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Kany / RESPOSTA A PERGUNTA: QUE E O ILUMINISMO? (1784) (3 Dez. 1783, p. 516)¢) © Iluminismo é a saida do homem da sua menoridade de que ele proprio é culpado. A menoridade 6 a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientago de outrem, Tal meno- ridade € por culpa prépria se a sua causa nfo reside na falta de entendimento, mas na falta de decisao e de coragem em se ser- vir de si mesmo sem a orientaco de outrem. Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu proprio entendimento! Eis a pa- lavra de ordem do Tuminismo. A preguiga ¢ a cobardia so as causas por que os homens em tao grande parte, apds a natureza os ter h4 muito libertado do controlo alheio (naturaliter maiorennes), / continuem, no entan- to, de boa vontade menores durante toda a vida; ¢ também por ue a outros se toma to fécil assumirem-se como seus tutores. E to cémodo ser menor. Se eu tiver um livro que tem entendi- () A indicagio da pégina da «Berlinischen Monatsschrift» refere-se & seguinte nota na frase: «Ser4 aconselhével sancionar ulteriormente o vinculo conjugal por meio da religito?» do Sr. Preg. Zbliner: «Que é 0 Iluminismo? Esta pergunta, quase tio importante como esta: Que é a Verdade?, deveria receber uma fesposta antes de se comesar a esclarecet! E, no entanto, em nenhum lugar a vi ainda respondida.» 1481, 482 —Nota J A481 mento por mim, um director espiritual que tem em minha vez consciéncia moral, um médico que por mim decide da dieta, etc., entio nao preciso de eu préprio me esforgar. Nio me é for- goso pensar, quando posso simplesmente pagar; outros em- preendergo por mim essa tarefa aborrecida. Porque a imensa maioria dos homens (inclusive todo o belo sexo) considera a Passagem & maioridade dificil e também muito perigosa é que Os tutores de boa vontade tomaram a seu cargo a superinten- déncia deles. Depois de, primeiro, terem embrutecido os seus animais domésticos e evitado cuidadosamente que estas criatu- ras pacfficas ousassem dar um passo para fora da carroga em que as encerraram, mostram-lhes em seguida o perigo que as ameaga, se tentarem andar sozinhas, Ora, este perigo ndo é as- sim to grande, pois aprenderiam por fim muito bem a andar. S6 que um tal exemplo intimida e, em geral, gera pavor perante todas as tentativas ulteriores. E, pois, dificil a cada homem desprender-se da menoridade que para ele se tomou / quase uma natureza, Até Ihe ganhou amor e é por agora realmente incapaz. de se servir do seu prd- prio entendimento, porque nunca se Ihe permitiu fazer uma tal tentativa. Preceitos e f6mulas, instrumentos mecfnicos do uso racional ou, antes, do mau uso dos seus dons naturais sio os grilhdes de uma menoridade perpétua. Mesmo quem deles se soltasse s6 daria um salto inseguro sobre 0 mais pequeno fosso, Porque niio esté habituado a este movimento livre. So, pois, Muito poucos apenas os que conseguiram mediante a transfor. magdo do seu espfrito arrancar-se & menoridade e iniciar entio um andamento seguro. Mas ¢ perfeitamente possfvel que um piiblico a si mesmo se esclarega. Mais ainda, é quase inevitével, se para tal Ihe for da- da liberdade. Com efeito, sempre haverd alguns que pensam por si, mesmo entre os tutores estabelecidos da grande massa Que, apés terem arrojado de si o jugo da menoridade, espalha- To A sua volta 0 espfrito de uma avaliacao racional do préprio valor ¢ da vocagao de cada homem para por si mesmo pensar. Importamte aqui € que 0 publico, o qual antes fora por eles su- 7A482, 483, jeito a este jugo, os obriga doravante a permanecer sob ele quando por alguns dos seus tutores, pessoalmente incapazes de qualquer ilustragao, é a isso / incitado. Semear preconceitos é muito pemicioso, porque acabam por se vingar dos que pes- soalmente, ou os seus predecessores, foram os seus autores, Por conseguinte, um piblico s6 muito lentamente pode chegar & ilustragao. Por meio de uma revolugdo poder talvez, levar-se a ‘cabo a queda do despotismo pessoal e da opresstio gananciosa ou dominadora, mas nunca uma verdadeira reforma do modo de pensar, Novos preconceitos, justamente como os antigos, serviréo de rédeas & grande massa destituida de pensamento, ‘Mas, para esta ilustragdo, nada mais se exige do que a liber- dade; ¢, claro esté, a mais inofensiva entre tudo 0 que se pode chamar liberdade, a saber, a de fazer um uso piiblico da sua ra- Z%0 em todos os elementos. Mas agora ougo gritar de todos os lados: ndo raciocines! Diz oficial: ndo raciocines mas faz exercicios! Diz 0 funcionério de Finangas: nfo raciocines, pa- ga! E 0 Clérigo: nao raciocines, acredita! (Apenas um nico se- nhor no mundo diz: raciocinai tanto quanto quiserdes e sobre 0 que quiserdes, mas obedecei!) Por toda a parte se depara com a restrigo da liberdade. Mas qual € a restri¢o que se opbe a0 Tuminismo? Qual a restrigzo que ndo o impede, mas antes 0 fo- menta? Respondo: 0 uso piiblico da propria razio deve sempre ser livre e s6 ele pode levar a cabo a ilustragdo / entre os ho- mens; 0 uso privado da razo pode, porém, muitas vezes coarc- tar-se fortemente sem que, no entanto, se impega por isso nota- velmente 0 progresso da ilustragdo. Mas por uso piblico da prOpria raziio entendo aquele que qualquer um, enquanto eru to, dela faz perante grande piiblico do mundo letrado. Chamo uso privado aquele que alguém pode fazer da sua razio num. certo cargo piiblico ou fungao a ele confiado, Ora, em muitos assuntos que tém a ver com o interesse da comunidade, é ne- cessério um certo mecanismo em virtude do qual alguns mem- bros da comunidade se devem comportar de um modo pura- mente passivo a fim de, mediante uma unanimidade artificial, serem orientados pelo govemo para fins puiblicos ou que, pelo 1-483, 484, 485, menos, sejam impedidos de destruir tais fins. Neste caso, nao é, sem diivida, permitido raciocinar, mas tem de se obedecer. Na medida, porém, em que esta parte da méquina se considera também como elemento de uma comunidade total, e até da so- ciedade civil mundial, por conseguinte, na qualidade de um erudito que se dinge por escrito a um piblico em entendimento genutno, pode certamente raciocinar sem que assim os negécios @ que, em parte, se encontra sujeito como membro passivo so- fram qualquer dano. Assim, seria muito prejudicial se um ofi- cial, a quem o seu superior ordenou algo, quisesse em servigo sofismar em voz alta / acerca da inconveniéncia ou utilidade dessa ordem; tem de obedecer, mas nao se Ihe pode impedir de um modo justo, enquanto perito, fazer observagées sobre os er- tos do servigo militar ¢ exp6-las ao seu pablico para que as jul- gue. O cidadao nfo pode recusar-se a pagar os impostos que lhe sao exigidos; ¢ uma censura impertinente de tais obrigagGes, se por ele devem ser cumpridas, pode mesmo punir-se como um escndalo (que poderia causar uma insubordinagdo geral). Mas, apesar disso, ndo age contra o dever de um cidadao se, como erudito, ele expde as suas ideias contra a inconveniéncia ou também a injustiga de tais prescrigdes. Do mesmo modo, um clérigo esta obrigado a ensinar os disc{pulos de catecismo e a sua comunidade em conformidade com o simbolo da Igreja, a Cujo servigo se encontra, pois ele foi admitido com esta condi- 40. Mas, como erudito, tem plena liberdade e até a missi0 de participar ao puiblico todos os seus pensamentos cuidadosamen- te examinados e bem-intencionados sobre o que de erréneo ha naquele simbolo, ¢ as propostas para uma melhor regulamenta- Go das matérias que respeitam a religido e & Igreja. Nada aqui existe que possa constituir um peso na consciéncia. Com efeito, © que ele ensina em consequéncia da sua fung0, como ministro da Igreja, expde-no como algo em relagdo / a0 qual nao tem 0 livre poder de ensinar segundo a sua opinido propria, mas est Obrigado a expor segundo a prescrigtio e em nome de outrem. Dird: a nossa Igreja ensina isto ou aquilo; sdo estes os argumen- tos comprovativos de que ela se serve, Em seguida, ele tira toda 18-485, 486, 487 > a utilidade prética para a sua comunidade de preceitos que ele proprio nao subscreveria com plena convicgdo, mas a cuja ex- Posigao se pode, no entanto, comprometer, porque néo é de to- do impossfvel que af resida alguma verdade oculta. Em todo 0 caso, porém, nfo deve af encontrar-se coisa alguma que se opo- nha a religio interior, pois se acreditasse encontrar af seme- Ihante contradigo, entéo, nao poderia desempenhar em cons- cigncia o seu ministério; teria de renunciar. Por consequéncia, 0 ‘uso que um professor contratado faz da sua razo perante a sua comunidade € apenas um uso privado, porque cla, por maior que seja, € sempre apenas uma assembleia doméstica; € no to- cante a tal uso, ele como sacerdote nfo ¢ livre e também 0 no pode ser, porque exerce uma incumbéncia alheia. Em contra- Partida, como erudito que, mediante escritos, fala a um piiblico genuino, a saber, ao mundo, por conseguinte, 0 clérigo, no uso piiblico da sua razio, goza de uma liberdade ilimitada de se ser- vir da propria razao e de falar em seu nome préprio. Com efei- to, € um absurdo, que leva A perpetuagéo dos absurdos, que os tutores do povo / (em coisas espirituais) tenham de ser, por sua vez, menores. Mas nio deveria uma sociedade de clérigos, por exemplo, uma assembleia eclesial ou uma classis (como a si mesma se denomina entre os holandeses) venerdvel estar autorizada sob juramento a comprometer-se entre si com um certo simbolo imutdvel para assim se:instituir uma intermindvel supertutela sobre cada um dos seus membros e, por meio deles, sobre 0 po- Vo, € deste modo a etemizar? Digo: isso € de todo imposstvel. Semelhante contrato, que decidiria excluir para sempre toda a ulterior ilustragdo do género humano, é absolutamente nulo e sem validade, mesmo que fosse confirmado pela autoridade su- prema por parlamentos ¢ pelos mais solenes tratados de paz. Uma época nio pode coligar-se e conjurar para colocar a se- guinte num estado em que se deve tomar impossfvel a amplia- 40 dos seus conhecimentos (sobretudo os mais urgentes), a urificagdo dos erros e, em geral, 0 avango progressivo na ilus- tragdo. Isto seria um crime contra a natureza humana, cuja de- 1A 487, 488 1” terminagao original consiste justamente neste avango. E os vin- douros tém, pois, toda a legitimidade para recusar essas resolu- gGes decretadas de um modo incompetente e criminoso. A pe- dra de tqque / de tudo o que se pode decretar como lei sobre um povo reside na pergunta: poderia um povo impor a si proprio essa lei? Seria sem diivida possivel, na expectativa, por assim dizer, de uma lei melhor, por um determinado e curto prazo, para introduzir uma certa ordem. Ao mesmo tempo, facultar-se- ia a cada cidadao, em especial ao clérigo, na qualidade de eru- dito, fazer publicamente, isto é, por escritos, as suas observa- g6es sobre o que hd de erréneo nas instituigdes anteriores; en- tretanto, a ordem introduzida continuaria em vigéncia até que o discemimento da natureza de tais coisas se tivesse de tal modo difundido e testado publicamente que os cidadaos, unindo as suas vozes (embora nao todas), poderiam trazer a sua proposta diamte do trono a fim de protegerem as comunidades que, segundo 0 seu conceito do melhor discernimento, se teriam coadunado numa organizagao religiosa modificada sem, no en- tanto, impedir os que quisessem ater-se & antiga. Mas é absolu- tamente proibido coadunar-se numa constitui¢ao religiosa perti- naz, por ninguém posta publicamente em divida, mesmo s6 du- rante 0 tempo de vida de um homem e deste modo aniquilar, por assim dizer, um perfodo de tempo no progresso da humani- dade para o melhor e tomé-lo infecundo e prejudicial para a posteridade. Sem duivida, um homem, para a sua pessoa, / ¢ mesmo entdo s6 por algum tempo, pode, no que Ihe incumbe saber, adiar a ilustragdo; mas renunciar a ela, quer seja para si, quer ainda mais para a descendéncia, significa lesar e calcar aos pés o sagrado direito da humanidade. Mas 0 que nfo € licito a ‘um povo decidir em relagtio a si mesmo menos 0 pode ainda um monarca decidir sobre 0 povo, pois a sua autoridade legisla- tiva assenta precisamente no facto de na sua vontade unificar a vontade conjunta do povo. Quando ele vé que toda a melhoria verdadeira ou presumida coincide com a ordem civil, pode en- {Go permitir que em tudo o mais os seus suibditos facam por si mesmos 0 que julguem necessério fazer para a salvagdo da sua 1.488, 489, 290 alma. Nao ¢ isso que Ihe importa, mas compete-lhe obstar a que um impega & forga o outro de trabalhar segundo toda a sua ca- pacidade na determinagao ¢ fomento da mesma. Constitui mes- mo um dano para a sua majestade imiscuir-se em tais assuntos, a0 honrar com a inspecgo do seu govemo os escritos em que os seus stibditos procuram clarificar as suas ideias, quer quando ele faz isso a partir do seu discemnimento superior, pelo que se sujeita & censura: Caesar non est supra grammaticos(*), quet também e ainda mais quando rebaixa o seu poder supremo a ponto de apoiar 0 despotismo espiritual de alguns tiranos / no seu estado contra os demais stibditos. Se, pois, se fizer a pergunta — Vivemos nds agora numa época esclarecida? — a resposta é: no. Mas vivemos numa €poca do Iluminismo. Falta ainda muito para que os homens to- mados em conjunto, da maneira como as coisas agora estio, se encontrem ja numa situago ou nela se possam apenas vir a por de, em matéria de religido, se servirem bem e com seguranga do seu proprio entendimento, sem a orientago de outrem. Te- mos apenas claros indicios de que se Ihes abre agora 0 campo em que podem actuar livremente, e diminuem pouco a pouco os obstaculos a ilustrago geral, ou a safda dos homens da menori- dade de que sto culpados. Assim considerada, esta época é a €poca do Luminismo, ou 0 século de Frederico. Um principe que néo acha indigno de si dizer que tem por dever nada prescrever aos homens em matéria de religigo, mas deixar-Ihes af a plena liberdade, que, por conseguinte, recusa 0 amogante nome de tolerdncia, € efectivamente esclarecido e merece ser encomiado pelo mundo grato e pela posteridade como aquele que, pela primeira vez, libertou 0 género humano da menoridade, pelo menos por parte do govemo, ¢ deu a cada qual a liberdade de se / servir da prépria razdo em tudo 0 que é assunto da consciéncia. Sob 0 seu auspicio, clérigos venerveis podem, sem prejufzo do seu dever ministerial e na qualidade de (©) «César nio esté acima dos graméticos.» 14-490, 491, 492 y eruditos, expor livre e publicamente a0 mundo para que este examine os seus jufzos € ideias que, aqui ou além, se afastam do simbolo admitido; mas, mais ainda é permitido a quem néo std limitado por nenhum dever de oficio, Este espirito de liber- dade difunde-se também no exterior, mesmo onde entra em conflito com obstaculos extemos de um govemno que a si mes- mo se compreende mal. Com efeito, perante tal governo britha um exemplo de que, no seio da liberdade, no ha o mfnimo a recear pela ordem piiblica ¢ pela unidade da comunidade. Os homens libertam-se pouco a pouco da brutalidade, quando de nenhum modo se procura intencionalmente nela os conservar. Pus o ponto central do Tuminismo, a safda do homem da sua menoridade culpada, sobretudo nas coisas de religido, por- que em relagdo as artes e as ciéncias os nossos govemnantes nfo 18m interesse algum em exercer a tutela sobre os seus stibditos; por outro lado, a tutela religiosa, além de ser mais prejudicial, é também a mais desonrosa de todas. Mas 0 modo de pensar de um chefe de Estado, que favorece a primeira, vai ainda mais além e discerne que mesmo no tocante & sua legislagdo / nao hé perigo em permitir aos seus stibditos fazer uso piblico da sua propria razfio e expor publicamente ao mundo as suas ideias so- bre a sua melhor formulagZo, inclusive por meio de uma ousada critica da legislagdo que j4 existe; um exemplo brilhante que te- mos é que nenhum monarca superou aquele que admiramos. ‘Mas também s6 aquele que, jé esclarecido, nao teme as sombras e que, a0 mesmo tempo, dispde de um exéreito bem disciplinado e numeroso para garantir a ordem piiblica — pode dizer 0 que a um Estado livre ndio € permitido ousar: raciocinai tanto quanto quiserdes € sobre o que quiserdes; mas obedecei! Revela-se aqui um estranho e ndo esperado curso das coisas hu- manas; como, alids, quando ele se considera em conjunto, qua- se tudo af € paradoxal. Um grau maior da liberdade civil parece vantajosa para a liberdade do espirito do povo e, no entanto, es- tabelece-Ihe limites intransponiveis; um grau menor cria-lhe, pelo contrério, 0 espago para ela se alargar segundo toda a sua capacidade. Se, pois, a natureza, debaixo deste duro invélucro, 14.992, 493 desenvolveu 0 germe de que delicadamente cuida, a saber, a tendéncia e a vocagio para o pensamento livre, entio ela actua por sua vez gradualmente sobre 0 modo do sentir do povo (pelo que este tornar-se-4 cada vez mais / capaz de agir segundo a li- berdade) e, por fim, até mesmo sobre os princfpios do governo, que acha salutar para si proprio tratar 0 homem, que agora é mais do que uma méquina, segundo a sua dignidadeC). K6nigsberg na Pnissia, 30 de Setembro de 1784. 1. Kant ©) Na publicagio semanal Noticias de Bilsching de 13 de Setembro, leio hoje, dia 30 do mesmo més, o antincio da «Berlinischen Monatsschrift> deste més, onde se inseriu a resposta do senhor Mendelssohn & mesma pergunta, Anda no me chegou as mos; de outro modo, teria retido a presente resposta 42, agora, £6 pode encontrar-se aqui com teitativa de Mostar até que ponto © scaso originow uma coincidéneia dos pensamentos, 14.493, 494 —Nota/ A494 B

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