de Analisabilidade. O Contrato Não existe experiência mais terrível para uma criança – futuro adulto – do que não se sentir entendida, escutada e vista; em contrapartida, nada é mais importante na entre- vista inicial que o paciente saia da sessão com a sensação, em relação ao analista, de que foi compreendido, escutado e de que encontrou um amigo.
O PRIMEIRO CONTATO personalidade possivelmente frágil e temero-
DO PACIENTE COM O ANALISTA sa de um rechaço) ou, em outro extremo, por uma entonação vocal que desperta no terapeu- Comumente, o primeiro contato que um ta uma sensação de arrogância, de mando- pretendente a tratamento analítico estabelece nismo, com um certo desprezo (em um tom com o analista é por meio de uma chamada categórico: “Eu só posso ir aí na quinta-feira, telefônica, ora falando diretamente, ora dei- bem no fim da tarde...”), pode estar comuni- xando um recado para que a ligação seja cando que se trata de alguém que esteja se retornada. O que cabe consignar é que já aí defendendo de suas angústias por intermédio começa a formação de algum tipo de vínculo, de uma configuração narcisista da personali- o qual pode vingar ou não. De fato, a forma dade. como o possível paciente utiliza a sua condu- Outras vezes, as evidências são de natu- ta, atitude e linguagem podem estar expres- reza paranóide (fazem uma série de pergun- sando uma importante maneira de comunica- tas, de modo um tanto desconfiado e defensi- ção, portanto, um jeito seu de “ser”, em um vo), depressiva (a tonalidade vocal, às vezes, nível que extrapola o da linguagem unicamen- chega a ser inaudível), extremamente depen- te verbal. dente (induzem a que outras pessoas façam o Assim, se ele vem protelando de longa primeiro contacto), ou, mesmo à distância, já data esse primeiro contato com o terapeuta que despertam uma empatia no analista, e assim alguém lhe indicou (geralmente algum paci- por diante. Há inúmeras outras possibilidades ente ou ex-paciente desse analista, algum ami- de uma significativa forma de comunicação, go, médico, familiar, ou por conhecimento pré- embora algo virtual. vio em determinadas circunstâncias, etc.), pode ser um sinal indicador de que ele ou não está suficientemente bem motivado para uma aná- A ENTREVISTA INICIAL lise ou já esteja expressando temores próprios de uma caracterologia fóbica ou de uma típica Independentemente se o tratamento será indecisão obsessiva. sob a forma de uma análise clássica, com os Da mesma forma, é possível observar seus conhecidos parâmetros mínimos, ou de quando o provável paciente emprega uma lin- alguma modalidade de terapia de base psica- guagem por demais tímida, entrecortada por nalítica, é necessário que o analista tenha uma pedidos de desculpas “por estar atrapalhando” idéia razoavelmente clara das condições psí- e outras expressões similares (revelando uma quicas e pragmáticas que tanto ele quanto o pretendente à análise possuem antes de enfren- é útil estabelecer uma diferença conceitual en- tar uma empreitada dessa envergadura, tendo tre “entrevista inicial” e “primeira sessão”. A(s) em vista que provavelmente será longa a du- “entrevista(s) inicial(ais)” antecede(m) o con- ração da terapia, possivelmente bastante cus- trato, enquanto a “primeira sessão” concerne tosa para as possibilidades econômicas do pa- ao fato de que a análise já começou formal- ciente, sem garantia de sucesso, em uma tra- mente. jetória que, à parte das gratificações, inevita- É claro que a duração da entrevista ini- velmente também passará por períodos difí- cial depende das circunstâncias que cercam o ceis, com muitos imprevistos, incertezas e sofri- encaminhamento do paciente, de modo que é mentos. muito diferente se ele já tem uma idéia razoa- Também é útil destacar que no primeiro velmente clara do que consiste uma análise, contato já se instala um estado de, digamos com a probabilidade de que tenha sido avalia- assim, pré-transferência. Isso está de acordo do por um colega reconhecidamente compe- com a palavra “contato”, que em nosso idioma tente e que já tenha feito uma sondagem e tro- forma-se de “com” (significa “junto com”) + ca de impressões com o analista para quem está “tato” (trata-se de um ”pele a pele” emocional, encaminhando; ou, então, trata-se de um pa- que tanto pode evoluir para um rechaço quan- ciente que não foi avaliado por ninguém, uni- to para uma empatia), ou seja, alude a como, camente quer livrar-se dos sintomas que o ator- mutuamente, cada um está “sentindo” o ou- mentam e não tem a menor idéia do que é en- tro, não obstante a possibilidade de que o in- frentar uma análise standard. No entanto, em tuitivo contato inicial, quer no extremo de qualquer dos casos, é imprescindível que essa uma idealização ou de um certo denegrimento, entrevista inicial seja levada a sério e com pro- não se confirme no curso posterior da terapia fundidade, até mesmo pela razão singela e ao psicanalítica. mesmo tempo profunda de que tanto o analis- ta quanto o paciente têm o direito de decidir se é com essa pessoa estranha que, reciproca- Conceituação de entrevista inicial mente, cada um deles têm à sua frente, dese- jam partilhar um convívio longo, íntimo e Esta expressão, embora apareça na for- imprevisível. ma singular, não deve significar que se refira, sempre, a uma única entrevista prévia à efetivação do contrato analítico, ainda que, Finalidades da entrevista inicial muitas vezes, possa ser assim, porém, em mui- tas outras situações, essa necessária avaliação Além dos objetivos mencionados, o pro- pode demandar um período mais longo, com pósito fundamental do contato preliminar é de um número bem maior de entrevistas prelimi- o psicanalista avaliar as condições mentais, nares. emocionais, materiais e circunstanciais da vida Em certas circunstâncias, o terapeuta já do paciente que o buscou; ajuizar os prós e os sabe antecipadamente que não terá condições contras, as vantagens e as desvantagens, os (por exemplo, por falta de horário disponível) prováveis riscos e os benefícios; o grau e o tipo de assumir o compromisso de um tratamento de psicopatologia, de modo a permitir alguma analítico, porém pode se mostrar disponível – impressão diagnóstica e prognóstica e reconhe- sempre que o paciente insista, mesmo tendo cer os efeitos contratransferenciais que lhe es- ficado claro que ele não o atenderá de forma tão sendo despertados. Assim, balanceando sistemática – para fazer uma entrevista de ava- todos esses fatores, poder discriminar qual a liação, com o objetivo de traçar uma orienta- modalidade de terapia psicológica será a mais ção ou de ter melhores condições para proce- indicada para esse paciente e, mais ainda, no der a um encaminhamento. Neste último caso, caso de a indicação ser uma análise, se ele real- em minha experiência pessoal, quando avalio mente sente-se em condições e se, de fato, quer uma pessoa, ao vivo, sinto uma espécie de ser o terapeuta desse paciente. feeling de que para um tal paciente tal terapeuta Partindo do que foi dito, pode-se depreen- deva ser a pessoa mais indicada. Igualmente, der a importância de que o terapeuta na entre- vista inicial construa uma razoável impressão de caracterologia, de conduta e do desabro- diagnóstica do paciente, sempre levando em char de capacidades, enquanto a expectativa conta que existem diferentes tipos, níveis e do paciente não vá além de uma busca de alí- perspectivas de diagnóstico clínico, conforme vio de sintomas, ou de uma “cura mágica”, ou for o “eixo” adotado, de acordo com as moder- ainda a de contrair um vínculo com o analista nas classificações do DSM-IV-TR (assim; o eixo pelo qual este, como um mero substituto da I refere-se aos aspectos sindrômicos; o eixo II, mãe simbiótica ou faltante, resolverá todos os aos de tipos e transtornos de personalidades; o seus problemas, sem que ele tenha de fazer o III, aos transtornos físicos; o eixo IV, aos estres- mínimo esforço, e assim por diante. sores; enquanto o eixo V alude ao nível de fun- Não obstante a possibilidade de que a cionamento). impressão transmitida pelo paciente em rela- Uma outra abordagem para a elabora- ção à sua motivação para um tratamento ana- ção de uma impressão diagnóstica consiste em lítico possa parecer espúria, o analista nunca considerar, distintamente, entre outros enfo- deve perder de vista a probabilidade de que ques: 1. Nosológico (uma determinada cate- possa se tratar da única maneira que aquele goria clínica). 2. Dinâmico (a lógica do incons- encontrou para, cautelosamente, abrir as por- ciente), 3. Evolutiva (cada etapa, com prepon- tas para uma análise, tal como costuma apare- derância de vazios, carências orais, defesas cer em pacientes que estruturaram defesas obsessivas anais, etc., implica alguma adequa- narcisistas. Em contrapartida, outros pacien- ção técnica específica). 4. Funções do ego (por tes, em especial os fortemente histéricos, po- exemplo, a “capacidade sintética do ego” já é dem dar uma impressão inicial de que estão um nível elevado que permite simbolizar si- muito motivados para se analisar, mostram-se multaneamente significações opostas e ou con- colaboradores e encantam o analista com seu traditórias). 5. Configurações vinculares (den- verbo fluente e florido. No entanto, diante das tro da família ou fora dela, nos grupos em primeiras desilusões e decepções, podem de- gerais, etc.). 6. Comunicacional (na atualida- sistir, muitas vezes de maneira abrupta. de, esse aspecto adquire uma grande relevân- Igualmente, o terapeuta deve ter uma cla- cia). 7. Corporal (cuidados corporais, auto-ima- ra noção de seus próprios alcances e limitações. gem, presença de hipocondria ou de somatiza- Para tanto, deve possuir a condição de reco- ções...). 8. Manifestações transferenciais e con- nhecer os sentimentos transferenciais e contra- tratransferenciais, etc. transferenciais que surgiram no curso da en- Um outro objetivo essencial da entrevis- trevista; a natureza de sua provável angústia; ta inicial é a possibilidade de o analista avaliar o grau de sua empatia ou rejeição pelo pacien- a veracidade do paciente, além da qualidade te; uma sensibilidade para perceber se é com de sua motivação, tanto aquela que ele exter- ele que esse paciente está desejando se anali- naliza conscientemente quanto a que está sar; se ele vai trabalhar de forma confortável oculta nas dobras de seu inconsciente. Em ou- diante das combinações feitas, como, por exem- tras palavras, sem exigir um comprometimen- plo, os valores que o paciente pode pagar, os to absoluto do paciente para a árdua tarefa horários esdrúxulos das sessões, que venham que o aguarda – até porque os seus, ainda des- a perturbar o seu estilo de viver, etc. Caso con- conhecidos, fatores inconscientes, alguns de trário, se o analista não medir adequadamen- possível natureza fóbica ou sabotadora, tor- te as suas condições de trabalhar com o prová- nam impossível que ele assuma um compro- vel paciente, existirá a possibilidade de que o misso definitivo –, impõe-se, no entanto, a ne- analista comporte-se na entrevista inicial por cessidade mínima de o terapeuta conferir se uma destas duas formas inadequadas: um ex- a sua teoria de tratamento e de cura coincide cesso de informalismo, que, muitas vezes, está com a do paciente. correspondendo a uma necessidade de sedu- De fato, não é nada incomum a possibili- zir o paciente ou um excesso de rigidez e her- dade de que o analista tenha em mente um metismo, que pode estar refletindo um distan- projeto terapêutico verdadeiramente psicana- ciamento de natureza fóbica. lítico, isto é, que ele esteja voltado para a ob- Também há o risco de que o analista defi- tenção de verdadeiras mudanças estruturais, na a sua avaliação por uma única impressão dominante: assim, por vezes, o paciente apre- Enfim, sou dos que acreditam que a en- senta-se de uma forma inicial bastante diferen- trevista inicial funciona como uma espécie te do que realmente ele é. Isso pode se dever de trailler de um filme, que posteriormente tanto ao fato de que o paciente quer impressio- será exibido na íntegra; isto é, ela permite nar bem o terapeuta, para ser por ele aceito (bas- observar, de forma extremamente condensa- tante comum em casos de falso self e de histeri- da, o essencial da biografia emocional do as), como também para impressionar mal o psi- paciente e daquilo que vai se desenrolar no canalista (por parte daqueles que são portado- campo analítico. res de uma baixa auto-estima, com um forte Para sintetizar, guardo uma absoluta con- temor de rejeição, razão pela qual precisam tes- vicção de que o objetivo mais importante da tar se serão aceitos, mesmo portando aquilo entrevista inicial é o de estabelecer um rapport que eles julgam ter de feio e de mau). com o paciente, isto é, o início de uma relação Uma outra finalidade da entrevista inicial pautada pela construção de um vínculo consiste na possibilidade de o terapeuta poder empático, de uma atmosfera de veracidade e observar, e pôr à prova, a forma de como o pa- confiabilidade. Dizendo com outras palavras: ciente reage e contata com os assinalamentos o ideal a ser atingido é que o paciente saísse ou as eventuais interpretações que lhe sejam da entrevista inicial com a sensação de que “fui feitas; como ele pensa e correlaciona os fatos entendido, o doutor me ´sacou´ e gostou de psíquicos, se demonstra uma capacidade para mim, está sinceramente interessado e acredita simbolizar, abstrair, dar acesso ao seu inconsci- em mim, tal qual eu realmente sou”. ente, e se revela condições para fazer insights. Da mesma forma, igualmente é útil ob- servar a aparência exterior do paciente, incluí- CRITÉRIOS DE ANALISABILIDADE da a forma de como ele está vestido, como saú- E DE ACESSIBILIDADE da, se ele manifesta algum sinal ou sintoma visível, como é a sua postura corporal, gesticu- Conceituação lação, movimentação, linguagem empregada e tom de voz ao discursar. Para dar um único e Na entrevista inicial, para avaliar as indi- trivial exemplo em relação à linguagem conti- cações e contra-indicações de uma análise para da na vestimenta: em uma entrevista inicial, o o paciente que buscou auxílio, é útil diferen- paciente, homem por volta dos 30 anos, apa- ciar os significados conceituais de analisa- receu com uma camisa na qual estava estam- bilidade e de acessibilidade. O primeiro é o cri- pada com letras garrafais a inscrição “Comigo tério clássico empregado para a referida indi- ninguém pode”, que fielmente transmitia sua cação de análise, o qual se baseia fundamen- mensagem não-verbal – que veio a se confir- talmente nos aspectos do diagnóstico clínico mar na evolução da análise – de que, ao longo (pacientes psicóticos ou aqueles portadores de da sua vida, ele erigiu uma couraça caracteroló- uma estrutura altamente regressiva, como gica narcisista, de sorte a defender-se de qual- borderlines, psicopatas, perversos, etc., eram quer apego afetivo. quase sempre recusados, salvo nos casos de Igualmente, é necessário avaliarmos a re- psicanalistas investigadores, como Rosenfeld, alidade exterior do paciente, isto é, as suas con- Segal, Meltzer e Bion, pioneiros na análise de dições socioeconômicas, o seu entorno famili- psicóticos), e prognóstico, como uma antecipa- ar, a sua posição profissional, o seu projeto de ção de possíveis riscos e frustrações. vida próximo e futuro, a existência de fatos Acessibilidade, por sua vez, não valoriza particularmente traumáticos, etc. Considero unicamente o grau de patologia manifesta pelo sobremaneira importante que, diante da afir- paciente; antes, o interesse maior do analista mativa do paciente de que ele já teve anterio- também não é sobremaneira dirigido para a res experiências de tratamento analítico frus- doença, mas muito mais para a sua “personali- tras, o analista pesquise as razões da interrup- dade total”, notadamente para a reserva de ção, tendo em vista que ele nos fornecerá sig- suas capacidades positivas que ainda estão la- nificativas informações daquilo que espera que tentes, ocultas ou bloqueadas. Em relação ao não sejamos... “diagnóstico” do paciente, a impressão do ana- lista deve ser mais um “diagnóstico psicanalí- nico com sintomas emocionais agudos, tico” do que um diagnóstico puramente clíni- situacionais, neuróticos ou psicóticos. Hoje, os co, rigorosamente enquadrado nos códigos de psicanalistas não receiam enfrentar tais situa- classificação das doenças mentais, não obstante ções com todo o processamento psicanalítico tal tipo de diagnóstico também deva ser leva- habitual, até porque a maioria dos analistas do em consideração. Relativamente a uma pre- está se inclinando, na atualidade, a não excluir visão do “prognóstico”, como fator decisivo na a possibilidade do eventual emprego de alguns indicação da análise como tratamento de es- “parâmetros” (conceito de Eissler, 1934), como colha; na atualidade, a tendência predominan- pode ser o de um possível uso simultâneo de te é deixar que o prognóstico seja avaliado modernos psicofármacos. durante o próprio curso da análise, o que, às A propósito, também o diagnóstico clíni- vezes, revela grandes surpresas para o analis- co comporta um acentuado relativismo, tanto ta, tanto de forma positiva quanto negativa. que, por exemplo, o diagnóstico de uma “rea- Em resumo, o critério de “acessibilidade” atenta ção esquizofrênica aguda” pode assustar em principalmente para a motivação, a disponibi- decorrência do nome alusivo à esquizofrenia lidade, a coragem e a capacidade de o pacien- e, no entanto, pode ser de excelente prognós- te permitir um acesso ao seu inconsciente, para tico psicanalítico, se for bem manejado (como, o analista e para ele mesmo. aliás, acontece com todos os quadros “agu- Este aspecto relativo ao critério de “aces- dos”), enquanto uma “simples” neurose, fóbica, sibilidade” adquiriu tal relevância na psicaná- por exemplo, se for de organização crônica, lise atual que os analistas estão atentos a um pode resultar em um prognóstico desalentador. grande contingente de pacientes, uns muito Persistem como contra-indicações indis- regressivos, outros aparentemente bem-estru- cutíveis para a análise como escolha prioritária turados psiquicamente, que vêm sendo deno- os casos de alguma modalidade de degeneres- minados pacientes de difícil acesso, os quais re- cência mental ou aqueles pacientes que não querem algumas particularidades técnicas e demonstram a condição mínima de abstração táticas especiais. e simbolização, bem como também para os que apresentam motivação esdrúxula, além de ou- tras situações afins. Indicações e contra-indicações Não raramente, os psicanalistas confron- para análise tam-se com situações nas quais a pesagem dos fatores favoráveis e desfavoráveis revelados Assim, à medida que a ciência psicanalí- pela entrevista inicial não foi suficiente para tica evolui e expande os conhecimentos teóri- que se definissem convictamente se convém ou cos e técnicos, resta inquestionável o fato de não assumir formalmente o compromisso da que, cada vez mais, os critérios de contra-indi- análise. Nesses casos, apesar de alguns previ- cações estejam diminuindo, conforme já foi re- síveis inconvenientes, muitos psicanalistas de- ferido, principalmente em relação à abertura fendem a combinação de uma espécie de “aná- das portas da terapia analítica para pacientes lise de prova”, que consiste em prolongar a en- muito regredidos. No entanto, também mui- trevista inicial por um período relativamente tos critérios formais sofreram transformações, mais longo para que só então ambos do par progressivamente ampliando a abertura para analítico assumam uma posição definitiva as indicações. Um bom exemplo, é o critério quanto à efetivação formal da análise. Um de idade, o qual deixou de ser excludente e é exemplo que me ocorre foi colhido em uma encarado com bastante relativismo, tanto que, supervisão: a candidata trouxe uma entrevista desde M. Klein, a psicanálise ficou extensiva inicial de um jovem paciente masculino para às crianças e, além disso, de uns tempos para juntos avaliarmos a adequação da indicação cá, ela também é praticada com pessoas de ida- para uma análise formal. Aparentemente, o de bastante avançada, aliás, com bons resulta- paciente em avaliação preenchia todos os re- dos. Um outro exemplo pode ser a dúvida que quisitos necessários, porém ele despertava na existia quanto à adequação de iniciar uma aná- terapeuta um certo desconforto contratrans- lise em pleno período crítico de um quadro clí- ferencial, que ela não conseguia definir com clareza, mas parecia que provinha de uma aproximações. É claro que se trata de uma ilus- “maneira algo estranha de ele me olhar, acom- tração por demais simples; no entanto, inú- panhada de um sutil sorriso, também estra- meras situações similares poderiam servir de nho”, dizia a candidata. Sugeri que ela prolon- exemplos. gasse a entrevista inicial com mais sessões de avaliação, até que tivéssemos uma idéia mais clara do que estava sucedendo, e que, se o des- O CONTRATO conforto continuasse, seria útil que ela apon- tasse diretamente se era uma falsa impressão A palavra contrato pode ser decomposta dela ou se ele escondia algo atrás de um sorri- em “con” + “trato”, isto é, ela significa que, so, algo debochado. Quando a supervisionada além do indispensável acordo manifesto de al- fez esse assinalamento, o possível paciente sol- gumas combinações práticas básicas que irão tou uma sonora risada e confessou que estava servir de referência à longa jornada da análi- concomitantemente fazendo terapia com ou- se, há também um acordo latente que alude a tro analista, que ele dizia as mesmas coisas para como o analista e o paciente tratar-se-ão reci- ambos, e estava se divertindo em fazer compa- procamente. Por essa razão, cabe reiterar, a en- rações entre os dois, para ver qual deles “era o trevista inicial que precede a formalização do menos louco”. Todos os leitores hão de con- compromisso contratual tem a finalidade não cordar que seria muito frustrante para a ana- unicamente de avaliação, mas também a de lista, em início de formação, contratar formal- uma mútua “apresentação” das características mente uma análise nessas condições. pessoais de cada um e a instalação de uma at- mosfera empática de trabalho. O contrato, portanto, exige uma defini- Cabe interpretar na entrevista inicial? ção de papéis e funções, centrada na natureza de trabalho consciente (direitos e deveres de Este é um aspecto que costuma ser bas- cada um, combinação de valores e forma de tante controvertido entre os psicanalistas. É pagamento, horários, plano de férias, etc.), consensual que as clássicas interpretações alu- respectivamente por parte do psicanalista, do sivas à neurose de transferência devam ser evi- analisando e da vincularidade entre ambos, tadas ao máximo; no entanto, penso que aque- sendo útil considerá-los separadamente, sem- las que particularmente denomino “interpre- pre levando em conta que, subjacente às com- tações compreensivas” (dizer o suficiente para binações conscientes, existem poderosos e ati- que o paciente sinta que foi compreendido) não vos fatores inconscientes. só são permissíveis, mas também necessárias Assim, o que se espera por parte do anali- para o estabelecimento de um necessário sando? Em primeiro lugar, voltando a enfatizar rapport, de uma necessária “aliança terapêu- o que já foi dito, que ele esteja suficientemen- tica”. Assim, por exemplo, se o paciente em te bem motivado para um trabalho árduo e uma entrevista inicial está relatando queixas corajoso; no entanto, o analista deve estar aten- generalizadas de que ele está “cansado de ser to à possibilidade de que um aparente descaso explorado em sua boa-fé e no seu dinheiro do paciente pode estar significando uma ma- por pessoas que aparentavam ser suas ami- neira que ele tem de se defender na vida dian- gas e depois o traíram e decepcionaram”, é te de difíceis situações novas, e que essa atitu- certo que todos entenderíamos que ele está de, manifesta como se fosse uma escassa moti- expressando, embora de forma não-conscien- vação, pode estar representando a sua forma te, um temor de que, mais cedo ou mais tar- de “abrir uma porta de entrada” para uma aná- de, a mesma decepção venha a ocorrer com a lise de verdade. A recíproca disso também é pessoa do analista, que também está aparen- verdadeira, ou seja, uma motivação aparente- tando ser uma pessoa amiga, porém... No caso, mente plena pode estar encobrindo um ante- se o terapeuta fizer uma “interpretação com- cipado rechaço para enfrentar momentos difí- preensiva” desse temor inconsciente, mesmo ceis, de sorte que posteriores motivos fúteis que o paciente possa discordar dela, sentir- poderão servir como racionalizações para aban- se-á muito aliviado e disposto a fazer novas donar a análise prematuramente. Em segundo lugar, espera-se que o ana- tes táticas de abordagem e estilos pessoais de lisando reflita com seriedade sobre todos os interpretação, faz parte do papel do analista itens das combinações que estão sendo pro- reconhecer se ele domina o eventual uso de postas para o contrato analítico e que, desse “parâmetros” (diz respeito a possíveis interven- contrato, ele participe ativamente e não de ções do analista que, embora transgridam al- uma forma passiva e de mera submissão ao gumas regras analíticas, não alteram a essên- analista. Não obstante o fato de que o pacien- cia do processo analítico). te tem o direito de se apresentar com todo o 6. O terapeuta deve estar em condições seu lado psicótico, narcisista, agressivo (ja- de reconhecer a natureza de suas contra-resis- mais a agressão física, é óbvio), mentiroso, tências, contratransferências e possíveis con- atuador, etc. – afinal, é por isso que ele está tra-actings. se submetendo a uma análise –, faz parte do 7. Ele deve ter condições de envolver-se seu papel mostrar, pelo menos, um mínimo afetivamente com seu paciente, sem ficar en- de comprometimento em “ser verdadeiro” e volvido; ser firme sem ser rígido, além de, ao que dedique a indispensável parcela de serie- mesmo tempo, ser flexível, sem ser fraco e dade a um trabalho tão sério como é o de uma manipulável. terapia analítica. 8. Também entrou em voga, desde Bion O que se espera do psicanalista? Espera-se (1970), a questão referente a se a análise deve que ele tenha bem claro para si os seguintes se desvincular de toda pretensão terapêutica, aspectos: tal como essa é concebida e praticada no cam- po da medicina. 1. Qual é a natureza de sua motivação 9. Assim, creio que existe um risco de o predominante para aceitar tratar analiticamen- analista levar exageradamente ao pé da letra a te uma certa pessoa: se é por um natural pra- recomendação de Bion de que a mente do ana- zer profissional, ou prevalece uma oportuni- lista não fique saturada de desejos de cura (gri- dade para uma determinada pesquisa; uma fei a palavra “saturada” porque muitos inter- necessidade única de prover os ganhos pecu- pretam mal essa recomendação e pensam que niários; uma obrigatoriedade devido a uma ele fez uma apologia da abolição de qualquer certa pressão de pessoas amigas ou, no caso tipo e grau de desejo). Nesse caso, o analista de candidatos, unicamente pelo compromisso corre o risco de suprir um natural desejo de da obrigação curricular do instituto, ou é um que seu paciente melhore, e, no lugar disso, pouco de cada um desses fatores, etc. ele pode adotar uma atitude de distanciamento 2. Ele deve ter definido para si qual é o afetivo. seu projeto terapêutico, se o mesmo está mais 10. Penso ser muito importante que o voltado para a obtenção de “benefícios tera- analista, por maior que seja a sua demanda de pêuticos” ou de “resultados analíticos”. pacientes, trabalhe em condições de conforto 3. Diante de um paciente bastante regres- físico, emocional e espiritual. Para tanto, é sivo, o analista deve ponderar se ele reúne as imprescindível ele conhecer os limites de sua condições de conhecimento teórico-técnico, resistência física (o número de horas que tra- notadamente das primitivas fases do desenvol- balha; se os seus horários não interferem com vimento emocional primitivo e se está prepa- sua vida privada; se não é excessivo o número rado para enfrentar possíveis passagens por de pacientes regressivos que lhe provocam um situações transferenciais de natureza psicótica. grande desgaste e preocupações...), assim como 4. Da mesma forma, ele deve avaliar se deve reservar uma parte do seu tempo para preenche aqueles atributos que Bion (1992) prazeres e lazeres. denomina “condições necessárias mínimas” e 11. É útil que o terapeuta observe atenta- que aludem à empatia, continente, amor às mente “que perguntas o paciente se faz e que verdades, etc. respostas ele se dá” e, da mesma forma, se o ana- 5. Partindo da assertiva de que não deve lista tiver um claro conhecimento de “com quem” haver uma maneira única, estereotipada e uni- e “como” o seu paciente se relaciona, fica aberto versal de psicanálise, e que uma mesma técni- o caminho para ele reconhecer a estrutura bási- ca pode – e deve – comportar muitas e diferen- ca da personalidade do paciente em avaliação. Em relação ao campo analítico vincular, a o plano de férias. Essa orientação contrasta a primeira observação que cabe é a de que a con- daqueles outros psicanalistas que argumentam temporânea psicanálise vincular implica no fato que, quanto mais especificarem as diversas si- de que já vai longe a idéia de que cabia ao pa- tuações de surgimento bastante provável no ciente unicamente a obrigação, de certa forma curso da análise, mais condições terão de con- passiva, de trazer “material”, enquanto ao ana- frontar o futuro analisando com as transgres- lista caberia a função única de interpretar ade- sões daquilo que foi combinado. quadamente aquele material clínico, a fim de Assim, os analistas que adotam essa últi- tornar consciente aquilo que estava reprimido ma posição devem combinar detalhes, como, no inconsciente. Pelo contrário, hoje tende a por exemplo, o direito que eles se reservarão ser consensual que ambos, de forma igualmen- de responder ou não às perguntas do pacien- te ativa, interajam e se interinfluenciam per- te; atender ou não o pedido de mudança de manentemente. Assim, o que se deve esperar é dias ou horários das sessões; como fica o pa- que, no contrato analítico, haja uma suficiente gamento em caso de doenças ou necessárias clareza nas combinações feitas, para evitar fu- viagens do paciente; qual será o dia para pa- turos mal-entendidos, por vezes de sérias con- gar, e se o fará no começo ou no fim da sessão; seqüências. Da mesma maneira, ambos devem se o pagamento pode ser com cheque ou uni- zelar pela preservação das regras do contrato camente com dinheiro-moeda; incluir, ou não, (embora faça parte do papel do paciente o di- uma cláusula de advertência quanto ao com- reito de, eventualmente, tentar modificá-las), promisso de sigilo, ou a obrigação de analisar com as quais eles estão construindo um im- algum ato importante antes de o paciente portantíssimo espaço novo, no qual antigas e efetivá-lo, como uma forma de prevenir o ris- novas experiências emocionais importantes se- co de actings, e assim por diante, em uma lon- rão reeditadas. ga série de detalhes impostos à medida que Um tópico que persiste polêmico e con- aparecerem (permissão ou proibição de fumar trovertido entre os psicanalistas é quanto ao durante a sessão; aceitação de presentes; en- conteúdo das combinações a serem feitas no contros sociais; forma de cumprimentar (por contrato, notadamente no que diz respeito às exemplo, trocando beijos ou não); silêncios, regras técnicas legadas por Freud, as quais con- faltas ou atrasos excessivos...). tinuam ainda plenamente vigentes em sua es- Reitero que, particularmente, entendo sência, embora bastante transformadas em que existem algumas, poucas, combinações ex- muitos detalhes, tal como está descrito no pró- plícitas que são indispensáveis, e as demais são ximo capítulo. implícitas ao processo analítico, devendo ser Na atualidade, alguns psicanalistas ain- analisadas à medida que surgirem; elas variam da adotam o critério original que regia as com- de caso para caso, e devem ser encaradas pelo binações do contrato e, assim, eles impõem, analista da forma menos rígida e mais flexível de modo esmiuçado, uma série de recomen- possível. dações; enquanto a tendência da grande mai- Um importante ponto do contrato que não oria é simplificar a formulação das combina- encontra uniformidade entre os psicanalistas, ções para um “mínimo indispensável”, ficando inclusive dos que pertencem a uma mesma no aguardo que as demais situações surjam ao corrente psicanalítica, é o que diz respeito às natural no curso do tratamento, sendo que a combinações de que “a análise deverá ser feita análise de cada uma delas é que vai definindo no divã”. Muitos preferem incluir essa condi- as necessárias regras e diretrizes. ção desde a formalização do contrato, enquan- O critério de “mínimo indispensável”, an- to muitos outros psicanalistas (entre os quais, tes mencionado, alude às combinações que me incluo) optam por não aludir de forma di- devem ser feitas relativamente ao número de reta ao uso compulsório do divã, aguardando sessões semanais, horários, honorários (incluir a oportunidade que, certamente, surgirá no a possibilidade de reajustes periódicos, além transcurso das sessões, assim possibilitando de dar a entender que o paciente está conquis- uma análise mais aprofundada das possíveis tando um espaço exclusivamente seu e que, dificuldades em deitar ou permanecer senta- por isso, será o responsável por ele), bem como do, assim como também para diminuir o risco de o paciente, desde o início, conduzir-se pas- assim começar a pavimentar o caminho para a sivamente, cumprindo mandamentos e expec- estruturação de uma indispensável confiança tativas dos outros, no caso o seu psicanalista. básica. Sem ser necessário esclarecer explici- Entendo que o mesmo critério de evitar tamente, deve ficar bastante claro para o psi- uma imposição do analista também deve, tan- canalista e para o analisando – neste último, to quanto possível, prevalecer no ato de com- às custas de muita frustração e sofrimento – o binar o número de sessões semanais. O ideal fato de que, embora o vínculo analítico seja seria que analista e paciente, juntos, escutas- uma relação nivelada pelos aspectos humanos sem as mútuas necessidades e possibilidades e de respeito, consideração e partilha de um ob- chegassem a um consenso, mesmo que tempo- jetivo comum, na verdade a inter-relação do rário, a fim de evitar futuros dissabores. par analítico obedece a três princípios básicos: A propósito da forma de o psicanalista propor ou deixar a critério do analisando o uso 1. Ela não é simétrica (ou seja, os luga- do divã, é oportuno frisar que a contemporâ- res ocupados e os papéis a serem de- nea psicanálise vincular evita ao máximo as sempenhados são desiguais, assimé- imposições, salvo aquelas absolutamente neces- tricos, e obedecem a uma natural hi- sárias, antes referidas, preferindo as proposi- erarquia, com direitos, deveres e pri- ções, ou seja, que o analisando participe ativa- vilégios distintos). mente das combinações. 2. Não é de similaridade (isto é, os dois As contingências socioeconômicas da atu- do par analítico não são iguais, dife- alidade têm trazido um fator complicador na rentemente do que imaginam mui- efetivação do contrato na cláusula que se refe- tos pacientes regressivos, notada- re à possibilidade de o terapeuta ter um valor mente os de uma forte organização de preço único, independentemente se ele for- narcisista, que têm dificuldade em nece ou não um recibo (este é um outro pro- admitir que o terapeuta é uma pes- blema à parte, que merece uma aprofundada reflexão), que o paciente utilizará na sua de- soa autônoma, tem a sua própria claração do Imposto de Renda, ou ter dois va- técnica e o seu próprio estilo de tra- lores diferentes, sendo que, não é nada inco- balhar, pensar e viver). mum, existe a possibilidade de que o analista 3. A relação que o paciente reproduz defina claramente que não costuma emitir re- com o analista é isomórfica (ou seja, cibos. Igualmente, varia de um analista para na essência, eles se comportam de outro a conduta quanto a manutenção de um uma “mesma forma”, como seres mesmo valor para todos os seus analisandos, humanos que são). No entanto, o ou se ele se dá o direito de estabelecer valores conceito de isomorfia não deve ser diferentes de acordo com as circunstâncias pes- confundido com a idéia de que o soais de cada paciente em particular. analista será um substituto para uma O importante, cabe enfatizar, não é tanto mãe ou pai, ou ambos, que foram o cumprimento fiel de cada uma das cláusulas ausentes ou falhos, mas, sim, que ele combinadas, mas, sim, o estado de espírito de desempenhará – transitoriamente – como elas foram aceitas por ambos, sem alte- as funções de maternagem (ou outras rar um necessário clima de respeito mútuo, e equivalentes) que o paciente carece.