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MARLI PITARELLO
SÃO PAULO
2013
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO (PUC-SP)
MARLI PITARELLO
SÃO PAULO
2013
B ANCA EXAMINADORA
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i
À Ana Luiza, minha menina, com a qual compartilho o dia a dia e encontro nessa
convivência os motivos para renovar minhas esperanças na transformação do mundo.
ii
AGRADECIMENTOS
iii
Um agradecimento especial às amigas e professoras Isaura Isoldi de Mello Castanho e
Oliveira e Graziela Acquaviva Pavez, pela convivência solidária, pela colaboração e paciência
que tiveram comigo durante o processo de elaboração deste estudo.
Aos colegas do Programa Foco, em especial às queridas companheiras Rosina Revolta
Gonçalves e Vania Ferreira de Sousa, pela amizade e pelo trabalho solidário que juntas
realizamos.
Às minhas prezadas amigas Dora Petreski, Edima Donabella, Maria Cecília Figueira
de Mello, Maria Aparecida Salomão Moraru e Regina Maria Ignarra, agradeço pela linda e
solidária amizade que construímos e que persiste há tantos anos. À Cleisa Moreno Maffei
Rosa, pela generosidade com que sempre me trata. É muito bom contar com uma amiga com a
qual posso falar de receitas culinárias ao destino que desejamos para o mundo. Ao igualmente
amigo de muitos anos, Alberto Abib Andery, pela confiança e esperança que sempre
depositou em mim e pelas tantas coisas que me ensinou na vida, especialmente o valor da
amizade leal e sincera.
Ao Sílvio Hotimski, que, de longa data, vem me ajudando a realizar escolhas em
benefício da minha felicidade.
Agradeço à Capes pela Bolsa de Estágio no Exterior, que me permitiu estudar em
Portugal, e à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo pela Bolsa Dissídio, que me
dispensou do pagamento das disciplinas cursadas no meu doutorado.
Por fim, quero agradecer às queridas amigas Cinira do Prado Francisco e Odília Alves
de Souza, a dedicação e os cuidados que dispensam à minha família. A vocês todo o meu afeto
e reconhecimento, sempre. Às amigas Ana Paula Pavan Dondon, Cíntia Constantino Menezes e
Duca Rachid e respectivas famílias, precioso legado dos tempos do Grão de Chão, pela bonita,
recíproca e cúmplice relação que temos até hoje e que torna a educação de nossos filhos mais
rica. Ao Paulo Roberto Pires, pela ajuda que me liberou de muitas tarefas cotidianas.
À minha família sou imensamente grata. Aos queridos primos Santa, Carla, Cristiane,
Douglas, Gilberto, Dete, João e a pequena Olívia, por nossos encontros à moda italiana,
sempre alegres e acompanhados de muita comida.
À minha amada irmã Marlene, pelo caminho que trilhamos juntas e por tudo. Sem a
sua presença cúmplice na minha vida não teria feito o que fiz.
A meus pais Olga e Alceu, já falecidos: eles são minhas referências, que, pela nossa
origem social, ensinaram-me o valor do trabalho, da união, da esperança e da luta,
especialmente a luta por um mundo mais igual e justo.
iv
RESUMO
v
ABSTRACT
This thesis’ objective is to provide a basis for the intervention of the professional social
worker in socioeconomic selection. In social organizations, socioeconomic selection is an
instrument used by the social worker, as an employee, to enable the benefits and social
services demanding population to qualify for access to goods and services, often
constitutionally provided, but denied in practice as universal social right. Under these
conditions, the socioeconomic selection, as instrument of social policy operated by social
workers in almost all social organizations — taken as socio-occupational profession spaces —
is what this study is concerned with. The analysis undertaken located the emergence of
selectivity and its grounds, which were incorporated into the historically constructed social
protection proposals, particularly from the sixteenth and seventeenth centuries on, in Western
Europe, and still present today under the aegis of neoliberal capitalism. To reach the
selectivity deeper significance involved the analysis of social rights in the face of today
universalization and targeting of social policies, as well as the sense of the compensatory
conditions as part of this selectivity. The research further explains the reasons attributed to
socioeconomic selection when it has become a social worker activity with the emergence and
institutionalization of Social Work in the United States, Western Europe and Brazil,
highlighting the role of the Catholic Church in the expansion of Social Work on the world
stage. An examination of the relationship between socioeconomic selection, Social Policy and
Social Work reveals the nature, the usefulness and significance of this selection, both in the
context of social policy, as in the social workers involvement in selection processes, in the
sense of its social legitimacy in capitalist society. Discussing this articulation in the work and
training of social workers, through the contribution of literature and a qualitative study
conducted with social service works in Brazil and Portugal, the study concludes that, despite
the struggles undertaken by workers, changes in the access to social services and benefits are
still small, and that the foundations of socioeconomic selection practiced by the early social
workers are still strongly present. Today, faced with the global trend of targeting of social
policy, Portugal and Brazil being two examples, the selectivity of access of social policy has
increased, indicating the need for further reflection and the pursuit of constructing responses
in order to meet the interests of workers or those who depend on work to live.
vi
LISTA DE SIGLAS
Abepss: Associação de Ensino e Pesquisa em Serviço Social
APPS: Associação dos Profissionais de Serviço Social
BPC: Benefício de Prestação Continuada
Capes: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
Ceas: Centro de Estudos e Ação Social
CLT: Consolidação das leis do trabalho
COS: Charity Organization Society
Cras: Centro de Referência de Assistência Social
Creas: Centro de Referência Especializado de Assistência Social
Cress: Conselho Regional de Serviço Social
CSW: International Council on Social Welfare
Dieese: Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos
Funai- Fundação Nacional do Índio
IBGE: Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IPO: Instituto Português de Oncologia Francisco Gentil de Lisboa
ISSSL: Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa
LBA: Legião Brasileira de Assistência
MST: Movimento dos Trabalhadores sem Terra
NEPEDH: Núcleo de Estudos e Pesquisa em Ética e Direitos Humanos do Programa de
Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da PUC-SP
OIT: Organização Internacional do Trabalho
ONG: Organização não governamental
PAT: Programa de Alimentação do Trabalhador
PBF: Programa Bolsa Família
PFP: Programa de Formação Profissional
PIB: Produto interno bruto
PT: Partido dos Trabalhadores
PTC: Programas de transferência de renda condicionados ou com condicionalidades
PTCR: Programa de Transferência Condicionada de Renda
PUC-SP: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Rais: Relação Anual de Informações Sociais
RMG: Rendimento Mínimo Garantido
RSI; Rendimento Social de Inserção
SCML: Santa Casa de Misericórdia de Lisboa
Seade: Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados
Senai: Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial
Sesi: Serviço Social da indústria
Suas: Sistema Único de Assistência Social
TCC: Trabalho de conclusão de curso
Uciss: União Católica Internacional de Serviço Social
Uciss: União Católica Internacional de Serviço Social
UCP: Universidade Católica Portuguesa
UFSC: Universidade Federal de Santa Catarina
Unicamp: Universidade Estadual de Campinas
Unicsul: Universidade Cruzeiro do Sul
URSS: União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
vii
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO, 1
Pressupostos da pesquisa, 6
O objeto, 8
A pesquisadora, 9
A organização do estudo, 11
viii
4.4.5. Os procedimentos e instrumentos de operação da seletividade de acesso aos serviços e
benefícios sociais, 228
4.4.6. As pressões políticas atuantes no processo seletivo, 240
4.4.7. Desafios colocados à profissão na atual conjuntura e a seletividade de acesso: as
condições de trabalho e os interesses dos usuários, 249
4.4.8. Como se deu a qualificação das entrevistadas para a realização da seleção
socioeconômica, 272
4.4.9. Os desafios do ensino da instrumentalidade profissional em tempos adversos, 284
4.4.10. A pesquisa da instrumentalidade profissional e a seleção socioeconômica, 299
REFERÊNCIAS, 322
ANEXOS, 335
ix
1
INTRODUÇÃO
A razão desta pesquisa tem caráter teórico-prático, uma vez que, desde 1998, sou
desafiada, através da vivência em dois projetos de extensão universitária que se realizaram no
âmbito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC- SP): o Cursinho do Grêmio
Politécnico, de 1998 a 2000, e o Projeto Suplementar Foco Vestibular, de 2006 até o primeiro
semestre de 2012.
A reflexão e o aprofundamento do meu estudo acerca das formas de acesso à política
social foram, desde então, impulsionados pelo fato de coordenar esses trabalhos na qualidade
de professora do Curso de Serviço Social da PUC- SP, tendo, ao mesmo tempo, que responder
pela sua operação no campo. Trata-se de duas experiências educacionais que se localizam no
âmbito da criação de possibilidades de acesso à educação universitária para um segmento da
população de baixa renda, advinda na sua quase totalidade da escola pública. Nos dois
projetos, a demanda inicial posta ao Serviço Social incide na construção de instrumentos de
operação da seleção socioeconômica, para a qual se respeita e se reconhece a experiência e a
qualificação do assistente social para assumir tal atribuição, após a avaliação das várias
tentativas praticadas terem sido consideradas não satisfatórias.
De início, aceitei o desafio apresentado pelo Grêmio Politécnico, mais pelo
envolvimento e pelo interesse em contribuir para que pudesse vingar aquele projeto inovador
e menos pelo acúmulo teórico-prático para realizar a seleção demandada. Até então, eram
genéricos meu conhecimento e minha reflexão acerca de processos seletivos como forma de
acesso a serviços e benefícios sociais. Contribuir para o acesso de um segmento da população
pobre à universidade pública era e continua sendo fundamental e urgente, principalmente se
nos referimos ao acesso à informação com qualidade, no qual a preocupação com a visão
crítica do aluno é preocupação constante e central de sua formação social.
Era esse o horizonte que me animava, quando deparava com a possibilidade de poder
contribuir com a criação de uma história na qual um segmento da classe trabalhadora estava
sendo atendido com respeito, participando de um projeto de ensino qualificado. Instigava-me o
fato de que, mesmo em projetos que veiculam os interesses dos trabalhadores, é necessário
selecionar alguns em detrimento de outros. Não bastava perceber que os recursos eram escassos
para atender número maior de alunos. Passei a desejar desvendar o que se escondia por trás
daquele ato seletivo, visando tirar da banalidade a ideia de que selecionar seria “natural”.
2
Essa lei, que legitima o lugar do Serviço Social na divisão sociotécnica do trabalho,
representa o reconhecimento da sociedade brasileira de que o assistente social é habilitado
para realizar esse tipo de estudo social, dando-lhe, legalmente o direito e o poder para tanto.
Essa competência profissional do assistente social é parte integrante do atendimento dirigido à
população usuária dos programas da política social. 1 No entanto, não vem recebendo
tratamento proporcional à sua importância na agenda do debate qualificado da profissão.
Neste aspecto, há um silêncio no Serviço Social quanto ao âmbito de seus
fundamentos sócio-históricos e da sua sistematização operacional. Independentemente dessa
falta de avanço da produção teórica, processos seletivos vêm sendo realizados cotidianamente
pelos assistentes sociais. Interessa-nos decifrar o que se esconde sob tal desconsideração.
Se não há aprofundamento teórico relevante sobre as formas de acesso à política social
que dê aos assistentes sociais suficientes fundamentos e subsídios para sua intervenção,
pergunto-me de onde provêm suas ferramentas de operação. Sou levada a supor que, para
muitos, não passam de simples conjunto de regras e procedimentos, carregando o perigo de
reiteração de idéias presentes no senso comum, pensamento predominante no cotidiano.
Sabemos que não há atividade técnica em si mesma, pois sempre estão presentes
referências teórico-metodológicas e ético-politicas que subsidiam o fazer profissional. Na
falta da teoria que dê substância à prática, poderá ganhar relevo a simplificação e a
banalização das situações que se apresentam ao profissional. O uso da técnica sem crítica
acabará por levar o profissional a deixar as ações falarem por si mesmas contentando-se em
legitimar o julgamento, para si mesmo, e para a organização em que trabalha, do quanto foi
“justo” e “técnico” nos seus procedimentos.
1
Diferencio, com Iamamoto (2009a, p. 21), competência e atribuição. Competência é entendida como
“expressão de capacidade para apreciar ou dar resolutividade a determinado assunto, não sendo exclusiva de uma
única especialidade profissional [...]”. Atribuição é “prerrogativa exclusiva ao serem definidas enquanto matéria,
área e unidade de Serviço Social”.
4
Teoria e prática caminham sempre juntas. Sem uma sólida teoria, não se faz
intervenção séria, conseqüente e comprometida com os interesses das camadas sociais
subalternizadas. Como Bourdieu (1973, apud THIOLLENT, 2008, p. 44-47), entendo que a
técnica é a materialização em atos da teoria e das intencionalidades. Nessa perspectiva, não há
possibilidade de neutralidade profissional diante dos sujeitos tomados como objetos de
pesquisa ou da intervenção profissional. Se o profissional não realiza escolhas de ordem
teórica e política, reiterará o que já existe no cotidiano.
Não é possível haver neutralidade diante da realidade que se apresenta aos nossos
olhos. Portanto, quando aparentemente nos mantemos indiferentes ao que fazemos ou ao que
se passa em nossa volta, estamos reiterando o sentido que “outros” deram àquilo. O que
significa, então, o silêncio da profissão sobre a realização da seleção socioeconômica? O que
se esconde sob ela?
Em relação ao Serviço Social, percebemos que, apesar do significativo acúmulo
teórico sobre a natureza da profissão, situando-a no plano maior das relações sociais vigentes,
parece haver, quanto à seleção socioeconômica, uma dicotomização na prática dos assistentes
sociais brasileiros. Pauta-se esta, ainda, pela ideia de culpabilização do pobre por sua situação
de pobreza. Distinguindo entre bons e maus pobres, pratica-se uma forma de meritocracia.
Essa prática cotidiana, que entende a questão social como questão moral, não reconhece o
acesso aos bens e serviços sociais como direito humano e social dos indivíduos. Não enxerga
os usuários dos serviços sociais como sujeitos portadores de direitos e reforça a ideia de que o
acesso está atrelado ao favor das entidades sociais e dos governos e ao mérito dos indivíduos,
assim como considera “naturais” a existência da seleção e a não disponibilidade de recursos
para atender a todos.
Ir além das aparências pressupõe perceber sua decisiva utilidade social como
instrumento legitimador da desigualdade — de controle social, portanto —, uma vez que a
ação profissional fornece instrumentalidade e estatuto científico à seletividade presente nos
programas de política social, facilitando sua aceitação pública.
A análise dos processos técnicos vinculados à seleção socioeconômica enquanto uma
das competências e atribuições profissionais do assistente social que almejamos desenvolver
tem como referência básica o fato de o Serviço Social estar integrado às relações sociais que
se desenvolvem na ordem capitalista. Embora o assistente social trabalhe a partir da demanda
e com a situação de vida trazida pelo trabalhador, não é este, no entanto, quem o contrata e
remunera. Estabelece-se uma disjunção entre intervenção e remuneração (IAMAMOTO;
5
CARVALHO, 1985, p. 84), e está presente para o profissional, em diferentes níveis, um mandato
das classes dominantes junto à classe trabalhadora.
O objeto de estudo dessa pesquisa é a seleção socioeconômica como condição e forma de
acesso aos serviços e benefícios sociais, desvendando os fundamentos sócio-históricos de sua
operação na Política Social e no Serviço Social. Pretendemos tirar do silêncio a execução da
seleção socioeconômica, trazendo-a para o âmbito do debate da profissão, enquanto
atribuição/competência profissional. Da mesma forma, pretendemos explicitar de que modo a
seleção socioeconômica, enquanto atribuição profissional, vem sendo tratada pelos assistentes
sociais na literatura profissional, na formação e no exercício profissional propriamente dito. Mais
ainda, caracterizar a particularidade da seleção socioeconômica como atribuição/competência
profissional no Serviço Social e abrir debate qualificado no Serviço Social acerca dos processos
seletivos, construindo a problematização em torno das questões que os envolvem também se
levantam como horizontes a serem alcançados pela pesquisa.
Cabe destacar que, durante o doutorado, quando me deparei com a possibilidade de
ampliar meus estudos no exterior através de uma bolsa do Plano Doutoramento de Estágio no
Exterior (PDEE) da Capes, escolhi e fui aceita para realizar em Portugal um estágio sediado no
Programa de Doutoramento em Serviço Social da Universidade Católica de Lisboa no período
compreendido entre julho e dezembro de 2010.
Meu interesse por Portugal pautou-se nos bons e produtivos laços existentes entre os
Serviços Sociais brasileiros e portugueses, que vêm sendo construídos desde o início da
década de 1970. Naquele momento, o Serviço Social português começou a se questionar,
influenciado pelo movimento latino-americano denominado por Reconceituação do Serviço
Social (1965-1975), tendo como referência dois documentos brasileiros (os de Araxá e
Teresópolis) que passaram a ter papel decisivo na reorientação da prática profissional naquele
país (BRANCO; FERNANDES, 2005).
Mas é nos anos 1990 que tem início uma longa história de parcerias entre o Instituto
Superior de Serviço Social de Lisboa (ISSSL) e o Programa de Estudos Pós-Graduados em
Serviço Social da PUC- SP. O quadro de professores que implantou em Portugal o mestrado, em
1995, e o doutorado, em 2003, obteve sua titulação na PUC- SP, e, a partir daí, o intercâmbio
acadêmico entre os dois países tem sido constante.
Em relação à seleção socioeconômica, tinha interesse em conhecer as particularidades
de sua realização naquele país, partindo da apreensão de que se constitui em importante e
decisivo instrumento de controle social que contribui para manter e legitimar a desigualdade
social, inerente à ordem do capital, tendo uma natureza que é a mesma em qualquer país ou
6
lugar onde se realiza, embora adquira diversas peculiaridades nos diversos contextos e épocas
em que se realiza. Em Portugal, pude estudar e conhecer a história e um pouco do trabalho
realizado pelos assistentes sociais naquele país e observar como a reordenação do capitalismo
internacional, na era da globalização neoliberal, tem rebatido na política social praticada no
continente europeu, na especificidade lusitana.
Considero que o estágio realizado me possibilitou o aprofundamento dos estudos,
principalmente sobre o movimento universalização-focalização da política social, assim como
me estimulou a retomar o estudo e a reflexão sobre as origens da profissão, buscando entender
quando, como e quanto a seleção socioeconômica havia se colocado como atividade de
competência do assistente social. Em Portugal, como parte da pesquisa empírica, realizei
entrevistas com assistentes sociais, cujos perfis delinearei mais à frente. Através dos estudos e
entrevistas realizadas com assistentes sociais brasileiras e portuguesas, pretendi ampliar a
problematização acerca da prática de seleção de acesso aos serviços e benefícios sociais,
criando mais um diálogo entre os profissionais dos dois países em foco, sem a pretensão de
empreender um estudo de caráter comparativo. A tônica problematizadora dada à nossa
pesquisa justifica-se diante da quase inexistência de bibliografia sobre o assunto no Serviço
Social e da pretensão de apreender a seleção socioeconômica na perspectiva da totalidade,
destacando as determinações que conseguimos captar por meio do estudo realizado.
Neste estudo, minha intenção maior antes, durante e após a realização das entrevistas
foi a de questionar a seleção socioeconômica para configurar, detalhar e analisar as equações
envolvidas nessa atividade, visando dar visibilidade aos desafios presentes na criação das
respostas profissionais.
Considerei as colegas entrevistadas como parceiras no enfrentamento desse desafio,
tratando-as nessa condição e dando a elas a devida autoria de idéias expostas, a partir de
roteiro previamente estabelecido.
Pressupostos da pesquisa2
2
Na construção destas referências, pautei-me basicamente pelos estudos realizados durante o curso “Origens da
ontologia do ser social: Marx e Lukács”, ministrado pelo prof. Celso Frederico durante o segundo semestre de
2008, no Programa de Estudos Pós Graduados em Serviço Social da PUC-SP, assim como nas aulas da disciplina
“Fundamentos filosóficos e questões do método nas ciências sociais”, ministradas pelo prof. José Paulo Netto,
durante o primeiro semestre de 2011, no referido Programa.
7
Partindo desse pressuposto, entendo que cada tema que pretendemos estudar já existe,
tem uma história, tem uma natureza que não se revela de imediato. Para conhecê-la, é preciso
realizar um caminho de deciframento, mediante aproximações sucessivas, para ir explicitando
as categorias que lhe dão existência e fundamentam o seu jeito de ser, a sua natureza.
Na aparência, há a ilusão de que os objetos sociais são prontos, dados e sempre
estiveram ali tal qual os vemos e, consequentemente, não são reconhecidos como as
construções históricas que, de fato, são. Todavia, as aparências nos enganam, pois esses
objetos, alvo de nossa ação de pesquisadores, são resultado de ações humanas e de complexas
mediações; portanto, contêm uma história de relações que os constituem, na qual a aparência
é a forma necessária da essência. Os objetos que vemos e com que deparamos na vida
cotidiana são o resultado de inúmeros processos, mediados por ações e intenções humanas,
tendo como fundamento a prática dos homens entre si e as relações de adaptação e
transformação que estabeleceram com a natureza através do trabalho para satisfazer suas
necessidades ao longo da história.
Isso significa dizer que a realidade existe antes do pensamento científico, artístico ou
filosófico se apossar do seu jeito de ser pela consciência. Mas, para apreendê-la, é preciso
percorrer longo caminho para juntar, em unidade contraditória, a aparência e a essência.
Em outras palavras, o objeto de pesquisa tem uma existência objetiva, que independe da
consciência do pesquisador: “[...] pela teoria, o sujeito [pesquisador] reproduz em seu
pensamento a estrutura e a dinâmica do objeto de pesquisa. E esta reprodução (que constitui
propriamente o conhecimento teórico) será tanto mais correta e verdadeira quanto mais fiel o
sujeito for ao objeto” (NETTO, 2009, p. 673). O fundamento dessa trajetória é, portanto, a
história relativa à prática dos homens. A teoria social é o concreto pensado: “[...] o
conhecimento teórico é o conhecimento do objeto tal como ele é em si mesmo, na sua existência
8
Reconhecer que o objeto tem uma existência que independe da consciência do sujeito
que deseja conhecê-lo não significa dizer que a relação sujeito-objeto é neutra; muito pelo
contrário, trata-se de reconhecer e tratar dessa relação como relação datada, uma vez que
ocorre em espaço e tempo em que o sujeito está implicado com o objeto de forma
constitutiva: ambos vivem e existem como parte da totalidade social. Essa apreensão, no
entanto, não exclui a necessidade de objetividade na construção do conhecimento teórico.
Em qualquer estudo realizado na perspectiva sócio-histórica, o pesquisador quer
transcender a apreensão imediata de singularidade do objeto em pauta, uma vez que busca a
apreensão de sua universalidade. Este objetivo pressupõe estabelecer relações dos fatos entre
si, criando e explicitando mediações necessárias para tal intuito, onde os detalhes precisam ser
integrados ao fundamental, em face da hierarquização de importância que assumem, tendo em
vista a intencionalidade do projeto. Nessa categorização, os diversos complexos que
compõem a totalidade não têm a mesma importância uns em relação aos outros. A dimensão
econômica tem prevalência sobre as demais, porque as determina na origem.
A direção da busca é a apreensão do objeto na totalidade social da qual é parte
integrante e expresso em suas características e movimentos. O mundo é uno, não uma “colcha
de retalhos”, e, se a realidade é una, vamos nos referenciar a ela como totalidade. Nesse
sentido, cada objeto que tomamos para estudo não é um em si mesmo, mas um conjunto de
relações entre coisas e objetos.
O objeto
A pesquisadora
Iniciei a presente pesquisa já dotada de alguma bagagem sobre o tema, resultante tanto
de minha prática profissional e docente, como do interesse constante de reflexão, há vários
anos, acerca da seleção socioeconômica. Tomo assim este estudo como mais qualificado e
como continuidade de uma trilha anterior.
As análises que apresento são permeadas das primeiras e antigas, e das novas,
apreensões. Sem as primeiras, certamente não teria chegado a este produto que ora apresento.
Devo afirmar que foi nesse trajeto, permeado de vivências solitárias e coletivas, assim
como de estudos, inquietações, desafios e reflexões de ordem teórico-prática, que forjei e
consolidei um pensamento acerca da seletividade de acesso aos serviços e benefícios sociais e
de seu profundo significado para a profissão.
A busca de querer saber nos coloca em um movimento no qual vamos percebendo que
cada objeto está em relação com tudo o mais que existe numa totalidade. Por vezes, ficamos
10
digerindo as questões, até produzir algumas sínteses que nos levem a encontrar um jeito de
abordar assuntos tão complexos, sem perder o foco.
As incessantes idas e vindas, as encruzilhadas da trajetória, que, ao final, foram
permitindo o descortino do real e possibilitando a concretização do estudo, vieram
acompanhadas da desestruturação do que já conhecia — o que, por sua vez, gerou desconforto
e insegurança. Tudo sempre acompanhado da pergunta: e agora, para onde ir?
A reflexão, o estudo e a angústia que permeiam as dúvidas e as decisões foram os
elementos impulsionadores da construção do conhecimento acerca do objeto em pauta.
Penso que o processo de conhecimento nasce da crise, do desconforto, da dúvida.
Neste sentido, no caminho, muitas certezas vão sendo destruídas, porque, na verdade, se
tratava de falsos entendimentos, deixando-nos sem o ilusório “chão firme”.
E, em meio a essa turbulência, nasce também o gosto pelo saber, a sensação inédita da
maravilha que é descobrir que podemos recriar o que está dado, desejar outro jeito de ser da
vida e do mundo. Sempre surge a questão: poderia ser diferente? Nasce, também, o poder de
desejar que todos os homens, um dia, possam, de fato, ser um ser social, entendendo-se e
sendo entendidos como humano-genéricos. E o desejo de nos juntar para podermos mais.
Desde que comecei a pensar sobre os processos seletivos, de corte socioeconômico,
tenho me defrontado com situações e explicações que desenvolvi sobre o processo seletivo, e
que, portanto, para mim, hoje, parecem óbvias. No entanto, quando tenho oportunidade de
apresentá-las em diversos locais para outros colegas e estudantes, percebo olhares brilhando e
o interesse despertado em querer discutir e entender melhor a seleção socioeconômica — que,
a princípio, é percebida como tema entediante e sem novidades.
Aquilo que hoje para mim são apreensões óbvias, não são tão óbvias para os outros. Ou
melhor, apreensões que já significaram verdadeiras descobertas para mim e que hoje parecem
óbvias, porque já me encontro em outro momento, para os que me escutam são inéditas.
Situações desse tipo me permitem perceber o tanto que já caminhei e me fazem refletir
sobre a dificuldade que existe em delimitar onde começa um momento e quando se inicia
outro num estudo, e como uma produção passa a fazer parte de nossa vida.
Estudar, refletir, viver, experienciar, arriscar, executar são ações profundamente
interligadas numa pesquisa, e quando me deparei com o momento de tratar da escolha dos
sujeitos da pesquisa e dos instrumentos de operação, não podia entender que se tratava do
momento para o cumprimento de mera formalidade.
Devo esclarecer que a minha intenção inicial se dirigia para a realização de um estudo
de caráter documental acerca da seleção socioeconômica no Serviço Social. Porém, diante da
11
A organização do estudo
Falar da assistência social não é fácil, porque vários são os preconceitos e ideias
equivocadas que ainda cercam a matéria. Embora esse tipo de assistência seja um
fenômeno tão antigo quanto a humanidade e esteja presente em todos os contextos
socioculturais, poucas ainda são as contribuições teóricas que ajudam a melhor precisá-lo
do ponto de vista conceitual e político-estratégico. Isso significa que a assistência social
tem sido sistematicamente negligenciada, não só como objeto de interesse científico, mas
como componente integral dos esquemas de proteção social pública [...].
3
Na língua portuguesa, o termo “eleger” significa “preferir entre dois ou mais”, “escolher”. “Elegível”, portanto,
refere-se à possibilidade de ser eleito, escolhido (HOUAISS; VILLAR, 2009).
4
Refiro-me, por exemplo, aos problemas de saúde que podem afetar a vida de uma pessoa ou grupo de pessoas.
Os indivíduos podem ter doenças eventuais ou definitivas. Quando se trata de doenças crônicas, estas podem se
constituir como definitivas na vida de um indivíduo; nesse caso, diremos que ele não está doente, mas que é
doente. Há condições que afetam grupos de pessoas, como a insuficiência renal, as mutilações de guerras, a
contaminação pelo HIV, entre outros exemplos. Todos necessitam de proteção social em relação à saúde e de
meios de sobrevivência dignas.
14
Ações governamentais com objetivos voltados para a proteção social começam a ser
produzidas contemporaneamente à consolidação dos modernos Estados nacionais,
no Ocidente Europeu, lá pelos séculos XVI e XVII. É então que se institucionaliza o
que Weber considera o núcleo definidor do Estado moderno: o monopólio da
violência legítima, e que se fazem presentes as condições que tornam possíveis e
necessárias ações governamentais naquele sentido. Num contexto de transição para o
capitalismo, de expansão do comércio e de valorização das cidades, a pobreza se
torna visível, incômoda, e passa a ser conhecida como um risco social. A primeira
fase da evolução da política social consistiu nas chamadas Leis dos Pobres, bastante
disseminadas pelos países europeus, embora com diferenças marcantes entre eles
(VIANNA, 2002, p. 2-3).
16
No modo de proteção feudal que marca a Idade Média, que constituía uma sociedade
pouco mercantilizada,
[...] o servo era vinculado ao senhor por relações de submissão e proteção (sobretudo
militar), encontrando satisfação de certas “necessidades” dentro das ações comunais
e principalmente religiosas. A religião servia para legitimar a esmola, o asilo e
certos cuidados de saúde (coação extraeconômica). Nesse modo de produção o servo
era proprietário dos meios de produção (FALEIROS, 1980, p. 9-10).
[...] produz-se uma ruptura entre a posse dos meios de produção e o trabalhador. Os
meios de produção passam a ser de propriedade do capitalista, pela expropriação, pela
reprodução simples e ampliada, pela acumulação. O homem, como disse Marx, se vê
livre, sem estar ligado ao senhor, pronto para oferecer a sua força de trabalho como
indivíduo, em troca de salário. [...] O salário é o meio de prover a sua subsistência.
Mas esse salário é obtido na produção de mais-valia e sob uma submissão total às
novas relações sociais que as fábricas suscitam (FALEIROS, 1980, p. 10).
A história da Lei dos Pobres, na Inglaterra e no País de Gales, pode ser dividida em
dois momentos; trata-se de dois estatutos distintos. A considerada lei antiga, datada de 1601,
foi instituída pelo Parlamento durante o reinado de Elizabeth I. A nova Lei dos Pobres foi
aprovada, também pelo Parlamento, em 1834. A Lei de 1601 formaliza as práticas anteriores e
uniformiza nacionalmente, na Inglaterra e no País de Gales, a assistência social a um
17
O aumento dos gastos com a assistência aos pobres nos séculos XVII e XIX,
combinado com os ataques contra a Lei dos Pobres por Malthus 5 e outros
economistas políticos, assim como a revolta dos trabalhadores agrícolas em 1830-31
[...] levou o governo em 1832 a designar uma comissão real para investigar a Lei dos
Pobres (BOYER, 2002; minha tradução).
Sobre essa comissão, Faleiros (1980, p. 11) comenta que, “em sua visão moralista,
disse que eles (referindo-se aos pobres) viviam na ‘imprevidência, na imoralidade, em
comparação com os que trabalhavam, os quais sabiam conduzir as suas coisas’”.
5
Para Malthus, “a pobreza é um desequilíbrio entre a produção e a população. O auxílio para a distribuição do
excesso de alimentos entre a população faria aumentar o número de pobres, como faria aumentar o custo dos
alimentos, além de reduzir o rendimento dos trabalhadores independentes. Além disso, a distribuição só
favoreceria a preguiça e o vício” (FALEIROS, 1980, p. 11).
18
A propósito das condições de acesso na nova Lei dos Pobres de 1834, Martinelli
(1997, p. 58) discorre:
Com a reformulação da Lei, que nada perdeu de seu caráter rigoroso e excludente,
foram criadas as Casas de Trabalho e instituídas as Caixas dos Pobres para
concessão de auxílio semanal ou mensal. Tanto o acesso às Casas de Trabalho como
a concessão de auxílio dependiam de rigoroso inquérito da vida pessoal e familiar
dos solicitantes. Assim, a temida figura tudoriana do “inspetor da Lei dos Pobres”
voltava rediviva ao cenário do século XIX, cabendo-lhe a responsabilidade pela
realização do inquérito e pela fiscalização das condições de vida daqueles que
passavam a ser atendidos pelo sistema de assistência pública. O atendimento
implicava assumir-se como dependente do poder público e, portanto, preso a uma
vida controlada por normas e regulamentos (grifos meus).
Sobre a normatização do atendimento com esse formato, Faleiros (1980, p. 11) esclarece:
Releve-se que, no citado relatório elaborado pela Comissão proponente da lei de 1834,
constam dois princípios básicos de operação: o de “menor elegibilidade” e o “teste da Casa de
Trabalho”. Entendia-se por
• “menor elegibilidade”: que o mendigo deveria entrar para uma Casa de Trabalho
com piores condições do que as do mais pobre trabalhador livre que não estivesse
na Casa de Trabalho.
• “teste da Casa de Trabalho” que o auxílio só estaria disponível na Casa de
Trabalho. As Casas de Trabalho reformadas deveriam ser nada convidativas, de
tal modo que qualquer pessoa capaz de sobreviver fora delas as evitasse. 6
Pelo critério da “menor elegibilidade”, todo benefício assistencial deveria ser sempre
menor do que o pior salário existente, para não se ferir a ética capitalista do trabalho.
6
Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/English_Poor_Laws>. Acesso em: 1º jul. 2012. Tradução nossa.
19
Em relação à execução da Lei dos Pobres de 1834, é importante frisar que foi
executada permeada de muita crueldade, tendo em vista que havia decisiva intenção de
desestimular a procura de ajuda pelos necessitados e estimular a busca de trabalho a qualquer
preço. Engels (2010) descreve, com riqueza de detalhes (escrevendo em 1844), como viviam
e eram tratados os trabalhadores nessa época. Com sua narrativa, podemos vivenciar e mesmo
como que entrar no dia a dia do trabalhador inglês e dos imigrantes irlandeses de então e,
portanto, conviver com a dramaticidade da miséria vigente entre os trabalhadores daquela
sociedade — no país que se configurava como a maior potência econômica desse tempo —,
assim como acompanhar, por meio dos exemplos apresentados pelo autor, o tratamento
desumano sofrido pelos desempregados que necessitavam de ajuda para sobreviver.
Contrariando tudo isso, porém, a letra da lei determina uma alimentação sadia e um
tratamento humano. [...] O tratamento que a nova lei prescreve, na sua letra,
contrasta abertamente com o espírito que a informa; se, em substância, a lei declara
que os pobres são delinquentes, que as casas de trabalho são cárceres punitivos, que
seus internados são foras da lei, objetos repugnantes postos fora da humanidade, não
se pode aplicá-la de outra maneira. Na prática, portanto, o tratamento reservado aos
pobres nas casas de trabalho obedece, não à letra, mas ao espírito da lei (ENGELS,
2010, p. 318-319).
20
7
Aqui, a autora não se refere apenas à experiência inglesa. Ela explica, em nota de rodapé, que as mais
conhecidas são as Poor Laws inglesas (referindo à de 1601 e à de 1834).
21
acesso aos bens produzidos e a proteção do trabalho são ampliados através das medidas de
política social. Esta política coloca-se como forma de enfrentamento da questão social.
Em resumo, no que tange à proteção social pública, a primeira experiência registrada no
mundo ocidental8 dá-se sob a forma de assistência social e através da Lei dos Pobres, dirigida a
um segmento muito preciso de população, os pobres, mediante a comprovação da necessidade
com o means test. A prova de meios, ou a seleção socioeconômica, tem aí sua ancestralidade,
pois adquire então a marca como que “genética” que será transmitida aos seus descendentes.
Embora na Lei dos Pobres o tratamento dado à população designada como pobre tenha
sido repressivo e truculento, essa experiência foi referência para outros países, conforme já
pudemos expor.
8
“Não se pode indicar com precisão um período específico de surgimento das primeiras experiências reconhecíveis de
políticas sociais [...] Sua origem é comumente relacionada aos movimentos de massa socialdemocratas e ao
estabelecimento dos Estados-nação na Europa ocidental do final do século XIX [...] mas sua generalização situa-se na
passagem do capitalismo concorrencial para o monopolista, em especial na sua fase tardia, após a Segunda Guerra
Mundial (pós-45)” (PIERSON, 1991, apud BEHRING; BOSCHETTI, 2007, p. 47).
23
Rupturas com tal concepção de pobreza — que reduz as causas dessa condição a
fatores de ordem moral, como as falhas de caráter dos indivíduos — começam a ser gestadas
no final do século XIX, no cenário de emergência das lutas operárias pelo reconhecimento de
seus direitos. “A partir desse momento, a perspectiva de responsabilidade individual em arcar
com os próprios custos da reprodução da própria vida cede lugar à noção de que todos devem
participar na provisão de bem-estar a todos os cidadãos” (MONNERAT et al., 2007, p. 1.454).
Vianna (2002, p. 3) observa:
9
Em fins do século XIX, uma segunda fase da política social se inaugura. Seguros
sociais compulsórios, para fazer face a riscos sociais associados ao trabalho
assalariado, despontam como o modelo dominante de proteção social. No novo
cenário, de capitalismo industrial consolidado, aparecem novos atores – sindicatos,
partidos políticos — e arranjos institucionais capazes de incluir, na agenda pública,
demandas de setores emergentes no mundo do trabalho (grifos meus).
9
A autora, neste texto, trata da “evolução da política social na Europa Ocidental”, em suas diferentes fases.
Considera as Leis dos Pobres como a primeira fase da política social, e a dos seguros sociais compulsórios como
segunda fase da política social. A maioria dos autores, no entanto, considera que a política social é um produto
do capitalismo monopolista, tendo o seu marco de nascimento na Alemanha de Bismark. Tendo em vista meu
objeto de estudo, penso que o importante é frisar os legados dessas tradições. Portanto, não irei aqui entrar no
mérito dessa questão.
24
Para Vianna (2002, p. 4), a ameaça à sociedade agora não está mais na pobreza, mas
na recusa dos trabalhadores ao assalariamento.
O modelo utilizado por Otto von Bismarck difundiu-se rapidamente pela Europa,
ampliando-se com o direito ao voto, a legalização das centrais sindicais e a chegada dos
partidos trabalhistas e social-democratas ao Parlamento, e os seguros passaram a cobrir
contingentes cada vez mais significativos de trabalhadores.
10
Vianna (2002, p. 5) esclarece, em nota de rodapé: “O que não quer dizer que políticas assistencialistas tenham
desaparecido. A Lei dos Pobres, na Inglaterra, por exemplo, só foi abolida nos anos 40.”
25
Faleiros (1989, p. 112) esclarece que, para Beveridge, a seguridade social tem por base
o atendimento de um mínimo de necessidades básicas a serem garantidas pelo Estado, em
caso de perda dos rendimentos.
A proposta de Beveridge, transformada em lei pelo Parlamento inglês em 1946,
11
Esses princípios influenciaram e deram origem à reformulação da seguridade social em outros países, como a
França e a Alemanha, em 1949.
26
Marshall pensa que “não haveria uma contradição entre uma política de
universalização progressiva de direitos sociais e a lógica do sistema capitalista. [...] As
conquistas não decorreriam de uma conversão das classes dominantes, mas uma adaptação
aos tempos atípicos do pós-guerra” (WELMOWICKI, 2000, p. 76).
27
[...] os mínimos sociais passaram a ter uma conotação mais alargada, incluindo além
de políticas de manutenção de renda — geralmente sob a forma de uma rede de
segurança impeditiva do resvalo de cidadãos social e economicamente vulneráveis
para baixo de uma linha de pobreza legitimada pela sociedade —, outros mecanismos
adicionais de proteção social, como: serviços sociais universais (saúde e educação, por
exemplo), proteção ao trabalho (em apoio ao pleno emprego) e garantia do direito ao
acesso a esses bens e serviços e ao seu usufruto. Esta foi a fase de ouro das políticas de
proteção social, na qual a otimização da satisfação das necessidades humanas básicas
tornou-se uma tendência promissora, a partir da Europa.
12
Keynes defende a ideia de que o Estado deve “regular variáveis-chave do processo econômico, como a
propensão ao consumo e o incentivo ao investimento, em consonância com s seguinte lógica: O Estado deveria
intervir na economia para garantir um alto nível de demanda agregada (conjunto de gastos dos consumidores,
dos investidores e do poder público) por meio de medidas macroeconômicas, que incluíam o aumento da
quantidade de moedas, a repartição de rendas e o investimento público suplementar” (PEREIRA, 2000, p. 112;
grifos da autora).
13
“O conceito proteção social mínima identifica-se, nas suas origens, com um mínimo de renda. Surge na Grã-
Bretanha, em 1795, sob a forma de abono salarial ou rendimento mínimo garantido [...] Respaldado pela Lei do
Parlamento do Condado de Speenhamland (Speenhamland Law), tal conceito marcou uma inflexão até então
jamais vista na política de proteção social que vinha sendo desenvolvida na Inglaterra. [...] se alguém não
pudesse auferir, mediante o seu trabalho, o suficiente para sobreviver, cabia à sociedade fazer a
complementação. [...] Além disso, houve a extensão da assistência social preexistente aos pobres capacitados
para o trabalho, porém mal pagos, fato inédito naquela época e até hoje considerado uma heresia pela lógica
capitalista liberal” (PEREIRA, 2000 p. 103-104; grifo da autora). Ou seja, essa lei, que será reformada pela Lei dos
Pobres de 1834, reconhece o direito dos pobres de receber uma renda mínima, independente de seus proventos,
uma vez que pretende garantir o direito de viver.
28
Behring (2006, p. 23) comparece nesta análise, acrescentando que os “anos de ouro”,
conforme designa Hobsbawm, começam a se esgotar:
14
Merecem destaque, nesse grupo, Milton Friedman, Karl Popper, Lionel Robbins, Ludwig Von Mises, Walter
Eupken, Walter Lipman, Michael Polanyi e Salvador de Madariaga, entre outros (ANDERSON, 2000, p. 10).
29
Em decorrência disso, a ideia de direitos sociais como pressuposto e garantia dos direitos
civis ou políticos tende a desaparecer, porque o que era direito se converte num serviço
31
privado regulado pelo mercado e, portanto, torna-se uma mercadoria a que têm acesso
apenas os dotados de poder aquisitivo para adquiri-la (CHAUÍ, 2011, p. 321).
[...] deixando de ser suplemento da produção, uma vez que esta não mais se realiza sob a
antiga forma fordista das grandes plantas industriais que concentravam todas as etapas da
produção, mas opera por fragmentação e dispersão de todas as esferas e etapas da
produção, com a compra de serviços do mundo inteiro (CHAUÍ, 2011, p. 319).
O desemprego passa a ser estrutural, uma vez que o capitalismo, na sua forma atual,
não atua para incluir todos no mercado de trabalho e de consumo, mas apenas uma parte dos
trabalhadores; desaparecem postos de trabalho. A exclusão impõe-se pela introdução da
automação e pela velocidade da rotatividade da mão de obra, que se torna desqualificada e
dispensável muito rapidamente, como resultado das mudanças tecnológicas.
15
A crise do capitalismo atual rebate em Portugal de forma muito violenta através da perda de direitos trabalhistas, de
direitos sociais e fechamento de significativo número de postos de trabalho devido à falência de empresas e do
comércio. Em 1º/6/2012, o desemprego em Portugal atingiu o recorde de 15, 2%; entre os jovens com menos de 25
anos, 36,6% (Fonte: <http://www.jornaldenegocios.pt/home.php?template=SHOWNEWS_V2&id=560331>; acesso
em 8 ago. 2012).
32
Essa proteção não contributiva amplia os benefícios para grupo de pessoas inaptas
para o trabalho (os portadores de deficiências físicas e os idosos de mais de 65 anos,
através do Benefício de Prestação Continuada), além de ampliar os direitos
34
almejam a universalização dos serviços e dos direitos sociais; nesse sentido, sempre defendem
essa bandeira. De outro, há os representantes do capital, que, quando pressionados, sempre
pretendem dar e ceder o mínimo das reivindicações em pauta, e assim, tendo em vista seus
interesses, sempre envergam a bandeira da focalização.
A universalização dos serviços e benefícios sociais envolve inúmeras determinações
presentes no processo histórico, conforme já exposto quanto aos embates dos trabalhadores
pela conquista dos diversos direitos sociais — a qual, historicamente, vem se dando tendo
como referência as lutas empreendidas pelos subalternizados organizados e que tem na
Revolução Francesa um marco, chegando aos dias atuais.
Cada vez que um dos polos age de determinada forma, o outro também se modifica. Os
trabalhadores, por exemplo, sofreram intensa exploração no século XIX; para sobreviver,
reagindo a essa exploração, conseguiram com muita dificuldade se organizar em
corporações-sindicatos que pressionaram os capitalistas a diminuir a jornada de trabalho,
aumentar os salários e, assim, melhorar as condições de vida. O capital reagiu à ofensiva
operária, criando mais e mais tecnologia para diminuir sua dependência dos
trabalhadores. Então, os trabalhadores procuram se atualizar em relação com a
tecnologia. Os capitalistas acenam com o processo participativo de lucros da empresa,
para neutralizar a ofensiva trabalhista. Os trabalhadores precisam estar atentos para não
serem ludibriados. E assim continua a luta... (COVRE, 2002, p. 39).
16
Engloba as áreas da Previdência Social e da Assistência Social, que são tratadas pelo Ministério da
Solidariedade e Segurança Social português. Registre-se que se constitui historicamente em campo de atuação
quase exclusiva de profissionais do Serviço Social em Portugal (FERREIRA, 2009, p. 37).
17
A Lei nº 13, de 2003, revogou o rendimento mínimo garantido (RMG) previsto na Lei nº 19-A, de 1996, e criou
o RSI, regulamentado pelo Decreto-Lei nº 283, também de 2003. Trata-se de um benefício social de transferência
de renda.
18
Fonte: <http://www.agenciafinanceira.iol.pt>. Acesso em: 8 dez. 2011.
19
Fonte: <http://www.agenciafinanceira.iol.pt>. Acesso em: 8 dez. 2011.
20
Fonte: <http://www.agenciafinanceira.iol.pt>. Acesso em: 5 nov. 2011.
21
Fonte: <http://www.agenciafinanceira.iol.pt>. Acesso em: 9 out. 2011.
22
Fonte: <http://www.sapo.pt>. Acesso em: 26 dez. 2010.
38
[...] tendência corrente de minimizar ou negar uma controvérsia de fundo entre esses
dois princípios reitores da política social, não há como esconder que, pelo menos nas
ações governamentais, tal controvérsia existe. Por conseguinte, admitem que tais
princípios são incompatíveis entre si, mesmo que no discurso atual a concepção de
universalidade venha sofrendo rearranjos restritivos. Com efeito, ultimamente,
fortaleceram-se ideias que ora desfiguram a concepção verdadeiramente universal do
princípio de universalidade — com expressões adjetivadas como universalismo
“segmentado”, “contido” ou “básico” — ora rejeitam essa concepção em nome de uma
suposta superioridade democrática da focalização, agora identificada com o respeito às
individualidades e às diferenças. Com isso o princípio da universalidade, de conotação
eminentemente política, cidadã e igualitária/equânime, vem perdendo terreno para um
discurso focalista neoliberal, de extração pós-moderna, para o qual o ser humano é
construído culturalmente e, assim, despossuído de vínculos universais e de
convergências éticas, políticas e cívicas (PEREIRA; STEIN, 2010, p. 107).
[...] as prestações sociais são ditadas pelo imediatismo e pela rapidez de resultados,
geralmente quantitativos e referenciados na renda; o mérito desbanca o direito, até
mesmo entre os pobres, que se transformam em vítimas meritórias da proteção
social, por sua situação de penúria; as preferências individuais substituem as
necessidades sociais na definição das políticas; e a história, cujo sentido de
totalidade é essencial para se pensar em mudanças complexas e de longo prazo, se
restringe a acontecimentos localizados e isolados que requerem respostas pontuais
(PEREIRA; STEIN, 2010, p. 107-108; grifos meus).
Tendo em vista que tais questões têm rebatimentos diretos no entendimento de nosso
objeto de estudo, cabe retomar alguns conceitos fundamentais.
Em relação ao princípio da universalidade, é preciso considerar:
25
Respectivamente: “segmentação” e “orientação pelo alvo”.
42
tentativa de concentrar os benefícios do gasto público nos segmentos mais empobrecidos por
meio das atuações focalizadas (targeting).”
Diante dessa resposta, é importante desvendar o que a envolve. Trata-se de reconhecer
que a focalização em si já implica seletividade, não a seletividade como forma e condição do
acesso aos serviços sociais que certamente o indivíduo demandante daquele serviço terá que
se submeter, mas uma seletividade anterior, que passa a se constituir em mais um
afunilamento, em mais uma peneira para excluir amplos segmentos da população ao acesso.
Na conjuntura em que vivemos, é possível supor que haverá maior demanda por processos de
seleção socioeconômica com critérios cada vez mais sofisticados — leia-se: que dificultem mais
o acesso, para excluir maior número de demandantes de forma legitimada e controlada.
A avaliação da política social praticada por alguns países que substituíram programas
universais por outros mais seletivos indicam muitos pontos críticos, que, segundo Pereira e
Stein (2010, p. 116), referem-se
[...] a seletividade prevalecente não é aquela que visa identificar necessidades mais
agudas para melhor atendê-las, com o objetivo de calibrar a balança da justiça. Mas,
pelo contrário, trata-se de uma seletividade iníqua, centrada na defesa dos gastos
sociais, que exige das políticas sociais (em particular da assistência) a criação de
estratégias que reduzam as necessidades humanas a sua mísera expressão animal, para
diminuir as despesas do Estado. Ou, em outras palavras, a seletividade, que poderia
manter relações dinâmicas com a universalidade, transformou-se em focalização e,
portanto, em um princípio antagônico a esta (PEREIRA; STEIN, 2010, p. 115).
Assim, vivemos hoje em uma conjuntura marcada, em geral, por redução, restrição e
perda de direitos, sob alegação da crise fiscal do Estado, circunscrevendo-se a política social
nos diversos países a ações pontuais e compensatórias. “O neoliberalismo, e sua política de
43
Desde essa época até os dias de hoje a ideia de um rendimento mínimo garantido
vem sendo recolocada em diversas circunstâncias, mas, regra geral, em contextos de
crise econômica ou de insegurança social. Mais recentemente e desde o início dos
anos 80 de modo mais vincado, assiste-se na Europa a um surgimento das
proposições e reivindicações do RMG. [...] Os dispositivos de garantia de rendimento
mínimo remontam na Europa aos anos 30, tendo sido instituídos pela primeira vez
na Dinamarca em 1933 e, mais tarde, em 1948 na Inglaterra, na sequência da
reforma Beveridge. Nos anos 60, no que é em regra designada como a segunda
geração de políticas de garantia de rendimento, são criados os sistemas alemão
(1961) e holandês (1963). Hoje, existem sistemas de rendimento mínimo garantido
em todos os países europeus com exceção da Grécia.
46
[...] nas diferentes experiências conhecidas, a renda mínima quase sempre representa
um diferencial entre a soma dos rendimentos de uma família (salariais ou não) e o
teto máximo do benefício, oficialmente estipulado. Além disso, tal beneficio não
deve impedir que o indivíduo procure uma ativa participação no mercado e
estabeleça elos de solidariedade familiar e comunitária (PEREIRA, 2000, p. 115;
grifos da autora em itálico e meus em negrito).
Esses programas de renda mínima geralmente são regidos pelas seguintes premissas:
27
Maiores detalhes podem ser encontrados em Euzéby (2004).
28
“ PTC” refere-se a programas de transferência de renda condicionados ou com condicionalidades.
47
29
A pensão social, instituída “tardiamente” em 1974 em Portugal, foi uma medida de proteção social de base não
contributiva, ou seja, sem a contrapartida da contribuição anterior ao sistema de seguridade. É um ancestral do
RMG e do atual RSI. Em 1996, o RMG foi implantado em Portugal, o último país europeu a adotar essa proposta. O
RSI de Portugal inspirou-se no modelo francês. Ver Branco (2001, 2004a, 2004b).
30
Essa cobrança como contrapartida do RMG está presente na proposta de vários países europeus.
48
31
Contidos na Portaria Interministerial nº 551, de 9/11/2005.
49
caiam na passividade. O pagamento pode ser feito “aceitando a oferta de um emprego público
que lhe é imposta, ou, ainda, realizando tarefas ou serviços determinados pelo programa, em
troca da ‘ajuda’” (PEREIRA, 2000, p. 116); a autora ressalta que essa “prática de proteção social
referenciada na cobrança de respostas (induzidas) do beneficiário não é, portanto nova, apesar
do nome de efeito — workfare — que adotou, por oposição ao welfare”.
Pereira (2000, p. 116) — ainda apoiada em Lavinas e Varsano (1997), que, por sua
vez, citam Roche (1992) — ressalta que existe uma vertente dessa primeira posição que apoia
apenas parcialmente essa proposta, uma vez que, “apesar de encampar a reação contra a
incondicionalidade e o workfare, aceita o critério da seletividade ou a focalização de uma
renda básica (parcial) da pobreza” (grifos da autora). Refere-se à vertente que concebe a renda
mínima como imposto negativo, como a adotada na América do Norte. Essa forma opta pelo
critério da renda familiar (não da pessoal) como unidade de referência e visa “manter baixas
as demandas da população pobre por gastos sociais públicos sem necessariamente redistribuir
renda ou riqueza” (PEREIRA, 2000, p. 117).
A segunda proposta é constituída pela aceitação do workfare e da condicionalidade.
Por considerar que a não imposição de condições atenta contra a ética do trabalho e
incentiva o assistencialismo. Assim, em vez de a contrapartida do beneficiário ser
encarada como um mecanismo negativo de controle institucional, deve ser vista como
uma forma de valorizar o trabalho e a integração social. [...] entendem que, mesmo
havendo sanções contra os beneficiários se recusam a dar algo em troca da ajuda, a
contrapartida funciona mais como um direito do que uma obrigação ou constrangimento.
É dir-se-ia, uma coação para o bem, para valorizar o trabalho e os direitos a ele
vinculados e, portanto, um ato moralmente defensável (PEREIRA, 2000, p. 117).
[...] além da renda, privilegia outros mecanismos de proteção social básica (e não
mínima). Partindo do entendimento de que a universalização dos serviços sociais
não estaria necessariamente subordinada ao mercado de trabalho nem a esquemas
contributivos, a proteção social básica, que incluiria programas de manutenção de
renda, privilegiaria o status de cidadania como prerrogativa de todos, em oposição
aos contratos sociais apoiados na capacidade contributiva de cada um (em dinheiro,
tarefas, serviços, lealdades, sacrifícios) (PEREIRA, 2000, p. 117; grifo da autora).
Por fim, a autora conclui que tanto a primeira quanto a terceira proposta habitam o
“plano das utopias”. E considera que, de fato, os esquemas europeus de renda mínima
garantida começaram o debate, dando ênfase à renda básica ou de cidadania; contudo, esse
debate logo foi abandonado, e passou a se desenvolver a ideia da renda mínima garantida, que
50
2000, p. 119). A autora considera ainda que, enquanto a renda básica ou de cidadania
significaria uma ruptura com essa tendência, a renda mínima garantida vigente recupera e
reforça que na Europa prevaleceram “os velhos critérios de elegibilidade e de gestão pública
que vêm transformando a assistência social em ‘armadilha da pobreza’” (FERREIRA, 1997,
apud PEREIRA, 2000, p. 119).
Diante do exposto, mais uma vez reiteramos a atualidade do debate sobre a seleção
socioeconômica, até porque esse assunto vem acompanhando a discussão da proteção social e
da desproteção social desde o século XVI, sendo necessário encampar, neste debate acerca da
seletividade de acesso aos serviços e benefícios sociais, o equacionamento das questões
relativas às contrapartidas ou condicionalidades, pois na atualidade estas se apresentam de
forma quase inseparáveis. No Brasil, a cobrança não tem sido o trabalho, mas são outras as
contrapartidas exigidas.
51
32
Com Iamamoto e Carvalho (1985, p. 77), entendemos a questão social como “não sendo senão as expressões
do processo de formação e desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da
sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado. É a manifestação,
no cotidiano da vida social, da contradição entre o proletariado e a burguesia, a qual passa a exigir outros tipos
de intervenção, mais além da caridade e da repressão”.
33
Neste trabalho, a expressão “Serviço Social” será utilizada para designar a instituição que dá suporte e
legitimidade à prática da profissão dos assistentes sociais no âmbito teórico-metodológico, ético-político e
técnico-operativo, e abriga o assistente social como um sujeito coletivo. Os termos “serviços sociais” serão
utilizados para designar auxílios e benefícios oferecidos pelos programas assistenciais e de política social,
vinculados e veiculados pelas organizações sociais. Assim, quando me referir à profissão, os vocábulos
aparecerão com as letras iniciais maiúsculas.
52
Como dissemos, o Serviço Social construiu-se inicialmente sobre e a partir das formas
existentes criadas pela filantropia e pela caridade, mas isso não pode ser tratado numa
perspectiva de mera evolução.
Como bem conclui o autor,
[...] não é a continuidade evolutiva das protoformas ao Serviço Social que esclarece
a sua profissionalização, e sim a ruptura com elas, concretizada com o deslocamento
aludido, deslocamento possível (não necessário) pela instauração,
independentemente das protoformas, de um espaço determinado na divisão social (e
técnica) do trabalho. Substantivamente, a ruptura se revela no fato de, pouco a
pouco, os agentes começarem a desempenhar papéis executivos em projeto de
intervenção cuja funcionalidade real e efetiva está posta por uma lógica e uma
estratégia objetivas que independem de sua intencionalidade (NETTO, 1996a, p. 68-
69; grifos do autor).
questão social, que a cada momento mais se evidenciavam, sendo preciso mantê-las sob
controle para que não viessem a colocar em risco a ordem do capital.
A constituição do mercado de trabalho para o assistente social pela via das políticas
sociais — e recorde-se que aqui fazemos referência às políticas sociais do Estado
burguês no capitalismo monopolista — é que abre a via para compreender
simultaneamente a continuidade e a ruptura, [...] que assinalam a profissionalização
do Serviço Social (NETTO, 1996a, p. 71).
Podemos assim afirmar que, desde o início da profissão do assistente social, foi
plasmada uma relação direta entre a prática do Serviço Social e o estabelecimento da política
social do Estado burguês. Falamos desta ligação estabelecida na era do capitalismo
denominada monopolista ou oligopólica, como resposta ao enfrentamento das sequelas e
expressões da questão social.
Dentro deste marco que é proposto para a análise histórica da profissão, examinarei as
formas assumidas pela prática profissional no tocante à questão da seletividade
socioeconômica em estudo. Acredito que este procedimento será capaz de levar ao
54
34
A autora chama a atenção para o fato de que está se referindo à primeira parte da obra “Diagnóstico Social”,
intitulada “Evidências sociais”, que, por sua vez, é subdividida em cinco capítulos e que agora traz à baila o
primeiro capítulo, denominado “Origens”. Também destaca que, na tradução portuguesa dessa obra, o item
“Evidências sociais” está registrado como “Realidades sociais”.
55
Richmond, segundo esta autora, teria até questionado a forma como os trabalhadores
sociais ingleses vinham realizando essa função.
Algumas referências a esse processo podem também ser encontradas em texto
disponível de Gordon Hamilton, autora norte-americana que, juntamente com Florence Hollis
e Helen Harris Perlman, foi amplamente conhecida dos assistentes sociais brasileiros.
Discípula de Richmond, ao tratar do direito à assistência social, em texto publicado nos EUA
Quando o indivíduo recorre a uma obra social, passa por um processo de seleção.
O cliente faz um pedido; alguém se dirige a ele a fim de saber qual a dificuldade e se
pode ser tratada ali. Se não, ele deve ser encaminhado à Agência apropriada. A isso
se chama “matrícula”. Num hospital, a parte administrativa da matrícula chama-se
“admissão”; na Agência de Serviço Social, chama-se “plantão”. Não é comum
considerar-se o caso como tal, para fins estatísticos, senão após o plantão ou após a
seleção. No campo da assistência pública, como em outros mais, o “plantão” tem
por objetivo determinar se o caso pode ser aceito ou não, ou se o problema
apresentado pelo cliente pode realmente (e legalmente, se se trata de uma
instituição pública) ser ali resolvido (HAMILTON, 1982, p. 181; grifos meus).
a prestação de ajuda material, numa época em que a caridade já havia sido marcada
pela preocupação com a dimensão individual dos necessitados. Esta preocupação com
o indivíduo já se manifestara na fundação, em 1842, por Robert Hartley, da New York
Association for Improving the Condition of the Poor, criada para coordenar agências
privadas, investigar o aspirante à ajuda e torná-lo autossuficiente (SILVA, 1993, p. 11).
35
Considero essa obra de Silva (1993) uma sistematização acerca do Serviço Social no seu nascedouro nos EUA.
Pautada na leitura dos autores da época e preservando os nomes dados ao Serviço Social e aos conceitos
utilizados nessa época, a autora destaca as contribuições de cada um deles. Esse estudo é tratado por mim como
fonte de registro histórico, ao me permitir localizar e explicitar os fundamentos que embasaram, na origem da
profissão, a realização do means test, ou atendimento mediante a comprovação da necessidade dos demandantes
dos serviços sociais.
36
A primeira escola de Serviço Social europeia foi criada na Holanda em 1899.
57
37
Vieira (1970, p. 172) observa que, nos EUA, “a preocupação em bem aproveitar os recursos, em coordenar os
esforços, em não duplicar a assistência originou a criação dos ‘Fichários Centrais de Assistidos’. O primeiro foi
fundado em Boston em 1876”.
59
38
Quando uma concepção filosófica-ontológica de homem é histórica, a essência dos fenômenos será buscada
“no próprio homem entendido como autor e construtor de sua própria história” (BARROCO, 2004, p. 15).
39
Refiro-me ao fato de que as determinações sócio-históricas não são eternas e imutáveis. E exatamente porque são
históricas envolvem contradições — e é exatamente essa característica que indica a possibilidade da mudança.
Contudo, para que ocorram, as transformações sociais não dependem da simples vontade imediata de alguns homens.
Entender o contrário implica uma concepção voluntarista, negando-se as determinações históricas.
60
doutrinas apoiadas na lei natural. Para os darwinistas sociais a competição era a lei
da vida logo, o remédio para a pobreza era a autoajuda. Afinal de contas, os pobres
eram os inaptos e protegê-los na luta pela existência apenas permitiria que se
multiplicassem, levando ao enfraquecimento das espécies e impedindo o plano da
natureza do progresso evolucionário para formas mais elevadas de vida social.
Os pobres são vistos como perdedores, desadaptados e fracos. Portanto, deveriam ser
eliminados, para que não transmitissem sua fraqueza à humanidade.
Spencer encarava o progresso como resultado de uma constante luta entre os seres
humanos, luta essa que tinha uma natural função seletora, baseada em fatores
biológicos e naturais: o fraco, o doente, o malformado, o ocioso, o imprudente, o
imprevidente — que não se adaptavam às formas de vida civilizada — deveriam ser
impedidos de se reproduzir, porque protegê-los socialmente era não só agir contra a
lei da natureza mas contra a lei do progresso (PEREIRA, 2000, p. 107).
Esse raciocínio ganha força quando é conectado à ética do trabalho, que consiste na
direção intelectual e moral disseminada pelo puritanismo de grande força no século XIX, na
consolidação da sociedade burguesa.
[...] não haveria porque criar sistemas de proteção social aos pobres, nem mesmo no
âmbito das instituições privadas, pois tal atitude impediria o processo de adaptação
social por meio do qual os indivíduos adquiririam a necessária capacidade para
participar de um mundo mais diferenciado e complexo. Portanto, só havia um tipo
de assistência que Spencer admitia: a que ajudasse o pobre a se autoajudar; ou, de
acordo com o popular provérbio chinês: “Em vez de se dar o peixe, deve-se dar-lhe a
vara de pescar e ensiná-lo a pescar” (PEREIRA, 2000, p. 107; grifo da autora).
Se cuidar de si mesmo pressupõe a detenção de meios para tal intento, então a noção
do indivíduo se ajudar surge como desafio, prova e até oportunidade de fortalecimento por
40
Para o pastor protestante inglês Thomas Robert Malthus, a ajuda aos pobres minava-lhes o espírito de
independência e incentivava a ociosidade. Estas justificações, segundo Pereira (2000, p. 106), fortaleceram
sobremaneira a ideologia liberal, que relacionava o trabalho às liberdades negativas e via o indivíduo como
detentor de um direito natural à liberdade, oposto ao direito artificial à proteção institucional.
61
A ajuda material é, nessa perspectiva, vista como “último recurso”. Que pretendiam as
organizações realizar com os demandantes de seus serviços? Silva (1993, p. 15) responde:
41
Voluntárias, pessoas que faziam as visitas domiciliares para as obras sociais.
62
lutou e que é, portanto, um perdedor. Então, fortalecer o espírito se colocará como um dos
horizontes do trabalho a ser realizado pelos profissionais.
Esse processo, que realiza a separação entre o “pobre” (como o incapacitado, o
desintegrado da sociedade, porque não trabalha e, portanto, não detém meios para sobreviver)
e o “trabalhador” (considerado como integrado à sociedade, por estar inserido no sistema
produtivo) desfoca a apreensão da pobreza como expressão da questão social, desvinculando-
a de seus fundamentos econômicos.
Nunes (2004) propõe a questão nos seguintes termos:
O Serviço Social como grupo profissional é reconhecido para julgar as ações dos
indivíduos e simultaneamente tratar estas mesmas ações que representavam uma
ameaça para a ordem social e o desenvolvimento industrial. O Serviço Social
desenvolve-se na perspectiva do controlo e cura. [...] O Serviço Social desenvolve-
se como um dos dispositivos privilegiados da Assistência Social para disciplinar os
improdutivos, integrando- os na sociedade produtivista e difundindo uma ética do
trabalho assalariado. Realiza simultânea e contraditoriamente objetivos de reparação
e promoção social. Contribui para a percepção dos problemas sociais
transformando- os em problemáticas [...] (AUTÈS, 1998, apud NUNES, 2004, p. 26).
Importante destacar que, se nessa época não se conhecia muito sobre a personalidade
humana, já se sabia muito sobre a luta pelos direitos humanos e sobre o indivíduo forjado na
luta de fazer a história, tendo em vista seus interesses. Já se falava de liberdade e de igualdade
perante a lei; já havia corrido muito sangue dos trabalhadores na conquista de direitos. 43
Para o Serviço Social, as demandas da população também não são vistas como
direitos, mas como manifestações de carências que precisam ser comprovadas com visitas e
estudos profissionais.
Tendo em vista a argumentação apresentada até aqui sobre os fundamentos que dão
sustentação à nascente profissão do assistente social, podemos afirmar que as profundas
contradições que a sociedade burguesa carrega se dirigem para reforçar a direção de sua
42
Schons (1999, p. 64) chama a atenção para o fato de que a Lei dos Pobres, enquanto assistência aos mais fracos, era
entendida como desestímulo ao trabalho, visto que a ética protestante que alimenta o surgimento do capitalista,
segundo Weber, entende que a salvação se dá pelo trabalho. Então, é preciso combater a ociosidade.
43
Abreu (2008, p. 184) destaca o fato de que, nos Estados Unidos, “[...] a ordem jamais sofreu a pressão de um
forte movimento operário, trabalhista ou socialista, que deslegitimasse os seus fundamentos, o reordenamento
capitalista desenvolveu-se sem necessidade de pactuar com um ‘inimigo’ potencial ou real, como ocorreu na
maioria das nações do ocidente europeu. [...] o processo de reprodução social norte-americano jamais precisou
transferir excedentes, na mesma proporção das nações europeias que enfrentaram a insurgência proletária”.
64
preservação, operando nos aspectos que geram desequilíbrios e disfunções, vistos como
naturais, culpabilizando os indivíduos que procuram ajuda pela sua própria situação. A
mesma sociedade capitalista que gera a riqueza gera a pobreza, pelos mesmos meios e
processos. Quando, porém a pobreza é vista e analisada de forma separada dos processos que
a produzem, pode se colocar como “questão dos pobres”, permitindo ser tratada como questão
de foro íntimo, privado, individual.
Nos textos de autores norte-americanos aqui citados, que tratam do nascimento do
Casework, podemos perceber, através das análises apresentadas acerca da conjuntura, que
essas são apreendidas de forma restrita, local, não abrangendo aquilo que se passava no
mundo. Da mesma forma, o Serviço Social é concebido em si mesmo, como se fosse possível
explicá-lo simplesmente pelas ações que os profissionais realizam.
A sistematização da prática, como teorização da prática, é, então, a reiteração do
existente e vista pelos autores como fato dado no cotidiano, no seu aspecto de repetição,
naturalizando os processos sociais.
Diante das análises aqui apresentadas acerca da fundação da “Caridade Científica” nos
EUA, podemos perceber que, no final do século XIX, naquele país, o acesso ao atendimento
nas organizações da caridade ocorria mediante processo seletivo, pautado em visão de
pobreza como questão de âmbito individual. Quer dizer: a seleção para o acesso era
individualizada, tratada como de foro privado, tratada como questão moral.
Os problemas apresentados pelo indivíduo na triagem de acesso serão avaliados à luz
da moral, para verificar se, de fato, ele é merecedor da ajuda ou se é indigno desta. Nesse
caso, podemos dizer que a seleção se dá mediante avaliação, embora já seja denominada por
estudo —. 44 ou seja, por estudo de caráter avaliativo pautado na comprovação da necessidade.
Silva (1993), citando Bruno (1964), pondera que a seleção, como fruto da
investigação, embora criticada na forma de sua realização, era necessária no atendimento.
Buscava-se a melhor forma de ajudar as pessoas:
44
Importante distinguir que a análise é sempre substantiva e a avaliação, normativa, valorativa. Embora
caminhem sempre juntas, são distintas.
65
A autora sintetiza, então, que nos EUA, “até o final do século [refere-se ao XIX], os
três fundamentos do Serviço Social eram: o conhecimento dos fatos, a ajuda adequada para o
corpo e a supervisão moral para a alma” ( SILVA, 1993, p. 18).
Por outro lado, é preciso aqui considerar o trabalho realizado nos Estados Unidos por
Jane Adams (1860-1935), 45 como porta-voz de outra forma de trabalhar com a população.
Silva (1993) destaca que ela e seus adeptos criticavam duramente a prática dos agentes da
Caridade Organizada pela importância dada à investigação minuciosa e ao tratamento
individual. Consideravam os agentes desta caridade frios e sem emoção, muito impessoais e
avarentos, além de impregnados de espírito pseudocientífico (SILVA, 1993, p. 18).
Apesar do antagonismo inicial, havia semelhanças entre o Movimento da Caridade
Organizada e o das Residências Sociais, uma vez que “tinham concepções parecidas a
respeito dos direitos individuais e das relações de classe, [...] enfatizavam o sacrifício e a
solidariedade humana como expressão da necessidade de promover a harmonia entre as
classes sociais” (SILVA, 1993, p. 22-23).
A esse respeito, Martinelli (1997, p. 107) escreveu:
45
Em 1889, Jane Adams fundou em Chicago a Hull House, ideia que se difundiu com muita rapidez pelo país. Por
volta de 1900, chegaram a ser criadas cerca de cem, subindo a 400 unidades em 1910. A Hull House era uma
proposta em que jovens de formação universitária, “oriundos de segmentos sociais mais abastados”, se dispunham a
conviver com as classes trabalhadoras, uma vez que não viam o indivíduo como ser isolado, mas trabalhavam com
a noção de solidariedade para tornar aquele local melhor. “Esta visão da sociedade levou à conclusão de que a ação
para ajudar algumas pessoas poderia ter um alcance mais amplo. Lamentavam o isolamento entre as classes sociais,
cuja barreira buscaram ultrapassar de modo conciliatório. Membros das classes média e alta mudaram-se para as
comunidades mais pobres das redondezas, com o propósito de conhecer de perto as condições de moradia e
trabalho destas comunidades, para então ajudá-las a melhorar tais condições” (SILVA, 1993, p. 22).
66
46
O progressivismo, “um novo espírito político”, “tornou-se muito influente nos Estados Unidos entre o início
da década de 1890 até a entrada americana na Primeira Guerra Mundial, em 1917. Muitas pessoas que se
autointitulavam ‘progressistas’ viam seu trabalho como uma cruzada contra chefes políticos urbanos e barões
corruptos. A era foi caracterizada pela crescente exigência de uma regulação efetiva do comércio e da indústria,
um renascimento do serviço público e a expansão do governo para garantir que os interesses do país e dos grupos
pressionando por estas exigências. Quase todas as figuras notáveis do período, seja em política, filosofia,
educação ou literatura, estavam conectadas, ao menos em parte, com o movimento reformista. [...] O impacto
profundo de escritores ditos ‘progressistas’ incentivou certos setores da população — especialmente uma classe
média tomada entre uma guerra entre grupos trabalhistas e grupos de grandes industriais e comerciais — para
tomar ação política. Muitos estados aprovaram leis para melhorar as condições sob as quais pessoas viviam e
trabalhavam. Sob a crescente pressão de renomados críticos sociais tais como Jane Addams, leis contra o
trabalho infantil foram gradualmente criadas e fortalecidas, que aumentavam a idade mínima de trabalho,
diminuíam a carga diária de trabalho, restringiam trabalho noturno e requerendo atendência escolar” (disponível
em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_dos_Estados_Unidos_(1865-1918)->; acesso em 25 ago. 2012).
67
O alargamento dos interesses dos assistentes sociais nos Estados Unidos visava à
qualificação de sua atuação, pretendendo responder às demandas colocadas pela sociedade
naquela conjuntura e é percebido por Silva (2004, p. 59) da seguinte forma:
As profissões nascem para responder às demandas sociais, são criadas com determinada
utilidade social. Enquanto produtos históricos que são, podem se ampliar, reduzir-se ou mesmo
desaparecer no curso da história. Quando conseguem responder satisfatoriamente às demandas
sociais postas, tendem a se consolidar e se ampliar; quando não respondem, perdem a sua
utilidade e desaparecem. Assim também sucedeu com o Serviço Social.
O surgimento do Serviço Social deve ser localizado no cenário do desenvolvimento
capitalista, na idade do monopólio, “quando o Estado requer um profissional com
características executivas para a implantação de políticas sociais que permitam o
enfrentamento da ‘questão social’“ (PARRA, 1999, p. 96; tradução nossa).
No plano mundial, o Serviço Social nasce nos Estados Unidos, inspirado inicialmente
no modelo inglês da Caridade Organizada, conforme já tratamos anteriormente, e, a partir daí,
vai se consolidando e se expandindo. Nesse movimento, o assistente social passa a se
constituir em trabalhador assalariado que se insere em processos de trabalho. “O serviço
social não desempenha funções produtivas, mas se insere nas atividades que se tornaram
acólitas dos processos especificamente monopólicos da reprodução, da acumulação e da
valorização do capital” (NETTO, 1996a, p. 72).
A partir do seu nascedouro, vai adquirindo particularidades, ao assimilar específicas
influências nos diversos locais e países onde passa existir a profissão.
No sentido de continuar na explicitação de como a seletividade se apresentou na
emergência e na institucionalização do Serviço Social, extrapolando a discussão para além do
Serviço Social norte-americano, apresentarei uma breve incursão ao tema, através do destaque
de alguns elementos que contribuem para iluminar a apreensão do seu significado em um
plano mais internacional. Trata-se de tema muito complexo, porque envolve a explicitação da
história europeia, que, ao contrário da estadunidense, foi construída à custa de muito sangue
derramado, através das sucessivas e decisivas revoluções que acabaram por dar novos rumos à
história da humanidade, o que não será tratado no âmbito desse estudo.
Segundo Netto (1996a, p. 106), 47 “o desenvolvimento [...] do Serviço Social na Europa
ocidental prende-se a três fenômenos, aliás desconhecidos no outro lado do Atlântico: uma
47
Netto (1996a) realiza uma profunda e densa análise acerca de como se deu o a fusão ideológica e científica
entre o Serviço Social norte- americano e o europeu, no contexto em que o capitalismo se refaz, na sua fase
monopolista, tornando-se mais complexo, ao incorporar novas demandas, no sentido de ampliar a acumulação do
capital em um plano internacional. Martinelli (1997) também apresenta séria pesquisa sobre a emergência e a
institucionalização do Serviço Social norte-americano, europeu e brasileiro.
70
[...] vivendo uma vida minada pela doença, pela fome, pelas adversidades das
condições de trabalho, e habitando em locais insalubres e impróprios à vida humana,
a família operária tinha a sua expectativa de vida reduzida, sendo frequentes óbitos
de adultos, jovens e crianças. Em algumas cidades da Inglaterra, bem como da
França e da Itália, mesmo em momentos de prosperidade como forma os de 1840 e
1860, a generalização da miséria era tão intensa que chegava a atingir cerca de 20%
da população. Instaurava-se um clima de verdadeira “guerra social” que, como
sequela da febre do progresso e do lucro que dominava os donos do capital,
alastrava-se por todo o continente. Em alguns países, como a Inglaterra, a população
operária ocupava uma faixa de até três quartos da população, o que dava dimensões
muito amplas aos problemas da classe trabalhadora (MARTINELLI, 1997, p. 70-71).
48
Martinelli (1997, p. 65) explica que essa denominação refere-se a “uma crise histórica do capitalismo em
escala mundial, cuja vigência se situou aproximadamente entre os anos 1873 e 1896, interrompida por pequenos
surtos de recuperação em 1880 e 1888, e continuando a se manifestar organicamente até a década de 1930,
quando surge o capitalismo monopolista”.
71
Desde a era medieval [...] a assistência era encarada como forma de controlar a
pobreza e de ratificar a sujeição daqueles que não detinham posses ou bens
materiais. Assim, seja na assistência prestada pela burguesia, seja naquela praticada
pelas instituições religiosas, havia sempre intenções outras além da prática da
caridade. O que se buscava era perpetuar a servidão, ratificar a submissão
(MARTINELLI, 1997, p. 97).
A assistência social, nesse contexto, era entendida ora como forma de caridade, ora
como forma de assistência pública. Mas, de fato, estabeleceu-se a partir da crítica que dirigiu
72
a essas duas formas de assistência. Criticou a benemerência cristã por servir somente para
manter e reproduzir a pobreza, pela incapacidade demonstrada de não conseguir se opor à luta
de classes, assim como criticou a assistência pública por se colocar como impotente e nociva,
uma vez que se fundava nos direitos sociais:
A autora analisa que a crítica dos resultados obtidos pela assistência pública e pela
caridade veio acompanhada da crítica de seus métodos que por vezes, foram
responsabilizados pelo fracasso das duas formas, definindo assim, seletivamente as
populações que ela se propunha a assistir através de ação educativa. Ao se constituir, a
assistência social aponta o define o seu alvo: a classe operária urbana, que passa a ser
diferenciada da “massa dos assistíveis”, significando que a assistência social abandona, nas
mãos da assistência pública e da caridade, os indigentes, ou outros “irrecuperáveis”, que
constituem um grupo improdutivo e, para ela, politicamente inofensivo ( VERDÈS-LEROUX,
1986, p. 11; grifos da autora).
Os grupos de Ação Social atuarão com programas de assistência dirigidos à classe
operária urbana. 49
Por volta de 1920, enquanto nos Estados Unidos as Sociedades de Organização da
Caridade lutavam para impulsionar “o processo organizativo dos assistentes sociais de forma
a tornar autônomo este novo agregado profissional, liberando-o da influência da Igreja
[protestante?], as europeias caminhavam em rota oposta, colocando-se a serviço desta
instituição [católica?]” (MARTINELLI, 1997, p. 113).
Nessa época, no continente europeu, a Inglaterra, que se apresentara inicialmente
como referência de intervenção junto aos pobres, vai perdendo sua liderança no âmbito do
Serviço Social.
Com o intuito de contrariar a orientação do Serviço social anglo-saxônico, “que
baseava a sua ação reformadora em conhecimentos científicos sem estar sob a dependência
doutrinária da igreja”, e visando recuperar sua hegemonia perdida com o advento da
49
Esses grupos se constituem em referências fundamentais da Ação Católica que se encontram na origem do
Serviço Social no Brasil.
73
em 15 de maio de 1931, que serão colocados os princípios que constituirão as bases morais e
políticas do Serviço Social. Martins (1999, p. 275) afirma:
[...] Para que as assistentes sociais “se devotem ao bem-estar dos seus irmãos e à
renovação da sociedade”. A Uciss em 1935 atribui grande importância às escolas,
empregando todos os meios possíveis para promover novas escolas de Serviço
Social nos países onde há necessidade delas, e coordena o esforço de trabalhadores
sociais e assistentes sociais das quinze nações onde já conta com filiados.
50
A Conferência Internacional de Serviço Social foi criada em 1928 pelo belga dr. René Sand. Em Vieira (1982),
acerca do I ICSW, René Sand aparece citado inúmeras vezes, porque foi o presidente do encontro e responsável
pela elaboração do relatório final. Em 1967, a Conferência passou a ser denominada Conselho Internacional de
Bem-Estar Social. O nome original em inglês era International Conference of Social Work; o atual é
International Council on Social Welfare; ambos são designados pela sigla ICSW. Neste trabalho, utilizaremos a
sigla I ICSW para designar a Primeira Conferência Internacional de Serviço Social. Vieira (1982) apresenta
estudo sobre as 19 ICSW que se realizaram no período de 1928 a 1978, destacando em linhas gerais os principais
temas e polêmicas tratados nesses encontros. Em Castro (1987, p. 152) encontramos que “[d]esde o pós- guerra,
a Conferência Internacional do Serviço Social (CISS ) converteu- se em órgão consultivo das Nações Unidas, da
Unesco e da OMS. Em consequência, como a própria CISS o reconhece, ela renovou a sua busca de novas idéias e
passou também a proporcionar aos diferentes países a chance de compreensão das novas experiências,
favorecendo a internacionalização do Serviço Social”.
75
Nos registros, podemos constatar que o Serviço Social aparece ora como caridade, ora
como profissão fundada em conhecimentos científicos. Sand (1928, apud VIEIRA, 1982, p. 34)
afirma que “o Serviço Social inclui a caridade, os socorros, a filantropia; no entanto, os
ultrapassa e deles se distingue pelo seu caráter científico e metódico, pela procura das causas
e pela crítica constante de seu campo de estudo e de ação”.
No texto em pauta, a caracterização e as causas da “pobreza” são apresentadas de
forma confusa, apontando ora para a culpabilização dos indivíduos pobres pela sua condição,
ora para a vaga ideia de que são “vítimas de condições sociais generalizadas” ( VIEIRA, 1982,
p. 33-34).
No I ICSW, segundo a referida autora, ocorreu calorosa discussão em torno da questão
se o atendimento aos demandantes dos serviços sociais deveria ou não ser assumido pelo
Estado, em face ao monopólio existente dos serviços privados das obras sociais. Registro aqui
parte dessa discussão, porque, nos seus meandros, posso demarcar alguns fundamentos da
seletividade de acesso aos serviços sociais presentes.
Essa discussão foi registrada da seguinte forma:
51
Nunes (2004, p. 24) explica que, na Charity Organization Society, havia duas abordagens, conhecidas como
“Relatório da Maioria” e “Relatório da Minoria”, correspondentes a duas tendências entre as quais, embora
representassem concepções distintas sobre o tratamento a ser dado à pobreza, não havia contradições de fundo,
uma vez que ambas convergiam para o atendimento do casework. Somente a tendência minoritária defendia que
a pobreza deveria receber tratamento de âmbito público e do Estado. A autora, ao final, conclui que em face dos
perigos criados pela sociedade industrial e à necessidade de maior proteção social, ambas foram se
encaminhando para a defesa da intervenção pública e pela afirmação dos direitos sociais.
52
Minha análise carregada nas cores deve-se ao esforço empreendido para desvendá-las no seu conteúdo, uma
vez que esse pensamento ainda é presente nos dias atuais entre os assistentes sociais, apresentando-se mesmo
como uma das tendências da profissão.
77
53
Maria Helena Nunes é uma autora portuguesa que, segundo suas próprias palavras, se localiza em termos teóricos
como adepta de uma interpretação menos determinista dos limites do Serviço Social quanto a constituir-se como
instrumento dominante de reprodução de interesses hegemônicos (tomando como referência Netto e Iamamoto).
78
Permite pensar o Serviço Social como atividade que reflete interesses não só do projeto das classes dominantes, mas
também das classes e grupos socialmente oprimidos e desfavorecidos (NUNES, 2004, p. 25).
54
Conforme Campagnolli (1993, p. 97), a designação da profissão como Social Work (“trabalho social”) foi
proposta por Mary Richmond em 1916 e aceita por unanimidade na Conferência Nacional de Obras de Caridade,
Correção e Filantropia nos Estados Unidos. No continente europeu, o nome utilizado era Social Service
(“Serviço Social”). O nome oficial “Serviço Social” foi aprovado em 1928 na Primeira Conferência
Internacional do Serviço Social, ocorrida em 1928. Ressalta a autora que não se trata de mera questão de ordem
semântica, mas espelha as diferenças existentes entre a experiência americana e a europeia, fato que iria
contribuir para o caráter do Serviço Social brasileiro.
79
A assistência moderna deve criar valores e não apenas conservá-los. Sua finalidade
é fortalecer, no necessitado, a vontade e a saúde para que chegue a se bastar a si
mesmo, pelos próprios meios, pelo seu próprio trabalho. As formas de assistência
devem respeitar a dignidade humana; esta não desaparece com a miséria. A
assistência deve intervir em tempo oportuno, com meios suficientes e, sempre que
82
possível, de maneira preventiva. Sua atuação será assim de mais eficácia e mais
econômica, pois contemporizando, a necessidade piora e sua solução fica
impossível. É necessário retirar o auxílio a tempo, quando o assistido não mais
precisa dele, a fim de que não se acostume com as “muletas” que não mais lhe são
úteis. A assistência não pode ser uniforme: estuda o caráter específico de cada
situação, para deduzir quais os meios a serem empregados. Sua atuação principal
não é a distribuição do socorro em espécie, mas uma ajuda de homem para homem
(SAND, apud VIEIRA, 1982, p. 43; grifos meus).
Nessa breve citação — a qual, no texto que me serve de base, também assim se
apresenta, e que passo a analisar —, podemos perceber que a lei afirma os direitos e as
medidas desejáveis, já reconhecendo que, na prática, se tornam impraticáveis. Não se
realizam na totalidade, sob a alegação de que os recursos são poucos diante de tanta demanda
e (por que não dizer?) de que, diante de tão poucos recursos disponibilizados para atender a
tanta necessidade, têm que ser bem gastos, ou seja, naquilo que vale a pena.
Aparece aqui novamente a lógica de justificar a necessidade de seletividade no
atendimento social tendo em vista o abismo existente entre necessidade e recursos disponíveis.
Podemos, diante dessa apreensão, consequentemente, interpretar que a distribuição do recurso
dentre os necessitados deve ser feita de forma racional e que se expressará no dinheiro bem
gasto com os que comprovadamente necessitam de forma a atender o maior número possível de
indivíduos. A ajuda, portanto, terá que ser mínima para fazer render o pouco dinheiro/recurso
disponibilizado ao atendimento. Ou seja, espera-se que o recurso se multiplique, aumentando o
número de pessoas atendidas, portanto dividindo-o entre muitos demandantes, cabendo ao final,
uma parte ínfima para cada indivíduo solicitante.
Mas haverá nesse processo, pautado por regras estabelecidas, aqueles que não serão
contemplados com o auxílio e os que perderão o benefício porque desobedeceram as orientações.
Com base nesses pressupostos, aparecerá a necessidade da triagem, da seleção
socioeconômica de forma criteriosa, mediante a realização de estudos individuais pelo
assistente social para a comprovação da veracidade dos fatos alegados pelos demandantes dos
serviços sociais. Nessa lógica, os recursos devem ser bem distribuídos, de “forma justa” e
parcimoniosa, porque são poucos e, ainda, porque se forem generosos, se correria o risco do
indivíduo se acostumar a eles e ficar acomodado à ajuda. Depois será preciso o controle sobre
o bem gastar do usuário, repetindo-se, portanto, a mesma ideia do controle já apresentada na
oportunidade em que tratamos do modelo de política social francesa.
Nesse processo, as regras e critérios se constituem nas expressões do controle que
permitirão realizar o processo de inclusão–exclusão do acesso e exclusão do atendimento. São
83
eles que fornecem a intensidade do corte e do acesso; quanto mais detalhados, mais
dificultado se torna o acesso aos benefícios sociais.
Aqui comparece também uma forma de contrapartida, ao se exigir que o usuário faça
um “bom uso do recurso recebido”, pois, caso não cumpra essa regra, será excluído do
atendimento. Refere-se ao “bom gasto do pobre”, que deve se realizar com coisas úteis,
destinados à sua sobrevivência biológica e de sua família. E como, por vezes, se considera
que o usuário não sabe bem gastar, deverá receber uma prescrição para orientá-lo nessa tarefa.
A ação do assistente social na Alemanha, no período indicado, se pautava em diretrizes
da política social que bem poderiam ter sido elaboradas por assistentes sociais, indicando que a
assistência pública deve intervir nas situações em tempo adequado (leia-se: no tempo certo,
igual ao mínimo), com meios suficientes (leia-se: mínimo, nem mais nem menos) e de
preferência de modo preventivo (leia-se: que ele não venha a se repetir). Se assim se proceder, a
ação será mais efetiva e mais econômica (leia-se: sairá mais barata, custará menos).
Quando a situação é contemporizada (leia-se: protelada, delongada), a situação piora e
a solução fica impossível (leia-se: produzirá mais sequelas, custará mais caro e será de
controle mais difícil). Porém, é necessário se retirar o auxilio a tempo (leia-se: a tempo de o
indivíduo não se acomodar a ter uma vida um pouco melhor).
Conforme podemos aqui também perceber, a proposta da política social é formulada
de forma justa, apertada e enquadrada a forma de operá-la. Ou seja, enquadra ao mesmo
tempo o profissional e o usuário, cabendo ao profissional, que materializa a ação da ajuda,
realizar junto dela o controle indicado, junto ao atendido.
Podemos perceber que, para a ação profissional, todas as orientações e diretrizes são
apresentadas de forma muito apertada, arrochada, comprimida, diminuída, desconfiada,
dirigida, cobrada, vigiada, sob o manto de se fazer o bem ao próximo. Ou seja, o atendimento
do assistente social aos necessitados de assistência deve ser realizado com essas características.
Isso aparece na recomendação de que a pobreza deve ser tratada de forma controlada
enquanto é possível cuidá-la no âmbito do indivíduo. Senão, poderá expressar-se de forma
coletiva, tornando-se mais perigosa e de mais difícil controle. Individualizar a demanda se
coloca como a forma de controle mais segura, uma vez que os problemas sociais (leia-se:
expressões da questão social) serão tratados como problema do indivíduo e não de âmbito
social entendido como expressão da sociedade de classes.
Em relação aos “métodos” empregados pelo Serviço Social na Alemanha, pode-se
dizer que assumiam formas distintas nos seguros sociais, nas pensões e na assistência.
84
O estudo de cada situação era obrigatório por lei para ser concedido o socorro ou
prestado o serviço. A lei se expressava através de “princípios federais” que
determinavam as condições, natureza e valor do socorro: “1) fornecer ao assistido meios
indispensáveis de sobrevivência; 2) torná-lo capaz de se sustentar a si mesmo; 3)
fortificar suas energias e vontade, de maneira que possa tomar conta de si mesmo e dos
seus; 4) a assistência deve intervir no momento oportuno e se retirar logo que o assistido
tenha se recuperado; 5) a organização pode intervir na situação do assistido, mesmo se
este não a procurou, a fim de evitar o agravamento da situação ou um prejuízo à
comunidade; 6) a avaliação das necessidades não deve obedecer a um esquema rígido,
mas tomar em conta as circunstâncias de cada caso”‘ (VIEIRA, 1982, p. 51).
55
“Inspirado em trabalho desenvolvido por volta de 1750, na cidade alemã de Hamburgo, Daniel von der Heydt
elabora o chamado ‘Plano Elberfeld’. Consubstanciava-se na divisão da cidade de Elberfeld em 564 setores (com
cerca de 300 pessoas), cada possuindo ‘um visitante benévolo’ que, voluntariamente, permanecia na função por
três anos. A operacionalização de tal Plano previa: a) estudo das necessidades de cada pobre do setor; b) estudo
das necessidades de cada setor; c) trabalho preventivo com colocação dos pobres no mercado de trabalho; d)
reabilitação dos indigentes; e) supervisão do trabalho por quarenta ‘supervisores’ que, Poe sua vez, ficavam sob
a vigilância de um comitê de nove pessoas, responsável por toda a cidade” (CAMPAGNOLLI, 1993, p. 84).
85
no tempo e no espaço, como variam as interpretações feitas pelos contemporâneos acerca das
razões de sua origem e das diversas alternativas de sua redução” ( VISCARDI, 2011, p. 179).
Na Alemanha, em 1928, orientar e acompanhar o indivíduo atendido passa a ser
sinônimo de tentativas de enquadramento às pautas estabelecidas de ensinar o “indivíduo a
viver”, pautando-se na tão proclamada relação profissional.
Podemos constatar que há, igualmente, na Europa Ocidental, uma relação direta,
simbiótica entre a Política Social e o Serviço Social, entre ser profissional e ser funcionário.
Na nascente profissão, a busca é pela ciência que indica o que fazer. E há sem dúvida um
avanço na forma pública dos serviços sociais, porque passam a se constituir em direitos do
cidadão, embora, na prática, ele não tem sido tratado enquanto tal.
Interessa-nos agora tratar sobre como o Serviço Social se expandiu no mundo, sob a
influência da Igreja Católica, tendo por base que esta pretende recuperar seu lugar de “grande
importância” na Idade Média, perdido com o advento da Modernidade. Isto porque
pretendemos analisar os pilares da fundação do Serviço Social europeu e brasileiro para poder
entender o Serviço Social nos dias atuais.
No sentido de adensar os pilares que dão sustentação ao nascimento da profissão no
Brasil e em vários outros países de credo católico, torna-se então necessária a explicitação do
significado e do conteúdo das duas encíclicas papais já referidas.
Para Wehrle (2007, p. 4), a encíclica Rerum novarum56 representa uma resposta da
Igreja ao mundo, tardia em mais de cem anos que necessitou para digerir o alvorecer da
modernidade:
56
O texto utilizado pelo autor foi consultado, em 2 de setembro de 2007, em
http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum_po.html.
86
Daí em diante, o medo da revolução social passa a unir os liberais às forças mais
retrógradas da Europa, num vasto “partido da ordem”, e essas revoltas populares são isoladas
e reprimidas com truculência exemplar (TRINDADE, 2002, p. 128).
O ano de 1848, quando o povo vai para as ruas, exigindo o direito ao trabalho, a partir
de sua auto-organização, representa um divisor de águas na história da cultura ocidental. É
quando o proletariado aparecerá na história como classe autônoma, em-si e para-si, apto para
dar respostas na direção progressista às novas contradições e aos desafios gerados pelo
capitalismo. A partir desse momento, só o socialismo irá defender a teoria do valor trabalho.
Quando a burguesia já havia realizado a revolução, torna-se classe conservadora,
passando a se unir aos “feudais” na defesa da conservação das estruturas sociais vigentes, não
abrindo mão dos meios de produção e do excedente econômico. A partir de agora, as
mudanças deverão ser graduais e pacíficas. Progresso só na ordem, uma vez que qualquer
mudança que possa colocar em risco a ordem burguesa deverá ser abolida. É quando a
burguesia se associa à nobreza e começa a combater a democracia. Agora, não se fala mais
em valores revolucionários, mas em valores de classe e de seus interesses. À burguesia não
interessa mais o pensamento crítico. A partir daí, a burguesia deixa de ser uma força
revolucionária, passando a ser conservadora.
A esse respeito, Netto (1991a, p. 14) explica:
57
Netto (1991a, p. 13) refere-se ao pensamento restaurador como aquele “de claras conotações católicas e ranços
místicos, que lamentava a ‘anarquia’ trazida pela revolução burguesa e a liquidação, pelo capitalismo, das
‘sagradas instituições’ da feudalidade — e recusava firmemente as novas formas sociais embasadas na
dessacralização do mundo e no intercâmbio mercantil. O protesto romântico, criticando a prosaica realidade
burguesa, escapava dos dilemas sociais do presente mediante a idealização da Idade Média e, em face das
misérias contemporâneas, refugiava-se num passado idílico”.
88
dois campos delimitam o terreno das grandes matrizes da razão moderna: a teoria
social de Marx e o pensamento conservador [...].
A teoria social de Marx tem como objeto a sociedade burguesa e como objetivo a
sua ultrapassagem revolucionária: é a sociedade burguesa sob a ótica do
proletariado, buscando dar conta da dinâmica constitutiva do ser social que assenta
na dominância do modo de produção capitalista. [...] A outra matriz importante
procede da transformação subsequente do pensamento restaurador e romântico que
se adéqua às necessidades de conservação, gestão e reforma da sociedade burguesa
(NETTO, 1991a, p. 19).
58
O agnosticismo pauta-se pela crença de que não é possível a apreensão da essência das coisas.
90
Diante do exposto, podemos claramente perceber por que a ideologia liberal burguesa
concebe os direitos sociais e humanos como abstrações. O que está em jogo é o direito do
homem burguês, liberdade para o burguês e não para todos os homens. Essas referências são
fundamentais para podermos entender o conservadorismo moderno do qual a Igreja Católica
tem sido uma importante porta-voz.
O conservadorismo, enquanto forma de pensar, constitui-se como reação ao
Iluminismo e como um contramovimento à Revolução Francesa e a tudo o que esta
representa. É uma reação à Revolução por parte daqueles que perderam riqueza e o poder
político com o fim do feudalismo, sendo a Igreja Católica um desses perdedores. Porém, após
1848, a ala dos conservadores se ampliará com os burgueses que a partir de então se
posicionarão contra um dos dois projetos presentes na Revolução Francesa, ou seja, aquele
que defende a emancipação humana.
As palavras de Wehrle estão densamente colocadas quando afirma:
Após analisar vários pontos, como direito à propriedade, relação capital e trabalho,
liberação do proletariado, salário justo, passa a falar a respeito da restauração da
ordem social. E afirma [citando a pág. 33 da referida encíclica]: “Já alguma coisa se
faz nesse sentido; para realizar o muito que ainda está por fazer e para que a família
humana colha vantagens melhores e mais abundantes, são de absoluta necessidade
duas coisas: a reforma das instituições e a emenda dos costumes”.
O trabalho de beneficência, antes realizado pelos clérigos, agora será assumido pelos
assistentes sociais católicos, entre outros profissionais leigos, “acrescentando ao espírito
caridoso a perícia técnica” (CASTRO, 1987, p. 59). Assim, Castro (1987, p. 59) considera que “a
caridade, o messianismo, o espírito de sacrifício, a disciplina e a renúncia total passam a ser
parte dos aspectos doutrinários e dos hábitos que acompanharam o surgimento da profissão sob
a perspectiva católica, e não só por autodefinição interna, mas por desígnio do Vaticano”.
Na encíclica Quadragesimo anno é enfatizada a necessidade de o trabalho assistencial
absorver aspectos técnicos, o que significou uma inovação na América Latina, uma vez que a
Igreja passou a estimular diretamente a criação de centros de formação superior com a
incumbência de qualificar quadros técnicos para assumir o trabalho.
da Idade Média), dada a decadência da moral e dos costumes, produzida pelo liberalismo e
comunismo”.
Conforme já pudemos tratar, a Igreja Católica teve influência decisiva na expansão do
Serviço Social nos países católicos, dentre os quais o Brasil e muitos países da América
Latina. Portanto, analisar as encíclicas papais contribui para desvelar os fundamentos do
Serviço Social e entender a prática dos assistentes sociais onde essa influência foi
significativa. Busco aprofundar essas referências, expondo a seguir, em linhas gerais, as bases
de fundação da religião católica como religião cristã.
2.4. Sobre o indivíduo na religião cristã como fundamento para entender o Serviço Social
Suas raízes encontravam-se na religião judaica que, como todas as religiões antigas,
era nacional ou de um povo em particular. No entanto, havia nele algo inexistente no
judaísmo e nas outras religiões antigas: a ideia de evangelização, isto é de espalhar a
“boa nova” para o mundo inteiro, a fim de converter os não-cristãos e tornar-se uma
religião universal (CHAUÍ, 2002, p. 222).
O problema que então se colocava era o de como converter pessoas de outras religiões
ao cristianismo. Os evangelizadores usaram certamente muitas estratégias para conseguir esse
intento partindo das condições e o que pensavam os que deveriam ser convertidos. No texto
que me serve de referência, a autora pretende unicamente explicitar a evangelização que se
dirige à conversão dos intelectuais gregos e romanos, isto é,
daqueles que haviam sido formados não só em religiões diferentes da judaica, como
também haviam sido educados na tradição racionalista da Filosofia. Para convertê-
los demonstrando a superioridade da verdade cristã os primeiros Padres da Igreja ou
intelectuais cristãos (São Paulo, São João, Santo Ambrósio, Santo Agostinho, entre
outros) adaptaram as ideias filosóficas à religião cristã e fizeram surgir a Filosofia
cristã (CHAUÍ, 2002, p. 222).
94
A autora considera que, por se tratar de uma religião de salvação, o cristianismo não
precisava de uma filosofia, uma vez que o seu interesse fundamental encontrava-se na moral,
na prática dos preceitos virtuosos deixados por Jesus e não em uma teoria sobre a realidade.
Assim como, em se tratando de uma religião nascida do judaísmo, tinha clareza acerca do Ser.
Deus disse a Moisés: “Eu sou aquele que é, foi e será. Eu sou aquele que sou.” E, mesmo
porque, em se tratando de uma religião, o seu foco encontrava-se na fé e não na razão teórica.
“Foi, portanto, a intenção de converter os intelectuais gregos e os chefes e imperadores
romanos (isto é, aqueles que estavam acostumados à Filosofia) que ‘empurrou’ os cristãos
para a metafísica” (CHAUÍ, 2002, p. 223).59
Importante destacar, por conseguinte:
O primeiro impulso e nossa liberdade dirigem-se para o mal e para o pecado, isto é,
para a transgressão das leis divinas. Somos seres fracos, pecadores, divididos entre o
bem (obediência a Deus) e o mal (submissão à tentação demoníaca). Em outras
palavras, enquanto para os filósofos antigos a vontade era a faculdade racional capaz
de dominar e controlar a desmesura passional de nossos apetites e desejos, havendo,
59
Vale a pena ler Chauí (2002, p. 223-227) quando demonstra, na sequência dos seus escritos, como a metafísica
cristã se apossou, ou seja, reelaborou a metafísica grega em muitas ideias, não na totalidade. O cristianismo
incorpora o platonismo e o aristotelismo. Porém, como as obras de Platão e Aristóteles tinham ficado por vários
séculos perdidas, o cristianismo toma contato com três tradições metafísicas que formaram as primeiras
elaborações metafísicas cristãs, que foram: o neoplatonismo, o estoicismo e o gnosticismo. E dessa forma a
autora explica como se formou o ideário cristão nas suas bases.
95
portanto, uma força interior (a vontade consciente) que nos tornava morais, para o
cristianismo, a própria vontade está pervertida pelo pecado e precisamos do auxílio
divino para nos tornarmos morais (CHAUÍ, 2002, p. 343).
Sem o auxílio divino, a vida ética seria impossível, porque devemos obedecer
obrigatoriamente e sem exceção a lei divina revelada.
A ideia do dever permanecerá como uma das marcas fundamentais da concepção ética
ocidental, mesmo que, a partir do Renascimento, a filosofia moral tenha se distanciado dos
princípios teológicos e dos fundamentos da ética religiosa.
Anexa à ideia de dever, a moral cristã introduziu a ideia de intenção.
Até o cristianismo a filosofia moral localizava a conduta ética nas ações e nas
atitudes visíveis do agente moral, ainda que tivessem como pressuposto algo que se
realizava no interior do agente, em sua vontade racional ou consciente. Eram as
condutas visíveis que eram julgadas virtuosas ou viciosas. O cristianismo, porém, é
uma religião da interioridade, afirmando que a vontade e a lei divinas não estão
escritas nas pedras nem nos pergaminhos, mas inscritas no coração dos seres
humanos. A primeira relação ética, portanto, se estabelece entre o coração do
indivíduo e Deus, entre alma invisível e a divindade. Como consequência, passou-se
a considerar como submetido ao julgamento ético tudo quanto, invisível aos olhos
humanos, é visível ao espírito de Deus, portanto, tudo o que acontece em nosso
interior. [...] Eis porque um cristão, quando se confessa, obriga-se a confessar
pecados cometidos por atos, palavras, intenções. Sua alma, invisível, tem o
testemunho do olhar de Deus, que a julga (CHAUÍ, 2002, p. 344). 60
60
Diante da pergunta se o dever não comprometeria a nossa autonomia ao ser imposto por um poder estranho a
nós, Rousseau, no século XVII, vai defender a ideia de que homem nasce bom e puro, porque somos “a voz da
natureza” e “o dedo de Deus” está em nosso coração. “Se o dever parece ser uma imposição e uma obrigação
externa, imposta por Deus aos humanos, é porque nossa bondade natural foi pervertida pela sociedade, quando
esta criou a propriedade privada e os interesses privados, tornando-nos egoístas, mentirosos, destrutivos” (CHAUÍ ,
2002, p. 315). E Kant, também no final do século XVIII, vai se manifestar, opondo-se a Rousseau e afirmando o
papel da razão na ética em oposição à ideia da “moral do coração”. “Não existe bondade natural. Por
consequência, diz Kant, somos egoístas, ambiciosos, destrutivos, agressivos, cruéis, ávidos de prazeres que
nunca nos saciam e pelos quais matamos, mentimos, roubamos. É justamente por isso que precisamos do dever
para nos tornarmos morais” (CHAUÍ, 2002, p. 315).
96
Diante das explicações apresentadas por Chauí, podemos claramente perceber que, a
partir do cristianismo — ou, melhor, da visão fundada no cristianismo —, a relação básica do
homem cristão não é com a sociedade, mas a de cada homem com Deus que tudo vê.
Acrescentem-se a essas ideias as do bem e do mal, e a de que as nossas ações serão
julgadas após a morte por Deus, que tudo vê e registra, e então seremos julgados. Como
resultado deste julgamento, poderemos ser premiados ou castigados com o céu ou o inferno,
dependendo de nossas ações boas.
Nessa direção, a preocupação central da religião cristã, enquanto projeto para a
humanidade, não se dirigiu para melhorar a vida terrena dos homens, visando à felicidade de
cada um e de todos, tendo em vista que o projeto de felicidade encontra-se para além da vida,
ou seja, após a morte. Depois da morte, poderemos, se assim merecermos e segundo o
julgamento de Deus, ir para o céu e sermos felizes para toda a eternidade, ou sermos
colocados no inferno para todo o sempre. Aqui na terra, portanto, o homem deve enfrentar o
sofrimento com resignação, uma vez que toda humilhação e sofrimento serão recompensados
no dia do Juízo Final.
Se o objetivo da evangelização era tornar a religião cristã universal, sua doutrina, “a
boa nova”, deverá servir a todos; então, é condição que os valores não tenham nuances de
particularidades, mas que se constituam em valores a-históricos diante dos quais os homens
não podem modificá-los, assim como são predeterminados metafisicamente, associados à
ideia de pecado e culpa.
A relação entre Deus e os homens, então, passa a se dar através dos intermediadores de
Deus, que são os santos da Igreja. Na terra, os intermediadores entre Deus e os homens serão os
padres, que, por sua vez, terão que agir de acordo com os preceitos da Santa Madre Igreja. As
relações entre os homens, por sua vez, passarão a ser mediadas pela hierarquia da Igreja.
A religião, todavia, se materializa através da Igreja, que, enquanto instituição humana,
é histórica — portanto, produto da ação dos homens historicamente situados. Podemos então
perceber que, na intenção de evangelizar, a Igreja Católica lutou com as forças sociais
presentes que se lhe opunham, tendo como horizonte a ocupação de espaços de poder e o
domínio do mundo — e fez isso, quase sempre, ao preço de muito sangue derramado, para
que pudesse se impor enquanto força e assim mostrar o seu poderio diante dos que não
comungavam de suas orientações, assim como se colocou com muita crueldade diante
97
daqueles que tentavam pensar sob outros pressupostos. Veja-se a Inquisição na Idade Média e
a venda de indulgências, 61 entre outros exemplos.
A ideia que perpassa a Igreja Católica é a de que a sociedade é composta por indivíduos,
não por estamentos ou classes sociais, talvez porque também a hierarquia da Igreja tenha se
colocado ao lado dos que detinham a riqueza e o poder político, sendo que também se colocou
na sociedade feudal e capitalista como um poder político em nome de Deus.
No pensamento católico, há sempre referências acerca do indivíduo, porém a relação
entre os homens aparece no discurso católico enquanto compaixão e caridade. Parece que a
compaixão e a caridade se colocam mais em relação a uma obrigação do cristão “para ganhar
o céu” e menos como compromissos com a solidariedade, a cumplicidade, a justiça e a busca
de igualdade entre os homens. No princípio da perfectibilidade humana, por exemplo, não se
fala da necessária relação entre os homens para que possam desenvolver as suas
possibilidades humanas.
O discurso da evangelização se pauta por ideias que se assentam para além da história,
visando ao todo sempre da eternidade. Mas a prática histórica é terrena e deve ser procurada,
analisando-se o papel e as ações da Igreja na sociedade da qual é parte e na qual se expressa,
para desvendar a verdadeira intenção política da prática de seus agentes. As encíclicas,
portanto, são referências para se entender o significado real da prática da Igreja situada no
âmbito das relações sociais na história dos homens. 62
61
Com a Reforma Protestante, “[...] não havia mais como assegurar o plano divino com a compra de
indulgências (pedaços do Céu) pelos ricos em doações à Igreja, como acontecia antes. O Reino dos céus já cabia
aos pobres pelo seu sofrimento. [...] Não havia mais salvação assegurada. Como já não se sabia quem estaria
entre os escolhidos, o que se podia fazer era seguir a ética religiosa, na tentativa de estar entre os que seriam
salvos. E a ética dizia que o homem devia trabalhar, e não trabalhar por trabalhar, mas fazê-lo produtivamente
[...] Eis a ética que influenciou todo o comportamento do burguês e empresário no início do capitalismo: leva a
uma ideologia que é a própria mola da acumulação do capital. Assim, o empresário deve trabalhar, viver
asceticamente e acumular” (COVRE, 2002, p. 22).
62
Nossa análise não abarca a Teologia da Libertação, que, na década de 1970, foi um movimento cristão que
assumiu historicamente a luta para a libertação de pobres e oprimidos. O termo foi criado em 1971 pelo padre
peruano Gustavo Gutiérrez, que escreveu um dos livros mais famosos do movimento, A Teologia da Libertação.
Leonardo Boff é um nome expoente dessa perspectiva no Brasil.
98
O Serviço Social no Brasil nasce na década de 1930 sob a influência da Igreja Católica
e se institucionaliza quando o Estado passa a enfrentar a questão social através de políticas
sociais, estas utilizadas como forma de regulação social.
É em um quadro sócio-histórico tenso entre as classes sociais que a profissão do
assistente social dá os seus primeiros passos no País. Quando o nascente operariado urbano se
coloca como sujeito histórico, reivindicando direitos de proteção social relativos aos riscos do
trabalho, o governo de Vargas passa a reconhecer e a tratar a questão social através da criação
de políticas social como forma de seu enfrentamento.
63
Na Europa, antes de surgir o Serviço Social, nasce a Ação Social. O Serviço Social vai se constituir como
instrumento da Ação Social. A Ação Social “é uma ação mais ampla (do que o serviço social). Exercida sobre a
99
Havia no Ceas outras sócias formadas na Europa. Esse é o caso de Odila Cintra
Ferreira, que se formara na Escola Superior de Estudos Sociais de Paris e realçava a formação
para a intervenção junto ao meio operário (YAZBEK, 1977).
A formação ética, social e técnica dos assistentes sociais brasileiros é inicialmente
influenciada pelo Serviço Social francês e belga, que se alinha à visão do bloco católico no
panorama do Serviço Social internacional daquela época. Essa formação estimulava as alunas
para a reflexão e a ação planejada fundada no método do “ver, julgar e agir”.
A profunda relação entre Serviço Social e ideário católico faz com que a profissão seja
vista como missão e lhe dará “caráter de apostolado fundado em uma abordagem da ‘questão
social’ como problema moral e religioso e numa intervenção que prioriza a formação da
família e do indivíduo para solução dos problemas e atendimento de suas necessidades
materiais, morais e sociais” (YAZBEK, 2009a, p. 145).
Nesse momento, os objetivos profissionais pautam-se por “posicionamentos de cunho
humanista conservador contrários aos ideais liberal e marxista na busca de hegemonia do
pensamento social da Igreja face à ‘questão social’” (YAZBEK, 2009a, p. 146).
A questão social, influenciada pelo pensamento social da Igreja, é abordada como
conjunto de problemas de responsabilidade individual dos sujeitos que os vivenciam. “Trata-
se de um enfoque individualista, psicologizante e moralizador da questão, que necessita para
seu enfrentamento de uma pedagogia psicossocial que encontrará no Serviço Social efetivas
possibilidades de desenvolvimento” (YAZBEK, 1999, p. 92).
A perspectiva do Serviço Social, nesse momento, se dirige à mudança de
comportamento de seus “clientes” na perspectiva de integrá-los às relações sociais vigentes.
Merece atenção que nem o doutrinarismo nem o conservadorismo que marcam
profundamente o Serviço Social brasileiro na emergência da profissão se constituem em
teorias sociais.
estrutura mesma da sociedade, visando transformar ou adaptar os quadros existentes de acordo com a época, o
lugar, a civilização. É mais um movimento de ideias, um trabalho legislativo no qual os políticos e os juristas
desempenham papel preponderante" (RAMOS, s/d, apud AGUIAR, 1985, p. 31).
100
Na década de 40, um fato novo vai marcar a vida do Serviço social brasileiro: o
Serviço Social norte- americano, cuja presença será marcante nas décadas seguintes.
Nesse período, a presença europeia ainda é muito significativa, mas gradativamente
o eixo de influência mudará. Na segunda metade da década de 40 e no início da de
50, constamos a presença da filosofia tomista aliada às técnicas norte- americanas.
Nesse período não haverá ruptura radical da ideologia católica, pelo contrário,
haverá uma convivência das duas posições: o Serviço Social permanece na base dos
princípios católicos e neotomistas, inclusive via Estados Unidos, e ao mesmo tempo
incorpora as técnicas norte-americanas.
[...] o Estado novo, então instituído, defronta-se com duas demandas: absorver e
controlar os setores urbanos emergentes e buscar, nesses mesmos setores,
legitimação política. Para isso adota uma política de massa, incorporando parte das
reivindicações populares, mas controlando a autônoma dos movimentos
reivindicatórios do proletariado emergente, através de canais institucionais,
absorvendo- os na estrutura corporativista do Estado (SILVA, 1995, p. 24).
Nessa direção, são criados serviços assistenciais com o intuito de esvaziar e controlar
os trabalhadores organizados e ao mesmo rebaixar os salários. Nesse fundamento encontra-se
a criação das grandes instituições assistenciais 64 e previdenciárias que, conjuntamente “aos
setores dominantes, procuram responder às pressões dos setores urbanos em
desenvolvimento, passando as iniciativas assistenciais, incorporadas pelo Estado, a constituir
mecanismos de apoio à aceleração do processo de desenvolvimento capitalista no País”
(SILVA, 1995, p. 24; grifo da autora).
Essas iniciativas, que constituem conquistas dos trabalhadores, são, no entanto,
tratadas como doações pelo governo de traços paternalista e populista como foi o de Getúlio
de Vargas, na busca de legitimidade social.
Iamamoto e Carvalho (1985) destacam a importância dessas conquistas:
64
Dentre as quais se encontram: o Conselho Nacional de Serviço Social, em 1938; a Legião Brasileira de
Assistência e o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, em 1942; o Serviço Social da Indústria e a
Fundação Leão XIII, em 1946.
102
Se por um lado, a Igreja perdeu suas regalias, por outro lado obteve a liberdade de
que não desfrutava, desvencilhando-se das incompatibilidades existentes entre o
poder imperial e o clerical, resultantes da intolerância do regalismo, unido à
maçonaria e aos liberais, contra o espírito clerical. Consequentemente, implantou-se
no Brasil o laicismo. Todavia, a Igreja conservou, por tradição, suas relações com o
Estado nos planos político e social.
Alceu Amoroso Lima (1973, apud Lima, 1987, p. 24) explicita melhor as
características dessa relação, ao dizer que a Igreja Católica,
[...] politicamente, vinculou-se aos grupos dirigentes, que detêm o poder na esfera
federal, estadual e municipal, de cujos favores muitas vezes depende. Esses favores
em geral são pagos pelo apoio prestado às autoridades públicas ou pela influência
exercida pelo clero secular junto aos fiéis em véspera de eleições.
103
Ressalte-se que a ação social da Igreja Católica no Brasil, no final do século XIX e
início do século XX, reduzia-se a obras beneficentes e educacionais mantidas por organizações
religiosas. Ainda não pautava a sua ação nos fundamentos contidos na encíclica Rerum
novarum, pois “a alta cúpula da Igreja tinha suas atenções voltadas para o combate aos seus
inimigos — protestantes, maçons e espíritas — [e] se mantinha afastada, indiferente aos
problemas operários resultantes da passagem de uma economia agrícola para industrial”
(LIMA, 1987, p. 24).
As significativas ondas imigratórias que passaram a chegar ao Brasil a partir de
meados da década de 1870, trazendo imigrantes europeus com forte formação católica, para
substituir a força de trabalho escrava, criam a demanda para que a Igreja amplie os seus
quadros, para cuidar aqui do seu “rebanho europeu”, uma vez que parte dele para aqui se
dirigira. Essas ordens, muitas delas advindas do continente europeu, pretendiam dar apoio
espiritual e material, aos imigrantes, mas também cuidar para que não fossem influenciados
pelas ideias anarquistas e comunistas, conforme bem expressam as encíclicas papais.
As entidades sociais de base confessional ocupam lugar de destaque no trabalho
assistencial, antes de tais iniciativas serem incorporadas pelo Estado, e muitas continuam a
operá-las, em parceria com o poder público, através de subvenções.
No Brasil como em outros países, o Serviço Social como profissão assalariada, surge
quando o Estado passa a intervir diretamente na relação capital-trabalho, aliviando-lhe a tensão
através da criação dos programas de política social, nos quais os assistentes passam a atuar.
Lidar com a questão social através da criação de políticas sociais passa a se constituir em outro
jeito do Estado lidar com as manifestações da questão social. Somente com o uso da força de
polícia corria-se o perigoso risco de sua deslegitimação diante do operariado em organização.
O Serviço Social é legitimado pela sociedade como profissão, o que é expresso por seu
assalariamento, e passa a ocupar um espaço na divisão sociotécnica do trabalho, como
mediador entre as classes sociais e como executor das políticas sociais (IAMAMOTO;
CARVALHO, 1985).
A partir daí, a questão social deixa de ser vista como questão de ordem social e
política, e é transfigurada em questão de ordem técnica, que, portanto, poderá ser tratada por
profissionais, dentre os quais o assistente social, através dos programas da política social.
Amortecer e controlar a população demandante dos serviços sociais dá um caráter
eminentemente político à intervenção do assistente social como trabalhador assalariado, desde
as suas origens.
104
ou não de recursos através das subvenções e da seleção do indivíduo que preenche os critérios
de elegibilidade prescritos.
A profissão do assistente social, embora criada sob o impulso da Igreja Católica,
65
Em Iamamoto e Carvalho (1985), há 18 registros significativos relacionados diretamente à operação da
seletividade pelo assistente social nas organizações sociais que demandam seu trabalho na emergência e
institucionalização do Serviço Social no Brasil. Referências à seleção socioeconômica e à triagem podem ser
encontradas em Iamamoto e Carvalho (1985, p. 113, 114, 182, 194, 200, 259, 263, 273, 283, 289, 308, 310, 311,
319, 320, 321, 323, 324-325).
108
Terá assim a função de “coordenação das atividades da obra” atuando nos serviços
de plantão (primeiro contato e encaminhamento), na divisão médica (aspecto moral,
social e psicológico da doença), na divisão econômica (principal área de atuação
do Assistente Social, centrando-se nos estudos para concessão de auxílios,
orientação para o equilíbrio orçamentário, orientação quanto à utilização dos
recursos oferecidos, etc.), na divisão de lazeres e movimentos sociais e nos
trabalhos de ligação com as empresas e em seu interior (IAMAMOTO; CARVALHO,
1985, p. 283; grifos meus em negrito).
3. Seleção econômico-social:
• para a obtenção de benefícios pagos (imóveis, etc.);
• para distribuição de auxílios.
4. Distribuição de auxílios:
• fornecimento de medicamentos gratuitos;
• compra de aparelhos ortopédicos;
• auxílios destinados à manutenção quando atrasam os benefícios;
• auxílios diversos em dinheiro, para regularização da situação civil, para
realização de tratamentos (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 308-309; grifos
meus em negrito).
Na citação acima, fica exposta claramente, na análise empreendida pelos autores, que
as triagens e seleções se impõem para lidar com o fosso existente entre as necessidades de
grandes parcelas da população e o campo restrito dos benefícios sociais. Aqui, aparece a
busca dos fundamentos para explicar a necessidade da realização de triagens e seleções como
forma de acesso e condição de acesso aos benefícios sociais. Há a procura de apreensão da
prática profissional na sociedade capitalista, a partir do ponto de vista que interessa aos
trabalhadores. Pela boca e pelo pensamento dos autores, não fala um assistente funcionário
das organizações sociais, mas pesquisadores críticos que desejam fundar a prática profissional
em outras bases. Conhecer o que se esconde nas nossas atribuições e competências é entender
e reconhecer como o Serviço Social existe, o que se impõe como condição da decisão sobre
de que forma vale a pena realizar a profissão explicitando os compromissos e depois como
poderemos realizá-los.
Penso que, aos moldes da ética, sempre cabe perguntar que Serviço Social vale a pena
ter e de que jeito podemos e queremos ser assistentes sociais, diante de um mundo tão
desumanizado e cruel para com grande parte da humanidade.
Ainda tratando do Serviço Social no âmbito da Previdência Social, os autores
assinalam que, na distribuição de auxílios, a triagem econômica e social é uma das atividades
básicas do Serviço Social naquela instituição e nos apresentam outra faceta que confirma a
dificuldade do acesso aos serviços e, por isso, se coloca no horizonte profissional. Trata-se da
alternativa do encaminhamento como forma de satisfação daquela demanda trazida pelo
usuário que não é possível atender, e mesmo para lidar com aquelas em relação às quais não
se sabe o que fazer.
As medidas incorporadas são pertinentes para realizar outro objetivo que se dirige ao
interesses particulares. É por isso que o Estado é uma arena de conflitos e interesses
(PEREIRA, 2008b, p. 26).
só pelas exigências da ordem monopólica, mas pelos conflitos que esta faz dimanar
em toda a escala societária (NETTO, 1996a, p. 25).
Dentro dessa concepção, entendemos que a política social é constituída por um campo
de forças e que, para compreendê-la, é indispensável atentar para o movimento real e concreto
da conjuntura em pauta e para as forças sociais em jogo. É preciso levar em consideração a
correlação de forças existente entre o movimento do capital, que visa defender seus interesses,
e o movimento concreto do trabalho ou dos trabalhadores, que luta por melhores condições de
vida e trabalho.
A política social, através de seus programas, visa garantir fundamentalmente a
reprodução da força de trabalho e manter sob controle e tutela os excluídos do “pacto de
dominação”. 66 Como resultantes da luta de classes, dependendo da correlação de forças
presentes no cenário social, em suas diversas conjunturas, tais programas poderão ser mais
ousados ou mais tímidos quanto ao atendimento das demandas colocadas. Quando a
correlação de forças é favorável aos trabalhadores, os recursos aumentam e, portanto, um
número maior de indivíduos será beneficiado; quando é desfavorável, alguns direitos já
conquistados passam a ser questionados. O atendimento às classes dominadas, como
consequência, deve ser absorvido pelo Estado desde que não afete o “pacto de dominação”,
sob o qual este se concretiza e sobre o qual se apoia na defesa dos interesses das frações
dominantes. Para manter sua legitimidade, no entanto, há necessidade também de atender as
demandas dos excluídos, incluindo-os como subordinados.
Tendo em conta que o desenvolvimento capitalista é complexo e não pode ser tomado
de forma mecânica, é importante destacar que “o bloco dominante não responde sempre com
concessões às pressões sociais, mas também com desarticulação, fragmentação, cooptação,
esvaziamento do bloco dominado e no horizonte da repressão que se faz presente implícita e
explicitamente” (FALEIROS, 1989, p. 126).
Face ao exposto, pode-se compreender claramente que a ampliação ou o enxugamento
das políticas sociais nas diversas conjunturas têm relação direta com a capacidade de pressão
e ameaça que a luta dos trabalhadores possa exercer sobre o projeto de dominação. Quanto
66
Aqui, “pacto de dominação” é utilizado como sinônimo de Estado, conforme Kowarick (1979). Faleiros (1980,
p. 59-60) reforça esse entendimento, ao explicar que o Estado capitalista “não realiza a política dos capitalistas
individualmente tomadas. Ele realiza os ‘interesses gerais do capital’, como uma instituição especial,
independente dos capitais individuais. Isso o coloca numa situação contraditória, obrigando-o a realizar
compromissos entre as distintas frações da burguesia (por exemplo, entre o capital financeiro e o industrial) entre
as exigências do capital como um todo e as pressões dos trabalhadores e de outras forças sociais [...] O Estado
capitalista é uma garantia de manutenção das condições gerais de reprodução do capital e da produção, isto é, da
acumulação capitalista”.
115
maior for a pressão, maior e melhor terá que ser a resposta dos grupos dominantes, pois seu
objetivo é manter a legitimidade do poder estabelecido (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985).
Em outras palavras, as medidas e os programas sociais só podem ser entendidos e
decifrados se forem situados no contexto da sociedade capitalista no âmbito do movimento
histórico das classes ou frações das classes sociais em presença.
67
Entenda-se que os poucos recursos podem ser de pessoal, de verba e de equipamento, entre outras
possibilidades. São as faltas de recursos humanos, materiais e financeiros que impedem o acesso da população
aos serviços que viriam para responder ou suprir necessidades.
116
Ou seja, o discurso jurídico, que consta na lei, é o dos direitos sociais que têm por
justificativa a cidadania, embora seu fundamento seja a da desigualdade de classes. Isso indica
a impossibilidade de haver no capitalismo serviços sociais universais e incondicionais,
reforçando a ideia de que, na prática, o que existe é o direito do indivíduo poder se candidatar
ao acesso. A seletividade das políticas sociais espelha a sua natureza de inclusão-exclusão. O
que se pretende com a realização da seleção socioeconômica, como forma e condição de
acesso, é tornar o não acesso de alguns aceitável por eles mesmos, diminuindo-se assim as
possibilidades de questionamento da própria seleção e da desigualdade que carrega. Da
117
mesma forma, ficará desfocado o fato que deu origem à seletividade, ao se colocar em foco a
alegada falta de recursos para atender a todos.
Demo (1997) enfatiza esse processo de inclusão-exclusão:
Esses argumentos corroboram que a exclusão e a pobreza não podem ser tratadas
separadamente dos processos que as produzem, sob pena de se colocar nos indivíduos o peso
e a culpa de sua situação, ao não entendê-la como desigualdade social, produto da exploração,
da dominação de classe. Por outro lado, por ser produto histórico, pode ser transformada na e
pela luta social. Nesse quadro, cumpre entender que não é possível acabar com a pobreza
somente com medidas de políticas sociais, sem mexer no processo que produz a pobreza e os
pobres que a carregam como marca e jeito de viver. Na sociedade do capital, o mesmo
processo que produz a pobreza, pelos mesmos meios também produz a riqueza.
A seletividade das políticas sociais reitera e materializa esse embasamento, expondo
claramente essa contradição, especialmente quando o discurso de muitas dessas políticas
aparece como universalista. Mas a simples existência da necessidade da seletividade (acesso
mediante comprovação) acaba por reescrever esse discurso na prática. O que era um direito
universal, finalmente, se restringirá ao direito de se inscrever ao acesso, provando que
preenche os requisitos, os critérios estabelecidos. Aquilo que era um direito do cidadão, na
prática, muitas vezes, só se realizará depois que ficar comprovado que a família não pode
arcar com o custo do bem solicitado, através do means test.
Essa natureza excludente dos serviços sociais, inerente às políticas sociais — das quais
a seleção socioeconômica, como já apontamos, tornou-se instrumento básico — mostra-se
então saturada de mediações que não se revelam na imediaticidade da prática. Nessas
circunstâncias, impõe-se um árduo trabalho de desvendamento, para perceber o que se
esconde por e através da seleção socioeconômica.
A própria forma como se desenvolve a seleção, ressaltando o mérito como fator de
acesso aos serviços, já carrega um poder de convencimento. É preciso ter claro também que
esse acesso nem sempre é considerado pela população como direito. Na sociedade brasileira,
seu entendimento como favor é historicamente consagrado, dando habitualmente margem ao
uso eleitoreiro de sua oferta. Daí a ocorrência de pressões políticas de várias ordens, ligadas
118
Essa explicação é reforçada por Behring (2010). Para esta autora, o fundo público
desses recursos. O Brasil não é um país pobre, possui recursos e riquezas em abundância que
se encontram concentradas nas mãos dos que representam o capital.
É importante considerar também que os serviços sociais não são concebidos e
pensados da mesma forma por todos os segmentos sociais. Para os empresários, os recursos
destinados aos benefícios sociais são investimentos que visam ao aumento da produtividade
de seus empregados e/ou ao marketing; são recursos que podem ser descontados do
pagamento do imposto de renda e, por isso, significam a remuneração fiscal paga pela
sociedade em geral. Para os trabalhadores, no entanto, os serviços sociais sempre significam
ganhos, benefícios, acesso, melhoria de condições de vida. Nesse sentido, aquilo que parecia
doação, de fato, é dinheiro público usado de forma privada para se apresentar de maneira
humana e solidária, sob a forma de doações.
Entretanto, como observa Demo (1997, p. 10), “[...] toda política social no capitalismo
consegue, no máximo, combater a pobreza nos limites do mercado capitalista, donde retira
sua tendência recorrente de tornar-se mecanismo de controle e desmobilização social”.
Assim, é importante destacar que as políticas sociais configuram-se como novo modo
de enfrentamento da questão social imposta pelo desenvolvimento e pela ampliação do
capitalismo industrial e da expansão urbana. A intervenção estatal sobre a questão social dá-se
através da política social, que se expressa nas particularidades das políticas sociais
(setorizadas), e é dessa forma que a questão social é fragmentada e parcializada. Os
programas dessas políticas setorizadas passam a atuar nos resíduos, consequências e sequelas
da questão social. “E não pode ser de outro modo: tomar a ‘questão social’ como
problemática e configuradora de uma totalidade processual específica é remetê-la
concretamente à relação capital/trabalho o que significa, liminarmente, colocar em xeque a
ordem burguesa” (NETTO, 1996a, p. 28).
Recortar a questão social em problemáticas particulares, em problemas sociais, não é
mecanismo qualquer de que o Estado burguês se utiliza através dos organismos sociais que a
materializam. O sentido dessa fragmentação é polarizar para permitir tratar das consequências
e transfigurar os ditos “problemas sociais” em problemas pessoais, entendidos como se
fossem, exclusivamente, de foro íntimo e privado — portanto, cada um torna-se responsável
único pelo acesso, dependendo do seu mérito. Em decorrência, entendemos que a
competência profissional pressupõe entender os processos econômicos e políticos envolvidos
e encobertos nas ações seletivas, assim como entender que as seleções e triagens têm profunda
relação com escolhas e valores. É essencial revelar e considerar, na prática dessas escolhas, os
compromissos ético-políticos de quem as realiza.
121
Entre nós, essa política se manifesta através da reserva de vagas para candidatos
portadores de deficiência em concursos públicos, afirmada no § 2º do art. 5º da Lei nº
8.112/90 e no § 1º do art. 37 do Decreto nº 3.298/99, que devem ser interpretados em
conformidade com o disposto no inciso VIII do art. 37 da Constituição Federal de 1988. Trata-
se de política social que expressa um direito conquistado.
No dia 26 de abril de 2012, em meio a muita polêmica (da qual não trataremos aqui), o
Superior Tribunal Federal considerou constitucional a reserva de vagas nas instituições
federais de ensino superior para afrodescendentes e indígenas, respeitando-se a autonomia de
cada universidade para adotar ou não o sistema de cotas. As cotas podem ser raciais (para
afrodescendentes e índios) e sociais (para alunos provenientes de escolas públicas e para
deficientes físicos); pode haver uma união dos dois modelos. Geralmente, para poder entrar
nesta cota, basta que o estudante se autodeclare negro. A autodeclaração como critério e o
sistema de cotas para negros tem sido considerados conquistas do movimento de negros
organizados. No entanto, quando há um número de vagas previamente definido: pode haver
dois candidatos que apresentam a mesma condição, e deverá haver desempate entre eles.
Em algumas políticas afirmativas, além do traço étnico-racial, poderá haver uma
avaliação socioeconômica que servirá de referência para a escolha dos mais pobres.
O denominado “sistema de cotas” configura-se, de fato, como um critério básico de
acesso; não significa que todos os negros inscritos terão acesso, mas que há uma cota para
124
atendê-los. Hoje, mais de 40% das universidades federais do País têm cotas para negros e
índios. Esse sistema não é restrito às universidades públicas. Na Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC- SP), por exemplo, existe o Programa Pindorama desde 2001 que
atende indígenas de várias etnias mediante bolsa de estudos para que possam ter acesso aos
diversos cursos universitários da PUC- SP.
O sistema de cotas representa, portanto, o critério indicador de acesso e sofre dois
níveis de seletividade. Primeiramente, do total de vagas é determinada uma cota para os
segmentos visados. Depois, os candidatos devem responder aos requisitos estabelecidos e
serão pontuados, para ao final sair a lista dos selecionados. Este segundo momento pressupõe
por parte dos selecionadores ou de quem estabelece aquela política a definição acerca do que
se entenderá por ser afrodescendente ou o que é ser indígena, para se estabelecerem os
critérios para a operação do processo seletivo e, em seguida, como cada candidato será
considerado em relação aos demais. Ou seja, é pressuposto que haja a qualificação substantiva
de afrodescendência e questão indígena 68 para depois se poder tratá-la.
Consegui apreender que há também a forma do que se poderia denominar
“seletividade indireta”. Trata-se de situações em que há afirmação do direito universal de
acesso aos demandantes, porém estes não conseguem ter resposta à sua necessidade; são
situações em que faltam recursos para que o atendimento se efetive. A título de exemplo,
podemos citar a realização de exames em equipamentos da saúde pública: o indivíduo tem a
prescrição para realizar determinado exame, mas os aparelhos são poucos, ou estão
quebrados, ou o médico que realiza o exame está de férias, ou um medicamento demorou
porque uma licitação não foi concluída, ou a lista é grande e o paciente foi agendado para ser
atendido após um prazo de seis meses. Diante desse quadro, pode-se perguntar: por que não se
compram mais aparelhos, se contratam mais funcionários, etc.? É para justificar a
privatização, reforçando o diagnóstico de ineficiência do serviço público? Entretanto, se o
atendimento fosse de fato universal, modos haveria para melhorar o atendimento.
Em face da análise que realizamos nesta seção acerca da natureza e da utilidade da
seleção socioeconômica no âmbito da política social, podemos concluir que a seletividade é
parte constitutiva desta política. Portanto, está presente em todas as políticas sociais, com suas
respectivas peculiaridades, ou mesmo adquirindo peculiaridades regionais ou nacionais,
segundo as forças sociais que se defrontam e estão em disputa nas diversas conjunturas.
68
Em relação aos indígenas é preciso entender todas as questões advindas do desaldeamento, pois para a Funai,
não são considerados indígenas os que vivem fora de suas aldeias.
125
69
Serviço social ou serviços sociais, aqui entendidos como os recursos disponibilizados pela política social que
são materializados pelas organizações sociais.
126
proteção social exatamente pela impossibilidade de garantir para si recursos suficientes para
viver sua vida.
São, portanto, os segmentos empobrecidos da classe trabalhadora que a seleção
socioeconômica atinge. Ninguém imagina que os ricos, os detentores do capital, participem
desses processos de seleção. 70
Em sua operação concreta, a seleção socioeconômica tratará de estudar e avaliar a
presença ou a ausência de disponibilidade de recursos sociais, bens materiais e financeiros
para o indivíduo e sua família, essenciais para o atendimento das suas necessidades e da
realização de suas expectativas. Utilizará, para tanto, estudos, questionários e cadastros, entre
outros instrumentos. Neste sentido, é preciso entender, com Yazbek (2001, p. 34), citando
Martins (1991), que “a pobreza como fenômeno multidimensional, [...] é categoria política
que implica em carências nos planos espiritual, de direitos, das possibilidades e esperanças”.
Todo o processo de seleção desenvolvido pelo assistente social terá, ao final, como
produto do levantamento das condições financeiras e sociais dos candidatos, um retrato de sua
situação, de modo a permitir a comparação entre eles. Permitirá quantificá-los e qualificá-los,
revelando os que reúnem maiores méritos em face ao perfil traçado e desejado pelas
organizações sociais, tomado como base na escolha dos aceitos, dentro da população já
considerada elegível mediante critérios fixados anteriormente.
A ação do assistente social na realização de triagens ou seleções socioeconômicas,
como formas de acesso aos serviços sociais, tem a finalidade de fornecer credibilidade e
legitimidade ao processo diante dos candidatos e à população em geral, uma vez que estão
sendo realizadas por técnico com competência científica, preparado para realizar tais tarefas.
O principal efeito de legitimação, porém, não vem do reconhecimento do público
atendido — composto majoritariamente por pobres e iletrados — quanto ao caráter científico
emprestado à seletividade pelo seu processamento institucional. Tem essa parte importância
por eles acharem que, permeado de conferências de dados e controles, o processo é sério,
justo e deve ser respeitado. Mas tal legitimação vem, principalmente, do fato de terem sido
escutados e considerados e por terem conseguido algum benefício.
70
Considero como situação de exceção a presença de pessoas, principalmente jovens, que estão acima do nível
de pobreza, competindo por vagas nas universidades públicas e privadas, dentro da atual política de cotas. Este
tipo de política social, conhecida como de “ações afirmativas”, de caráter focalizado, procura exatamente
diminuir o efeito da disputa desigual, pela ocupação de vagas na universidade brasileira por jovens que
estudaram em boas escolas privadas em detrimento dos oriundos da escola pública. Origina-se, entre outras
motivações, da comprovação de que as vagas existentes nas universidades públicas estão ocupadas,
principalmente nos cursos de maior procura, pelos segmentos mais abastados da população.
127
Trata-se de ver as instituições como conjunto articulado, como ligação vital entre
saberes e práticas com efeitos fundamentalmente políticos, envolvendo uma
estratégia e luta não necessariamente aberta entre grupos e classes sociais
constitutivas destas instituições em um bloco histórico.
Quase sempre, na hora da execução dos programas sociais, os demandantes dos serviços
sociais, assim como os profissionais, deparam-se com o fato de que sempre falta algum tipo de
recurso para que o atendimento possa se dar em sua plenitude: ora faltam funcionários para operar
o serviço, ora a verba não chegou; o aparelho do exame está quebrado ou a sala de cirurgia está
interditada devido à existência de infiltrações; ou ainda está em processo de licitação aquele
produto exigido pelo atendimento — para falar apenas de alguns exemplos possíveis.
O discurso que dificulta o acesso ao atendimento contribui, ao final, para passar à
população e aos profissionais a ilusão de que, quando tudo funcionar, todos poderão ser
atendidos. As próprias dificuldades, afinal, contribuem para disfarçar que nem todos serão
atendidos de fato. Ou melhor, mascaram que, no fundo, está se procedendo a uma restrição de
acesso, com o seu protelamento constante. No quadro apresentado com tais traços, a
permanente escassez de recursos humanos, materiais e financeiros para o atendimento de toda
a demanda aparece, nas instituições, como elemento de dissimulação, pois serve para
justificar as deficiências de atendimento, mediante a ilusão de que, com os recursos que estão
em falta “no momento”, não é possível atender a todos, o que dá à população a ilusão de que,
em algum momento do futuro, os recursos chegarão para atender a todos.
Para atender a todos, entretanto, seria necessário negar a natureza do próprio
capitalismo, que se manifesta no jeito de ser dos serviços sociais. A seleção
socioeconômica como condição e forma de acesso, por mais bem qualificada que seja a
sua realização, não conseguirá reverter a incapacidade institucional de atender a todos. Na
verdade, é da sua natureza constituir-se em instrumento privilegiado de legitimação da
desigualdade social, embora possa parecer instrumento destacado para o acesso e a
realização da justiça social e humanização da pobreza.
Humanizar a pobreza encerra a ideia de torná-la mais suportável. Mas o fato de
querer amenizá-la é diverso de querer exterminá-la de fato, enquanto desumanização e
desigualdade social. Entretanto, reconhecendo o modo de ser das organizações sociais e
da seleção socioeconômica, o profissional tem a possibilidade de criar outras posturas
estratégicas para o trabalho que realiza junto à população para reforçar a afirmação de
seus interesses e direitos.
130
Em seguida, será preciso criar condições para que os “poucos recursos” sejam bem
administrados — isto é, que sejam bem gastos com quem realmente precisa ou com quem
realmente valha a pena investir.
Historicamente, uma dessas formas de promover a aceitação do resultado das seleções
é distribuir de preferência os recursos entre o maior número possível dos demandantes, para
que a limitada verba anteriormente disponibilizada “renda”, “multiplique-se” ao máximo
possível, procedimento que encontra justificativa no fato de que o processo de atribuição de
oportunidades aos demandantes tem a ver com bens de sobrevivência, de mínimos sociais.
Por exemplo, segundo o senso comum, “é melhor que o usuário receba pouco do que
nada”, argumento acrescido da ideia de que esse mínimo deve ser concedido “pelo menor
tempo possível”, “para que o indivíduo não se acomode numa situação de dependência
prolongada dos benefícios”, seguindo inclusive o caráter do modelo da política social atual.
Ao mesmo tempo, a organização do processo de seleção econômica a partir do exame
da demanda caso a caso — individualizando, portanto, a resposta e verificando os recursos
pessoais ou familiares que cada candidato tem, ou não, para satisfazer a necessidade
apresentada — dificulta e embaça a apreensão das necessidades insatisfeitas de uma família
como uma questão de muito mais gente. 71
Assim, uma questão de âmbito sociopolítico — portanto, de âmbito coletivo — passa,
muitas vezes, a ser tratada como questão de foro privado e íntimo. Instaura-se, como pano de
fundo, a desconfiança, porque “nem todos precisam” e porque “há muita mentira contada
pelos usuários”. Tal movimento significa que já se desfocou a questão política (não há
recursos para atender a todos) que motivou a realização de uma seleção por critérios técnicos,
pois nem todos poderão ser atendidos. Coloca-se então o foco nos indivíduos-candidatos que
deverão provar falta de recursos para satisfazer suas necessidades e corresponder aos critérios
e normas colocados.
Finalmente, todos acreditarão que não foram selecionados porque não fizeram bem “a
prova de seleção”, quer porque “não souberam se portar direito”, quer porque “não estavam
preparados” e ainda, em outras situações, porque “havia outros mais necessitados”.
71
É preciso reconhecer que a seletividade pode ser tratada através da organização do acesso por ordem de
chegada, como vem acontecendo nas áreas da educação e da saúde. Quando, por exemplo, um indivíduo
necessita realizar um exame prescrito por médico, mas o número de equipamentos se apresenta como menor que
a necessidade, o candidato é colocado em uma lista de espera de atendimento. Ou, quando não há vagas para
atender a demanda da educação recorre-se às provas, selecionando os melhores ou referencia-se pela ordem de
chegada. A grande imprensa tem sido farta em nos apresentar exemplos dessa prática, quando o indivíduo dorme
por dias na porta de uma organização para que possa ser um dos primeiros a ser chamado, portanto, com chances
de receber atendimento. Os poucos recursos poderão ser em dinheiro, bens, serviços e também em pessoal,
equipamentos, etc.
132
2009a, 2009b). Esta direção estratégica está presente em todos os níveis de participação do
assistente social.
Embora na sua exterioridade as formas de acesso e permanência aos serviços,
inclusive triagem, seleção socioeconômica e pareceres, aparentemente só envolvam execução,
colocando-se simplesmente como atividades cotidianas do assistente social, implicam
processos complexos de estabelecimento, acompanhamento e execução de políticas sociais,
públicas e privadas.
Ainda que o assistente social seja conhecido e se reconheça como profissional da
prática direta com a população, é preciso destacar que há assistentes sociais que participam da
formulação e da gestão de políticas, assim como há os que estudam e avaliam seus impactos
sobre a vida da população, entre outras formas.
O exercício das atividades do assistente social nos organismos institucionais estatais,
paraestatais e privados explicita que o profissional dedique-se ao planejamento, à
operacionalização e à viabilização de serviços sociais dirigidos ao atendimento da população.
Na realização dessas atribuições, o assistente social exerce funções de suporte à
racionalização do funcionamento dessas organizações, assim como funções técnicas
propriamente ditas, apresentando-se, na listagem de tarefas “corriqueiras” realizadas pelo
134
A política social ocupa e deve ocupar lugar de destaque nas reflexões teóricas do
Serviço Social, por se constituir em campo de intervenção e instrumento de atuação do
assistente social. Mas torna-se necessário incluir no debate o chão que dá sentido tanto à
profissão quanto à política social que é a questão social em suas diversas manifestações.
Para a apreensão do significado da profissão na sociedade capitalista nos seus
fundamentos sócio-históricos, é preciso tomar a questão social, em suas múltiplas expressões,
e o trabalho profissional, situado nas relações sociais, como categorias centrais, assumindo a
política social como mediação.
Incluir a questão social como discussão permanente responde à exigência de que o
profissional se veja para além de sua constituição como funcionário assalariado das
organizações sociais quando se assume compromissos com a luta dos trabalhadores.
A política social expressa a institucionalização da parte da demanda que foi atendida,
como fruto da luta empreendida pela população organizada na peleja por mais e melhores
serviços. Exprime o que foi possível obter no jogo da correlação de forças em pauta, travada
entre os representantes do trabalho e do capital, agora aparecendo sob a forma de programas e
benefícios. Trata-se, portanto, não de doações, mas de direitos conquistados, embora as pautas
de reivindicações levantadas pela população, organizada ou não, indiquem o tanto que ainda
há por conquistar.
Guerra (2010, p. 37) aqui comparece, observando que,
entanto, que o acesso aos ditos “direitos de fato” é limitado — veja-se a existência das
triagens e da seleção socioeconômica.
A seletividade de acesso aos programas sociais significa que, realmente, o que há para
todos é o direito de concorrer como candidato, é o “direito a ter direito”.
As instituições/organizações sociais quando implantam e executam os serviços sociais
através dos programas sociais estão materializando a política social. Note-se nesse fato a
importância de considerar a relação entre esfera pública e esfera privada, diante do processo
de privatização crescente do Estado que vem se operando no Brasil, expresso em profundo
colaboracionismo entre empresa e Estado, através da “prática da renúncia fiscal do Estado,
tecnicamente nomeada de incentivos fiscais” (MOTA, 1989, p. 132).
O que vem ocorrendo é que, em vez de “o Estado se apropriar de parte do excedente
via taxação de lucros e da riqueza patrimonial, ele abdica de tal receita para que o
empresariado faça a sua ‘justiça social’” — assim como permite que seja retida parte do
excedente que deveria lhe ser transferido “quando considera não tributáveis as chamadas
despesas operacionais das empresas, aí incluídos os custos dos programas sociais” (MOTA,
1989, p. 133). 72
Ao se tratar dos atendimentos públicos e privados, é preciso considerar essa ação
escondida do Estado, porque a aproximação com o setor privado é bem mais profunda e
distinta daquela que se mostra na exterioridade dos fatos. Aquilo que aparentemente parece
privado, de fato é fundo público, transvestido de privado.
A desregulamentação das políticas sociais e a perda consecutiva de direitos sociais têm
carreado a atenção à pobreza para o âmbito privado e individual, motivada por apelos
solidários de benemerência dirigidos à sociedade civil, dessa forma desresponsabilizando
publicamente o Estado do encargo da proteção social como direito de cidadania. Nesse
quadro, torna-se profundamente relevante considerar os vários espaços sócio-ocupacionais da
profissão que, embora inter-relacionados, precisam ser considerados nas suas particularidades,
tendo em vista que imprimem determinadas características ao trabalho do assistente social,
como funcionário assalariado que é. Neste estudo, não trataremos de tais espaços de forma
aprofundada, 73 embora, com Iamamoto (2009a), reconheçamos:
72
A autora refere-se, entre outros, ao Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT), ao vale transporte, ao
Programa de Formação Profissional (PFP) e à previdência privada.
73
Refiro-me ao trabalho do assistente social que se opera na esfera pública, nas instâncias públicas de controle
democrático, nas empresas capitalistas, nas fundações empresariais, nas organizações privadas não lucrativas e
nas organizações da classe trabalhadora. Mais detalhes podem ser encontrados em textos de Alencar, Amaral,
Bravo, Cardoso, Cesar, Iamamoto, Lopes e Raichelis, em: CFESS/ABEPSS, 2009.
137
mudanças não demandam simples vontades e atos isolados. Não se trata nem de voluntarismo
nem de determinismo. 74
O assistente social pode se integrar num esforço coletivo como categoria, propondo
direção alternativa àquela proposta pelos setores dominantes. Ou seja, o assistente social,
enquanto sujeito coletivo, expressão de uma categoria profissional, deve ser sujeito de suas
ações e pode, mesmo com determinados limites, pautar seu exercício profissional em uma
direção social condizente com os interesses dos trabalhadores. Essa possibilidade exige dele
atenção permanente, para que consiga analisar a correlação de forças presentes na sociedade e
nas organizações sociais, identificando aliados e adversários em face aos projetos que venham
a entrar em pauta e em disputa, posicionando-se, então, como sujeito protagonista diante do
que se apresenta.
Isso significa que o profissional deve se preparar não como simples técnico que sabe
manejar instrumentos, mas como intelectual capaz de decifrar o que se esconde por detrás de
suas ações de funcionário assalariado. Ou seja, pressupõe-se que, fundamentado na teoria
social crítica, ele se torne capaz de traduzir suas responsabilidades institucionais como
funcionário, imprimindo determinada direção social que atenda aos interesses da população
com a qual trabalha.
O desafio constante do profissional é responder às questões/demandas colocadas no
seu cotidiano pela organização que o contrata e pela população que se utiliza de seus serviços,
sob a forma de propostas, pautado naquela orientação de “ir além das rotinas institucionais e
buscar apreender o movimento da realidade para detectar tendências e possibilidades nela
presentes passíveis de serem impulsionadas pelo profissional” (IAMAMOTO, 1998, p. 21).
Se a constituição do profissional implica domínio para operar tecnicamente seus
instrumentos, responder às demandas colocadas vai muito além. Implica que, partindo da
apreensão crítica da realidade, o profissional consiga perceber as possibilidades e os limites
estabelecidos nessa realidade e, a partir daí, consiga criar propostas condizentes com o projeto
profissional com o qual se compromete.
Embora a burocracia institucional favoreça as ações repetitivas, heterogêneas,
imediatas, fragmentadas, espontâneas, próprias da vida cotidiana, esse jeito de ser, no entanto,
não indica que necessariamente precisem ser reproduzidas dessa forma ad aeternum. A
condição para a recriação do dia a dia deve se orientar por uma reflexão crítica que permita a
ultrapassagem da cotidianidade e da singularidade. É a “suspensão da cotidianidade que
74
O aprofundamento dessa análise pode ser encontrado em Iamamoto (1992).
140
permite ao indivíduo enriquecer-se, tornar-se mais consciente e motivado por exigências que
passam ser incorporadas à sua individualidade” (BARROCO, 2012, p. 72).
Os estudos sobre a reprodução social da sociedade capitalista e das classes sociais
constituem recursos teóricos fundamentais para o entendimento da profissão inserida em uma
totalidade sócio-histórica na qual se insere e se expressa e dos indivíduos com os quais
trabalhamos como partes integrantes dessa mesma totalidade. Pautar as ações profissionais
somente no que os olhos possam ver e no que o coração possa sentir poderá se constituir em
uma forma de o profissional reforçar o senso comum que é a forma de pensamento
predominante no cotidiano, acabando, ao final, por banalizar e naturalizar os fatos contidos na
situação-alvo de sua ação e intenção.
Essas referências são importantes para o entendimento de que o assistente social não é
ou não deveria ser um mero executor mecânico de normas e programas, mas sim “tradutor” de
políticas sociais com possibilidades de recriação na sua execução terminal, reinterpretadas à
luz das condições existentes (na instituição e no profissional) e das demandas da população.
Em outras palavras: não é preciso estudar quatro anos num curso de Serviço Social para
simplesmente entregar uma cesta básica, preencher uma ficha ou incluir o usuário numa lista
de acesso a um serviço. Mas é preciso estudar a vida inteira para dos serviços fazer meios de
realização de intenções pautadas nos compromissos assumidos num projeto profissional.
Ser capaz de criar o seu próprio texto no atendimento a indivíduos e grupos nos
organismos institucionais pressupõe não se contentar em ser mero ator que decora o papel de
uma personagem e o representa, todo dia, do mesmo jeito, e a cada atendimento que realiza. É
necessário também conceber os usuários dos serviços sociais como sujeitos portadores de
direitos, entendendo-os como sujeitos históricos.
A condição para que o profissional possa ser sujeito de suas ações pauta-se na postura
crítica diante da realidade, visando à criação de respostas e saídas de âmbito coletivo para
lidar com suas atividades cotidianas. Ou seja, não basta decifrar o que se esconde por detrás
de fatos, situações, atividades. É preciso ir além, no esforço de criar respostas profissionais a
partir da crítica. Essa é a tarefa presente que deve nos desafiar enquanto categoria dos
assistentes sociais, uma vez que o Serviço Social, na divisão técnica do trabalho, tem um
caráter interventivo. Isto quer dizer que do Serviço Social se esperam respostas e propostas
aos desafios e demandas que se apresentam. O tempo e lugar em que a política social foi
elaborada e o tempo e lugar em que é executada não são exatamente os mesmos. É possível
reinterpretá-la, dando-lhe novos significados e, portanto, imprimir-lhe outras possibilidades,
pensando na sua operação concreta.
141
Entendo que “as ordens” e as “tarefas” precisam ser decifradas, pois há vários jeitos de
realizá-las e, certamente, há um jeito de fazer que se alinhe mais às nossas escolhas
profissionais. A mesma atribuição pode ser realizada de vários modos, porque não há um
único jeito de ser profissional, cabendo a cada um de nós realizar escolhas. Esses vários
modos de exercer a profissão são expressões dos vários projetos profissionais, fundados em
concepções teórico-metodológicas e ético-políticas diversas. 75
Já dissemos que é preciso que o assistente social se veja como um sujeito que pode e
deve interferir na maneira de realizar as tarefas e atividades que lhe são atribuídas pela
organização que o contrata, imprimindo-lhe uma direção social, condizente com o projeto
ético-político profissional. Se é ingênuo dizer que o assistente social goza de total autonomia,
o que pressupõe ignorar as determinações presentes, é mecânico e cristalizado afirmar que ele
não tem espaço nenhum de negociação nas organizações que o emprega, cabendo-lhe apenas
o papel de “ator” ou “fantoche” a serviço do capital ou do trabalho.
Tratar, portanto, da seleção socioeconômica como forma e condição de acesso aos
serviços sociais é falar sobre a instrumentalidade que envolve a intervenção e a forma de sua
operação pelos profissionais nas organizações sociais, não de forma linear e única. Sua
apreensão comporta revelar seus fundamentos em vertentes do pensamento social
contemporâneo. Abordar e transmutar questões de âmbito sócio-histórico, tratando-as como
se foram de simples âmbito técnico, como é o caso das seleções de acesso aos serviços
sociais, pressupõe que haja reconhecimento da profissão como apta para preparar o
profissional para realizar tal competência.
O assistente social é contratado pelas organizações sociais e recebe um salário, porque
tem um saber que ancora sua intervenção, confirmado e reconhecido por um diploma de nível
universitário. Dessa forma, é visto como especialista por quem o contrata e pela sociedade,
por deter poder advindo do saber que lhe dá o direito de falar e atuar sobre o assunto de sua
especialidade e ser ouvido enquanto tal.
A qualificação da ação do assistente social se alicerça no fato de ser detentor de um
saber especializado. Entretanto, o que se espera dele é a intervenção, que se constitui em uma
mercadoria que as organizações compram quando empregam os seus veiculadores. O saber
profissional dá certa garantia de qualificação de respostas, para que as organizações, ao
transformar o profissional em seu funcionário, legitimem-se diante da sociedade e se
imponham diante dos usuários.
75
Como bem aponta Netto (1991a), no processo de renovação do Serviço Social brasileiro, este se torna plural,
ao incorporar, a partir de meados da década de 1960, as vertentes do pensamento contemporâneo.
142
76
Não nego com isso a concepção do Serviço Social inserido na divisão sociotécnica do trabalho, na qual se
apresenta com caráter eminentemente interventivo, mesmo quando participa da gestão e da elaboração de
políticas sociais.
143
em qualquer lugar e ser ouvido. Para tanto, é preciso ter o que dizer como especialista; isto se
impõe como condição para o exercício do controle, como poder de dominação.
O poder do discurso competente, enquanto discurso do conhecimento, emana do
reconhecimento e do prestígio da ciência de orientação positivista, ao oferecer a imagem de
que é possível determinar, manipular e prever totalmente o objeto que se estuda por meio de
procedimentos científicos nos quais as ideias de racionalidade e objetividade assumem lugares
centrais. Nesta perspectiva, as ideias de objetividade, racionalidade e poder passam a ser
inseparáveis, na medida em que a ideia de poder dominar teoricamente um objeto carrega a
ideia de poder dominá-lo praticamente. A noção de competência (poder para apreciar e julgar
questões, qualidade de quem é capaz) advém dessa autoridade sobre o assunto que esta
concepção de ciência lhe dá, a qual, aliada à noção de neutralidade da ciência, disfarça, por
sua vez, a sua relação com o poder. Transforma-se, no entanto, sob a noção de cientificidade,
em dominação (CHAUÍ, 2011, p. 45).
É nesse quadro que, como dissemos, os profissionais são contratados pelas instituições
por serem detentores de um saber de especialista, o que os torna também competentes e
merecedores de crédito para representar a instituição diante da população atendida. Amortecer
tensões, disfarçar e reiterar os poderes (do saber especializado e da instituição) pela vivência
de papéis e funções diferenciadas como agentes institucionais, estas são as formas como os
profissionais legitimam o controle como dominação. Comprometer-se, então, com os
interesses das classes subalternizadas pressupõe a construção do saber sob outros
fundamentos teórico-metodológicos e ético-políticos.
Iamamoto (2009a, p. 17), ao analisar criticamente as bases de sustentação do discurso
competente, propõe seu reverso: a competência crítica, “capaz de desvendar os fundamentos
conservantistas e tecnocráticos do discurso da competência tecnocrática”.
Essa autora considera que o discurso competente é crítico “quando vai à raiz e
desvenda a trama submersa dos conhecimentos que explica as estratégias de ação”
(IAMAMOTO, 2009a, p. 17). A competência crítica, nessa perspectiva supõe:
Qualquer que seja, [...] a razão cabível para [a] hipoteca da base profissional ao seu
lastro “científico”, o que é certo é que ela desconsidera o primordial, isto é, o
erguimento de uma configuração profissional a partir de demandas histórico-sociais
macroscópicas. O aspecto nuclear de uma intervenção profissional institucional não é
uma variável dependente do sistema de saber em que se ancora ou de que deriva; é o
das respostas com que contempla demanda histórico-sociais determinadas; o peso dos
vetores do saber só se precisa quando inserido no circuito que atende e responde a
estas últimas (mesmo que, em situações de rápidas mudanças sociais, a emersão de
novos parâmetros do saber evidencie implementações susceptíveis de oferecer inéditas
formas de intervenção profissional) (NETTO, 1996a, p. 83; grifos meus).
145
podemos ter como certo que nenhum governo, liberal, trabalhista, conservador ou
qualquer outro que administre o capitalismo, abolirá o means test sem reintroduzi-lo
sob outro nome ou como algo de efeito semelhante e igualmente desagradável. [Isto
porque] não exige muita análise para se ver por que a questão dos testes de meios é
vital para o capitalismo. [...] Por razões de estabilidade e segurança da propriedade,
os governantes devem fornecer algo para os trabalhadores cujos serviços não são no
momento necessários, mas devem ser cobertos de restrições, não permitindo que os
trabalhadores recebam de todas as fontes mais do que o mínimo que irá mantê-los
vivos (CAN THE MEANS TEST..., 1936, p. 7; tradução minha).
Tendo em vista essas observações, considero que, para entender o processo de seleção
socioeconômica que os profissionais realizam, é necessário levar em conta mediações de
várias ordens, porque não há atividade técnica em si mesma: a técnica é a expressão de
concepções teóricas e políticas em atos.
Teoria e prática caminham sempre juntas. Sem uma sólida teoria, não se faz
intervenção consequente e comprometida com os interesses das camadas sociais
subalternizadas. O projeto ético-político hegemônico da categoria dos assistentes sociais, do
qual o Código de Ética de 1992, as Diretrizes Curriculares e a Lei nº 8.662/93 são expressões
que não deixam dúvidas sobre a direção estratégica da ação profissional no sentido da luta
pela universalização de acesso às políticas sociais públicas. No entanto, mais do que nunca, os
agentes desta categoria profissional têm sido acionados para criar ou aplicar critérios seletivos
que reforçam a lógica da exclusão, sob o discurso de inclusão.
146
Após tratar nos capítulos anteriores dos fundamentos sócio-históricos que dão sentido e
utilidade à seleção socioeconômica na política social e na profissão do assistente social situadas
na sociedade capitalista, analisaremos e problematizaremos a seleção socioeconômica operada
no tempo presente pelos assistentes sociais, tendo como fundamentos os referenciais teórico-
metodológicos já expostos. Antes, apresentaremos como se deu a definição dos instrumentos e
do processo de escolha sujeitos da pesquisa empírica.
assim como o seu pertencimento a diversos grupos (políticos, religiosos, etc.), e mesmo outras
pertinências (nacionalidade, geração, religião, cultura, sexo, etc.) que permeiam o discurso e o
olhar, o que pode gerar, no entrevistador e no entrevistado, antipatias e simpatias,
preconceitos, dentre outras reações possíveis (LÖWY, 1998, p. 213).
Neste estudo, as entrevistas foram realizadas com assistentes sociais portugueses e
brasileiros, uma vez que o estágio realizado em Portugal, conforme já exposto, me abriu a
possibilidade de trabalhar sobre o meu tema de estudo, com profissionais dos dois países.
Desde o início do Serviço Social português, em 1935, até a entrada da década de 1990,
ou seja, pelo período de 55 anos, a formação de assistentes sociais se realizou em três
principais agências formadoras; o ISSSL, o Instituto Miguel Torga de Coimbra e o ISSS do
Porto, criado em 1956.
Martins (2002, p. 3), chama atenção para o fato de que, em tempos de ditadura, 77 não
se pode falar do Serviço Social de forma homogênea, identificado somente com o
assistencialismo e conivente com a opressão vigente, uma vez que existiam, certamente desde
1958, assistentes sociais que concebiam o Serviço Social de outra forma. A autora apresenta,
ao longo do texto, inúmeros exemplos de colegas que se comprometeram na luta social que se
travava para pôr fim à ditadura e às diversas formas de opressão existentes. A autora também
observa que um dos primeiros questionamentos das assistentes sociais
77
A autora se refere à ditadura que perdurou em Portugal por 41 anos (1933-1974). Esse período é denominado
“Estado Novo” e pauta-se pelo autoritarismo corporativista, constituindo-se em período de forte repressão.
149
No início dos anos 1970, sob influência da produção brasileira (Documentos de Araxá,
de 1967, e Teresópolis, de 1970), começa a haver um estreitamento de relação entre Brasil e
Portugal. Em ambos os países, surge um questionamento amplo acerca do Serviço Social
tradicional, uma vez que os ditos “métodos de serviço social de caso, grupo e comunidade”
não se mostram mais como suficientes para responder às novas demandas que a profissão
tinha que então responder.
Em Portugal, o acesso à problematização emergente no Movimento de Reconceituação
Latino-Americano do Serviço Social e ao New Social Work (BARTLETT, 1970, e KHAN, 1973,
apud BRANCO; FERNANDES, 2005, p. 6) traz muitas indagações e gera polêmica entre os
profissionais (BRANCO; FERNANDES, 2005, p. 6).
Ressalte-se que, de fato, a crise do Serviço Social “tradicional”, fundado no modelo
norte-americano de caso, grupo e comunidade e que vem à tona nos anos 1960, é um
fenômeno de âmbito internacional. O Movimento de Reconceituação Latino-Americano
(1965-1975) é uma resposta da profissão no sentido de se renovar, para conseguir responder
às demandas colocadas pela reordenação capitalista internacional, que impõem à América
Latina um estilo excludente e subordinado. 78 A profissão assume as inquietações e
insatisfações desse momento histórico e direciona seus questionamentos ao Serviço Social. O
Movimento fará com que o Serviço Social se repense a si mesmo em relação aos
compromissos assumidos até então. Esse processo, ao final, fará com que a profissão adquira
um traço plural, ao passar a conviver, em seu interior, com as principais vertentes do
pensamento social contemporâneo. A partir daí, não será mais possível falar da profissão de
uma única perspectiva, uma vez que o Serviço Social será fecundado pelas teorias sociais
existentes e presentes na contemporaneidade, de forma consistente.
O Movimento de Reconceituação, na especificidade do Serviço Social brasileiro é
denominado Renovação do Serviço Social (1964-1985), de acordo com Netto (1991a).
Em Portugal, embora nas leituras que realizei não apareça a designação de Movimento
de Reconceituação do Serviço Social português, o marco do 25 de Abril parece significar um
78
O Movimento de Reconceituação do Serviço Social é um processo de renovação que ocorre na profissão,
visando dar consistência ao arcabouço teórico-metodológico, uma vez que o Serviço Social sofre um processo de
erosão que não lhe permite responder às novas demandas enfrentadas pela profissão (NETTO, 1991a). Trata-se de
um Movimento de complexo entendimento que rebaterá no Serviço Social de cada país latino-americano com
certas particularidades, tendo em vista a sequência de rupturas e continuidades impostas pela realidade vivida,
quando vão se instalando governos ditatoriais, ao longo do período de 1965 a 1975. Não podemos desconsiderar
o papel da Teologia da Libertação como perspectiva da Igreja Católica que, informada pela perspectiva marxista,
assume o compromisso de lutar ao lado do povo no sentido de sua libertação, que também precisa ser citado,
tendo em vista a profunda relação que existia então entre Igreja Católica e profissão; assim como precisa ser
lembrada a forte influência de Paulo Freire no Serviço Social. Embora não seja objetivo deste texto aprofundar
essas relações, não enunciá-las poderia prejudicar o entendimento do tema (NETTO, 1991a).
150
divisor de águas, no sentido de fecundação do Serviço Social de uma forma abrangente, com
novas perspectivas teórico-metodológicas e ético-políticas, novas práticas advindas de novo
arsenal explicativo da realidade e novos compromissos assumidos.
Note-se que, quando a Revolução dos Cravos acontece, em abril de 1974, encontra um
Serviço Social já aquecido por intenso questionamento em relação ao papel que a profissão
deveria ter em sociedades subdesenvolvidas e nas governadas por ditaduras, mesmo porque
havia assistentes sociais que lutavam bravamente para pôr um fim ao regime ditatorial vigente.
O Serviço Social — até então identificado com o regime deposto pelo 25 de Abril — começa a
emergir em novas bases, impulsionado pelas demandas advindas do alargamento das funções do
Estado e pelas novas alianças que se estabelecem entre vários segmentos de profissionais e os
movimentos populares, dando origem a propostas inovadoras de intervenção, construídas em
parcerias com estes movimentos, e a novos campos de intervenção.
Após o 25 de Abril e no processo de democratização do país, as escolas de Serviço
Social de Lisboa e do Porto passam a se constituir como cooperativas de ensino (entidades
autônomas, sem fins lucrativos), autogestionárias e com direções eleitas. Desligam-se, assim,
da origem confessional e se tornam entidades de caráter laico (BRANCO; FERNANDES, 2005;
NEGREIROS, 1998).
Merece relevo ainda que, em 1995, são criados, em Portugal, os primeiros Programas
de Mestrado em Serviço Social, sob responsabilidade dos Institutos Superiores de Serviço
Social de Lisboa e do Porto. Atualmente, em Portugal, existem nove programas de Mestrado e
dois de Doutoramento em Serviço Social.
A Universidade Católica Portuguesa, na qual fui estagiária em 2010, implantou seu
Curso de Licenciatura em Serviço Social em 1996, e o Mestrado (2º ciclo) e o Doutorado (3º
ciclo) em Serviço Social em 2003.
É digno de nota, ainda, o fato de que, em 2006, o ISSSL, primeira escola de Serviço
Social em Portugal, foi incorporado à Universidade Lusíada de Lisboa, num processo que
79
A importância dessa medida jurídica decorre do fato de que o “[...] Decreto-Lei nº 30.135, de 14 de dezembro
de 1939, que estabelece as condições a que devia obedecer a formação em Serviço Social, estatuiu que Assistente
Social é o título autorizado por lei, exclusivamente, para os diplomados em Serviço Social, formação ministrada
até 1995, exclusivamente, pelos Institutos Superiores de Serviço Social de Lisboa, Coimbra e Porto. Conforme
estipula o art. 9º, o título de assistente de serviço social é privativo das diplomadas nos termos deste decreto-lei
[...] Decorrendo o uso da designação de diplomados do facto de, então, o ordenamento educativo não prever que
aos cursos ministrados em instituições particulares de ensino pudessem ser conferidos graus académicos”
(APSS/CES, 2009, p. 34; grifos no original).
152
custou muitas demissões e que, aparentemente, deixou um vazio até os dias atuais; pode-se
perceber que entre os assistentes portugueses há um sentimento de tristeza, quando se toca no
assunto “da extinção do ISSSL ”. O sentimento e a fala é a de que o ISSSL já não existe e que foi
extinta a primeira e a mais forte referência da história de Serviço Social de Portugal.
Em 2008, havia em Portugal 13.971 assistentes sociais formados no período de 1935 a
2008 pelos cursos portugueses de Serviço Social. Desse total, 4.540 foram formados pelas três
primeiras escolas de Serviço Social de Portugal, no período compreendido entre 1935 e 1992
(APSS/CES, 2009, p. 42).
Em 2009, existiam em Portugal 21 cursos formadores de assistentes sociais do 1º ciclo
(licenciatura em Serviço Social) que surgiram numa conjuntura de densa complexidade.
Entretanto, as principais e mais significativas agências formadoras de assistentes sociais
nesses 75 anos de institucionalização do Serviço Social português continuaram a ser o
Instituto de Serviço social de Lisboa, que surgiu em 1935, a Escola Normal Social de
Coimbra, de 1937 80, e o Instituto de Serviço Social do Porto, de 1956.
Destaque-se que,
Desde o início do Serviço Social português em 1935 até a entrada da década de 1990
— portanto, pelo período de 55 anos — a formação de assistentes sociais se realizou nas três
principais e já citadas agências formadoras. Só a partir da segunda metade dos anos 1990
começou a se dar a multiplicação de novos cursos de Serviço Social em Portugal, o que
provocou significativa alteração no quadro da formação em Serviço Social no país.
Em relação ao mercado de trabalho profissional, 82 a Segurança Social se constituiu
historicamente como área profissional “natural” dos assistentes sociais, e, até há quase bem
pouco tempo, quase exclusiva, na qual os profissionais exercem funções no âmbito de
diferentes programas de assistência social, participando, dentre outras ações, da
80
Esse estabelecimento de ensino é hoje designado por “Instituto Superior Miguel Torga”.
81
Ver mais detalhes dessa complexa discussão em: http://www.apross.pt/apssbo/upload/Assistente_Social_.pdf;
http://www.apross.pt/interna.php?idseccao=10; http://www.apross.pt/apssbo/upload/CarreiraTecnicosSupSS.pdf.
82
No relatório denominado “O campo profissional do Serviço Social: estudo sociológico tendo em vista a
Constituição da Ordem Profissional dos Assistentes Sociais”, elaborado pela APSS/CES como subsídio à constituição
da Ordem dos Assistentes Sociais e Portugal, obtive valiosos dados sobre a situação atual da profissão.
153
83
O site da APSS pode ser visitado no endereço eletrônico http://www.apross.pt.
84
O site da AIDSSP pode ser visitado no endereço eletrônico http://www.aidssp.com.
85
O site do CPIHTS pode ser visitado no endereço eletrônico http://www.cpihts.com.
154
posteriormente; mas, ao final, dada a riqueza dos testemunhos, a resolução final foi a de
incluir todas na análise da pesquisa. Com essa decisão, Portugal adquiriu um lugar maior no
estudo em relação ao que havia inicialmente estabelecido.
Devo salientar que a diversificação de áreas de atuação das entrevistadas não foi
intencional, mas considero que constituiu uma amostra aleatória significativa e muito rica.
Saliento ainda que, antes de cada entrevista, enviei ao entrevistado, via internet, o roteiro de
questões que serviria de base no encontro marcado (ver Anexo 2). Na oportunidade da
realização das entrevistas, solicitei às pessoas entrevistadas que preenchessem a ficha de
identificação do entrevistado (reproduzida no Anexo 1).
O material gravado de Portugal rendeu mais de 100 páginas de transcrição, tarefa a
cargo de uma portuguesa remunerada para isso. Levei em conta a facilidade que esta pessoa
teria para entender o sotaque das entrevistadas — que, por vezes, para uma brasileira, dificulta
a compreensão das falas — e a pouca disponibilidades que eu tinha para realizar pessoalmente
tal atividade. O meu papel foi a de ler o material e voltar às gravações para resolver dúvidas.
Após minhas correções, enviei às entrevistadas, de novo por internet, o produto obtido
nas entrevistas para o conhecimento delas e para a realização das alterações que porventura
desejassem assinalar. Recebi retorno somente de Alice, 86 que propôs pouquíssimas alterações
e assim se manifestou a respeito: “Foi bom ver escrito o que disse. Acho que você refletiu
bem o meu pensamento, ainda que em algumas respostas pouco claro, mas isso já é da minha
cabeça pouco arrumada.”
Na continuidade da pesquisa empírica no Brasil, através da realização das entrevistas
com assistentes sociais brasileiras, que ocorreu após ter transcorrido mais de um ano, pude,
nesse intervalo de tempo, categorizar melhor, analisar e amadurecer a apreensão da seleção
socioeconômica a partir do que havia conseguido com as entrevistas realizadas em Portugal.
Tendo em vista que meu objetivo não é apresentar um estudo de natureza comparativa
entre Brasil e Portugal, mas realizar a problematização da seletividade de acesso aos serviços e
benefícios sociais na sua operação concreta, considerei que não fazia sentido reproduzir no Brasil
o processo realizado em Portugal. O material obtido no primeiro momento era rico, as questões do
âmbito da prática da realização da seleção socioeconômica já estavam bem enriquecidas com sua
prática direta e havia muitos pontos comuns à realidade que conhecia do Brasil.
86
As assistentes sociais entrevistadas em Portugal são designadas de modo fictício, devido ao fato de que uma
delas não me autorizou a revelar seu nome real, temendo possíveis represálias. Nessas condições, optei por
alterar o nome das entrevistadas portuguesas. Em relação às brasileiras, preservei seus nomes, depois do
consentimento de todas. Entendo que citar os nomes das entrevistadas é ato de respeito e reconhecimento da
autoria das formulações de idéias expostas ao longo do capítulo.
156
No quarto bloco, desejei abordar como se deu a formação das entrevistadas para a
realização da seleção socioeconômica como atividade profissional do assistente social,
destacando como e onde haviam aprendido a fazer seleções ou estudos de avaliação
socioeconômica e quais haviam sido suas referências teórico-práticas. Pretendi ainda levantar
e explicitar uma pauta de temas a ser trabalhada na formação e na pesquisa no âmbito do
Serviço Social, visando à qualificação de sua realização na profissão, uma vez que já conhecia
a falta de bibliografia sobre o assunto. Compõem esse bloco as questões 11, 12 e 13 do Anexo
2 e o item 1 do Anexo 4.
As questões foram formuladas de forma direta, mas abertas, com o sentido de
apreender como as atividades desenvolvidas pelos profissionais se traduziam em experiência e
prática efetiva no que diz respeito à realização da seleção socioeconômica.
A seguir, apresento a análise do material obtido com as entrevistas realizadas.
Quem são, como e onde os assistentes sociais pesquisados aprenderam fazer a seleção
socioeconômica? Como entendem a utilidade sociopolítica dessa atividade profissional? Qual
é o significado atribuído as ela? Quais são os desafios vividos pelos assistentes sociais no
âmbito de sua formação, da pesquisa e do próprio exercício profissional, em relação à seleção
socioeconômica nos espaços sócio ocupacionais da profissão?
Neste capítulo, as assistentes sociais entrevistadas comentam suas experiências, suas
reflexões, suas dúvidas e certezas, os desafios com os quais se deparam na docência e no
exercício da profissão nas organizações sociais que contratam seu trabalho.
Da mesma forma falam das respostas e das estratégias criadas que sempre são
pautadas em projetos de âmbito societário e do entendimento que têm acerca da realidade
social e das possibilidades de alterá-la. Através de suas palavras, expressam modos de ser e
existir da categoria dos assistentes sociais, em Portugal e no Brasil.
Neste momento, ao estabelecer um diálogo entre as assistentes sociais brasileiras e
portuguesas entrevistadas, pretendi apresentar um exame acerca do objeto de estudo, em meu
papel diferenciado de pesquisadora, no contexto da contribuição à análise crítica. Procuro
assim organizar e articular as análises que todas nós pudemos conjuntamente produzir nas
entrevistas realizadas sob as formas individual e coletiva.
160
Tília, cujo trabalho é supervisionar assistentes sociais, embora nunca tenha atuado na sua
realização, refere-se a essa atividade, especificamente, como “acesso/não acesso” ao recurso
financeiro. Ela exprimiu durante o tempo todo da entrevista forte desejo de tirar o assistente social
do lugar burocrático onde hoje se encontra na realização do RSI. Mas, talvez por não reconhecer
que o assistente social se insere em processos de trabalho na condição de funcionário assalariado
das organizações sociais, que impõem limites à intervenção, acaba por culpabilizar unicamente os
profissionais, por não levarem sua intervenção para além da seleção (penso que ela se refere ao
fato de que o assistente social se mantém na dimensão burocrática do atendimento). Ao não
expressar a contraditoriedade presente nesse movimento, acaba por considerar suficiente haver o
desejo ou vontade de dar novo rumo à prática, sem levar em conta as condições e possibilidades
objetivas presentes na realidade que na atualidade.
Fátima, assim como as demais, gostaria de atender a todos, mas, como não pode, põe-
se a pensar sobre “quem teria mais direito”, fazendo-a concluir que a realização de seleção
socioeconômica se apresenta como “atividade desagradável, incômoda e frustrante”.
Alice se manifesta, dizendo que, para ela, é penosa e árdua a realização da seleção,
mas seus questionamentos se dirigem primeiramente à dificuldade de entender as solicitações
trazidas pelos demandantes de serviços sociais, que, por vezes, adotam uma perspectiva
individualista. Ela considera que, entretanto, é preciso ir além dos fatos objetivos
apresentados, fazendo-os entender que alguns não são atendidos por falta de recursos
disponíveis, de forma que, num outro momento, possa refletir com eles sobre “o porquê de
não haver os recursos necessários para atender a todos”. Assim procedendo, reconhece que
faz um trabalho político, e é assim que considera que deve ser tratada a questão.
Fátima problematiza a questão, afirmando que não basta ter acesso à universidade: é
preciso dar apoio para que os alunos possam permanecer nesta, e seu trabalho, embora
voltado basicamente para a seleção socioeconômica, deve estar aberto para atender a todos os
alunos que apresentem, a qualquer momento, dificuldades para continuar os estudos.
Ela, no entanto, admite que seja possível obter alguma recompensa profissional de
algo que não é tão agradável de realizar, como a seleção socioeconômica.
— É muito agradável, por exemplo, ver algum aluno num curso e que
nos escreva uma carta em que diz: “Terminei o meu curso; muito
obrigado pelo apoio que me prestaram, se não tivesse tido direito, se
não me tivessem atribuído uma bolsa de estudos, eu não poderia ter
feito o meu curso.” É evidente que, embora o processo de seleção seja
sempre um processo desagradável, ele tem que ser feito, e nós temos
consciência disso. E isso é agradável que... Se não houvesse
possibilidade de atribuir estes apoios, muitos dos alunos não poderiam
estudar, ficariam pelo caminho — e não só em termos econômicos,
mas também muitas vezes noutros aspectos. Por exemplo, o apoio
psicológico que nós damos aqui, alguns alunos têm algumas
dificuldades que não são só econômicas. Mas pronto, nesse aspecto
estamos a falar das questões seletivas.
socioeconômico”, dirigiu seu esforço para demonstrar naquele lugar que o assistente social
era preparado e podia fazer muito mais naquele lugar onde atuava.
Isaura chega a dizer que trabalhar no Plantão Social, que tem na triagem e na seleção
socioeconômica uma de suas principais marcas, durante muito tempo foi visto e considerado
pelos assistentes sociais como um castigo. 87
A resistência do Serviço Social quanto a assumir o lugar em que foi colocado acabou
por levar Isaura e Regina a proporem e assumirem novas frentes de trabalho. Isaura conta:
87
É fato amplamente conhecido na categoria profissional que, durante dois longos períodos (na ditadura militar e
depois do término da administração da prefeita Luiza Erundina de Souza), na Prefeitura Municipal de São Paulo,
os profissionais considerados “de esquerda” não eram bem vistos pela administração superior e/ou por chefias
imediatas, devido à sua atuação política como lideranças. Assim, eram colocados no “Plantão” como castigo,
uma vez que nenhum profissional competente ou compromissado iria para lá de boa vontade ou por escolha. Lá
também eram colocados os profissionais que se encontravam em readaptação profissional, porque tinham
apresentado problemas de competência em outros setores. O “Plantão” era considerado, portanto, o pior lugar, o
lugar de castigo, e sinônimo de assistencialismo. Depois, graças à atuação de colegas mais politizados nesse
setor, teve início, em vários locais, atendimento coletivo e mais qualificado nesse espaço de atuação de
assistentes sociais.
165
— [...] existe porque não tem para todo mundo. Exatamente porque, se
não tem para todo mundo, deixa de ser um direito universal e passa a
ser um direito só para alguns.
Para Alice, dessa referência à contradição entre direito de todos e direito de alguns
decorre um significado importante da seleção:
Aqui comparece a ideia de que a seleção é um disfarce, porque sempre cria nos
sujeitos a expectativa de apoio e atendimento, sem que o acesso seja, de fato, de antemão,
universal. Assim, a seleção mostra-se como forma de gestão e controle da situação da falta de
acesso para todos, na mesma perspectiva do entendimento que vimos adotando nesse estudo.
Luísa já não tem tanta certeza a esse respeito. Surpreende-se e procura refletir melhor.
Embora de imediato tivesse dito que não sabia, logo a seguir começa a pensar em voz
alta, para afirmar que a seleção existe para racionalizar o uso dos recursos, ou seja, para
empregar bem os escassos recursos disponíveis. Desconfia, porém, que há algo escondido
referente a interesses de que suspeita, embora reconheça não saber quais são. Aí abandona a
busca de resposta nessa direção, e, imediatamente, sua fala passa a espelhar certeza em
relação à sua utilidade. Luísa até propõe saídas:
— [...] Eu creio que tem que haver uma seleção socioeconômica, não
da maneira que existe hoje, que é demasiado rígida, e que aí provoca
um nível de desigualdade muito grande. Porque cada vez mais os
critérios são muito grandes, são enormes, são de um volume muito
grande e que levam a que haja uma determinada desigualdade...
167
Aqui parece que é a rigidez da seleção que provoca desigualdade, ou seja, cada vez
que se enrijece o processo e se aumentam as exigências, mais excludente se torna o acesso.
Luísa pensa que para dar acesso de fato, seria necessário rever e flexibilizar os critérios.
Apoiamos esta hipótese da entrevistada, acreditando que é certo que, quanto mais
critérios estiverem presentes no processo, mais complexo e, portanto, mais seletivo se torna o
processo de decisão quanto ao acesso. Na atual conjuntura portuguesa, essa parece ser a
finalidade do aumento de critérios: o maior controle no acesso.
Luísa reitera a importância da seleção socioeconômica, agora ao nível da prática
profissional, indagando: se tal seleção não existisse, como se realizaria a escolha de acesso?
Reconhece que, sem ela, o processo ficaria mais vulnerável e, sujeito ao poder das influências e
pressões políticas, provocaria “maior desigualdade” (talvez quisesse dizer “maior injustiça”).
— Se uma pessoa tem expectativas, isso faz parte do seu plano, de sua
aspiração de realização pessoal. Portanto, uma pessoa que vem pedir
ajuda, e nós, se nós tivermos níveis de avaliação muito baixos... Ela diz
que quer estudar, quer ir para a universidade, ou quer... E nós, quer
168
—Os que vivem na cidade têm a sua casa própria, têm a sua horta
própria, etc. É verdade que, possivelmente, essas pessoas do campo
também não têm aspirações e bens e expectativas como as pessoas da
cidade têm. As pessoas da cidade têm expectativas de vestir de
determinada forma, de viver de determinada forma, etc. E isto, a mim,
faz-me alguma dificuldade, mas eu acho que os critérios de seleção
devem ter em conta estas múltiplas realidades e não só critérios de
natureza estritamente econômica.
169
— [...] este estudo não pode ser só econômico, tem que ter mais
vertentes, tem que ser avaliado por outras áreas que não só a questão
das rendas, a questão dos rendimentos, não só os per capita. Tem que
se perceber também as questões sociais, as redes sociais, os apoios
sociais. Eu lembro-me, por exemplo, de uma das questões que nós
pomos aos alunos quando fazemos a entrevista, que é se eles se
consideram carenciados. Eu lembro-me que uma vez tinha aqui uma
aluna, mãe de três filhos, divorciada, sem apoio nenhum do ex-
marido, com uma situação econômica gravíssima. E, quando eu lhe
perguntei se ela se considerava uma aluna carenciada, ela respondeu:
“Carenciada, não. Olhe, tenho uma rede de amigos que me apoia em
todos os aspectos, os vizinhos vão buscar os meus filhos aos colégios,
ficam com os meus filhos em casa quando eu estou nas aulas. A
roupa, eles não têm roupa de marca, também não precisam, têm outra,
estão quentinhos na mesma. Os brinquedos, não têm os brinquedos
‘X.p.t.o.’, 88 mas têm brinquedos. E eles não pedem, porque até já
sabem que eu não posso... Eu não me considero uma pessoa
carenciada, sou uma pessoa rica de afetos, de rede social, de apoios.
Portanto, é evidente que eu preciso do apoio para pagar as propinas
[refere-se às mensalidades], para pagar os meus estudos. Mas
carenciada eu não me sinto.” Em contrapartida, tenho outros alunos
que vêm aqui com um carro do último grito, e, quando se pergunta
“Então, você acha que é um aluno carenciado, precisa do apoio da
bolsa para fazer o seu curso?”, respondem “Ah, sim, sim! Preciso
muito.” “Mas precisa por quê?” “Porque não consigo comprar os
livros todos que eu quero, não consigo.” Estás a ver? A própria pessoa
tem formas de estar diferentes e projeta a sua própria necessidade de
maneiras diferentes e depois... Por isso, acho que esta avaliação coloca
algumas pessoas no sitio certo, mas não as coloca todas.
88
Sigla que designa a excelência ou alta qualidade de um produto.
170
Ela, assim como nós, também entende que os direitos sociais existentes foram obtidos
por meio das lutas empreendidas pelos trabalhadores, que não são, portanto, simples doações
e que, na atual conjuntura, a dramática a perda dos direitos conquistados vem ocasionando
sérios danos à qualidade de vida, anteriormente alcançada, daqueles que dependem do
trabalho para viver.
Luísa, que na entrevista se colocou mais como funcionária e técnica, como ela mesma
se reconhece, apresenta uma compreensão baseada na experiência de funcionária da
organização e no que ouve dizer no cotidiano e na imprensa de massa. Ela demonstra grande
173
— Eu, por acaso, creio que a questão não está por aí, está antes disso.
E agora vamos nos situar ao nível do Rendimento Social de Inserção e
daquilo que eu conheço. Eu, de alguma forma, também percebo a
perspectiva do Estado, e eu, enquanto assistente social, de alguma
forma, eu partilho das circunstâncias, porque nós temos os indivíduos
que recorrem ao Rendimento Social de Inserção porque estão
verdadeiramente numa situação de privação, e que estão numa
situação de desemprego, e que estão efetivamente numa condição de
pobreza. Mas depois temos também outro número significativo
daqueles que estão para além dessa situação, mas que o sistema não
consegue filtrar e que também usufruem. E por isso eu percebo que, se
um indivíduo está numa situação de desemprego, não tem qualquer
benefício e precisa do Rendimento Social de Inserção, para ele é o
mínimo. [...] Nós temos a consciência de que essa forma de seleção
não leva em conta todos os aspectos da vida do indivíduo, leva uma
parte, e, de alguma forma, isso nalgumas situações é muito frustrante,
sobretudo quando um indivíduo fica excluído da situação.
Fátima, que analisa a realidade do ponto de vista da utilidade e a partir dos limites
impostos pela conjuntura de contenção de gastos pelo Estado e da perda de direitos —
situação essa fortemente sentida e presente em todas as entrevistas que realizei em Portugal
—, detecta a presença de processos maiores presentes. Ela se manifesta a respeito das relações
entre estudos socioeconômicos e direitos sociais:
trabalham e de suas próprias vidas. A situação atual é percebida de forma tão grave, ao trazer
mudanças significativas, que torna-se difícil para as entrevistadas ter clareza ou manter
objetividade diante do forte impacto emocional em que vivem.
Fátima expressa e reconhece a crise através das mudanças que vêm ocorrendo nas
normatizações do Ministério da Educação, o qual impõe o manejo dos critérios de forma mais
estrita, e no empobrecimento das famílias que se veem endividadas e angustiadas por não
saberem como sairão da situação em que se encontram. Dessa forma, ao mesmo tempo em
que critica o aumento de restrições ao acesso ao benefício, entende a necessidade dos
processos seletivos. Eis como exprime sua apreensão acerca do objeto-alvo da nossa reflexão
no momento atual:
Nas falas de Eunice e Tília podemos perceber que há uma preocupação, presente no
Serviço Social português como no brasileiro, em colocar a profissão em um lugar mais
qualificado, sendo que em relação à seleção socioeconômica merece destaque o sério
questionamento apresentado pelas entrevistadas ao tratar a sua operação reduzida à simples
equações matemáticas de soma e divisão e ao preenchimento de “X” em formulários.
Essa ideia é reforçada por Alice, que já trabalha noutra direção, ou mesmo por Fátima,
que propõe cuidados e atenções na direção de contemplar as diversas situações apresentadas
pelos demandantes dos serviços e benefícios sociais.
Eunice, que vem pesquisando e escrevendo sobre o estudo social no Serviço Social
brasileiro que se realiza no âmbito do Judiciário, avalia e se posiciona claramente contra a
179
Esse parecer indica o posicionamento político claro de que os assistentes sociais não
devem atuar em processos seletivos nos quais não tenham qualquer poder de decisão.
Significa dizer que os assistentes sociais não deveriam trabalhar em simples triagens quando
solicitados a intervir só para verificação de documentos e lançamento de dados em fichas e
planilhas, tendência forte nos dias atuais, tendo em vista o processo de informatização que
integra os processos de trabalho. E, para Eunice, há ainda outros motivos:
Eunice reforça o depoimento anterior de Luísa a esse respeito: hoje, faz parte da rotina
do assistente social, nas organizações sociais, o preenchimento de fichas, planilhas e
questionários, assim como introduzir informações no computador ou mesmo realizar o seu
preenchimento on-line. Se, a priori, não há problemas em realizar essas tarefas, mostra-se como
questão séria e preocupante assistirmos hoje a forte tendência à burocratização do atendimento,
quando só o produto passa a ser valorizado, em detrimento do processo de atendimento, sempre
tão valorizado desde o início da profissão. Com isso, o profissional perde a dimensão da
180
possibilidade de realização de um trabalho que possa interferir na forma de ver, pensar e agir da
população atendida, tendo em vista seus interesses como classe subalternizada.
Nas entrevistas realizadas com as brasileiras, aparece ainda a discussão sobre a
natureza da seleção socioeconômica do ponto de vista instrumental. Regina, que também vem
pensando e escrevendo sobre o estudo socioeconômico há algum tempo, afirma que é
necessário fazer uma distinção entre o estudo social e a seleção socioeconômica:
Isaura, outra professora brasileira que vem pensando a respeito, participa do debate,
reafirmando a necessidade de distinguir seleção socioeconômica e estudo social, porque são
usados em situações e contextos diferentes. Ela apresenta exemplos esclarecedores:
decisões são muito mais definitivas; você não revê... Você revê se
houver denúncia. A guarda da criança, se pode adotar ou não, é muito
mais definitivo.
Eunice e Graziela, que também têm experiência prática a esse respeito, acrescentam
ao debate que, no Judiciário, a seleção socioeconômica quase não se aplica como instrumento
de trabalho, pois não se trata de decisão circunscrita ao âmbito do assistente social. No
Judiciário, o estudo socioeconômico é realizado tendo em vista a emissão do parecer social
para a apresentação do laudo ao juiz, constituindo-se sempre em parte integrante de um
processo judicial, podendo envolver outros profissionais na análise da situação, mas ao final,
caberá ao juiz dar a palavra final. Nesse âmbito de ação, há uma tramitação já traçada para
garantir o direito de acesso ou o acesso ao direito, e são vários os cuidados que devem ser
observados pelo profissional na sua elaboração. 89 Trata-se de decisões quase sempre
definitivas, que comprometem decisivamente o futuro das pessoas envolvidas.
benefícios sociais, pois nesse ato está o fundamento básico dessa atividade profissional, ao se
colocar em questão as escolhas e a decisão sobre o acesso/não acesso dos candidatos aos
serviços e benefícios sociais.
As decisões profissionais são atos de poder, que envolvem sérias questões no âmbito
da ética e da política, tais como a liberdade e a autonomia, mesmo que relativas. Todo
processo decisório é indissociável da prática da liberdade: “Para poder opinar, é preciso que o
profissional tenha liberdade para decidir sobre os caminhos que o levarão à formação de tal
opinião” (MIOTO, 2001, p. 149).
Embora as decisões profissionais relativas à seleção socioeconômica sejam pautadas
por critérios estabelecidos, acabando por tornar a autonomia profissional relativa, o exercício
da liberdade e da autonomia profissional deve ser valorizado e estar presente em qualquer
apreciação e avaliação que o assistente social realiza acerca das situações apresentadas pelos
demandantes dos serviços e benefícios sociais, conforme informam os compromissos sociais e
profissionais indicados no Código de Ética dos Assistentes Sociais de 1993. 90
Chauí (2002, p. 309), ao tratar das características do sujeito ético, observa que “a
liberdade não é tanto o poder para escolher entre vários possíveis, mas o poder de
autodeterminar-se, dando a si mesmo as regras de conduta”. A liberdade assim concebida
exige, do ponto de vista da ética, que se faça a distinção entre passividade e atividade diante
das questões que se colocam ao sujeito.
Passivo é aquele que se deixa governar e arrastar por seus impulsos, inclinações e
paixões, pelas circunstâncias, pela boa ou má sorte, pela opinião alheia, pelo medo
dos outros, pela vontade de um outro, não exercendo sua própria consciência,
vontade, liberdade ou responsabilidade. Ao contrário, é ativo [...] aquele que
controla interiormente os seus impulsos, suas inclinações e suas paixões, discute
consigo mesmo e com os outros o sentido dos valores e dos fins estabelecidos,
indaga se devem e como devem ser respeitados ou transgredidos por outros valores e
fins superiores aos existentes, avalia sua capacidade para dar a si mesmo as regras de
conduta, consulta a sua razão e sua vontade antes de agir, tem consideração pelos
outros sem subordinar-se nem submeter-se cegamente a eles, responde pelo que faz,
julga suas próprias intenções e recusa a violência contra si e contra os outros. Numa
palavra, é autônomo e, como tal, verdadeiramente livre (CHAUÍ, 2002, p. 309).
Para escolher, é determinante que haja autonomia do profissional, tendo em vista que a
decisão exige que o profissional emita uma opinião profissional fundada em preceitos teórico-
metodológicos e ético-políticos. O que é autonomia?
90
Outros elementos dessa discussão podem ser encontrados em Barroco e Terra (2012).
183
A palavra autônomo vem do grego autos (“eu mesmo, si mesmo”) e nomos (“lei,
norma, regra”). Aquele que tem o poder para dar a si mesmo a regra, a norma, a lei é
autônomo e goza de autonomia ou liberdade. Autonomia significa
autodeterminação. Quem não tem capacidade racional para a autonomia é
heterônimo, palavra que vem do grego hetero (“outro”) e nemos (“receber do outro a
norma, a regra ou a lei”) (CHAUÍ, 2002, p. 309).
Entendo que as definições de Chauí cabem tanto no caso do assistente social como ser
singular, quanto no seu pertencimento à categoria profissional que o torna um sujeito coletivo
e como cidadão. Quando um assistente social fala, a profissão manifesta-se.
Não estamos tratando aqui da liberdade e da autonomia na perspectiva liberal do
indivíduo jogado à sua própria sorte e decisão, mas como possibilidade de o assistente social
se afirmar enquanto sujeito que tem o que dizer, o que implica lidar com as contradições
existentes, dando-lhes clara direção social, posicionando-se a favor daqueles que dependem
do trabalho para viver.
Com essas considerações, não estamos querendo dizer que o assistente social, nas
organizações que o contratam como funcionário, possa agir orientado unicamente por sua
vontade, pois é preciso considerar sempre o contexto sócio-histórico em que a ação
profissional se realiza —, mas que ele age sempre pautado por determinada posição política
estratégica, na qual funda sua autonomia.
Quero, dessa forma, contrapor-me à postura profissional que pretende se
desresponsabilizar das decisões tomadas ou endossadas pelo assistente social que, alicerçada
na submissão, se afiança na afirmação “eu estava simplesmente cumprindo ordens”. Embora
não exima o profissional das responsabilidades assumidas e das consequências advindas dessa
forma de escolha, é preciso caminhar para além da ação profissional pautada na passividade
da simples obediência.
No Brasil, o projeto ético-político é coletivo e se expressa através do Código de Ética,
da Lei que Regulamenta a Profissão e das Diretrizes Curriculares de Abepss, que se
constituem em instrumentos fundantes da autonomia do profissional diante das organizações
sociais e dos usuários. Os princípios e valores com que nos comprometemos foram de escolha
coletiva e estão claramente consignados nesses instrumentos de luta da profissão. As decisões
profissionais devem se pautar, portanto, por referências nas quais, ao se colocar como
especialista no exame das expressões da questão social, o assistente social encontra os
elementos que afirmam o projeto profissional com o qual se compromete.
A decisão do assistente social como atribuição profissional refere-se à ação de
escolher, de decidir a partir de referências teórico-metodológicas, ético-políticas e técnico-
184
social deixar de operá-la, outras profissões poderão vir a assumir sua execução, porque tem
utilidade social e política fundamental, no sentido de legitimar as desigualdades sociais.
É preciso, então, indagar se é possível, reinterpretá-la, visando atender o interesse dos
trabalhadores no acesso aos serviços sociais, nesse momento em que a focalização das
políticas sociais é reforçada. Isto é: qual deve ser o nosso papel diante desse fato? Que lugar é
possível construir na sua formulação e na sua operação concreta?
Oliveira (2007, p. 2), ao indicar as diretrizes orientadoras do estudo social e do estudo
socioeconômico, explicita e indica o que o assistente social deve saber e abordar na leitura das
situações-alvo de sua avaliação e decisão. A autora indica que os estudos devem ser pautados por:
Diante dos desafios aqui expostos, podemos perceber quanto já sabemos e quanto
ainda há a percorrer para que a categoria dos assistentes sociais possa realizar um trabalho
mais crítico e qualificado, teórica e politicamente situado nos estudos socioeconômicos em
geral e nos de cunho avaliativos, em especial.
Regina, assistente social, reflete sobre nosso papel profissional nesse âmbito:
O assistente social afinal realiza a seleção e os estudos nesta implicados orientado por
suas leituras acerca das configurações socioeconômicas apresentadas pelos candidatos, à luz
dos critérios, pautado na sua compreensão sobre tais configurações. Nesse processo, pesam
também como o profissional percebe e usa o seu poder de decisão e como entende e exerce a
sua autonomia profissional, dada e conquistada.
Se a análise é substantiva, a avaliação é valorativa, pois implica atribuir valor ou
merecimento às coisas e situações, alvos de nossa atenção. Destaque-se que tal avaliação
acarreta fundamentalmente atribuir valor a coisas e processos. Ou melhor, é olhar e considerar
os objetos, alvos da avaliação, filtrados por valores.
Nesse sentido, é preciso problematizar, o que significa dizer que toda seleção é fruto de
avaliações e, portanto, permeada por valores claros ou não. São os valores envolvidos que
permitirão elevar e engrandecer determinados aspectos e desconsiderar outros, pois é o valor
que nos permite sair da indiferença, dando cor e vida às situações que se colocam à nossa frente.
O saber assimilado e os compromissos assumidos pelo profissional, ao final, indicarão
a direção do que olhar e o que considerar nas avaliações, diante da situação com a qual se
depara, quando alguns aspectos serão marcados com cores vibrantes, outros com tons suaves e
delicados, aparecendo assim o vermelho da vida, o preto da morte e o roxo da dor, assim
como ficará invisível, sem valor, aquilo que não mereceu atenção, pois há elementos que,
embora presentes no real, não são percebidos e considerados na análise e na avaliação.
Não é possível, na relação do sujeito diante do objeto que se coloca sob o seu olhar,
haver indiferença, ou seja, considerar as situações com as quais se depara o sujeito como sem
cor, sem cheiro, sem gosto, portanto com neutralidade. A indiferença, ou o não valor, sempre
significa não dar importância àquilo com o que se depara o sujeito. E assim tudo continua
como sempre foi, porque somos indiferentes ao que se passa à nossa volta. É preciso treino
para se desenvolver um olhar que repara nos detalhes, buscando enxergar o que esconde por
detrás destes. As construções teóricas se colocam como instrumentos disponíveis que
oferecem sustentação para essa postura profissional.
Comprometida com a atribuição de valores às situações, a avaliação está diretamente
vinculada aos compromissos ético-políticos da profissão, assumidos pelos profissionais como
sujeitos coletivos. Em toda seleção socioeconômica estarão presentes, de forma consciente ou
não, noções daquilo que o profissional entende por justiça, direito e igualdade.
O acesso pode ser concebido como direito de cidadania ou como doação. O indivíduo
pode ser visto como pobre ou como integrante das classes sociais, assim como a profissão
pode ou não ser entendida inserida na divisão social e técnica do trabalho. Essas noções
188
aparecem nas indagações e nas respostas às perguntas do tipo: o que é mais justo? Quem
precisa mais? Quem tem mais direito? Quem deve estar dentro do acesso? Somente quem
disse a verdade tem direito? O que esconde sob a alegada mentira? É justa a reserva de vagas
na universidade para os negros e nos concursos públicos para pessoas deficientes? Por quê?
Quem tem celular, tênis importado, carro, compra papinha da Nestlé para o seu filho tem
menos direito que os demais candidatos? É justo fiscalizar a vida, invadir a privacidade da
vida do indivíduo em um processo seletivo? Qual é o significado do que está escrito nos
regulamentos e nos critérios estabelecidos?
Aparecem também quando se pergunta: que justiça é essa? Para quem? Interessa a
quem? Serve a quê? Que igualdade é essa que deixa tantos de fora do atendimento, jogados à
própria sorte? É possível alterar esse quadro injusto? Como o assistente social deve lidar com
as contradições entre o que vê e enxerga e como considera o que deveria ser?
O profissional, ao realizar a seleção de acesso, defronta-se e tem que lidar com vários
conflitos de natureza moral, que acabam por colocar à prova seu senso de justiça e a
legitimidade das suas próprias escolhas. Quando se instaura o conflito moral, o profissional
fica se perguntando sobre o que fazer e o melhor jeito que teria de resolver o dilema.
A seguir, as entrevistadas são chamadas a falar de suas reflexões, inquietações e
experiências construídas sobre essas referências, destacando-se o papel dos critérios a partir
de suas inserções na categoria dos assistentes sociais.
Fátima, uma das entrevistadas, aborda essa questão de maneira clara, quando explica
que, no processo de seleção, por vezes, se depara situações em que as informações trazidas
pelos candidatos lhe geram dúvidas sobre a sua veracidade, mas, diante do fato de não
enxergar caminhos de resolução, fica impotente. Ela tem tido que se perguntar
constantemente como lidar com a corrupção que atravessa a sociedade e que também aparece
nos processos seletivos.
A situação é partilhada por Luísa, ao traçar um quadro das dificuldades com que se
depara para elaborar um “verdadeiro” diagnóstico diante das contradições presentes na
obtenção de informações. Em uma realidade contraditória, pergunta-se sobre o que fazer.
Essas situações, que desafiam nosso senso de justiça, levam à indagação sobre como
devemos nos portar diante delas. Diante de nossa impotência, que fazer?
Alguns profissionais respondem a esses incômodos, saindo do seu papel de assistente
social, assumem o papel de “juiz” e “fiscal” e passam a agir baseados no senso comum e na
sua intuição. Tratam a questão social como questão moral, ao não reconhecer nessas ações
estratégias utilizadas pelos candidatos para conseguir o acesso ao serviço ou benefício social
pleiteado. Pretendem fazer justiça “com as próprias mãos”, através da seleção que premia os
corretos e exclui aqueles que faltam com a verdade.
190
não tinha direito a nada. Nós ficamos chocadas, porque achávamos tão
baixo e como é que elas já não davam apoio a essas capitações tão
baixas? Depois havia outros... Pronto, precisamente é preciso pensar
esta questão porque nós todos temos valores diferentes; temos formas
de estar diferentes. [...] Capitação é a renda por pessoa, por elemento
do agregado familiar, per capita, capitação, per capita, exatamente.
Aquele serviço, por exemplo, achava que quanto mais filhos o
agregado tivesse mais baixava a capitação. E nós dizíamos, mas como
é que tu estás a baixar tanto a capitação? “Porque as roupas dos mais
velhos passam para os mais novos, os sapatos passam para os mais
novos” e porque não sei quê. E nós dizíamos, “como é que vocês
fazem as contas assim?” Como é que eles podiam fazer as coisas
assim? Eles diziam que podiam. O fato de cada um de nós ou cada no
seu serviço ter as suas próprias regras...
Podemos perceber que os critérios nem sempre estão claramente definidos pelas
organizações. Ou, mesmo em situações em que o estejam, o profissional pode escolher,
portando-se de forma “mais realista que o rei”, quando utiliza seu poder de decisão, o livre-
arbítrio, para tratar cada caso na sua especificidade. Resolvendo fazer justiça a seu modo,
colocando-se frontalmente contra os interesses dos usuários, coloca-se na defesa da
moralidade, reiterando, assim, valores profundamente conservadores. Às vezes, ajudar no
acesso ao serviço social é o profissional não complicar e atrapalhar com detalhes que fogem
do foco em pauta.
Fica evidenciado através desses exemplos e de outros tantos, exibidos no decorrer
deste capítulo, da importância de refletir sobre o poder profissional presente nas ações
profissionais cotidianas que se apresentam sob a forma de diversas posturas.
Há necessidade de repensar o poder profissional à luz de referências mais claras. É
indicado que no Serviço Social haja estudos e pesquisas que coloquem às claras a questão das
decisões profissionais e dos valores envolvidos nos estudos sociais e nas seleções
socioeconômicas, conforme já indicado. No momento, perguntamos: devemos defender o
horizonte de que os critérios devem ser de decisão de cada profissional? Quais são as
implicações desse posicionamento a favor ou contra ele?
Graziela faz uma avaliação do período que iniciou o trabalho na Prefeitura de São
Paulo, época em que a política era mais definida, mais transparente e de mais fácil operação.
Quando, porém, não há nem critérios e nem processo seletivo estabelecido, é preciso criá-los,
para que o trabalho profissional tenha visibilidade.
— A política parece que era mais definida, então, quando você ia fazer
estudo social para conceder autorização para uma viúva ficar com um
192
ponto de banca de jornal, [...] isso era claro; era para deficiente físico,
deficiente visual, para viúvas, para pessoas pauperizadas. Parece que as
definições eram mais claras. [...] E eu e a Isaura (outra entrevistada)
tivemos uma experiência da seleção socioeconômica de bolsa de
estudos aqui na PUC-SP para os alunos, no tempo em que a Fundação em
1986 não tinha nenhum critério estabelecido; a gente ficou horrorizada
porque não tinha uma ficha mínima de reconhecimento desse aluno...
Tinha todas as arbitrariedades.
— [...] mais para excluir os ricos, porque só tinha acesso quem tinha
determinadas condições; era mais para exclusão e não para inclusão.
Esse é outro jeito de olhar para um processo seletivo na especificidade das bolsas de
estudo, talvez mais simples. Ou seja, a questão é como excluir os ricos, diante do fato de não
haver recursos para atender a todos, quando se pretende atender os mais pobres.
Fátima defende a importância da definição de critérios para que o profissional possa
tratar das questões trazidas pelos candidatos sob as mesmas referências, em detrimento de ter
que decidir no caso a caso. Sua análise sobre as consequências do tratamento caso a caso na
seleção socioeconômica é a seguinte:
— Essa pesquisa que estamos fazendo tem um item sobre cor da pele,
como aparece nos processos, mas dificilmente alguém faz esse
registro; às vezes tem a foto e aí o que fazer? Deixar em branco, pois
eu não posso dizer a cor a partir da foto. Se tem a declaração,
anotamos; se não tem? Nós não vamos contar como “não consta”,
embora pelas fotos seja possível observar que a grande maioria é de
pessoas de origem, de pele da cor preta?
92
A título de referência para discussão, é indicada a leitura do rico estudo realizado por Bento (2008), em que se
apontam e analisam alternativas de classificação racial, problematizando-as nas suas possibilidades e limites.
194
O horizonte proposto pela entrevistada só poderá ser perseguido com êxito se for
referenciado em pesquisas e em conhecimento de caráter crítico, e incorporado pelos
profissionais. De outro lado, não adianta ter conhecimento crítico disponível, se este não é
publicizado. Essa constatação indica a necessidade de que o profissional tenha uma formação
permanente. É preciso considerar que, se o profissional desejar reverter esta situação,
simplesmente estabelecendo critérios com os demandantes dos serviços sociais sobre quem
deverá ter mais direito ao atendimento pode se constituir em prática de uma falsa democracia,
pois este processo geralmente tem servido para amortecer as demandas dos sujeitos, ao não se
195
colocar em questão que é a escassez de recursos que gera a necessidade das escolhas. Essa
experiência é trazida de forma crítica por Isaura.
Diante do que pude expor, com o apoio das entrevistadas, cabe perguntar: como
aplicar conhecimentos para definir e operar os critérios, sem retirá-los da apreensão de
totalidade e a partir daí determinar valor às características apresentadas pelos indivíduos?
Como comparar a situação socioeconômica dos candidatos entre si? Apesar de regras, normas
e critérios, a seleção deve contemplar exceções? Em que circunstâncias estas se justificam?
Em relação aos “jeitinhos”, Isaura observa que podem levar à corrupção:
Essas questões merecem, portanto, discussões da categoria dos assistentes sociais, pois
as exceções, dentre os quais a dos “jeitinhos”, podem incluir vários entendimentos, incluindo
desde aquele exposto por Isaura e outros advindos das pressões políticas. Aqui me refiro a
questões que devem ser respondidas tanto pelos profissionais que atuam na execução terminal
das políticas sociais, quanto por aqueles que elaboram e fazem a sua gestão, e que também
são assistentes sociais.
Isaura, a esse respeito, indica a necessidade de juntar quem estabelece o critério e
quem os executa:
Graziela reforça essa ideia e propõe outras estratégias para lidar com a situação de um
jeito mais coletivo.
Luísa apresenta alternativas que vem criando para lidar com os critérios:
[...] uma das manifestações da questão social, [...] como expressão direta das
relações vigentes na sociedade, localizando a questão no âmbito das relações
constitutivas de um padrão de desenvolvimento capitalista, extremamente desigual,
em que convivem acumulação e miséria. Os “pobres” são produtos dessas relações,
que produzem e reproduzem a desigualdade nos planos social, político, econômico e
cultural, definindo para eles um lugar na sociedade. [...] Este lugar tem contornos
ligados à própria trama social que gera a desigualdade e que se expressa não apenas
em circunstâncias econômicas, sociais e políticas, mas também nos valores culturais
das classes subalternas e de seus interlocutores na vida social.
A pobreza é assim concebida como demonstração direta das relações sociais, não se
reduzindo às privações materiais. Constitui-se em forma de inserção na vida social. “É uma
93
Ver importantes referências a esse respeito nos sérios estudos de Montaño (2012) e Yazbek (2012).
199
categoria multidimensional, e, portanto, não se caracteriza apenas pelo não acesso a bens, mas
é categoria política que se traduz pela carência de direitos, de oportunidades, de informações,
de possibilidades e de esperanças” (MARTINS, 1991, p. 15, apud YAZBEK, 2012, p. 290).
Trata-se de categoria histórica, construída socialmente. Portanto, não se trata de
fenômeno natural, embora dessa forma já o quisessem considerar, por exemplo, Spencer e
Malthus no século XIX.
A noção de pobreza é ampla e compreende várias interpretações (MONTAÑO, 2012;
YAZBEK, 2012), que, nos processos seletivos, aparecerão nas análises dos profissionais quando
operam tais processos, assim como nos critérios de acesso apresentados nos documentos que
oficializam os programas e benefícios sociais — que, por sua vez, também contam com a
colaboração de assistentes sociais na sua elaboração.
Yazbek (2012, p. 290-291) problematiza o que se esconde por detrás dos indicadores
utilizados nos estudos sociais e, nesse sentido, aponta as dificuldades envolvidas na definição
de critérios, sempre pautada em concepção acerca da pobreza na sociedade capitalista:
A noção de pobreza é [...] ampla e supõe gradações e embora seja ‘uma concepção
relativa, dada a pluralidade de situações que comporta. Usualmente vem sendo
mediada por meio de indicadores de renda e emprego, ao lado do usufruto de recursos
sociais que interferem na determinação do padrão de vida, tais como saúde, educação,
transporte, moradia, aposentadoria e pensões, entre outros. Os critérios, ainda que não
homogêneos e marcados pela dimensão de renda, acabam por convergir na definição
de que são os pobres aqueles que, de modo temporário ou permanente, não têm acesso
a um mínimo de bens e recursos, sendo, portanto, excluídos, em graus diferenciados,
da riqueza social. Entre eles estão: os privados de meios de prover à sua própria
subsistência e que não têm possibilidades de sobreviver sem ajuda; os trabalhadores
assalariados ou por conta própria, que estão incluídos nas faixas mais baixas de renda;
os desempregados e subempregados que fazem parte de uma vastíssima reserva de
mão de obra que, possivelmente não será absorvida.
enquanto que o Programa Renda Cidadã, do governo paulista, atua com a referência per
capita de acesso de até meio salário mínimo.
O limiar da renda é definido baseado nas fontes estatísticas de maior confiança, tais
como as da Fundação Seade, do Ipea e do IBGE. Esses órgãos de pesquisa utilizam critérios
para estudar a população brasileira do ponto de vista socioeconômico, assim como
estabelecem o limiar para a definição da pobreza relativa e absoluta. Nessas definições,
encontra-se a utilização de vários critérios para estudar as condições socioeconômicas da
população, incluindo a pobreza.
Pobreza absoluta ou extrema significa que o indivíduo não tem acesso aos bens e
serviços essenciais, exprimindo sintomas de carências profundas. É a pobreza reduzida à
miséria e à indigência. É o afastamento de um mínimo necessário à manutenção da
sobrevivência física do indivíduo. Expressa vulnerabilidade, desamparo, fragilidade. Nesta
situação encontram-se os indivíduos cuja renda não lhes permite nem mesmo suprir a
necessidade mais básica de qualquer ser vivo, que é a de se alimentar. Sobrevivem de forma
primitiva e não dispõem de recursos nem mesmo para a manutenção da reprodução biológica,
que implica a ingestão diária de 2 mil calorias. Trata-se de uma população que pouco
consome, que nem entra na equação econômica, porque a economia pode funcionar ignorando
sua existência. Por ser “sobrante”, talvez não haja nem interesse em sua sobrevivência.
Portanto, pode morrer, porque não vale o que custa. Veja-se a população que vive em situação
de rua. Será esta uma das razões para o descaso com que este segmento é tratado no Brasil? É
a essa população, embora nem todos vivam nas ruas, que se dirigem os Programas de
Transferência de Renda (PTR) no Brasil.
A pobreza relativa extrapola o indicador de renda como fator exclusivo: “[...]
denuncia, além da desmonetarização dos pobres e do desemprego, a ausência de políticas
públicas adequadas, a falta investimentos públicos em áreas vitais (saúde, educação, moradia,
etc.) e desigualdades relacionadas à questão de raça, religião, gênero, idade, nacionalidade,
etc.” (PEREIRA, 1996, p. 27). Nesta situação encontram-se os indivíduos cuja renda não lhes
permite cobrir os custos mínimos de manutenção da vida humana, tais como: moradia,
educação, vestuário e transporte.
Em relação aos estudos sobre pobreza (também denominada de pobreza relativa) que
implicam a adoção de critérios que extrapolam a renda, um merece destaque no Brasil, pelo
seu pioneirismo. Trata-se do estudo denominado Pesquisa de Condições de Vida (PCV) na
Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), que vem sendo realizado pela Fundação Seade
201
desde 1989. Os primeiros resultados desta pesquisa foram apresentados em 1991 e, desde
então, ao longo destes anos, são atualizados os dados sobre pobreza-riqueza da RMSP.
A abordagem da PCV diferencia-se da tradicional por levar em conta, no estudo da
pobreza, informações sobre emprego, habitação, educação, saúde e rendimentos. Pretende-se
com isto caracterizar a população segundo vários aspectos de sua realidade socioeconômica,
ao criar diversas combinações de carências e não carências. Outra importante questão diz
respeito à unidade de análise utilizada para tratar de renda, podendo-se tomar como referência
a renda individual do candidato ou a familiar, sendo que essa poderá ser tratada tomando-a no
âmbito da renda bruta ou liquida ou do per capita a partir daquela definição.
Graziela problematiza a utilização da renda per capita de forma isolada na seleção
socioeconômica e indica algumas atenções que devem ser dadas à questão:
Cada uma dessas definições acarreta a demarcação de outras, como, por exemplo, o
que se entende por família e como esta será considerada na seleção.
Regina, que vem estudando o tema da família, manifestou-se da seguinte forma:
Graziela, que vem estudando a questão das mulheres vítimas da violência, acrescenta
outros elementos ao debate.
É da densa e complexa criação e operação dos critérios que, através das contribuições
das entrevistadas, trataremos a seguir.
Os critérios são referências que contribuem para colocar ordem, controle, impor
limites e legitimar as práticas institucional-profissionais, mas podem ser tratados e entendidos
de diferentes formas. Ou seja, podem ser entendidos como regras a cumprir ou serem
reinterpretados por quem os manipula, dando-se-lhes novos significados.
Alice trabalha em uma organização na qual a equipe de assistentes sociais tem mais
autonomia em relação às outras colegas portuguesas entrevistadas para definir os critérios
diante das situações que vão se apresentando no cotidiano dos atendimentos. Nessa
organização, por exemplo, para a obtenção de remédios, o usuário tem que cumprir a regra de
apresentar dois orçamentos obtidos em farmácias diversas, sendo que a decisão recairá sobre
aquela que os vende pelo menor preço. Diz ela:
Essa entrevistada, que atua na área da saúde, trabalha com critérios mais flexíveis e, ao
contrário da invasão da privacidade, tenta fazer leituras das situações que vão se apresentado no
seu cotidiano, pautada nos conhecimentos que detém, para enxergar o que se esconde sob as
reações e necessidades dos usuários que atende. Faz isso de forma sensível, respeitosa, orientada
pelo domínio teórico que tem. Dentre essas leituras, aparece a apreensão de questões de gênero.
Ela expõe como define os critérios que utiliza no atendimento a pacientes oncológicos:
aparece aqui a dizer, “eu já não presto para nada, eu já não cuido da
minha família”, é preciso fazer todo um trabalho, não é? Para apoiar
esta mulher que sempre cuidou dos outros, sempre foi cuidadora. Por
um lado, dar oportunidade é importante, mas dar, também,
oportunidades aos outros para serem cuidadores também é. E por
outro lado, é importante ela imaginar que há coisas que podem
continuar a fazer por eles e que nunca tinham feito antes.
A entrevistadora indaga se ela trabalha com renda bruta ou renda líquida. Ela responde:
A entrevistadora pergunta: — O per capita é tirado depois que você exclui as despesas
com habitação? E Luísa responde:
valores, tanto dos sujeitos demandantes dos serviços sociais, como dos profissionais que
realizam a seleção. Ela discute a questão e apresenta exemplos:
— Essa moça aqui diz [refere-se à entrevista de Fátima que leu] que
ela não fica satisfeita quando alguém diz para ela que não vai estudar
porque não pode pagar e ela revê. Aí ela conta que “outro dia veio
aqui uma mãe que me dizia que se nós não déssemos a bolsa, a filha
iria deixar de estudar até porque o pai tinha que lhe comprar um carro
para filha estudar e eu também disse à senhora os senhores é que
sabem o que é mais vantajoso para vocês se é pagar a propina da vossa
filha ou se é comprar um carro, mas não venha por o ônus em cima de
nós.” É uma discussão que está posta: como é que não pode ter o
carro? Senão a gente se atrapalha, senão você não tem critério de
inclusão. Tem um lugar aqui o Juizado Especial Federal que trabalha
com reclamações de BPC que tem estar escrito na ficha a marca do
eletro doméstico que a família tem, se é uma geladeira ou fogão Dako
tudo bem, está incluído; se for Bosch está fora. É a qualificação do
que você pode ter e eu sempre discuto isso com os alunos “você vai lá
ela tem um Brastemp e eu não tenho aí ela fica muito zangada porque
o usuário tem e eu não tenho.” Eu não acho que não tem nada a ver, eu
acho que tem que ter alguma mediação aí senão a gente se atrapalha.
Você pode fazer o que quiser com o seu dinheiro, mas o seu per capita
faz com que você ganhe uma bolsa de estudos ou não.
— Olha que complicado que é quando você está falando o que está
vivendo, você está colocando a família na roda. Você mora numa casa
que a sua família tem uma geladeira. Agora quando o senhorzinho que
não tem renda nenhuma e essa situação que a família inteira tem uma
renda, ele vai viver como dependente dessa pessoa que é uma situação
de total falta de autonomia que ele deveria ser contemplado para ele
ter autonomia, ter isenção da família.
Através dessa breve pauta apresentada em relação aos critérios, podemos deduzir a
complexidade que envolve a realização de estudos socioeconômicos. Quanto maior o número
de critérios para além da renda familiar ou individual ou per capita — tais como instrução,
inserção no mercado de trabalho, condições de habitação, raça e etnia, dentre outros inúmeros
exemplos possíveis —, mais complexo se torna o estudo e, portanto, mais estudos são
necessários por parte dos profissionais que operam esses critérios.
Quando o assistente social trabalha com a seleção de acesso a serviços balizados em
legislação, como dever do Estado, o que pesa na análise do acesso é o preenchimento pelo
candidato dos critérios estabelecidos, não a disponibilidade de verba. Nesta situação, o
assistente realiza um trabalho mais de triagem, ao verificar se o indivíduo atende ou não aos
requisitos ali colocados, conforme já tratado anteriormente..
Alice, que atua em entidade que recebe o recurso da “Liga contra o Cancro”, embora
não tenha se queixado de problemas relativos aos limites de verba, conta que o acesso é
atrelado e dependente da existência de recursos disponíveis e à apresentação de avaliação
socioeconômica, fundamentado na necessidade e no mérito, que, por sua vez, é definido em
função de critérios. Esse também é o caso de Luísa, quando atua com os programas da Santa
Casa de Misericórdia de Lisboa e tem que realizar estudos e apresentar relatórios para que o
recurso seja liberado para o atendimento do usuário.
Fátima explica que, para realizar a triagem dos candidatos às bolsas de estudo, precisa
ter domínio profundo da lei e das medidas complementares, como elementos orientadores do
209
Ao refletir sobre se seria mais democrático o profissional ter plena liberdade para lidar
com os critérios ou haver balizas postas mais amplamente, ela defende a ideia de que é melhor
haver critérios em aberto.
Sobre essa questão, estabeleceu-se, no momento da entrevista, este diálogo com Luísa:
A respeito dos critérios, Alice, que tem tido mais autonomia de trabalho, diz:
— Mas uma coisa é uma mãe com criança pequena, outra é uma mãe
com filho já jovem, adulto. É uma diversidade muito grande. Acho
que aí sim caberia à gente entrar com um estudo e mostrar essa
diversidade, tanto no atendimento “caso a caso”, em pesquisas, porque
eu acho que cada vez mais precisamos fazer pesquisas sobre a nossa
prática. Eu acho que a academia tem que fazer pesquisa para saber
como estamos trabalhando e o que precisamos. Tenho certeza que as
pessoas vão colaborar porque muita gente que está nessa profissão
sente essa necessidade.
Quanto à reserva de vagas para negros, mediante cotas sociais, Graziela problematiza:
Regina, ao apresentar a crítica, também indica um caminho para sair de onde estamos
na profissão em relação à realização da seleção socioeconômica e ao manuseio dos critérios:
— Acho que a gente tem que deixar de ser genérica. A gente faz a
crítica da política genericamente. A política responsabiliza, a política
isso ou aquilo e nós não sabemos do que estamos falando, é tudo no
genérico. E os assistentes sociais aprendem, mas na hora de fazer eles
fazem exatamente tudo igual.
95
Maiores detalhes a esse respeito podem ser encontradas em Branco (2001, 2004a, 2004b).
216
Essas referências são fundamentais para que possamos entender os discursos de nossas
entrevistadas acerca da contrapartida.
Alice concorda com a cobrança da contrapartida, desde que não seja imposta. Devo
reconhecer que, no momento da entrevista, não explorei essa afirmação, mas hoje considero
que é estranho pensar em contrapartida que não seja uma exigência, uma imposição, uma
condição para o acesso e permanência no serviço ou benefício social que integra um contrato;
então, concordar com a contrapartida desde que não seja cobrança, não seria se colocar contra
essa prática? Alice assim se expressou a respeito das contrapartidas:
Esta fala, que coloca em pauta a ideia da contrapartida, entendendo-a “como forma
justa de pagamento” ao benefício recebido pelo usuário, permite explicitar uma outra
dimensão dessa questão, que também está presente de forma significativa no Brasil. Refere-se
ao entendimento de que, “se o Estado oferecer tudo, sem exigir nada em troca, os usuários vão
se acomodar e não darão valor ao que recebem”.
Fátima, na sua fala, considerou a própria contrapartida como sendo um benefício. Luísa,
por sua vez, entende que a cobrança da contrapartida pode contribuir para que o indivíduo se
torne mais autônomo e inserido na sociedade, se for tomada como processo e não como uma
cobrança fechada em si mesma, o que se torna uma possibilidade importante a ser considerada.
— Isso depois passa por uma outra questão: passa pela questão
daquilo que é a inserção na sociedade, daquilo que é a sua
autonomização, daquilo que é o seu crescimento enquanto indivíduo.
[...] Agora, a autonomia, a autonomização é a capacidade de cada um
decidir por si, aquilo que quer fazer. É uma verdade... Mas quando
não se tem nada, eu também não sei se nós não temos... [...] da minha
experiência a coisa não funciona logo assim. Há famílias, há
indivíduos para os quais as contrapartidas são de acordo com aquilo
que são as capacidades daqueles indivíduos e daquelas famílias
220
Por meio de seu discurso, podemos assistir o que vem ocorrendo na prática, com a
implantação da política social ativa, de um “Estado ativo” neoliberal que, de um lado, delega
parte das suas responsabilidades à sociedade civil e, de outro, desenvolve políticas sociais que
vêm perdendo o sentido e o traço de políticas universais, ao focalizar o atendimento por meio
da cobrança do arrocho na operação dos critérios, dentre os quais a severa cobrança da
contrapartida. Primeiro, a organização cobra e fiscaliza o trabalho do profissional; depois, ao
ser acuado, este reproduz a cobrança na relação com o usuário.
Tília, ao recordar da sua história vivida na luta de construção para o estabelecimento
RSI como um direito e que, enquanto tal, não tinha relação com cobranças para o usuário
permanecer no atendimento, afirma que ali o próprio trabalho era visto como um direito. E
hoje, diante de toda a destruição que vê se realizando, coloca-se contra a cobrança da
contrapartida, assim como critica a postura profissional que se apresenta como justiceira e
moralizadora da questão social, uma vez que, nessa perspectiva, o profissional nem sempre
percebe que se perdeu a dimensão dos direitos sociais, comprometendo assim a possibilidade
de realização de um trabalho com participação dos usuários. Ou seja, um trabalho profissional
que contemple o processo. Diz ela:
Essa apreensão, que leva ao desconforto e à reflexão para buscar saídas de como
reverter o quadro atual, é compartilhada por Branco e Amaro (2011, p. 675-676), os quais,
através de análise de três pesquisas realizadas junto a assistentes sociais e usuários de
organizações sociais de Lisboa, buscam entender o que está acontecendo no atendimento à
população hoje naquele país. Ao analisar a fala de uma assistente social que trabalha no
atendimento social de um Serviço de Assistência Social, os autores assim se expressaram:
A questão do trabalho mecânico feito sem pensar, do fazer por fazer, também apareceu
com muita força nos depoimentos das entrevistadas brasileiras.
No Brasil, não vivemos sob o domínio do workfare; portanto, aqui não há a cobrança
do trabalho como contrapartida, mas há outras condicionalidades exigidas do usuário para a
sua permanência no atendimento: o cumprimento de sua realização por parte dos usuários é
“fiscalizada” pelos profissionais de várias formas, dentre as quais também aparece
evidenciado o jeito tarefeiro e mecânico de sua operação.
Graziela expõe uma situação de seu conhecimento, na qual a contrapartida é tratada
pró-forma pelos profissionais, quando o que interessa é que o indivíduo cumpra a obrigação
prescrita, não importando a forma e o conteúdo veiculados através dela.
Diante da situação exposta, podemos perceber que desde o horário da reunião até os
assuntos tratados não têm relação com o sentido da contrapartida colocada, cabendo à pessoa
envolvida unicamente se adequar às condições impostas.
Como contraposição a esse jeito mecânico de cumprir uma regra de contrapartida,
através de um exemplo apresentado a seguir, podemos indicar como poderia se dar a atuação
do profissional que dá sentido à realização da regra, no caso a contrapartida, visando
contribuir para mudança de valores, já iniciada anteriormente por Luísa. Aqui aparece como
através do cumprimento de uma contrapartida, poderia ser realizado um trabalho de cunho
educativo numa outra perspectiva. Essa discussão surgiu mediada pela questão de fundo de
como é cumprir a regra em si mesma e como deveria ser um trabalho comprometido com a
transformação, interpretando a demanda colocada à luz de uma reflexão crítica. O diálogo se
realizou da seguinte forma:
— Tem que mexer com a memória. Ela tem que esquecer que ela fala
que a palmada foi boa para ela (Isaura).
225
— Como é que você lida com isso? “Meu pai me bateu e eu não virei
malandro. Por que, então, que a palmada que eu dou hoje não vai fazer
meu filho não virar malandro?” Eu penso hoje, como a gente coloca
essa reflexão sobre a contrapartida na seleção socioeconômica, nos
trabalhos do PETI? Também tem isso, os pais têm que comparecer às
reuniões formais e não às reuniões que tenham um conteúdo mesmo
do que significa a exploração do trabalho infantil (Graziela).
Como decorrência de sua análise, ela conclui que a contrapartida é uma forma de
controle que discrimina, porque é dirigida à população pobre e ainda merece muito debate,
para que se possa de fato entendê-la de forma mais profunda.
Ao final, a entrevistada coloca várias e sérias questões que não têm sido bem tratadas
pelas instituições envolvidas, pois tramitam de mesa em mesa, de lugar para lugar, em um
jogo de “empurra-empurra”. Mais uma vez, aparecem em cena questões tratadas pró-forma,
através do encaminhamento administrativo, reforçando a ideia do produto, pois não se
consideram os processos em pauta nas situações.
Nesta pesquisa, em relação à questão da cobrança da contrapartida, considero que a
contribuição deste estudo se apresenta sob a forma de problematização em função dos
entraves à sua realização, que acabam por colocá-la sob suspeita e até mesmo desmoralizá-la
como meio de responder aos objetivos educativos pretendidos oficialmente, e que, por vezes,
o profissional não questiona e simplesmente cumpre como ordem.
Com esta breve discussão, podemos perceber que ainda há muito que pesquisar sobre
as contrapartidas e sobre o que se esconde por detrás delas, uma vez que não são apenas uma
regra ou um critério, mas uma forma de controle e dominação. Para os usuários, são forma de
treino do comportamento submisso, paciente e conformado, sempre tão conveniente para a
continuidade da exploração do sistema vigente.
Sua realização implica leituras das situações, porque é execução, intervenção
profissional. Parece que a contrapartida chega aos atendimentos mais para dificultar o acesso,
ao burocratizá-lo, do que para algo mais. Significa mais entrave a ser respondido pelo
indivíduo que deseja ter acesso a alguns programas e serviço sociais. Ao impor tantas
condições a quem terá tantas dificuldades a transpor, que aqui aparecem como simples
exemplos, essa medida já representa, em si, a exclusão de muitos que desistem no meio do
caminho, ao terem que ir atrás das comprovações solicitadas.
Embora a justificativa oficial se refira à contrapartida como mal necessário para
realizar mudanças de comportamento, essa exigência contém perversidades que necessitam
ser mais bem estudadas e explicitadas.
228
Convidei Eunice para fechar esta seção, pois faz decisiva questão para reflexão:
que se materializa pela ação de um sujeito que deseja apreender um objeto em seus elementos
constitutivos. Ou seja: conteúdo e forma caminham sempre juntos.
O Serviço Social se constitui pelas dimensões teórico-metodológica, ético-política e
técnico-operativa, que, embora distintas, são indissociáveis, ao necessitar das demais para se
sustentar. Cada uma dessas dimensões, porém, quando evidenciada, se expressará a partir de
sua natureza, fazendo com que as demais, embora caladas, ali permaneçam, alicerçando as
demais. Articular essas dimensões como unidade é tarefa árdua que se apresenta à profissão
como grande desafio a ser enfrentado através das pesquisas e no trabalho cotidiano do
assistente social.
Parto do pressuposto de que a intervenção tem profunda relação com a teoria. A teoria
só não teria nada a ver com a prática se perdesse seu poder explicativo, o que não é o caso.
Mais do que nunca, a crítica fundada em Marx e seus seguidores tem fornecido valiosos
instrumentos críticos para entender a sociedade capitalista e o presente, para que se possa
decidir e envolver na criação do futuro que queremos para nós e para a humanidade desde já.
Na perspectiva crítica dialética, na qual me referencio, não existe, portanto, a
dicotomia entre teoria e prática. A propósito, Brites e Sales (2004, p. 16) esclarecem:
A teoria, no entanto, parece ficar dissociada da prática, quando não sabemos ou temos
dificuldades de lidar com as mediações. 96 A mediação é constitutiva do real e dimensão do
método dialético responsável pela realização das moventes passagens e “costuras” entre a
universalidade e singularidade do objeto em pauta e na ultrapassagem da aparência à essência
por aproximações sucessivas na busca de apreensão da totalidade, configurando as contradições.
Para enxergar nas demandas individuais as dimensões universais e particulares que contêm, é
preciso entender e saber lidar com leituras que, ao incorporar a categoria da mediação como
elemento do método dialético histórico, articulam dialeticamente a aparência e a essência, assim
como a apreensão da universalidade, das particularidades e das singularidades.
96
Mediação é uma dimensão do método dialético crítico e também categoria ontológica e, portanto, constitutiva
do real, responsável pelo movimento, pelas passagens do imediato ao mediato e pelas passagens que articulam o
singular, o universal e o particular. Sem as mediações, as análises ficam soltas, sem costuras e sem movimento
(PONTES, 1995). A mediação permite ao profissional relacionar teoria e prática. Pode parecer que a teoria na
prática é outra coisa. Mas a teoria na prática é a mesma, em outra dimensão, se tivermos recursos teórico-
metodológicos para realizar as passagens que relacionam elementos singulares e universais.
232
Tendo em vista que a prática não tem um sentido em si, torna-se necessário, então, para
entender seu real significado, ir para além da sua imediaticidade, da aparência, enfrentando os
desafios postos pelo cotidiano com ferramentas críticas que levem à superação das primeiras
impressões. Não é possível tratar de instrumentos, estratégias e procedimentos separados dos
fundamentos que lhe dão sentido e direção. Tratar da dimensão técnico-operativa é tratar de
meios para a objetivação de projetos. Nessa perspectiva, os instrumentos devem ser vistos como
recursos, meios de que o profissional dispõe para, fundamentado na teoria (concreto pensado),
transformá-la em atos, direcionado e orientado pelos valores e princípios pautados no projeto
profissional, o qual imprime uma direção política à prática profissional.
O instrumental técnico-operativo é repertório interventivo do Serviço Social, de que seus
agentes se utilizam para intervir nas expressões da questão social, objeto da profissão, tendo como
referência o projeto ético político profissional. Como não há um único projeto profissional, não há
um único jeito de entender e abordar o instrumental técnico-operativo da profissão.
Esta breve análise indica que os meios não estão acima dos objetivos, mas a serviço
destes. Seu uso adequado certamente depende da habilidade do profissional para utilizá-los a
favor dos objetivos profissionais colocados.
O instrumental é construção humana, e tornar-se de fato meio para a realização dos
objetivos profissionais, orientado pelos valores e princípios do projeto profissional, implica
denso aprendizado, para que o profissional possa realizar leituras das situações singulares
vividas pelos indivíduos com os quais trabalha, localizando as determinações de classe — e
para que, com sua operação possam ser construídas relações democráticas propiciadoras de
troca de conhecimentos.
Ir da análise do Serviço Social para o exercício da profissão exige a incorporação de
profissional para descrever o que ele vê e ouve, pautado por uma relação sujeito-objeto que se
pretende neutra, isenta de juízos de valor.
A entrevista, dependendo dos fundamentos que informam a ação do profissional,
poderá ser entendida e realizada como simples sequência de procedimentos — como simples
interação humana ou tratada e manejada como relação de poder, que poderá ou não reproduzir
as relações sociais vigentes, quando realizada com participação ou não, valorizando o
processo e o produto ou não.
O manejo do instrumento sempre expressa, independentemente da consciência do
profissional, uma perspectiva educativa, no sentido de interferir na forma de ver, sentir e agir
da população atendida. Não existe uma única perspectiva educativa. É com o manejo dos
instrumentos que se transformam princípios, valores e teoria em atos, segundo a forma e os
conteúdos que através deles veiculamos.
Aqui, as assistentes sociais falam dos instrumentos que utilizam para operar a triagem
e a seleção socioeconômica nos espaços sócio-ocupacionais onde trabalham. Nesse contexto,
comparece a entrevista, a visita domiciliar, o tratamento que vêm dando aos documentos,
fichas e papéis. Assim como aparece o uso da computação que se interpõe cada vez com mais
força nas relações sociais, trazendo prejuízos à relação de troca entre o profissional e os
usuários dos serviços sociais, comprometendo a autonomia profissional.
Quando discorrem sobre a operação dos instrumentos, aparece como entendem a
profissão e o tratamento dado às expressões da questão social com as quais se deparam no
cotidiano — que, de fato, surge através das diversas questões ora tratadas e de outras tantas
que não trouxemos à tona nesse estudo.
Neste momento, não é possível apresentar uma análise, passando por dentro da
operação instrumental que uma análise acurada e profunda exigiria. Mas indico, por meio da
problematização apresentada, algumas lacunas que deverão ser preenchidas e tratadas pelo
Serviço Social, em próximas pesquisas sobre o tema.
A entrevista é mencionada nos depoimentos das três assistentes sociais portuguesas
que operam diretamente a seletividade de acesso como o instrumento básico utilizado. Em
relação ao uso da visita domiciliar, fala-se de sua utilização como recurso eventual. Enquanto
Luísa a usa com maior frequência, embora não em todas as situações, Alice e Fátima
empregam-na esporadicamente.
Em relação à inscrição de candidaturas de acesso, a forma on-line aparece no trabalho
de Fátima que atua em uma universidade, enquanto no discurso de Alice consta de forma
aberta e informal, pois depende da ocasião em que a necessidade se apresenta ao usuário que
235
se trata no Instituto de Oncologia. Luísa, que trabalha na Santa Casa de Misericórdia, tem que
observar as exigências de acesso, ora da Ação Social da instituição, ora do RSI, pois,
dependendo daquilo que aciona para realizar o atendimento dos que demandam pelos
serviços, terá diferentes exigências a cumprir.
Em relação ao uso dos instrumentos utilizados na realização da triagem ou seleção
socioeconômica, as entrevistadas assim se manifestaram:
Fátima faz críticas à fiscalização que acompanha a prática dos assistentes sociais ao
longo da historia, na realização das visitas profissionais:
Tília, que não realiza o trabalho direto com a população atendida pelo RSI, reconhece
a importância desse debate com a expectativa de inovação, partindo da crítica do tanto que os
assistentes sociais servem para amortecer o descontentamento dos usuários que têm tido
cortes nos direitos conquistados:
— Pois, nesta questão é que nós temos de inovar, que é assim, nesta
mudança social o problema maior não é da falta de instrumentos
teóricos. Eu acho que, pelo menos, existem alguns. Há aqui uma
falta de mobilização, que eu não sei por que é em relação aos colegas
que estão no terreno. Eu entendo que, como há bocado disse uma
expressão, que é estão empacotadas, são almofadas realmente,
quando se cortam direitos.
benefício social ao usuário, embora com o reconhecimento do tanto que é trabalhoso esse
caminho. Luísa já se referiu a essa estratégia em diversas passagens desta pesquisa,
designando-a como “informe”.
Alice refere-se ao encaminhamento de forma crítica, enquanto estratégia de
atendimento, quando avalia o que o usuário precisa e o que ele poderá encontrar nos diversos
serviços existentes na cidade. Ou seja: ela, por conhecer os serviços existentes, avalia se vale
a pena ou não encaminhar, diante das chances que o usuário terá ou não de ser, de fato,
atendido. Nas suas considerações, podemos perceber que o encaminhamento não é utilizado
por ela para se livrar das situações, mas como forma de atendimento.
As pressões, no entanto, não vêm somente sob essa forma direta, dos candidatos que
se sentiram prejudicados, mas chegam, também, através de seus “porta-vozes”, que fazem
ressoar seus questionamentos e pedidos pelas diferentes instâncias da hierarquia institucional,
visando reverter a situação de não acesso daqueles que passam a ser tomados como seus
apadrinhados. Os políticos e pessoas influentes, tanto no Brasil como em Portugal, interferem
e pressionam o acesso de seus afilhados, tentando usar sua autoridade e prestígio como
critério, na tentativa de incluir alguns indivíduos, em detrimento dos critérios e regras
estabelecidas para todos.
Das quatro entrevistadas portuguesas, é de Luísa que vem a maior contribuição para esse
debate, pois é quem apresenta com maior riqueza de detalhes as diversas pressões recebidas
pelos assistentes sociais como fruto do resultado da seleção de acesso, que têm que administrar
e responder aos solicitantes de explicações, que chegam via hierarquia institucional.
Luísa, inicialmente, diz que não tem sofrido pressões políticas. Porém, a cada exemplo
que traz, aumenta a tensão de quem a ouve, embora ela mesma já tenha se acostumado com
tais pressões, ao tratá-las como se fossem “normais” e “naturais” no seu cotidiano de trabalho.
Reconheço que, a cada situação exposta, teve a paciência de expor como tem lidado com elas.
Nas entrelinhas do seu discurso, podemos perceber o tanto que, por vezes, se sente sozinha e
frustrada ao ter que se defender das ingerências unicamente com sua argumentação
profissional a respeito do não acesso de determinado candidato. Assim procedendo, ao se
defender, acaba por defender também e, sobretudo, a organização na qual trabalha.
Exponho a seguir o diálogo inicial travado entre entrevistada e entrevistadora sobre
esse assunto.
A entrevistadora lhe pergunta se nunca ninguém veio com carta de político para ser
atendido ou recebeu telefonema de algum político ou de uma pessoa influente para que... Ela
imediatamente responde:
A entrevistada diz:
Luísa apresenta, também com riqueza de detalhes, exemplos que expressam as diversas
estratégias de pressão utilizadas pelos usuários no sentido de reverter a situação de excluídos do
acesso pela seleção socioeconômica, e expõe como tem lidado com essas estratégias.
— Sim, o senhor fulano tal tem este problema tal, tal, tal, e eu disse
isto e isto; eu acho que pensei nesta possibilidade eu não sei o que
vai… Outras vezes, é para ser atribuído acabou, porque está fora dos
critérios. Mas, também, eu não autorizo nada, eu só fundamento e por
isso, têm que haver uma assinatura de quem autoriza; por isso o auge
da responsabilidade não fica do meu lado, quer numa situação quer
noutra mesmo, quando não é autorizado.
Embora a questão colocada seja muito difícil de lidar e envolva sérios conflitos de
natureza ética, a entrevistada resolve a tensão, dando-se por vencida e considerando que não
tem nada a fazer, uma vez que a responsabilidade é de quem autoriza.
Alice reconhece os exemplos apresentados por Luísa, pois é de conhecimento público,
dentre os assistentes sociais portugueses, que os profissionais que trabalham na Ação Social
recebem muitas pressões.
— [...] Não, aqui não, mas tenho sabido de colegas da Ação Social
que sim. Por exemplo, quando há utentes que reclamam, que fazem
confusão, como os ciganos, 97 que ameaçam, etc. De cima, despacham
tudo e dizem para dar o recurso, mesmo que o profissional queira
dizer não. Não querem reclamações lá! E esta é uma das formas de
manter, portanto, alguma estabilidade, portanto, a paz social.
97
Vale destacar que, na Europa em geral e em Portugal em específico, os ciganos são um grupo social muito
estigmatizado. Parece que, em tudo o que ocorre de mal no país, eles são considerados implicados.
245
Fátima, assim como as demais, afirma que na sua prática não tem sofrido pressões de
natureza política para que privilegiasse alguém em detrimento dos critérios colocados e, por
isso, fica aliviada pela possibilidade de, no seu exercício da profissão, não ter tido que
enfrentá-las. Essa expressão de alívio a que se refere, revela/esconde um sentimento de
sofrimento vivido pelo profissional quando é pressionado a fazer algo com que não concorda,
quando é ferido na sua dignidade e na sua autonomia profissional.
— Mas, eu acho que apesar de tudo, eu tenho tido muita sorte no meu
trabalho e no meu percurso porque eu tenho trabalhado sempre em
sítios onde nós somos respeitadas e o nosso trabalho é considerado e,
talvez, até por isso, as pessoas não se sentem à vontade para
pressionarem-nos para isto ou para aquilo, para fazermos uma situação
ou a outra. Pronto, acho que respeitam o nosso trabalho e, portanto,
acham que nós somos isentas e por isso não tenho passado por esse
tipo de problemas.
Quando provocada para pensar sobre situações nas quais os assistentes sociais
recebem pressões políticas, estabeleceu-se o seguinte diálogo: — Bom, Fátima, o que é que
você faz ou ouviu falar o que as suas colegas fizeram quando aqueles não selecionados se
sentem injustiçados e tomam providências? Que providências eles tomam? Como você tem
lidado com isso? Como é que isso aparece aqui em Portugal e no seu serviço? Ela responde:
não ter tido que lidar com esse tipo de ingerência no seu trabalho, julga-se privilegiada e com
sorte diante das colegas.
Faz parte do processo seletivo que aqueles que se sentem injustiçados por não terem
sido selecionados façam reclamações ao próprio profissional, às organizações diretamente ou
através de “padrinhos”, procurando explicações sobre os motivos de não terem sido
selecionados, tentando reverter a situação. Fátima expõe a situação em riqueza de detalhes,
pois, afinal, tem cabido à equipe de assistentes sociais gerenciar a situação.
Ela destaca ainda a importância de o profissional tratar das pressões e dos pedidos de
esclarecimentos com respeito, porque são expressões da frustração por não terem tido sucesso
na obtenção do serviço ou benefício social pretendido.
Tília dá um tratamento irônico, ao nos explicar como as reclamações são tratadas nos
organismos estatais em Portugal, pois há, em todos os locais públicos, o “livro amarelo”, que
é a forma institucional de absorver as queixas e pressões da população usuária dos serviços.
sociais atribuído aos assistentes sociais. O exercício profissional tem adquirido expressões
dramáticas, na medida em que a profissão, sob pressão e controle, encontra dificuldades para
legitimar-se na realização e ampliação dos direitos já consagrados.
Nesse contexto, particularmente, o rigor da seletividade de acesso aos serviços e
benefícios sociais pode ser entendido, muitas vezes, como uma armadilha, porque seu
fundamento básico é a desigualdade social, evidenciado pela face de exclusão, aspecto
amplamente analisado ao longo deste estudo. As consequências da crise afetam o demandante
dos serviços sociais, que se vê sozinho diante do enxugamento e focalização dos programas
sociais, assim como afetam o assistente social como trabalhador assalariado, que também
sofre a perda de direitos e de salário como os demais trabalhadores. É, por vezes, difícil
vislumbrar possibilidades e saídas profissionais e distanciamento para apreensão da realidade
de forma crítica.
A novidade que se põe em Portugal, é o fato de que, hoje, as condições de vida dos
assistentes sociais estão muito parecidas com as da população atendida.
Conforme se pode perceber, os rebatimentos da reordenação do capitalismo
internacional, na especificidade de Portugal, aparecem em todas as entrevistas, variando de
intensidade de uma para outra, até porque o mesmo processo histórico não se dá do mesmo
jeito em todos os espaços profissionais. As entrevistadas enfatizam aspectos que têm muito a
ver com a inserção profissional e expressam concepções particulares de mundo e de profissão.
Tília, que atua na Segurança Social e é liderança política da categoria dos assistentes sociais,
apontou como as expressões da crise se apresentam de forma mais direta e dramática. Luiza,
que atua na Santa Casa de Misericórdia de Lisboa, demonstra preocupação e tensão ao se
referir ao controle e fiscalização que sofre no trabalho cotidiano. Alice e Fátima demonstram
preocupações com as repercussões da conjuntura atual do país, mas pela natureza do trabalho
que realizam não se sentem tão desafiadas como as demais.
Alice, no seu trabalho, tenta equacionar as necessidades apresentadas pelos usuários do
hospital, utilizando-se dos recursos disponíveis a favor do bom atendimento dos pacientes,
tais como transporte em ambulâncias, cessão de próteses mamárias, etc. Entende que os
usuários, pessoas atingidas pelo câncer, têm o direito de receber tratamento digno e cuidados
especiais. Parte do pressuposto de que os trabalhadores pobres têm o direito de usufruir de
serviços de qualidade. Ela nos apresenta uma série de ricos exemplos que dão materialidade a
essa forma de entender a profissão e os usuários.
252
Ela mesma reconhece que há outra perspectiva de ser profissional, tomando como
exemplo uma colega que a antecedeu nesse trabalho. Analisa que há a possibilidade do
assistente social reinterpretar as normas institucionais, tendo em vista os interesses dos
usuários, embora regras e critérios continuem a existir. Alice entende que as mudanças são
possíveis de serem operadas no âmbito profissional, mas têm abrangência restrita.
Fátima também defende a ideia de que o assistente social não pode ser mero
funcionário de uma organização e que não deve estar está lá somente para cumprir as regras e
os regulamentos. Se o profissional realiza, a seleção socioeconômica pautado em critérios,
esse fato não deve ser entendido, no entanto, de forma absoluta, pois isso não implica de ele
ser receptivo a qualquer tipo de critérios ou ingerências. É preciso olhar para os indivíduos
nas suas particularidades, pois o trabalho realizado tem que contemplar exceções.
Alice explicou que nem sempre as solicitações dos pacientes são atendidas pela equipe
na qual trabalha, mas que deve haver uma atenção constante para que se possa enxergar o que
precisam e necessitam. É preciso criar neles uma reação corajosa em relação às perdas e
sequelas sofridas e ao do medo do sofrimento e da morte que acompanha quem tem câncer.
Nesse sentido, ela considera a necessidade de avaliar, constantemente, o que fazer, porque o
que foi um apoio em um momento do tratamento, em outro já não serve mais. É necessário
que o profissional tenha abertura, conhecimento e sensibilidade para perceber as sutilezas das
necessidades presentes, nem sempre expressas pelo paciente em tratamento.
–– [...] A seleção, eu procuro que todos sempre tenham alguma coisa. [...]
Pode não ser financeiro, porque em acordo chegamos à conclusão de que,
de fato, eles podiam comprar. Porque, por vezes, aqui no hospital eles
dizem, “vá lá ter com a assistente social, que eles dão-lhe dinheiro para
os medicamentos”; é preciso fazer uma explicitação sobre o dinheiro. Se
a pessoa diz assim, “eu realmente acho que eu posso comprar os meus
medicamentos, mas este mês eu tive esta e esta despesa, porque houve
desorganização na minha vida familiar, porque foi o inicio da doença”...
E eu disse, “sim senhor, vamos ajudar este mês e no próximo mês
avaliamos”. [...] Há regras orientadoras, mas essas regras não são
senhoras, não são elas que pautam a nossa intervenção. A nossa
intervenção é pautada na relação que estabelecemos, no compromisso
que estabelecemos com aquelas pessoas.
As condições de trabalho de Luiza estão ficando mais difíceis e complexas a cada dia.
Além do cumprimento de metas, sofre cobrança e pressão de várias ordens. E quando, por
vezes, se vê fazendo as contas dos minutos gastos com cada uma das atividades que tem que
realizar, chega mesmo a se assustar com a vida que tem levado. Sem contar que ainda há
aqueles serviços que não são computados pela organização como a colocação das informações
no computador e as respostas escritas às solicitações do tribunal dentro dos prazos
estabelecidos. Fala disso tudo com inquietação e descontentamento, pois gosta da profissão e
gostaria de ter tempo para realizar uma prática mais reflexiva e se vê envolvida em um
processo de trabalho com inúmeras tarefas a cumprir.
Branco e Amaro (2011) tratam desse assunto com muita clareza, ao analisar a prática
do Serviço Social em Portugal na atualidade. Baseados em pesquisa empreendida, afirmam:
De facto, ficou claro neste estudo que é exercida uma enorme pressão sobre os
profissionais no sentido de demonstração de resultados, o que tem se traduzido numa
lógica de realizar o máximo possível de atendimentos e de disponibilizar uma
“resposta” no período mais curto possível. Em paralelo, é também entendido como
crucial o papel de verificação da veracidade das situações expostas pelos utentes. Isto
significa que, com o tempo disponível, tudo o que o assistente social pode fazer é
tomar nota do pedido do utente e assegurar que o indivíduo tem direito à prestação em
causa. Enquanto alguns profissionais parecem pensar que isto é o que compete a um
assistente social, outros sentem-se desconfortáveis neste papel. Para estes os
referenciais éticos e metodológicos apontam para a importância de constituir relações
empáticas, que promovam a participação e o empowerment, com vista a autonomia do
utente e a perspectiva dos níveis de intervenção (BRANCO; AMARO, 2011, p. 667).
256
[...] por mais que seja imprescindível a incorporação das novas tecnologias de
informação, é preciso problematizar os efeitos dessa revolução tecnológica no
trabalho do Serviço Social e na relação dos assistentes sociais com os usuários e a
população, via de regra, mediada pelo computador nos espaços de atendimento
profissional. [...] é possível constatar o crescimento de um tipo de demanda dirigida
aos assistentes sociais em diferentes áreas, que afasta o profissional do trabalho
direto com a população, pois são atividades que dificultam o estabelecimento de
relações continuadas, que exigem acompanhamento próximo e sistemático. A título
de exemplo, pode-se citar o preenchimento de formulários e a realização de
cadastramentos da população, quando assumidos de forma burocrática e repetitiva,
que não agrega conhecimento e reflexão sobre os dados e o trabalho realizado.
Trata-se de uma dinâmica institucional que vai transformando insidiosamente a
própria natureza da profissão de Serviço Social, sua episteme de profissão
relacional, fragilizando o trabalho direto com segmentos populares em processos de
mobilização e organização, e o desenvolvimento de trabalho socioeducativo numa
perspectiva emancipatória (RAICHELIS, 2011, p. 433).
Luísa, que deseja realizar seu trabalho contemplando o processo e não somente o
produto pelo qual é constantemente cobrada, encontra-se em situação de estresse. Ela expõe
que, em um clima de muito trabalho a realizar, defronta-se, permanentemente, com o medo
advindo da ameaça constante de uma possível fiscalização externa a qual, a qualquer
momento pode colocar o emprego e a sua integridade profissional em risco.
–– Deveria partir sempre desse principio (de que o utente está dizendo
a verdade), mas às vezes, a entrevista têm muitas incoerências, então,
aí vamos ver. O profissional do Serviço Social tem que ter
conhecimento de muitas coisas, diante da riqueza das situações que
aparecem, e tem que ter conhecimento de muitas coisas porque
facilmente pode ter uma situação, onde fica ignorante. Embora eu não
tenha problemas, eu não domino tudo, mas eu vou procurar saber
sobre essa nova questão que apareceu. De qualquer maneira nós temos
que ter (em mente) muitas questões: não trabalha? E então? Mas
recebe alguma prestação, não recebe? Não trabalha por que não pode?
Não está disponível porque não tem qualificações? Por que, por que?
E a pessoa responde “não, não, eu não trabalho, porque não há
emprego, não consigo”. “Então, e o senhor encontra-se inscrito no
Centro de Emprego, não? E então? E o senhor já se deslocou alguma
vez àquela instituição y ou z que de alguma forma pode ajudar o
senhor a encontrar um emprego? Não? Então, e o senhor já tentou ir
ao centro comercial, onde está aplicado no vidro que “precisa se de
trabalho”? Como é que eu posso atribuir um benefício a este
indivíduo, se ele não traz nenhum documento sobre que está
efetivamente desempregado e está á procura de emprego? Então, nesta
circunstância, se ele diz que quer encontrar emprego, ele tem que ir à
instituição oficial, que não é aquela que sempre arranja um emprego,
mas é a oficial para trazer o comprovativo em que estava inscrito. Ou
seja, eu ou os meus colegas, nós temos que dominar, muitas vezes, até
para depois nos salvaguardarmos, porque depois, em termos
organizacionais, nós também temos auditorias e temos que provar se
cumprimos o regulamento ou não cumprimos. Atribuímos de acordo
com o regulamento ou não atribuímos, favorecemos alguém ou
discriminamos alguém porque não gostamos, e essas questões para
mim colocam-se, aos outros colegas não sei. Eu tento ter sempre
presente a questão da justiça, da igualdade. Procuro, mas se calhar não
consigo sempre.
Alice, por sua vez, equaciona a mesma realidade com outras leituras e ponderações:
[...] Sim, tu vês o RSI tem mínimos, tem máximos etc. Alguém tem
que ver, portanto, se de fato... E não sei se tem que ser a assistente
social. Aqui entre nós há imensa discussão sobre se as pessoas que
261
O Serviço Social, assim como as outras profissões, tem sido profundamente afetado
pela ofensiva neoliberal, variando de intensidade de país a país, sendo que em Portugal isso
assume na atualidade formas dramáticas, com o corte orçamentário nas políticas sociais,
conforme já pude tratar anteriormente nesse estudo.
Tília conta os dramas vividos pelos assistentes sociais. A supervisão que realiza tem se
configurado como lugar onde os profissionais depositam as angústias que sentem diante dos
usuários, da profissão e de sua própria situação de trabalhadores assalariados. Ela mesma
também está em crise, quando vê desabar tudo aquilo que ajudou a construir como cidadã e
profissional nos desdobramentos da Revolução de 25 de Abril. Dessa forma, começa a contar
o que tem se passado nas reuniões de supervisão, destacando o estresse causado pela pressão e
pela violência vivida no cotidiano institucional:
Esse depoimento reforça o medo e a apreensão já apresentados por Luísa, que agora
aqui reaparece, carregando nas cores e formas no sentido de nos permitir perceber o que se
passa no cotidiano profissional do assistente social, quando ele mesmo, ao representar a
organização do Estado que faz o corte do benefício, transforma-se na cara da exclusão. Nesse
sentido, passa a receber toda a carga de agressividade do usuário insatisfeito e desesperado
porque teve seu benefício cancelado. Tília, a entrevistada se põe a pensar sobre o que está
acontecendo na organização onde trabalha e na profissão, colocando em xeque a política atual
do RSI e perguntando-se sobre o que fazer diante do sofrimento expresso pelas colegas.
é complexo, pois não se trata de simples de corte de verba. Como se trata de direito social
previsto em lei — portanto, dever do Estado —, o acesso do pleiteante ou a sua manutenção
no benefício se dá mediante o cumprimento dos critérios estabelecidos. A cobrança da
contrapartida é quase impagável, sem falar do trabalho que dá ao beneficiário ao ter que
reunir as provas ou comprovantes de que está procurando emprego ou que se encontra
impedido de fazê-lo por questões de saúde.
Diante dos sérios desafios vividos pelo povo português, Tília expressa uma angústia
profunda, ao constatar com certa surpresa o que se passa com os usuários e com os assistentes
sociais que operam o RSI, perguntando-se como deveriam proceder para sair desse lugar em
que se encontram. É quase como se não acreditasse no que vê.
98
Apresento no Anexo 4 um recorte da entrevista realizada com Tília, no momento considerado por mim como o
mais decisivo. Diante da dramaticidade da situação que se apresentou, passei a estabelecer um diálogo com a
entrevistada, em que, no momento, tive a sensação e depois a confirmação, de ter ultrapassado os limites de
entrevistadora da pesquisa. Depois, pude entender que ela trouxe, de forma extremamente viva, o que está
acontecendo no cotidiano da prática profissional naquele espaço sócio-ocupacional da profissão em Portugal. No
diálogo estabelecido, pode ser percebido o sofrimento e os questionamentos da entrevistada, que não são
obviamente só dela, que fazem as assistentes sociais se sentirem impotentes diante do processo de dominação e
cooptação com que se deparam.
264
–– A minha consegue, acho que ela chega, ela é mais politizada e ela
coloca... Mas ela fala que os assistentes sociais têm vergonha, porque
lá é ação social, e eles têm vergonha de falar que são da assistência
social e isso incomoda os jovens profissionais. Ela vai dizer “mas há
pessoas que precisam de um assistente social permanentemente para
viver com um mínimo de dignidade sem termos expectativa de que
vamos mudar sua condição de vida embora eles tenham direito a isso”.
[...] A minha assistente social que é a Alice, ela fala que ela não faz
seleção socioeconômica porque lá o recurso do medicamento é um
recurso que tem para todos, mas mesmo nos limites que tem, em
relação à da permanência no alojamento, ela vai dizendo que ela vai
construindo alternativas com cada usuário dependendo das
necessidades que esse usuário coloca. Eu acho que ela mostra uma
satisfação de como ela faz isso, em fazer isso, inclusive ela fala “eu
não mando para a Renda Mínima porque eles não vão ser selecionados
e é para ficar aqui que a gente vai construindo alternativas”. Só que,
ao mesmo tempo em que ela faz isso, ela fica ainda na pontualidade, a
cada situação ela dá uma resposta construída com aquele usuário e eu
acho que é isso que falta, tanto para eles quanto para nós; essa
perspectiva de que como é que com as informações que nós temos dos
usuários, podemos pensar em novas propostas coletivas, e eu acho que
fica muito na necessidade de atender aquele usuário. Ela fala depois
que não tem uma sistematização, não tem uma reinterpretação disso
que poderia dar em uma outra coisa. A satisfação vem pelo tipo... Que
ela avança, ela usa uma coisa que é assim “então você não é uma
funcionária”. Eu acho que é isso, o assistente social que vai, que segue
99
Refere-se ao texto de Bader Sawaia (2004), intitulado “O sofrimento ético-político como categoria de análise
da dialética exclusão/inclusão”.
266
Isaura, que atua em uma universidade, assim se expressou sobre a fala de Fátima:
Graziela apresenta as semelhanças que percebe entre a situação exposta por Tília e a
realidade vivida pelos assistentes sociais brasileiros.
267
Graziela concorda com a análise apresentada pelas demais colegas e também expressa
preocupações em relação aos impactos que o avanço da computação tem causado nos
atendimentos realizados nas organizações sociais.
Isaura apresenta outro exemplo que do que vem ocorrendo no Brasil no cotidiano das
organizações sociais, que põe a prova o nosso senso de justiça e do compromisso do assistente
269
social com os usuários e que é tratado na ordem institucional como se fosse “normal” atender
daquela forma.
Nessa situação, parece que é o computador que “adquire vida”, ao “decidir que o
indivíduo não irá mais receber o benefício, porque ele acabou de arranjar trabalho”, e mesmo
quando ainda nem recebeu o primeiro salário já é eliminado. Esse exemplo coloca em pauta
mais uma vez a necessidade de reflexão sobre as decisões profissionais diante do uso cada vez
mais determinante do computador que vem tornando supérfluas as decisões profissionais,
porque as “decisões” já estão programadas no sistema.
O uso da computação, que vem substituindo o uso de mão de obra e contribuindo para
o fechamento de muitos postos de trabalho existentes, chega hoje ao trabalho realizado pelas
organizações sociais nas quais os assistentes sociais atuam de várias formas e, portanto, tem
se colocado também na discussão da operação dos processos seletivos. Essa questão deve
merecer atenção cuidadosa da categoria, pois é situação relativamente nova no mundo e na
profissão e cada um a tem tratado do jeito que julga melhor, sem analisar mais globalmente as
implicações do uso desse recurso. É preciso a construção de formas coletivas para lidar, por
exemplo, com o sigilo profissional quando o computador se interpõe na relação entre o
assistente social e o usuário. Trata-se do trabalho morto que passa como que dar a direção ao
trabalho vivo. Coutinho (1972) explica que:
Parece que num contexto histórico em que os públicos mais vulneráveis precisam
mais do que nunca de estabilidade, segurança e de processos de intervenção e
acompanhamento longos e multidimensionais, há uma ideologia hegemônica que faz
a apologia do imediatismo e que inibe o desenvolvimento de uma intervenção mais
alargada e profunda. Persiste um paradoxo que lado a lado formas de acção
ultrainstrumentais e um insistente discurso da individualidade, da construção
conjunta de narrativas e da importância de reconstruir e/ou reforçar o “trabalho”
sobre as identidades (BRANCO; AMARO, 2011, P . 670).
Esse processo histórico internacional, contudo, precisa ser entendido nas suas
particularidades e singularidades, uma vez que, embora tenha uma natureza de abrangência
universal, não se expressa do mesmo jeito e com a mesma intensidade em todos os lugares.
Em cada parte, adquire determinadas características que necessitam ser apreendidas, sob pena
de deturpação do entendimento.
As conquistas obtidas pela computação têm rebatimentos em todas as esferas da vida
social e, no trabalho dos assistentes sociais. Têm sido utilizadas nas organizações sociais para
o controle social sobre o trabalho dos profissionais e dos usuários que se utilizam dos serviços
prestados e para o aumento da produtividade do trabalho, quando são estabelecidas
claramente as metas a ser cumprida por cada profissional, desconsiderando o processo dos
atendimentos realizados ou a qualidade deles.
Em Portugal, as transformações operadas no capitalismo internacional e no mundo
trabalho adquirem determinadas formas, no âmbito da denominada “comunidade europeia”,
acabando por colocar a profissão em lugar complicado quando o acesso ao direito social vai
perdendo o seu caráter mais universalizante e vai se focalizando através da realização da
prova de recursos. Ou seja, quanto àquilo que era um direito, agora o indivíduo tem que
provar que detém méritos de pobreza e que se encontra impossibilitado de trabalhar.
O profissional, nesse contexto de verdadeiro retrocesso, passa a se constituir em porta-
voz de más notícias, quando se torna o responsável para operar a seletividade de acesso,
incluindo a cobrança da contrapartida, e aquele que dá a notícia ao usuário do seu
desligamento do benefício.
Através desse processo, o RSI se focaliza, porque, se antes tinha traços
universalizantes, hoje podemos visualizar claramente que o horizonte é o de atender somente
determinados segmentos bem delimitados dos pobres.
272
Neste item, está em pauta a formação recebida pelas entrevistadas para a realização da
seleção socioeconômica situada no campo de instrumentalidade profissional. Trabalhamos
com a hipótese de que as entrevistadas não haviam estudado tal assunto na graduação, uma
vez que sobre ele há apenas pequenos fragmentos na produção bibliográfica do Serviço
Social, conforme já foi tratado. Essa premissa se confirmou nas entrevistas realizadas,
cabendo-nos, então, diante desse fato o equacionamento da questão sobre onde buscaram os
fundamentos para a sua realização.
Alice se manifestou, dizendo:
Ela entende que é a formação abrangente do profissional na perspectiva crítica que deve
subsidiar a prática profissional, inclusive a realização da seletividade de acesso aos serviços e
benefícios sociais, sendo que aprofundou essa compreensão destacadamente no mestrado.
Os fundamentos da profissão, do Estado e da política social são referências que
possibilitam ao profissional fazer leituras da realidade próxima e ver para além das
aparências, e a partir daí intervir. Ou seja, a entrevistada não se refere a nenhum elemento
específico da formação no âmbito da instrumentalidade profissional, pois considera que são
aqueles fundamentos que iluminam as leituras que faz acerca das situações que se apresentam
a ela no cotidiano de seu trabalho.
Alice reconhece, entretanto, que os profissionais, para atender as pessoas e fazer um
bom processo seletivo, devem ser formados e preparados, embora não soubesse, naquele
momento, explicitar no quê. A reflexão apresentada refere-se à necessidade de formação no
âmbito teórico e ético-político para indicar os compromissos com quem trabalhamos, para que
possamos nos enxergar do mesmo lado de quem atuamos, ou seja, como trabalhadores
assalariados que se propõem a defender interesses dessa classe. Ela se refere à necessidade do
profissional não julgar moralmente as pessoas com as quais trabalha.
— Eu acho que eu não sei como hei de explicar, isto educa-se. É algo
que se educa e fundamentalmente vem de dentro, tem a ver com a
relação e fundamentalmente com o acreditar nas pessoas. Nós nos
julgarmos... Nós sempre pensamos, eu sempre pensei durante toda a
minha vida profissional, se calhar tu tens um trajeto de vida algo
parecido ao meu [dirigindo-se à entrevistadora], que eu podia estar,
realmente, estar no lugar daquela pessoa que atendo como assistente
social. Se não tivesse conhecido aquela outra pessoa, se não tivesse sido
aquela circunstância ou outra. Ela, que atendo não é diferente de mim.
274
Essa fala geralmente recorrente no Serviço Social nos leva a refletir sobre o que
significa um profissional dizer que aprendeu o exercício de uma atividade profissional na
prática. Sem desconsiderar a experiência como elemento fundamental para a nossa
sobrevivência, é necessário apreender o significado dessa afirmação. Aprender na prática
pode significar ato voluntário individual que depende da boa vontade do sujeito, assim como
pode significar aprender com a prática de outros que têm a prática, esta entendida como
sinônimo de saber fazer; ou a aplicação de sucessão de procedimentos.
Quando chamada para indicar como um assistente social poderia se preparar para a
realização da seleção socioeconômica, Fátima declarou:
— Não sei, sabe! Eu acho que a dica principal, é que não fiquem
limitados pelas regras e pelas formulas, porque muitas vezes aquelas
regras e aquelas fórmulas, não dizem exatamente o que é a situação. É
importante falar com as pessoas e é importante perceber, exatamente,
perceber qual é a postura do próprio utente face àquilo que está a
pedir. Ele próprio considera que aquele apoio é ou não um apoio
importante para ele? [...] Partirmos do princípio que a pessoa que está
à nossa frente, está ali, porque efetivamente tem necessidade de um
apoio para, neste caso, prosseguir os seus estudos e que tem de ser
tratada com respeito, independentemente, daquilo que as regras,
daquilo que aquela fórmula que temos ali para aplicar. E pode até
acontecer que a fórmula diga que aquela pessoa não tem direito, e nós
276
Importante destacar que a entrevistada indica que, embora tenha aprendido a realizar
seleção socioeconômica, estudando a legislação que coloca regras, critérios e procedimentos,
ela mesma reconhece que é preciso ir além desta para realizar leituras sobre o que vive e sobre
as situações apresentadas pelos demandantes do serviço ou benefício social. É preciso, portanto,
ter autonomia e saber realizar leituras das singularidades das situações com que se defronta.
Quando o profissional se pauta na sua atuação somente pelas regras e procedimentos
estipulados pela organização 100, reforça o seu papel de funcionário da organização que paga o
seu salário. Para ir além e se colocar também como agente de uma profissão de forma crítica,
é preciso usar o saber, a teoria que a profissão veicula através de suas instâncias organizativas
e de formação da categoria.
Luísa, em seu depoimento, reconhece que sua formação foi pobre. Acrescenta que,
desde que se formou, já participou de vários eventos de curta duração propiciados pela
organização onde trabalha. Mas entende que não é necessário ter muita formação para realizar
seleção socioeconômica, embora na entrevista concedida não tenha sustentado essa ideia em
face das tantas e tão importantes e complexas questões levantadas e tratadas por ela.
Considero que Luísa precisa ser escutada, porque representa uma parcela da categoria
profissional que deseja realizar um bom trabalho e se recicla basicamente através de cursos de
pequena duração propiciados pelas organizações em que trabalham. Embora seu depoimento
100
Entender as organizações que contratam o trabalho profissional como espaços sócio-ocupacionais da profissão
tem sido estratégia importante no sentido de o profissional poder se colocar a partir da profissão e assim lhe
possibilita enxergar o que realiza para além de um funcionário. É preciso entender o assistente enquanto funcionário
e agente de uma profissão, ao mesmo tempo em que se tem como horizonte a apreensão crítica.
277
diga o contrário, ela não reconhece nesse momento da entrevista que se utiliza das referências
da formação na realização da seleção socioeconômica, ao dicotomizar a objetividade da
subjetividade presentes na ação profissional.
Em relação às fontes nas quais busca se informar sobre o que acontece no mundo e na
profissão, ela diz:
Segundo Tília, a ação do assistente social no RSI, do jeito que vem sendo realizada
hoje, está aquém do que pode um profissional, porque trata a seleção socioeconômica somente
do ponto de vista financeiro:
Regina reforça na entrevista essa fala e diz que a seleção socioeconômica apareceu na
sua vida quando se iniciou na prática e teve que lidar com ela.
Eunice reforça a ideia do grande peso que teve na sua formação o estágio como forma
de inserção do aluno no exercício profissional. No seu caso específico, a prática se constituiu
em fonte de politização e de grandes descobertas, o que acabou por colocá-la em confronto,
na época, com a direção conservadora do curso de Serviço Social que frequentava; chegando
mesmo a ser punida e reprimida pelo jeito combativo como passou a se posicionar, tendo em
vista os compromissos políticos que assumira. Em sua fala, podemos perceber que foi através
do estágio, através de suas “professoras da prática”, suas “supervisoras de campo” que se
constituíram suas mais densas e fortes referências da formação profissional. Seu depoimento
nos remete a pensar sobre a decisiva importância de cuidar para que nossos alunos hoje
possam ter referências positivas na formação através do estágio.
A entrevistada destaca com muito gosto como se dava as atividades no seu estágio e
na supervisão que a qualificou para a ação competente e compromissada com os interesses
dos usuários dos serviços sociais. O respeito e a admiração sentidos por Eunice diante das
supervisoras de campo fez delas referências positivas, gerando um clima cordial e solidário no
processo educativo, assim marcaram a sua vida.
— [...] você tem uma instituição que é da “natureza” dela lidar com o
poder sobre a vida das pessoas, ela lida com decisões em tese para
garantir, aplicar a justiça, e o profissional, no caso, assistente social,
psicólogo, eles vão dar..., na maioria das vezes, um relatório social ou o
laudo social vai dar base para um decisão judicial, vai envolver vida de
crianças, de adultos, famílias, idosos e aquilo para mim era muito
complicado. Aí eu decidi voltar a estudar, já que continuaria sendo
assistente social mesmo, então decidi estudar, tentar ver e explicar esse
tipo de trabalho para contribuir com o trabalho, porque daquela
maneira, pelo menos como eu via naquele espaço... É claro que tinha
exceções, em outros espaços, mas naquele local em que eu estava era
bastante complicado, foi aí que eu vim para o mestrado para estudar o
Serviço Social no Judiciário; como diz a professora Miriam, da angústia
ao método, e foram essas angústias que me levaram a estudar.
284
intensa multiplicação no Brasil de cursos de Serviço Social de qualidade duvidosa coloca dessa
forma em confronto e em pauta a disputa na atualidade entre esses dois perfis de profissional:
[...] o técnico bem adestrado que vai operar instrumentalmente sobre as demandas
do mercado de trabalho tal como elas se apresentam ou o intelectual que, com
qualificação operativa, vai intervir sobre aquelas demandas a partir de sua
compreensão teórico-crítica, identificando a significação, os limites e as alternativas
de ação focalizada (NETTO, 1996b, p. 126; grifos do autor).
Raichelis (2011) participa deste debate, observando que, para enfrentar criticamente o
lugar em que hoje está colocado o trabalho do assistente social nas organizações sociais,
cumpre formar e qualificar o profissional para
[...] não se conectam obrigatoriamente por uma relação causal, não afetam
exclusivamente o Serviço Social; mas na nossa profissão, ganham enorme ponderação:
são concomitantes à exigência de maior qualificação intelectual e cultural, derivada da
própria consolidação acadêmica do Serviço Social-está posta, aí, uma contradição que
não é fácil solucionar com êxito. Quer-me parecer que o perfil econômico social e
cultural desse “público-alvo” — sem esquecer o dos docentes mesmos, nem sempre
distinto-é um elemento de excepcional importância a ser levado em conta no
enfrentamento da problemática da formação (NETTO, 1996b, p. 110).
A entrevistada, ao refletir sobre a alteração do perfil dos alunos dos cursos de Serviço
Social, chama a atenção também para o fato de há um grupo significativo de profissionais que
se aposentou ou está em vias de se aposentar e que carrega um lastro importante da profissão
na perspectiva crítica por ter ajudado a construí-la desde os finais dos anos de 1970 e que fará
falta na profissão, tanto no sentido de colaborar na formação dos alunos, quanto na construção
de respostas profissionais na direção social que se compromete com a defesa dos interesses
daqueles que dependem da venda da sua força de trabalho para viver. A esse respeito ela
assim se manifestou:
— [Em relação ao] perfil dos nossos alunos, são pessoas que também,
às vezes, que se confundem com o próprio usuário, não sei a realidade
de vocês na PUC [São Paulo], mas no espaço que eu conheço sim.
Então, eu acho que são muitos fatores que... [...] Como eu vou ter uma
prática crítica frente a todas essas interferências que vão estar me
pressionando no dia a dia? Agora eu acho que tem que ter a resistência
política, mas a gente sabe também que não é todo mundo que vai se
envolver com a resistência política; há sempre uma vanguarda que
avança. Então, mas mesmo assim é sempre um grupo que vai à frente,
como em todos os espaços. Nós temos ainda, principalmente na
capital, devem se aposentar 50% dos profissionais da capital [refere-se
ao Judiciário], inclusive eu me aposentei em fevereiro, mas continuo
fazendo pesquisa na área.
287
O cuidado com “o que fazer”, com o “para que fazer”, e com o “por que fazer” não
pode excluir o “como fazer”. O currículo não pode prescindir de disciplinas que
tratem da habilitação para o manuseio dos instrumentos e técnicas no Serviço Social
em conjugação com o debate filosófico, teórico, político e ético.
Brasil, manifesta-se da seguinte forma em relação aos desafios colocados à formação dos
alunos hoje:
Essa questão levantada por Isaura, que se refere às dificuldades do ensino em geral e
especificamente às referentes à dimensão técnico-operativa, em face às difíceis e complexas
condições de trabalho impostas aos profissionais pela reestruturação produtiva na atual
conjuntura, levou as participantes da entrevista coletiva a rapidamente se manifestar a esse
respeito, dizendo:
As falas de Eunice e das outras entrevistadas reforçam a ideia de que, ainda hoje, nos
deparamos com forte resistência na profissão para discutir a instrumentalidade profissional,
porque o entendimento continua preso ao entendimento conservador do nosso passado. Esse
tema denso, tenso e de dificílima abordagem não é ainda largamente entendido sob a
perspectiva crítica, porque implica que o docente tenha profundo domínio teórico-
metodológico e ético-político para poder tratar e decifrar a realidade cotidiana próxima e
290
porque, no Serviço Social, é como colocar a mão em verdadeiras feridas vivas e abertas no
nosso passado e, portanto, ainda não tratadas suficientemente, ao ponto de permitir seguir em
frente com tranquilidade, porque não estão cicatrizadas. Parece que há na categoria dos
assistentes sociais uma tendência que entende que na formação, a intervenção profissional
deve ser tratada somente nas disciplinas da instrumentalidade e na supervisão de estágio, pois
lá são os lugares de tratar da “prática real”, como sinônimo de “contaminada”, “suja”,
“difícil”, “sem futuro, sem projeto, sem esperança”.
Nessa apreensão, juntam-se as palavras de Santos (2005, p. 241), que vem
pesquisando sobre o ensino da instrumentalidade no Serviço Social:
A questão relativa ao ensino dos instrumentos e técnicas ainda se expressa mais pelo
“receio” de ser “tecnicista” do que pela ousadia de criar alternativas/ experiências
explícitas e detalhadas para o desafio de ensinar o “como fazer sem ser “tecnicista”.
[...] salvo poucas exceções, reforça-se sempre o como não ensinar os instrumentos e
técnicas em detrimento do como deveria ser ensinado.
Torna-se, porém, urgente encarar o desafio colocado pela autora diante do que vem
ocorrendo nas organizações sociais que contratam o trabalho do assistente social: a
incorporação de novas tecnologias que, gradativamente, estão ocupando o lugar das pessoas e
vêm causando impasses no trabalho profissional, ao colocar em xeque princípios e valores do
projeto ético-político da categoria dos assistentes sociais que certamente não se localizam
estritamente na dimensão técnico-operativa. E, nós, assistentes sociais, que achamos disso?
Como podemos e devemos nos colocar diante dessa situação?
Responder de forma crítica às demandas colocadas a uma profissão eminentemente
interventiva, como é o Serviço Social, pressupõe o esforço para colocar a teoria em atos e na
explicitação de saídas e possibilidades do exercício profissional nas organizações sociais,
visando à concretização do assistente social como profissional propositivo, não como mero
executivo das pautas definidas pelas organizações que contratam seu trabalho. Pressupõe
também a reflexão de como trabalhar com o estresse sentido pelos profissionais “da prática
real” compromissados com a defesa dos valores inscritos no nosso projeto ético-político.
Graziela expõe:
São Paulo mais do que outras cidades, mas a gente tem uma parte da
juventude profissional que entrou na Prefeitura e até tirou licença
médica com menos de três anos de trabalho em função desse
sofrimento vivido por causa da burocratização, da restrição de
direitos, e pior do que isso, talvez eu deva estar colocando uma
situação dificílima, mas um aprisionamento da legalidade, um
aprisionamento àquilo que está colocado no programa se a
possibilidade de trabalhar mais com a legitimidade social, de trabalhar
mais com as pessoas. Então, para mim a política hoje do SUAS, ela é
importante, garante direitos, mas ela ainda tem muitos percalços. Esse
aprisionamento à legalidade faz com que esse trabalho de
emancipação, de autonomia, de liberdade, pretendido no nosso projeto
ético político, fique fissurado, arranhado.
— Uma pesquisa que nós fizemos que é da Vania [?] que coordenou
em Santa Catarina, os fatores de estresse dos profissionais é o projeto
ético-político porque elas têm consciência, mas não chegam lá... Elas
não contam e parece que é um dos fatores de estresse e é isso, entre o
projeto ético-político e as demandas da prática.
102
Refere-se a Oliveira (2010)
292
Raichelis (2011) analisou essa realidade contraditória vivida pelos profissionais diante
das condições de trabalho colocadas e da violação de direitos do assistente social na atual
conjuntura que vem gerando sofrimento e desgaste físico e emocional.
de que a situação é aquela, que não atendo, não discuto, não grupalizo,
não levo para um trabalho maior, eu acho que é um prejuízo enorme,
Acho que tem que cuidar disso na formação, “porque você faz o
estudo e tchau? Você pergunta só para saber? Aí chega às raias da
curiosidade porque você não vai fazer nada com a informação?” E a
gente trabalhava com a ideia de que a informação de saúde era só o
ponto de partida para o trabalho social maior. Eu acho que o Serviço
Social perdeu a amplitude do seu olhar e do seu trabalho, então é só
aquela tensão ali.[...] Eu acho que há muitas teses sobre a política, a
favor e contra, demonstrando se é direito se não é, se é focalizada ou
não, se tem porta de entrada e saída, mas eu acho que é muito mais do
que isso, do que uma preocupação com o trabalho, não é de
operação... As pessoas vão cumprindo o que se manda e não há um...
Outro dia eu fui numa capacitação e falei que não pode visitar as
pessoas sem avisá-las e as pessoas ficaram me olhando. A casa é do
outro, você não entra na casa do outro só porque você é assistente
social, ou porque você é da Prefeitura, e as pessoas não pensam sobre
isso. Não foi para a escola tem que visitar, teve negligência tem que
chamar o Conselho Tutelar para tirar a criança; é tudo regrado e
estabelecido pelo senso comum, sem maior teorização.
— Tem um desafio, acho que para nós professoras, acho que isso a
gente tem que reconstruir no sentido de estar vendo como é que a gente
aprendia, o que é dever do assistente social em termos de atribuições,
como é que as políticas estão sendo implantadas e que espaço é esse
que os profissionais têm que assumir para não entrar nesse dilema que a
Isaura falou de não entrar na doença, o adoecimento individual e até em
função de que o sofrimento não seja o mais importante. [...] Mais uma
vez vou falar o que vem muito vem na esteira da própria ideologia da
formação. Em Santa Catarina o pessoal acha que a formação... Os
assistentes sociais vão ser mais qualificados se eles tiverem mais
disciplinas relacionadas à teoria crítica. Daí você vai lá e dá um
jeitinho, é uma interpretação sua... E não uma condição da profissão. Eu
acho que não dá para discutir a seleção socioeconômica sem discutir o
que a profissão está pensando na formação dela teoricamente. [...] Nós
temos uma visão crítica para analisar tudo isso, mas parece que cada um
chega lá e vai fazer do seu jeito, na sua interpretação. E uma profissão,
para se sustentar, ela não pode ir só pela interpretação individual, ela
tem que ter um a sustentação coletiva.
Diante da fala desta entrevistada, deve ser considerado que o que falta no Serviço
Social é o trato da instrumentalidade profissional em outros moldes, dando ênfase à relação
teoria-prática enquanto unidade indissociável, numa perspectiva da totalidade, passando pelas
mediações como recurso necessário dessa tarefa. Isso exige densa formação de um professor.
294
Por outro lado, é preciso frisar que as saídas, as respostas interventivas, cada vez com mais
força, terão que surgir de uma perspectiva de construção mais coletiva na profissão. Do
contrário, as respostas encontradas unicamente na solidão de cada prática acabarão por
reforçar a ideia liberal de que cada um deve encontrar sozinho a própria resposta.
Para encontrar respostas condizentes com nosso projeto ético-político, é preciso suspender
temporariamente o pensamento cotidiano que se fixa quase que só na experiência e nos
acontecimentos vividos, buscando elementos teóricos, filosóficos para que a apreensão possa se
dar para além das aparências e, portanto, fundar as ações em decisões mais conscientes. 103 Este
jeito de ser profissional é aprendido, através de denso projeto de formação teórico-prático.
Ao longo dos depoimentos colhidos nesta pesquisa, pudemos perceber que há um
ritmo de trabalho que encolhe o pensar. Temos o profissional atendendo os usuários dos
serviços sociais, mediado pela tela de um computador. É o computador que passa a ter vida e
o assistente social se comporta com o usuário como objeto, ao dizer que “o computador pede
que”, e, se no computador consta que seu filho não frequentou as aulas ou que “seu marido
arrumou emprego”, o benefício é mecanicamente suspenso. Quando não é o computador, são
as fichas a serem preenchidas que passam a pautar o que tratar na entrevista com o usuário.
Nesse processo alienado e alienante, as ferramentas adquirem vida e os sujeitos
passam a se comportar como objetos. Como podemos esperar que desses profissionais que
atuam sob tanta pressão possam sozinhos encontrar e formular respostas profissionais
condizentes com os interesses dos usuários?
Para reverter e atuar nessa situação que marca hoje o trabalho realizado nas organizações
sociais em que o assistente social trabalha, torna-se necessário que haja o exercício permanente da
reflexão, buscando iluminar o que vive e o que se expressa no cotidiano em referências teóricas.
“Cabe ao profissional reconstruir as mediações particulares e buscar, com orientação no projeto
ético-político profissional, desenvolver iniciativas que aproximem sua prática das reais
necessidades da população usuária” (BRITES; SALES, 2004, p. 73).
Sabemos que, o cotidiano engole o sujeito para repetir o que está dado. Então, esperar do
profissional que está na ponta que ele sozinho possa criar respostas, no quadro atual de reforço à
burocratização do atendimento, parece não se apresentar como boa e suficiente estratégia. Torna-
se imperativo que a categoria pense urgentemente sobre isso, como tarefa coletiva, na qual as
pesquisas podem se colocar como ótima estratégia de materialização dessa alternativa.
103
Um profundo e sensível exercício dessa proposta pode ser encontrado em Brites e Sales (2004, p. 67-79),
quando tratam de “Ética, cotidiano e práxis profissional”.
295
Eunice entra nesse debate, posicionando-se como profissional que sempre esteve
preocupada em qualificar o exercício profissional de forma crítica, comprometida com a
transformação da sociedade. Mas também nos mostra que anteriormente se qualificou teórica
e politicamente para enfrentar a discussão da instrumentalidade profissional. Diante desse
mote, apresenta sérias e importantes questões a enfrentar na categoria dos assistentes sociais:
não avança e não sabe o que vai fazer. Eu acho que isso é o mais grave.
[...] E desqualifica o próprio saber profissional, você não tem que estar
lá para dar jeitinho. Aquilo que a professora Marilda (referindo-se a
Iamamoto) fala da questão..., dentro desse projeto o assistente social
que precisa ser criativo, propositivo, a gente tem que saber como fazer
isso dentro do que propõe a nossa profissão.
A entrevistada reconhece que vivemos uma conjuntura dificílima, que não será uma
profissão que conseguirá, sozinha, revertê-la, mas quer contribuir (e nós também) para fazer
avançar a profissão, porque vê em um significativo número de jovens profissionais séria
vontade de querer se qualificar mais e aprender a fazer melhor o trabalho profissional.
— A gente precisa, mas como a gente faz? Acho que a gente tem que
trabalhar muito na formação e eu acho que precisaria e o que falta na
nossa profissão, é a questão da supervisão de quem está entrando. A
psicologia, por exemplo, em algumas áreas que ela vai trabalhar, ela
precisaria obrigatoriamente de supervisão, eu acho que é uma coisa que
está distante da gente conseguir, mas eu acho que a gente deveria pensar
em alguma coisa. Muitas vezes o salário você sabe é pouco, a maioria
dos lugares o salário é muito baixo, o investimento por si só muitas vezes
a pessoa não tem condições fazer. Eu estou agora coordenando uma
especialização na Universidade, eu tenho ex-alunas que foram brilhantes,
que querem continuar estudando, querem fazer um lato sensu. Algumas
até se inscreveram depois eu vi que não foram e eu conversei para saber
por quê: “ah professora fiquei com medo de não conseguir pagar porque
eu estou numa organização que é terceirizada da Prefeitura e tem mês que
recebe e mês que não recebe”. É muita coisa que está envolvida nesse
processo. Como eu trabalho na minha formação permanente? Talvez
pensar até nos nossos Conselhos [refere-se aos Cress], na Abepss, como a
gente pode a médio e longo prazo incorporar a supervisão como uma
297
— E a gente vai trabalhar no dia a dia com isso. Eu falo para os meus
alunos, às vezes uma estagiária diz: “professora, eu peguei uma
situação de violência e eu não sabia o que fazer”. Aí eu digo que
“você pode saber todas as técnicas de entrevista, que são comuns a
várias profissões, mas se você não souber o que perguntar...” Então, é
o conhecimento que você precisa ter acumulado, que instituição é
essa, que teoria vai iluminar o meu fazer? O que conheço sobre
violência doméstica para poder dialogar com essas pessoas? Então, é
esse fundamento teórico-metodológico que vai iluminar o meu fazer
concreto, eu vou colocá-lo no operativo, mas esse operativo não se
efetiva somente com base no projeto da profissão, se eu não dominar
essas várias dimensões. [...] Eu ando pensando como a gente precisa
298
pensar numa outra forma de trabalhar a formação dos alunos nos dias
que estamos vivendo hoje. Eu ando pensando sobre como fazer isso.
Eu não sei ainda porque tem que ter todo um investimento e você
trabalhando numa universidade privada isso não é simples.
Graziela destaca mais alguns elementos que podem ser incorporados à proposta que
Eunice vem construindo, ao comentar, em relação à seleção socioeconômica:
Para fazer avançar a formação que ocorre no circuito universitário, é condição que a
universidade não seja vista apenas como o lugar do ensino, onde simplesmente se consome o
saber produzido, através de sua reprodução pelos professores nas salas de aula do saber
existente, mas que se constitui fundamentalmente como lugar de produção do saber filosófico
e científico que só avança através da pesquisa crítica de qualidade. Nessa perspectiva, a
universidade se caracteriza como o lugar de divulgação do saber existente e constituído, mas
também de onde se explicitam as lacunas existentes entre o que sabemos e o que não
sabemos, indicando a necessidade da pesquisa para fazer avançar o conhecimento e a prática
no âmbito social e profissional. Essa questão se coloca também ao Serviço Social de forma
decisiva, quando se pretende formar intelectualmente seus agentes, reconhecendo que no
âmbito técnico-operativo da profissão existe grande lacuna a ser preenchida pela pesquisa.
Este estudo tem a pretensão de significar uma contribuição nesse sentido.
A seguir, apresento breve problematização da pauta a ser perseguida pela profissão acerca
da seleção socioeconômica situada no âmbito da pesquisa da instrumentalidade profissional.
Diante do que pudemos apresentar até aqui, fica claro que é preciso profissionalizar
essa atividade profissional, através da realização de pesquisas, como indicam, principalmente,
os depoimentos as pessoas brasileiras entrevistadas.
Minha intenção aqui será a de demonstrar, através da problematização que me é
possível elaborar no momento, o tanto que nós, assistentes sociais, precisamos pesquisar e
estudar, para que possamos realizar uma prática consistente, visando ao atendimento dos
interesses dos usuários. Trata-se da criação de saídas coletivamente construídas.
Os vários exemplos apresentados pelas assistentes sociais brasileiras e portuguesas
indicam mais do que nunca a urgência da realização de pesquisas sobre a prática profissional
realizada através de atendimentos sociais, para o levantamento de possibilidades para que
tenhamos um repertório de respostas profissionais mais qualificadas.
300
— Tem umas coisas... O médico tem uma briga de quanto tempo leva
uma consulta e quanto vale. Eles têm um parâmetro e nós não temos.
[...] Todo mundo que vem diz que “nossa capacidade de trabalho são
dez atendimentos” e nós no Serviço Social não temos isso. Vem tudo,
ele fica alucinado para... Não consegue fazer tudo, mas quer atender e
resolver tudo. O médico tem mais poder de negociação. [...] Eu acho
que uma tentativa disso na profissão é a história dos parâmetros, mas
que eu acho que na saúde foi um desastre.
Eunice, que, de todas as entrevistadas, foi a que mais trouxe à tona a importância da
pesquisa na área da instrumentalidade como recurso coletivo para buscar saídas aos sérios
desafios e dilemas com que nos deparamos no presente, destaca:
— [...] Mas como que quem está na ponta, acho que não é só o
assistente social, poderia ser mais um dentro de uma equipe que
contribui para levar essa informação, porque quem está lá não é
ouvido ainda para pensar essa política, ou como as pessoas estão
preocupadas em fazer isso? Está sistematizando o que acontece no dia
a dia para levar isso que você está colocando concretamente, mas para
levar números, dados concretos, não ficar só naqueles dados que
obrigatoriamente você tem que preencher para alimentar as estatísticas
oficiais. Quando a gente fala da dimensão investigativa da profissão a
gente não está sabendo como fazer isso.
Ela mostra toda a dramaticidade da questão social que tem se expressado no tempo
presente com muita força nas pesquisas em que está inserida, indicando a necessidade de
incluir no debate qualificado da profissão seus fundamentos e a construção de respostas
profissionais para lidar com ela. Como nos qualificar para trabalhar com tamanha
desumanização que atravessa o nosso dia a dia de cidadãos e profissionais?
Diante de quadro tão dramático, Eunice conta o que tem sentido ao se deparar com tais
processos que está estudando, nos permitindo entender melhor o já referido adoecimento de
profissionais que vem se colocando com força na profissão na atualidade.
Nessa mesma pesquisa, Eunice tem constatado com grande preocupação como vem se
dando a leitura e o registro escrito realizados pelos assistentes sociais, colocando a
305
Eunice, convidada a falar sobre os critérios que vem pensando tendo em vista a
realização dos estudos sociais, pautou sua análise nas pesquisas que vem realizando e nos
desafios colocados à profissão diante das características com que a pobreza vem se
apresentando hoje.
sobre ele, mas que, procurando decifrar a realidade imediata que se apresenta aos profissionais,
podemos tomar decisões condizentes com a defesa dos interesses dos usuários dos serviços e
benefícios sociais, mesmo que, por vezes de forma contraditória e limitada. Se a realidade da
nossa sociedade é contraditória, então como negar isso nas nossas próprias vidas?
Nossa posição e a das entrevistadas da pesquisa realizada se constitui em expressão
dessa tendência, quando todas nós temos nos esforçado para pensar política e tecnicamente
sobre os s desafios cotidianos que hoje se apresentam à profissão, no sentido de construir
novas respostas diante das possibilidades e limites colocadas na atual conjuntura.
309
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Caetano Veloso, na bela canção que fez em homenagem a São Paulo, denominada
“Sampa”, chama a atenção para o olhar do estrangeiro diante do outro-novo, o que, no seu
caso, foi se deparar com a cidade de São Paulo, a qual, num primeiro contato, ainda não
entendia e por isso se relacionou com ela, comparando-a ao que já conhecia e trazia, que era a
sua experiência de viver em Salvador, na Bahia.
O olhar inicial, contaminado pela lente da experiência como brasileiro baiano,
considerou o que viu de “mau gosto, mau gosto” porque “Narciso acha feio tudo aquilo que
não é espelho”, e, portanto, tentando enquadrar o que vê ao que já conhecia, considera a sua
experiência anterior como a melhor. O autor refere que trazia “um sonho feliz de cidade”.
Assim, diante de “Sampa”, “aprende depressa a chamar o que vê de realidade”.
Ele, quando encarou a cidade e sua gente “frente a frente”, não viu refletido seu rosto
“feliz e bonito” diante de tanta desigualdade e feiúra com que enxergou em São Paulo.
Depois, quando passou, de forma crítica, a observar mais atentamente a cidade, pode discernir
o outro de si mesmo nas igualdades e diferenças consigo mesmo. Aqui, pôde ver e enxergar
“o povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas”, “a força da grana que ergue e destrói coisas
belas”, “a feia fumaça que sobe, apagando as estrelas”.
Afinal, percebeu que essa cidade se constituía “no avesso do avesso do avesso do
avesso” do seu inicial “sonho feliz de cidade”.
Penso que dessa experiência, exposta pelo poeta com tanta beleza que espero não
reduzir, ele também pôde nessa realidade se entender e se conhecer melhor sobre quem era,
porque se aproximou, se distinguiu, se estranhou, se assemelhou, se enriqueceu e virou um
pouco de tudo aquilo que viu e viveu. Talvez pode também ver o lado feio e desigual de sua
cidade, que aqui chamou de realidade. Ou seja, pode se ver como brasileiro-baiano-paulistano
e pode criar essa canção que nos emociona e que se apresenta sob a forma de forte e
encantadora poesia.
A primeira visão do estrangeiro é a de que “Narciso acha feio tudo aquilo o que não é
espelho” e chama o que vê de “mau gosto, mau gosto”. Essa primeira posição de comparação
não permite ver e perceber, assim como não reconhece o outro como outro e com o direito de
ser diferente. Essa primeira visão pode permanecer assim sucessivamente e ser a única, ou
pode evoluir, dando uma nova direção para o estranhamento para que afinal, possamos
também se ver como igual ao outro que critica.
310
Acredito que a boa convivência do estrangeiro diante do que já estava ali e do que vive
deve despertar e fazer pensar quem olha pela primeira vez e quem estava lá e nunca percebeu
“a realidade” nas novas possibilidades presentes. A condição para poder ver para que seja
possível enxergar para além do imediato é aceitar conviver com os primeiros impactos que
levam ao estranhamento para que, depois do reconhecimento, possa tornar possível a
instauração do diálogo enriquecedor com aquilo ou aquele que o sujeito estabelece relação.
Para perceber e entender quem somos e quem é o outro, o nosso interlocutor, é
necessário que haja uma relação de alteridade. Sem a convivência e sem a disponibilidade de
nos colocar na perspectiva do outro, não há delimitação de quem somos e nem de quem é o
outro. O eu que sou só se delimita pela relação com o tu, ou seja, quem sou eu só adquire
sentido e aparece na convivência; são definições que nascem da convivência e da
comparação. É preciso que, nesse processo o sujeito que deseja conhecer mantenha um olhar
de perto (de singularidade) e ao mesmo tempo um olhar ampliado, de profundidade, de
totalidade (universal) para que possa conseguir configurar também as particularidades do
objeto, alvo de seu olhar.
Diante do exposto, podemos, portanto, pensar que o que somos só pode se definir em
presença do outro, para afinal descobrirmos o nós, de-todo-o-mundo, as nossas
particularidades, os-alguns-que-somos e ao mesmo tempo as nossas singularidades, o eu,
esse-indivíduo que junto com os outros indivíduos somos os cidadãos do mundo que
habitamos esse planeta, embora haja tantas diferenças a nos separar, “tanto mar”.
Afinal, é preciso que a gente se veja enquanto humano-genérico para podermos
enxergar as desigualdades de classe e outras que nos separam e que vêm caracterizando a
relação entre os homens. E para que, a partir daí, possamos perceber as possibilidades de
sermos juntos e os limites colocados ao projeto coletivo que temos para a sociedade, mas que
é meu também, porque componho aquilo que se chama coletivo. Projeto esse que indica a
direção da ação e que ilumina o nosso fazer na sociedade e na profissão.
Essa reflexão ajuda-me a configurar a relação estabelecida com o meu objeto de
estudo, que é a seleção socioeconômica que, nenhum assistente social entrevistado disse
gostar de realizar e que tem ficado no silêncio ao longo da história da profissão sob uma
perspectiva crítica porque tem sido naturalizada.
Ajuda-me também a configurar a relação de convivência que estabeleci com os
assistentes sociais portugueses, através do estágio realizado em seu país, que me permitiu
perceber, em riqueza de detalhes, de que forma a reordenação do capitalismo internacional
repercute em Portugal, que tem sido um dos países do continente europeu mais atingidos pela
311
crise do capitalismo na atualidade. Assim como permite perceber os rebatimentos dessa crise
na política da assistência social. O Brasil, neste momento, é muito menos atingido que aquele
país, mesmo que esse país apresente uma das mais profundas desigualdades sociais do planeta
se se compara a renda dos 10% dos habitantes mais ricos com os 90% mais pobres.
A minha intenção neste estudo foi estabelecer um diálogo como assistente social
brasileira com os assistentes sociais portugueses com o objetivo de poder entender melhor
nossas ações profissionais aqui no Brasil em relação à seleção socioeconômica.
Destaco que as entrevistas realizadas em Portugal mexeram muito comigo, pois pude
vivenciar através delas, sem disfarces, a situação perversa em que têm sido colocados os
assistentes sociais e os beneficiários do Rendimento Social de Inserção (RSI), quando o
processo seletivo se apresentou com toda a sua força de desumanidade na realização do
movimento de inclusão-exclusão, sendo que nessa conjuntura foi a face de exclusão a que
mais se mostrou e se mostra, disfarçada na cobrança da quase impagável contrapartida.
Enquanto no Brasil, em 2010, época da realização das entrevistas em Portugal, o
Programa Bolsa Família se mostrava sob a cara da inclusão, quando
Pudemos, através desse trabalho, demonstrar que a seletividade de acesso aos serviços
sociais vem acompanhando as formas de proteção social organizadas pela sociedade
capitalista desde a sua emergência no século XVI e que o Serviço Social desde a sua
constituição no final do século XIX vem participando de sua realização.
Através desse estudo procurei resgatar e situar a seleção socioeconômica como
instrumento da política social, operada pelo assistente social de forma datada, entendendo que
ela que não poderia ser apreendida nos seus fundamentos se a tentativa se dirigisse para
explicá-la em si mesma. Os fundamentos sócio-históricos da seletividade de acesso foram
buscados nas formulações presentes na emergência do Serviço Social, criado para fazer frente
ao enfrentamento da questão social, distinguindo-se da filantropia e da caridade. No contexto
do reordenamento do capitalismo, no início do século XX, configurando a sua fase
monopolista, a profissão do assistente social é institucionalizada e legitimada pelo Estado que,
ao passar a assumir o papel de regulador das relações sociais, se utiliza da criação da política
social como forma de enfrentamento da questão social.
312
O assistente social, como agente do Serviço Social, nesse contexto, passa a ser
requisitado pelas organizações sociais públicas e privadas para materializar os seus programas
e serviços sociais na qualidade de seus funcionários. Na ordem institucional, o caráter político
das demandas apresentadas pelos usuários dos serviços sociais, enquanto expressões da
questão social, são transmutadas em questão de foro íntimo e privado dos indivíduos e
tratadas de forma a isolar o caráter sócio-político dessas demandas, quando passam a ser
consideradas e tratadas como questão de ordem “técnica”.
Nos programas de política social, o acesso aos serviços e benefícios sociais se realiza
mediante a comprovação da necessidade pelo indivíduo e após a avaliação profissional sobre
a detenção de méritos dos indivíduos. O assistente social, nesse processo, passa a assumir o
papel de árbitro, de juiz, fazendo a mediação entre a demanda dos que pleiteiam o
atendimento e os recursos disponibilizados.
Na profissão, inicialmente, os fundamentos da seleção socioeconômica se pautam na
apreensão da questão social como questão moral. O tratamento das demandas dos usuários se
realiza no caso a caso, a partir de leituras de caráter moralizador, levando à culpabilização dos
indivíduos pela situação de carência e pobreza em que se encontram — visão essa que
continua ainda hoje a se apresentar com muita força na sociedade e na profissão.
Os estudos realizados nos mostraram que o assistente social, como funcionário das
organizações sociais, reproduz o controle e a pressão junto à população usuária dos serviços
sociais, após ter ele mesmo, em primeiro lugar, sofrido, na sua própria pele, aquela pressão e
controle exercido pela organização sobre a sua própria intervenção, sob a forma de regras,
ritmos e procedimentos a cumprir. Assim, o assistente social na qualidade de trabalhador
assalariado, se insere no processo de trabalho estabelecido pelas organizações sociais, o que
impõe limites à atuação profissional. Porém, como o profissional tem uma autonomia relativa
pode, contraditoriamente, também realizar os interesses da população.
critérios estabelecidos, também legitima, ao mesmo tempo, o não acesso, daqueles que
ficaram de fora do atendimento.
Como a seleção é individual, ao término do processo, quem ficou de fora entende que
isso se deu porque não cumpriu os critérios estabelecidos, mas sem o esclarecimento ao
mesmo tempo de que não havia recursos colocados para atender a todos. O acesso ou não aos
serviços sociais se dá mediante a realização da equação entre o número de inscritos e os
recursos disponíveis.
Na sociedade capitalista, um candidato, por exemplo, que ficou de fora, poderia estar na
lista dos escolhidos se houvesse menos candidatos, ou se diante de outros candidatos com o
mesmo perfil, pudesse apresentar em um desempate alguma vantagem em relação aos demais.
A seleção socioeconômica se constitui, dessa forma, em instrumento de legitimação do não
acesso de uma parcela da população que deseja ou necessita dos serviços e benefícios sociais.
Podemos empiricamente perceber no cotidiano que o indivíduo excluído do ingresso
ao que pleiteia poderá lamentar, mas afinal geralmente acaba por se conformar. Poderá até
questionar o fato de ter ficado de fora do atendimento, colocando em dúvida a lisura do
processo ou mesmo se culpabilizar pelo fracasso de não ter conseguido o acesso ao serviço ou
benefício social pleiteado.
Mas, derradeiramente, através de pequenas estratégias de controle utilizadas, tudo
volta ao “normal”, porque “vivemos em uma sociedade competitiva em que sempre alguém
fica de fora e porque não há recursos para atender a todos”. É “normal” e “natural”, então, que
sempre alguns fiquem de fora.
O resultado final desse sofisticado e complexo processo seletivo é a legitimação da
desigualdade social, ao tornar aceitável a exclusão do acesso, ou do direito.
O acesso aos serviços e benefícios sociais vem se dando através de dois modos
básicos. O primeiro ocorre quando o indivíduo solicita e comprova que preenche os quesitos
estabelecidos na lei para o acesso àquilo que se constitui em direito legal, como é o caso, por
exemplo, no Brasil do BPC. O segundo se dá mediante a inscrição e a apresentação de provas
pelo candidato que confirmem, por exemplo, sua situação de pobreza. A seleção nesses casos
se faz por meio de seleção e escolha, entre os candidatos inscritos, daqueles que se
aproximam mais do perfil traçado, tendo em vista que há um limite de verba ser respeitada e
que deverá ser gerenciada. Essa se constitui na forma mais antiga, normalmente denominada
por meritocrática.
No primeiro cenário, todos os indivíduos que preenchem o perfil têm acesso garantido,
porque é um direito inscrito e previsto na lei e, portanto, tem caráter mais universalizante. Na
314
Merece ser considerado, no entanto, que é possível o assistente social contribuir com o
acesso da população aos serviços e benefícios sociais, tendo em vista o projeto ético-político
expresso no atual Código de Ética Profissional, na Lei que Regulamenta a Profissão e nas
diretrizes curriculares da Abepss.
Para que o atendimento possa indicar possibilidades concretas na atuação do assistente
social, tendo em vista o atendimento dos interesses dos usuários da política social, impõe-se
em primeiro lugar que o profissional tenha condição de se manter próximo dos usuários, para
que possa perceber as demandas em pauta nas situações que trazem e, ao mesmo tempo,
mantenha um distanciamento crítico que lhe permita uma suspensão temporária da
cotidianidade, e para que possa refletir e pensar no sentido de equacionar as necessidades em
face das regras vigentes, reinterpretando-as sob a gerência dos pressupostos teóricos e
políticos que lhe servem de referência.
A conjuntura internacional atual impõe à profissão a apreensão crítica do que se passa
no mundo como exigência para ir além da mera adaptação aos novos tempos, pois nos
encontramos em face de conjuntura complexa e sabemos que, sozinhos e isolados, será difícil
a visualização de saídas aos desafios colocados. Isso demanda a formação do assistente social
como um intelectual crítico, não o simples adestramento do aluno para ser e se comportar no
futuro como mero técnico que realiza mecanicamente a pauta definida pela instituição que
paga o seu salário.
A direção social estratégica da ação profissional a ser fortalecida se dirige àquela que
visa à defesa dos interesses dos que vivem ou dependem do trabalho para viver, embasada em
projeto profissional, profundamente articulado nas suas bases com um projeto societário de
classe que objetiva a emancipação humana.
Como observa Iamamoto (2007, p. 171), pensar o projeto profissional supõe articular
uma dupla dimensão:
Fundada nessa apreensão, entendo que ser comprometido com esse projeto pressupõe
ter vivacidade e disponibilidade constante para, ao realizarmos as leituras das tendências e dos
processos em curso na sociedade e nas instituições sociais, optarmos pelo apoio e adesão
àqueles que mais se aproximam dos compromissos assumidos, o que representa, muitas vezes,
escolhermos o “menos pior” diante da conjuntura que se apresenta a nós e na qual estamos
inseridos como sujeitos.
Esse jeito de viver comprometido implica a realização permanente de escolhas, dentre
as alternativas possíveis, por aquelas que mais se aproximam de nosso projeto em detrimento
daquelas que mais nos distanciam dele. Trata-se, portanto, de ato consciente permanente que,
não é só discurso, implica ação cotidiana pautada na crítica.
Grandes desafios se colocam claramente aos profissionais na atual conjuntura, diante
do compromisso assumido com os interesses daqueles que dependem do trabalho para viver.
Pudemos, através deste estudo, presenciar como atua e pensa o grupo de assistentes
sociais entrevistadas em Portugal, constituído por mulheres que, à exceção de Luiza, que é
mais jovem, teve ativa participação na construção da profissão no e a partir do processo de
redemocratização do país a partir de 1974. Elas se envolveram desde então na construção e
desenvolvimento de políticas sociais, entendidas como fruto das lutas sociais empreendidas
pelos trabalhadores, e têm consciência da perda brutal quanto aos direitos sociais na
contemporaneidade e de sua repercussão direta no dia a dia do seu trabalho.
Através das entrevistas realizadas no Brasil, pudemos perceber claramente que se
sentem desorientadas em diferentes graus e mesmo em crise, ao se deparar com uma nova
geração de profissionais que chega a colocar em dúvida os seus “ensinamentos” nos cursos
em que são docentes. A prática profissional tarefeira e burocratizada que se apresenta hoje no
exercício profissional, à qual elas têm contato através das supervisões que realizam em vários
espaços da profissão, faz com que ouçam com certa constância a fala dos alunos de que os
conhecimentos “não funcionam na prática”. Diante dessa grave situação, entram em profundo
questionamento, põem-se em busca de novas saídas coletivas para os desafios colocados à
profissão na atualidade.
Há um reconhecimento geral das profissionais entrevistadas de que precisamos
pesquisar melhor o cotidiano profissional para a construção de mediações, para que possamos
reatualizar nosso projeto ético-político, incorporando as novas demandas da atualidade, de
modo a reafirmar os compromissos assumidos com os interesses dos que vivem-do-trabalho.
Em Portugal, a perspectiva mais crítica é denominada “reflexiva”.
317
Naquele país, pude perceber, principalmente por Tília, que é uma liderança sindical,
que estão com fraca organização política da categoria, e a capacidade de análise individual
não dá conta de entender os reflexos da reordenação do capitalismo internacional que rebate
no país e no exercício profissional em dois sentidos mais fortes: enquanto categoria
assalariada, os assistentes sociais vêm perdendo direitos como os demais trabalhadores; como
profissional, vive o aumento do controle sobre o seu trabalho, a aceleração do ritmo do
trabalho, e a insatisfação da população que também perde benefícios sociais.
No Brasil, percebo os assistentes sociais com grande capacidade de crítica, a
organização é mais expressiva, mas aqui também há perplexidades significativas diante dos
novos profissionais que estão se inserindo no mercado de trabalho, advindos dos cursos de
Serviço Social que estão proliferando em cada canto do país todo dia, sob a forma presencial
ou à distância, que fragilizam as conquistas organizativas obtidas pela categoria desde a
década de 1980. Também preocupa o agravamento das expressões da questão social e a
cobrança de “produtividade” a que os profissionais, a cada dia, e, com mais intensidade
passam a ser cobrados.
Os rebatimentos da “crise” nos espaços sócio-ocupacionais da profissão são evidentes
e dramáticos, como pudemos expor ao longo desta pesquisa.
Em relação ao produto das entrevistas realizadas, considero que obtive uma riqueza
tão grande de fatos que foram tratados por mim de acordo com o meu amadurecimento atual e
o tempo disponível para essa pesquisa. No Capítulo 4, em que tratei da análise das entrevistas,
creio que em alguns itens consegui apresentar sínteses de forma refinada, enquanto que em
outros as ideias ainda se apresentam como “pedras brutas a lapidar”.
Considero que este estudo teve e tem eco na profissão, pelo tão forte empenho
demonstrado pelos assistentes sociais nas entrevistas, quando se dispuseram com muita
prontidão a revelar o que passa nas organizações sociais e nas salas de aula. Quando as
convidei, coloquei as condições que elas prontamente aceitaram, concordando em participar.
Todas elas reconheceram a importância e a necessidade da realização de pesquisas que
coloquem em debate o exercício da profissão no âmbito da dimensão técnico- operativa do
Serviço Social.
Diante da focalização da política social, acompanhada de cortes no orçamento e
burocratização do atendimento, gera-se uma crise no exercício profissional, quando prevalece
a legalidade sobre a legitimidade do direito, e o assistente social vem recebendo com muita
intensidade as repercussões da execução dessa política.
318
aprovou um diploma que institui a prestação de trabalho social por parte das pessoas
em idade ativa que recebam subsídios do Estado, incluindo o Rendimento Social de
Inserção, para os quais haverá um máximo de 15 horas de trabalho semanal, num
máximo de três dias úteis. [...] O governo pretende apostar na capacitação e na
valorização dos cidadãos que recebem estes subsídios: “Quanto mais integrado
estiver o cidadão, mais facilidade terá em criar redes de ligação com ofertas de
105
http://www.jn.pt.
319
Em uma conjuntura de desemprego que pressiona pela demanda de mais serviços sociais,
o acesso aos benefícios sociais vem sendo dificultado através da criação de mais empecilhos ao
acesso para que, ao final, seja excluída uma parcela significativa da população hoje atendida pelo
RSI. Assim, a política social de caráter mais universal, praticada no continente europeu, vai, aos
poucos, se focalizando para atender alguns segmentos dos “pobres”, entendidos como separados
106
http://economico.sapo.pt/.
107
http://economico.sapo.pt/.
320
da classe dos trabalhadores, considerados como subcidadãos. Isso faz com que, aos poucos, os
mecanismos mais universais de acesso sejam extintos.
O acesso ao RSI mediante a cobrança da contrapartida de serviços de 15 horas
semanais do indivíduo significa, de fato, um pagamento pelo serviço prestado, pois o Estado
deixará de contratar funcionários, por exemplo, para cuidar de jardins, praças e ruas. O
indivíduo que necessita do RSI, na sociedade do mercado, tem que pagar o preço imposto pela
crise do capital, quando o fundo público passa a ser destinado prioritariamente para o
pagamento da dívida externa, diminuindo-se o orçamento destinado às políticas sociais, e
agora passa a ter que pagar, também, pelo benefício recebido do Estado, através da prestação
de serviços forçada.
No Brasil, onde nunca se chegou de fato a implantar o Estado do bem-estar social nem
o workfare, também há cobrança da contrapartida, que se dá sob outras formas que não a do
trabalho, como atualmente na Europa. São esses mecanismos que, ao final, vão tornando a
política social focalizada, em detrimento dos direitos conquistados através da luta
empreendida pelos trabalhadores.
Se tomarmos por referência os fundamentos do acesso aos serviços sociais nas suas
origens na Política Social e no Serviço Social, conforme exposto nos Capítulos 1 e 2 do presente
estudo, chegamos mesmo a tomar um susto, ao perceber que, apesar de tanta luta empreendida
pelos trabalhadores, as mudanças ainda são tão pequenas e que os fundamentos da seleção
socioeconômica praticada pelos primeiros assistentes sociais, ainda são presentes de forma viva. E
não é por acaso: o neoliberalismo atualiza, sobre os mesmos fundamentos, o liberalismo.
Diante desses significativos fatos que se apresentam, podemos perceber como o
agravamento da crise do capital e a consequente focalização das políticas sociais vem
tornando as condições de vida mais difíceis em Portugal e no Brasil, trazendo rebatimentos
diretos nas organizações sociais que materializam a política social, nas quais os assistentes
sociais se apresentam à população como seus representantes. Nesse sentido, as condições de
trabalho dos assistentes sociais vêm se tornando muito difíceis e dramáticas e sobre elas
deveremos continuar a refletir na busca da construção de respostas, visando atender os
interesses dos trabalhadores ou daqueles que dependem dele para viver. Porém, tendo como
horizonte que
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ANEXOS
336
ANEXO 1
Nome:_________________________________________________________________
Idade:__________
Ano em que concluiu a graduação em Serviço Social: _____
Unidade de Ensino em que realizou a graduação em Serviço Social: ________________
______________________________________________________________________
Fez ou faz o Mestrado? Sim ___ Não ___
Fez ou faz o Doutorado? Sim___ Não___
Especialização?
Especificar__________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
____________________________________
ANEXO 2
2. Considerando que o atendimento aos usuários dos serviços sociais é atravessado por regras,
normas, critérios e condições de acesso, acabando por colocar limites à ação profissional, o
que pensa sobre os critérios de acesso às políticas sociais (como se apresentam hoje aos
assistentes sociais em Portugal) e como lidou ou se lida com eles, no nível da operação
concreta?
3. A realização da seleção socioeconômica tem sido uma atribuição dos assistentes sociais
desde os primórdios da profissão. Gostaria que falasse um pouco sobre como a entende: o que
é, papel, utilidade e significado social da seleção socioeconômica.
4. Em geral qual acredita que é a reação dos assistentes sociais ao terem de realizar seleções
socioeconômicas, tanto em termos até mesmo pessoais, de seus sentimentos? Qual é o seu
julgamento sobre esse procedimento dentro da profissão?
5. A ação do assistente social nos processos seletivos, ao final, faz com que alguns tenham
acesso aos serviços e outros não, ou seja, alguns sejam aceitos e outros recusados. O que
pensa sobre isso? As seleções em geral tendem a fazer com que os candidatos fiquem nos
lugares certos?
6. Como acha que um assistente social deve lidar com aqueles que se sentiram injustiçados e
que consequentemente fazem reclamações por não terem sido selecionados?
7. Tendo em vista o seu entendimento você pensa que as seleções socioeconômicas são
formas pelas quais se pode realizar justiça social e promover a igualdade? Poderia dar
exemplos?
10. Quanto aos procedimentos (recursos? meios?) característicos de todo processo de seleção
sócio-econômica, o que acha:
a) da forma tradicional de qualificar e quantificar as situações específicas apresentadas pelos
demandantes dos serviços, em relação à sua situação social e econômica, baseada unicamente
no critério de renda, tanto no caso de uma caracterização e mensuração desta de forma
individual, como de percapita familiar. O que você pensa a respeito e qual tem sido a sua
experiência?
b) do uso constante das entrevistas e das visitas domiciliares, entendidas como instrumentos
privilegiados de operação.
c) o que mais teria a dizer?
11. Gostaria que falasse um pouco sobre sua formação em relação a essa atribuição do
assistente social: como e onde aprendeu a fazer seleções ou estudos de avaliação
socioeconômica? Quais foram, enfim, as suas referências teórico- práticas?
13. Embasado na sua experiência, o que poderia dizer a um profissional recém formado sobre
como deve ser realizado um bom processo seletivo?
14. Outras considerações que queira fazer em relação ao tema da entrevista, ou mesmo
comentários que dizem respeito a sua participação como entrevistado nesta pesquisa.
ANEXO 3
ANEXO 4
Comentários sobre três temas principais das entrevistas com as assistentes sociais
portuguesas, discriminados abaixo:
a) como aparecem nas entrevistas com as assistentes sociais portuguesas;
b) como têm aparecido em sua experiência pessoal e profissional (docente e de campo)
ANEXO 5