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O Historiador e a Historia: um relato de Francois Furet m dos expoentes da historio- grafia francesa atual, autor entre outras obras de Pen- ser la Révolution Frangaise (1978), Francois Furet pertence a uma geracdo de historiadores que se formou nos anos 50 sob a égide da Ecole des Annales. Esta corrente, ou este grupo, que trouxe uma contribui- co fundamental a historiografia deste século, constituiu-se em torno da re- vista. Annales Economies, Sociétés, (hoje acrescenta-se Civilisations ao ti- tulo), lancada em 1929 por Marc Bloch e Lucien Febvre. No pés-guer- ra, uma segunda geracéo de historia- dores, tendo & frente Fernand Brau- del. veio consagrar em definitivo a importancia dos Annales, que con- quistaram um espaco institucional com a fundagao, em 1948, da 6.* Se- cao da Ecole Pratique des Hautes Etudes, hoje transformada em Ecole des Hautes Etudes en Sciences So- ciales, Dividindo atualmente seu tempo entre Paris e Chicago, Francois Furet retoma, nesta entrevista que concedeu a Aspésia Camargo em abril de 1987, U em Paris, algumas das idéias que de- senvolve no prefécio de seu L’Afelier de I'Histoire. Sua trajetéria como his- toriador, suas posig6es politicas, a di- versidades de perspectivas dentro da Ecole des Annales, a relagio entre histéria e filosofia, a definigéo mesma no campo da histéria, séo alguns dos temas aqui tratados. A.C. — Gostaria que nos falasse sobre suas origens, sua familia ¢ seus estudos. O que o senhor estudou, e como comecou'a se interessar por his- t6ria? — Nasci em Paris, sou filho da bur- guesia francesa. Meu pai era banquei- ro. Embora burguesa, minha familia era de esquerda, socializante, foi fa- vordével & Frente Popular em 1936. Um tio meu chegou a ser ministro de Léon Blum. De modo que tive uma educacao totalmente liberal, e mesmo quase anérquica. Quanto aos estudos, fiz letras, 10 e depois histéria na Sorbonne. Foram estudos um tanto longos, porque fui tuberculoso durante muitos anos — na época era uma doenga séria — e tive interrupcdes Estudos Historieos, Rio de laneiro, n. 1, 1988, p. 143-161 144 com temporadas no sanatério. Obtive a licenciatura em histéria em 1954, aliés, quando Braudel era o presiden- te da banca examinadora. Por que eu me interessei por histéria? Penso que foi sob a influéncia do marxismo. Foi na medida em que me tornei marxista, entre 20 e 25 anos de idade, que co- mecei a me interessar pela histéria como a ciéncia-mae, a disciplina cen- tral a partir da qual se poderia com- preender todas as outras. A.C. — O senhor fala muito nos historiadores de sua geragéo. Alguns deles — entre os mais conhecidos — © acompanharam desde o inicio de sua formagao? — Sim, formamos uma geragéo que possui um curriculum compardvel € que alias, no conjunto, foi bem-suce- dida nas instituig6es universitérias. E (© que temos em comum é que fizemos 20 anos nos anos que se seguiram a Segunda Guerra Mundial. Vivemos 0 fim da guerra como adolescentes, € muitos de nds estivemos na Resistén- cia. Eu por exemplo, estive no Maquis um pouco antes da libertagéo da Franga, entre junho e setembro de 1944, quando tinha 17 anos. A.C. — Como o senhor entrou para 0 Maquis? — Eu estava no Lycée Janson e fazia parte de uma resisténcia dos estudan- tes secundaristas. Faziamos coisas como distribui¢ao de panfletos, ativi- dades de campanha politica, e era uma resisténcia de esquerda, mas nao es- pecificamente comunista. Em junho de 44, j4 depois do desembarque dos americanos, quando as coisas comega- ram a se precipitar, fui para o Berry, na regiao central da Franca, onde mi- nha familia tinha uma propriedade. De lé fui para o Maquis, junto com ESTUDOS HISTORICOS — 1988/1 um regimento de forcas francesas do interior, que foi entao constituido. Foi uma experiéncia muito importante para mim, embora, para falar a ver- dade, eu nao tenha lutado realmente muito. Minha tnica experiéncia de combate foi a tomada de uma passa- gem de nivel. Mas para um adoles- cente superprotegido, com uma vida sem grandes problemas, foi efetiva- mente um acontecimento. Ao voltar, retomei meus estudos e, como muitos jovens franceses que eram bons alunos na escola secundé- ria, preparei-me entao para a Ecole Normale Supérieure, para a qual pres- tei exames em 46. Fui reprovado no exame oral e nunca mais tentei de novo, de modo que uma das origina- lidades que apresento € nao ser um normalien. A.C. — Realmente existe essa coin- cidéncia, de que quase todos os gran- des nomes da intelectualidade francesa sao normaliens. — E, mas ao contrério das pessoas que encontrei depois, na época da li- cenciatura, como Le Goff, Bergeron, Le Roy Ladurie, Agulon, que passa- ram pela Ecole Normale, jamais estive 1. Alias, isso ndo me prejudicou em nada, e creio mesmo que de uma certa maneira me beneficiou. Tenho minhas dividas de que os anos passados na Ecole Normale sejam favordveis a abertura dos jovens espiritos para o mundo. Na verdade, tenho observado que para muitos jovens que foram promissores nos bancos escolares, a passagem pelas grandes écoles signifi- cou muitas vezes o fenecimento de sua inventividade e de sua ambigao. Mas, parando de falar s6 sobre mim, 0 que ha de caracteristico na minha geragéo é que efetivamente muitos de nés fomos comunistas. A © HISTORIADOR E A HISTORIA geracgaéo quase como um todo era for- mada por pessoas de esquerda ou de extrema esquerda. Lembro que quan- do eu era jovem ser socialista era praticamente impensdvel, de tal for- ma isso parecia anddino. Quando se era de esquerda, era-se comunista. Lembro que quando eu me preparei para o concurso da licenciatura, o gru- po de candidatos — do qual faziam parte alguns que trilharam seu cami- nho na histéria, como Le Roy Ladu- rie, Agulon, Besancon, Richet, Ozouf — era todo de comunistas. Nessa épo- ca éramos todos marxistas e filiados ao Partido Comunista. Os que nao estavam no Partido em geral estavam muito préximos, eram simpatizantes. A diaspora do Partido ocorreu em tor- no dos anos 55, 56, 57, ou seja, com o krutchevismo. A.C. — Ou seja, coincidiu com o XX Congreso do PCUs. — Exato. E para nés, para a nossa geraco, coincidiu também com o mo- mento em que comegdévamos nossa vida profissional. Fomos comunistas quando éramos estudantes, e, por for- ga das circunstancias, deixamos o Partido e deixamos de ser comunistas no momento em que obtinhamos nos- sos primeiros postos como professores. De modo geral todos deixamos 0 Par- tido no mesmo momento, uns um pou- co antes, outros um pouco depois, mas sempre nos anos em torno do XX Congresso. A.C. — Para explicar a entrada ma- ciga dos intelectuais, dos jovens estu- dantes no Partido, podemos supor que a Resisténcia tenha exercido gran- de influéncia. Mas como o senhor ex- plica essa saida? — Realmente, nao hd mistério na nossa entrada. Eramos todos filhos do 145 antifascismo, e no periodo da liberta- Gao, bem como no apés-guerra, a for- ma privilegiada do antitascismo nos pareceu ser 0 comunismo. Havia o mito da Russia, do Exército Verme- Iho, um mito que aliés nos cegou, porque efetivamente ficamos cegos diante de todas as evidéncias. Aceita- mos ingenuamente uma série de men- tiras sobre o mundo soviético. Os mais prudentes de nés — foi o meu caso — felizmente nao escreveram nesse pe- tiodo. Se eu o tivesse feito, teria es- crito um monte de bobagens. Nao sei realmente se nao escrevi porque era jovem ou porque tinha uma espécie de bloqueio inconsciente. Agora, por que nés saimos? Por- que a sucessao de Stalin fez com que viesse 4 tona a enormidade das men- tiras das quais nds tinhamos vivido, e, de um momento para outro, o mundo do Partido Comunista Francés, que era um mundo particularmente stali- nista, nos pareceu refratdério & mu- danca. Como quase todos os que deixam o Partido, comecamos a aban- dond-lo ainda dentro dele. Ou seja, diziamos: “O principio continua vé- lido, apenas houve um desvio em seu interior. Portanto, permanegamos no mundo comunista para fazé-lo mu- dar.” E o modelo absolutamente clas- sico do revisionismo interno. Mas ao cabo de algum tempo, vocé percebe a total ineficdécia dessa agao interna, so- bretudo num partido téo militarmen- te centralizado como o Partido Comu- ta Francés. E depois, uma terceira etapa vem colocar em causa também © proprio principio, a propria idéia comunista enquanto tal. Eu, pessoal- mente, vivi todas essas etapas: o re- visionismo interno, em seguida a sai- da do Partido e finalmente o questio- namento da idéia comunista, da idéia de um Estado capaz de modificar a sociedade no sentido de uma maior 146 igualdade e de uma maior transparén- cia. Eu diria que fiz isto entre 55 e 58, € que desde ento néo mudei mui- to de opiniao em politica. Estou a direita da esquerda e & esquerda da direita, bastante cético quanto aos limites da agdo politica, ou, ao contrario, bastante convencido quanto ao valor bésico da democra- cia como a melhor forma politica para a vida dos cidadaos. Dentro destes limites, nunca fiz politica muito ati- vamente. Para me situar, entretanto, eu di que fui conselheiro técnico de Edgar Faure em 1968, quando ele fez a reforma universitdria francesa que foi muito atacada pela direita. E nos anos 70, fui muito reticente diante da equacéo Mitterrand-unido da es- querda, porque a considerava hipote- cada pela unido com os comunistas. Mas votei em Mitterrand em 81. Sem- pre achei, porém, que sua experiéncia desde 0 inicio esteve comprometida por um peso extremamente negativo, que € a aliancga comunista, cujas conse- qiiéncias so uma série de equivocos sobre a sociedade moderna. Sempre achei, em fungao disso, que, se 0s so- cialistas tomassem o poder, estariam condenados a cometer erros tais que seriam obrigados ou a renunciar a0 poder, ou a renunciar as suas idéias. A.C. — O que o senhor acha que aconteceu? — Eles renunciaram as suas idéias! O que faz com que nao tenham go- vernado tao mal. Mas hoje em dia eles estéo diante da necessidade de uma renovagao de idéias, que € o cerne do problema da esquerda francesa. A.C. — Nao seria da esquerda in- ternacional? — £ um problema internacional, mas que os espanhéis, por exemplo, esto ESTUDOS HISTORICOS — 1988/1 resolvendo melhor do que os france- ses, na minha opinido. Em poucos anos Felipe Gonzales conseguiu fazer do socialismo espanhol uma forga go- vernamental dotada de credibilidade — mesmo que nos tiltimos seis meses 0 possa soar menos verdadeiro do que hé um ano atrds. Quero dizer com isso que ele libertou o socialismo espanhol das hipotecas do marxismo- leninismo que ainda pesam muito so- bre o socialismo francés. Parece-me que a grandeza de Mitterrand teria sido fazer o socialis- mo francés dar um passo absoluta- mente decisivo, que consiste precisa- mente em liberté-lo dessa cultura ficticia do radicalismo revoluciondrio na qual a esquerda francesa se destaca hé duzentos anos. Ele até fez isso, mas sem declard-lo — a pedagogia de Mitterrand, como sempre, é uma peda- gogia pratica. Ele fez isso sem dizer que estava fazendo, sem confessé-lo, e tanto isso é verdade que o Partido Socialista hoje esté incerto quanto ao rumo a seguir. Nao sabe se as conces- sdes que foi obrigado a fazer a sua doutrina entre 1983 e 1986 sio de- finitivas ou provisérias, se um dia po- derd voltar as velhas idéias de ruptu- ra com o capitalismo. O que se verd nos préximos dez anos é justamente isto: se 0 Partido Socialista Francés vai aceitar ser uma forca cléssica da alternancia democratica do poder na Franga, ou seja, um partido de gover- no um pouco como a social-democra- cia espanhola, alemé, e até certo ponto inglesa, ou se prevaleceré o peso da velha cultura revoluciondria francesa. Como sou otimista, parece-me que 0.Partido Socialista Francés, de cinco ou seis anos para cé, esté no bom caminho. E isto aliés o que me faz nao lamentar meu voto em 81. Consi- dero bom ter votado em Mitterrand em 81, porque considero bom que a es- © HISTORIADOR E A HISTORIA querda tenha chegado ao poder e possa ter a experiéncia de governo. Como hoje a Franca € um pais que exporta muito, que est4 dentro do mercado europeu e mundial, nao é mais possivel fazer uma politica lou- ca do ponto de vista econémico du- rante muito tempo, pois logo come- gam a piscar os sinais de alarme. Se vocé faz uma desvalorizagao, j4 nao é muito bom. Duas, ainda v4 14. Mas nao € possivel fazer seis. Ou bem voce € obrigado a corrigir o rumo, e adota uma politica econémica e social mais razoavel, ou bem € obrigado a pular fora, E a Franca fez a primeira opgdo. Sob este ponto de vista, sou também inteiramente favordvel a Eu- ropa, porque a comunidade européia introduz nas culturas politicas de nos- sas velhas democracias um elemento de racionalizagao de gestdo que nao exis- te na esquerda. A.C. — Além de ser favordvel & co- munidade européia, o senhor é otimis- ta em relagdo A sua consolidagao? — Acho, como todo mundo, que ela avanga lentamente. Mas este proble- ma € extraordinariamente grave e nao deve ser subestimado. E extraordina- riamente grave porque a contribuigao histérica da Europa 4 civilizagéo e a histéria_universal foi exatamente a nagéo. O que a Europa inventou, em comparagéo com a Antiguidade, os impérios, as cidades-estados, foi pre- cisamente a nagdo. Apesar de tudo, vocé pode ver essa maravilha cultural, tao grande ao lado de tantas coisas. Se vocé retirar a Franga, a Inglaterra, a Alemanha, a Itdlia modernas, da histéria universal, vocé percebe que fica faltando muito 4 humanidade. Pois bem, agora se resolveu dizer as nagdes européias: “Foi muito bom ter-se feito as nagGes, mas neste mo- mento € preciso dissolvé-las.” E isto 147 para fazer uma coisa que nao é clara, que é a rentincia aquilo que foi feito de melhor. E isto que € muito dificil, e é preciso evitar encaré-lo com a inge- nuidade americana, que nao tem ne- nhuma experiéncia do que seja uma nacgdo européia e acredita que um modelo federativo de tipo americano possa se instalar com facilidade na Europa. As realidades néo sao absolu- tamente comparaveis. Menciono isso tudo para dizer que a lentidéo néo me atemoriza muito. Nos tltimos 30 anos, apesar de tudo, a idéia de um poder politico comum progrediu. O grande problema daqui para frente vai ser a relagéo com os americanos, pois a relacdo bilateral dos paises europeus com os Estados Unidos muitas vezes é muito mais im- portante do que a relagao desses pai- ses entre si, A.C. — Certamente. E 0 caso da Alemanha, por exemplo? — Sim. E da Franga também. Veja as relagGes intelectuais. Nés temos dez vezes mais relacées intelectuais com as universidades americanas de que com as universidades alemas ou inglesas. Isto coloca um problema sério, que € o do restabelecimento do equilibrio do lado da Europa. Considero isto fun- damental. Mas enfim, a coisa esté avangando. Se vocé observa a manei- ra como a Franca se abriu para 0 ex- terior nos dltimos 20 anos, é uma coisa espetacular. Quando eu era es- tudante, as universidades eram rigoro- samente francesas. Havia poucos pro- fessores estrangeiros, ninguém falava inglés etc. A mudanga foi gigantesca. Se vocé tomar as grandes instituicdes de pesquisa na Franca, verd que elas so internacionais. 148 A.C. — E verdade. Estou aqui como professor visitante da Ecole des Hau- tes Etudes certamente por causa disso. —A Ecole des Hautes Etudes, que dirigi por muito tempo, é uma insti- tuigdo totalmente cosmopolita. Ela tem duzentos professores franceses e, a cada ano, recebe cem professores visi- tantes estrangeiros, convidados. A.C. — Voltando ao Partido Comu- nista, que balanco o senhor faz de sua passagem por ele? Quais foram os pontos positivos, tanto sob o prisma pessoal, como profissional e intelec- tual? — E dificil dizer. E dificil avaliar em termos positivos ou negativos as coi- sas que aconteceram na nossa vida. Elas aconteceram, e pronto, Fazemos do que aconteceu o melhor que pode- mos. Mas, para qualquer pessoa que saiba refletir, um acontecimento da vida nunca é totalmente perdido, mes- mo quando € considerado o resultado de uma ilusio ou de um equivoco. Vou comegar pelos pontos negativos: o primeiro € que perdemos muito tem- po. Durante dez anos, em vez de ler os grandes livros da literatura univer- sal, todos os que estavamos no Partido lemos muitos livros que nao eram im- portantes. Nao estou me referindo a Marx, que foi provavelmente o tinico autor muito importante que lemos na época. Mas enquanto estéavamos no Partido, néo lemos Benjamin Cons- tant, néo lemos Hobbes, nao lemos Locke, ndo lemos Tocqueville etc. etc. E verdade que eu j4 conhecia Toc- queville desde o tempo do colégio, mas s6 fui estudé-lo, e aos outros, seriamente, depois. Portanto, houve uma perda de tempo. O que nés ganhamos, afora peque- nos talentos de organizagao, que aprendemos no Partido Comunista e ESTUDOS HISTORICOS — 1988/1 podem ser titeis na existéncia quando nos ocupamos de tarefas administra- tivas, foi uma experiéncia politica to- talitéria, que, na minha opiniao, di tingue aqueles que passaram por ela dos demais. Existem coisas que so espontaneamente compreendidas por aqueles que passaram pelo Partido, e que o resto da geragdo tem mais dif culdade de perceber. Eu fico até es- pantado de ver que pode existir um universo comum entre as pessoas que passaram pelo Partido Comunista ¢ compreenderam por que o deixavam, € os outros. Digo “que compreende- ram por que o deixavam” porque ha muitas pessoas que passaram pelo Partido Comunista e safram por ra- z6es acessdrias, sem nunca terem com- preendido a realidade do fenémeno, que deixaram o Partido Comunista mas permaneceram espiritualmente comunistas. E muito comum isso na Franca. Estou falando das pessoas como eu, que deixaram o Partido Co- munista rompendo com o tipo de ra- ciocinio, de cultura e de premissa in- telectual subjacente a adesao inicial. £ uma mentira dizer que todas essas pessoas passaram para a extrema direita. Algumas foram para a extre- ma-direita, mas a massa das pessoas como eu é de centro-esquerda, centro- direita, Ou seja, tornaram-se democra- tas liberais. Este € 0 caso mais fre- qiiente. A.C. — Em sua opiniao, portanto, quando as pessoas que passam pelo Partido e saem por razdes consciehtes, elas se tornam mais liberais? — Sim. Elas atribuem entéo mais im- portancia aquilo que no marxismo se chama de “liberdades formais”. O peso das liberdades formais sé pode ser bem apreciado num sistema que as nega, como sempre. © HISTORIADOR E A HISTORIA A.C. — No seu caso, isso explica- ria seu interesse atual pela Revolugao Francesa? — Sim, embora meu interesse pela Revolugao Francesa date de antes, do tempo em que eu era marxista. Ainda quando era estudante fiz uma disser- tagdo sobre a imprensa em 1789. Por- tanto, mantive meu interesse ao longo da minha evolugao. No comego, a Re- volugéo Francesa me interessava por ser uma das genealogias mais prové- veis do bolchevismo. Depois, ela me interessou pelas mesmas razGes, sé que eu me coloquei num ponto de vista critico. Em outras palavras, é evidente que eu me interessei pela Revolugao Francesa por razdes liga- das ao meu engajamento politico. Alias, digo isso francamente, eu me interesso pela histéria pelo que ela comporta de inteligibilidade para o presente. Penso que existem dois grandes tipos de historiadores. Existem pessoas que gostam da hist6ria pela historia: ficam felizes quando estdo diante de arquivos, de magos de manuscritos, através dos quais tentam ressuscitar uma €poca, e pronto. Este tipo de curiosidade nao é suficiente para me fazer trabalhar, para me fazer escre- ver uma histéria. Sinto necessidade de procurar na histéria o segredo do pre- sente. Este me parece ser o segundo tipo de curiosidade histérica, e nao o privilégio, apenas reconhego que é 0 meu. Mas sempre me espantou o fato de que esta curiosidade pela histéria como chave do presente esteja distri- buida de maneira tao desigual entre os historiadores que conhego. Ha Pessoas que se interessam pela histé- ria simplesmente porque se interessam pela histéria. 149 A.C. — Isto me faz pensar ra cha- mada histéria tradicional. Durante seu periodo de formagao, qual era o peso da histéria tradicional? — Vocé fala da histéria événemen- tielle? O peso era muito grande nas instituigdes, na Sorbonne, por exem- plo, mas espiritualmente ela ja estava liquidada. Lembro nitidamente que nés, jovens marxistas, nunca ptinha- mos os pés na Sorbonne — vocé sabe que as universidades francesas s40 muito flexiveis nesse ponto, vocé po- de fazer os exames sem assistir as aulas. Freqiientavamos a 6." Sedo da Ecole Pratique de Hautes Etudes, ou- viamos Braudel, Vilar, Labrousse, e s6 excepcionalmente famos 4 Sorbon- ne para assistir a um ou dois cursos obrigatérios para a licenciatura. Para nds a questéo nem se colocava. O que contava eram os Annales, e pelo que eles ofereciam de compativel com o marxismo. A.C. — Este € justamente o outro lado da minha pergunta. Naquele mo- mento a Ecole des Annales j4 estava constituida desde algum tempo, e Brau- del inclusive fazia parte da segunda geracao do grupo. — Sim. Braudel fundou a 6.* Segdo da Ecole Pratique contra a Sorbonne. E no comego dos anos 50 ele jé ha- via ganho a partida, pois era o pre- sidente da 6." Se¢ao, professor do Collége de France e presidente da banca responsdvel pelo concurso para a licenciatura. Tinha uma situacéo absolutamente importante, era um ho- mem poderoso, mas curiosamente se pensava como minoria, porque nao es- tava na Sorbonne. O que prova a que ponto as mentalidades sobrevivem as situagGes. Até morrer Braudel sem- pre me disse que era perseguido. Quan- do ele entrou para a Academia Fran- 150 cesa, Le Monde estampou na primei- ra pagina: “Um perseguido — ou um marginal, ndo lembro bem — entra para a Academia.” Para vocé ver como os mitos so prodigiosos na Franca. A.C. — Como foi seu concurso para a licenciatura? Vocés, comunistas, es- tavam isolados dos outros? — N&o, absolutamente. A prova é que todos passamos mais ou menos brilhantemente no concurso, que era dificil, e pouco depois Braudel nos levou para a Ecole Pratique des Hau- tes Etudes. Nao estévamos isolados, mas, como sempre, a mentalidade co- munista € aristocratica Vocé a co- nhece! Digo mentalidade aristocratica no sentido de que se trata de um pe- queno grupo que sabe mais que os ou- tros, que possui uma doutrina esoté- rica que supostamente compreende e conhece aquilo que os outros nao compreendem € néo conhecem. Mas nao se pode dizer que na Franca dos anos 50 os comunistas estivessem @ margem da sociedade. Lembro que neste concurso dei uma aula de um marxismo absolutamente ortodoxo sobre a Polénia do século XVIII, e que Braudel a considerou es- pantosa. Eu explicava tudo pelo co- mércio do trigo na segunda servidao, pela necessidade de exportar e de au- mentar a taxa da mais-valia. A.C. — Ainda assim o senhor néo feve problemas com a banca? — Nao, porque vocé sabe que exis tem algumas pontes entre o braudelis mo e o marxismo, como bem mostrou © Braudel dos tltimos tempos. Quan- do vocé explica o essencial da his- t6ria através das grandes pulsagdes econémicas, de alguma maneira vocé tem uma linguagem comum com os marxistas. Mas os marxistas, sobretu- ESTUDOS HISTORICOS — 1988/1 do os comunistas franceses, eram tao sectérios naquela época que atacavam Braudel, escreviam contra ele. O que era um absurdo, porque os “niveis” de Braudel sao perfeitamente articuld- veis com uma teoria marxista da his- téria, embora, naturalmente, sejam muito menos dogmaticos do que o marxismo. Porque no marxismo, afi- nal, de alguma forma ha uma teoria da causalidade. A.C. — Mas o que eu queria saber é se no seu tempo de faculdade havia discusses entre os estudantes em tor- no dos modelos da histéria social, pra- ticada pelo grupo dos Annales, ¢ da hist6ria événementielle, Discutia-se isso? — Para nds, se vocé quer saber, © que os Annales diziam ndo era su- ficiente, era apenas evidente. E era evidente porque eles reabilitavam a parte econémica. Pela mesma razio nés tinhamos uma grande admiracao por Rostovtzeff — ainda que ele fos- se um historiador antisoviético porque ele fazia uma interpretagdo econémica e social da queda do Im- pério Romano. Achdévamos isso for- midavel, uma interpretagéo econémi ca e social... Pelas mesmas razGes por que Braudel € compativel com uma interpretagao marxista, Rostovt- zeff também o é. A.C. — Como o senhor vé, no in- terior dos Annales, o papel do mar- xismo e 0 papel da sociologia, de Durkheim? — O papel do marxismo nos Anna- les foi inexistente no comego, Nao ha vestigios de marxismo em Marc Bloch e€ em Febvre, nem mesmo vestigios de que eles tenham lido Marx seria- mente. O que foi importante no co- mego dos Annales foi a geografia, 0 © HISTORIADOR E A HISTORIA determinismo geogréfico, os inicios da sociologia, com Durkheim, Halbwachs, Mauss, e da economia estatistica, com Simiand. Isto € que foi importante. Vocé percebe que so fontes essen- cialmente francesas, porque viviamos ainda num mundo muito protecionis- ta do ponto de vista cultural. Foi real- mente Marc Bloch quem mais se abriu para o exterior, quem mais teve curio- sidade sobre os ingleses e os alemaes, embora com uma visdéo nao muito me- todolégica. Mas nem Marc Bloch nem Febvre sao epistemélogos. Na verda- de, sio praticos da histéria, que pre- tendem abrir o campo da histéria. Mais tarde, Braudel, em sua tese so- bre o Mediterraneo, no fundo tam- bém no esté muito preocupado com uma epistemologia sistematica. Ele tem sua teoria dos niveis, do tempo longo, mas nao se interessa funda- mentalmente pelo problema da epis- temologia histérica. Penso que o en- contro dos Annales com o marxismo mais tardio, ocorre com a geraco precisamente dos anos 60, quando o marxismo se torna uma doutrina do- minante na Franga, com as ciéncias sociais. Eu digo mesmo que assisti mos nestes tltimos anos a uma marxi- zagao do braudelismo. A.C. — Como o senhor vé a in- fluéncia da Ecole des Annales sobre outras culturas que nao a francesa. j@ que se tratava de um movimen- to exclusivamente francés em sua origem? — Penso que € uma influéncia im- portante, mas dificil de ser delimita- da, pois esté muito misturada a de outras correntes, como 0 marxismo, 0 estruturalismo, as ciéncias sociais. Ou seja, esté misturada a idéia que pre- dominou na Fran¢ga nos anos 60, de que o que importa nao é aquilo que é manifesto, aquilo que se vé. mas 0 que estd por detrds do manifesto, por 151 detrés do que se vé. Quer vocé chame isso de inconsciente na psicandlise. de estrutura do parentesco, ou de mo- do de produgao, vocé tem sempre um mesmo esquema mental que faz com que aquilo que € mais manifesto seja ao mesmo tempo o mais superficial, aquilo que explica em profundidade seja sempre uma outra coisa. E este € um esquema, digamos, braudeliano, que no fundo € néo apenas compa- tivel, mas perfeitamente moldavel a todas essas epistemologias da suspeita, das quais as ciéncias sociais se alimen- taram durante muito tempo. E por isso que seria complicado separar a influéncia que pode ser atri- buida propriamente aos Annales da- quela que pode ser atribuida ao mar- xismo, por exemplo. E o marxismo como corpo de doutrina universal nao € pouca coisa. Em muitos paises — suspeito que seja o caso do Brasil, dos outros paises da América Lati- na, como também da América do Norte, ou da Inglaterra o braude- lismo passou pelo marxismo. Outro exemplo: 0 que se chamou nos Esta- dos Unidos de social history, 0 que fez Tilly nos anos 60. Eles descobri- ram aquilo antes de conhecer Brau- del. O braudelismo se sobrepés a uma coisa com a qual era facilmente com- pativel. Em outras palavras, creio que a universalizagio dos Annales foi vei- culada também por outros fatores além da propria forga da corrente dos Annales. Alias, se vocé quer minha opinido sincera, penso que os An- nales nunca propuseram uma episte- mologia histérica, que nao existiu um Unico metodolélogo na Ecole des An- nales, e que, por conseguinte, 0 que fez sua reputag&o foi algo bastante vago, ou seja, sua proposta de des- locar o tema da histéria, do politico, para 0 econémico e 0 social, do curto 152 Prazo para o longo prazo. E preciso acrescentar ainda que 0 acaso fez com que aparecesse um ntimero relativa- mente grande de bons historiadores na Franga, depois da Segunda Guerra Mundial, que divulgaram a Ecole des Annales, tudo isso somado 4 existén- cia de uma instituigéo verdadeira e forte como a Ecole des Hautes Etu- des. Vocé sabe que existe também uma realidade sociolégica da Ecole des Annales. Eu sempre digo brincan- do que a Ecole des Annales nao tem outra definigéo, sendo a de que ela é @s pessoas que eu encontro de manha no elevador. O que existe de comum entre Le Roy Ladurie, Le Goff, eu, Richet etc.? Como podem nos iden- tificar sob uma mesma etiqueta, di- zendo: eles séo da mesma escola? A.C. — E verdade, nao ha nada de comum. Um trabalha com demogra- fia, outro com representagdes... De toda forma, foram os historiadores que criaram a 6.* Secao da Ecole Pra- tique des Hautes Etudes. O senhor diria que a histéria sempre teve um papel importante dentro da escola? — Ela teve esse papel até mim, j4 que eu também fui presidente da es- cola durante muito tempo. E quando eu sai, em 1985, ninguém da nossa geracdo quis ficar no meu lugar. E um trabalho bastante absorvente, que obriga a perder tempo, e nao se en- controu nenhum historiador que qui- sesse fazé-lo. Foi entéo um antropé- logo, Marc Augé, que aceitou assumir a fungdo, que até mesmo desejava fa- zé-lo. E ele era um homem perfeita- mente aceitavel pelos historiadores, porque nao estava longe de nés. Ago- ra, isto corresponderia a uma tendén- cia profunda de recuo da histéria e de avango da antropologia? Nao creio. Penso que o que caracteriza o cené- rio francés hoje €, ao contrario, o fato ESTUDOS HISTORICOS — 1988/1 de que mais que nunca a histéria € a ciéncia central. Mesmo sendo uma ciéncia frouxa, vaga, a histéria con- tinua a ser a disciplina mais forte no sentido editorial, de mercado. A.C. — Os socidlogos se ressentem disso? — Eu diria que as duas disciplinas que me parecem estar numa crise muito grave sao a sociologia e a an- tropologia. Nao estou absolutamente certo de que a antropologia resista & descolonizagéo, nem ao conceito de relativismo cultural. Quanto a socio- logia, nao vejo nenhum sucessor de Touraine, Bourdieu, Boudon etc. Alias, fico tentado a acrescentar “me- lhor para nés”, porque néo sou um grande admirador da sociologia. A.C. — Voltando a essa questéo que o senhor mencionou, da predo- minancia no pensamento francés dos anos 60 de um preconceito contra tu- do o que é manifesto. Este precon- ceito atingiu o politico, que é sem divida o que existe de mais visivel, e por isso mesmo foi considerado o menos importante, Parece-me que seu papel, ao estudar a Revolugdo Fran- cesa, foi justamente o de reintroduzir na histéria as questoes da politica. — Sim, mas esta partida ainda nao foi ganha. A massa da Ecole des An- nales, os historiadores, mesmo da ge- ragao seguinte 4 minha, estéo ainda ligados a histéria social, 4 hist6ria das mentalidades. Ou seja, 0 que thes teressa € menos a histéria das id do que a hist6ria da recepgo social das idéias. E eu advogo que a histé- ria politica seja ao mesmo tempo a hist6ria das idéias, nao apenas de sua recepgdo social. E alids, dentro dessa perspectiva, eu advogo uma alianca da hist6ria com a filosofia. Minha idéia central, 0 que eu faco no Ins- © HISTORIADOR E A HISTORIA titut Aron, é juntar os historiadores e os fildsofes. E tentar reabilitar nao apenas a histéria do politico, mas também a histéria das idéias, que foi praticamente arruinada pela Ecole des Annales. A.C. — A mentalidade superou a idéia. — Exatamente. E para a histéria das idéias, 0 politico € o lugar da liber- dade humana, o lugar do aleatério, da invengo. Somos obrigados a renun- ciar & idéia de que o que importa, 0 que determina o futuro, € 0 oculto, e, ao contrério, a estudar na historia a invengao, a liberdade, o explicito, 0 manifesto. E isto que me parece ser apaixonante. Parece-me que estamos saindo dessa falsa histéria, da cién- cia do implicito. Eu gostaria de voltar a idéia de que a histéria é a ciéncia, € 0 saber sobre 0 que os homens ma- nifestam. Um pouco a mesma coisa, se vocé quiser, que acontece na poli- tica, quando se observa o fim da con- cepgdo marxista da democracia. A concep¢o marxista nos quis fazer crer que 0 que importava era o que havia por detrés da democracia, o que a democracia escondia, sem nos dizer. E finalmente se percebeu que © que importa na democracia é 0 que ela diz, é unicamente a sua “palavra”. E, aliés, 0 fato de que todos os ho- mens sao iguais, e de que é simples- mente esta explicitagéo que modifica as relagGes entre eles. E isto o que eu queria fazer os his- toriadores compreenderem: que o lu- gar do politico € provavelmente o mais favordvel para se perceber a his- toria total de uma coletividade. Se vocé quiser compreender, por exem- plo, o que caracteriza a histéria in- glesa em contraste com a hist6ria fran- cesa, vocé nao deve se ater as infra- -estruturas, que séo bastante compa- 153 raveis. Se vocé comparar a Revolu- g4o Industrial na Inglaterra e na Fran- ga, ter4é os mesmos elementos, ainda que eles no obedegam aos mesmos ritmos. Ao passo que se vocé com- parar as idéias das culturas politicas dos dois mundos, vocé se vera diante de dois universos. A.C. — Tio diferentes quanto Rous- seau e Locke. — Exato. E independentemente, eu di- ria, da recepgao social dos dois au- tores. E 0 que me apaixona na Revo- lugéo Francesa é isto, € a invengao francesa da democracia, essa espécie de coisa extraordinaria que fez com que, no final do séc. XVIII, os fran- ceses inventassem uma forma radical, mas perigosa e fragil, de democracia, que tem relagdes complicadas com a liberdade. A.C. — Gostaria que o senhor ex- plicasse um pouco mais a idéia desta invengdo, porque o senhor insiste em que o tom da Revolugéo Francesa era mais rousseauniano, no sentido da democracia direta, em contraste com © modelo inglés, que privilegia a re- presentacéo. Embora a democracia di- reta nao tenha funcionado, como o senhor vé a enorme influéncia da Re- volugdo Francesa, essa espécie de in- ternacionalismo que faz com que mes- mo no Brasil se conhega nao a Revo- lugdo Inglesa, mas a Revolugéo Fran- cesa? Por que o éxito dessa combi- nagio mégica entre liberdade, frater- nidade e igualdade? — Para mim, a Revolugdo Francesa contém trés idéias princips se me for permitido esquematizar um pouco. A primeira idéia, que curiosamente é também totalmente antiinglesa, é a da tabula rasa, da ruptura com o passa- do. E a idéia de que um povo, num determinado momento da sua histé- 154 ria, pode se instalar para reinstituir radicalmente sua sociedade. £ a idéia do Ancien Régime na Franca, e € 0 préprio conteido da idéia revolucio- naria. A idéia de que a partir de um momento x da histéria um mundo pode ser reinstituido sobre uma his- téria que é pensada toda ela como corrupgéo. Esta é uma idéia louca, uma idéia apaixonante, que surgiu no fim do séc, XVIII. Até hoje, alias, tenho dificuldade em compreender seus elementos formadores. Enfim, esta € uma das grandes inovacdes da Revolugao Francesa. A segunda idéia forte da Revolu- cao Francesa é a ruptura com a or- dem religiosa, que é decisiva. A Fran- ca inventa a democracia contra a Igreja por razdes nas quais nao in- sistirei, ¢ que séo profundas. Por- tanto, inslaura-se uma cultura demo- cratica moderna contra a Igreja, com uma diferenga em relagio ao mundo anglo-saxdo, onde a democracia se instala dentro de uma revolugio re- ligiosa preexistente. E foi o caso fran- cés que se generalizou, que se uni versalizou, até mesmo na América Latina. E 0 terceiro elemento da Revolu- cio Francesa que é fascinante € 0 problema de pensar a representagio politica: de que maneira um corpo social, uma sociedade civil se repre- senta no nivel do Estado, se repre- senta no sentido proprio. Ou seja, de que maneira ela se instala sob uma outra forma que nao ela mesma, e no entanto fiel a ela mesma, no nivel do Estado. A idéia de representacio recebeu um golpe de Rousseau, ja que ele disse: “E impossivel. Para que a sociedade se encontre no nivel do Estado, é preciso que cada cida- dao etc. etc.” Bom, e a Revolucio Francesa pode ser lida toda ela como uma crise geral da representagdo mo- EsTUDOS HisTORICOs — 1988/1 derna, uma vez que ela termina com Bonaparte, que é um curto-circuito da representagado, que é uma forma mo- narquica da democracia. Ai esté. Uma vez que vocé perce- ba as trés idéias fundadoras da demo- cracia @ francesa, vocé compreende muitas coisas, me parece, do mundo moderno, dos ultimos duzentos anos. A.C. — Ouvindo-o agora, eu me per- gunto se a idéia do sufragio universal — que nao é a democracia direta nem tampouco a representagao a in- glesa — decorre da Revolugdo Fran- cesa. A pressio das massas para en- trar num sistema democratico decorre dai? — Mas 0 sufrdgio universal nao bas- la para fazer as massas entrarem na democracia, j4 que, como dizia Rous- seau, ele significa simplesmente que as massas alienam seu poder a cada qua- tro, seis ou sete anos a representan- tes que utilizam esse poder para fins que. eu diria, nao séo universai Quando se delega o poder, perde-se 0 poder. Isto é evidente. Existe um di- lema democratico, que nos permite desconfiar que Rousseau tenha de- monstrado perversamente em O con- trato social que a democracia é uma aporia légica num grande Estado. Mas isto posto, acontece que. de fato, a re- presentacao funciona. A.C. — Mas também nao funciona da maneira inglesa, que pressupde a existéncia de péquenas comunidades politicas. Mesmo para os americanos, no comego, a idéia era de uma de- mocracia para muito poucas pessoas, pessoas qualificadas. — Os anglo-saxdes tém menos proble- mas do que nés, porque eles nao con- vivem com a idéia de que os inleres- © HISTORIADOR E A HISTORIA ses nao sao representaveis, j4 que em Locke a propriedade € um direito natural. E a sociedade em estado na- tural nao € muito diferente da socie- dade politica. Ao passo que em Rous- seau, a passagem da sociedade natu- ral para a sociedade politica é terri- velmente dificil, ja que € preciso que © individuo se “‘desnature” para tor- nar-se um cidadao segundo o modelo do homem racional. A.C. — O conceito social de natu- reza é inverso. — Exato. Portanto, temos um pensa- mento da democracia na Revolugao Francesa que é um pensamento verda- deiramente forte do ponto de vista fi- loséfico, extremamente dificil de ser posto em pratica e que, a meu ver, produziu um século XIX francés tio célebre em patologias politicas, j4 que os franceses experimentaram sucessi- vamente varias monarquias, varias re- ptblicas, e chegaram a fazer um se- gundo Bonaparte. E é isto o que me interessa no caso francés, no que eu chamo de “teatro francés”. Se qui- sermos compreender a Franca con- temporanea, sé hé um meio de fazé-lo, que € passar pela politica. A.C. — O senhor pensa que a re- publica, e especialmente a repiblica francesa, € tudo 0 que pudemos ex- trair da Revolugao? — Sim, moderando a heranga. Porque se vocé observa como Ferry e Gam- betta fabricaram 0 consenso em 1877-80, vocé percebe que, ao lado da heranga dos direitos do homem de 89, eles conseguiram conjurar a lem- branga de 93, primeiro porque fuzila- ram os membros da Comuna e liqui- daram a supervalorizagdo da esquer- da, e também porque pediram socorro 155 ao comtismo. Para um brasileiro é facil compreender do que se trata. O comtismo contém uma idéia muito forte, que é a idéia da ciéncia. A cién- cia consolidando os direitos do ho- mem, mas as custas de uma contra- digo filosdfica, porque, como vocé sabe, Comte era hostil a 89 e a sobe- rania do povo. Por conseguinte, na heranca ferryista e gambettista ha uma combinagao entre a idéia dos direitos do homem, de liberdade etc., ¢ a idéia de um progresso cientifico inevitavel a humanidade. A.C. —O senhor considera que a idéia de Comte, enfim, a propria idéia de uma tecnocracia, tem relacio com a experiéncia histérica da Revolucao, da perda da aristocracia como classe dominante? — Bem, a tecnocracia é portadora da idéia cientifica, da idéia da raciona- lidade administrativa, mas no caso francés ela s6 se torna vitoriosa quan- do € concilidvel com a democracia. Vocé nao pode instalar na Franca uma ditadura de “cientificos”. A grandeza dos homens da Terceira Republica — que eu considero grandes homens. como Ferry e Gambetta — foi eles terem combinado a idéia da razao tec- nicista que vem de Condorcet, Saint- Simon, Comte, com a idéia da vonta- de geral, dos direitos do homem, e terem fundado a democracia sobre a vontade dos cidadaos. Sao idéias filo- soficamente contraditérias que eles conseguiram combinar, para criar 0 consenso francés. A.C. — Para criar um campo neu- tro, que foge & idéia de classes do- minantes. — Completamente. E é este consenso que 0 marxismo destréi no século XX. com a idéia de que sob o mito repu- 156 blicano escondia-se a classe domi- nante. E hoje, quando o marxismo esta morrendo na Franca, 0 que se redes- cobre € precisamente o valor dessas idéias dominantes de um grupo cole- tivo. Vocé nao fica espantada com 0 fim do marxismo na Franga? A.C. — Fico muito espantada, por- que quando morei na Franga, entre 1967 e 1974, era s6 0 que havia, Fre- qiientar os seminérios de Raymond Aron era muito malvisto. Ninguém se interessava por Pareto e por Weber. A moda era realmente Althusser e Poulantzas. E agora, nao estou ven- do mais nomes deste peso. — Acabou. Nao sei o que est acon- tecendo em outros lugares, mas na Franga o que se vé é o fim da cul- tura jacobina. E o fim da cultura mar- xista. E a descoberta do aleatério na histéria. Eu vejo os jovens que estao & minha volta no Institut Aron, que tém 30, 35 anos, e eles estdo todos apaixonados pela histéria politica e pela filosofia. A.C. — De certa forma, estamos falando aqui da “recepgao social” das idéias, que tanto interessou ao grupo dos Annales. Como o senhor mesmo disse hé pouco, os livros de histéria encontram hoje grande aceitacéo. O senhor considera que este “sucesso” da hist6ria possa provir do fato de ela lidar com o imprevisivel, com con- jungées de elementos que se combi- nam um tanto aleatoriamente? O se- nhor acha que a histéria é isto? — Sim. Em parte. Enfim, nem tudo € imprevisivel. E verdade que as ten: déncias econémicas sao mais previ veis. Mas naquilo que a histéria con- tém de invengao, ela é totalmente im- previsfvel. EsTuvos HISTéRICos — 1988/1 A.C. —E € isto 0 que Ihe interessa preferencialmente. — Sim. Enfim, 0 que me interessa € aquilo que fabrica as grandes indi- vidualidades hist6ricas, ou seja, as na- Ges, 0s povos, a hist6ria. O que fa- brica isso tudo esté muito mais no nivel do politico do que do econémi- co. A histéria econémica da Europa é comum a todas as nagdes européias. Como eu jé disse, ela no explica quase nada sobre as diferencas en- tre a Inglaterra e a Franca. O ele- mento que parece ser mais importan- te para a inteligibilidade do compor- tamento de um grupo coletivo é o politico. E a estrutura do imagindrio coletivo. Outro dia, por exemplo, con- vidamos Skinner para fazer uma pa- lestra, e ele nao pronunciou a pala- vra igualdade para falar da liberda- de a inglesa. Para um francés, isto é absolutamente inaudito. Para um fran- cés, 0 problema da igualdade é abso- lutamente consubstancial ao estudo da liberdade, desde as origens. Portanto, séo duas culturas politicas completa- mente diferentes que resolvem de ma- neira diferente um problema comum. E € por isso que eu digo que vocé ndo pode compreender nada sem a filosofia, O drama é que os grandes problemas foram muito trabalhados no século XIX. E, com as ciéncias sociais, acreditou-se na idéia falsa de que esses problemas podiam ser obje- to de uma ciéncia por assim dizer nova, ignorada no século XIX. O que eu condeno nos anos 60 e nas cién- cias sociais é elas terem feito crer que nao havia necessidade de ler os gran- des classicos para compreender o mun- do em que vivemos, que era preciso apenas fazer uma abordagem cienti- fica daquilo que estava ali ao lado, es- condido. Isto, na verdade, é uma brin- cadeira. © HISTORIADOR E A HISTORIA A.C. — Quais foram os autores e as leituras mais importantes para a sua formagao? — Os dois autores mais importantes para mim, de longe, sio Marx e Tocqueville. E, acessoriamente, o sé- culo XVIII: Montesquieu, Rousseau, Locke. Mas Marx e Tocqueville sio fundamentais. Hoje em dia, sou muito tocquevilliano. Penso que foi ele quem viu com mais profundidade as socie- dades em que vivemos. O capitulo que achei mais bonito em A democracia na América € aquele em que ele diz que a relacdo entre senhores e servi- dores existe em todas as sociedades, tanto aristocréticas como democrati- cas. Portanto, o fato de a democracia se caracterizar pela igualdade de con- digdes nfo impede que existam nela senhores e servidores. Mas qual é a di- ferenca entre esta relacdo nas aristo- cracias e nas democracias? E que nas aristocracias, a relagéo € estrutural. Existem senhores de geracéo em ge- rao, sempre da mesma familia, as- sim como servidores sempre das mes- mas familias. O fenémeno € interio- rizado como algo quase natural: as di- nastias dos senhores e as dinastias dos servidores, numa espécie de familia- ridade nao-conflituosa. Na democracia, existem senhores e servidores, mas os cidadaos sao considerados iguais. A conseqiiéncia € que a relagdo nao é mais suportavel, j4 que ela € contra- tual, é proviséria, j4 que, quando ter- mina de servir seu senhor, o servidor se tora rapidamente seu igual e dese- ja ser senhor um dia. Portanto, a re- lagéo € nao apenas conflituosa, ela atravessada pelo édio. E isto a demo- cracia. A.C. — Voltando mais uma vez 4 Revolugo Francesa, o senhor compa- raria © totalitarismo que ela instaura com o sistema soviético no stalinismo? 157 — Nao, eu nfo comparo. Eu nunca disse que a Revolugdo Francesa é to- talitéria. Jamais. Presto muita aten¢ao a este ponto. Porque um sistema to- talitdrio, para mim, é um sistema onde h4 um partido que controla a socie- dade. Isto nao acontece durante a Re- volugao Francesa. Nao ha partido. O que ha, sob Robespierre e os jacol nos, € um clube. E nao apenas nao ha partido, mas também nao hé a idéia da ciéncia da historia. O governo nao esta investido de um conhecimento su- perior do processo histérico que faz com que ele tenha uma espécie de transcendéncia natural em relagéo ao corpo social. A sociedade francesa sob © terror € uma sociedade que se amo- tina, que néo é atomizada nem dobra- da pelo poder politico, como aconte- ceu, por exemplo, com o campesina- to russo, que foi destruido pelo poder soviético. Nao acho absolutamente que se possa falar em totalitarismo no caso francés. O que existe virtualmente no caso jacobino, e sob forma patoldgica No caso russo, é a idéia do voluntaris- mo politico, ou seja, a idéia de que o poder politico pode tudo. E de que basta mudar os homens, regeneré-los, para fazer uma sociedade harmoniosa transparente. Para os jacobinos, isto durou apenas poucos meses. A idéia do voluntarismo politico, que vai se tornar no século XX uma idéia louca, no , no caso francés, uma idéia que tenha dominado a sociedade. A.C. — O senhor tem alguma sim- patia pelas idéias de Hannah Arendt? Porque ela analisa — e talvez num ni- vel muito filoséfico, ou seja, no nivel do ethos — a idéia de ruptura, do ano 1 da histéria. E as revolugdes Ameri- cana e Francesa talvez tenham sido os melhores exemplos desse fendmeno. — Sim, hé alguma verdade no que ela diz, ou seja, que a Revolugao Ameri- cana teve éxito na medida em que con- 158 seguiu fundar um sistema politico mais duravel, consensual etc., ¢ que a Re- volugao Francesa fracassou na medida em que teve a ambicao de mudar a sociedade, o que era uma ambigao, eu diria, inviavel. Isto posto, 0 nivel em que ela se coloca é tal que nao com- partilho de sua espécie de pessimismo radical en: relagéo & democracia mo- derna. A.C. — Como o senhor vé 0 campo da histéria hoje? Parece-me que esta- mos diante de um campo cada vez mais especializado, onde as visdes de conjunto, como fez Tocqueville, sio impossiveis, pelo proprio fato de que hd fontes demais, temas demais etc. 0 senhor é favordvel & especializagao ou, ao contrério, acha que se deve pro- curar © conjunto? — Creio que é preciso que a histéria permaneca um saber erudito e relati- vamente lento de ser adquirido, por- que € um trabalho dificil, em que é necessdrio saber muita coisa, ter mui- tas leituras, consultar muitas fontes pa- ra escrever. Isto posto, eu lamentaria muito que a histéria renunciasse as idéias. A tensao da histéria esta sem- pre entre a erudigao e as hipéteses de conjunto. Portanto, considero que o historiador deve sempre conservar as duas, ou seja, ser sério no manejo das fontes, de seus conhecimentos, e¢ ao mesmo tempo nao ter medo das hipé- teses. traco dominante da histéria hoje, no mundo em que vivo, ou seja, na Europa e nos Estados Unidos, é de longe a histéria social. Este tipo de historia corre 0 risco de ser cada vez menos significativo, na medida em que se orienta cada vez mais para o insig- nificante. Na medida em que se pro- cura compreender os minimos feitos de vida quotidiana dos homens, cor- rese o perigo de erigir em objeto his- ESTUDOS HisTORICos — 1988/1 térico praticamente tudo. E se tudo ¢ significativo, nada é significativo. E a mesma idéia sob duas formas diferen- tes. Nao tenho nada contra que se faca a historia da vida quotidiana, mas me parece que os cardapios dos albergues sicilianos no séc, XV séo menos impor- tantes do que o problema da decadén- cia do Império Romano. E é um pouco esse desequilibrio que eu combato. Sou favordvel a que se restaurem as gran- des quest6es, ou seja, a decadéncia do Império Romano, a querela das inves- tiduras e a historia da luta entre o pa- pado e os poderes temporais europeus, a questo da democracia, a Reforma etc. etc. Sou favordvel a que se volte &s grandes questdes que jé foram mui- to trabalhadas, mas em grande parte ainda permanecem abertas. E advogo que os historiadores parem de querer por todos os meios dar provas de ori: ginalidade, operando sobre novos mi- crotemas, € ataquem os grandes temas que o século XIX nos legou e nos quais ainda estamos. A.C. — Um estudo da histéria a par- tir da cultura nao impede uma certa viséo global. — Além do mais, é preciso prestar atencdo também ao grau de conheci- bilidade possivel dentro da histéria. A histéria sexual, por exemplo, voltou & moda hoje em dia. Nao tenho nada a opor. Mas se ha uma coisa que me parece rigorosamente inconhecivel, & isto. Nao creio um minuto sequer que se possa reconstituir a histéria das pul- sdes, dos objetos sexuais, nos perio- dos antigos. Portanto, é preciso tam- bém termos ambicoes pertinentes em relacdo as fontes de que efetivamente dispomos. A.C. — O senhor € muito historia- dor nesse sentido. — Muito, muito classico. © HISTORIADOR E A HISTORIA A.C. — As fontes delimitam as ques- tes. — Delimitam, e eu penso que na se- lecdo das questGes, teriamos todo in- teresse em rever os velhos livros clas- sicos. Por exemplo, uma das coisas que me espantam nos historiadores contempordneos é muitas vezes sua extraordinaria erudigao sobre as fon- tes e sua ignordncia dos grandes tex- tos filoséficos. Acho isso muito mau. Hoje se pode transformar em historia- dor uma pessoa que conhece muito bem as fontes de arquivos de um cer- to periodo, mas nao leu os grandes textos de filosofia ou de histéria do século XLX ou XX sobre o assunto. Isto € um pouco produto do positivis- mo, ou seja, da idéia de que basta descobrir os fatos da histéria para em seguida comecar a escrever. A.C. — Nesse sentido. portanto, 0 senhor concorda que a histéria tradi- cional esté morta. Seria preciso fazer também uma histéria social da poli- tica. — A histéria tradicional tinha sobre- tudo esse defeito: era uma histéria événementielle que extraia sua signi- ficago de uma colecdo de fatos que supostamente deveriam falar por eles mesmos. Quando na verdade a hist6- ria factual nao dispensa o trabalho in- telectual, as hipéteses, a compreensao. A.C. — Jd que estamos falando em historia total, como o senhor vé Toynbee? — Nao o li a fundo. Mas sua hist6- tia dos desafios e das respostas per- mite efetivamente refazer a hist6ria universal através de uma problemati- ca. Tenho alguma admiracéo por aqueles que se preocuparam com a historia universal, até mesmo Spen- 159 gler, que, como se sabe, foi um produ- to perigoso, e Toynbee. Admiro tam- bém 0 tipo de ambigao césmica que essas pessoas representam. Mas ao mesmo tempo, fico um pouco descon- fiado, porque quando a gente vé o tempo necessério para trabalhar uma questao. . . A.C. — Como o senhor vé o cam- po da histéria nos Estados Unidos? — Os Estados Unidos séo um pais t@o vasto que vocé pode encontrar nele quase tudo. Todas as tendéncias francesas, tanto as antigas como as novas. Se ha althusserianos, hd tam- bém lacanianos, foucaultianos, brau- delianos. Mas o tipo de histéria que os historiadores americanos fazem é muito influenciado pelo modelo in- glés. Em geral é bom no plano da eru- digdo, das fontes, do material, e talvez tenha sido influenciado um pouco de- mais, nestas ultimas décadas, pela obsessdo da histéria social. Mas, em certos setores, € uma histéria de pri- meira ordem. Por exemplo, na histéria econdmica, eles talvez sejam superio- res a nés — a economia sempre foi particularmente brilhante nos Estados Unidos e nos paises anglo-saxdes. A contribuigéo americana 4 histéria cu- ropéia também é enorme. Hé algumas décadas vém aparecendo centenas de livros sobre a hist6ria da Franca es- critos por americanos, e alguns sao realmente muito bons. Paxton escre- veu os melhores livros de histéria so- bre a Franca durante a Segunda Guer- ra Mundial; Bob Darnton escreveu sobre a Franca do século XVIII livros excelentes. Os historiadores da Res- tauragao francesa sao anglo-saxdes, em grande parte americanos. Ou seja, existe uma forte contribuicao america- na a histéria européia, a histéria fran- cesa. E além disso, existe uma excelen- te relacdo cultural franco-americana, 160 entre universidades francesas e uni- versidades americanas. A.C. — O senhor vai todos os anos aos Estados Unidos? — Sim, sou professor titular em Chicago, € isso me traz muitos bene- ficios. A comegar pelas condigées de trabalho, porque 14 h4 livros. Hé uma biblioteca absolutamente fantds- tica. Ha filésofos, ha historiadores. Para o que eu fago, é muito bom. E hé bons alunos. O que é ruim é 0 clima. A.C. — O senhor acha que hé algo de novo na histéria que esté sendo feita hoje em dia? Porque se fala ago- ra em “hist6ria nova”, ou “nova his- toria”... — Isso é uma bobagem! As pessoas se batizam periodicamente de “nova histéria” para dizer que nao gostam daquilo que uma parte de seus con- temporaneos faz. Nao acredito que isso seja verdade. A tnica novidade introduzida pelos americanos foi a counterfact history, a histéria estatis- tica com hipéteses contrafactuais, que é uma parte interessante da histéria econémica. Mas, tirando isto, 0 que quer dizer “histéria nova”? Se quer dizer que se esté fazendo a histéria dos povos, a histéria das pessoas, a histéria social, em lugar da histéria dos reis, isto é téo velho como o mun- do. Voltaire j4 condenava esta preten- so ha dois séculos. Por conseguinte, eu nao acredito que se possa fazer uma histéria radicalmente nova. O que se pode fazer € renovar os velhos temas ou tratar temas que nunca foram tra- tados com métodos jé testados. Des- confio da palavra “nova”, que é em- pregada um tanto excessivamente. Isto significaria o nascimento de um setor inteiro da hist6ria completamente novo. ESTUDOS HisTOrIcos — 1988/1 A.C. — Mas qual seria a novidade hoje em relagéo aos Annales? Porque nos Annales j4 temos as mentalida- des, 0 povo etc. — Por exemplo, a escrita da hist6- ria em linguagem matemética é uma novidade, mas é uma novidade meto- dolégica. Infelizmente s6 é aplicdvel a setores muito limitados da histéria, porque o que é formalizavel, na his- téria humana, em linguagem matemé- tica, € uma parte minima. Portanto, é€ 6timo que se utilize a linguagem mate- matica para esta parte, mas quanto ao resto, resistiré sempre A matemética. A.C. — O senhor falou em retomar os velhos temas. Afinal, o senhor esco- lheu o maior tema da histéria france- sa, que € a Revolugéo. O senhor nao sofreu _ pressdes, constrangimentos, pelo fato de ser este um campo muito ideol6gico? — Foi dificil, realmente, porque tive que limpar o terreno. Tive uma gran- de polémica com os historiadores co- munistas quando era jovem. Porque naquela época, quando eu era um jo- vem professor, 0 campo era caracte- rizado por uma enorme intolerancia contra tudo o que nao fosse a inter- pretagao classica — ou seja, leninis- ta — da Revolugdo. Mas fora isto — e ‘isto foi resolvido nos anos 60 —, ndo tive problemas. amos que, dentro do grupo de historiadores em que eu me encontrava — dentro da Ecole des Hautes Btudes — eu estava um pouco sozinho, havia poucas pessoas trabalhando na mesma érea que eu. Hoje em dia nao é mais assim. A.C. — Hoje nao é mais apenas a Revolugéo Francesa que esté em pauta, é toda a Franga, a politica fran- cesa, © HISTORIADOR E A HISTORIA — Sim, € a democracia moderna na Franga que me interesssa. Aliés, meu préximo livro trataré disso. Vou pegar todo o século XIX, vou pegar a Re- volugéo Francesa de 1780 a 1880. A.C. — Finalmente, a dltima per- gunta que lhe fago é a seguinte: para © senhor, o que & a historia? Porque hé uma coisa que, para uma socidloga como eu, que trabalha com a histé- ria, € surpreendente: os historiadores podem brigar por muitas razdes, mas eles estéo de acordo ao menos em de- finir procedimentos préprios e um campo de problemas. A dimensio temporal é um eixo decisivo. Para 0 senhor, 0 que € a histéria? —A histéria € indefinivel, porque se nés dizemos: “A histéria € 0 co- nhecimento do passado”, nao estamos dizendo muita coisa, jé que o passado 6 tudo, & desde aquilo que acabou de se passar entre nés hé um minuto até © comeco do mundo. Por conse- guinte, o conhecimento do passado é uma definigo de tal maneira vaga que ela nao diz muita coisa. Se se tenta cer- car mais de perto, cai-se no desacordo entre historiadores, pois nao se pode atribuir & hist6éria um método par- ticular, Nao se pode dizer, por exem- plo: “A histéria € 0 conhecimento do passado com 0 auxilio de fontes escri- tas”, j que hé quem obtenha esse co- 161 nhecimento por meio de fotografias aéreas, escavagoes arqueoldgicas. Vocé tampouco pode dizer que € um conhe- cimento obtido com o auxilio da esta- tistica, desde que nem tudo esté su- jeito a estatistica. Em resumo, a histéria € 0 conhecimento do passado com 0 auxilio de tudo o que se puder conseguir. Nao acredito que algum dia se possa dar uma definigéo da histé- ria mais satisfatéria do que esta. E isto me agrada, porque permite que cada um exerga sua imaginagao e seu talento préprio. Eu diria que este é um exercfcio que me agrada muito, porque contém 50% de saber e 50% de imaginagao. E preciso reinventar © que aconteceu. E portanto, isto cor- responde mais ou menos ao tipo de curiosidade que eu tenho. Nao gosto da curiosidade s6 pelo detalhe, a la Richard Cobb, pelo passado enquanto tal, que ressuscita com o auxilio de documentos uma vida que foi comple- tamente esquecida, andnima. E tam- bém nao tenho o espirito suficiente- mente abstrato para me interessar pela especulago filosdfica pura. Estou en- tre os dois extremos, e minha con- cepgao da histéria é que ela deve tor- nar inteligiveis as grandes articulagoes da mudanga no passado, no mundo de onde vimos e que nos fabricou. E por isso que me coloco a meio-cami- nho entre a abstracao filoséfica e o empirismo dos antiquérios.

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