pronto! Aí há muitas situações… Nós temos
relativamente poucas reclamações, e penso que o fato de termos poucas
reclamações tem a ver com essa nossa prática, porque, sempre que um
247

aluno pretende reclamar ou não está contente com o resultado da sua


candidatura à bolsa, nós tentamos esclarecer com ele os motivos que
levaram a essa situação. Muitas vezes, eles saem daqui descontentes,
como é evidente, porque a situação foi indeferida, mas pelo menos
saem esclarecidos, saem a perceber porque é que não têm direito.

Luísa e Fátima destacam que os instrumentos básicos utilizados para se defenderem


diante das pressões políticas e acusações advindas daqueles candidatos que se sentem
injustiçados no processo seletivo são os critérios e as normas estabelecidos e a legislação.
Fátima defende a importância de tornar transparentes o processo e os critérios junto
aos candidatos e a necessidade de haver abertura para contemplar possíveis erros cometidos,
pois podem ocorrer no processo omissões de informação não intencionais, que, ao final,
podem acarretar prejuízo a um candidato que participa de um processo seletivo.

— Tentamos esclarecer o máximo possível o aluno. Sempre com a


ressalva de “isto foi o que foi analisado com base na vossa situação,
do que vocês nos apresentaram. Agora, se isso que vocês nos
apresentaram não está totalmente correto e existem outros aspectos
que vocês não focaram, mas que vocês agora até acham importantes, é
uma questão de vocês apresentarem para nós podermos rever a
situação.” E nós revíamos sempre as situações Agora não podemos
fazer, mas antigamente fazíamos sempre essa revisão. Mas, tentamos
respeitar ao máximo todas as reclamações de todos os alunos.

Ela destaca ainda a importância de o profissional tratar das pressões e dos pedidos de
esclarecimentos com respeito, porque são expressões da frustração por não terem tido sucesso
na obtenção do serviço ou benefício social pretendido.

— Sobre as denúncias, temos situações de alunos que chegam cá e


dizem: “Ah, por que é que eu não tenho bolsa, se o meu colega, com
uma situação igual à minha ou que precisa menos do que eu, tem?” O
que dizemos normalmente é: “Diga-nos quem é o seu colega, e nós
revemos a sua situação.” E normalmente não dizem, “porque não sou
delator, não estou aqui para falar.” Eu digo que “não é preciso dizer
nomes, basta que nos dê alguns elementos de referência para nós
podermos chegar lá.” “Agora, como deve perceber, as situações são
todas diferentes umas das outras, e, portanto, você, se calhar, pensa
que a situação dele é semelhante à sua, e se calhar, há lá aspectos que
não são; você não sabe tudo da vida do seu colega.”
248

Tília dá um tratamento irônico, ao nos explicar como as reclamações são tratadas nos
organismos estatais em Portugal, pois há, em todos os locais públicos, o “livro amarelo”, que
é a forma institucional de absorver as queixas e pressões da população usuária dos serviços.

— A instituição responde sempre. Nós cá em Portugal somos muito


civilizados, há um livro amarelo, as pessoas escrevem, depois é dada
uma resposta à pessoa, mas nunca se corrige nada, nunca se é
questionado, quer dizer, a instituição, aí protege o profissional, porque
é instituição. Muitas vezes essa reclamação vai para o Ministério,
volta, a profissional fica e nunca acontece nada. Por exemplo, uma das
últimas reclamações que eu li, era de uma pessoa que tinha sido
maltratada; a assistente social disse que não vinha atender, que não
tinha tempo, que tinha muitos beneficiários e que não tinha tempo. E a
pessoa escreveu uma carta ao presidente, a dizer que “eu fui lá e que
precisava de ser atendida, ela não ouviu, nem sequer desceu, mandou
dizer que tinha muitas pessoas para atender.” Nem aí, não acontece
nada, está a ver? E isso, eu acho que devia acontecer. Aí já não tenho
poder, mas devia acontecer. No fundo, a própria assistente social que
faz isso, é a mesma que dá as respostas. Depois a assistente social
manda uma resposta qualquer e depois fica tudo como está cá para
baixo. [...] quando há, por exemplo, maltrato e depois a criança, se for,
no caso de crianças, pressupõe que haja morte ou acidente grave, e nós
mesmo assim... Tem vindo a publico algumas situações como morreu
uma criança queimada ou maltratada pela avó, ou coisas assim porque
esses tipos de coisas acontecem, mas fica sempre, tem-se sempre uma
justificação de que nunca aconteceu nada. E a instituição defende
sempre o assistente social.

Sobre as pressões políticas sobre o profissional na qualidade de funcionário das


organizações sociais, ela expressa toda a dramaticidade vivida hoje em Portugal, tanto pelos
usuários, ao se deparar com o corte de seus benefícios, quanto pelos profissionais, que
recebem toda a carga de agressividade advinda desse fato, porque materializam o Estado que
cobra a contrapartida e retira o benefício social. A relação com o profissional passa a se
constituir no lugar de choque, ao ser ele que recebe, amacia e amortece os primeiros impactos
e as tensões advindas da frustração dos indivíduos que perdem os benefícios do RSI e que
ficam revoltados com isso.

— Depende; aqui em Portugal... Mas isso também depende do público


em Portugal; as pessoas andam muito reivindicativas, umas vezes com
razão, outras sem razão [...] E dizem que só dão a quem não precisa.
Dizem isso. E que aqueles que vêm aqui não dão, que não dão a quem
precisa. [Os assistentes sociais] Estão a ser almofada de… Houve
muita gente que perdeu o Rendimento Mínimo agora exatamente estão
249

a ser empacotados e é exatamente isso o que acho. Agora, estão a


servir de almofada... Há dias chegou uma pessoa ali, fez lá muito
barulho e eu fui ver o que é que se passava que, eu estava lá, e, então,
era um senhor que perdeu o seu subsidio social de desemprego. Eram
420 euros que ele tinha e foi lá buscar o cheque ao balcão e disseram-
lhe, “vá ao balcão”. E então ele disse: “Mas eu quero os meus 420
euros, porque disseram-me para vir aqui. Têm que me dar!” E agora, o
que é que faz a colega que está ali à frente?

Podemos perceber claramente aqui como a seleção socioeconômica se mostra como


um instrumento político para apaziguar a tensão social advinda do fato de haver corte no
orçamento público. Por ser direito previsto em lei, todos os que preenchem o perfil
correspondente ao RSI deveriam ser atendidos; então, o mecanismo da exclusão se dá pelo
arrocho da cobrança do trabalho como contrapartida.
Ao atender e tratar as pressões sociais de forma individualizada, desfoca-se a questão
que lhe dá origem: a desigualdade social que está aumentando, gerada pela crise atual da
ordem do capital. Sob nova forma, as pressões que aparecem no processo seletivo, na sua
expressão singular, e que são a mesma tensão que se encontra na origem da sua criação,
passam a ser tornadas aceitáveis e transfiguradas como questão do indivíduo que pressiona.
Daí a pressão política ser tão forte e persistente em todos os processos seletivos. A seleção
socioeconômica tem sido instrumento de grande utilidade social no sentido de tornar a
desigualdade social aceitável, contribuindo para a manutenção da ordem social estabelecida.

4.4.7. Desafios colocados à profissão na atual conjuntura e a seletividade de acesso: as


condições de trabalho e os interesses dos usuários

Aqui, pretendo problematizar as condições atuais de trabalho do assistente social


demarcando, em grandes traços, as possibilidades e limites da intervenção profissional e
focando a realização cotidiana da seleção socioeconômica nas organizações sociais.
De acordo com os depoimentos das pessoas entrevistadas, que expressam preceitos
teóricos e políticos, pretendo trazer à tona sua reflexão sobre os limites profissionais da
seleção socioeconômica quando da utilização de diretrizes e critérios.
Parti do pressuposto de que a formulação da política social e a forma como é
concebida e elaborada reflete interesses de determinados sujeitos sociais, diferentemente
daqueles que interpretam e executam a política social — portanto, dizem respeito a processos
históricos diversos. Entendo que é preciso ficar vigilante para captar e compreender os
250

diferentes interesses em jogo na sociedade capitalista para saber redirecioná-los de acordo


com a estratégia escolhida pelo profissional.
Na execução dos programas e serviços sociais, o assistente social pode se comportar
dando grande ênfase à burocracia, com destaque às normas e regulamentos, como funcionário
e técnico assalariado que cumpre ordens. Mas também pode perceber e trabalhar dando outro
sentido à tarefa, ao se colocar como agente de uma profissão que lhe abre possibilidades de
ser crítico em relação ao trabalho profissional e à sociedade. As tarefas, atribuições e
competências do profissional podem ser tomadas como um fim, quando a prioridade é o
resultado, ou entendidas como meios, quando se valoriza a dimensão educativa no processo
de atendimento, no qual os usuários dos serviços participam das análises e das decisões.
A apreensão do conteúdo veiculado na sua intervenção e dos seus porquês depende
dos preceitos teóricos e políticos escolhidos e adotados pelos profissionais. Assim, coloca-se a
questão: de que forma existe a possibilidade de se trabalhar de acordo com os interesses dos
usuários? Se a prática profissional é contraditória, como é que os profissionais entrevistados
têm lidado com essa peculiaridade?
O trabalho profissional não se dá no vazio. Portanto, é preciso compreender como o
profissional se movimenta na organização na qual trabalha e na profissão? Como aparece a
correlação de forças existentes e presentes nas organizações nas quais os profissionais
exercem a profissão?
Nessa direção, passo agora a apresentar a experiência e analisar o entendimento das
assistentes entrevistadas acerca das complexas questões que envolvem o exercício
profissional e de outras que surgiram no decorrer dos encontros realizados com elas.

● Especificidade do trabalho profissional em Portugal

Com as mudanças recentes que vêm se operando no âmbito do capitalismo


internacional, essa etapa de globalização neoliberal tem causado, na particularidade da
comunidade europeia, profundos danos, principalmente aos trabalhadores que dependem da
proteção do Estado para sobreviver. Quem mais sofre com os dramáticos efeitos da crise são
os trabalhadores, desamparados pelo desemprego estrutural e pela presença do Estado que age
como um “administrador de negócios”, não se responsabilizando pela proteção social e pelos
direitos sociais conquistados e delegando parte importante dessa tarefa à sociedade civil.
Os prejuízos dessa expressiva e cotidiana perda de direitos, observada mundialmente,
podem ser notados, em Portugal, pelo papel de realizador da política de cortes dos benefícios
251

sociais atribuído aos assistentes sociais. O exercício profissional tem adquirido expressões
dramáticas, na medida em que a profissão, sob pressão e controle, encontra dificuldades para
legitimar-se na realização e ampliação dos direitos já consagrados.
Nesse contexto, particularmente, o rigor da seletividade de acesso aos serviços e
benefícios sociais pode ser entendido, muitas vezes, como uma armadilha, porque seu
fundamento básico é a desigualdade social, evidenciado pela face de exclusão, aspecto
amplamente analisado ao longo deste estudo. As consequências da crise afetam o demandante
dos serviços sociais, que se vê sozinho diante do enxugamento e focalização dos programas
sociais, assim como afetam o assistente social como trabalhador assalariado, que também
sofre a perda de direitos e de salário como os demais trabalhadores. É, por vezes, difícil
vislumbrar possibilidades e saídas profissionais e distanciamento para apreensão da realidade
de forma crítica.
A novidade que se põe em Portugal, é o fato de que, hoje, as condições de vida dos
assistentes sociais estão muito parecidas com as da população atendida.
Conforme se pode perceber, os rebatimentos da reordenação do capitalismo
internacional, na especificidade de Portugal, aparecem em todas as entrevistas, variando de
intensidade de uma para outra, até porque o mesmo processo histórico não se dá do mesmo
jeito em todos os espaços profissionais. As entrevistadas enfatizam aspectos que têm muito a
ver com a inserção profissional e expressam concepções particulares de mundo e de profissão.
Tília, que atua na Segurança Social e é liderança política da categoria dos assistentes sociais,
apontou como as expressões da crise se apresentam de forma mais direta e dramática. Luiza,
que atua na Santa Casa de Misericórdia de Lisboa, demonstra preocupação e tensão ao se
referir ao controle e fiscalização que sofre no trabalho cotidiano. Alice e Fátima demonstram
preocupações com as repercussões da conjuntura atual do país, mas pela natureza do trabalho
que realizam não se sentem tão desafiadas como as demais.
Alice, no seu trabalho, tenta equacionar as necessidades apresentadas pelos usuários do
hospital, utilizando-se dos recursos disponíveis a favor do bom atendimento dos pacientes,
tais como transporte em ambulâncias, cessão de próteses mamárias, etc. Entende que os
usuários, pessoas atingidas pelo câncer, têm o direito de receber tratamento digno e cuidados
especiais. Parte do pressuposto de que os trabalhadores pobres têm o direito de usufruir de
serviços de qualidade. Ela nos apresenta uma série de ricos exemplos que dão materialidade a
essa forma de entender a profissão e os usuários.
252

–– Há pessoas que precisam de uma assistente social


permanentemente para viver com o mínimo de dignidade, sem termos
expectativas de que eles vão mudar as suas condições de vida, embora
eles tenham direito a isso. [...] temos que as sustentar em todos os
sentidos. Não é sustentar só economicamente. Nós temos que as
apoiar, as mantendo com qualidade de vida. É isso que nós temos que
explicar às pessoas, mas há outras pessoas que podemos estimulá-las a
desenvolver-se e a deixar de necessitar da assistência. Agora temos
que ver com quem conseguimos fazer isso e com quem não
conseguimos fazer. E com aqueles que pensamos que não
conseguimos fazer, quem sabe se, apesar de tudo, nós não fazemos
menos do que poderíamos fazer? Nós não temos a vida na mão, a vida
escapa-nos. [...] O que é o tratamento do cancro? É só um tratamento
clínico? E o reajuste interno, relativamente à sua autoimagem, que
temos doentes de cabeça e pescoço? Doentes que nunca mais voltam a
comer de forma normal e que não tem em casa condições de comer de
forma normal. Isso não é tratar? A autoimagem não é tratar? É só a
dimensão química? [...] Tu sabes que um doente não pode usufruir de
uma ambulância para vir a uma entrevista do Serviço Social, mas pode
usufruir de uma ambulância para vir a um serviço de psicologia e de
um médico, etc.? Então, o que é isto? Eu ainda não tive tempo de
pegar nisto, que só há pouco tempo é que soube, mas isto cai pela
base, pela definição de saúde. O que é a saúde?

A entrevistada não se coloca de forma subalterna no seu espaço de trabalho. Ao tomar


conhecimento de que o paciente não tem direito de solicitar ambulância para atendimento do
Serviço Social, essa necessidade se coloca logo na sua “pauta de luta”, visando à reversão da
situação atual.
Ao falar de suas experiências, as entrevistadas vão apresentando vários jeitos possíveis
de ser assistente social.
Alice, que já viveu e participou do processo de independência de Angola, ao falar de
seu posicionamento ético-político, afirmou que não tem dúvidas acerca da opção de pautar
sua ação na defesa dos interesses dos trabalhadores, tanto na sociedade quanto na organização
onde trabalha, ao declarar:

–– Eu podia estar no lugar de qualquer uma destas pessoas em


situação de exclusão que por aqui eu encontro e por que não estive?
Porque encontrei as pessoas certas porque alguém me estimulou,
porque eu tenho interesses internos que eu desenvolvi, porque se
juntaram algumas oportunidades que fizeram com que isso
acontecesse. Agora eu sempre vejo que podia ser eles, a partir da
altura em que eu me vejo neles, eu tenho que os respeitar, senão deixo
de me respeitar a mim própria. [...] Ela, que atendo não é diferente de
mim. [...] Escolho claramente [referindo-se à direção estratégica de
253

sua ação que se pauta na defesa dos interesses dos trabalhadores],


porque não tenho duvidas.

Ela mesma reconhece que há outra perspectiva de ser profissional, tomando como
exemplo uma colega que a antecedeu nesse trabalho. Analisa que há a possibilidade do
assistente social reinterpretar as normas institucionais, tendo em vista os interesses dos
usuários, embora regras e critérios continuem a existir. Alice entende que as mudanças são
possíveis de serem operadas no âmbito profissional, mas têm abrangência restrita.

–– Portanto, é possível, mas houve aqui, anteriormente, antes de mim


e da Maria [referindo-se à colega de trabalho] [...] tinham sempre os
dados, os exames no computador para ver se os punha ou não fora, se
tinham ou não exames, tratamento para se irem embora. Claro que isto
também tem, às vezes, o reverso da medalha, às vezes, eles [referindo-
se aos pacientes] sentem-se muito protegidos aqui e é muito difícil
eles voltarem ao seu meio. Mas, eu acho que isso tem que ser
construído par e passo com eles, por dentro na reconstrução da sua
identidade, da sua autoconfiança e, por fora, a nível de rede de apoio.
[...] Penso que já disse que há várias maneiras (referindo-se à
realização de seleções), Nenhum dos componentes determina tudo, eu
acho que cada nível de intervenção, portanto, tem algum nível de
autonomia para reinterpretar as coisas e ir ao essencial. E estas
reinterpretações, e aí é que nós falhamos, porque as reinterpretações
que nós fazemos deviam ser mais sistematizadas. [...] Nós fazemos
quando dá, sem ser incorporado ao cotidiano de trabalho. A gente
ainda não tem organização.

Fátima também defende a ideia de que o assistente social não pode ser mero
funcionário de uma organização e que não deve estar está lá somente para cumprir as regras e
os regulamentos. Se o profissional realiza, a seleção socioeconômica pautado em critérios,
esse fato não deve ser entendido, no entanto, de forma absoluta, pois isso não implica de ele
ser receptivo a qualquer tipo de critérios ou ingerências. É preciso olhar para os indivíduos
nas suas particularidades, pois o trabalho realizado tem que contemplar exceções.

–– É fundamental que o assistente social não encare a profissão, não


encare o seu trabalho como um mero burocrata, como um mero
contabilista. E eu acho que não se pode confundir um assistente social
como um mero aplicador de políticas, mesmo que sejam políticas
sociais. Eu não posso estar aqui só a pegar na minha legislação, a ler a
legislação. E tenho aqui o meu candidato à bolsa ou meu cliente à
minha frente e eu não posso ler a legislação e dizer lhe, a ti vou te
aplicar a regra 1 e a ti a regra 2. Não, não posso! Eu tenho que
perceber que a pessoa que está à minha frente não é só um ponto de
254

vista, não é só o rendimento que tem ou as despesas que tem, é uma


rede social. [...] Nós não podemos ser meros burocratas, [...] e
estarmos aqui abertos a todo o tipo de critérios, a todo tipo de regras, a
todo o tipo de critérios que nos queiram dar, que nos querem impingir.
É evidente que nós temos que os receber, os que vêm da nossa
entidade empregadora e nós temos que aplicá-los, mas eu acho que
podemos aplicá-los sem sermos absoluto[...] Posso, aliás, tanto neste
sítio onde eu trabalho como no anterior... Portanto, eu sempre
trabalhei com os tais balizamentos legais, mas que também permitem
a exceção. Ou seja, eu sempre tive possibilidades de cuidar de
situações que cabem dentro destas, como exceções. E eu penso que
isto também tem a ver com a legislação, claro!

Alice explicou que nem sempre as solicitações dos pacientes são atendidas pela equipe
na qual trabalha, mas que deve haver uma atenção constante para que se possa enxergar o que
precisam e necessitam. É preciso criar neles uma reação corajosa em relação às perdas e
sequelas sofridas e ao do medo do sofrimento e da morte que acompanha quem tem câncer.
Nesse sentido, ela considera a necessidade de avaliar, constantemente, o que fazer, porque o
que foi um apoio em um momento do tratamento, em outro já não serve mais. É necessário
que o profissional tenha abertura, conhecimento e sensibilidade para perceber as sutilezas das
necessidades presentes, nem sempre expressas pelo paciente em tratamento.

–– [...] A seleção, eu procuro que todos sempre tenham alguma coisa. [...]
Pode não ser financeiro, porque em acordo chegamos à conclusão de que,
de fato, eles podiam comprar. Porque, por vezes, aqui no hospital eles
dizem, “vá lá ter com a assistente social, que eles dão-lhe dinheiro para
os medicamentos”; é preciso fazer uma explicitação sobre o dinheiro. Se
a pessoa diz assim, “eu realmente acho que eu posso comprar os meus
medicamentos, mas este mês eu tive esta e esta despesa, porque houve
desorganização na minha vida familiar, porque foi o inicio da doença”...
E eu disse, “sim senhor, vamos ajudar este mês e no próximo mês
avaliamos”. [...] Há regras orientadoras, mas essas regras não são
senhoras, não são elas que pautam a nossa intervenção. A nossa
intervenção é pautada na relação que estabelecemos, no compromisso
que estabelecemos com aquelas pessoas.

Realizar um trabalho no qual o assistente social se coloca como sujeito, pressupõe


estudo e reflexão constantes visando a apreensão das condições objetivas do trabalho nas
possibilidades e nos limites. A realização de um trabalho competente e compromissado exige
domínio teórico-metodológico para que o profissional possa entender as demandas
apresentadas pelos usuários para além das aparências e saiba discriminar as demandas
aparentes e as demandas reais presentes na situação.
255

As condições de trabalho de Luiza estão ficando mais difíceis e complexas a cada dia.
Além do cumprimento de metas, sofre cobrança e pressão de várias ordens. E quando, por
vezes, se vê fazendo as contas dos minutos gastos com cada uma das atividades que tem que
realizar, chega mesmo a se assustar com a vida que tem levado. Sem contar que ainda há
aqueles serviços que não são computados pela organização como a colocação das informações
no computador e as respostas escritas às solicitações do tribunal dentro dos prazos
estabelecidos. Fala disso tudo com inquietação e descontentamento, pois gosta da profissão e
gostaria de ter tempo para realizar uma prática mais reflexiva e se vê envolvida em um
processo de trabalho com inúmeras tarefas a cumprir.

–– [...] a realidade em termos do social transformou-se muito, muito, é


de uma complexidade muito grande. Agora... Isso exige do
profissional um conhecimento e uma disponibilidade muito grande
para poder responder o mais próximo possível daquilo que são as
necessidades da população, daquilo que podemos considerar com ela,
que pode ser o seu projeto. O volume de trabalho é muito grande para
nós... Para eu poder ter a disponibilidade, que eu considero necessária
para poder trabalhar, para poder contextualizar, para poder perceber o
outro. E isso, às vezes, é muito frustrante. Isso exige de mim, ou
deveria exigir de mim, uma capacidade maior de perceber, de analisar
a sua trajetória, de analisar aquilo que são as suas expectativas, de
analisar de estabelecer uma relação de confiança, que é fundamental.
[...] Eu tenho que prestar contas de várias coisas que eu faço e há
contas que de o meu ponto de vista não são nada importantes. São só
importantes para a representação em termos institucionais, agora é
assim eu sou avaliada. Eu tenho que definir para mim com a minha
chefia os objetivos, mas depois eu não defino mais nada com ela
porque eles são impostos.

Branco e Amaro (2011) tratam desse assunto com muita clareza, ao analisar a prática
do Serviço Social em Portugal na atualidade. Baseados em pesquisa empreendida, afirmam:

De facto, ficou claro neste estudo que é exercida uma enorme pressão sobre os
profissionais no sentido de demonstração de resultados, o que tem se traduzido numa
lógica de realizar o máximo possível de atendimentos e de disponibilizar uma
“resposta” no período mais curto possível. Em paralelo, é também entendido como
crucial o papel de verificação da veracidade das situações expostas pelos utentes. Isto
significa que, com o tempo disponível, tudo o que o assistente social pode fazer é
tomar nota do pedido do utente e assegurar que o indivíduo tem direito à prestação em
causa. Enquanto alguns profissionais parecem pensar que isto é o que compete a um
assistente social, outros sentem-se desconfortáveis neste papel. Para estes os
referenciais éticos e metodológicos apontam para a importância de constituir relações
empáticas, que promovam a participação e o empowerment, com vista a autonomia do
utente e a perspectiva dos níveis de intervenção (BRANCO; AMARO, 2011, p. 667).
256

Raichelis (2011) participa desse debate, indicando em sua análise que

[...] por mais que seja imprescindível a incorporação das novas tecnologias de
informação, é preciso problematizar os efeitos dessa revolução tecnológica no
trabalho do Serviço Social e na relação dos assistentes sociais com os usuários e a
população, via de regra, mediada pelo computador nos espaços de atendimento
profissional. [...] é possível constatar o crescimento de um tipo de demanda dirigida
aos assistentes sociais em diferentes áreas, que afasta o profissional do trabalho
direto com a população, pois são atividades que dificultam o estabelecimento de
relações continuadas, que exigem acompanhamento próximo e sistemático. A título
de exemplo, pode-se citar o preenchimento de formulários e a realização de
cadastramentos da população, quando assumidos de forma burocrática e repetitiva,
que não agrega conhecimento e reflexão sobre os dados e o trabalho realizado.
Trata-se de uma dinâmica institucional que vai transformando insidiosamente a
própria natureza da profissão de Serviço Social, sua episteme de profissão
relacional, fragilizando o trabalho direto com segmentos populares em processos de
mobilização e organização, e o desenvolvimento de trabalho socioeducativo numa
perspectiva emancipatória (RAICHELIS, 2011, p. 433).

No contexto societário de transformações que vem se operando no mundo do trabalho


e da acirrada perda de direitos sociais, têm se ampliando as relações entre trabalho e
adoecimento, o que se reflete na saúde física e mental dos trabalhadores em geral.

Essa dinâmica de flexibilização/precarização atinge também o trabalho do assistente


social, nos diferentes espaços institucionais em que se realiza, pela insegurança do
emprego, precárias formas de contratação, intensificação do trabalho, aviltamento
dos salários, pressão pelo aumento da produtividade e de resultados imediatos,
ausência de horizontes profissionais de mais longo prazo, falta de perspectivas de
progressão e ascensão na carreira, ausência de políticas de capacitação profissional,
entre outros (RAICHELIS, 2011, p. 422).

Luísa, que deseja realizar seu trabalho contemplando o processo e não somente o
produto pelo qual é constantemente cobrada, encontra-se em situação de estresse. Ela expõe
que, em um clima de muito trabalho a realizar, defronta-se, permanentemente, com o medo
advindo da ameaça constante de uma possível fiscalização externa a qual, a qualquer
momento pode colocar o emprego e a sua integridade profissional em risco.

–– [...] o medo que perpassa todos, perpassa os assistentes sociais,


perpassa os diretores, e provavelmente perpassa as administrações. Eu
sentir que não consegui responder a uma situação e que eu posso ser
escrutinada pelo tribunal que achou que eu não fiz o que devia ter
feito pelo organismo X e que eu posso por via disso, ter um processo
disciplinar, na pior das hipóteses... Ou a minha organização se não
conseguiu responder ou se não respondeu, ser vista de uma maneira
muito pouco positiva [...].
257

O fato de analisar e mesmo se indignar frente à exploração e ao desgaste a que ela e os


colegas estão submetidos gera um sofrimento difícil de admitir, quando as explicações giram
em torno das relações sociais presentes no cotidiano. A não apreensão do que se esconde por
detrás das pressões e dos medos, como rebatimentos de processos sócio-históricos mais
amplos, faz com que se sinta culpada e constrangida por não conseguir realizar seu trabalho
como gostaria; as respostas vêm acompanhadas de muitas justificativas. No entanto, Luísa
fala com satisfação de pequenas conquistas que ela e os colegas obtiveram, apesar das
dificuldades e medos presentes no cotidiano.

–– Tivemos há pouco tempo uma situação, em que tinha a ver também


com os cartões de saúde. Até julho do ano passado, havia um
regulamento de cartão de saúde, elaborado há vários anos, mas não era
cumprido. [...] O regulamento dizia que todos os utilizadores deveriam
ser portadores de um cartão de saúde, sem isso não poderiam ser
atendidos, só que isso nunca se aplicou. O que é que aconteceu?
Aconteceu que os serviços de saúde eram utilizados por quem
precisava, por quem estava dentro dos critérios, por quem estava fora
dos critérios, por quem tinha condição para pagar uma consulta, e por
quem não tinha condição de pagar uma consulta. [...] Então, um dia
alguém deve ter decidido, hoje acabou. Só que acabou para todos, para
aqueles que não tinham direito porque estariam fora dos critérios e
acabou para aqueles que estavam dentro dos critérios, mas não tinham
o cartão, porque os serviços de saúde nunca o tinham exigido. E aí
gerou-se um grande problema, porque a orientação foi de que só vai
ao serviço de saúde quem possuir o cartão. E nós começamos a pensar
nalgumas situações de utentes que estariam dentro dos critérios por
extrema necessidade de consultas de especialidade e que as iam perder
porque não tinham o cartão e porque o cartão a ser elaborado demora
um mês, [...]. Entretanto, começamos a colocar questões (às chefias),
por exemplo, “então aquela senhora que estava à espera da consulta há
um ano na estomatologia, otorrino, agora vai ficar sem consulta?
Então, e vai ficar outro ano à espera, por uma circunstância que não
tem a ver com ela, mas com a própria organização? Isso vai
inviabilizar o nosso processo de apoio junto daquela família. Isso vai
fazer com que a família que já está num determinado patamar vá
regredir. Isso vai fazer com que aquele que necessita de óculos não vá
poder ler”, isto e aquilo e pensávamos, “bom, se calhar, não vamos
conseguir; a responsabilidade é da organização. Portanto, se houver
algum problema maior, que passem para a comunicação social
(referindo-se à imprensa), a organização é que vai responder, porque
isto está para além da minha capacidade enquanto técnico”. Contudo,
quando nós trabalhamos diariamente com a população e as famílias
sabemos que isso não é assim, não basta explicar ao utente que a culpa
é da organização, porque ele tem dificuldade em perceber isso. [...]
mas ainda que eu diga que “foi o meu diretor, foi o administrador”, foi
este ou aquele, o utente não consegue perceber. Tem muita dificuldade
258

em perceber como é que eu trabalho numa organização assim. E por


isso quem vai perder? Vai perder o utente e o técnico. E nós
conseguimos mudar e conseguimos fazer com que se implementasse
isto a nível territorial, com que se implantasse um sistema que nos deu
muito trabalho, que era para se fazer como urgência. Fazíamos o
cartão, mas entre os impressos havia um comprovativo e que com esse
comprovativo era válido, poderia ter acesso aos serviços. É por isso
que eu acredito... Que isto foi uma pequena conquista.

Mesmo diante do clima de repressão e medo vivido no cotidiano de seu trabalho,


Luísa admite que, embora seja trabalhoso, é possível usar a organização para atender as
necessidades e interesses do usuário, dependendo da leitura e do tratamento dado às situações.

–– Eu estava a me lembrar há pouco, quando referia o Rendimento


Social de Inserção, sobre a questão do mercado de trabalho ou do
emprego, como condição para continuar a ser beneficiário da RSI. [...].
Embora a lei defina que, qualquer requerente tenha que estar inscrito
no centro de emprego, com vistas a ser inserido no mercado de
trabalho. Isso é logo a premissa, desde que esteja na vida ativa ou se
não puder, tem que ter uma declaração médica a dizer que não pode
(trabalhar). Mas, isso é a condição de requerimento, porque às vezes
ao nível da operacionalidade da medida, nem sempre a questão pode
ser assim, porque tal como nós depois constatamos, que a pessoa não
tem condição para ir para o emprego, nunca vai conseguir ter um bom
emprego se não forem trabalhadas, ou se não forem resolvidas outras
questões. Eu acho que aí, há esta margem que nós poderemos
operacionalizar... Não é ir contra a lei, mas de alguma forma... [...]
Sim, [refere-se aos interesses] do utente... A questão de que se não
aceitarem o emprego... Tem que ser contextualizado. Daquilo que é a
minha experiência, não tenho memória, de alguma situação que,
alguém tivesse deixado de receber o benefício, porque a questão foi
assim, tão direta, entende? Claro, que se há um indivíduo que tem
condição para o trabalho, e por via do seu percurso tem dificuldade,
não quer porque tem outro trabalho informal que nunca declarou e
quer acumular com a prestação, isso é outra coisa. Agora, aquele que
efetivamente tem uma necessidade, por exemplo, se um indivíduo tem
30 anos e não tem o 4º ano de escolaridade como é que ele consegue ir
para o mercado de trabalho? Como é que consegue?

Ela entende que, na concessão de um benefício, é necessário que o profissional tenha a


certeza que as informações apresentadas pelo usuário são verdadeiras. Por isso, expõe em
detalhes o repertório de medidas que tem utilizado, pois estas devem ser impecáveis, para que
não haja risco de serem questionadas pela fiscalização que tanto teme.
259

–– Deveria partir sempre desse principio (de que o utente está dizendo
a verdade), mas às vezes, a entrevista têm muitas incoerências, então,
aí vamos ver. O profissional do Serviço Social tem que ter
conhecimento de muitas coisas, diante da riqueza das situações que
aparecem, e tem que ter conhecimento de muitas coisas porque
facilmente pode ter uma situação, onde fica ignorante. Embora eu não
tenha problemas, eu não domino tudo, mas eu vou procurar saber
sobre essa nova questão que apareceu. De qualquer maneira nós temos
que ter (em mente) muitas questões: não trabalha? E então? Mas
recebe alguma prestação, não recebe? Não trabalha por que não pode?
Não está disponível porque não tem qualificações? Por que, por que?
E a pessoa responde “não, não, eu não trabalho, porque não há
emprego, não consigo”. “Então, e o senhor encontra-se inscrito no
Centro de Emprego, não? E então? E o senhor já se deslocou alguma
vez àquela instituição y ou z que de alguma forma pode ajudar o
senhor a encontrar um emprego? Não? Então, e o senhor já tentou ir
ao centro comercial, onde está aplicado no vidro que “precisa se de
trabalho”? Como é que eu posso atribuir um benefício a este
indivíduo, se ele não traz nenhum documento sobre que está
efetivamente desempregado e está á procura de emprego? Então, nesta
circunstância, se ele diz que quer encontrar emprego, ele tem que ir à
instituição oficial, que não é aquela que sempre arranja um emprego,
mas é a oficial para trazer o comprovativo em que estava inscrito. Ou
seja, eu ou os meus colegas, nós temos que dominar, muitas vezes, até
para depois nos salvaguardarmos, porque depois, em termos
organizacionais, nós também temos auditorias e temos que provar se
cumprimos o regulamento ou não cumprimos. Atribuímos de acordo
com o regulamento ou não atribuímos, favorecemos alguém ou
discriminamos alguém porque não gostamos, e essas questões para
mim colocam-se, aos outros colegas não sei. Eu tento ter sempre
presente a questão da justiça, da igualdade. Procuro, mas se calhar não
consigo sempre.

Luísa, quando se depara com situações em que se esgotou o repertório de respostas a


oferecer ao usuário, indica que eles se utilizem da pressão política, através da divulgação na
imprensa sobre o que se passa ou da apresentação de queixa à própria entidade, considerando
que, às vezes, isso funciona, porque a entidade não gosta de “ficar mal na fita”.

–– Claro, há situações diversas e quando eu me deparo com esta


situação, aquilo que eu mais adoto, não sei se é o correto ou se não é o
correto, é de alguma forma tentar explicar. É a primeira coisa que eu
faço quando alguém fica excluído, nomeadamente quando fica
excluído, é explicar como é que os critérios estão definidos, qual é o
meu papel e a minha função, o que é que eu posso fazer, o que é que
eu não posso fazer, o que é que aquele individuo pode fazer para além
da minha organização; se pode apresentar uma reclamação na entidade
x, se pode apresentar uma reclamação na entidade y. E nalgumas
260

situações, não sei se isto é transferir uma responsabilidade minha, mas


apelo muito àquilo que é o poder político, quando eles se zangam
muito. É um instrumento que, às vezes, leva as organizações a agirem
de determinadas maneiras em detrimento de outros e quando eu digo
da comunicação social (referindo-se à imprensa) pode ser de uma
outra instituição, porque ninguém quer ficar mal no papel. Embora
haja o critério definido, às vezes, é muito complicado, então nós não
temos uma lei...

Quando se vê diante de situações conflitantes que a colocam em xeque nos seus


valores e compromissos profissionais, ela tem justificado e respondido a si mesma e aos
usuários de várias maneiras. A seguir, Luísa conta como lida com as frustrações e impotências
com as quais se depara no cotidiano dos atendimentos que realiza.

–– Eu explico, “mas não fui eu que defini”, “mas a senhora, consegue


viver com esses valores?”, Eu digo, “pois eu percebo, mas eu estou
aqui não em termos tão pessoais, eu não sou a vizinha, eu sou
assistente social e eu não posso fazer nada porque estou ao serviço de
uma instituição que definiu isto”. É difícil, isto é um papel muito
difícil de fazer porque muitas vezes eles têm razão, mas também, às
vezes, penso e eu lhes dou total razão. Claro, tem razão eu não posso
fazer coisas que… [...] há questões que eu não posso mesmo fazer, ao
ponto que eu costumo dizer, “entre eles e eu, primeiro estou eu”. É
para mim muito claro que, não vou fazer alteração em termos de
números para fazer o indivíduo estar dentro do critério. Faço uma
outra coisa que me pode dar mais trabalho, que é a tal informação
(relatório), isso eu faço. Mais do que isto... Depois o poder
institucional está presente diariamente na prática, mas esta é a
realidade com que eu me tenho que de confrontar e eu tenho limites e
se eu ultrapassar um limite, posso ter uma sanção e depois posso ficar
como eles, uma excluída. É uma situação que não é fácil e nem
sempre eu lido da mesma maneira, depende da pessoa que está à
minha frente, depende do que está em causa, depende da situação de
fragilidade dela, depende se eu percebo que, afinal, ela está a enganar
e se eu tenho desconhecimento. Então, a minha atitude é uma atitude
mais desprendida. A forma como eu lido com isso depende do
indivíduo que eu tenho à minha frente porque a alguns eu dou
explicações, a alguns eu desculpabilizo, a alguns eu contextualizo, a
alguns eu informo que podem fazer de maneira diferente. A alguns eu
digo que “eu fico triste como o senhor por não poder ajudar”.

Alice, por sua vez, equaciona a mesma realidade com outras leituras e ponderações:

[...] Sim, tu vês o RSI tem mínimos, tem máximos etc. Alguém tem
que ver, portanto, se de fato... E não sei se tem que ser a assistente
social. Aqui entre nós há imensa discussão sobre se as pessoas que
261

tem direito ao RSI, ou Rendimento Social de Inserção, são aquelas


que efetivamente mais precisam, por causa do problema da
fiscalidade, porque as pessoas não têm... Fazem muitos trabalhos
informais porque... Por exemplo, as pessoas queixam-se muito que os
ciganos isto e aquilo... Depois há lutas entre os pobres, sabes como é,
portanto, atacam-se uns com os outros... Mas, como estava a dizer
que, “os ciganos todos têm RSI ”, quando os ciganos são
discriminados... Mas, outros pobres que não conseguiram dizem, “se
eu fosse cigano tinha”. E eu costumo dizer quando oiço essas coisas,
“se calhar não queria estar na situação deles.” A verdade é que eles
(ciganos) fazem trabalhos, mas são trabalhos informais, são trabalhos
muito pobres e depois como tem muitos filhos acabam por ter RSI
altos. E depois, também é verdade que, se passeiam com carros é que
são necessários para os negócios deles de venda. São carros velhos
também, mas esses são, portanto, sinais que a outra população pensa
que são sinais de riqueza; que eles têm o RSI e os outros não têm. Pois
como os patamares aqui são muito baixos, existe de fato, um conjunto
de pessoas que não acede a nenhum tipo de apoio e necessitava ter
apoio. [...] Agora, as normas são essas, e quando me dizem “há
pessoas que tem direito ao RSI e que, no entanto, não deveriam ter”, eu
digo, “não sei, não tenho elementos, não sou eu que sou responsável
por isso, possivelmente podem ter razão ou podem ter porque... [...] os
meus colegas, os assistentes sociais, não são fiscais, nem estão
preparados para esta fiscalidade.

O Serviço Social, assim como as outras profissões, tem sido profundamente afetado
pela ofensiva neoliberal, variando de intensidade de país a país, sendo que em Portugal isso
assume na atualidade formas dramáticas, com o corte orçamentário nas políticas sociais,
conforme já pude tratar anteriormente nesse estudo.
Tília conta os dramas vividos pelos assistentes sociais. A supervisão que realiza tem se
configurado como lugar onde os profissionais depositam as angústias que sentem diante dos
usuários, da profissão e de sua própria situação de trabalhadores assalariados. Ela mesma
também está em crise, quando vê desabar tudo aquilo que ajudou a construir como cidadã e
profissional nos desdobramentos da Revolução de 25 de Abril. Dessa forma, começa a contar
o que tem se passado nas reuniões de supervisão, destacando o estresse causado pela pressão e
pela violência vivida no cotidiano institucional:

–– Sei que me preocupa o estado de estresse dos profissionais, dos


assistentes sociais que é muito grande aqui. Acho que nem no Brasil
deve haver esse estresse. Esta profissão está muito estressante e, eu
como supervisora confronto-me com isto permanentemente. [...] Lá
vão elas ter, elas estão com medo de serem agredidas [referindo-se às
colegas assistentes sociais]. Ainda há dias, uma colega levou uma
bofetada de um beneficiário e ela ficou com a cara um bocado...
262

Porque as pessoas perdem, quer dizer, os pobres já viveram um


bocadinho melhor, porque esta promessa do Rendimento Mínimo
Social, era uma promessa que a gente pensava que se ia cumprir ao
nível da inserção e ao invés de avançarmos, recuamos muito. Mas,
penso que a questão maior, não é a questão teórica, falo de uma falta
de liberdade que existe, mas que é escondida; uma falta de vontade, de
liberdade, qualquer coisa que… A maneira como nós estamos, como
estão os beneficiários e isso temos que discutir [...] Na última reunião
uma colega nos colocou que foi ameaçada por um beneficiário que lhe
disse que a agrediria e que havia de a apanhar na rua para lhe fazer
lanhos na cara.... Ela estava muito nervosa porque ficou com medo e
achou mesmo que algum dia alguém a podia agredir. E então aí, achei
que ela própria precisava de ajuda, de apoio e essa reunião de
supervisão foi mesmo para falar sobre isso; do medo que as pessoas
agora têm. Perguntei se haveriam alternativas, e ninguém disse uma
alternativa, a não ser uma colega que disse, “eu ouço-os”. E depois
outros colegas disseram, “mas nós não temos tempo sequer de os
ouvir”. Veja lá a situação em que cá estamos todos nós. Não temos
sequer tempo de os ouvir; foi uma reunião muito difícil. Por um lado,
houve até colegas que se emocionaram, que choraram, que disseram
que se tivessem outra forma de viver hoje não seriam assistentes
sociais e houve outras que no final estavam mais serenas, de terem
posto ali as preocupações, de terem dito que tinham medo e que
pareciam mais serenas.

Esse depoimento reforça o medo e a apreensão já apresentados por Luísa, que agora
aqui reaparece, carregando nas cores e formas no sentido de nos permitir perceber o que se
passa no cotidiano profissional do assistente social, quando ele mesmo, ao representar a
organização do Estado que faz o corte do benefício, transforma-se na cara da exclusão. Nesse
sentido, passa a receber toda a carga de agressividade do usuário insatisfeito e desesperado
porque teve seu benefício cancelado. Tília, a entrevistada se põe a pensar sobre o que está
acontecendo na organização onde trabalha e na profissão, colocando em xeque a política atual
do RSI e perguntando-se sobre o que fazer diante do sofrimento expresso pelas colegas.

— [...] acho que as minhas colegas vivem numa situação de alienação,


exatamente, porque o trabalho que elas fazem é dar dinheiro no
imediato, sem análise e sem possibilidade de reflexão. Eu fiquei tão
preocupada nesse dia [refere-se à reunião de supervisão] porque podia
sentir-se o medo e o risco; não se esqueça que agora há polícia lá na
sala de atendimento, há polícia porque há beneficiários que entram lá
exaltados. E eu achei que apesar do medo, sobretudo, algumas pessoas
revelaram o seu medo e chegaram a dizer que “a culpa é dos chefes,
porque os chefes se quisessem ajudavam, se quisessem que fosse de
outra maneira, poderia ser de outra forma”.
263

Entender o que acontece na operação concreta do corte do orçamento destinado ao RSI

é complexo, pois não se trata de simples de corte de verba. Como se trata de direito social
previsto em lei — portanto, dever do Estado —, o acesso do pleiteante ou a sua manutenção
no benefício se dá mediante o cumprimento dos critérios estabelecidos. A cobrança da
contrapartida é quase impagável, sem falar do trabalho que dá ao beneficiário ao ter que
reunir as provas ou comprovantes de que está procurando emprego ou que se encontra
impedido de fazê-lo por questões de saúde.
Diante dos sérios desafios vividos pelo povo português, Tília expressa uma angústia
profunda, ao constatar com certa surpresa o que se passa com os usuários e com os assistentes
sociais que operam o RSI, perguntando-se como deveriam proceder para sair desse lugar em
que se encontram. É quase como se não acreditasse no que vê.

— Acho que há aqui um processo que é delicado também, porque


acho que há muito pouco entusiasmo dos profissionais, muito pouco
entusiasmo dos assistentes sociais. Eu não sei como é que se pode dar
a volta, mas ao mesmo tempo, isto é muito agressivo dizer isto dos
profissionais, é agressivo dizer isso dos profissionais que eu conheço,
é muito agressivo! De outro lado, as pessoas precisam de trabalhar,
precisam do salário, e eu recuso-me a entrar nesse discurso; temos de
nos centrar, sobretudo, na nossa missão, que é a de trabalhar com as
pessoas que, de alguma maneira, tem problemas de inserção social. E
sabe o que acontece? Muitas vezes, começam a discutir a sua própria
situação, isto acontece em muitas situações; para muitos são os
salários baixos, para outros os cortes nos salários que vamos ter agora,
aqui. [...] Pois, mas eu própria também... Isso é novo, quer dizer para
mim é novo e, de fato, também é objetivo. Há colegas minhas que eu
sei que os maridos já perderam o emprego, há colegas minhas que têm
problemas familiares de desemprego de maridos, e elas apesar de
tudo, hoje em dia, ser funcionário público, pode-se ter o salário
cortado, mas ainda se vai tendo alguma segurança no trabalho, pelo
menos, por enquanto.

A expectativa de Tília era de que os colegas na reunião de supervisão refletissem sobre


o que vivem hoje na profissão que, nesse momento elas rejeitam. Fica surpresa ao vê-las
falando de seus dilemas pessoais e familiares. 98 A crise atual rebate nas suas vidas, porque são

98
Apresento no Anexo 4 um recorte da entrevista realizada com Tília, no momento considerado por mim como o
mais decisivo. Diante da dramaticidade da situação que se apresentou, passei a estabelecer um diálogo com a
entrevistada, em que, no momento, tive a sensação e depois a confirmação, de ter ultrapassado os limites de
entrevistadora da pesquisa. Depois, pude entender que ela trouxe, de forma extremamente viva, o que está
acontecendo no cotidiano da prática profissional naquele espaço sócio-ocupacional da profissão em Portugal. No
diálogo estabelecido, pode ser percebido o sofrimento e os questionamentos da entrevistada, que não são
obviamente só dela, que fazem as assistentes sociais se sentirem impotentes diante do processo de dominação e
cooptação com que se deparam.
264

trabalhadoras assalariadas e, portanto, se sentem afetadas e com medo do futuro como os


demais trabalhadores.:

— Mas eu queria voltar a esta questão da capacidade de reflexão,


porque apesar de tudo, eu também tenho um enquadramento
institucional, e eu pensei, naquele momento, que se as pessoas
fizessem uma reflexão escrita sobre aquilo que sentiam, o que gostam
de fazer ou não gostam de fazer, daquilo que sentem na situação atual,
o que é que achavam que deveriam fazer que, se fosse uma reflexão
sozinha, sem nome, para dizer tudo o que lhes apetecesse, sobre a
instituição, sobre a sua atividade, se fossem elas a decidir, porque elas
disseram muito, “o chefe é que manda, nós só fazemos o que nos
mandam”; muito dominante este discurso e então eu propus-lhes,
neste momento, que fizessem. Só tenho uma, são cartas anônimas e
todos disseram que sim, que faziam e que já uma entregou. Em
principio, será até ao fim do ano e fiquei impressionada com este
testemunho que li. O que é que se faz com este testemunho, que é...?
Ela não gosta de fazer nada do que faz, “não gosto de dar dinheiro,
não gosto de ser maltratada pelos chefes, não gosto de vir para o
trabalho, não gosto de ser maltratada nas reuniões do Núcleo de
Inserção”, que é uma instância do programa do RSI, “sinto-me
desvalorizada, acho que já nem sei ser assistente social”. Ou seja, é
impressionante o estado em que aquela mulher, profissional, pessoa,
está. E eu queria tanto pensar sobre isto!

● Especificidade do trabalho profissional no Brasil

As entrevistadas brasileiras, após a realização da leitura das entrevistas realizadas com


as assistentes sociais portuguesas, apresentaram um parecer sobre cada uma delas que passo a
expor a seguir.
O discurso de Tília despertou muita reflexão entre as brasileiras, e Graziela, que
efetuou a leitura da sua entrevista transcrita, apresentou sua análise:

–– A profissional que eu li ela [...] ela é da seguridade social, ela dá


supervisão para profissionais, tem 61 anos, foi formada no período da
ditadura lá de Portugal. Aí ela passa todo o processo de
redemocratização de construção de direitos e hoje acho que ela está
vivendo uma crise. A entrevista dela inteira é a demonstração de uma
profissional em crise do ponto de vista da restrição severa de direitos e
sobre como poder entrar a arbitrariedade na seleção socioeconômica
dos profissionais da ponta não terem referências mais severas, mais
rigorosas no sentido de poder orientar a seleção socioeconômica. Ela
fala de uma angústia... [...] Acho que a angústia dela está tão grande
265

que ela, inclusive isola a discussão teórico-política dessa ação


profissional. Ela está decepcionada e está se transformando em
sofrimento ético-político, nos dizeres da Bader, 99 ou então sofrimento
psíquico, porque ela fala que lá não existe a conversa entre os
profissionais, não existe! A discussão política minguando e aí ela joga
dizendo que para fazer uma seleção socioeconômica do jeito que está
sendo feita não precisa de profissional. Ela perde de vista até a história
da profissão. [...] É que ela também tem um olhar que {o acesso} é um
direito e não tinha que ter muita discussão, se é um direito de todos
não deveria ter seleção. Se é um direito não precisa da ação do
assistente social. Ela está muito dura, muito rígida, talvez
decepcionada de estar perdendo tanto espaço de trabalho e,
infelizmente, parece que ela não caminha muito para a discussão mais
ampliada da crise europeia, da crise do capitalismo. Hoje ela fica mais
sucumbida, na verdade, até escrevi no relatório dela, ela está
completamente contaminada pela crise das suas colegas que, não
consegue estabelecer esse distanciamento.

Regina, que analisou a entrevista de Alice, disse:

–– A minha consegue, acho que ela chega, ela é mais politizada e ela
coloca... Mas ela fala que os assistentes sociais têm vergonha, porque
lá é ação social, e eles têm vergonha de falar que são da assistência
social e isso incomoda os jovens profissionais. Ela vai dizer “mas há
pessoas que precisam de um assistente social permanentemente para
viver com um mínimo de dignidade sem termos expectativa de que
vamos mudar sua condição de vida embora eles tenham direito a isso”.
[...] A minha assistente social que é a Alice, ela fala que ela não faz
seleção socioeconômica porque lá o recurso do medicamento é um
recurso que tem para todos, mas mesmo nos limites que tem, em
relação à da permanência no alojamento, ela vai dizendo que ela vai
construindo alternativas com cada usuário dependendo das
necessidades que esse usuário coloca. Eu acho que ela mostra uma
satisfação de como ela faz isso, em fazer isso, inclusive ela fala “eu
não mando para a Renda Mínima porque eles não vão ser selecionados
e é para ficar aqui que a gente vai construindo alternativas”. Só que,
ao mesmo tempo em que ela faz isso, ela fica ainda na pontualidade, a
cada situação ela dá uma resposta construída com aquele usuário e eu
acho que é isso que falta, tanto para eles quanto para nós; essa
perspectiva de que como é que com as informações que nós temos dos
usuários, podemos pensar em novas propostas coletivas, e eu acho que
fica muito na necessidade de atender aquele usuário. Ela fala depois
que não tem uma sistematização, não tem uma reinterpretação disso
que poderia dar em uma outra coisa. A satisfação vem pelo tipo... Que
ela avança, ela usa uma coisa que é assim “então você não é uma
funcionária”. Eu acho que é isso, o assistente social que vai, que segue

99
Refere-se ao texto de Bader Sawaia (2004), intitulado “O sofrimento ético-político como categoria de análise
da dialética exclusão/inclusão”.
266

só o padrão, a burocratização do parecer... Ela não faz isso, mas ela


também não dá um salto... De que ela tem uma possibilidade de
sistematizar isso de pensar de outro jeito.

Isaura, que atua em uma universidade, assim se expressou sobre a fala de Fátima:

–– A minha já não é politizada e nem se importa com a teoria, ela fala


isso muito claramente. E quando perguntada como foi a sua formação
ela fala “não sei dizer rigorosamente nada, não leio sobre isso, não me
lembro de ter aprendido isso. Aprendi com a legislação. A legislação
diz o que eu tenho que fazer”. Ela percebe, ela fala que os recursos
estão sendo reduzidos e que a situação que vai apertar por causa da
crise, mas ela não problematiza a crise.

Eunice se manifesta em relação à entrevista de Luiza, dizendo:

–– Eu li a entrevista da Luiza e fiquei com muita vontade de conversar


com ela. Por um lado ela me pareceu uma pessoa que tem um
compromisso com a profissão, eu não conheço como está o Serviço
Social em Portugal hoje em termos de projeto profissional, mas eu sei
que a PUC contribuiu bastante com algumas mudanças, na medida em
que foi lá levar o pós-graduação e tudo, mas eu acredito que não esteja
pelo menos no projeto ético político no mesmo patamar que está o
Brasil. [...] Mesmo sem conhecer, eu percebi na Luiza essa
preocupação com o compromisso de que a profissão, embora ela não
tenha falado isso claramente, de alguma forma contribui com a
inclusão no sentido de garantir direitos sociais para a população. Eu
senti um pouco isso na fala dela, mas, ao mesmo tempo, ela tem
clareza que é um programa extremamente seletivo e eu fiquei
impressionada com a pressão que ela fala claramente que os
profissionais têm no dia a dia, a pressão da população em relação...
Quer dizer, se eu estou excluído o assistente social acaba sendo
culpabilizado e você é o responsável, então você às vezes não tem
aquela perspectiva de como essa política está colocada no âmbito do
Estado. Acho que a dificuldade é de trabalhar isso mais coletivamente,
porque eles têm uma meta a cumprir e tem uma cobrança institucional
pelo Estado e são fiscalizados e são sujeitos. Pelo que eu pude
perceber, ela não usou esses termos, mas acho que até existe meio que
uma auditoria para verificar se você está, de fato, cumprindo os
requisitos ou os pré-requisitos e isso me pareceu um ambiente de
muita pressão.

Graziela apresenta as semelhanças que percebe entre a situação exposta por Tília e a
realidade vivida pelos assistentes sociais brasileiros.
267

–– [...] É que em certa medida a angústia na nossa categoria também


existe lá. Ela fala de uma desorganização política dos profissionais e
acho que a gente também aqui está vivendo, esse arrefecimento de
organização política da categoria, seja via sindicato, seja via de
algumas associações especializadas. Acho que o recurso que está
vindo para a especialização e o mestrado para poder se dar conta...
Agora foi criado o Fórum Estadual dos trabalhadores do Suas e está
sendo criado o Fórum Nacional de trabalhadores do Suas. Em São
Paulo ele está sendo puxado pela Psicologia e não pelo Serviço Social;
é uma espada colocada na nossa cabeça, acho que tem questões
semelhantes, embora tenha essas diferenças que foram colocadas entre
a crise europeia e nós no Brasil.

Eunice, assim como Graziela, também se refere ao adoecimento do profissional ao


comparar duas realidades. Diante da crise e estresse vivido por Luísa, ela aponta várias saídas
possíveis que valem para toda a categoria profissional no Brasil e em Portugal, sendo que uma
delas se coloca como a única saída de enfrentamento que tem futuro. Trata-se daquela que
propõe uma atitude de resistência que se sustenta na organização política da categoria na
busca de respostas coletivas.

–– Comparando com algumas áreas aqui do Brasil, eu acho que o


profissional que tem esse compromisso ele pode, ele tende a adoecer
se não encontrar alguns espaços para refletir criticamente sobre essa
prática e pensar em alternativas coletivas. Eu digo a partir da minha
experiência no Judiciário, que a gente tem três saídas, você, o
profissional que está na ponta: ou você banaliza e entra na dinâmica
de estar cumprindo o que o Estado..., o Estado que quer que você
esteja lá para fazer a inclusão e a exclusão e você passa a banalizar
muitas vezes a vida humana quando você trabalha só com dados
extremamente objetivos, ou você banaliza e burocratiza, às vezes, até
como mecanismo de autoproteção. Não estou dizendo que eu
concordo ou não com isso, mas a gente vê isso, embora a gente não
faça seleção socioeconômica no Judiciário, mas você banaliza porque
são tantas tragédias com as quais você tem que lidar, e com essa
impossibilidade de acesso ao direito por parte da população. Ou você
banaliza, ou você adoece — e aí a gente vê os mais diversos
problemas de saúde tanto físico como mental — ou você resiste, e eu
acho que a resistência passa pela pesquisa, por essa dimensão
investigativa da profissão, e por uma organização política mesmo,
acho que não tem outra saída. Lendo o trabalho dela, e até depois eu
fui ver que algumas tinham uma militância em sindicatos, e fui ver de
novo se era o caso dela, mas ela não tem, então você fica muito
sufocada por essas exigências institucionais...
268

No Brasil, de forma não tão violenta, as condições de trabalho profissional apresentam


traços parecidos aos de Portugal, porque aqui também há perdas de direitos, configurando-se
um retrocesso em relação aos direitos sociais conquistados, e intensificação da burocratização
e do ritmo de trabalho do assistente social de forma preocupante. A implementação da política
neoliberal adquire particularidades em cada país.
Isaura avalia e analisa de forma crítica o processo de banalização do atendimento que
vem se dando no Brasil quando diz que:

–– Vivemos um momento de grande retrocesso, especialmente, porque


na Política de Assistência Social, por exemplo, os critérios estão dados
e a entrevista [realizada com os usuários] é mediada pelo computador;
não se conversa mais assim... O computador está no meio da conversa.
Está tudo lá e você só preenche; e é [estudo] econômico. Tanto é
verdade que quando a pessoa arruma emprego entra pela Rais, no
Registro em Carteira, aí cai no sistema e o cartão é bloqueado; então é
econômico. Só tem uma relação maior, uma entrevista, uma visita
domiciliar quando há problemas relacionados ao descumprimento da
condicionalidade. Arrumou emprego, violência, abuso, fora disso, é
um estudo exclusivamente econômico.

Graziela concorda com a análise apresentada pelas demais colegas e também expressa
preocupações em relação aos impactos que o avanço da computação tem causado nos
atendimentos realizados nas organizações sociais.

–– Acho que ficou mais burocratizado do jeito que a Isaura está


colocando, fica mais burocratizado e acho que estabelece desafios
para o trabalho do assistente social no sentido de executar esse
possível trabalho social, tanto que hoje em São Paulo tem uma
discussão entre os assistentes sociais sobre o Suas [Sistema Único da
Assistência Social], se exatamente, são eles que deveriam preencher o
cadastro único porque o preenchimento é on line, mas ele não tem
acesso ao perfil da população do seu distrito o que é exatamente
contrário à perspectiva da política, porque a política propõe...[...]
Neste sentido, eu concordo com Regina que reduziu, porque na
verdade assim não se usa nem os critérios da pesquisa condições de
vida do Seade, porque se usasse pelo menos estaria usando os
indicadores para não trabalhar só com indicador de renda, mas estaria
levantando os indicadores relativos à moradia, saúde, acesso a
educação e não a simples cobrança de estar inscrito na escola e
deveria ter mais do que isso, a qualidade da escola, permanência.

Isaura apresenta outro exemplo que do que vem ocorrendo no Brasil no cotidiano das
organizações sociais, que põe a prova o nosso senso de justiça e do compromisso do assistente
269

social com os usuários e que é tratado na ordem institucional como se fosse “normal” atender
daquela forma.

–– É do mesmo jeito se você vai trabalhar e a sua renda aumenta.


Outro dia contaram na assessoria que a gente fez em Diadema: a
pessoa chegou, foi pegar o dinheiro do Bolsa Família e o cartão estava
bloqueado aí ela foi no Cras, aí a assistente social entrou no
computador e disse “porque o seu marido está trabalhando”. Aí a
pessoa respondeu “sabe que ele foi embora ontem?” Não era verdade,
mas o cara começou a trabalhar e no dia seguinte cai no sistema e o
cartão é bloqueado. Quer dizer, não se respeita o tempo de
experiência, não se respeita nem o cara receber o salário pelo menos.
Esse sistema que eles acham bonito porque está interligado, não tem
alma, não tem cor; não tem trabalho em cima disso.

Nessa situação, parece que é o computador que “adquire vida”, ao “decidir que o
indivíduo não irá mais receber o benefício, porque ele acabou de arranjar trabalho”, e mesmo
quando ainda nem recebeu o primeiro salário já é eliminado. Esse exemplo coloca em pauta
mais uma vez a necessidade de reflexão sobre as decisões profissionais diante do uso cada vez
mais determinante do computador que vem tornando supérfluas as decisões profissionais,
porque as “decisões” já estão programadas no sistema.
O uso da computação, que vem substituindo o uso de mão de obra e contribuindo para
o fechamento de muitos postos de trabalho existentes, chega hoje ao trabalho realizado pelas
organizações sociais nas quais os assistentes sociais atuam de várias formas e, portanto, tem
se colocado também na discussão da operação dos processos seletivos. Essa questão deve
merecer atenção cuidadosa da categoria, pois é situação relativamente nova no mundo e na
profissão e cada um a tem tratado do jeito que julga melhor, sem analisar mais globalmente as
implicações do uso desse recurso. É preciso a construção de formas coletivas para lidar, por
exemplo, com o sigilo profissional quando o computador se interpõe na relação entre o
assistente social e o usuário. Trata-se do trabalho morto que passa como que dar a direção ao
trabalho vivo. Coutinho (1972) explica que:

[...] a fetichização das relações humanas complexas (empresas ou Estados), que se


tornam não uma objetivação e um instrumento dos homens, mas sim “entidades
naturais” ou “coisas” das quais os homens passam a ser instrumentos, servidores e
funcionários, e cujas finalidades e conteúdos não são questionados (COUTINHO,
1972, p. 28).

Diante do exposto, podemos visualizar concretamente como as mudanças que vêm se


operando no âmbito do capitalismo internacional na atualidade, configurando a etapa de
270

globalização neoliberal, aliada à revolução provocada pelos avanços na computação, têm


remexido em todos os espaços da vida social de forma rápida e decisiva, dentre os quais
encontram-se os espaços sócio-ocupacionais da profissão.
O que se assiste no mundo é a busca desenfreada dos lucros por parte dos
representantes do capital, sob a hegemonia do capital financeiro, nesses tempos de
capitalismo neoliberal. Há um aprofundamento da miséria, quando se perdem direitos
duramente conquistados através da luta dos trabalhadores, além dos sérios danos que, a cada
dia, são infligidos às reservas naturais do planeta, colocando-o em sérios riscos de vida.
Nessa conjuntura, ocorrem avanços tecnológicos que representam verdadeiras
maravilhas quando vistos sob a ótica da história da humanidade, sobre a capacidade de
criação e transformação dos homens. Como essas novidades e conquistas, no entanto, não têm
sido usadas de forma proporcional à melhoria das condições de vida para todos nem com os
devidos cuidados, passam a se implantar trazendo muito sofrimento a significativa parcela da
humanidade. Refiro-me à reestruturação produtiva que produz, dentre outras consequências, o
fechamento de número significativo de postos de trabalho devido ao desenvolvimento da
robótica e da eletrônica, gerando e contribuindo para o desemprego estrutural.
Saber que um robô pode substituir o trabalho humano em atividades perigosas que
colocam a saúde humana em risco é uma boa notícia. Mas saber que a criação dessa
tecnologia fecha postos de trabalho, sem que nenhuma política social seja criada em função
dessa consequência, tem significado motivo de padecimento a uma parcela da humanidade.
As conquistas obtidas pela criação da tecnologia, quando apropriadas de forma
privada, vêm contribuindo para piorar e acirrar as desigualdades sociais.
As críticas aqui expostas não se dirigem propriamente aos avanços conseguidos pela
tecnologia, mas à forma de sua apropriação, uma vez que se fossem, de fato, usufruídos por
todos, poderiam levar toda a humanidade a ter que trabalhar menos e, assim, se beneficiar das
riquezas e belezas conseguidas para a melhoria a qualidade de vida de todos, que hoje não
estão disponíveis à maioria da população mundial.
No mundo capitalista no qual vivemos, qual é o futuro próximo de uma parte da
humanidade que depende do trabalho para viver, diante de uma realidade que não há trabalho
para todos e no qual o acesso aos subsídios estatais tem diminuindo, através da política social
que vem se focalizando?
Ao mesmo tempo em que nunca antes na história da humanidade existiram tantos
recursos e tecnologias disponíveis no sentido de responder às necessidades humanas,
assistimos hoje a um desamparo assustador, quando amplos segmentos de indivíduos estão
271

completamente abandonados à sua sorte, em formas de viver que beiram a barbárie. O


individualismo brutal faz com que cada um vá ficando solitário e isolado, tendo que se
responsabilizar sozinho pelas condições de sua vida.

Parece que num contexto histórico em que os públicos mais vulneráveis precisam
mais do que nunca de estabilidade, segurança e de processos de intervenção e
acompanhamento longos e multidimensionais, há uma ideologia hegemônica que faz
a apologia do imediatismo e que inibe o desenvolvimento de uma intervenção mais
alargada e profunda. Persiste um paradoxo que lado a lado formas de acção
ultrainstrumentais e um insistente discurso da individualidade, da construção
conjunta de narrativas e da importância de reconstruir e/ou reforçar o “trabalho”
sobre as identidades (BRANCO; AMARO, 2011, P . 670).

Esse processo histórico internacional, contudo, precisa ser entendido nas suas
particularidades e singularidades, uma vez que, embora tenha uma natureza de abrangência
universal, não se expressa do mesmo jeito e com a mesma intensidade em todos os lugares.
Em cada parte, adquire determinadas características que necessitam ser apreendidas, sob pena
de deturpação do entendimento.
As conquistas obtidas pela computação têm rebatimentos em todas as esferas da vida
social e, no trabalho dos assistentes sociais. Têm sido utilizadas nas organizações sociais para
o controle social sobre o trabalho dos profissionais e dos usuários que se utilizam dos serviços
prestados e para o aumento da produtividade do trabalho, quando são estabelecidas
claramente as metas a ser cumprida por cada profissional, desconsiderando o processo dos
atendimentos realizados ou a qualidade deles.
Em Portugal, as transformações operadas no capitalismo internacional e no mundo
trabalho adquirem determinadas formas, no âmbito da denominada “comunidade europeia”,
acabando por colocar a profissão em lugar complicado quando o acesso ao direito social vai
perdendo o seu caráter mais universalizante e vai se focalizando através da realização da
prova de recursos. Ou seja, quanto àquilo que era um direito, agora o indivíduo tem que
provar que detém méritos de pobreza e que se encontra impossibilitado de trabalhar.
O profissional, nesse contexto de verdadeiro retrocesso, passa a se constituir em porta-
voz de más notícias, quando se torna o responsável para operar a seletividade de acesso,
incluindo a cobrança da contrapartida, e aquele que dá a notícia ao usuário do seu
desligamento do benefício.
Através desse processo, o RSI se focaliza, porque, se antes tinha traços
universalizantes, hoje podemos visualizar claramente que o horizonte é o de atender somente
determinados segmentos bem delimitados dos pobres.
272

No Brasil, a política de assistência social tem expandido o número de indivíduos


atendidos. Os assistentes sociais têm sido os porta-vozes de boas notícias aos usuários, que
acabam por ficar satisfeitos com o benefício, diante da miséria em que vivem e apesar de
benefícios tão irrisórios.
O processo de trabalho do assistente social em Portugal e no Brasil, no entanto, tem
muitas semelhanças.
Atualmente, nos dois países tem sido dada ênfase ao produto quantitativo do trabalho e
ao cumprimento de metas, em detrimento do processo e da socialização de informações com
os usuários, os quais têm sido atendidos individualmente. A tela do computador e os papéis
comprobatórios ocupam o centro da relação entre profissional e usuários, acabando por levar
aquele a desfocar o atendimento, ao substituir o atendimento que desvenda as expressões da
questão social contidas na demanda trazida por estes, pelo atendimento de caráter burocrático,
centrado no resultado. Essa forma de intervenção “estreita de tal forma o horizonte para a
prática que, em última instância, esvazia o Serviço Social da sua alma, aspirações e propósitos
ético e políticos” (BRANCO; AMARO, 2011, p. 677).
Diante desse quadro sócio-histórico, resta-nos, enquanto membros de uma categoria
profissional e cidadãos, nos perguntar: que fazer e como enfrentar os sérios desafios que estão
colocados aos trabalhadores em geral e aos assistentes sociais em particular, como
decorrência das transformações se operam no mundo do trabalho e nas políticas sociais?

4.4.8. Como se deu a qualificação das entrevistadas para a realização da seleção


socioeconômica

Neste item, está em pauta a formação recebida pelas entrevistadas para a realização da
seleção socioeconômica situada no campo de instrumentalidade profissional. Trabalhamos
com a hipótese de que as entrevistadas não haviam estudado tal assunto na graduação, uma
vez que sobre ele há apenas pequenos fragmentos na produção bibliográfica do Serviço
Social, conforme já foi tratado. Essa premissa se confirmou nas entrevistas realizadas,
cabendo-nos, então, diante desse fato o equacionamento da questão sobre onde buscaram os
fundamentos para a sua realização.
Alice se manifestou, dizendo:

— Não aprendi... Aprendi na pratica, mas, sobretudo, no Mestrado em


Políticas Sociais. [...] as várias disciplinas do mestrado e o meu estudo
273

permanente, e estar permanentemente a estudar ajuda-me, portanto, a


ler e a ver. Acho que é muito importante o aprofundamento teórico
destas realidades para a compreensão do significado das coisas; o
significado do que é o Estado e o que são as Políticas Sociais, o que
são os critérios, portanto, toda esta aprendizagem. Sobretudo se for
feita numa perspectiva crítica, é fundamental para depois lidarmos
com este tipo de prática. [...] conhecer as políticas sociais, conhecer o
seu significado, conhecer as normas, conhecer a história da Ação
Social, a história da nossa profissão. Acho que é extremamente
importante conhecer a história da Ação Social, essa coisa bizarra que
antes era a Assistência Social e agora já não é Assistência Social,
agora é Ação Social, que no fundo é a mesma coisa. E daí por que as
pessoas terem medo e vergonha de dizer que estão na Assistência
Social? Isto incomoda imenso, sobretudo, os jovens profissionais.

Ela entende que é a formação abrangente do profissional na perspectiva crítica que deve
subsidiar a prática profissional, inclusive a realização da seletividade de acesso aos serviços e
benefícios sociais, sendo que aprofundou essa compreensão destacadamente no mestrado.
Os fundamentos da profissão, do Estado e da política social são referências que
possibilitam ao profissional fazer leituras da realidade próxima e ver para além das
aparências, e a partir daí intervir. Ou seja, a entrevistada não se refere a nenhum elemento
específico da formação no âmbito da instrumentalidade profissional, pois considera que são
aqueles fundamentos que iluminam as leituras que faz acerca das situações que se apresentam
a ela no cotidiano de seu trabalho.
Alice reconhece, entretanto, que os profissionais, para atender as pessoas e fazer um
bom processo seletivo, devem ser formados e preparados, embora não soubesse, naquele
momento, explicitar no quê. A reflexão apresentada refere-se à necessidade de formação no
âmbito teórico e ético-político para indicar os compromissos com quem trabalhamos, para que
possamos nos enxergar do mesmo lado de quem atuamos, ou seja, como trabalhadores
assalariados que se propõem a defender interesses dessa classe. Ela se refere à necessidade do
profissional não julgar moralmente as pessoas com as quais trabalha.

— Eu acho que eu não sei como hei de explicar, isto educa-se. É algo
que se educa e fundamentalmente vem de dentro, tem a ver com a
relação e fundamentalmente com o acreditar nas pessoas. Nós nos
julgarmos... Nós sempre pensamos, eu sempre pensei durante toda a
minha vida profissional, se calhar tu tens um trajeto de vida algo
parecido ao meu [dirigindo-se à entrevistadora], que eu podia estar,
realmente, estar no lugar daquela pessoa que atendo como assistente
social. Se não tivesse conhecido aquela outra pessoa, se não tivesse sido
aquela circunstância ou outra. Ela, que atendo não é diferente de mim.
274

Entendo que sua fala expressa a necessidade de o profissional pensar e repensar


constantemente seus valores e compromissos. Nos cursos de Serviço Social, deve haver
atividades que permitam ao aluno se rever e formar valores condizentes com a defesa dos
interesses dos usuários dos serviços e benefícios sociais, porque isso pressupõe educação e
treinamento, uma vez que não ocorre por geração espontânea, sendo, portanto, uma pauta a
ser claramente trabalhada na formação do assistente social.
Fátima reconhece a necessidade da pesquisa realizada sobre o fazer profissional, do
estudo e da reflexão constante:

— Quem está na prática, assoberbado, com as situações e com as


coisas... Trabalha-as e fá-las, mas sem as pensar, sem as teorizar e às
vezes, sem pensar sobre as coisas. [...] porque, muitas vezes, nós
estamos é preocupada que os alunos recebam as bolsas, porque têm as
escolas a pedir os pagamentos das propinas, porque têm de comprar os
livros, porque não sei o quê. E nós andamos aqui a correr, a despachar
as situações e, muitas vezes, fazemos isso tudo... E depois não temos
tempo para analisar o porquê, e o para quê e o como. E esta legislação
que temos, enfim, tem alguns aspectos que eram importantes de serem
teorizados, serem avaliados e, se calhar, nós depois acabamos por não
ter tempo para os analisar também.

Essa fala da entrevistada expressa a necessidade de reflexão sobre a criação de


alternativas de respostas profissionais no Serviço Social para responder às demandas
colocadas, através de pesquisas com as devidas socializações de seus produtos, para subsidiar
a ação dos profissionais que atuam diretamente com a população, pois diante as inúmeras
demandas colocadas pelos usuários e pelas organizações sociais tem impedido um processo
de reflexão permanente, condição para um trabalho na perspectiva crítica. Implica, portanto,
em haver na categoria pesquisadores que se dediquem ao deciframento teórico do cotidiano
visando informar a construção de respostas profissionais.
Ao contrário do que pensa um segmento da categoria profissional — que basta ter
domínio dos fundamentos para que haja um trabalho comprometido com os interesses dos
usuários —, a reflexão contida nesses depoimentos indica que é preciso treino e aprendizagem
para que o profissional relacione teoria e prática. Sem domínio e exercício da mediação como
categoria do método que possibilita essa relação, há o reforço da falsa ideia de que a teoria
não tem relação com a prática. Diante disso, os profissionais passam a criar, por conta própria,
uma teoria da prática que, geralmente, vem para legitimar as suas ações e que, ao final, acaba
275

por reforçar o pensamento vigente — que é o senso comum, pensamento predominante no


cotidiano. Ou melhor: sem a apreensão dos fundamentos sócio-históricos, não se faz prática
séria e comprometida; mas apenas com esses fundamentos, sem a detenção de meios para
operacionalizá-los, não há avanços em uma profissão de caráter interventivo.
Fátima reforça essa ideia, ao afirmar que aprendeu a realizar a seleção
socioeconômica na prática, através do estudo da legislação e da participação em eventos
organizados pela Associação Profissional dos Assistentes Sociais e de universidades.

— Não lhe sei dizer rigorosamente nada; não tenho me dedicado a


fazer leituras sobre estes aspectos e não lhe sei dizer. [...] Olhe,
aprendi a partir da legislação, aquilo que ela dizia era aquilo que eu
que tinha que fazer quando estava lá no outro serviço. Para mim é, a
legislação é que dizia o que é que eu tinha que considerar e o que é
que eu não podia considerar na tal análise socioeconômica do
agregado. Não tenho feito leituras nesse aspecto... [...] Não me lembro
de nada na faculdade sobre esse aspecto. [...] acho que foi muito mais
na prática. [...] Fui à muitas coisas organizadas pela Associação e por
algumas universidades também.

Essa fala geralmente recorrente no Serviço Social nos leva a refletir sobre o que
significa um profissional dizer que aprendeu o exercício de uma atividade profissional na
prática. Sem desconsiderar a experiência como elemento fundamental para a nossa
sobrevivência, é necessário apreender o significado dessa afirmação. Aprender na prática
pode significar ato voluntário individual que depende da boa vontade do sujeito, assim como
pode significar aprender com a prática de outros que têm a prática, esta entendida como
sinônimo de saber fazer; ou a aplicação de sucessão de procedimentos.
Quando chamada para indicar como um assistente social poderia se preparar para a
realização da seleção socioeconômica, Fátima declarou:

— Não sei, sabe! Eu acho que a dica principal, é que não fiquem
limitados pelas regras e pelas formulas, porque muitas vezes aquelas
regras e aquelas fórmulas, não dizem exatamente o que é a situação. É
importante falar com as pessoas e é importante perceber, exatamente,
perceber qual é a postura do próprio utente face àquilo que está a
pedir. Ele próprio considera que aquele apoio é ou não um apoio
importante para ele? [...] Partirmos do princípio que a pessoa que está
à nossa frente, está ali, porque efetivamente tem necessidade de um
apoio para, neste caso, prosseguir os seus estudos e que tem de ser
tratada com respeito, independentemente, daquilo que as regras,
daquilo que aquela fórmula que temos ali para aplicar. E pode até
acontecer que a fórmula diga que aquela pessoa não tem direito, e nós
276

até acharmos que tem. E aí, teremos de trabalhar a situação e


tentarmos encontrar as justificativas para lhe poder atribuir um apoio,
que nem sempre é fácil, mas a gente vai conseguindo atribuir a alguns.

Importante destacar que a entrevistada indica que, embora tenha aprendido a realizar
seleção socioeconômica, estudando a legislação que coloca regras, critérios e procedimentos,
ela mesma reconhece que é preciso ir além desta para realizar leituras sobre o que vive e sobre
as situações apresentadas pelos demandantes do serviço ou benefício social. É preciso, portanto,
ter autonomia e saber realizar leituras das singularidades das situações com que se defronta.
Quando o profissional se pauta na sua atuação somente pelas regras e procedimentos
estipulados pela organização 100, reforça o seu papel de funcionário da organização que paga o
seu salário. Para ir além e se colocar também como agente de uma profissão de forma crítica,
é preciso usar o saber, a teoria que a profissão veicula através de suas instâncias organizativas
e de formação da categoria.
Luísa, em seu depoimento, reconhece que sua formação foi pobre. Acrescenta que,
desde que se formou, já participou de vários eventos de curta duração propiciados pela
organização onde trabalha. Mas entende que não é necessário ter muita formação para realizar
seleção socioeconômica, embora na entrevista concedida não tenha sustentado essa ideia em
face das tantas e tão importantes e complexas questões levantadas e tratadas por ela.

— Muito pobre a minha formação. Se calhar, estou a subvalorizar-me,


mas as várias formações têm sido formações oferecidas em termos
organizacionais, e oferecidas pelas várias formações em diversas áreas;
são palestras, são formações de dois ou três dias. Embora, em relação à
seleção socioeconômica, essa do meu ponto de vista, objetivamente
essa, não carece de grande formação porque no manual está escrito
como se faz, é uma questão de somar e subtrair, é a questão objetiva,
porque depois a questão subjetiva, que tem a ver com a minha
sensibilidade, que tem a ver com a minha compreensão da
complexidade que pode trazer-me informação, que um problema tem
várias causas, essa formação obviamente, tive-a inicialmente, através da
licenciatura. Tenho de alguma forma, feito várias formações.

Considero que Luísa precisa ser escutada, porque representa uma parcela da categoria
profissional que deseja realizar um bom trabalho e se recicla basicamente através de cursos de
pequena duração propiciados pelas organizações em que trabalham. Embora seu depoimento

100
Entender as organizações que contratam o trabalho profissional como espaços sócio-ocupacionais da profissão
tem sido estratégia importante no sentido de o profissional poder se colocar a partir da profissão e assim lhe
possibilita enxergar o que realiza para além de um funcionário. É preciso entender o assistente enquanto funcionário
e agente de uma profissão, ao mesmo tempo em que se tem como horizonte a apreensão crítica.
277

diga o contrário, ela não reconhece nesse momento da entrevista que se utiliza das referências
da formação na realização da seleção socioeconômica, ao dicotomizar a objetividade da
subjetividade presentes na ação profissional.
Em relação às fontes nas quais busca se informar sobre o que acontece no mundo e na
profissão, ela diz:

— Já li mais [referindo-se aos jornais]. Leio o jornal de fim-de-


semana para estar atualizada, vou vendo o telejornal, mas de fato não
sou uma teórica, não utilizo para além daquilo que são os manuais das
formações, das reflexões que faço. Em termos das formações, para,
além disso, eu não tenho um hábito... A não ser por uma questão
muito objetiva, ou que seja preciso para fazer determinado trabalho.
Então, eu vou buscar alguma bibliografia para poder fazer aquele
trabalho pontual, mas, de fato, é uma necessidade muito sentida, mas
que tenho dificuldade neste momento em poder [palavra indecifrável].
O Vicente de Paula Faleiros [autor brasileiro] está muito presente
porque há este dilema constante...

A fala de Luísa sugere a necessidade de pensarmos e investirmos nas formas de


trabalhar e atingir esse segmento de profissionais que no Brasil, como constatado
empiricamente, também se mostra significativo.
Merece destaque que Luísa e seus colegas recebem supervisão sistemática de
professores da Universidade Católica Portuguesa de Lisboa, mas parece que isso não tem
animado muito as suas companheiras de trabalho, pois nem sempre o envolvimento é
satisfatório e depende da motivação de cada profissional aproveitá-lo.

— Nós somos 20 ou 23 ou 24 [assistente sociais], não


sei precisar, mas depois também depende da forma como cada
um está na profissão, se está para ser profissional e receber o
seu vencimento; se está para se interpelar; se reflete, se não
reflete; se quer fazer alguma coisa para além daquilo que está a
fazer. Por exemplo, nesta supervisão as pessoas não se
mostraram. De alguma forma, não estão muito disponíveis
para falar da sua prática. E depois há uma outra componente
que é aquilo que são as nossas obrigações, que nós temos que
cumprir enquanto profissionais, e que são os nossos objetivos
profissionais, que é a quantificação de uma parte do nosso
trabalho, porque a outra nunca é quantificada; isso é outro
desespero outra inquietação.
278

Segundo Tília, a ação do assistente social no RSI, do jeito que vem sendo realizada
hoje, está aquém do que pode um profissional, porque trata a seleção socioeconômica somente
do ponto de vista financeiro:

— Não é preciso aprender isso, também é uma conta de somar, dividir


e de subtrair e a questão não é essa, para mim não é uma questão de
termos capacitação ou não. A minha questão hoje, porque a realidade
quando me formei, foi há quase 40 anos, tenho 61 anos, portanto, há
quase 40 anos, o público também era diferente porque cá em Portugal
vivíamos numa ditadura, os pobres não tinham noção do direito. Há
muita coisa que mudou, não sei no Brasil se as pessoas têm noção de
têm direitos, [...] mas muda muito pouco na relação... As pessoas
exigem agora o dinheiro e muitas vezes a colega não tem; é que a
questão é essa, é que se houvesse para todos, tanto fazia.

A entrevistada questiona o tempo todo, na entrevista concedida, a participação do


assistente social na seleção de acesso ao direito ao RSI: se, de fato, fosse universal, não
deveria haver seletividade; e, se há seletividade, os assistentes sociais têm que estar fora dela.
Diante do reconhecimento de que não foram preparadas na graduação para fazer
estudos socioeconômicos de corte avaliativo, cada uma das assistentes sociais portuguesas
entrevistadas lidou com esse fato do seu jeito.
Alice reconhece que foi fundamental ter realizado o mestrado para entender o sentido
da profissão e das políticas sociais numa perspectiva crítica. Ela não explicita a necessidade
da mediação para articular teoria-prática, embora toda a sua fala seja no sentido da
necessidade de haver tal articulação. É preciso considerar que ela, na qualidade de professora
de Serviço Social, tem apreensão crítica acerca da sociedade e da profissão, o que lhe dá,
pessoalmente, a condição dessa apreensão.
Fátima diz que aprendeu a fazer seleção socioeconômica estudando as leis e os
regulamentos, julgando ser isso suficiente, embora em outros momentos da entrevista tenha
reconhecido que é preciso ir para além deles. O risco presente na posição defendida por ela é
o assistente social encarar essa atividade só na perspectiva de funcionário da organização
onde trabalha, o que pode comprometer uma postura crítica, necessária nas decisões
profissionais, como as que envolvem os processos seletivos de acesso aos serviços e
benefícios sociais. Ela tem se esforçado para construir respostas de acesso ao direito à bolsa
de estudos.
Tília e Lurdes, ao considerar que a seleção envolve somente o trato da renda do ponto
de vista estritamente numérico, são de opinião que não é preciso preparo profissional para
279

realizá-la. É preciso, no entanto, considerar que as competências e atribuições profissionais


sempre exigem preparo e qualificação do profissional para a leitura das situações e o manejo
dos instrumentos de sua operação. E a seleção socioeconômica pode se pautar em outros
indicadores que vão além do tratamento da renda.
Parece que em Portugal é muito utilizada a supervisão pós-graduada do profissional
pelas organizações sociais como forma de qualificação profissional. Tília atua como supervisora
de profissionais, e Luísa, atualmente, recebe supervisão orientada por professores universitários.
Percebi em todas as entrevistadas a valorização da prática reflexiva e competente, sendo a
supervisão importante estratégia de qualificação profissional nessa direção.
No Brasil, podemos perceber empiricamente que tudo aquilo que o profissional não
aprendeu na sua formação regular na graduação tem eco na supervisão como caixa de
ressonância de dificuldades e lugar que ajuda o profissional a formular respostas profissionais
para as questões que o afligem no seu cotidiano profissional. Daí a necessidade de
qualificação de supervisores para a realização dessa atividade para que essa atividade
contribua para a formação do profissional crítico e comprometido e não seja vista
simplesmente como lugar de criação de respostas de emergência e trabalhe com
conhecimentos de segunda linha. A atividade de supervisão merece ainda ser mais bem
pesquisada no Serviço Social brasileiro no âmbito de sua forma e conteúdo, assim como das
concepções de instrumentalidade que veiculam.
Neste país, a supervisão como forma de formação profissional pós-graduada ainda se
põe como reivindicação da categoria em alguns de seus segmentos, em especial daquele que
lida com situações de violência.
As entrevistadas brasileiras gostaram de relembrar da sua formação nos cursos de
graduação em Serviço Social e trataram do assunto com certo humor.
Isaura diz que não aprendeu especificamente a tratar da seleção socioeconômica na
sua formação, mas que em “Serviço Social de Caso” aprendeu a realizar estudos sociais,
destacando os fundamentos que lhe davam sentido na época. Ou seja, implicitamente diz que
encontra referências para a sua realização nessa disciplina na qual aprendeu a realizar o
estudo socioeconômico.

— Eu me formei em 1967 e a gente aprendia o Serviço Social de Caso


com a professora Nadir [Kfouri] e a professora Sonia e eu não tinha [a
seleção socioeconômica] na disciplina. O estudo socioeconômico era
um destaque, e a gente aprendia a fazer o estudo social muito baseado
ainda nas possibilidades das pessoas, na promoção humana, como
280

promover as pessoas, e aí conhecer quais eram as condições das


pessoas para poder promover as pessoas. A gente perguntava na época
como era um homem promovido, a gente queria saber como que podia
dizer que promovia. A gente aprendeu lá o que era o bem material, o
que era a possibilidade de saída daquela situação, o que era o recurso
que você poderia dar para alavancar a pessoa. Ainda o texto e o
subtexto era ensinar a pescar; a gente aprendia a dar benéficos que
ajudassem a alavancar.

Regina reforça na entrevista essa fala e diz que a seleção socioeconômica apareceu na
sua vida quando se iniciou na prática e teve que lidar com ela.

— Eu me formei em 1973 pela PUC de Campinas. Então, tinha uma


preocupação, sim, com o estudo social que a gente tinha vários
semestres de estudo do Serviço Social, mas não exatamente com a
seleção socioeconômica. A seleção socioeconômica apareceu na
minha vida quando eu fui para o trabalho com essa conotação, quando
eu fui trabalhar na Unicamp, que era em um hospital público. 101

Aqui, como já aparecera na fala das portuguesas, a realização da seleção


socioeconômica vem sendo considerada e tratada pela profissão como atividade que diz
respeito unicamente à prática; nem no âmbito do ensino do Serviço Social de Casos foi tratada
de forma clara. A prática, quando considerada em si mesma, retirada da historia que lhe dá
sentido e utilidade, torna-se questão da cotidianidade e, portanto, passa a ser tratada na sua
imediaticidade, superficialidade e espontaneidade, conforme já tratei antes.
Graziela reforça a ideia de que se aproximou dessa atividade através da prática,
considerando que recebeu no curso de graduação fundamentos teórico-políticos que não lhe
deixavam dúvidas sobre como deveria proceder. Ou seja: coube a ela fazer a relação teoria-
prática e a direção de sua ação.

— Então, a seleção socioeconômica eu não tive com grande ênfase


[referindo-se á formação universitária], do jeito que vocês duas estão
colocando [referindo-se a Isaura e Regina]. A discussão era mais de
organização política da população, era outro momento. Como é que
você tinha que sair da faculdade como um agente transformador da
sociedade, essa discussão do estudo socioeconômico era seleção dos
miseráveis entre os miseráveis. Eu fiz isso no meu período de estágio.
Eu fiz três anos e meio de estágio na Prefeitura, antiga Cobes
[Coordenadoria do Bem-Estar Social da Prefeitura Municipal de São
Paulo] que a Aldaíza [Sposati] era coordenadora geral, e aí o que eu
101
A entrevistada refere-se ao Hospital de Clinicas da Universidade Estadual de Campinas, que se constitui em
um hospital-escola mantido pelo Estado.
281

fiz foi o que se estava executando na política, trabalhando


principalmente com a população que vivia em situação de risco, que
tinha sofrido enchente, que estava morrendo de fome, vítima de
desabamento. [...] É evidente que minha aprendizagem aqui no Curso
de Serviço Social era sempre para usar critérios para dar prioridade a
quem tivesse muito menos, garantir o acesso deles, tanto para
encaminhar para abrigo como para qualquer outra situação. Eu acho
que no decorrer do tempo e depois na docência e também no exercício
profissional, acho que os dois começam a ficar juntos.

É preciso reconhecer que há muitos profissionais que conseguem fazer um trânsito e


uma relação entre teoria e prática. A entrevistada aponta também que sua reflexão sobre a
seleção socioeconômica tem sido estimulada pelas supervisões que vêm ministrando a alunos
e profissionais que trazem desafios sobre a sua operação. Ideia que reforça o argumento de
que a seleção de acesso aos serviços e benefícios sociais tem se constituído na profissão como
atividade de competência do assistente social e que os seus desafios são resolvidos na prática
através ou sem de supervisões.

— Talvez eu tenha mais proximidade com essa discussão da seleção


socioeconômica através de supervisão dos alunos, de profissionais e da
parceria que eu tinha com outros profissionais, dessas seleções de massa
do BPC, do Bolsa Família, dos programas de distribuição de renda.

Eunice reforça a ideia do grande peso que teve na sua formação o estágio como forma
de inserção do aluno no exercício profissional. No seu caso específico, a prática se constituiu
em fonte de politização e de grandes descobertas, o que acabou por colocá-la em confronto,
na época, com a direção conservadora do curso de Serviço Social que frequentava; chegando
mesmo a ser punida e reprimida pelo jeito combativo como passou a se posicionar, tendo em
vista os compromissos políticos que assumira. Em sua fala, podemos perceber que foi através
do estágio, através de suas “professoras da prática”, suas “supervisoras de campo” que se
constituíram suas mais densas e fortes referências da formação profissional. Seu depoimento
nos remete a pensar sobre a decisiva importância de cuidar para que nossos alunos hoje
possam ter referências positivas na formação através do estágio.

— Eu me formei na PUC de Campinas em 1979, você imagina o que


estava acontecendo nesse país. De 1976 a 1979 o curso de Serviço
Social que era dirigido pelas missionárias de Jesus Crucificado já tinha
sido incorporado à PUC de Campinas, mas ainda em 1979 foi o último
ano que elas estavam na direção, com um contrato; elas ainda ficaram
10 anos na direção e eu peguei o último período delas na direção, e foi
282

um período complicado porque era uma faculdade que não estava


acompanhando o debate que já vinha acontecendo, não tinha esse
debate lá porque eram extremamente conservadores. Dentro da visão
social de mundo delas, procuravam fazer as coisas “bem feitas”. Eu
estudei Serviço Social de Caso, de Grupo, de Comunidade. [...] E eu
entrei no ano seguinte e eu comecei nesses processos dos grandes
movimentos sociais que levaram à abertura lenta e gradual. [...] Mas eu
tive o privilégio de fazer o estágio, embora fosse na Prefeitura de
Valinhos, mas eu tive no estágio o contato com aquela literatura que já
tinha Natálio Kisnerman, Boris Alexis Lima, aquelas pessoas [que são
autores latino-americanos] que a gente não via na faculdade, Paulo
Freire, nós tínhamos no estágio... esse movimento atual da Abepss
tentando qualificar o estágio eu acho que é fundamental.

A entrevistada destaca com muito gosto como se dava as atividades no seu estágio e
na supervisão que a qualificou para a ação competente e compromissada com os interesses
dos usuários dos serviços sociais. O respeito e a admiração sentidos por Eunice diante das
supervisoras de campo fez delas referências positivas, gerando um clima cordial e solidário no
processo educativo, assim marcaram a sua vida.

— Eu tinha toda semana supervisão grupal e individual, eu tinha que


fazer relatórios de entrevistas, grupos, assembleias, eu fazia estágio com
as comunidades num bairro de Valinhos eu tinha uma superviso direta e
uma indireta, porque a gente foi ficando muito próximas, as
supervisoras eram pessoas muito envolvidas com os movimentos
sociais, com as comunidades eclesiais de base. [...] Nossa, eu falo até
hoje, eu tenho amizade com as minhas supervisoras até hoje, uma delas
se aposentou e foi para o MST trabalhar nas relações internacionais e a
outra foi a Isalene, prefeita de Campinas. A Isalene era supervisora
indiretamente, no trabalho interdisciplinar e a gente foi pegando
amizade e ela fazia a supervisão “indireta”; a Dulcineia que foi para o
MST era minha supervisora direta. [...] Para mim sim, eu falo isso até
hoje com a Dulcineia e ela diz que é besteira minha, eu falo o quanto
ela foi importante na minha formação e é desde a visão política como a
questão do fazer mesmo. Eu lembro que eu tive que comprar uma
máquina de datilografia porque ela não aceitava relatórios manuscritos
e eu tinha que fazer e refazer os relatórios até ter qualidade. Então era
de uma exigência que no primeiro momento eu achava que era demais,
mas que foi ótimo, havia um compromisso do supervisor com a
formação. E na supervisão grupal, que era uma outra assistente social
que coordenava, toda a semana a gente tinha que ler um desses textos
desses autores e debater e eu ia fazendo um confronto do que eu tinha
na Universidade e o que eu tinha no estágio, envolvida com o
movimento estudantil, com o movimento social que na época em
Campinas começava a ter um movimento social grande da população
dos bairros da cidade. Tudo isso foi formação, minha formação não foi
só lá dentro dos bancos escolares, ainda bem, e tive muito embates na
283

Universidade porque eu não aceitava e, na época, vendo agora eu acho


q não deveria ter exagerado, mas quando você é estudando você está
querendo que as coisas aconteçam muito rapidamente.

Na época, o que aprendia no estágio entrava em crise com a perspectiva conservadora


do curso de graduação que frequentava, gerando um ônus a ela, pois passou a ser discriminada
e punida por suas posições quando o seu TCC embasado em Paulo Freire foi mal avaliado e
mesmo reprovado pela direção da faculdade. Mas, olhando e avaliando hoje tudo o que viveu
e aprendeu, Eunice diz:

— Eu paguei um preço por aquilo, mas eu não me arrependo, era um


compromisso daquele momento histórico e da formação, eu tinha uma
formação na faculdade, uma formação no estágio e a formação no
movimento social, nas primeiras discussões do PT a retomada a
Associação Profissional dos Assistentes Sociais do Estado de São
Paulo... [...] Eu fico emocionada falando.

Seu interesse e sua dedicação à pesquisa sobre os laudos, os pareceres e os estudos


sociais, no entanto, tiveram início mais tarde, quando passou a trabalhar no Judiciário e se
deparou com a falta de preparo dos profissionais para lidar com questões tão sérias e
delicadas, quando tinham que emitir pareceres que definiam o futuro da vida das pessoas.
Começou, desde então, a querer entender o poder profissional e outras tantas questões
envolvidas, no sentido de realizar uma prática mais respeitosa e solidária com as causas dos
que vivem do trabalho. Ou seja, a prática na sua formação, entendida na sua possibilidade de
transformação, foi e tem sido a sua fonte inspiradora que a levou à pesquisa e depois, à
docência. Referindo-se ao Judiciário como espaço sócio histórico da profissão, ela disse:

— [...] você tem uma instituição que é da “natureza” dela lidar com o
poder sobre a vida das pessoas, ela lida com decisões em tese para
garantir, aplicar a justiça, e o profissional, no caso, assistente social,
psicólogo, eles vão dar..., na maioria das vezes, um relatório social ou o
laudo social vai dar base para um decisão judicial, vai envolver vida de
crianças, de adultos, famílias, idosos e aquilo para mim era muito
complicado. Aí eu decidi voltar a estudar, já que continuaria sendo
assistente social mesmo, então decidi estudar, tentar ver e explicar esse
tipo de trabalho para contribuir com o trabalho, porque daquela
maneira, pelo menos como eu via naquele espaço... É claro que tinha
exceções, em outros espaços, mas naquele local em que eu estava era
bastante complicado, foi aí que eu vim para o mestrado para estudar o
Serviço Social no Judiciário; como diz a professora Miriam, da angústia
ao método, e foram essas angústias que me levaram a estudar.
284

Com a participação das entrevistadas, podemos perceber os diferentes atalhos


percorridos por elas e como cada uma, ao seu modo, foi criando respostas e desse modo se
qualificando para tratar da seleção socioeconômica, que representam jeitos de lidar da
profissão em Portugal e no Brasil, no entanto, a reversão do quadro pintado em breves traços
poderá se dar se as respostas às lacunas existentes forem tratadas e construídas coletivamente
através do debate e da pesquisa no âmbito da instrumentalidade profissional.

4.4.9. Os desafios do ensino da instrumentalidade profissional em tempos adversos

A formação profissional do assistente social vem merecendo atenção e tratamento


cuidadoso pela categoria dos assistentes sociais desde as suas origens no Brasil. Porém, no
momento atual, com a mercantilização do ensino superior, que tem gerado uma proliferação
assustadora de faculdades de qualidade duvidosa e com o avanço da tecnologia que permitiu a
criação dos cursos à distância, esse assunto, mais do que nunca, tornou-se pauta que fervilha
constantemente nas instâncias organizativas da profissão, destacadamente na Abepss e no Cfess.
Esses fatos, aliados e inseridos em um quadro sócio-histórico de grandes
transformações que afetam o mundo do trabalho e que redefinem o papel do Estado e das
políticas sociais, impõem novas demandas à profissão, que vão assim acentuando os desafios
colocados à atuação e à formação profissional na perspectiva crítica, se tomarmos por
referência as atuais diretrizes curriculares de Abepss. Ressalte-se que esses novos cursos de
Serviço Social, realizados por unidades de ensino não filiadas à Abepss, acabam por colocar
em risco os patamares de qualidade que obtidos pela categoria desde a década de 1980.
A formação do bacharel em Serviço Social, assumida e defendida pela Abepss na
atualidade, pauta-se em um perfil com os seguintes traços:

Profissional que atua nas expressões da questão social, formulando e implementando


propostas para seu enfrentamento, por meio de políticas sociais públicas, empresariais,
de organizações da sociedade civil e movimentos sociais. Profissional dotado de
formação intelectual e cultural generalista crítica, competente em sua área de
desempenho, com capacidade de inserção criativa e propositiva, no conjunto das
relações sociais e no mercado de trabalho. Profissional comprometido com os valores
e princípios norteadores do Código de Ética do Assistente Social (BRASIL, 1999).

Tomar esse perfil como referência e horizonte do ensino e formação do bacharel em


Serviço Social envolve a formação do aluno como um intelectual e não como um simples
técnico, preparado unicamente para responder de forma direta, ao mercado de trabalho. A
285

intensa multiplicação no Brasil de cursos de Serviço Social de qualidade duvidosa coloca dessa
forma em confronto e em pauta a disputa na atualidade entre esses dois perfis de profissional:

[...] o técnico bem adestrado que vai operar instrumentalmente sobre as demandas
do mercado de trabalho tal como elas se apresentam ou o intelectual que, com
qualificação operativa, vai intervir sobre aquelas demandas a partir de sua
compreensão teórico-crítica, identificando a significação, os limites e as alternativas
de ação focalizada (NETTO, 1996b, p. 126; grifos do autor).

Raichelis (2011) participa deste debate, observando que, para enfrentar criticamente o
lugar em que hoje está colocado o trabalho do assistente social nas organizações sociais,
cumpre formar e qualificar o profissional para

... muito mais do que apenas a realização de rotinas institucionais, cumprimento de


tarefas burocráticas ou a simples reiteração do instituído. Envolve o assistente social
como intelectual capaz de realizar a apreensão crítica da realidade e do trabalho no
contexto dos interesses sociais e da correlação de forças políticas que o tensionam; a
construção de estratégias coletivas e de alianças políticas que possam reforçar
direitos nas diferentes áreas de atuação (Saúde, Previdência, Assistência Social,
Judiciário, organizações empresariais, ONGs etc.), na perspectiva de ampliar o
protagonismo das classes subalternas na esfera pública. Exige, portanto, um
conhecimento mais amplo sobre os processos de trabalho, os meios de que dispõem
o profissional para realizar sua atividade, a matéria sobre a qual recai a sua
intervenção, e também um conhecimento mais profundo sobre o sujeito vivo
responsável por esse trabalho, que é o próprio profissional (RAICHELIS, 2011, p. 428;
grifo da autora).

Netto, em texto de 1996, ao colocar em questão a formação do assistente social, indicava


a necessidade de refletirmos sobre quem era o aluno que estava chegando à universidade e
quem era o professor que ministrava os cursos de Serviço Social como fatos relevantes a serem
considerados no processo de formação. Sobre esses fatos, o autor entende que

[...] não se conectam obrigatoriamente por uma relação causal, não afetam
exclusivamente o Serviço Social; mas na nossa profissão, ganham enorme ponderação:
são concomitantes à exigência de maior qualificação intelectual e cultural, derivada da
própria consolidação acadêmica do Serviço Social-está posta, aí, uma contradição que
não é fácil solucionar com êxito. Quer-me parecer que o perfil econômico social e
cultural desse “público-alvo” — sem esquecer o dos docentes mesmos, nem sempre
distinto-é um elemento de excepcional importância a ser levado em conta no
enfrentamento da problemática da formação (NETTO, 1996b, p. 110).

Este autor notava “perceptível mudança no perfil socioeconômico da massa do


alunado, cada vez mais recrutada em estratos médio-baixos e baixos das camadas urbanas”.
Outra observação dizia respeito ao visível empobrecimento do universo cultural dos alunos
(NETTO, 1996b, p. 110). Não se tratava e não se trata, obviamente, de entender a chegada de
segmentos da classe dos trabalhadores ao ensino superior como um problema ou empecilho ao
286

bom andamento da universidade, como quer a crítica conservadora, mas de apontar a


necessidade de considerar o perfil do aluno que está chegando à universidade como mais um
desafio a ser considerado e enfrentado no processo pedagógico do ensino.
Eunice, que viveu intensamente o período de sua graduação, tendo no estágio sua
grande referência profissional, corrobora para explicitar nos dias atuais como está se
expressando essa situação apontada, ao exprimir seu incômodo ao se deparar, assim como as
demais entrevistadas brasileiras, com a falta de disponibilidade do aluno para participar de
novas experiências e se pergunta com inquietação sobre o que fazer diante desse fato.

— Eu vejo agora os alunos, e eu falo, “gente tudo bem”... Não é


saudosismo, mas você tirar o aluno de sala de aula para participar de
outras coisas é muito difícil, porque é aquele aluno que também está
lutando pela sobrevivência, ele não tem tempo de fazer outra coisa
além de ir lá e cumprir estritamente o necessário para poder ter a
frequência e nota no final.

A entrevistada, ao refletir sobre a alteração do perfil dos alunos dos cursos de Serviço
Social, chama a atenção também para o fato de há um grupo significativo de profissionais que
se aposentou ou está em vias de se aposentar e que carrega um lastro importante da profissão
na perspectiva crítica por ter ajudado a construí-la desde os finais dos anos de 1970 e que fará
falta na profissão, tanto no sentido de colaborar na formação dos alunos, quanto na construção
de respostas profissionais na direção social que se compromete com a defesa dos interesses
daqueles que dependem da venda da sua força de trabalho para viver. A esse respeito ela
assim se manifestou:

— [Em relação ao] perfil dos nossos alunos, são pessoas que também,
às vezes, que se confundem com o próprio usuário, não sei a realidade
de vocês na PUC [São Paulo], mas no espaço que eu conheço sim.
Então, eu acho que são muitos fatores que... [...] Como eu vou ter uma
prática crítica frente a todas essas interferências que vão estar me
pressionando no dia a dia? Agora eu acho que tem que ter a resistência
política, mas a gente sabe também que não é todo mundo que vai se
envolver com a resistência política; há sempre uma vanguarda que
avança. Então, mas mesmo assim é sempre um grupo que vai à frente,
como em todos os espaços. Nós temos ainda, principalmente na
capital, devem se aposentar 50% dos profissionais da capital [refere-se
ao Judiciário], inclusive eu me aposentei em fevereiro, mas continuo
fazendo pesquisa na área.
287

Em face desse quadro brevemente delineado sobre os desafios colocados à formação


do assistente social na atual conjuntura, passo agora a equacionar a formação situada no
âmbito técnico-operativo, tendo em vista o caráter interventivo da profissão e o foco de nossa
pesquisa, com a clareza de que o assunto deve ser abordado no domínio da profissão inserida
na sociedade de classes e dos interesses veiculados.
Entendo como Santos (2005, p. 232):

O cuidado com “o que fazer”, com o “para que fazer”, e com o “por que fazer” não
pode excluir o “como fazer”. O currículo não pode prescindir de disciplinas que
tratem da habilitação para o manuseio dos instrumentos e técnicas no Serviço Social
em conjugação com o debate filosófico, teórico, político e ético.

A intervenção profissional qualificada e comprometida não prescinde da teoria, da


ética e da política, mas a estas não se resume.

Quando na academia se considera que para a operacionalização da prática é


suficiente um bom ensino teórico, está se acreditando que a teoria transmuta, de
forma imediata, em ações e que os instrumentos são aferidos diretamente de uma
direção teórica. Está se confundindo, ainda, conforme Netto (2005) denuncia, a
relação conhecimento e prática, com a relação teoria e prática. Ou seja, está se
privilegiando, na formação, apenas o conhecimento teórico em detrimento dos
demais tipos de conhecimento, nesse caso procedimental. Esses equívocos refletem
[...] um não entendimento do que seja teoria e prática no materialismo histórico-
dialético. (SANTOS, 2005, p. 235).

Tratar da formação do assistente social nessa perspectiva envolve um quadro de


professores com sólida formação teórica e política e a construção de novas estratégias para lidar
com o alunado que vem do ensino médio com muitas deficiências, principalmente para
interpretar textos e se comunicar através da escrita. Não basta que um docente da
instrumentalidade profissional tenha experiência “prática”, embora possa haver ainda esse
equivocado entendimento, pois não podemos defender um pragmatismo, mas o que desejamos é
exatamente a sua superação. Assim como é equivocado pensar que ensinar a instrumentalidade
trata-se da simples atualização do caso, grupo e comunidade e simples discussão das “técnicas”,
ou seja, um tecnicismo. Ou ainda que podem ser dispensadas do currículo pois a transmutação
da teoria em prática, como assinala é ato simples e imediato como assinala Santos (2005), pois
se assim se entende caímos em um teoricismo.
Isaura, professora da “instrumentalidade” e especialista em currículo de graduação em
Serviço Social, tendo participado de todos os processos de revisão curricular que ocorreram
na PUC- SP, desde à época denominada por Netto (1991) de renovação do Serviço Social no
288

Brasil, manifesta-se da seguinte forma em relação aos desafios colocados à formação dos
alunos hoje:

— Às vezes eu me sinto um ET, os alunos ficam olhando como se a


gente fosse de outro planeta. A gente trabalha com o estudo social,
estudo socioeconômico; a gente faz a distinção, a gente amplia, mostra
como é no Judiciário, na Saúde e os alunos hoje trazem elementos que
vão na contramão absoluta do que você pretende ensinar. É a
exigência de produtividade. Uma aluna falou para mim, ela falou com
a supervisora que queria atender as pessoas num projeto de habitação
do jeito que ela tinha discutido aqui na Universidade aí ela falou assim
“pode fazer, vamos ver o tempo que você vai levar.” Aí ela fez uma
entrevista bem feita e cuidadosa durante o dia todo e quando terminou,
a assistente social falou para ela “muito bem, eu vejo que você está
satisfeita, mas isso não será possível porque ao invés de você atender
20 pessoas você atendeu quatro e a exigência não é essa.” A exigência
é de produtividade tão violenta que há alunos que relatam como é que
hoje os dados são manipulados. Então, ao invés de você escrever que
você atendeu 20, você escreve para a Prefeitura que você atendeu 50
ou 100 porque a exigência é essa. Então, a corrida, a exigência de
produtividade, vem tirando toda a qualidade do trabalho social. E a
outra coisa é o atendimento telefônico, quer dizer, além do
computador nós temos hoje o telefone. Em empresa que antes
trabalhavam com empréstimo para os trabalhadores e faziam
entrevista, levantamento da situação, desconto em folha, hoje é por
telefone. Eu tive uma aluna que nunca viu o semblante de um
trabalhador porque é feito tudo por telefone. Então, eu acho que isso é
gravíssimo, é um retrocesso grande e na formação é um desafio, você
só faz intervenção no trabalho do estagiário que a Universidade pode
fazer. É um desafio na formação você discutir com os alunos como o
trabalho deve ser feito que vá além da possibilidade hoje.

Essa questão levantada por Isaura, que se refere às dificuldades do ensino em geral e
especificamente às referentes à dimensão técnico-operativa, em face às difíceis e complexas
condições de trabalho impostas aos profissionais pela reestruturação produtiva na atual
conjuntura, levou as participantes da entrevista coletiva a rapidamente se manifestar a esse
respeito, dizendo:

— O que eu queria falar da formação é que fora alguns professores


que sobrevivem disso, eu acho que o Serviço Social hoje não tem
interesse nenhum em pensar em produção, não tem o mínimo interesse
nessas discussões. Esse é um problema sério porque a gente não
discute essa questão teoricamente. A gente continua atribuindo isso a
uma questão da prática como se isso fosse ser resolvido no âmbito da
289

prática. A gente teria que transformar essa questão cotidiana em um


problema teórico (Regina).

— [...] no Serviço Social a gente [...] Não considera que o


conhecimento sobre isso é uma discussão fundamental até para o seu
enfrentamento. Vocês estão colocando essa questão do computador,
mas os nossos alunos não têm nem como enfrentar isso teoricamente,
nem para entender e nem para analisar. São poucos os professores
hoje que tem essa preocupação para estar discutindo isso (Graziela).

— Você está falando dessa distinção [referindo-se á fala de Graziela],


o que é o trabalho profissional que está colado na política está
colonizando os assistentes sociais. Os assistentes sociais não tem
projeto para discutir com a política (Regina).

Eunice reforça essa apreensão ao dizer:

— Existe muito preconceito sobre o técnico operativo, porque muita


gente acha que a gente vai discutir apenas o “técnico”. Eu leciono as
disciplinas Fundamentos do Serviço Social 1 e 2 e Processos de
trabalho III e IV (a discussão mais conceitual do trabalho é nas
disciplinas 1 e 2, com outra professora), E tem professor que só leciona
Fundamentos Teórico-Metodológicos que me disse: “mas o que você
trabalha nesse técnico operativo?” Como se você trabalhasse as técnicas
por si só. Por incrível que pareça, ainda ouvimos colegas falando isso,
como se numa disciplina você só trabalhasse a técnica sem fazer
articulação com os fundamentos teóricos, metodológicos e éticos. [...]
Tem que enfrentar esse debate, porque é nisso que falta a gente investir:
como eu articulo essas dimensões, os fundamentos teórico-
metodológicos, ético-políticos e o técnico-operativo? Eu acho que o
mais grave é vermos essa situação, ver hoje, por exemplo, isso que você
está falando, vamos fazer um debate sobre essa questão [refere-se à uma
proposta que conversamos antes da entrevista]. Eu acho ótimo, tem que
fazer, mas muita gente vai achar que vamos discutir de maneira
fragmentada. Infelizmente na própria academia, às vezes, existe esse
preconceito; é preciso enfrentar o técnico-operativo, iluminado pelo
principal instrumento de trabalho que é o conhecimento.

As falas de Eunice e das outras entrevistadas reforçam a ideia de que, ainda hoje, nos
deparamos com forte resistência na profissão para discutir a instrumentalidade profissional,
porque o entendimento continua preso ao entendimento conservador do nosso passado. Esse
tema denso, tenso e de dificílima abordagem não é ainda largamente entendido sob a
perspectiva crítica, porque implica que o docente tenha profundo domínio teórico-
metodológico e ético-político para poder tratar e decifrar a realidade cotidiana próxima e
290

porque, no Serviço Social, é como colocar a mão em verdadeiras feridas vivas e abertas no
nosso passado e, portanto, ainda não tratadas suficientemente, ao ponto de permitir seguir em
frente com tranquilidade, porque não estão cicatrizadas. Parece que há na categoria dos
assistentes sociais uma tendência que entende que na formação, a intervenção profissional
deve ser tratada somente nas disciplinas da instrumentalidade e na supervisão de estágio, pois
lá são os lugares de tratar da “prática real”, como sinônimo de “contaminada”, “suja”,
“difícil”, “sem futuro, sem projeto, sem esperança”.
Nessa apreensão, juntam-se as palavras de Santos (2005, p. 241), que vem
pesquisando sobre o ensino da instrumentalidade no Serviço Social:

A questão relativa ao ensino dos instrumentos e técnicas ainda se expressa mais pelo
“receio” de ser “tecnicista” do que pela ousadia de criar alternativas/ experiências
explícitas e detalhadas para o desafio de ensinar o “como fazer sem ser “tecnicista”.
[...] salvo poucas exceções, reforça-se sempre o como não ensinar os instrumentos e
técnicas em detrimento do como deveria ser ensinado.

Torna-se, porém, urgente encarar o desafio colocado pela autora diante do que vem
ocorrendo nas organizações sociais que contratam o trabalho do assistente social: a
incorporação de novas tecnologias que, gradativamente, estão ocupando o lugar das pessoas e
vêm causando impasses no trabalho profissional, ao colocar em xeque princípios e valores do
projeto ético-político da categoria dos assistentes sociais que certamente não se localizam
estritamente na dimensão técnico-operativa. E, nós, assistentes sociais, que achamos disso?
Como podemos e devemos nos colocar diante dessa situação?
Responder de forma crítica às demandas colocadas a uma profissão eminentemente
interventiva, como é o Serviço Social, pressupõe o esforço para colocar a teoria em atos e na
explicitação de saídas e possibilidades do exercício profissional nas organizações sociais,
visando à concretização do assistente social como profissional propositivo, não como mero
executivo das pautas definidas pelas organizações que contratam seu trabalho. Pressupõe
também a reflexão de como trabalhar com o estresse sentido pelos profissionais “da prática
real” compromissados com a defesa dos valores inscritos no nosso projeto ético-político.
Graziela expõe:

— Eu vejo que numa parte [da categoria profissional], eu e a Isaura


tivemos uma proximidade, uma parte dos alunos, inclusive que está no
Mestrado, que tem menos e cinco anos de formada, e que tem uns três
anos agora que entraram na Prefeitura, eles estão vivendo essa crise.
Essa capacidade de análise de ter esse impedimento da ação com a
burocratização toda da Assistência. Acho que isso para nós, talvez em
291

São Paulo mais do que outras cidades, mas a gente tem uma parte da
juventude profissional que entrou na Prefeitura e até tirou licença
médica com menos de três anos de trabalho em função desse
sofrimento vivido por causa da burocratização, da restrição de
direitos, e pior do que isso, talvez eu deva estar colocando uma
situação dificílima, mas um aprisionamento da legalidade, um
aprisionamento àquilo que está colocado no programa se a
possibilidade de trabalhar mais com a legitimidade social, de trabalhar
mais com as pessoas. Então, para mim a política hoje do SUAS, ela é
importante, garante direitos, mas ela ainda tem muitos percalços. Esse
aprisionamento à legalidade faz com que esse trabalho de
emancipação, de autonomia, de liberdade, pretendido no nosso projeto
ético político, fique fissurado, arranhado.

Regina reforça o fato da existência angústia e do estresse vividos pelos profissionais


que se comprometem com valores condizentes com a emancipação humana, a qual, diante de
uma realidade que tem se apresentado de forma tão desumana, acaba por gerar muito
sofrimento aos assistentes sociais, dada a impotência sentida por eles.

— Uma pesquisa que nós fizemos que é da Vania [?] que coordenou
em Santa Catarina, os fatores de estresse dos profissionais é o projeto
ético-político porque elas têm consciência, mas não chegam lá... Elas
não contam e parece que é um dos fatores de estresse e é isso, entre o
projeto ético-político e as demandas da prática.

Isaura concorda com essa análise e continua o debate, analisando:

— Eu acho que o estresse de que a Regina está falando, eu penso... E


acho que o contato com os estagiários e com os alunos vem mostrando
isso hoje. Acho que é um desafio enorme na formação, é que o
estresse também está relacionado ao choque que as pessoas pensam...
O ideológico preside isso e acho que é o que eu tentei trabalhar
naquele texto. 102 Os alunos são mais transparentes do que os
assistentes sociais, os assistentes sociais aprendem a disfarçar isso,
mas o que as pessoas pensam sobre os usuários é uma coisa
muitíssimo complicada. Os pobres são pobres porque são preguiçosos,
vai ter os que acreditam em deuses e os que não acreditam e levam
isso para o trabalho; todas as restrições ideológicas das pessoas sobre
a dependência química, ao aborto, ao número de filhos que se têm,
enfim, todas as misérias humanas. Os assistentes sociais têm muito
preconceito que está impregnado na sociedade e se o conhecimento
não mexe com isso, não coloca isso em questão, então o trabalho está
comprometido e não há como colocar em prática o projeto ético-
político. Acho que há um conflito entre o que as pessoas pensam do

102
Refere-se a Oliveira (2010)
292

mundo, da família, das relações, até as coisas mais simples do tipo


“também deixou o filho em casa”, toda essa fala que é muito
ideologizada ela se contrapõe frontalmente à possibilidade da prática
orientada pelo projeto ético-político. Eu acho que o estresse está muito
relacionado a isso, porque as meninas aqui ficaram doentes e eu disse
a elas numa palestra que teve aqui [referindo-se à PUC- SP] que
assistente social não pode ficar doente por causa do Kassab [prefeito
da cidade de São Paulo em 2012], tem que ficar doente por causa da
miséria que a população vive, porque o Kassab é transitório e há de
ser enfrentado coletivamente. Se eu fico doente porque eu não consigo
implantar a política porque o Kassab não deixa, aí tá perdido.

Raichelis (2011) analisou essa realidade contraditória vivida pelos profissionais diante
das condições de trabalho colocadas e da violação de direitos do assistente social na atual
conjuntura que vem gerando sofrimento e desgaste físico e emocional.

Trata-se de uma condição de trabalho que produz um duplo processo contraditório


nos sujeitos assistentes sociais: a) de um lado, o prazer diante da possibilidade de
realizar um trabalho comprometido com os direitos dos sujeitos violados em seus
direitos, na perspectiva de fortalecer seu protagonismo político na esfera pública; b)
ao mesmo tempo, o sofrimento, a dor e o desalento diante da exposição continuada à
impotência frente à ausência de meios e recursos que possam efetivamente remover
as causas estruturais que provocam a pobreza e a desigualdade social (RAICHELIS,
2011, 434-435; grifos da autora).

A autora indica que, no “âmbito institucional, torna-se imprescindível fortalecer a


resistência ao mero produtivismo quantitativo, que é medido pelo número de reuniões, de
visitas domiciliares, de atendimentos, sem ter clareza do sentido e da direção social ético-
política do trabalho coletivo” (RAICHELIS, 2011, 435; grifos da autora).
Isaura apresenta outros lados da alienação presente no trabalho profissional que
exemplificam o referido produtivismo, através de situações que surpreendem e mesmo
assustam um professor que vem de um passado de luta pela ampliação de direitos ao se
deparar com alunos e mesmo com profissionais que se portam com indiferença diante de
ocorrências graves, tais como:

— [...] Eu tenho alunos que trabalham em hospital, atendem situações


gravíssimas e, quando a pessoa põe o pé na rua, de alta, dois dias
depois que deu à luz, acabou, porque “isso não é comigo mais”. E eu
trabalhei num hospital onde “isso era comigo”, então era um trabalho
que continuava, fazia grupo com as pessoas... Uma adolescente que
teve um filho e que não tem quem cuida, vai lá e diz “eu vou sair, vou
dar, vou matar”, saiu de alta. O assistente social nem telefona para
saber, nem faz nada, porque está escrito que é para ficar lá; o
atendimento é lá. O máximo que ela faz é ligar para o Cras. Essa ideia
293

de que a situação é aquela, que não atendo, não discuto, não grupalizo,
não levo para um trabalho maior, eu acho que é um prejuízo enorme,
Acho que tem que cuidar disso na formação, “porque você faz o
estudo e tchau? Você pergunta só para saber? Aí chega às raias da
curiosidade porque você não vai fazer nada com a informação?” E a
gente trabalhava com a ideia de que a informação de saúde era só o
ponto de partida para o trabalho social maior. Eu acho que o Serviço
Social perdeu a amplitude do seu olhar e do seu trabalho, então é só
aquela tensão ali.[...] Eu acho que há muitas teses sobre a política, a
favor e contra, demonstrando se é direito se não é, se é focalizada ou
não, se tem porta de entrada e saída, mas eu acho que é muito mais do
que isso, do que uma preocupação com o trabalho, não é de
operação... As pessoas vão cumprindo o que se manda e não há um...
Outro dia eu fui numa capacitação e falei que não pode visitar as
pessoas sem avisá-las e as pessoas ficaram me olhando. A casa é do
outro, você não entra na casa do outro só porque você é assistente
social, ou porque você é da Prefeitura, e as pessoas não pensam sobre
isso. Não foi para a escola tem que visitar, teve negligência tem que
chamar o Conselho Tutelar para tirar a criança; é tudo regrado e
estabelecido pelo senso comum, sem maior teorização.

Regina reage ao pensamento colocado, acrescentando:

— Tem um desafio, acho que para nós professoras, acho que isso a
gente tem que reconstruir no sentido de estar vendo como é que a gente
aprendia, o que é dever do assistente social em termos de atribuições,
como é que as políticas estão sendo implantadas e que espaço é esse
que os profissionais têm que assumir para não entrar nesse dilema que a
Isaura falou de não entrar na doença, o adoecimento individual e até em
função de que o sofrimento não seja o mais importante. [...] Mais uma
vez vou falar o que vem muito vem na esteira da própria ideologia da
formação. Em Santa Catarina o pessoal acha que a formação... Os
assistentes sociais vão ser mais qualificados se eles tiverem mais
disciplinas relacionadas à teoria crítica. Daí você vai lá e dá um
jeitinho, é uma interpretação sua... E não uma condição da profissão. Eu
acho que não dá para discutir a seleção socioeconômica sem discutir o
que a profissão está pensando na formação dela teoricamente. [...] Nós
temos uma visão crítica para analisar tudo isso, mas parece que cada um
chega lá e vai fazer do seu jeito, na sua interpretação. E uma profissão,
para se sustentar, ela não pode ir só pela interpretação individual, ela
tem que ter um a sustentação coletiva.

Diante da fala desta entrevistada, deve ser considerado que o que falta no Serviço
Social é o trato da instrumentalidade profissional em outros moldes, dando ênfase à relação
teoria-prática enquanto unidade indissociável, numa perspectiva da totalidade, passando pelas
mediações como recurso necessário dessa tarefa. Isso exige densa formação de um professor.
294

Por outro lado, é preciso frisar que as saídas, as respostas interventivas, cada vez com mais
força, terão que surgir de uma perspectiva de construção mais coletiva na profissão. Do
contrário, as respostas encontradas unicamente na solidão de cada prática acabarão por
reforçar a ideia liberal de que cada um deve encontrar sozinho a própria resposta.
Para encontrar respostas condizentes com nosso projeto ético-político, é preciso suspender
temporariamente o pensamento cotidiano que se fixa quase que só na experiência e nos
acontecimentos vividos, buscando elementos teóricos, filosóficos para que a apreensão possa se
dar para além das aparências e, portanto, fundar as ações em decisões mais conscientes. 103 Este
jeito de ser profissional é aprendido, através de denso projeto de formação teórico-prático.
Ao longo dos depoimentos colhidos nesta pesquisa, pudemos perceber que há um
ritmo de trabalho que encolhe o pensar. Temos o profissional atendendo os usuários dos
serviços sociais, mediado pela tela de um computador. É o computador que passa a ter vida e
o assistente social se comporta com o usuário como objeto, ao dizer que “o computador pede
que”, e, se no computador consta que seu filho não frequentou as aulas ou que “seu marido
arrumou emprego”, o benefício é mecanicamente suspenso. Quando não é o computador, são
as fichas a serem preenchidas que passam a pautar o que tratar na entrevista com o usuário.
Nesse processo alienado e alienante, as ferramentas adquirem vida e os sujeitos
passam a se comportar como objetos. Como podemos esperar que desses profissionais que
atuam sob tanta pressão possam sozinhos encontrar e formular respostas profissionais
condizentes com os interesses dos usuários?
Para reverter e atuar nessa situação que marca hoje o trabalho realizado nas organizações
sociais em que o assistente social trabalha, torna-se necessário que haja o exercício permanente da
reflexão, buscando iluminar o que vive e o que se expressa no cotidiano em referências teóricas.
“Cabe ao profissional reconstruir as mediações particulares e buscar, com orientação no projeto
ético-político profissional, desenvolver iniciativas que aproximem sua prática das reais
necessidades da população usuária” (BRITES; SALES, 2004, p. 73).
Sabemos que, o cotidiano engole o sujeito para repetir o que está dado. Então, esperar do
profissional que está na ponta que ele sozinho possa criar respostas, no quadro atual de reforço à
burocratização do atendimento, parece não se apresentar como boa e suficiente estratégia. Torna-
se imperativo que a categoria pense urgentemente sobre isso, como tarefa coletiva, na qual as
pesquisas podem se colocar como ótima estratégia de materialização dessa alternativa.

103
Um profundo e sensível exercício dessa proposta pode ser encontrado em Brites e Sales (2004, p. 67-79),
quando tratam de “Ética, cotidiano e práxis profissional”.
295

Graziela, entendendo e analisando a fala da colega Regina, pondera que a prática


profissional está perdendo a processualidade, porque não vem sendo valorizada. Ou seja: a
ênfase do atendimento se pauta no produto, no serviço ou benefício social em si mesmo.

— [...] O que você está falando, Regina é um pouco desse


esvaziamento do conteúdo metodológico do trabalho que a gente tem
a fazer. Eu estava pensando que nós três, apesar das diferenças de
formadas... Mas, acho que nós somos da forma antiga... Fazer o estudo
social é garantir a processualidade do atendimento, pensar nas
diferentes possibilidades da abordagem, ver o que é seguimento. Eu
acho que isso nos nossos alunos... Nos últimos quatro, cinco anos, está
cada vez mais ficando distante. Esse conteúdo metodológico da ação
profissional ele está se perdendo na memória. Não sei se nós
professores estamos conseguindo garantir essa memória do ponto de
vista de preservar enquanto trabalho profissional, enquanto
metodologia de intervenção.

Eunice entra nesse debate, posicionando-se como profissional que sempre esteve
preocupada em qualificar o exercício profissional de forma crítica, comprometida com a
transformação da sociedade. Mas também nos mostra que anteriormente se qualificou teórica
e politicamente para enfrentar a discussão da instrumentalidade profissional. Diante desse
mote, apresenta sérias e importantes questões a enfrentar na categoria dos assistentes sociais:

— [...] eu sempre tive essa preocupação com a questão de como fazer.


Claro que, de como fazer iluminado com outros fundamentos, porque
eu acho que a gente tem uma lacuna muito grande na nossa profissão e
eu fiz um pouco o caminho de ter me dedicado muito à intervenção, à
militância política e depois vim para a academia e fazendo as coisas
depois paralelamente, mas vim para a academia e para a pesquisa por
conta dessas preocupações também. Como é que está sendo nosso dia a
dia lá direto com a população? E o que fazemos nós, assistentes sociais?
Eu acho que em qualquer área nós temos um acesso privilegiado à
informação e nós não sabemos o que fazer com isso; nós eu digo
genericamente. Como nós trabalhamos isso na formação? Como o
assistente social, no seu dia a dia pode, além do atendimento, trabalhar
efetivamente mesmo que seja com dados estatísticos? E a gente até
pouco tempo tinha horror a estatística, mas é fundamental. Porque eu
não reverto isso? Eu posso ter esse lado que eu não concordo, mas
porque eu não pego isso e busco sistematizar, trazer isso que está hoje
no nosso projeto, a pesquisa para a intervenção? Porque aí eu posso
reverter, contribuindo para a política e eu acho que nós perdemos
muito, porque a gente ainda, a gente no Brasil, apesar de todos os
avanços do ponto de vista da produção, da pesquisa, nós sabemos, você
que está diretamente na prática ou na supervisão alunos, você sabe que,
há muitas pessoas que continuam com práticas muito conservadoras. E
296

não avança e não sabe o que vai fazer. Eu acho que isso é o mais grave.
[...] E desqualifica o próprio saber profissional, você não tem que estar
lá para dar jeitinho. Aquilo que a professora Marilda (referindo-se a
Iamamoto) fala da questão..., dentro desse projeto o assistente social
que precisa ser criativo, propositivo, a gente tem que saber como fazer
isso dentro do que propõe a nossa profissão.

A entrevistada reconhece que vivemos uma conjuntura dificílima, que não será uma
profissão que conseguirá, sozinha, revertê-la, mas quer contribuir (e nós também) para fazer
avançar a profissão, porque vê em um significativo número de jovens profissionais séria
vontade de querer se qualificar mais e aprender a fazer melhor o trabalho profissional.

— [...] Apesar de toda a tragédia da educação brasileira, desses cursos à


distância que estão cada vez mais acontecendo sem nenhuma
qualificação, e que é um risco muito grande, pode trazer um retrocesso
para os poucos avanços que a gente conseguiu, mas por outro lado, do
que a gente conseguiu nessas últimas décadas, a minha esperança são
essas gerações mais jovens. Eu tenho tido oportunidade de participar de
vários encontros em vários Estados discutindo o estudo social, e é uma
coisa impressionante, o pessoal solicita e eu falo às vezes que não
aguento mais falar de estudo social. Às vezes eu falo, “gente, eu preciso
estudar mais”; chega uma hora que você começa se achar repetitiva.

A seguir, a entrevistada apresenta alternativas para enfrentar os desafios da formação


tais como a supervisão e os cursos de especialização. Ao analisar, exemplificando o que
percebe, ela nos apresenta algumas saídas.

— A gente precisa, mas como a gente faz? Acho que a gente tem que
trabalhar muito na formação e eu acho que precisaria e o que falta na
nossa profissão, é a questão da supervisão de quem está entrando. A
psicologia, por exemplo, em algumas áreas que ela vai trabalhar, ela
precisaria obrigatoriamente de supervisão, eu acho que é uma coisa que
está distante da gente conseguir, mas eu acho que a gente deveria pensar
em alguma coisa. Muitas vezes o salário você sabe é pouco, a maioria
dos lugares o salário é muito baixo, o investimento por si só muitas vezes
a pessoa não tem condições fazer. Eu estou agora coordenando uma
especialização na Universidade, eu tenho ex-alunas que foram brilhantes,
que querem continuar estudando, querem fazer um lato sensu. Algumas
até se inscreveram depois eu vi que não foram e eu conversei para saber
por quê: “ah professora fiquei com medo de não conseguir pagar porque
eu estou numa organização que é terceirizada da Prefeitura e tem mês que
recebe e mês que não recebe”. É muita coisa que está envolvida nesse
processo. Como eu trabalho na minha formação permanente? Talvez
pensar até nos nossos Conselhos [refere-se aos Cress], na Abepss, como a
gente pode a médio e longo prazo incorporar a supervisão como uma
297

exigência, porque nós trabalhamos com seres humanos em situações


extremamente graves; em todos os segmentos a gente trabalha com a
população, na grande maioria das vezes extremamente empobrecida,
excluída, mas você trabalha em alguns lugares também com pessoas de
outros segmentos sociais, e a gente pode não estar instrumentalizada para
trabalhar nem com um com outro e para buscar um supervisão quando
necessário. Eu penso que são saídas que a gente tem que pensar. [...]
Porque se não, eu vou sendo consumida, e às vezes acaba sendo cômodo
eu ficar. Isso vale para quem está na política, no judiciário e não quero
nem ouvir fala mais em estudo... Eu fico imaginando se quem trabalha
com a realidade social pudesse parar de, continuadamente, estar
refletindo sobre essa realidade... As pessoas estão buscando. Quando eu
vejo isso eu fico feliz. Eu fui para Santa Catarina, ele fizeram um
encontro estadual do pessoal do Judiciário e um dos dias era para discutir
o processo de construção do conhecimento vindo dessa integração, e eles
me convidaram para eu fazer meio que um depoimento -eu já estou
virando personagem da história -sobre como foi ter ido da intervenção
para a pesquisa. Aí eles me ligaram para falar que se, além disso, eu
poderia falar também sobre estudo social, sobre instrumentalidade, para
120 profissionais, então você via as pessoas querendo saber muito mais.
Eu acho que se por um lado a gente tem a política extremamente seletiva,
por outro lado tem algumas gerações mais jovens que estão já imbuídas
num projeto profissional..., estão mais preocupadas realmente em fazer
outro serviço social. Eu só não sei do futuro quando essa leva toda que
está chegando, como vai ser isso, eu acho que é um perigo que a gente
está correndo, porque juntar essa formação precarizada, um trabalho
precarizado, um salário muitas vezes extremamente pequeno e a pessoa
precisa porque ela tem que se manter...

As entrevistadas brasileiras foram unânimes em reconhecer a necessidade de um


tratamento mais aprofundado, no Serviço Social, da dimensão técnico-operativa. Sem isso,
haverá maior dificuldade para a materialização do projeto ético-político profissional: para sair
do discurso e ganhar materialidade, a instrumentalidade é mediação fundamental.
Eunice contribui com esse debate:

— E a gente vai trabalhar no dia a dia com isso. Eu falo para os meus
alunos, às vezes uma estagiária diz: “professora, eu peguei uma
situação de violência e eu não sabia o que fazer”. Aí eu digo que
“você pode saber todas as técnicas de entrevista, que são comuns a
várias profissões, mas se você não souber o que perguntar...” Então, é
o conhecimento que você precisa ter acumulado, que instituição é
essa, que teoria vai iluminar o meu fazer? O que conheço sobre
violência doméstica para poder dialogar com essas pessoas? Então, é
esse fundamento teórico-metodológico que vai iluminar o meu fazer
concreto, eu vou colocá-lo no operativo, mas esse operativo não se
efetiva somente com base no projeto da profissão, se eu não dominar
essas várias dimensões. [...] Eu ando pensando como a gente precisa
298

pensar numa outra forma de trabalhar a formação dos alunos nos dias
que estamos vivendo hoje. Eu ando pensando sobre como fazer isso.
Eu não sei ainda porque tem que ter todo um investimento e você
trabalhando numa universidade privada isso não é simples.

Graziela destaca mais alguns elementos que podem ser incorporados à proposta que
Eunice vem construindo, ao comentar, em relação à seleção socioeconômica:

— Acho que desde que eu conheci a Pesquisa Condições de Vida [do


Seade], lá em 1990 que foi feita a primeira vez lá em São Paulo, eu
acho que o Serviço Social tinha que se apropriar mais dessa
metodologia e trabalhar menos com indicador de renda. Eu acho que o
governo brasileiro não se apropria dessa metodologia. O IBGE, por
exemplo, enquanto o Seade e o Dieese trabalhavam na década de 90
com indicador de que existam pessoas com menos de 10 anos de idade
que trabalhavam nesse país, isso só vai ser incorporado pelo IBGE no
ano 2000. Não sei se é um problema da nossa categoria, mas talvez
assim como que nós poderíamos estar mais afinados com a revisão das
metodologias sobre pobreza e não ficar prisioneira da renda. Quando
apresenta na seleção socioeconômica... Acho que tem dois
movimentos: acho que um é esse grande... da gente trabalhar o
teórico-metodológico tentando entender a produção de conhecimento
da área. Acho que esse era o nosso papel enquanto universidade e o
outro movimento era enxergar as possibilidades de adequação, sem ser
o jeitinho, nas diferentes situações, bolsa de estudo nas universidades,
nos cursos, as questões relacionadas à saúde, creches. Acho que
questões mais gerais... São movimentos que são distintos...

O avanço do trabalho profissional na perspectiva teórica e política indicada implica


organização política da categoria e posse de sólida formação do profissional, mesmo em face
de tantos percalços. Porém, a apreensão crítica da realidade por parte do assistente social e
dos usuários dos serviços sociais depende, dentre outros fatores, de que haja conhecimento
disponível acerca da realidade social e a possibilidade de acesso a ele.
Essa ideia é reforçada por Eunice:

— [...] É fundamental, só que para isso temos que estudar, se antenar


com a realidade social. Como é que eu vou discutir se não conheço a
realidade? Eu estava discutindo isso em Santa Catarina, o pessoal vai
discutir a questão do trabalho, a pessoa chega lá sem trabalho, como
está a situação do trabalho lá hoje, a indústria têxtil, tudo que você vai
comprar é “made in china”, como eu vou explicar para um sujeito que
ficou 20, 30 anos nessa indústria, que não teve outra formação, e eu
vou dizer que ele é incompetente para cuidar dos seus filhos, que não
está sendo provedor da família? Então eu tenho que buscar, aí eu acho
299

que dá para fazer um link com as políticas sociais, como eu posso, às


vezes, informar o sujeito do seu direito a benefícios (acho que não
deveríamos usar essa denominação “benefícios”, é preciso outra
palavra), às políticas sociais que ele deveria ter acesso, que às vezes
ele não sabe, ou principalmente subsidiar o Judiciário para que o
Ministério Público entre com uma ação contra o Estado para ele fazer
cumprir a política? Isso é você dar uma outra direção ao poder.

Para fazer avançar a formação que ocorre no circuito universitário, é condição que a
universidade não seja vista apenas como o lugar do ensino, onde simplesmente se consome o
saber produzido, através de sua reprodução pelos professores nas salas de aula do saber
existente, mas que se constitui fundamentalmente como lugar de produção do saber filosófico
e científico que só avança através da pesquisa crítica de qualidade. Nessa perspectiva, a
universidade se caracteriza como o lugar de divulgação do saber existente e constituído, mas
também de onde se explicitam as lacunas existentes entre o que sabemos e o que não
sabemos, indicando a necessidade da pesquisa para fazer avançar o conhecimento e a prática
no âmbito social e profissional. Essa questão se coloca também ao Serviço Social de forma
decisiva, quando se pretende formar intelectualmente seus agentes, reconhecendo que no
âmbito técnico-operativo da profissão existe grande lacuna a ser preenchida pela pesquisa.
Este estudo tem a pretensão de significar uma contribuição nesse sentido.
A seguir, apresento breve problematização da pauta a ser perseguida pela profissão acerca
da seleção socioeconômica situada no âmbito da pesquisa da instrumentalidade profissional.

4.4.10. A pesquisa da instrumentalidade profissional e a seleção socioeconômica

Diante do que pudemos apresentar até aqui, fica claro que é preciso profissionalizar
essa atividade profissional, através da realização de pesquisas, como indicam, principalmente,
os depoimentos as pessoas brasileiras entrevistadas.
Minha intenção aqui será a de demonstrar, através da problematização que me é
possível elaborar no momento, o tanto que nós, assistentes sociais, precisamos pesquisar e
estudar, para que possamos realizar uma prática consistente, visando ao atendimento dos
interesses dos usuários. Trata-se da criação de saídas coletivamente construídas.
Os vários exemplos apresentados pelas assistentes sociais brasileiras e portuguesas
indicam mais do que nunca a urgência da realização de pesquisas sobre a prática profissional
realizada através de atendimentos sociais, para o levantamento de possibilidades para que
tenhamos um repertório de respostas profissionais mais qualificadas.
300

Em face do que vem vivendo e pensando como professora e pesquisadora preocupada


em qualificar o trabalho do assistente social que ocorre nas organizações sociais, Eunice,
entrevistada brasileira, destaca a importância da pesquisa sobre a intervenção profissional. Ela
relata como as colegas do Judiciário fizeram parte de uma pesquisa lá realizada e como essa
participação contribuiu para ampliar o olhar e o entendimento delas acerca de sua atuação:

— [...] a importância de quem está na intervenção fazer pesquisa,


porque as profissionais que foram fazer a pesquisa, e eu inclusive,
dizíamos (eram dez colegas do Judiciário): “nossa eu fiz isso!”,
questionando o fazer. Quando você vai com o olhar de pesquisador ler
os autos você começa a ver outras coisas, que quando você está
consumido pela rotina do dia a dia não vê; assim a gente começou a
questionar a nossa própria prática. [...] Fui estudar como é que vão
reproduzindo esses poderes no cotidiano, porque lá você tem o poder
institucional — o poder da natureza do judiciário que é julgar, decidir
a vida, o futuro de pessoas, e o poder dado pelo saber, pela área de
formação que vai contribuir para isso, para o bem ou para o mal,
dependendo do que a gente entende por bem ou mal.

A entrevistada, pensando no avanço da formação profissional, considera que

— [...] é preciso cada vez mais trabalhar com a pesquisa na formação.


Eu acho que essa grade atual é importante, mas penso que seria
preciso uma outra forma de distribuição desses conteúdos na grade.
[...] Acho que cada vez mais precisamos articular essa dimensão da
teoria, metodologia e o técnico operativo, mas por meio de pesquisa.
Não sei como ainda. Talvez pensarmos..., tomar uma área, fazer um
diagnostico sócio territorial, envolver os alunos nisso, daí ver as várias
dimensões a serem trabalhadas nas várias disciplinas...

Regina destaca a necessidade e a importância de ampliação da pesquisa no Serviço


Social como forma de valorizar o desvendamento da realidade próxima e imediata:

— Vou trazer uma questão da minha filha, que é economista. Outro


dia ela estava falando que ela não aguenta mais os economistas que
acham que tudo pode ser reduzido aos grandes dados, aos macro
dados e enquadra todo mundo. Então, na tese dela, queria fazer
entrevista com as pessoas que estão com problema, ela quer ir às
pessoas que tem o problema. Ela trabalha com a questão da habitação,
quem está trabalhando com a questão da habitação. Então eu penso
que nós, assistentes sociais, temos isso na mão e queremos sair sempre
para os grandes... A gente tem toda essa riqueza da população e das
condições e a gente não discute isso no Serviço Social.
301

Isaura, concordando com o mote colocado, acrescenta:

— Eu sempre digo isso: a nossa categoria poderia ter publicado os


maiores compêndios sobre a pobreza no Brasil e não faz isso porque a
ação é mecanizada, não presta atenção e não teoriza.

Regina continua participando do debate e acrescenta:

— Tem umas coisas... O médico tem uma briga de quanto tempo leva
uma consulta e quanto vale. Eles têm um parâmetro e nós não temos.
[...] Todo mundo que vem diz que “nossa capacidade de trabalho são
dez atendimentos” e nós no Serviço Social não temos isso. Vem tudo,
ele fica alucinado para... Não consegue fazer tudo, mas quer atender e
resolver tudo. O médico tem mais poder de negociação. [...] Eu acho
que uma tentativa disso na profissão é a história dos parâmetros, mas
que eu acho que na saúde foi um desastre.

Eunice, que, de todas as entrevistadas, foi a que mais trouxe à tona a importância da
pesquisa na área da instrumentalidade como recurso coletivo para buscar saídas aos sérios
desafios e dilemas com que nos deparamos no presente, destaca:

— [...] Mas como que quem está na ponta, acho que não é só o
assistente social, poderia ser mais um dentro de uma equipe que
contribui para levar essa informação, porque quem está lá não é
ouvido ainda para pensar essa política, ou como as pessoas estão
preocupadas em fazer isso? Está sistematizando o que acontece no dia
a dia para levar isso que você está colocando concretamente, mas para
levar números, dados concretos, não ficar só naqueles dados que
obrigatoriamente você tem que preencher para alimentar as estatísticas
oficiais. Quando a gente fala da dimensão investigativa da profissão a
gente não está sabendo como fazer isso.

A entrevistada, ao reforçar a necessidade de ampliação dos estudos sobre a


intervenção visando à qualificação do ensino da instrumentalidade, conta como se sentiu
desde a época do seu mestrado, quando comunicou aos colegas que se dedicaria a conhecer o
trabalho realizado na área do Judiciário.

— Mas aí foi um pouco difícil aqui na academia, naquele tempo era


muito complicado você estudar a intervenção, você que é da PUC deve
saber disso, me senti um ET porque alguns colegas [da intervenção e
da academia diziam] ”você vai estudar o serviço social no
Judiciário?!”, aí sentia que a academia não aceitava, não é que não
302

aceitava, tanto aceitava como eu ingressei, mas era uma coisa um


pouco à parte. Eu fui acolhida pela professora Myriam [Veras
Baptista] que me deu orientação e foi pela abertura que ela deu que eu
pude estar discutindo essa área. E aí ela que falou “já que você vai
estudar o Judiciário porque você não começa pela história?”, porque o
professor [José Pinheiro]Cortez, que deu aula aqui [referindo-se à
PUC-SP] e a dona Helena Junqueira ainda eram vivos e eles
participaram da história do Serviço Social no Judiciário. Então eu fui
ouvi-los. Eu ouvi o professor Cortez numa destas salas, foi um dos
últimos depoimentos dele. E foi muito rica a conversa com ele, com a
dorna Helena [Iracy Junqueira], com a Zilnay [?] — que também era
do Judiciário —, cada um com o seu perfil, dentro do que eles
acreditavam na época, o que era fundamental para a profissão, eles
deram uma contribuição significativa. Eu fui estudando a inserção do
Serviço Social que começou com o programa de família acolhedora,
que era a antiga lei 500 — que hoje parece uma grande novidade, mas
era uma lei de 1949 que o próprio Serviço Social, a dona Helena e o
professor Cortez fizeram; na época era um trabalho realizado pelo
Judiciário, e depois, em 1956, começa o trabalho de perícia ou de
estudo social. Então, eu fui vendo como eles viam essa questão do
poder do saber sobre a vida das pessoas.

A entrevistada, tendo em vista o parâmetro de sua experiência, avalia que, hoje, em


alguma medida, já há mais abertura em relação à aceitação de tomar o cotidiano como fonte
inspiradora de pesquisas para tratar do âmbito técnico-operativo. Eunice destaca que é preciso
pesquisar e discutir claramente como o assistente social tem usado seu poder profissional de
funcionário das organizações sociais.

— É preciso fazer pesquisa sobre o dia a dia e provocar a abertura dos


núcleos para o estudo do cotidiano. [...] Eu lembro que a Zilnay falou
isso, na minha dissertação isso aparece. Eu perguntei “como era
estudar a realidade social e econômica das pessoas, vocês elaboravam
o relatório, vocês percebiam qual era o poder desse trabalho?” Ela
disse algo que eu nunca mais esqueci: “os nossos relatórios eram
muito bem feitos, eram até chatos de ler, porque eles eram muito bem
fundamentados, e eu dizia para o pessoal ‘vocês tomem muito cuidado
com o que vocês vão escrever porque o juiz só vai ler o final’”. Não
mudou muito até hoje. Vai ler o final e decidir. E ela disse “a gente
tem o poder de vida e de morte sobre a vida das pessoas”. [...] Eu acho
que os núcleos de pesquisa, seja da graduação, da pós-graduação,
estão cada vez mais abertos para receber quem está na intervenção,
fazer pesquisa sobre o cotidiano...
303

Cabe esclarecer que quando há referência sobre a necessidade de estudar o cotidiano,


há a proposta ao estudo do dia a dia fundado em perspectiva crítica. Essa fundamentação pode
ser buscada em vários autores que vem tratando densamente do assunto. 104
Eunice, que vem estudando os estudos sociais realizados por assistentes sociais,
destaca algumas questões que devem ser tratadas em futuras pesquisas, para oferecer
subsídios à intervenção, tendo como base o seu ponto de partida acerca do tema que vem se
pesquisando. Ela diz:

— No começo era muito a dona Nadir [refere-se a Nadir Gouveia


Kfouri], mas a proposta que penso hoje é conhecer do ponto de vista
da questão do trabalho, das relações familiares, dos territórios, das
políticas sociais, da cidade onde se vive, a capacidade protetiva e de
cuidado dessa família. Eu conheço mais amplamente, porque no
âmbito do Judiciário, se eu trouxer os fundamentos, devido à
qualidade que eu preciso dar no âmbito profissional de uma área de
conhecimento, eu tenho certeza -pela minha experiência e de vários
colegas que eu conversei por aí -, que de fato vou contribuir para
assegurar os direitos, seja de uma criança, de um adulto ou de uma
família, mas não para penalizar, não deve ser esse o objetivo. Você vai
me dizer “mas todo mundo é assim?” não. No Judiciário como em
outros vários espaços, nós profissionais do Serviço Social e
profissionais de todas as áreas, podemos ser extremante identificados
com o poder no seu sentido negativo. Quando se fala de poder
depende da ótica, eu posso usar o poder de uma maneira a contribuir
para o acesso aos direitos se eu tiver essa possibilidade, mas contribuir
para penalizar eu não vou fazer isso. Eu não estou lá para buscar a
‘verdade’, se a pessoa está mentindo ou não a respeito da relação dela
com a criança, ou seja, lá quem realiza o trabalho deve conhecer a
realidade social, econômica e cultural dos sujeitos para dar subsídios
para acessar e garantir direitos.

Ela mostra toda a dramaticidade da questão social que tem se expressado no tempo
presente com muita força nas pesquisas em que está inserida, indicando a necessidade de
incluir no debate qualificado da profissão seus fundamentos e a construção de respostas
profissionais para lidar com ela. Como nos qualificar para trabalhar com tamanha
desumanização que atravessa o nosso dia a dia de cidadãos e profissionais?

— Agora estou coordenando uma pesquisa, que está estudando


também em processos, a questão da interface entre a justiça da
104
Netto (1987, p. 64), a esse respeito, cita vários autores (dentre os quais Lefevre, Kosic, Heller e Lukács) e
obras e esclarece: “A tradição marxista acumulou, nas últimas quatro décadas, uma significativa massa crítica,
apta a configurar — num espectro heurístico diferenciado, que vai do historicismo à impostação ontológica — os
componentes essenciais de uma teoria da vida cotidiana.”
304

infância e juventude e a política de assistência social nos casos de


destituição do poder familiar a partir, tendo como ano base 14 anos
depois da primeira pesquisa, que foi a minha tese de doutorado — eu
fiz ano base 1996 e agora estou tomando como ano base 2010. O que
estamos encontrando hoje? Na anterior a gente via que a questão da
pobreza estava em todas as situações, mas os motivos concretos que
apareciam eram os mais variados, os que apareciam no imediato,
embora a pobreza permeava a vida de todos, e o que está acontecendo
na pesquisa atual (ainda não finalizada), um dado que numa primeira
leitura a consideramos que é significativo e importante: diminuiu o
número de casos de destituição do poder familiar, não vai chegar nem
na metade em relação ao número anterior de pessoas que foram
destituídas do poder familiar. [...] Eu estou fazendo a pesquisa na
cidade de São Paulo, mas cada fórum, cada região, cada “cabeça de
juiz” é um pouco diferente. Mas quais estão sendo os casos hoje em
que os vínculos são rompidos mesmo, qual está sendo o grande
motivo? A miséria generalizada aparece, mas o que aparece
concretamente é o crack, a violência, mesmo a morte ou envolvimento
na criminalidade e a dependência de álcool; isso aparece em todas as
varas da infância que a gente está pesquisando.

Diante de quadro tão dramático, Eunice conta o que tem sentido ao se deparar com tais
processos que está estudando, nos permitindo entender melhor o já referido adoecimento de
profissionais que vem se colocando com força na profissão na atualidade.

— Eu tenho muitos anos de estrada, eu vi de tudo, mas eu lia aqueles


processos e às vezes eu saía com ‘dor de estômago’ por ver tanta
tragédia, tanta barbárie estampada nos processos. Percebemos que
diminuiu o número de destituições do poder familiar. Por algumas
informações coletadas verificamos que está se buscando mais
preservar a vivência da criança com a família de origem. Agora, tem
as situações limite que aquela criança não tem como, uma criança que
está vivendo em situação de rua com crack... Não estou dizendo que
tem que tirar por conta disso, mas pelo menos, naquele momento, a
criança não pode ficar, ela não tem autonomia para se cuidar, ela vai
morrer. O que está havendo? A própria família muitas vezes não tem
condições e não quer mais cuidar, têm discursos literais que a família
diz “eu cansei”. Porque sabemos que é muito difícil lidar com uma
pessoa dependente, você tem que ter muita estrutura para você poder
enfrentar a situação, conseguir que a pessoa volte a ter uma
autonomia, é bastante complicado. Isso temos percebido de uma
maneira bastante clara na pesquisa. Ainda vamos analisar, falta ainda
uma vara da infância para pesquisar.

Nessa mesma pesquisa, Eunice tem constatado com grande preocupação como vem se
dando a leitura e o registro escrito realizados pelos assistentes sociais, colocando a
305

necessidade de incluir na pauta de discussão da categoria a veiculação das informações nas


organizações sociais, tendo por referência o atual Código de Ética do Assistente Social, como
uma expressão do projeto ético-político.

— Mas eu estou dizendo isso porque a gente foi de novo fazer a


pesquisa nos processos e percebemos que ainda existe muita
dificuldade para boa parte dos profissionais, como eles estão
conhecendo a realidade dessas famílias, como estão realizando esses
estudos e como estão registrando. Para a questão do registro é
preciso tomar muito cuidado, para que o que você coloca no registro
seja de fato para garantir pelo menos o direito da criança e do
adolescente e não tratar da punição dos afoitos, não é esse o seu
objetivo. Mas, por outro lado, tem informações fundamentais para
que o juiz entenda a situação antes de tomar uma decisão, se não
muitas vezes ele vai decidir com o mínimo de informação, muitas
vezes também chocado com aquela realidade e querendo, de alguma
forma, proteger a criança.

Eunice, convidada a falar sobre os critérios que vem pensando tendo em vista a
realização dos estudos sociais, pautou sua análise nas pesquisas que vem realizando e nos
desafios colocados à profissão diante das características com que a pobreza vem se
apresentando hoje.

— Eu preciso continuar esse tema. Depois que eu me aposentei pelo


Judiciário, na universidade eu pensei que teria mais tempo para
estudar e eu tenho menos tempo. Acho que as pessoas consideram que
você tem mais tempo e acabam te chamando para mais coisas e
também acho que começamos a ficar mais lentos eu não sei. Eu não
consigo mais dar conta de tantos compromissos, mas eu quero ainda
estudar mais. Agora estou coordenando uma pesquisa, que está
estudando também em processos, a questão da interface entre a justiça
da infância e juventude e a política de assistência social nos casos de
destituição do poder familiar a partir, tendo como ano base 14 anos
depois da primeira pesquisa, que foi a minha tese de doutorado — eu
fiz ano base 1996 e agora estou tomando como ano base 2010. O que
estamos encontrando hoje? Na anterior a gente via que a questão da
pobreza estava em todas as situações, mas os motivos concretos que
apareciam era os mais variados, os que apareciam no imediato,
embora a pobreza permeava a vida de todos, e o que está acontecendo
na pesquisa atual (ainda não finalizada), um dado que numa primeira
leitura a consideramos que é significativo e importante: diminuiu o
número de casos de destituição do poder familiar, não vai chegar nem
na metade em relação ao número anterior de pessoas que foram
destituídas do poder familiar.
306

Ela propõe ainda estudos que possam referenciar os profissionais na elaboração de


estudos sociais, mas que ainda não foram suficientemente debatidos pela categoria dos
assistentes sociais.

— O que eu vinha pensando e agora, com esses grupos, a gente quer


discutir mais: o que de fato, quando eu falo em estudo social, quais
são os elementos chaves a partir dos quais eu preciso explorar mais
esse conhecimento? Não significa que eu vou registrar tudo isso num
relatório, num laudo, vai depender muito da finalidade. Sempre
discuto muito isso com o pessoal: eu tenho que registrar, eu tenho que
fazer uma relação, qual é a finalidade daquele trabalho, eu posso
conhecer muito mais do que necessário para o registro, para a
finalidade daquele trabalho que eu estou realizando, mas acho que a
questão do “trabalho” é fundamental explorar. O que geralmente se
constata é se o indivíduo trabalha ou não trabalha, e não é isso. Como
é o trabalho na vida dessa pessoa, qual é o acesso que tem ao trabalho,
em que condições? Eu tenho buscado estudar um pouco, eu tenho
pensado na definição de trabalho decente na realidade atual, nem
estou buscando uma condição na sociedade ideal que a gente tem
como projeto para o futuro. Na nossa sociedade o que é um trabalho
decente? [...] Eu acho que é um conceito que precisamos, dentro do
que é possível na nossa realidade, explorar mais. O que envolve o
trabalho decente? A OIT tem muito material sobre isso e acho que a
gente teria que avançar mais. Eu penso que as famílias — eu gosto de
falar no plural considerando a diferentes realidades das famílias —, o
que eu preciso conhecer, desde o processo de socialização, a história
não para punir, mas para explicar essa realidade e as relações
familiares hoje, como é que, para manter uma criança na família, o
que eu preciso conhecer e até onde eu devo e posso ir. A questão das
políticas sociais, os territórios, como está o acesso dessas famílias aos
seus direitos sociais que deveriam ser garantidos pela efetivação das
políticas sociais num conceito mais amplo... Política social
territorializada. Eu acho que temos que buscar essas reflexões. Eu
acho que algo que temos dificuldades para trabalhar, mas que ajuda
muito, teríamos que estudar mais, inclusive para não nos deixamos
guiar pelos preconceitos, é a questão da cultura. Eu posso ser
influenciada pela maneira como eu fui socializada, pela minha cultura,
é uma situação completamente diferente daquele sujeito, não para
relativizar, mas para eu explicar aquela realidade.

Graziela indica algumas possibilidades de lidar com a política de assistência no Brasil,


reconhecendo que, no momento, os assistente social estão subutilizados.

— [...] que os Cras e Creas possam ser colocados em regiões onde já


tenha o mapeamento dos dados secundários anteriormente à
concretização dos espaços físicos. Então, a equipe entraria nos
307

distritos sabendo onde estão os bolsões de miséria, onde está o


narcotráfico, se é cortado por rodovia ou não, onde mora mais criança,
porque esses dados a Prefeitura compra tudo do IBGE; tem o Seade,
tem um banco de dados absolutamente enorme. Isso daria uma visão
social para o trabalho completamente diferenciada, que no caso da
cidade de São Paulo, até foram criados os observatórios e agora acho
que tem dois anos eles foram retirados regionalmente e foi colocado
um central. O observatório seria aquele elemento que poderia
arregimentar o dado colhido diariamente com dado secundário que
estava lá mapeado censitariamente. Aí o Serviço Social vira um
trabalho interdisciplinar e inclusive poderia ser construído em outra
perspectiva e não seria essa redução que a Regina citou; que você
reduz o estudo social a seleção socioeconômica. Então, hoje os
profissionais estão em crise com a criação da política, porque a
capacidade de análise dele é muito maior de trabalhar também, mas
eles estão reduzidos nesse embate.

Vivemos tempos difíceis no exercício profissional que ocorre no atendimento direto à


população usuária dos serviços sociais e na formação profissional dos assistentes sociais
quando a pretensão se dirige a responder de forma crítica e comprometida aos desafios do
presente. Os profissionais, sujeitos dessa pesquisa, porém, com muita generosidade e espírito
coletivo, trouxeram contribuições valiosas no sentido de indicar algumas possibilidades para o
enfrentamento dos desafios e lacunas existentes. Pudemos perceber e assim demonstrar
através dessa pesquisa que existe uma produção séria no Serviço Social que vem sendo
construída no dia a dia e que precisa ser incorporada no debate da profissão.
Em relação à seleção socioeconômica, especificamente, no Serviço Social, nos
deparamos inicialmente com a praticamente inexistência de bibliografia que tratasse do
assunto, mas essa pesquisa nos faz enxergar que há profissionais comprometidos com o
avanço da profissão em Portugal e no Brasil que vem tratando dela de forma qualificada
através do trabalho que ocorre nas organizações sociais que materializam a política social, nas
supervisões e nas salas de aula.
Se é verdade que para a grande parte dos profissionais há a tendência de ser engolido
pelo cotidiano organizacional, existe, no entanto, um segmento da profissão que se esforça
para inscrever a profissão na sociedade sob outros moldes e que é preciso dar visibilidade a
isso através de pesquisas para que outros possam perceber outras formas de responder às
demandas colocadas à profissão.
Considero que pudemos, através da análise aqui apresentada, dar visibilidade também a
que, através do exposto pelas entrevistadas e dos estudos que realizamos, que assumir os
compromissos do nosso projeto ético-político não se atém a simplesmente repetir um discurso
308

sobre ele, mas que, procurando decifrar a realidade imediata que se apresenta aos profissionais,
podemos tomar decisões condizentes com a defesa dos interesses dos usuários dos serviços e
benefícios sociais, mesmo que, por vezes de forma contraditória e limitada. Se a realidade da
nossa sociedade é contraditória, então como negar isso nas nossas próprias vidas?
Nossa posição e a das entrevistadas da pesquisa realizada se constitui em expressão
dessa tendência, quando todas nós temos nos esforçado para pensar política e tecnicamente
sobre os s desafios cotidianos que hoje se apresentam à profissão, no sentido de construir
novas respostas diante das possibilidades e limites colocadas na atual conjuntura.
309

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Caetano Veloso, na bela canção que fez em homenagem a São Paulo, denominada
“Sampa”, chama a atenção para o olhar do estrangeiro diante do outro-novo, o que, no seu
caso, foi se deparar com a cidade de São Paulo, a qual, num primeiro contato, ainda não
entendia e por isso se relacionou com ela, comparando-a ao que já conhecia e trazia, que era a
sua experiência de viver em Salvador, na Bahia.
O olhar inicial, contaminado pela lente da experiência como brasileiro baiano,
considerou o que viu de “mau gosto, mau gosto” porque “Narciso acha feio tudo aquilo que
não é espelho”, e, portanto, tentando enquadrar o que vê ao que já conhecia, considera a sua
experiência anterior como a melhor. O autor refere que trazia “um sonho feliz de cidade”.
Assim, diante de “Sampa”, “aprende depressa a chamar o que vê de realidade”.
Ele, quando encarou a cidade e sua gente “frente a frente”, não viu refletido seu rosto
“feliz e bonito” diante de tanta desigualdade e feiúra com que enxergou em São Paulo.
Depois, quando passou, de forma crítica, a observar mais atentamente a cidade, pode discernir
o outro de si mesmo nas igualdades e diferenças consigo mesmo. Aqui, pôde ver e enxergar
“o povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas”, “a força da grana que ergue e destrói coisas
belas”, “a feia fumaça que sobe, apagando as estrelas”.
Afinal, percebeu que essa cidade se constituía “no avesso do avesso do avesso do
avesso” do seu inicial “sonho feliz de cidade”.
Penso que dessa experiência, exposta pelo poeta com tanta beleza que espero não
reduzir, ele também pôde nessa realidade se entender e se conhecer melhor sobre quem era,
porque se aproximou, se distinguiu, se estranhou, se assemelhou, se enriqueceu e virou um
pouco de tudo aquilo que viu e viveu. Talvez pode também ver o lado feio e desigual de sua
cidade, que aqui chamou de realidade. Ou seja, pode se ver como brasileiro-baiano-paulistano
e pode criar essa canção que nos emociona e que se apresenta sob a forma de forte e
encantadora poesia.
A primeira visão do estrangeiro é a de que “Narciso acha feio tudo aquilo o que não é
espelho” e chama o que vê de “mau gosto, mau gosto”. Essa primeira posição de comparação
não permite ver e perceber, assim como não reconhece o outro como outro e com o direito de
ser diferente. Essa primeira visão pode permanecer assim sucessivamente e ser a única, ou
pode evoluir, dando uma nova direção para o estranhamento para que afinal, possamos
também se ver como igual ao outro que critica.
310

Acredito que a boa convivência do estrangeiro diante do que já estava ali e do que vive
deve despertar e fazer pensar quem olha pela primeira vez e quem estava lá e nunca percebeu
“a realidade” nas novas possibilidades presentes. A condição para poder ver para que seja
possível enxergar para além do imediato é aceitar conviver com os primeiros impactos que
levam ao estranhamento para que, depois do reconhecimento, possa tornar possível a
instauração do diálogo enriquecedor com aquilo ou aquele que o sujeito estabelece relação.
Para perceber e entender quem somos e quem é o outro, o nosso interlocutor, é
necessário que haja uma relação de alteridade. Sem a convivência e sem a disponibilidade de
nos colocar na perspectiva do outro, não há delimitação de quem somos e nem de quem é o
outro. O eu que sou só se delimita pela relação com o tu, ou seja, quem sou eu só adquire
sentido e aparece na convivência; são definições que nascem da convivência e da
comparação. É preciso que, nesse processo o sujeito que deseja conhecer mantenha um olhar
de perto (de singularidade) e ao mesmo tempo um olhar ampliado, de profundidade, de
totalidade (universal) para que possa conseguir configurar também as particularidades do
objeto, alvo de seu olhar.
Diante do exposto, podemos, portanto, pensar que o que somos só pode se definir em
presença do outro, para afinal descobrirmos o nós, de-todo-o-mundo, as nossas
particularidades, os-alguns-que-somos e ao mesmo tempo as nossas singularidades, o eu,
esse-indivíduo que junto com os outros indivíduos somos os cidadãos do mundo que
habitamos esse planeta, embora haja tantas diferenças a nos separar, “tanto mar”.
Afinal, é preciso que a gente se veja enquanto humano-genérico para podermos
enxergar as desigualdades de classe e outras que nos separam e que vêm caracterizando a
relação entre os homens. E para que, a partir daí, possamos perceber as possibilidades de
sermos juntos e os limites colocados ao projeto coletivo que temos para a sociedade, mas que
é meu também, porque componho aquilo que se chama coletivo. Projeto esse que indica a
direção da ação e que ilumina o nosso fazer na sociedade e na profissão.
Essa reflexão ajuda-me a configurar a relação estabelecida com o meu objeto de
estudo, que é a seleção socioeconômica que, nenhum assistente social entrevistado disse
gostar de realizar e que tem ficado no silêncio ao longo da história da profissão sob uma
perspectiva crítica porque tem sido naturalizada.
Ajuda-me também a configurar a relação de convivência que estabeleci com os
assistentes sociais portugueses, através do estágio realizado em seu país, que me permitiu
perceber, em riqueza de detalhes, de que forma a reordenação do capitalismo internacional
repercute em Portugal, que tem sido um dos países do continente europeu mais atingidos pela
311

crise do capitalismo na atualidade. Assim como permite perceber os rebatimentos dessa crise
na política da assistência social. O Brasil, neste momento, é muito menos atingido que aquele
país, mesmo que esse país apresente uma das mais profundas desigualdades sociais do planeta
se se compara a renda dos 10% dos habitantes mais ricos com os 90% mais pobres.
A minha intenção neste estudo foi estabelecer um diálogo como assistente social
brasileira com os assistentes sociais portugueses com o objetivo de poder entender melhor
nossas ações profissionais aqui no Brasil em relação à seleção socioeconômica.
Destaco que as entrevistas realizadas em Portugal mexeram muito comigo, pois pude
vivenciar através delas, sem disfarces, a situação perversa em que têm sido colocados os
assistentes sociais e os beneficiários do Rendimento Social de Inserção (RSI), quando o
processo seletivo se apresentou com toda a sua força de desumanidade na realização do
movimento de inclusão-exclusão, sendo que nessa conjuntura foi a face de exclusão a que
mais se mostrou e se mostra, disfarçada na cobrança da quase impagável contrapartida.
Enquanto no Brasil, em 2010, época da realização das entrevistas em Portugal, o
Programa Bolsa Família se mostrava sob a cara da inclusão, quando

12,5 milhões de famílias beneficiárias, cerca de 4,3 milhões superaram a linha de


extrema pobreza do Programa (R$70 per capita mês), mas, apesar desses avanços o
número de pessoas em situação de pobreza no país ainda é muito alto (por volta de
30 milhões) e a taxa de desigualdade continua entre as mais altas do mundo
(YAZBEK, 2012, p. 309).

Pudemos, através desse trabalho, demonstrar que a seletividade de acesso aos serviços
sociais vem acompanhando as formas de proteção social organizadas pela sociedade
capitalista desde a sua emergência no século XVI e que o Serviço Social desde a sua
constituição no final do século XIX vem participando de sua realização.
Através desse estudo procurei resgatar e situar a seleção socioeconômica como
instrumento da política social, operada pelo assistente social de forma datada, entendendo que
ela que não poderia ser apreendida nos seus fundamentos se a tentativa se dirigisse para
explicá-la em si mesma. Os fundamentos sócio-históricos da seletividade de acesso foram
buscados nas formulações presentes na emergência do Serviço Social, criado para fazer frente
ao enfrentamento da questão social, distinguindo-se da filantropia e da caridade. No contexto
do reordenamento do capitalismo, no início do século XX, configurando a sua fase
monopolista, a profissão do assistente social é institucionalizada e legitimada pelo Estado que,
ao passar a assumir o papel de regulador das relações sociais, se utiliza da criação da política
social como forma de enfrentamento da questão social.
312

O assistente social, como agente do Serviço Social, nesse contexto, passa a ser
requisitado pelas organizações sociais públicas e privadas para materializar os seus programas
e serviços sociais na qualidade de seus funcionários. Na ordem institucional, o caráter político
das demandas apresentadas pelos usuários dos serviços sociais, enquanto expressões da
questão social, são transmutadas em questão de foro íntimo e privado dos indivíduos e
tratadas de forma a isolar o caráter sócio-político dessas demandas, quando passam a ser
consideradas e tratadas como questão de ordem “técnica”.
Nos programas de política social, o acesso aos serviços e benefícios sociais se realiza
mediante a comprovação da necessidade pelo indivíduo e após a avaliação profissional sobre
a detenção de méritos dos indivíduos. O assistente social, nesse processo, passa a assumir o
papel de árbitro, de juiz, fazendo a mediação entre a demanda dos que pleiteiam o
atendimento e os recursos disponibilizados.
Na profissão, inicialmente, os fundamentos da seleção socioeconômica se pautam na
apreensão da questão social como questão moral. O tratamento das demandas dos usuários se
realiza no caso a caso, a partir de leituras de caráter moralizador, levando à culpabilização dos
indivíduos pela situação de carência e pobreza em que se encontram — visão essa que
continua ainda hoje a se apresentar com muita força na sociedade e na profissão.
Os estudos realizados nos mostraram que o assistente social, como funcionário das
organizações sociais, reproduz o controle e a pressão junto à população usuária dos serviços
sociais, após ter ele mesmo, em primeiro lugar, sofrido, na sua própria pele, aquela pressão e
controle exercido pela organização sobre a sua própria intervenção, sob a forma de regras,
ritmos e procedimentos a cumprir. Assim, o assistente social na qualidade de trabalhador
assalariado, se insere no processo de trabalho estabelecido pelas organizações sociais, o que
impõe limites à atuação profissional. Porém, como o profissional tem uma autonomia relativa
pode, contraditoriamente, também realizar os interesses da população.

A natureza dos serviços sociais se apresenta sob o discurso da igualdade, mas, na


realização de fato, é reiteração da desigualdade. No processo de seleção socioeconômica, se
realiza ao mesmo tempo e pelo mesmo processo a inclusão-exclusão, porque ao final só
alguns e não todos serão atendidos.
O discurso do direito não garante o acesso a todos os demandantes dos serviços e
benefícios sociais: refere-se ao fato de todos poderem se inscrever como candidatos. Esse
processo que legitima o acesso ao serviço ou benefício social através de seleção, a partir de
313

critérios estabelecidos, também legitima, ao mesmo tempo, o não acesso, daqueles que
ficaram de fora do atendimento.
Como a seleção é individual, ao término do processo, quem ficou de fora entende que
isso se deu porque não cumpriu os critérios estabelecidos, mas sem o esclarecimento ao
mesmo tempo de que não havia recursos colocados para atender a todos. O acesso ou não aos
serviços sociais se dá mediante a realização da equação entre o número de inscritos e os
recursos disponíveis.
Na sociedade capitalista, um candidato, por exemplo, que ficou de fora, poderia estar na
lista dos escolhidos se houvesse menos candidatos, ou se diante de outros candidatos com o
mesmo perfil, pudesse apresentar em um desempate alguma vantagem em relação aos demais.
A seleção socioeconômica se constitui, dessa forma, em instrumento de legitimação do não
acesso de uma parcela da população que deseja ou necessita dos serviços e benefícios sociais.
Podemos empiricamente perceber no cotidiano que o indivíduo excluído do ingresso
ao que pleiteia poderá lamentar, mas afinal geralmente acaba por se conformar. Poderá até
questionar o fato de ter ficado de fora do atendimento, colocando em dúvida a lisura do
processo ou mesmo se culpabilizar pelo fracasso de não ter conseguido o acesso ao serviço ou
benefício social pleiteado.
Mas, derradeiramente, através de pequenas estratégias de controle utilizadas, tudo
volta ao “normal”, porque “vivemos em uma sociedade competitiva em que sempre alguém
fica de fora e porque não há recursos para atender a todos”. É “normal” e “natural”, então, que
sempre alguns fiquem de fora.
O resultado final desse sofisticado e complexo processo seletivo é a legitimação da
desigualdade social, ao tornar aceitável a exclusão do acesso, ou do direito.
O acesso aos serviços e benefícios sociais vem se dando através de dois modos
básicos. O primeiro ocorre quando o indivíduo solicita e comprova que preenche os quesitos
estabelecidos na lei para o acesso àquilo que se constitui em direito legal, como é o caso, por
exemplo, no Brasil do BPC. O segundo se dá mediante a inscrição e a apresentação de provas
pelo candidato que confirmem, por exemplo, sua situação de pobreza. A seleção nesses casos
se faz por meio de seleção e escolha, entre os candidatos inscritos, daqueles que se
aproximam mais do perfil traçado, tendo em vista que há um limite de verba ser respeitada e
que deverá ser gerenciada. Essa se constitui na forma mais antiga, normalmente denominada
por meritocrática.
No primeiro cenário, todos os indivíduos que preenchem o perfil têm acesso garantido,
porque é um direito inscrito e previsto na lei e, portanto, tem caráter mais universalizante. Na
314

segunda situação, é a verba ou o número de vagas disponíveis de um serviço que definem o


acesso; quanto maior o número de inscritos, mais criteriosa e exigente deverá ser a seleção e
mais difícil será o acesso — consequentemente, mais excludente será o processo.
A seletividade de acesso, dado seu caráter de legitimação da desigualdade social, tem
a utilidade de manter a exclusão ao direito de acesso sob controle, ao torná-la suportável pelos
indivíduos que se mantêm excluídos e pela população em geral. Tem se constituído em parte
integrante da política social do capitalismo; portanto, acabar com ela pressupõe a superação
dessa forma de sociedade.
Diante do exposto, podemos projetar que, no futuro, o Serviço Social poderá até deixar
de realizar a seletividade de acesso aos serviços e benefícios sociais, o que é bem provável
que venha acontecer em breve, porque já há um processo em curso nesse momento, pelo
acelerado avanço das tecnologias e da computação. Atualmente, já podemos perceber
claramente que é o “programa criado” que “autoriza ou não o acesso”, dependendo dos dados
colocados que alimentam o programa, criado para controlar o acesso.
Atualmente, vem se acentuando a burocratização dos programas sociais, tendência
essa que se expressa também nos processos seletivos de acesso. Mas isso não indica a
extinção da seleção socioeconômica no acesso aos serviços e benefícios sociais; muito pelo
contrário, expressa uma sofisticação e complexificação de sua operação ao contribuir para
fortalecer a falsa ideia de que é algo “simples” e “natural” e “impessoal” e, portanto, “justo”;
é “o computador que decide”.
A seletividade de acesso pode e está se complexificando, e passa a se apresentar sob o
disfarce de novas e sofisticadas formas. Mas sua natureza de inclusão-exclusão se mantém,
porque nela reside a utilidade desse poderoso mecanismo de controle social.
No estudo realizado, apresentei a densa problematização envolvida nos processos
seletivos de acesso aos serviços e benefícios sociais a ser incorporada na pauta de estudos e
discussão do exercício profissional do Serviço Social. Merece destaque a necessidade urgente
de refletirmos sobre as decisões profissionais, porque estão correndo sérios riscos, diante das
mudanças que vêm se operando nos processos de trabalho, quando o trabalho morto adquire
vida e o trabalho vivo vai nos tornando reféns dele.
As decisões profissionais, como expressão de nossa autonomia relativa, vêm sendo
comprimidas, com a intensificação da cobrança do produtivismo quantitativo referente ao
trabalho dos assistentes sociais, em detrimento do processo da intervenção profissional que
envolve a relação entre o profissional e os usuários.
315

Merece ser considerado, no entanto, que é possível o assistente social contribuir com o
acesso da população aos serviços e benefícios sociais, tendo em vista o projeto ético-político
expresso no atual Código de Ética Profissional, na Lei que Regulamenta a Profissão e nas
diretrizes curriculares da Abepss.
Para que o atendimento possa indicar possibilidades concretas na atuação do assistente
social, tendo em vista o atendimento dos interesses dos usuários da política social, impõe-se
em primeiro lugar que o profissional tenha condição de se manter próximo dos usuários, para
que possa perceber as demandas em pauta nas situações que trazem e, ao mesmo tempo,
mantenha um distanciamento crítico que lhe permita uma suspensão temporária da
cotidianidade, e para que possa refletir e pensar no sentido de equacionar as necessidades em
face das regras vigentes, reinterpretando-as sob a gerência dos pressupostos teóricos e
políticos que lhe servem de referência.
A conjuntura internacional atual impõe à profissão a apreensão crítica do que se passa
no mundo como exigência para ir além da mera adaptação aos novos tempos, pois nos
encontramos em face de conjuntura complexa e sabemos que, sozinhos e isolados, será difícil
a visualização de saídas aos desafios colocados. Isso demanda a formação do assistente social
como um intelectual crítico, não o simples adestramento do aluno para ser e se comportar no
futuro como mero técnico que realiza mecanicamente a pauta definida pela instituição que
paga o seu salário.
A direção social estratégica da ação profissional a ser fortalecida se dirige àquela que
visa à defesa dos interesses dos que vivem ou dependem do trabalho para viver, embasada em
projeto profissional, profundamente articulado nas suas bases com um projeto societário de
classe que objetiva a emancipação humana.
Como observa Iamamoto (2007, p. 171), pensar o projeto profissional supõe articular
uma dupla dimensão:

a) de um lado, as condições macrossocietárias que tecem o terreno sócio-histórico


em que se exerce a profissão, seus limites e possibilidades que vão além da vontade
do sujeito individual; b) e, de outro lado, as respostas de caráter ético-político e
técnico-operativo — apoiadas em fundamentos teóricos e metodológicos — de parte
dos agentes profissionais a esse contexto. Elas traduzem como esses limites e
possibilidades são apropriados, analisados e projetados pelos assistentes sociais. O
exercício da profissão exige, portanto, um sujeito profissional que tem competência
para propor, para negociar com a instituição os seus projetos, para defender o seu
campo de trabalho, suas qualificações e atribuições profissionais. Requer ir além das
rotinas institucionais para buscar apreender, no movimento da realidade, as
tendências e possibilidades ali presentes, passíveis de serem apropriadas pelo
profissional, desenvolvidas e transformadas em projetos de trabalho.
316

Fundada nessa apreensão, entendo que ser comprometido com esse projeto pressupõe
ter vivacidade e disponibilidade constante para, ao realizarmos as leituras das tendências e dos
processos em curso na sociedade e nas instituições sociais, optarmos pelo apoio e adesão
àqueles que mais se aproximam dos compromissos assumidos, o que representa, muitas vezes,
escolhermos o “menos pior” diante da conjuntura que se apresenta a nós e na qual estamos
inseridos como sujeitos.
Esse jeito de viver comprometido implica a realização permanente de escolhas, dentre
as alternativas possíveis, por aquelas que mais se aproximam de nosso projeto em detrimento
daquelas que mais nos distanciam dele. Trata-se, portanto, de ato consciente permanente que,
não é só discurso, implica ação cotidiana pautada na crítica.
Grandes desafios se colocam claramente aos profissionais na atual conjuntura, diante
do compromisso assumido com os interesses daqueles que dependem do trabalho para viver.
Pudemos, através deste estudo, presenciar como atua e pensa o grupo de assistentes
sociais entrevistadas em Portugal, constituído por mulheres que, à exceção de Luiza, que é
mais jovem, teve ativa participação na construção da profissão no e a partir do processo de
redemocratização do país a partir de 1974. Elas se envolveram desde então na construção e
desenvolvimento de políticas sociais, entendidas como fruto das lutas sociais empreendidas
pelos trabalhadores, e têm consciência da perda brutal quanto aos direitos sociais na
contemporaneidade e de sua repercussão direta no dia a dia do seu trabalho.
Através das entrevistas realizadas no Brasil, pudemos perceber claramente que se
sentem desorientadas em diferentes graus e mesmo em crise, ao se deparar com uma nova
geração de profissionais que chega a colocar em dúvida os seus “ensinamentos” nos cursos
em que são docentes. A prática profissional tarefeira e burocratizada que se apresenta hoje no
exercício profissional, à qual elas têm contato através das supervisões que realizam em vários
espaços da profissão, faz com que ouçam com certa constância a fala dos alunos de que os
conhecimentos “não funcionam na prática”. Diante dessa grave situação, entram em profundo
questionamento, põem-se em busca de novas saídas coletivas para os desafios colocados à
profissão na atualidade.
Há um reconhecimento geral das profissionais entrevistadas de que precisamos
pesquisar melhor o cotidiano profissional para a construção de mediações, para que possamos
reatualizar nosso projeto ético-político, incorporando as novas demandas da atualidade, de
modo a reafirmar os compromissos assumidos com os interesses dos que vivem-do-trabalho.
Em Portugal, a perspectiva mais crítica é denominada “reflexiva”.
317

Naquele país, pude perceber, principalmente por Tília, que é uma liderança sindical,
que estão com fraca organização política da categoria, e a capacidade de análise individual
não dá conta de entender os reflexos da reordenação do capitalismo internacional que rebate
no país e no exercício profissional em dois sentidos mais fortes: enquanto categoria
assalariada, os assistentes sociais vêm perdendo direitos como os demais trabalhadores; como
profissional, vive o aumento do controle sobre o seu trabalho, a aceleração do ritmo do
trabalho, e a insatisfação da população que também perde benefícios sociais.
No Brasil, percebo os assistentes sociais com grande capacidade de crítica, a
organização é mais expressiva, mas aqui também há perplexidades significativas diante dos
novos profissionais que estão se inserindo no mercado de trabalho, advindos dos cursos de
Serviço Social que estão proliferando em cada canto do país todo dia, sob a forma presencial
ou à distância, que fragilizam as conquistas organizativas obtidas pela categoria desde a
década de 1980. Também preocupa o agravamento das expressões da questão social e a
cobrança de “produtividade” a que os profissionais, a cada dia, e, com mais intensidade
passam a ser cobrados.
Os rebatimentos da “crise” nos espaços sócio-ocupacionais da profissão são evidentes
e dramáticos, como pudemos expor ao longo desta pesquisa.
Em relação ao produto das entrevistas realizadas, considero que obtive uma riqueza
tão grande de fatos que foram tratados por mim de acordo com o meu amadurecimento atual e
o tempo disponível para essa pesquisa. No Capítulo 4, em que tratei da análise das entrevistas,
creio que em alguns itens consegui apresentar sínteses de forma refinada, enquanto que em
outros as ideias ainda se apresentam como “pedras brutas a lapidar”.
Considero que este estudo teve e tem eco na profissão, pelo tão forte empenho
demonstrado pelos assistentes sociais nas entrevistas, quando se dispuseram com muita
prontidão a revelar o que passa nas organizações sociais e nas salas de aula. Quando as
convidei, coloquei as condições que elas prontamente aceitaram, concordando em participar.
Todas elas reconheceram a importância e a necessidade da realização de pesquisas que
coloquem em debate o exercício da profissão no âmbito da dimensão técnico- operativa do
Serviço Social.
Diante da focalização da política social, acompanhada de cortes no orçamento e
burocratização do atendimento, gera-se uma crise no exercício profissional, quando prevalece
a legalidade sobre a legitimidade do direito, e o assistente social vem recebendo com muita
intensidade as repercussões da execução dessa política.
318

Pudemos mesmo perceber em Portugal um clima de violência presente no ambiente de


trabalho dos assistentes sociais que operam o RSI, quando passam a receber até ameaças de
agressões físicas dos usuários que recebem a notícia de que seu benefício foi ou será cortado,
porque não cumpriram, principalmente, a contrapartida, que é provar que estão procurando
trabalho. Nos locais de trabalho, a presença da polícia visa “manter a ordem pública”.
Diante da realização da execução de política pública tão perversa, na qual os
profissionais são colocados como linha de frente, há dificuldades para estabelecer o
distanciamento crítico necessário nessa hora.
Importa assinalar que a crise econômica europeia vivida pelo povo português na
atualidade, em 2010, já aparece de forma apreensiva na fala de todas as entrevistadas, embora
em diversos tons de dramaticidade. De lá para cá, no entanto, a situação tem se agravado,
piorando ainda mais a vida para aqueles que dependem do trabalho e dos benefícios sociais para
viver, o que nos leva a deduzir que, se as entrevistas dessa pesquisa fossem realizadas neste
momento, o discurso das colegas assistentes sociais seria ainda mais dramático e complexo.
Desde que retornei ao Brasil, venho acompanhando, dentro do possível, os
desdobramentos da crise do padrão de acumulação do capital no continente europeu, mais
especificamente em Portugal. Destaco e comento a seguir alguns fatos noticiados através da
grande imprensa em Portugal que interferem diretamente no trabalho das entrevistadas, o que
torna relevante publicizá-los no sentido de dar contexto a essa ideia.
No Jornal de Notícias, de 17 de julho de 2012, 105 tomamos conhecimento que o
Ministério da Solidariedade e da Segurança Social iria contratar 50 inspetores para fiscalizar o
cumprimento das regras de atribuição do Rendimento Social de Inserção. Esse fato significa
que haverá maior controle do trabalho dos assistentes sociais que atuam com o RSI, uma vez
que haverá maior fiscalização para a verificação da aplicação das regras de acesso e das
condicionalidades, gerando quase que uma tensão permanente nos sujeitos implicados,
comprometendo a autonomia profissional.
Em outra notícia, de 23 de agosto de 2012, tomamos conhecimento de que o Conselho
de Ministros

aprovou um diploma que institui a prestação de trabalho social por parte das pessoas
em idade ativa que recebam subsídios do Estado, incluindo o Rendimento Social de
Inserção, para os quais haverá um máximo de 15 horas de trabalho semanal, num
máximo de três dias úteis. [...] O governo pretende apostar na capacitação e na
valorização dos cidadãos que recebem estes subsídios: “Quanto mais integrado
estiver o cidadão, mais facilidade terá em criar redes de ligação com ofertas de

105
http://www.jn.pt.
319

emprego e oportunidades que venham a surgir”, afirmou Pedro Mota Soares


[ministro da Solidariedade e Segurança Social], que acrescentou ter a “certeza que a
esmagadora maioria dos portugueses compreende esta lógica e apoia esta lógica”. 106

Entendemos que essa decisão afeta diretamente a intervenção profissional, ao implicar


cobrança de um novo item de contrapartida quando os indivíduos beneficiários dos serviços
sociais terão que oferecer 15 horas de trabalho ao Estado como condição de permanência no
atendimento. Embora a medida apresentada pelo ministro se dê sob a justificativa da
necessidade de integração, de capacitação e de valorização do indivíduo, deve ser destacado
que é apresentada em um quadro geral de desemprego estrutural e de grandes cortes de verbas
nos programas sociais de Portugal. De fato, a justificativa real é que está havendo no país a
operacionalização do sistema de proteção social denominado workfare, que significa

a transição do welfare-capitalismo para o workfare-capitalismo, ou seja, a passagem


para uma forma de regulação do bem-estar descentrada da produção de bem-estar e
centrada na inserção dos usuários das políticas sociais no mercado de trabalho [...] a
reconfiguração do welfare na perspectiva do workfare não se processa
necessariamente por meio do desmonte de sistemas de proteção social. No entanto,
ela altera a regulação da produção de bem-estar — transformando, por exemplo, a
assistência social em instrumento de controle social a serviço do capitalismo
globalizado (WYSS, 2007, apud WEHRLE, 2011, p. 682).

Merece destaque também que, em 2011, Portugal perdeu significativo número de


postos de trabalho. Em notícia de 3 de abril de 2011, intitulada “O sector do comércio em
Portugal, que emprega cerca de 750 mil pessoas, perdeu nos últimos cinco anos 50 mil
empregos com a crise”, consta que,

[...] um ano depois de ter tomado posse como presidente da Confederação do


Comércio e Serviços de Portugal (CCP ), João Vieira Lopes faz o retrato do sector do
Comércio e dos Serviços, este último com 1.800 postos de trabalho. Segundo João
Vieira Lopes, o número de empresas diminuiu, tendo a área do comércio perdido
nos últimos cinco anos cerca de 50 mil postos de trabalho e só no último ano essa
perda foi na ordem dos 40 mil. 107

Em uma conjuntura de desemprego que pressiona pela demanda de mais serviços sociais,
o acesso aos benefícios sociais vem sendo dificultado através da criação de mais empecilhos ao
acesso para que, ao final, seja excluída uma parcela significativa da população hoje atendida pelo
RSI. Assim, a política social de caráter mais universal, praticada no continente europeu, vai, aos
poucos, se focalizando para atender alguns segmentos dos “pobres”, entendidos como separados
106
http://economico.sapo.pt/.
107
http://economico.sapo.pt/.
320

da classe dos trabalhadores, considerados como subcidadãos. Isso faz com que, aos poucos, os
mecanismos mais universais de acesso sejam extintos.
O acesso ao RSI mediante a cobrança da contrapartida de serviços de 15 horas
semanais do indivíduo significa, de fato, um pagamento pelo serviço prestado, pois o Estado
deixará de contratar funcionários, por exemplo, para cuidar de jardins, praças e ruas. O
indivíduo que necessita do RSI, na sociedade do mercado, tem que pagar o preço imposto pela
crise do capital, quando o fundo público passa a ser destinado prioritariamente para o
pagamento da dívida externa, diminuindo-se o orçamento destinado às políticas sociais, e
agora passa a ter que pagar, também, pelo benefício recebido do Estado, através da prestação
de serviços forçada.
No Brasil, onde nunca se chegou de fato a implantar o Estado do bem-estar social nem
o workfare, também há cobrança da contrapartida, que se dá sob outras formas que não a do
trabalho, como atualmente na Europa. São esses mecanismos que, ao final, vão tornando a
política social focalizada, em detrimento dos direitos conquistados através da luta
empreendida pelos trabalhadores.
Se tomarmos por referência os fundamentos do acesso aos serviços sociais nas suas
origens na Política Social e no Serviço Social, conforme exposto nos Capítulos 1 e 2 do presente
estudo, chegamos mesmo a tomar um susto, ao perceber que, apesar de tanta luta empreendida
pelos trabalhadores, as mudanças ainda são tão pequenas e que os fundamentos da seleção
socioeconômica praticada pelos primeiros assistentes sociais, ainda são presentes de forma viva. E
não é por acaso: o neoliberalismo atualiza, sobre os mesmos fundamentos, o liberalismo.
Diante desses significativos fatos que se apresentam, podemos perceber como o
agravamento da crise do capital e a consequente focalização das políticas sociais vem
tornando as condições de vida mais difíceis em Portugal e no Brasil, trazendo rebatimentos
diretos nas organizações sociais que materializam a política social, nas quais os assistentes
sociais se apresentam à população como seus representantes. Nesse sentido, as condições de
trabalho dos assistentes sociais vêm se tornando muito difíceis e dramáticas e sobre elas
deveremos continuar a refletir na busca da construção de respostas, visando atender os
interesses dos trabalhadores ou daqueles que dependem dele para viver. Porém, tendo como
horizonte que

[...] A gente não quer só comida


A gente quer comida
Diversão e arte
A gente não quer só comida
A gente quer saída
321

Para qualquer parte...


A gente não quer só comida
A gente quer bebida
Diversão, balé
A gente não quer só comida
A gente quer a vida
Como a vida quer... [...]
A gente não quer só comer
A gente quer comer
E quer fazer amor
A gente não quer só comer
A gente quer prazer
Pra aliviar a dor...
A gente não quer
Só dinheiro
A gente quer dinheiro
E felicidade
A gente não quer
Só dinheiro
A gente quer inteiro
E não pela metade... (Comida, Arnaldo Antunes/Marcelo Fromer/Sérgio Britto)
322

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ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da


pobreza. São Paulo: Brasiliense, 1994.
335

ANEXOS
336

ANEXO 1

Ficha de Identificação do Entrevistado

Nome:_________________________________________________________________
Idade:__________
Ano em que concluiu a graduação em Serviço Social: _____
Unidade de Ensino em que realizou a graduação em Serviço Social: ________________
______________________________________________________________________
Fez ou faz o Mestrado? Sim ___ Não ___
Fez ou faz o Doutorado? Sim___ Não___
Especialização?
Especificar__________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
____________________________________

Formas de Participação na Profissão:


Atuou ou atua em organizações públicas ___ privadas____
Atuação direta com a população____ por quanto tempo?_________
Atuação em gestão e planejamento _____Por quanto tempo? _______

Atuação como docente na área do Serviço Social. Sim___ não_____


Por quanto tempo? ______________
Disciplinas que ministrou ou ministra: _______________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________

Atuação em entidades organizativas da profissão sim___ não __


Por quanto tempo? _________
Especificar:
___________________________________________________________________________
____________________________________________________________
Utilize o verso da folha para acrescentar outras informações que julgar necessárias.

Local____________________ Data _____________


337

ANEXO 2

Roteiro das entrevistas realizadas em Portugal


Marli Pitarello

1. As condições de acesso (universal ou restrito) às políticas sociais têm comparecido com


freqüência à pauta da discussão profissional desde os tempos do processo de democratização
que ocorreram no Portugal e no Brasil. Qual é o seu entendimento das relações entre estudos
socioeconômicos e direitos sociais?

2. Considerando que o atendimento aos usuários dos serviços sociais é atravessado por regras,
normas, critérios e condições de acesso, acabando por colocar limites à ação profissional, o
que pensa sobre os critérios de acesso às políticas sociais (como se apresentam hoje aos
assistentes sociais em Portugal) e como lidou ou se lida com eles, no nível da operação
concreta?

3. A realização da seleção socioeconômica tem sido uma atribuição dos assistentes sociais
desde os primórdios da profissão. Gostaria que falasse um pouco sobre como a entende: o que
é, papel, utilidade e significado social da seleção socioeconômica.

4. Em geral qual acredita que é a reação dos assistentes sociais ao terem de realizar seleções
socioeconômicas, tanto em termos até mesmo pessoais, de seus sentimentos? Qual é o seu
julgamento sobre esse procedimento dentro da profissão?

5. A ação do assistente social nos processos seletivos, ao final, faz com que alguns tenham
acesso aos serviços e outros não, ou seja, alguns sejam aceitos e outros recusados. O que
pensa sobre isso? As seleções em geral tendem a fazer com que os candidatos fiquem nos
lugares certos?

6. Como acha que um assistente social deve lidar com aqueles que se sentiram injustiçados e
que consequentemente fazem reclamações por não terem sido selecionados?

7. Tendo em vista o seu entendimento você pensa que as seleções socioeconômicas são
formas pelas quais se pode realizar justiça social e promover a igualdade? Poderia dar
exemplos?

8. Na realização dos processos seletivos, deparou- se com situações de pressão de caráter


político para que privilegiasse alguém em detrimento dos critérios colocados? Gostaria que
falasse sobre de que forma lidou com elas, exemplificando se possível com seus exemplos ou
com o que ouviu de colegas.

9. Acha que os regulamentos acabam impondo muitos e insuperáveis limites ao profissional


na seleção socioeconômica, ou acredita que, no entanto, na sua operação concreta, há a
possibilidade dele realizá-la de várias maneiras? Mais de acordo com seu entendimento,
fundado em seus preceitos teóricos e políticos, considera que há margem de manobra na
operação dos critérios e diretrizes de tal forma que vale a pena investir nessas ou naquelas
ações? Você até diria que na prática a teoria é outra? Se possível, dê exemplos de que forma
isso pode ser feito.
338

10. Quanto aos procedimentos (recursos? meios?) característicos de todo processo de seleção
sócio-econômica, o que acha:
a) da forma tradicional de qualificar e quantificar as situações específicas apresentadas pelos
demandantes dos serviços, em relação à sua situação social e econômica, baseada unicamente
no critério de renda, tanto no caso de uma caracterização e mensuração desta de forma
individual, como de percapita familiar. O que você pensa a respeito e qual tem sido a sua
experiência?
b) do uso constante das entrevistas e das visitas domiciliares, entendidas como instrumentos
privilegiados de operação.
c) o que mais teria a dizer?

11. Gostaria que falasse um pouco sobre sua formação em relação a essa atribuição do
assistente social: como e onde aprendeu a fazer seleções ou estudos de avaliação
socioeconômica? Quais foram, enfim, as suas referências teórico- práticas?

12. Para ampliar e qualificar as respostas do profissional, mediante o domínio do


desenvolvimento do processo de seleção socioeconômica, o que poderia indicar de leituras a
um assistente social que deseja se instrumentalizar na realização de estudos sócio-
econômicos?

13. Embasado na sua experiência, o que poderia dizer a um profissional recém formado sobre
como deve ser realizado um bom processo seletivo?

14. Outras considerações que queira fazer em relação ao tema da entrevista, ou mesmo
comentários que dizem respeito a sua participação como entrevistado nesta pesquisa.

Roteiro elaborado na sua forma final em 15/11/2010


339

ANEXO 3

a) Perfil das entrevistadas em Portugal, em dezembro de 2010


Atuação em
Experiência Experiência Disciplinas entidades
Nome e instituição Idade Graduação Pós-Graduação
profissional prática em docência ministradas representativas da
profissão
Teoria e
Mestrado. Metodologia do
Doutorado (em Serviço Social
Na esfera pública: Experiência política
curso). (graduação).
Alice Em 1969, no atuação direta com a significativa em
Especialização em Intervenção do
Atua no Instituto Instituto de população. Angola: antes,
62 Saúde: Oncologia. Há 30 anos. Serviço Social em
Português de Oncologia Educação de Luanda Experiência em Gestão e durante e depois da
Tema: Práctica do Saúde (pós-
de Lisboa (IPO).(1) (Angola). Planejamento por três independência do
Assistente em graduação).
anos. país.
cuidados em fim de Curso de
vida. Gerontologia Social
por 10 anos.
Na esfera pública e
privada:
atuação direta com a
Atuação na
Fátima população por 30 anos.
Especialização em Associação
Atua na Acção Social Atuação em Gestão e Não atuou como
53 Em 1981, no ISSSL. Administração Não tem. Profissional dos
do Instituto Politécnico Planejamento por oito docente.
(2) Social. Assistentes Sociais
de Lisboa. anos, concomitante à
por 30 anos
atuação direta na
intermediação entre
alunos e o Estado.
Notas: (1) Esse instituto é um centro de assistência/atendimento, de ensino e de investigação na área oncológica. Há um convênio entre o IPO e a Liga Portuguesa Contra o
Cancro, estabelecendo que esta paga os medicamentos dos doentes que não têm meios para comprá-los, a partir de alguns critérios. A Liga dá por ano ao IPO uma simples
quantia de 100 mil euros, advindos dos peditórios. “Há em Portugal o dia Nacional do Peditório, em que o povo dá dinheiro e depois usam esse dinheiro... Parte desse dinheiro
é usada por nós, pelos nossos doentes e, nós, assistentes sociais somos quem fazemos a avaliação da situação” (depoimento de Alice).
(2)
O Instituto Politécnico de Lisboa é uma universidade pública situada em Lisboa. A equipe do Serviço Social desse serviço, constituída por quatro assistentes sociais,
administra, durante o ano, em torno de 2.500 processos de solicitação de bolsas de estudo. A equipe realiza o estudo e a avaliação socioeconômica dos candidatos às bolsas de
estudo, a partir da legislação vigente e das situações apresentadas pelos candidatos.
(continua)
340

a) Perfil das entrevistadas em Portugal, em dezembro de 2010 (conclusão)


Atuação em
Experiência Experiência Disciplinas entidades
Nome e instituição Idade Graduação Pós-Graduação
profissional prática em docência ministradas representativas da
profissão
Luísa Atua em entidade
Atua na Santa Casa de “semipública”. Não atuou como
42 Em 1998, no ISSSL. Não tem. Não tem. Não atuou.
Misericórdia de Atuação direta com a docente.
Lisboa.(3) população há 13 anos.
No ISSSP (Instituto
Tília
Na esfera pública e Superior de Serviço
Atua na Segurança
privada; Social do Porto).
Social (Seguridade
atuação direta com a Seminário de Atuação no
Social) do Ministério da
61 Em 1970, no ISSSP. Mestrado. população. Há 25-30 anos. Investigação em Sindicato dos
Solidariedade e da
Experiência em Gestão, Serviço Social. Assistentes Sociais.
Segurança Social
Planejamento e Seminário de Estudo
Portuguesa da cidade
Supervisão por três anos. das Prácticas do
do Porto.(4)
Serviço Social.
(3)
Notas: A Acção Social da Social da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa engloba o atendimento de demandantes do RSI, porque há um convênio com o Ministério da
Solidariedade e da Segurança Social Português. A Santa Casa de Lisboa foi fundada em 1498, pela rainha d. Leonor, instituindo-se a Irmandade de Invocação a Nossa
Senhora da Misericórdia na Sé de Lisboa. Foi a primeira das santas casas de Portugal. Hoje tem ramificações em todo o país, sendo que a de Lisboa é a maior, constituindo-se
em tradicional campo de trabalho do assistente social na área da Assistência Social. A fonte de recursos dessa organização advém de jogos, uma vez que o Estado português
concedeu a essa instituição o direito de monopolizar as seguintes loterias: Euromilhões, Totoloto, Totobola, Loto 2, Joker, Lotaria Clássica, Lotaria Popular e Instantânea.
(4)
A Segurança Social (Seguridade Social) Portuguesa, que integra o Ministério da Solidariedade e da Segurança Social Português.
341

b) Perfil das entrevistadas brasileiras, em abril de 2012


Nome e Experiência profissional Experiência em Disciplinas Atuação em entidades
Idade Graduação Pós-graduação
instituição prática docência ministradas representativas da profissão
Na Unicsul:
Fundamentos do Primeira-secretária da diretoria
Serviço Social executiva dos Assistentes Sociais
(graduação). e Psicólogos do Tribunal de
Na esfera pública:
Oficinas de Áreas Justiça do Estado de São Paulo,
atuação direta com a
Eunice Temáticas: Criança e gestões 2001/2005).
população por 29 anos.
Teresinha Adolescente. Delegada do Cress-SP, Sorocaba,
Atuação em gestão e
Fávero Mestrado e Relações de Gênero e 1984/1985.
1979 na PUC- planejamento por 14 anos.
Atua na 55 doutorado em Há 11 anos Etnia. Associação Profissional dos
Campinas. Pesquisadora do CNPQ.
Universidade Serviço social. Processos de Assistentes Sociais do estado de
Coordenadora do Núcleo de
Cruzeiro do Trabalho São Paulo, Coordenação de
Estudos e Pesquisas sobre
Sul (Unicsul). (graduação). Sorocaba, 1982/83.
políticas e práticas sociais
Poder público, Assessoria eventual ao Cress
com famílias.
Programas Sociais e sobre temas relacionados ao
Famílias (mestrado). Serviço Social na área judiciária
Metodologia de atual.
Pesquisa (mestrado).
(continua)
342

b) Perfil das entrevistadas brasileiras, em abril de 2012 (continuação)


Nome e Experiência profissional Experiência em Disciplinas Atuação em entidades
Idade Graduação Pós-graduação
instituição prática docência ministradas representativas da profissão
Na esfera pública: atuação
direta com a população por
23 anos;
atuação em gestão e
planejamento por 14 anos.
Atuou na Vara da Infância e
Juventude do TJESP e na
Casa Eliane de Grammont;
em ambos os trabalhos,
concentrou atividades
Na PUC-SP:
relacionadas ao atendimento
Investigação em
de vítimas de violência entre
Serviço Social,
pessoas conhecidas
Supervisão
(familiares, entre pais contra
Acadêmica de
Graziela filhos e de homens contra
Estágio,
Acquaviva Mestrado e o mulheres, no interior das
1977 na PUC- Oficina do Trabalho
Pavez 57 doutorado (em relações amorosas e Há 33 anos. Não atuou.
SP. Profissional,
Atua na PUC- curso). conjugais, legalmente
Seminários de TCC,
SP. constituídas ou não).
Orientação de TCC,
Participou de 1998 a 2010
Integra Coordenação
do Fórum Paulista de Não
do Núcleo “Violência
Violência contra as
e Justiça”
Mulheres.
(todas na graduação).
De 1998 a 2003 foi
pesquisadora da Fapesp no
Programa de Políticas
Públicas.
Atuou e continua a atuar
como consultora e assessora
e supervisora de programas e
profissionais que trabalham
com atendimento a mulheres
vítimas de violência.
(continua)
343

b) Perfil das entrevistadas brasileiras, em abril de 2012 (conclusão)


Nome e Experiência profissional Experiência em Disciplinas Atuação em entidades
Idade Graduação Pós-graduação
instituição prática docência ministradas representativas da profissão
Na PUC-SP:
Supervisão
Acadêmica de
Estágio,
Isaura Isoldi Oficina do Trabalho
Na esfera pública e privada:
de Melo Profissional,
atuação direta com a
Castanho e 1967 na PUC- Projetos de
66 Mestrado. população por 30 anos. Por cinco anos no Cress-SP.
Oliveira SP. Investigação e
Atuação em Gestão e
Atua na PUC- Prática,
Planejamento por 15 anos
SP. Orientação de TCC,
Integra Coordenação
do Núcleo “Violência
e Justiça”
(todas na graduação).
UFSC:
Na esfera pública:
Estágio Por 10 anos.
Regina Célia atuação direta com a
Supervisionado, Diretoria executiva da Abepss,
Tamaso Mioto população por 12 anos.
Processos de dois anos;
Atua na Atuação em gestão e
1973 na PUC- Mestrado e Trabalho, como colaboradora:
Universidade 61 planejamento por dois anos
Campinas. doutorado. Serviço Social: representação, participação em
Federal de Pesquisadora do CNPQ.
família e segmentos fóruns;
Santa Catarina Grupo de estudos e
vulneráveis, produção de material didático,
(UFSC). pesquisas em Serviço Social
Planejamento e etc.
(GEPSS), da UFSC
Avaliação
344

ANEXO 4

Roteiro da entrevista coletiva com assistentes sociais brasileiras

Comentários sobre três temas principais das entrevistas com as assistentes sociais
portuguesas, discriminados abaixo:
a) como aparecem nas entrevistas com as assistentes sociais portuguesas;
b) como têm aparecido em sua experiência pessoal e profissional (docente e de campo)

1. Formação para a realização da seleção socioeconômica


● Sua própria formação: gostaria que falasse um pouco sobre como se deu e vem se
dando a sua formação em relação a essa atribuição do assistente social;
● Quanto aos assistentes sociais no Brasil: como analisa a situação atual e que
caminhos vê para ampliação e aprofundamento;
● Em relação às assistentes sociais portuguesas (a partir da análise das respostas dadas
na entrevista enviada);
● Principais obstáculos que encontrou pessoalmente em situações de decisão,
teorização ou execução do processo de seleção socioeconômica.
2. Problematização da realização (instrumentalidade) da seleção socioeconômica pelos
assistentes sociais nas organizações sociais
● Os entrevistados dessa pesquisa em Portugal foram unânimes em dizer que não
gostam de realizar estudos socioeconômicos, pelas variadas pressões que sofrem; pelo
desgaste emocional que geram e enfim pela frustração de não poder atender a todos.
Mas, alguns deles conseguiram levantar algumas razões para satisfação em realizá-los.
Como, na sua análise, essa questão se coloca aos assistentes sociais aqui no Brasil?
● Tendo em vista a sua inserção na categoria dos assistentes sociais quais são os
principais desafios postos hoje aos profissionais na operação dos processos seletivos
de corte socioeconômico?
● A seleção socioeconômica se pauta em normas e critérios impondo limites à ação do
profissional. Na sua operação concreta, há a possibilidade do profissional proceder de
várias maneiras, de acordo com seu entendimento próprio, fundado em preceitos
teóricos e políticos. Considera que vale a pena investir na flexibilização dos critérios e
qual deveria ser a direção das manobras possíveis? Exemplos sempre ajudam.
● As contrapartidas como condição de acesso e permanência aos serviços sociais estão
na pauta da agenda profissional dos ASs na atualidade. O que vem refletindo sobre
essa questão?
● A adoção do CRITÉRIO RENDA como critério para qualificar e quantificar as
situações específicas apresentadas pelos demandantes dos serviços/benefícios, em
relação à sua situação social e econômica, em três modalidades:
a) como ÚNICO ou BÁSICO na avaliação,
b) como INDIVIDUAL ou como PERCAPITA FAMILIAR,
345

c) com base na RENDA BRUTA ou LÍQUIDA.


d) OUTROS CRITÉRIOS de maior abrangência visando o enriquecimento da
avaliação das situações (sugestões e análise de sua contribuição específica na
qualificação e quantificação das situações apresentadas pelos candidatos, em termos
de efetividade e eficiência. Incluir o parecer sobre o uso dos critérios próprios da
avaliação da situação de Vulnerabilidade);
● Nível de decisão sobre os critérios (opções):
a) definidos pelos níveis centrais (instâncias dos vários níveis de governo responsáveis
pelo estabelecimento das políticas e programas);
b) no nível de coordenação da execução dos serviços e prestação de benefícios;
c) o nível do próprio assistente social responsável pela seleção, que poderá fazê-lo
conforme as situações que se apresentam no cotidiano com que lida.
d) Quais as questões aí envolvidas?
Uso alternativo de instrumentos:
a) Entrevistas
b) Visitas Domiciliares
c) Apresentação de Documentos e Comprovantes.
d) Outros
● APRECIAÇÃO ESPECÍFICA dos ATUAIS CRITÉRIOS de acesso às políticas
sociais (como se apresentam hoje aos assistentes sociais brasileiros, tanto nos de
transferência direta de renda a famílias como em outros que quiser referir em outras
áreas: habitação, saúde, proteção à criança, etc.).
3. O significado sociopolítico da seleção socioeconômica
● Nesse tipo de estudo socioeconômico, podemos afirmar que a ação do assistente
social, ao final, faz com que alguns tenham acesso aos serviços/benefícios, e outros
não, ou seja, alguns sejam aceitos e outros recusados. O que pensa sobre isso? A
seleção socioeconômica, ao fazer essa separação, tende em geral a fazer com que os
candidatos fiquem nos lugares certos?
● Qual é o seu entendimento sobre as relações entre estudos sócio-econômicos e
direitos sociais?
● Tendo em vista o seu entendimento nesse aspecto você pensa que a seleção sócio-
econômica é uma forma pela qual se pode realizar de alguma maneira a justiça social e
promover a igualdade? Poderia dar exemplos?

São Paulo, 23 de abril de 2012


Marli Pitarello
346

ANEXO 5

Recorte da entrevista realizada com Tília na cidade do Porto, em dezembro de 2010

... A entrevistadora pergunta: - Você não acha Tília, que a


teoria nos ajuda a entender o que está acontecendo conosco para não
ser só uma coisa muito emocional; que sociedade é essa que a gente
vive, que papel desempenhamos nela enquanto profissionais? Tudo
isso não poderia abrir um caminho?
Entrevistada: - Podia e eu acho que é um caminho possível.
Acho que é um bocadinho possível fazer a distância necessária
refletindo e é isto que eu me proponho fazer.
A entrevistadora: - Se você não sair da banalização do
cotidiano, da naturalização dos problemas, da idéia de que sempre foi
assim e, portanto, sempre será para poder entender... Você tem que
entender como é que funciona a sociedade para poder entender o que é
que se pode fazer nela.
A entrevistada: - Estou de acordo e à partida é isto que eu, ou
melhor, que eu esperava, gostava de fazer, o que eu esperava fazer
com as pessoas. Só que é tão difícil fazer com que as pessoas reflitam,
que não estou me achando capaz de conseguir isso. No fim da reunião
(referindo- se à reunião de supervisão já referida) eu propus, porque
depois há muitas... Isto é um jogo que é atravessado por muitas
questões: medo do chefe; medo de falar porque o chefe manda; porque
agora dizem-nos “para dar menos dinheiro”; depois dizem que “já há
dinheiro”. A gente nunca sabe o amanhã. Outras pessoas dizem que
“nem sequer se pode mais dizer algo alto; temos que obedecer porque
apesar de tudo, também existem dependências hierárquicas”. E então,
eu me dei conta... Então, também houve uma colega que disse “que
também não adianta, porque não é aqui que nós podemos resolver,
porque quem pode resolver isto, não resolve e nem quer e nós nem
podemos falar.”
A entrevistadora diz: - Parece que a gente para poder fazer um
bom trabalho, a gente precisa conhecer o lugar que a gente trabalha, a
347

organização; perceber que é uma arena que tem muitas forças


presentes e pensar sobre como é que nos situamos e como podemos e
devemos nos situar naquela correlação de forças.
Entrevistada: - Mas se quiser pôr nesses termos, acho que as
minhas colegas vivem numa situação de alienação, exatamente,
porque o trabalho que elas fazem é dar dinheiro no imediato, sem
análise e sem possibilidade de reflexão. Eu fiquei tão preocupada
nesse dia porque podia sentir-se o medo e o risco; não se esqueça que
agora há polícia lá na sala de atendimento, há polícia porque há
beneficiários que entram lá exaltados. E eu achei que apesar do medo,
sobretudo, algumas pessoas revelaram o seu medo e chegaram a dizer
que “a culpa é dos chefes, porque os chefes se quisessem ajudavam, se
quisessem que fosse de outra maneira, poderia ser de outra forma.”
Entrevistadora: Tília, esta é uma conjuntura que está colocando
muito medo na sociedade, porque tem uma mudança, uma reviravolta
do orçamento do Estado, e isso acaba por ter repercussões na vida das
pessoas, mas teve algum momento nestes anos todos em que você
percebeu que isso era possível?
Entrevistada: - Achei que era possível.
Entrevistadora: - Esse grupo com que está trabalhando é novo?
Entrevistada: - Não, quer dizer, têm de todas as idades, tem
pessoas de 60anos, mas a grande maioria talvez seja de gente nova;
reformaram-se muitas pessoas ultimamente, algumas com 50 e tal, 60
anos. Mas há muitas pessoas jovens, mas para mim a questão é que
também as pessoas jovens, não trazem diferença no discurso, não há
diferenças na prática das jovens e das menos jovens. Acho que há aqui
um processo que é delicado também, porque acho que há muito pouco
entusiasmo dos profissionais, muito pouco entusiasmo dos assistentes
sociais. Eu não sei como é que se pode dar a volta, mas ao mesmo
tempo, isto é muito agressivo dizer isto dos profissionais, é agressivo
dizer isso dos profissionais que eu conheço, é muito agressivo. De
outro lado, as pessoas precisam de trabalhar, precisam do salário, e eu
recuso-me a entrar nesse discurso; temos de nos centrar, sobretudo, na
nossa missão, que é a de trabalhar com as pessoas que, de alguma
348

maneira, tem problemas de inserção social. E sabe o que acontece?


Muitas vezes, começam a discutir a sua própria situação, isto acontece
em muitas situações; para muitos são os salários baixos, para outros os
cortes nos salários que vamos ter agora, aqui.
Entrevistadora:- Quem sabe se aquilo que está a falar seja um
caminho de recomeçar, quer dizer, neste momento, parece que a
situação dos usuários, se confunde um pouco com a própria condição
de trabalho dos assistentes sociais, talvez por isso se apresenta como
uma coisa nova, o empobrecimento de uma classe média, às vezes
pode nos fazer deslumbrar caminhos também.
Entrevistada:- Pois, mas eu própria também... Isso é novo,
quer dizer para mim é novo e, de fato, também é objetivo. Há colegas
minhas que eu sei que os maridos já perderam o emprego, há colegas
minhas que têm problemas familiares de desemprego de maridos, e
elas apesar de tudo, hoje em dia, ser funcionário público, pode-se ter o
salário cortado, mas ainda se vai tendo alguma segurança no trabalho,
pelo menos, por enquanto. Mas eu queria voltar a esta questão da
capacidade de reflexão, porque apesar de tudo, eu também tenho um
enquadramento institucional, e eu pensei, naquele momento, que se as
pessoas fizessem uma reflexão escrita sobre aquilo que sentiam, o que
gostam de fazer ou não gostam de fazer, daquilo que sentem na
situação atual, o que é que achavam que deveriam fazer, que se fosse
uma reflexão sozinha, sem nome, para dizer tudo o que lhes
apetecesse, sobre a instituição, sobre a sua atividade, se fossem elas a
decidir, porque elas disseram muito, o chefe é que manda, nós só
fazemos o que nos mandam, muito dominante este discurso e então eu
propus-lhes, neste momento que fizessem. Só tenho uma, são cartas
anônimas e todos disseram que sim, que faziam e que já uma
entregou, em principio, será até ao fim do ano e fiquei impressionada
com este testemunho que li. Como é que se faz com este testemunho,
que é...? Ela não gosta de fazer nada do que faz, “não gosto de dar
dinheiro, não gosto de ser maltratada pelos chefes, não gosto de vir
para o trabalho, não gosto de ser maltratada nas reuniões do Núcleo de
Inserção”, que é uma instância do programa do RSI, “sinto-me
349

desvalorizada, acho que já nem sei ser assistente social”. Ou seja, é


impressionante o estado em que aquela mulher, profissional, pessoa,
está. E eu queria tanto pensar sobre isto.
Entrevistadora: - Vai acabar por chegar um momento na sua
vida em que tem de pensar sobre aquilo que diz respeito à sua
atividade profissional, não é?
Entrevistada: - Estou muito curiosa, queria fazer um
tratamento disto, porque, não sei, eu penso também que neste
momento, as instituições estão muito desorganizadas, é uma
burocracia enorme que submergiu as pessoas, e havendo burocracia,
põem-nos sempre a fazer coisas com papeis, fazer coisas que eles não
gostam de fazer e isso cria muito, aí minando, vai esvaziando.
Entrevistadora: - Você acha que há espaço de reflexão, por
exemplo, da acumulação teórica sobre política social e a legislação?
Entrevistada: - Acho, acho, mas acho que sem reflexividade,
sem nós levarmos a sério de que isto é uma profissão, que nós temos
uma formação teórica também, e é com essa formação teórica que nós
temos de fazer a diferença e criar um espaço, refletindo sobre as
práticas e, a partir do que fizermos, encontrarmos outras direções na
prática, e não é pela via do dar dinheiro.
Entrevistadora: - Você pode dar dinheiro e não fazer diferença
nenhuma na vida de uma pessoa embora ela tenha direito, e você pode
não dar dinheiro nenhum para dar a essa pessoa e fazer toda a
diferença na vida dela. Mas, para dar dinheiro, talvez você não
precisasse estudar 4 anos, mas para fazer um trabalho com as pessoas ,
talvez você tem que estudar a vida inteira. Por exemplo, eu só consigo
fazer um bom trabalho como professora se eu estudo, se vibro com os
meus estudos e com as minhas reflexões. Se não passo vida, esperança
no mundo ou algo do gênero aos meus alunos e para as pessoas, não
contribuo para nenhuma formação, para nenhuma mudança. [...]
Entrevistada: - Mas, de qualquer modo, penso que não é isso
que nos falta (referindo- se à teoria), não vou dizer que não falta às
nossas colegas, mas o que falta é usar tudo o que sabemos para pensar
em direções, orientações da nossa intervenção. Enquanto não houver
350

aqui uma vanguarda, desculpe eu dizer assim, mas é uma vanguarda


no sentido de quem esteja mesmo preocupado em pensar isto que, não
é um pensar desligado. Isto para mim, só é possível com pessoas que
estejam na prática também, porque grupos de pessoas sós como eu,
por exemplo, a pensarmos, não encontram saída. Esta discussão tem
de ser teoricamente fundamentada e tem que ser também aqui
alimentada com as práticas de pessoas, com pessoas que estejam no
terreno e que possam ser desafiadas para isto. Eu fui a esta tertúlia e
cheguei aqui ao Porto e pensei isto, que isto é que era preciso. Tertúlia
é um debate pequeno, tipo conversa, não é um encontro com muitas
pessoas, portanto, a conversa possível, eu digo uma coisa o outro
completa por hipótese de eu estar a falar. Não é por ordem de, é mais
completar a idéia e pensei… [...] Eu vou me perguntando, pode me
interromper, mas só para acabar esta idéia, falei com uma senhora,
com uma colega que não era assistente social e disse-lhe, vim de
Aveiro com esta preocupação, quer me ajudar a pensar nisto? E
achamos que era muito difícil, onde é que nós vamos arranjar aqui
pessoas que estejam no terreno a fazer coisas e que queiram pensar
também isto com a ajuda da universidade, com a ajuda ou a
colaboração de pessoas que teoricamente estejam informadas?
Entrevistadora: É lógico que uma profissão é para o
profissional poder sobreviver como todas as pessoas, mas é também
para tirar algum prazer, gostando do que faz. Se a gente não sente
prazer naquilo que a gente faz, fica meio insustentável, precisa de
voltar a pensar nisto…
Entrevistada: Mas a minha questão é que eu não sei se é junto.
Muitas vezes é difícil, porque junto com isso pode perturbar a tal
relação de confiança e reciprocidade, de uma relação de ajuda, se
quiser. Não sei como é que vocês chamam lá, mas nós chamamos de
relação de ajuda, relação profissional de apoio, fazer um caminho com
a pessoa. [...] Nunca é neutra, mas eu acho que é possível fazer-se um
caminho lado a lado com a pessoa numa direção de libertação daquele
ser humano que está aprisionado por dificuldades.
351

Entrevistadora: Mas você tem que lidar com um conflito


permanente entre os interesses dos dominantes do trabalho ou do
capital, como você quiser. Você precisa definir um pouco, quais são
os interesses que você vai defender, por exemplo, e a gente não faz
isso de forma tranquila, porque a realidade é contraditória. Mas, ao
você trabalhar você pode ressaltar, por exemplo, em vez de usar o
usuário, você usar a instituição na sua plenitude para poder ajudar o
usuário, não é?
Entrevistada: Pode usar na mesma a instituição, só que não tem
de ser assistente social.
Entrevistadora: - Não, mas eu estou falando dos assistentes
sociais. Você acha que é uma profissão que está a prestes a acabar
ou…?
Entrevistada: Não, o que acho é que nunca devia ser um
mediador em termos da prestação, exatamente, para tornar mais
possível, a outra relação, porque é possível estabelecer uma relação de
apoio, de ajuda, de comunicação recíproca, porque já chegaram a me
dizer assim, “deu ao meu vizinho e ele não precisa tanto como eu”.
[...] Eu só me refiro... Talvez na realidade brasileira seja possível. Eu
vou-lhe pôr esta questão, tentar ser útil, eu estava a pensar que
argumento é que eu vou dar agora a essa questão que me está a
propor? É que recentemente em Portugal houve cortes e houve cortes
no dinheiro da pobreza, no dinheiro da Ação Social, da assistência,
houve cortes muito grandes, poupou-se 1 milhão e tal. Eu estou a falar
mesmo do dinheiro dos pobres. Ontem o Presidente da República,
esteve num casamento de um sem-abrigo, foi padrinho dele e disse
que as pessoas têm direito à dignidade, a ter um teto, a não ter fome,
que devíamos ter vergonha que as pessoas tivessem fome, isto é uma
coisa. Agora há outra coisa que eu quero dizer que é se devem ser
dadas oportunidades às pessoas para sair da pobreza. Como é que
depois há uma inconsciência dos direitos e as pessoas vão lá ao
assistente social exigir e dizem, eu tenho direito, eu quero assim.
Porque é que há de ser ao assistente social que vai pedir? Por que é
que não há uma repartição onde vão e dizem, “eu não tenho
352

rendimentos”, Pronto.Por que é que não se pensa nisso como um


direito, como um abono de família? É como qualquer outro direito,
quando vai dizer mal a uma pessoa, o assistente social, claro, que tipo
de relação pode fazer para além dessa, mais do que ouvir as pessoas
que, no fundo, vão ali reclamar um direito, e não é na assistente social
que têm de reclamar, tem de ser numa instituição que o garanta e pode
ser a Segurança Social.
Entrevistadora: Mas um assistente social, não é uma pessoa
que representa a instituição? Você fala em nome dela, porque quando
você é contratado…
Entrevistada: Mas não é só, pode haver vários profissionais.
[...]
Entrevistadora: - É que o profissional que sofre tanto parece
que vive sozinho, não se reúne, por exemplo. Os assistentes sociais
que trabalham na Segurança Social, talvez não se reúnam para
conversar que nós temos esse desafio, e aí pensar junto sobre que é
que nós podemos fazer coletivamente. Buscar e encontrar caminhos,
chamando um ou outro para encontrar caminhos talvez seja um jeito
de se protegerem; ter uma posição um pouco comum, talvez seja uma
estratégia. Eu sei que no Brasil, o pessoal que trabalha na área da
justiça, criança abrigada, sabe, têm uma organização incrível. Eles
fizeram um grupo para poder pensar suas situações e aí, quando cada
um volta para o trabalho, ele não se sente sozinho. Há estratégias que
são encontradas de forma coletiva.
Entrevistada: - Mas eu acho que o Serviço Social brasileiro
está muito à frente de nós, exatamente por isso, porque tem essa
tradição, mesmo a reconceitualização, eu lembro-me de um professor
brasileiro, tinha eu 20 e poucos anos, olhe, quando eu entrei para o
Serviço Social, quando comecei a trabalhar, que se chamava, não me
lembro do nome dele, mas lembro-me que ele veio cá, era o
Movimento da Reconceitualização, em 72 ou 73. Nessa fase, está a
ver, já vinham a Portugal, com percepções que nós ficávamos ali,
completamente... Nunca tínhamos pensado nessas coisas. Eu acho que
353

o bom caminho é o vosso, mas acho, também, que cá em Portugal é


tão difícil isso, tão difícil.
Entrevistadora: - Lá também não é fácil. Mas, é através dos
instrumentos que você põe a teoria em atos, que você põe a política
em atos, quer dizer, através dos instrumentos, ou melhor, é no manejo
do instrumento... Essa formulação, não é minha, mas é através do
instrumento que você põe a teoria em atos, então se você não tem a
teoria, a reflexão constante, essa compreensão, a gente acaba sendo
engolido pelo cotidiano e a gente fica só legitimando esse cotidiano da
gente. Precisa ter teoria, precisa ter espaços organizativos, não é?
Entrevistada: - Sim, mas eu não sei se lhe estou a dar a idéia de
que estou a ser céptica, eu estou entusiasmada, mas quer dizer dentro
dos nossos contextos, mas há uma análise que não posso deixar de
fazer, porque esta é objetiva, quer dizer, não há movimentos
profissionais, não há. Estou aqui a constatar que não existem, das
escolas entre si, não estão juntas, estão separadas e até há em certos
momentos de rupturas de escolas, mas, estão a nascer outras
universidades novas, tem a ver com a escola Serviço Social, mas cada
uma por si, quer dizer, nós cá em Portugal, temos tido e temos
mostrado uma incapacidade de nos juntarmos.
Entrevistadora: - Olho para você e percebo que está angustiada
por ter se deparado com um grupo de profissionais que não está vendo
saídas e, talvez, esse coletivo, por exemplo... Paulo Freire tem uma
frase muito linda, que diz assim: o impossível só irá se tornar possível
se a gente começar a fizer o que é possível agora. Então eu vou
perguntar para você: e aí, nós estamos todos angustiados, resignados,
perdidos, mas o que é que nós podemos fazer? E se as pessoas
começassem a trabalhar no coletivo porque parece que a nossa
situação está igual a dos usuários e o que é que nós vamos fazer? Para
começar essa reflexão é preciso começar aqui, porque, quer dizer, a
gente não começa lá. Não dá para você ser um profissional... O que
quer dizer quando um aluno fala, eu só vou participar quando eu me
formar? Ou você começa agora, ou você não começa, então podemos
começar a criar alguma coisa agora. Eu estou me lembrando de uma
354

oportunidade em que eu acompanhava um grupo lá do Brasil e eu


comecei a dar supervisão a eles e quando eu propunha coisas novas
eles me diziam assim, como estava muito difícil, eles diziam assim,
“olha você fala isso porque você conhece na teoria, você não está na
prática, vem viver aqui para ver...” Aí eu respondi a eles, “se a prática
em si fosse um critério de verdade, quem tem dez filhos deveria ser
melhor mãe do que quem tem um filho ou nenhum. Mas, olhando para
a realidade percebo que há mães que têm dez filhos e é um problema e
às vezes vejo uma que só tem um ou não tem nenhum e é um ótimo
educador. O critério então não é esse, o critério é o da reflexão, de
você pensar ao que você veio fazer, se faz aquilo com clareza ou não.”
Então, como é que você pode caminhar? Aí eu desafiava e dizia, “e aí,
como é que é isso para você?” Porque só o fato de pôr isso, já começa
a refletir. Eu não sei muito bem, mas eu acho que a gente não precisa
ter ótimas condições para poder começar. Tem pessoas na
universidade que defendem que é necessário ter situações especiais
para aprender uma boa prática. Eu não penso assim. Não, o aluno tem
de aprender naquela realidade difícil, agora faz toda a diferença se ele
tem um supervisor que tem esperança, que lida com as contradições
ou não. Quando um profissional se posiciona tentando criar caminhos
diante das situações que vão se apresentando no cotidiano, já cria a
possibilidade de um bom aprendizado para o aluno.
Entrevistada: - Isto, eu estou de acordo, em relação à questão
do ensino, acho que podemos ter imensa influência e que se pode
fazer a diferença, por exemplo, constrói-se sempre, há sempre
hipótese de intervenção, não sei a maneira...

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