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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA "JÚLIO DE MESQUITA FILHO” (UNESP)

FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS, DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA – câmpus de


Assis
CURSO DE GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA (LICENCIATURA)

Disciplina: Fontes para a Pesquisa Histórica


Professor Responsável: Wilton Carlos Lima da Silva

ALUNO: Thiago Pereira Camargo Comelli

ALBERTI, Verena. Fontes Orais: A História dentro da História p. 155-202. In: PINSKY,
Carla: Fontes Históricas. Editora Contexto, 1. Ed., 2005

Verena Alberti, Licenciada e bacharel em História pela Universidade Federal


Fluminense (1983), mestra em Antropologia Social pelo Programa de Pós Graduação em
Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (1988), doutora em Teoria da Literatura pela Universitat Gesamthochschule Siegen,
Alemanha (1993), e pós-doutora em Ensino de História pelo Institute of Education da
University of London (2009). É professora adjunta da Faculdade de Educação da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), na área de Métodos e Técnicas de Ensino
de História. Na Uerj exerce a função de coordenadora institucional do Programa
Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid), contemplado pelo Edital Pibid/Capes
7/2018, e integra o colegiado da Comissão Acadêmica Local do Mestrado Profissional em
Ensino de História (ProfHistória). Atua também como professora de História da Escola
Alemã Corcovado, no Rio de Janeiro. Entre 1985 e 2018 foi pesquisadora do Centro de
Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio
Vargas (CPDOC-FGV), em cuja Escola de Ciências Sociais ministrou disciplinas de
graduação e onde integrou o Programa de Pós-graduação em História, Política e Bens
Culturais. Tem experiência no campo da História, com ênfase em Teoria e Filosofia da
História e em História Contemporânea do Brasil, com destaque para as seguintes áreas:
ensino de história, história oral, narrativa, história das relações raciais e história do
pensamento sobre o riso. Publicou, entre outros, "O riso e o risível na história do
pensamento" (1999, 2002, 2011), "Manual de história oral" (1990, 2004, 2013) e "Ouvir
contar: textos em história oral" (2004), e organizou "Histórias do movimento negro no Brasil"
(em coautoria com Amilcar Araujo Pereira, 2007).

A autora inicia o capítulo ressaltando que a metodologia de produção de fontes orais


ganhou força a partir do século XX, após a invenção do gravador de fita em 1948. Porém, o
ato de ouvir atores e testemunhos para produzir narrativas históricas não era nenhuma
novidade, já existindo desde a antiguidade com Tucídides, Políbio e Heródoto. Entre
1918-1920, os precursores da História oral moderna William Thomas e Florian Znaniecki,
poloneses radicados nos EUA, registraram a vida de imigrantes poloneses radicados. De
modo que cidades passam a ser tomadas como laboratórios de pesquisa empírica,
experiências que exigem a gravação do relato em áudio/vídeo numa situação de
entrevista.
Outro marco importante para a pesquisa oral aconteceu em 1948, com a formação
da Columbia University Oral History Research Office. Nesse momento, se considerava a
transcrição do material gravado como documento original, e a preocupação principal era
entrevistar figuras públicas, importantes. Entrementes, na Europa, relatos de chefes da
Resistência Francesa também eram coletados, bem como na Alemanha com a transcrição
de testemunhos sobre a segunda guerra. Já no final da década, o Instituto Nacional de
Antropologia do México passa a registrar recordações dos chefes da revolução mexicana,
pesquisa que se intensificou com Alicia Oliveira e Eugenia Meyer em 1960-1970.
1960 é considerado como o boom da história oral. Com o aperfeiçoamento do
gravador portátil, passam a ser registradas as histórias de vida vindas de baixo, movimento
denominado como “História Oral militante”. A partir desse ponto, minorias, camponeses e
trabalhadores, passam a ter sua trajetória cotidiana de vida registrada. Para o pesquisador
Michel Trebitsch, esse movimento inicial era marcado por uma sistemática maniqueísta, que
buscava uma oposição ao positivismo do séc. XIX (do progresso, das nações e suas elites)
pela “contra história” antitética, local e comunitária.
Com o avanço nas ciências humanas, houve um amplo movimento de deixar de
pensar a história de maneira unificada, na busca de identidades nacionalistas, mas de
maneira plural. Passa-se a buscar múltiplas histórias, memórias e identidades numa mesma
sociedade. Para a autora, esse processo teve inicialmente certa resistência em se
incorporar na academia, pela forma como eram realizadas as entrevistas da História oral
“militante” (ALBERTI, 2005, p.158).
Ao tomar o relato como a verdade do povo, inequívoca, comete-se o erro de tomar a
fonte como História em si. Ela precisa ser cotejada, interpretada, passando pelos processos
análogos de outras fontes históricas para a criação de uma produção historiográfica
verossímil.
Não obstante, a autora considera que:

Outro equívoco decorrente da História Oral “militante” diz respeito


aos usos da noção de História “democrática”, ou História “vista de
baixo”. Será que o pesquisador que entrevista membros da elite –
isto é, que investiga visões de mundo e experiências de vida de
personagens da História “de cima” – escreve necessariamente uma
História “não democrática”? [...] polarizações do tipo História “de
baixo” versus História “de cima” contribuem para diluir a própria
especificidade e relevância da História oral [...] (ALBERTI, 2005, p.
158-159)

Por mais que os “de cima” deixem mais registros, Verena chama atenção para não se
utilizar a prioridade da fonte oral dos “de baixo” de maneira compensatória, como se fossem
mudos até poderem se expressar por meio do pesquisador/historiador. De modo que a questão
é “até que ponto os estudos sobre os grupos sociais marginalizados respondem às suas
demandas, quem lerá suas entrevistas e como fazer que os resultados da pesquisa retornem
aos grupos entrevistados. Quem financia a pesquisa?” (ALBERTI, 2005, p.159).

Já na década de 1970, denota-se uma progressiva sistematização metodológica das


fontes orais, com o surgimento de manuais especializados sobre padrões de coleta e
tratamento de entrevistas. Na mesma toada vão os franceses Danièle Hanet e Dominique
Aron-Schnapper, com reflexões sobre a atividade arquivística e a busca pela criação de
acervos de entrevistas, de modo a preservar e oferecer acesso aos depoimentos subordinados
a um projeto de pesquisa. Simbólico desse momento são publicações como a Revista Oral
Society (Britânica) e Oral History Review, bem como os encontros internacionais entre
pesquisadores.

Em 1975, a história Oral chega de fato em solos brasileiros, com o I Curso Nacional
de História Oral, ocorrido entre 7 de junho a 1 de agosto, organizado pelo subgrupo de
história oral do grupo de documentação em Ciências Sociais, formados por representantes de
quatro instituições de peso: A Biblioteca Nacional, o Arquivo Nacional, a FGV e o Instituto
Brasileiro de Biografia e Documentação. No CPDOC, foram realizados estudos sobre
trajetórias de elites brasileiras desde a década de 1930, focadas no processo de montagem do
estado brasileiro até o regime militar vigente. Segundo Verena, “procurava-se conhecer os
processos de formação das elites, as influências políticas e intelectuais, os conflitos e as
formas de conceber o mundo e o país” (ALBERTI, 2005, p.161).
Pode-se considerar a década de 1980 como a de consolidação metodológica das fontes
orais, com a publicação de coletâneas de artigos por nomes expressivos, como Jorge Balán,
Daniel Bertaux e outros. Em 1988, o Instituto Mora, na cidade do México, foi sede para o I
Encontro de Historiadores Orais da América Latina e Espanha, sob a coordenação de
Eugenia Meyer. O objetivo aqui era realizar uma rede de intercâmbio alternativa
predominante ao eixo Europa-EUA.

Já no Brasil, vários núcleos de pesquisa voltados à História oral foram formados a


partir da década de 1980. De acordo com levantamentos do CPDOC entre 1988-1989,
revelou a existência de pelo menos 21 instituições que se dedicavam à história oral em 10
estados diferentes do Brasil. Esse crescimento exponencial continuou na década de 1990,
com a criação da ABHO (Associação brasileira de História oral) em 1994, fruto do II
Encontro Nacional de História Oral, no Rio de Janeiro.

No plano internacional, a autora destaca a criação da International Oral History


Association (IOHA) em 1996, durante o IX congresso de História oral na Suécia. Vale
ressaltar a expressiva direção e presença de pesquisadores brasileiros no evento. Segundo a
autora, é simbólico desse momento um “movimento em direção ao sul do globo terrestre,
com encontros internacionais sendo sediados no Brasil, Turquia e África do Sul, bem como a
incorporação de pesquisas do Leste Europeu pós regimes socialistas” (ALBERTI, 2005,
p.162).

Esse quadro de sistematização crescente da história oral, consolidado pelos debates


das décadas de 1980 e 1990 contribui para que a História oral passasse a não mais ser vista
com a desconfiança de outrora. Ao adentrar nos currículos, dissertações e teses acadêmicas, a
autora ressalta mudanças de conjuntura dentro da própria disciplina História, que passou a
abranger suas fontes e metodologias. Inicialmente, a tendência positivista do séc. XIX era
dominante, tomando o registro escrito em detrimento ao oral, o passado remoto em
detrimento ao contemporâneo, partindo do pressuposto de que historiador não seria
suficientemente imparcial ao tratar de temáticas de seu tempo (ALBERTI, 2005, p.163).

Da mesma forma que a ênfase pós positivista dos annales em 1929 e suas edições
conseguintes, ao priorizarem as metodologias de longas durações (Fernand Braudel, 1949) e
fontes seriais, não tinham ainda o foco o indivíduo e sua subjetividade, mas sim a
representação de épocas ou grupos, continuidades e metodologias pautadas no medievo.
Simbólico disso é a publicação La Mediterranée et le monde à l’a époque de Philippe II
(1949), modelo de história total, “concretude da vivência humana e produção material da
vida” (PINSKY, 2005, p.13 apud D’ALESSIO, 1991, p.19).

A partir da década de 1980, são incorporadas temáticas contemporâneas ao estudo


histórico, bem como a subjetividade como objeto do pensamento científico e historiográfico.
Passa-se a priorizar as análises qualitativas, relatos pessoais e a transmissão de uma
experiência coletiva, as visões de mundo de uma determinada configuração social. Não seria
surpresa se também houvesse uma mudança do que seriam fontes, qual a melhor forma de
arquivá-las. Finalmente, as transformações tecnológicas do último quartel do séc. XX, e os
novos hábitos de comunicação e registro (fotos, músicas, artesanatos, filmes). Assim, se nota
o documento escrito deixando de ser o repositório exclusivo do passado.

Alberti chama atenção para a existência de todo um espaço de História oral fora da
academia: Práticas pedagógicas (alunos do fundamental e médio entrevistando parentes e
membros de suas vizinhanças, comunidades), campo da medicina (registro e transmissão de
experiências entre doentes, adaptações a adversidades), Legitimação e reforço de
identidades comumente marginalizadas (entrevistas realizadas com mulheres muçulmanas,
recurso terapêutico para afirmação identitária). (ALBERTI, 2005, p.164). Essencialmente
interdisciplinar, a História oral em tempos de globalização busca a vida cotidiana, família,
gestos do trabalho, rituais, festas e sociabilidade. Distante da polarização maniqueísta, busca
conhecer e registrar o múltiplo, em todas as camadas sociais.

Fenômeno similar, no que tange a revalorização dos discursos com alta carga
subjetiva, pode ser observado nas fontes memoriais acadêmicas da década de 1990,
tributárias do giro linguístico e interdisciplinar da década de 1970 de obras de Pierre Nora e
Roland Barthes (SILVA, 2015, p.115-116) e no cinema histórico, onde intencionalidade e
parcialidade, construção social (por um ator, instituição ou grupo social) e evidência material
de uma criação, são inerentes ao tomar os filmes fontes históricas (NAPOLITANO, 2005,
p.240).

Desconsiderando (a título de recorte no capítulo) as outras práticas de que não


consideram a entrevista Histórica como fonte para pesquisa, a autora chama atenção a
dispendiosidade do processo, pois exige várias entrevistas, preparações e revisões.
Uma das riquezas do estudo das fontes orais é perceber a elaboração de experiências e
relatos dos grupos entrevistados, suas perspectivas, muito visíveis em produções alemãs da
chamada “História da Experiência” (Erfahrungsgeschichte). A busca é entender como grupos
experimentaram e as possibilidades de questionar determinadas generalizações de
acontecimentos e conjunturas (ALBERTI, 2005, p.165).

Na mesma toada vão os historiadores Lutz Niethammer e Silvia Salvatici, ao ressaltar


a importância dos significados da história dentro da história, a fuga de generalizações até
pluriperspectivas empíricas colhidas. Ao ter acesso a uma multiplicidade de relatos, pode-se
perceber hierarquias de significações historiográficas. Outro campo favorecido é o da história
do cotidiano, da política, nas formas de articulação de grupos de interesse.

Instituições, mnemônicas e genealogias podem ser traçadas e melhor compreendidas


ao estudar os padrões de socialização, as trajetórias individuais, noções de pertencimentos em
comunidades. O próprio campo da memória, antes marginalizado por suas distorções e
subjetividades, ganha valor pela análise dos discursos orais, demonstrando a valores
coletivos, motivações de grupos. Segundo Alberti, “é de acordo com o que se acredita ter
ocorrido no passado que grupos sociais tomarão decisões no presente” (ALBERTI,
2005,167).

A memória é um objeto de contínua negociação, atrelada à construção identitária dos


sujeitos e seus núcleos sociais. Nas unidades, continuidades e coerências são geradas
identidades. Assim, trabalhar memórias e observar as disputas mnemônicas para compreender
tanto em stricto senso (o indivíduo, a vizinhança, o município, o estado) quanto no lato senso
(sociedade de maneira geral).

Frutuosos são os trabalhos realizados pelo sociólogo Michael Pollak. Já distante do


maniqueísmo memória oficial e memória dominada/subordinada, para o autor elas seriam tão
numerosas quanto as unidades que compõem a sociedade. Na mesma linha segue seu colega
Robert Frank, ao classificá-las em 4 tipos: Memória oficial da nação, memória dos grupos,
memória erudita e memória pública. Por fim, Alessandro Portelli chama atenção que na
modernidade, indivíduos fazem parte de vários grupos, extraindo por sua vez uma
diversidade ideológica e culturalmente mediada, organizadas de maneira idiossincrática
(ALBERTI, 2005, p.167).
Ponto importante é a grande distância entre a gravação de entrevistas e delas tirar
conclusões consistentes, além de que estudar a constituição mnemônica é diferente de as
construir, de modo que possui condições da produção e especificidades. São fontes a
posteriori e intencionalmente produzidas. Seguindo Peter Hüttenberger, ao dividir os
vestígios do passado em resíduos de ação e relatos de ação, podemos considerar as fontes
orais como relato de ações passadas ao mesmo tempo que residuais das ações, concretizadas
no ato de entrevistar.

Similar à autobiografia, mas com dois autores: entrevistado e entrevistador. A


condução da entrevista é parte do relato (científico, acadêmico ou político) sobre ações
passadas, das quais o entrevistador passa a ter uma relação residual dialógica: Entrevistador
pergunta, entrevistado se faz entender, narra. Ao narrar, constituem-se memórias. Mais que
um relato, formam uma documentação biográfica, reflexo do indivíduo e seus valores dando
sentido narrativo a concepções e práticas. De modo que o pesquisador deve estar consciente
dessa carga axiológica da fonte oral.

Por seu caráter biográfico, as fontes orais são prenhes de características estruturais de
grupos, e tipicidades comportamentais, bem como a possibilidade de deduzir em negativo
aquilo que seria potencialmente possível da época e sociedade narrada, conforme as
vivências do entrevistado. Assim, torna-se linguagem o que foi vivido, selecionado e
estruturado de forma a ter sentido coerente. Para a autora, a Teoria da literatura se mostra
ferramenta útil ao trabalho com as fontes orais (ALBERTI, 2005, p.171). Ainda que não seja
retrato inequívoco do passado, é inegável o fascínio causado na oralidade da experiência
vivida, tornando-a um veículo atraente de divulgação de informações.

Todavia, deve-se estar atento ao fato de significados, ações e escolhas serem


subordinados por uma visão retrospectiva e cumulativa na narração, denominada “ilusão
biográfica” por Pierre Bourdieu. Para o autor, a unidade do eu é uma abstração comum aos
sujeitos, que contam suas vidas como estradas teleológicas, carreiras, numa cronologia que
imprime à vida uma lógica prospectiva. Segundo Bourdieu:

Compreender a gênese social de um campo e apreender aquilo que


faz a necessidade específica da crença que o sustenta, do jogo de
linguagem que nele se joga, das coisas materiais e simbólicas em
jogo que nele se geram, é explicar, tornar necessário, subtrair ao
absurdo do arbitrário e do não motivado os atos dos produtores e as
obras por eles produzidas (BOURDIEU, 1996, p. 69).
Segundo Alberti, o trabalho de produção das fontes é dividido em três momentos:
Preparação das entrevistas, realização e tratamento. Na preparação, é necessário a criação
de um projeto de pesquisa e a elaboração de roteiros de entrevista. Para ser factível, a
pesquisa precisa de entrevistados em condições de prestar depoimento, tomados como
unidades qualitativas, não estatísticas. Quais seus papéis no tema tratado, quais os mais
representativos, os “desviantes”. Tipificar, delimitar quantos serão e qual será a forma de
entrevista, de forma a realizar uma lista dos possíveis entrevistados, que será flexível e
permanentemente revista, com breves biografias. Só ao final da pesquisa será possível uma
listagem definitiva.

Outro fator que o pesquisador deve se atentar é para o alto grau de imponderabilidade
das entrevistas, pois nem todas renderam o esperado, ou então passarão a render tempos
depois em outros contextos e temáticas. As Pesquisas orais oferecem diversidade de
qualidades e densidades. Assim, por mais representativos que sejam alguns entrevistados no
contexto, poderão se negar ou não saber relatar, tampouco se interessar pela temática. Para a
autora, isso não é demérito algum, pois a própria parcimônia do discurso serve de objeto de
reflexão (ALBERTI, 2005, p.173). De modo que os entrevistados “ideais” seriam aqueles
dispostos a revelar sua experiência abertamente, de preferência munidos de uma visão de
conjuntos e contextos. Para Aspásia Camargo, “aqueles com uma percepção aguda de si, mas
também da época, das relações grupais, das instituições, que consigam transcender a
experiência individual” (CAMARGO, 1976, p. 4-5).

Quanto ao número, ficará a critério da metodologia da pesquisa escolhida.


Determinados trabalhos podem ser constituídos com somente uma ou poucas fontes orais, por
preferencialmente usarem outras fontes, ou um depoimento único pode possuir valor
significativo suficiente por si só. Porém, caso a pesquisa tenha a História oral como
metodologia principal, a possibilidade de inúmeras entrevistas somente enriquecerá a
pesquisa, possibilitando comparações e contrapontos permanentes, gerando assim
consistência. De modo que apenas no decorrer da pesquisa será possível avaliar
materialmente a necessidade de mais entrevistas.

Importante é o conceito de saturação de Daniel Bertaux, no que tange a operação da


entrevista. Para o autor, haverá um momento no qual as entrevistas passarão a se repetir, seja
no conteúdo, seja na construção narrativa. Esse é o momento de ultrapassar o ponto de
saturação, realizando mais entrevistas que certifiquem do esgotamento. Vale ressaltar que
esse conceito cabe quando o pesquisador já tenha efetivamente diversificado seus
entrevistados, que sejam de diversas origens, camadas sociais, como e porque exercem papéis
dentro da temática trabalhada.

Para a autora, existem entrevistas temáticas e histórias de vida. A primeira, pautada


prioritariamente na participação do entrevistado no tema escolhido, enquanto a segunda o
interesse é a trajetória de vida, numa narrativa que abarca temáticas variadas. Ambas
pressupõem uma relação biográficas, formado um eixo composto pelas vivências e narrativas
do entrevistado e ambas podem ser utilizadas na mesma pesquisa, conforme o grau de
representatividade do entrevistado na temática e suas trajetórias, as relações com o objeto de
pesquisa (ALBERTI, 2005, 175).

Portanto, o projeto de pesquisa deve ser claro no tema, e pressupõe um pesquisador


que o conheça amplamente. Após uma fatigante pesquisa preliminar, é o momento de se
realizar um roteiro geral, base para os roteiros individuais. Primeiro, uma sistematização e
articulação dos dados com problemáticas que impulsionem o projeto, cronologicamente
minucioso, e que irão se alterar conforme o cotejamento e interpretação de outras fontes, bem
como das entrevistas individuais.

Somente após vencido esse ponto, virá a consulta de disponibilidade do possível


entrevistado. Nesse momento de contato, seguem as autorizações para publicação do material
colhido, o uso do nome. Currículos, documentos e produções que o entrevistado tenha
realizado serão muito úteis para a elaboração de seu roteiro individual, bem como um estudo
biográfico do entrevistado. O resultado será um cruzamento entre o que há de particular ao
entrevistado e geral a todos, que foi levantado ao longo da pesquisa. No caso de entrevistas
que durem mais de uma sessão, convém elaborar roteiros parciais dentro dos individuais, que
facilitem a retomada e avaliação da sessão anterior, além é claro de estratégias e diretrizes
que irão nortear o processo.

Outras maneiras de dinamizar o processo é a justaposição entre duas colunas,


facilitando uma localização temporal e temática, além de uma terceira com dúvidas e
questionamentos. Para a autora, o roteiro não é um questionário, mas uma orientação aberta.
De modo que essa dinâmica se aplicará também ao diálogo em si, fruto de uma alteridade de
vivências distintas. O entrevistador falará com um quase estranho na frente de um
gravador/câmera, por pelo menos duas horas (menos tempo que isso, dificilmente trará
resultados), ou no caso de histórias de vida, podendo levar a muitas sessões. Logo, é um
trabalho que exige traquejo, flexibilidade e adaptação ao ritmo do entrevistado, rigor e
empatia trabalhando de maneira bivitelina.

A sensibilidade é vital, bem como o exame das lacunas e silêncio do entrevistado, de


maneira a se respeitar seu percurso e construção de pensamentos, suas figuras de linguagem,
gestuais. O andamento da entrevista será subordinado a esse “tato” que o entrevistador deverá
ter com o entrevistado, determinante para as respostas. O antes, o durante e o depois da
gravação precisarão de uma análise cuidadosa, de repetidas oitivas. Um caderno de campo
pode ajudar a levantar indagações em off, impressões da entrevista, contatos iniciais, se
houveram mediações à entrevista (ALBERTI, 2005, p.177)

Ao realizar entrevistas, são preferíveis perguntas abertas, que façam o entrevistado


discorrer a respeito do tema de maneira simples e direta, que evite meras afirmações e
negações. Perguntas amplas levam a respostas amplas, que podem frutificar em novas
indagações e levar a novos rumos, ainda não trabalhados ou pensados. Fotografias, recortes
de jornal, documentos e alusões a fatos específicos são ferramentas para reavivar
determinados momentos, despertar impressões do entrevistado. É importante perceber como
ele se coloca frente a determinado tema.

A autora adverte para a imprecisão das cronologias que serão narradas, de modo que
as entrevistas consistem de recuos e avanços. É importante se atentar, como já dito, às
repetições de determinadas narrativas, importantes no que toca a cristalização mnemônica e a
forma de significação dada ao tema pelos entrevistados. Por último, mas não menos
importante, por estar sendo produzida uma fonte, que poderá vir a ser usada por outros
pesquisadores, alguns cuidados metodológicos se fazem necessários: criação de um
cabeçalho, anotar o que não foi dito com clareza, gestos, evitar a superposição de fala. E por
último, mas não menos importante, providenciar o documento de cessão de direitos sobre a
entrevista assinado pelo entrevistado (ALBERTI, 2005, 179-180).

Já no tratamento das entrevistas, deve se ter em vista como serão disponibilizados ao


público, se na forma de áudio, vídeo ou de forma transcrita. Em qualquer uma das hipóteses,
sumários e índices temáticos devem ser produzidos, sob risco de se fazer um acervo mudo.
Aqui, percebe-se a importância da arquivística e da boa catalogação, processo de estruturação
de acervos mais dinâmicos de serem localizados cotejados por outros pesquisadores. Do
mesmo modo, as cópias de segurança são imprescindíveis, de preferência logo após a
gravação da fonte primária, para evitar perdas irremediáveis. Não se faz a mesma entrevista
duas vezes.

Na opção pela forma escrita, pelo menos cinco horas de transcrição se fazem
necessárias para cada hora de fita gravada (ALBERTI, 2005, p.180). Processo longo e que
demanda conferência de fidelidade, correção de erros e acréscimos feitos pelo transcritor,
bem como adequações à forma escrita. Depois, é importante que a entrevista passe por um
copidesque, ajustando-a à leitura, corrigindo concordâncias às normas do projeto. A
qualidade da gravação e a forma de condução da entrevista são importantes para que a
dinâmica da transcrição e análises subsequentes sejam facilitadas. No caso de publicação, o
processo de edição do texto transcrito se faz importante, especialmente no corte de passagens
repetidas, ordenação em assuntos e notas que que esclareçam falas obscuras, porém sempre
em fidelidade ao material gravado.

Já o aparato tecnológico utilizado, dependerá dos objetivos do trabalho. No caso de


entrevistas que iram apenas complementar pesquisas, a autora recomenda um “bom gravador
portátil (outro para cópia de fitas gravadas), fitas virgens, microfone e fone de ouvido”. No
caso de construção de um acervo permanente de entrevistas de História oral, uma
aparelhagem mais sofisticada se fará necessária: “equipamentos de gravação portátil (alguns
de maior porte), amplificadores e mixers, fones de ouvido e microfones, computador para
arquivar e criar base de dados, além de espaço físico apropriado para arquivar vídeo e áudio”
(ALBERTI, 2005, p.182).

No texto, a autora cita diversas formas de gravação (fitas magnéticas analógicas e


digitais, discos digitais, vídeos analógicos e digitais), mas frisa a adoção do digital. Vale
ressaltar que o texto é de 2005, de modo que o fichamento deste após 17 anos exige o
cuidado de observar os exponenciais avanços tecnológicos. A qualidade da gravação em
áudio se torna cada vez mais simples, qualitativa e acessível pelos aparelhos celulares
modernos (qualidade lossless), bem como a gama de softwares que são lançados em seguidas
versões pelo mercado tecnológico.

Já na qualidade do vídeo (a título de curiosidade), é gritante a comparação entre o


acesso de realizar uma gravação em 4k (ainda que num mercado neoliberalista marcado pela
obsolescência programada) com o já distante ano de 2005, especialmente no simbólico 23 de
abril, data do primeiro vídeo postado no Youtube, na definição de 240p low definition TV
(televisão de baixa qualidade).

Não obstante, o próprio “armazenamento em nuvem” oferece uma forma nova e


prática de armazenamento de arquivos, num espaço que ainda que vazio do afeto, do toque e
da sensibilidade tangível de outrora, pelo menos é livre dos agentes naturais da degradação,
poeira, umidade, além outras intempéries que os espaços físicos sofrem. Isto posto, a autora
chama atenção para a difícil conservação das fontes orais, em virtude da necessidade de
intermediação de um equipamento para reprodução. Assim, a gravação deve ser realizada
pensando na disponibilidade de aparelhos, cuidando para que as gravações continuem em
condições para serem reproduzidas e sejam gravadas para formatos mais novos, antes que
estes se tornem obsoletos. Mesmo com a retrocompatibilidade digital contemporânea, os
profissionais devem se manter constantemente atualizados sobre novas tecnologias;

Já a interpretação da fonte oral, análoga a todas as fontes históricas, deve ser tomada
como um documento-monumento, conforme o historiador Le Goff. Para o autor, o
monumento possui intencionalidade, é construído para se perpetuar uma recordação oriunda
de relações de forças que existiram ou existem nas sociedades produtoras. De modo que a
fonte oral deve ser desmontada, no sentido de se perscrutar suas condições de produção. Para
Alberti, “esse caráter monumental é dado pelo próprio pesquisador e em geral recebe a
aprovação do entrevistado, que se sente honrado e satisfeito por estar sendo chamado a dar
seu depoimento” (ALBERTI, 2005, P.184).

Ponto importante é saber se haverá uma sobreposição de intenções ao relato do


entrevistado. O quanto o entrevistador/pesquisador está aberto a registrar, se o narrador
coincide ou não suas hipóteses. Esses pólos de tensão são inerentes a qualquer entrevista, pois
a palavra, o gestual e as expressões são determinantes informativas sobre meios, campos de
possibilidade e experiências de vida. De modo que a entrevista exige fidelidade às escolhas
narrativas do entrevistado, pois foi como ele pôde dar estrutura e coerência ao seu discurso.

Alberti também chama atenção para certas narrativas carregadas de sentido, que
ultrapassam o caso particular como “verdadeiras passagens que chegam a ser “citáveis”. Lutz
Niethammer as considera grandes tesouros da história oral por fundirem-se estéticamente
declarações objetivas e de sentido. “Boas histórias que não se deixam traduzir por uma
moral, porque o significado do que é narrado se cristaliza no conjunto da narrativa”
(ALBERTI, 2005, p.186 apud NIETHAMMER, 1985, p.407).

Exemplos de procedimento são demonstrados pelo historiador José Miguel Arias


Neto em seu artigo sobre a entrevista com o marinheiro João Cândido, líder da revolta da
Chibata, realizada pelo Museu de Imagem e Som do Rio de Janeiro. Para o autor, num
contexto de entrevista no qual o debate sobre a história oral ainda não havia atingido o Brasil,
ocorreu um hiato na comunicação, pois o marinheiro não é entrevistado para se conhecer o
significado que a revolta teve para si (ALBERTI, 2005, p.185).

Como conclusão, a autora reforça a necessidade de se analisar a fonte oral como um


todo, observando desde as condições de produção da narrativa, até aquilo que foi narrado em
si, partes que se relacionam hermeneuticamente e oferecem significados sobre o passado,
presente e sobre a entrevista em si. Assim, padrões, trajetórias e maneiras de expressão e
narrativa semelhantes poderão ser vislumbrados e tipologias poderão ser estabelecidas, de
modo a levantar determinadas ações grupais, comparação com outros grupos sociais,
particularidades e formações. A comparação é importante no processo de interpretação,
partindo do pressuposto que o pesquisador já buscou extensivamente sobre seu recorte e
percebendo como memórias do grupo são construídas, bem como suas tensões.

Na mesma toada vai Alessandro Portelli:

Representações e “fatos” não existem em esferas isoladas. As


representações se utilizam dos fatos e alegam que são fatos; os
fatos são reconhecidos e organizados de acordo com as
representações; tanto fatos quanto representações convergem na
subjetividade dos seres humanos e são envoltos em sua linguagem.
Talvez essa interpretação seja o campo específico da história oral,
que é contabilizada como história com fatos reconstruídos, mas
também aprende, em sua prática de trabalho de campo dialógico e
na confrontação crítica com a alteridade dos narradores, a entender
representações (ALBERTI, 2005, p.188 apud PORTELLI, 1996,
p.111).

Assim, o trabalho com as fontes orais está longe de simplesmente “sair com um
gravador em punho e solicitar às pessoas que relatem suas vidas” (ALBERTI, 2005, p. 189)
exigindo assim preparação consistente. Porém, os resultados são profícuos, permitindo o
cotejamento com outras fontes históricas e explorando as dissonâncias, de modo a chegar a
interpretações e dinâmicas singulares, tal como a pesquisa da historiadora Hebe Mattos, ao
tratar dos membros da comunidade remanescente de quilombo de São José da Serra, Valença
(RJ):

Nas entrevistas, são frequentes as histórias de fuga dos avós dos


entrevistados, que teriam encontrado refúgio na fazenda, cujo
proprietário não castigava os cativos, tratando-os muito bem. Os
escravos podiam mesmo abandonar as terras para voltar em
seguida, aparentemente sem sofrer sanções – circunstância que
chamou atenção da historiadora, por ser bastante específica. Uma
consulta aos documentos do cartório de Valença revelou que, em
1870, o proprietário anterior doara 50 alqueires de terra para seus
escravos que libertara (ALBERTI, 2005, p.188)

A partir dessa análise da comunidade pelas representações dos entrevistados, Hebe


ressalta um deslocamento semântico: a “generosidade” do fazendeiro protetor dos escravos
que chegavam fugidos até São José diriam respeito a uma fase pós-escravatura, contexto que
os proprietários buscavam meios de manter seus ex-escravos sob domínio (ALBERTI, 2005,
p.189). De modo que é inescusável fugir de uma interpretação das fontes históricas orais que
não tome simultaneamente sua capacidade representativa e o conhecimento aprofundado na
temática, aliada a outras fontes, para se produzir uma pesquisa de fôlego.

REFERÊNCIAS

ALBERTI, Verena. Fontes Orais: A História dentro da História. In: PINSKY, Carla:
Fontes Históricas. Editora Contexto, 1. Ed, 2005

BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São


Paulo: Companhia das Letras, 1996.

CAMARGO, Aspásia. História Oral e história, Rio de Janeiro, Cpdoc, 17f. Trabalho
apresentado no 1 Seminário Brasileiro de Arquivos Municipais. Niterói, Universidade
Federal Fluminense, 2 a 6 ago. 1976.
D’ALÉSSIO, Márcia Mansor. Reflexões sobre o saber histórico. Entrevistas com
Pierre Villar, Michel Vovelle e Madeleine Rebérioux, Ed. Unesp, 1998, p.19.

MATTOS, Hebe Maria. “Terras de quilmbo: citoyenneté, mémoire de la captivité


et identité noire dans le Brésil contemporain”, em Cahiers du Brésil Contemporain, Paris,
CRBC, n.53/54. 3003, 2003.

NAPOLITANO, Marcos. A História depois do papel. In: PINSKY, Carla: Fontes


Históricas. Editora Contexto, 1. Ed, 2005.

SILVA, Wilton C. L. A vida, a obra, o que falta, o que sobra: memorial acadêmico,
direitos e obrigações da escrita. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 7, n.15, p.
103 - 136.maio/ago. 2015.

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