Você está na página 1de 14

Bioética: cuidados com o fim da vida.

Vitor Leandro Kaizer*


Marco Antônio Oliveira de Azevedo**

RESUMO

O presente artigo trata sobre os cuidados com o fim da vida. O objetivo


principal é apresentar e discutir a abordagem que Alexandre Laureano dos Santos
(1996) faz no seu artigo “O fim da vida”, como também discorrer sobre atitudes
profissionais que complementem esse objetivos propostos. Neste sentido, foram
estudados autores que fundamentaram as discussões propostas e embasaram a
estruturação geral deste trabalho. Após a apresentação de algumas concepções
fundamentais a respeito do fim da vida, da exposição de alguns cuidados para com
os doentes em estado terminal e uma incursão pelas virtudes cardeais que perfazem
a ética biomédica, chegou-se às conclusões. São de extrema importância os
debates existentes nas áreas da Bioética e da ética biomédica, pois se traduzem em
tentativas de melhor direcionar a ciência e medicina. O profissional de assistência à
saúde, sempre que embasado na ética do seu ofício, terá os recursos mais
adequados para proporcionar ao paciente em estado terminal o melhor bem e o
menor mal possíveis. Finalmente, este artigo tem como alvo refletir, contudo não
deixa de apresentar orientações relevantes sobre os cuidados a serem prestados
aos pacientes em estado terminal.

Palavras-chave: Bioética. Ética biomédica. Tomada de decisões. Morte.

1 A QUESTÃO ÉTICA NA BIOMEDICINA

O tema a ser abordado neste artigo tem como base algumas das principais
teses de Alexandre Laureano dos Santos (1996) apresentadas no artigo “O fim da
vida”. Essa temática é parte da Bioética, uma disciplina recente que, segundo Marco
Antônio de Azevedo (2002, p. 23, grifos do autor), pode ser definida como, “o estudo
multidisciplinar dos aspectos morais da investigação e da prática na área
biomédica”. É justamente dentro dessa abordagem e desse amplo espectro de
alcance do discurso bioético onde as questões do final da vida e de suas respectivas
considerações encontram um importante campo de destaque.

* Mestrando em Filosofia pela UNISINOS, campus de São Leopoldo.


**
Professor do PPG de Filosofia da UNISINOS.
Sabe-se que a morte é uma condição inerente à vida, isto é indubitável.
Contudo, a sua aparição, mesmo que imponente, problematiza a implementação de
certas atitudes e cuidados, os quais, segundo Santos (1996, p. 355), “[têm como
finalidade] facultar a estes doentes um prolongamento da vida e uma diminuição do
sofrimento”. Tenha-se em mente aqui que se está falando daqueles casos de
doenças incuráveis, de pacientes em estado terminal. Os cuidados que se aplicam
nesses casos, e cuja finalidade é apenas proporcionar um bem-estar e um retardo à
morte, também podem ser chamados de cuidados paliativos, pois não consistem em
um tratamento efetivo. Porém, esses cuidados propostos por Santos devem levar
em conta o debate ético que permeia dois princípios aparentemente contraditórios: o
Princípio de Sacralidade da Vida e o Princípio de Respeito à Autonomia das
Pessoas. O que se abordará no decorrer desta pesquisa.
Com o desenvolvimento da ciência houve, também, um enorme avanço na
área médica. Neste sentido, Santos (1996) é um dos autores que afirma que foi
possível construir equipamentos capazes de suplementar o mau funcionamento do
organismo humano e, inclusive, o não funcionamento de determinados órgãos e
aparelhos que o constituem. Esse autor ainda destaca que se tornou factível intervir
na contenção de infecções bacteriológicas, além de muitos outros avanços
consideráveis (SANTOS, 1996). A partir dessa verdadeira revolução tecnológica não
se pode mais dizer que a medicina segue sendo a mesma, pois foi, e continua
sendo, constantemente superada. Com base nestas observações, Santos (1996, p.
356) esclarece que,

[todo esse] conjunto de meios facultou nalguns casos a cura de doenças.


Noutros a atenuação das suas consequências nos seus portadores.
Noutros, ainda, facultou a interrupção ou o atraso do seu natural curso para
a morte.

Deste modo, é plausível evidenciar que a ciência proporcionou à medicina


contemporânea uma ampla gama de recursos que possibilitaram tanto o
abrandamento de certas doenças, como também tratamentos efetivos de moléstias
antes tidas como incuráveis e ainda, para certos casos irreversíveis, um retardo ao
derradeiro curso para a morte. Contudo, juntamente a todas essas conquistas
memoráveis, Santos (1996, p. 356) adverte que, “[...] colocam-se um grande número
de questões éticas [e] para a maior parte destas interrogações não existem
respostas definitivas e universalmente aceites”. No âmago da ética biomédica essas
incógnitas sobre a função da medicina e da ciência frente à vida humana recebem
uma problematização especial. Passar-se-á desde agora a tratar de alguma delas.

2 TÓPICOS

A discussão de alguns dos fatores que envolvem essa importante questão – o


fim da vida – possibilita uma reflexão e uma análise mais aprofundada do assunto,
isto na tentativa de iluminar os mais diversos departamentos permeados pelo tema.
Nessa matéria, a compreensão se faz indispensável dado a delicadeza da questão e
a urgência de se tomar uma atitude razoável e célere ao mesmo tempo, pois se está
tratando de casos que envolvem a vida. É neste sentido que se quer chamar a
atenção para alguns desses “detalhes” que estão intimamente relacionados ao
problema fundamental da ética biomédica.
São vários os fatores que, neste sentido, merecem um destaque. O primeiro
diz respeito aos recursos destinados à saúde. Santos (1996, p. 356, grifo do autor)
declara que, “[os recursos] são sempre limitados e é inevitável o seu
‘racionamento’”. Isso ainda mais no Brasil, onde infelizmente os investimentos na
área da saúde são tão parcos e restritos, em especial nos últimos anos. Esse tipo de
restrição deve ser levando em conta na hora da tomada de decisões por parte da
equipe de assistência à saúde. Quanto aos critérios a serem utilizados nessas
situações, Azevedo (2002, p. 100) enfatiza que,

os [casos] que possuem um risco maior de adoecimento ou morte e os que


se encontram com as melhores possibilidades de se beneficiarem com certo
procedimento são vistos com certa prioridade [e] essa escolha deve ser
enfrentada não apenas pelos médicos, mas pelos próprios pacientes.

Esse rigoroso exercício lógico de destinação de recursos requer, também, um


ensaio ético por parte dos médicos e dos pacientes, pois o bom senso exigido no
caso transcende o princípio do egoísmo em que “eu sou mais importante”, quando a
questão é “quem mais necessita”. Contudo, outro ponto relevante a ser refletido, “[...]
refere-se à organização dos próprios hospitais e aos serviços de internamento [...]
para as doenças arrastadas e eventualmente irreversíveis” (SANTOS, 1996, p. 356).
Fatos esses que merecem a devida atenção por parte das próprias instituições de
saúde, das equipes técnicas e administrativas do lugar, como também dos
conselhos de saúde. Segundo Santos (1996, p. 356), “[a simples] instalação
adequada de hospitais de dia e de consultas especializadas poderia melhorar muito
os níveis de cuidados prestados àqueles doentes”. O que torna premente uma
organização adequada desses locais com vista a atender às possíveis demandas.
Além desses requisitos básicos para um efetivo atendimento médico, o
cuidado com a saúde deve ser visto como um ato que extrapola o âmbito puramente
técnico, pois é uma ação que interfere sobre vários indivíduos e, consequentemente,
sobre os seus interesses e conhecimento. Através desta ótica, Azevedo (2002, p.
100) enfatiza que,

[...] a relação médico-paciente ultrapassa a fronteira dos benefícios privados


do ato médico [e que] assim como na Antiguidade havia uma identidade
entre a prática médica e sua moral de finalidades, estamos, pois, diante de
uma ciência médica renovada e com ela também diante de uma moral
atualizada e identificada.

Frente a todas essas exigências atuais a perspectiva médica perpassa a


barreira de um agir puramente técnico e tende a considerar a opinião dos entes
envolvidos na particularidade de cada caso, principalmente, ao se tratar de casos
que envolvam pacientes em estado terminal. Nesta perspectiva, Santos (1996, p.
357) destaca que,

a abordagem dos doentes em estado terminal exige da parte do médico


uma ponderação individual que, envolvendo a situação biológica da pessoa
doente, terá necessidade de considerar o seu enquadramento afectivo [sic],
familiar e social, e os seus valores culturais, espirituais e religiosos.

Deste modo, a atitude dos profissionais a serviço da saúde vai além de uma
abordagem técnica e objetiva, pois deve levar em consideração as mais diversas
questões envolventes em cada caso. Aí entram, além do quadro clínico do paciente,
os seus valores emocionais, culturais e religiosos, os quais passam a ser critérios
indispensáveis para uma boa avaliação médica. Não levar em conta os interesses
daqueles sujeitos que são os mais interessados em qualquer tratamento ou cuidado,
a saber, os pacientes e os seus entes queridos, seria uma atitude imprópria. Por
essas e outras razões, faz-se necessário reconhecer algumas abordagens
inadequadas com relação aos pacientes em estado terminal.
Dentre algumas dessas atitudes impróprias, Santos (1996, p. 357) ressalta
que,

[está] a da marginalização das pessoas na última fase do seu ciclo de vida.


Invocando-se razões de incomodidade ou de insegurança dos outros
doentes, as pessoas em situação terminal são algumas vezes colocadas em
salas isoladas, frequentemente com menos instrumentos de vigilância e de
intervenção.

No sentido de minimizar essa marginalização das pessoas em estado


terminal, as equipes técnicas devem estar bem preparadas de modo que possam
atender tanto as necessidades biológicas dos seus pacientes, quanto às suas
demandas emocionais e humanas em geral. Nesse ínterim seria importante destacar
também o papel que cabe à sociedade no que tange à sua recepção ao doente em
estado terminal e ao fenômeno “morte”.
É de se notar que a atitude das pessoas, em geral, quando estão em jogo
questões relacionadas ao fim da vida, costumam isolar a morte no terreno do
supranatural, ou em qualquer outro departamento que não seja o da vida prática,
talvez por medo, receio ou simples crenças... O declínio da vida, a doença e a morte
são fenômenos tão reais e, quem sabe, tão importantes, quanto o próprio
desenvolvimento da vida, a saúde e a vida em si. Sem desmerecer as especulações
existentes sobre a morte, sem dúvida, uma conscientização que leve em conta este
argumento apontado é indispensável para que a vida e, consequentemente, a morte,
sejam vistas de uma maneira natural e descomplicada. Ao passo em que se
articulam concepções mais descomplicadas sobre a morte, o tratado pessoal devido
ao moribundo passa, também, a levar em conta a sua humanidade.
Outra atitude inadequada apontada por Santos (1996), diz respeito à
insistência terapêutica, a qual, por meio de expedientes extraordinários e
desproporcionais, não acarretaria em benefícios ao doente. Muito pelo contrário, o
autor afirma que, “[com isso se produzirão] sofrimentos desnecessários e gratuitos
aos doentes sempre que exista uma alta probabilidade de que desta intervenção não
resulte um prolongamento da vida autónoma [sic] e consciente” (SANTOS, 1996, p.
358). No sentido de minimizar essas consequências prejudiciais e buscar os meios
mais eficientes para a ação, seria oportuno que houvesse uma discussão prévia
entre os membros da equipe de saúde.
Por último, uma terceira atitude inadequada, segundo Santos (1996), é a
prática da eutanásia. Neste âmbito, o autor, mesmo reconhecendo a eutanásia como
uma prática aceita em muitas culturas, a considera como uma atitude imprópria. É
importante salientar que o termo em questão – a “eutanásia” – faz referência, “[a] um
conjunto de procedimentos que tende a pôr termo à vida de uma pessoa atingida por
uma doença incurável e só muito penosamente suportável” (SANTOS, 1996, p. 358).
Partindo-se do pressuposto de que a vida, independente das condições em que se
encontre, é um bem concedido ao indivíduo para usufruto, então a prática de
qualquer ato que lese essa mesma vida contraria a sua razão de ser. Neste sentido,
Santos (1996) entende que essa prática não deixa de representar um suicídio e,
consequentemente, um “atentado” contra a vida. Por outro lado, discute-se o
respeito devido ao livre-arbítrio do doente em estado terminal, em especial quando o
mesmo solicita a abreviação da sua própria vida.
No debate em torno da eutanásia há, pelo menos, duas correntes que
representam os princípios de ambos os lados da discussão. Conforme Maria de
Lurdes Lima (2013, p. 22) aponta, “[um é] o Princípio de Sacralidade da Vida (PSV)
[e o outro] o Princípio de Respeito à Autonomia das Pessoas (PRA)”. Para um
melhor entendimento da força motriz de cada um desses princípios, essa autora
esclarece que,

[o PSV entende] a vida como uma dádiva – um bem concedido à criatura


humana – daí o seu estatuto sagrado. [De modo que] a vida sagrada não
deve ser interrompida nem por vontade do seu titular, ou seja, a existência é
considerada digna independente das condições em que se apresente
(LIMA, 2013, p. 22, grifo nosso).

Ou seja, o PSV se fundamenta na concepção de que a vida não é um bem


próprio do indivíduo que a desfruta, mas sim um princípio divino que lhe foi apenas
concedido. Partindo-se desse ponto de vista se deve entender que o indivíduo que
usufrui a vida, pela razão de não ser o criador dessa vida, mas apenas o seu
portador, não tem direitos sobre ela. Cabe ao indivíduo, no exercício do seu arbítrio,
optar pelo quê fazer da sua vida, quais caminhos seguir, contudo, não é da sua
dignidade escolher se vai viver ou deixar de viver.
Ao que diz respeito ao PRA, a autora afirma que,

[esse] surgiu como instrumento legítimo na resolução de conflitos morais na


biomedicina [...]. De um modo geral, as decisões serão consideradas
autônomas se forem resultado da deliberação e da vontade individual, a
partir do processo de informação e esclarecimento sobre diagnósticos,
tratamentos, riscos, benefícios, danos possíveis e prognósticos,
essencialmente nas atividades de cuidado à saúde e de investigação nas
pesquisas, envolvendo seres humanos (LIMA, 2013, p. 22).

Segundo esse último princípio, a concessão da eutanásia em casos muito


específicos de uma doença terminal, por exemplo, é possível. Contudo, essa
deliberação só será considerada “autônoma” quando derivar da vontade de um
indivíduo que esteja a par de todos os esclarecimentos técnicos possíveis, dos prós
e contras de qualquer decisão.
Mesmo que esses dois princípios sejam fundamentalmente incompatíveis, se
poderia propor uma conciliação entre ambos que tenha como objetivo deixar às
claras o papel da medicina frente à vida. Enquanto o PSV declara que o princípio da
vida está acima da razão individual e, com isto, não admite que o indivíduo possa
causar qualquer interferência à sua própria vida, o PRA participa da visão de que se
deve respeitar a autonomia das pessoas, independentemente das suas escolhas. A
partir de ambas as concepções se propõem uma visão que leve em conta a vida
como um bem recebido, seja por graça de Deus – PSV – ou esforço da Natureza,
mas que também respeite a autonomia das pessoas – PRA – quando optarem pela
morte natural, a ortotanásia. Esse exercício de autonomia não fere o Princípio de
Sacralidade da Vida, pois deixa a vida seguir o seu curso, e toma ao mesmo tempo,
como ponto de partida, o Princípio de Respeito à Autonomia das Pessoas.
Como o objetivo desta pesquisa é a bioética e os cuidados com o fim da vida,
do ponto de vista médico, é oportuno enfatizar que, “mesmo quando não há mais
qualquer perspectiva de tratamento útil, cabe ao médico aliviar a dor” (AZEVEDO,
2002, p. 128). Quer dizer, a finalidade de qualquer equipe de saúde é cuidar da
pessoa doente. E “cuidar” é uma ação que vai mais além de um cuidado da parte
física, pois leva em conta uma série de disposições internas de cada indivíduo,
como, por exemplo, a sua vontade. Neste sentido, Santos (1996) propõe à equipe
terapêutica, quando do acompanhamento de doentes em estado terminal, os
seguintes objetivos a serem observados:

a) diminuir a dor e o desconforto dos doentes;


b) prolongar a vida;
c) tratar os doentes segundo os seus próprios desejos, a sua cultura e os
seus valores;
d) buscar enquadrar os doentes no seu modo de viva, segundo os seus
afetos e vontade.

A explicitação destes quatro objetivos propostos resume uma visão ética de


respeito à vida, de sensibilização à dor e de consideração ao livre-arbítrio de cada
ser humano, pois são “propostas” da equipe médica para o paciente e não
imposições. Deste modo, cabe aqui elucidar cada uma destas proposições
separadamente. A primeira, diminuir a dor e o desconforto dos doentes, diz respeito
à inclinação humana de abrandar o sofrimento e de facilitar a vida dos doentes.
Quanto a este ponto, Santos (1996, p. 358) salienta que,

[essa] é uma das atitudes clássicas da medicina de todos os tempos [e, por
mais que existam inúmeras técnicas que sirvam a esse propósito] as
medidas terapêuticas comportam riscos e danos os quais, em cada caso,
devem ser cuidadosamente ponderados.

Essa atitude vem como um meio de promover o bem-estar desses doentes,


por mais que estejam em situação terminal. Mas, mesmo nessas condições
irreparáveis, deve-se levar em conta que toda e qualquer medida terapêutica põe o
paciente em certos riscos que merecem ser examinados com muito rigor.
Já o postulado de prolongar a vida é, para Santos (1996), uma medida que
deve levar em conta a autonomia desse mesmo paciente, sua dignidade e o seu
grau de sofrimento. Isto porque parte do pressuposto de que o livre-arbítrio e o
consentimento do paciente são os fundamentos capazes de justificar qualquer
intervenção terapêutica. Tendo em vista a proposta que foi apresentada acima, de
unificar os dois princípios – PSV e PRA –, ofertar um tratamento paliativo ao
paciente em estado terminal é uma possibilidade que deve estar em acordo ao livre-
arbítrio desse mesmo paciente e jamais ser um imperativo médico sobre o paciente.
Em terceiro lugar, no que se refere a tratar os doentes segundo os seus
próprios desejos, a sua cultura e os seus valores, Santos (1996, p. 358) adverte que,
“não é lícito utilizar meios que se oponham aos desejos manifestados pelos
doentes”. Cada caso é um caso específico e envolve diferentes situações, diferentes
indivíduos e diferentes pontos de vista a serem analisados. A isto, Santos (1996)
acrescenta que, há uma enorme importância de que haja troca de impressões entre
o doente e a equipe técnica com a finalidade de que todos estejam inteirados a
respeito do estado da doença e do seu desenvolvimento. Dentro desse âmbito de
inteira transparência, Santos considera que, “[deve] ser respeitado o seu desejo
[ainda que o doente não queira] ser informado da sua situação” (SANTOS, 1996, p.
359, grifos nossos). Percebe-se claramente aqui o ambiente de respeito e de
solidariedade que se deve oferecer ao paciente. Dentre outros aspectos inclusos
nessa questão, a vontade do paciente deve sempre ser respeitada e, inclusive,
quando o mesmo fizer questão de não saber sobre o seu quadro clínico, a equipe
técnica tem o dever de respeitar esse desejo.
Quanto ao quarto e último objetivo proposto por esse autor, o de buscar
enquadrar os doentes no seu modo de viva, segundo os seus afetos e vontade.
Deve-se atentar para algumas recomendações que o autor faz. Santos (1996)
entende que uma das considerações que emanam dessa atitude diz respeito ao
local “mais correto” para atender esses pacientes em estado terminal. Disto
depreende-se que,

se for possível continuar o tratamento correctamente [sic], sem desorganizar


a família, mantendo os doentes em suas casas, segundo a sua vontade,
estarão reunidas as melhores circunstâncias de acompanhamento pelos
serviços de saúde (SANTOS, 1996, p. 359, grifos nossos).

Desde que se leve em conta a devida orientação à família do paciente e que


haja um apoio por parte dos hospitais e agentes especializados, essa medida tem
como finalidade proporcionar ao enfermo o maior bem-estar possível, ou seja: a
presença da sua família e o conforto do seu próprio lar. Para Santos (1996), esses
quatro objetivos apontados servem a todos os departamentos da área de assistência
à saúde e têm como meta dar o suporte cabível à vontade do paciente, atender à
sua maneira de viver e à sua situação familiar e social.
De acordo com os apontamentos apresentados acima, os quais objetivam
uma correta prática terapêutica, é importante frisar que a meta de cuidar da vida
deve sempre levar em conta o respeito a essa mesma vida e à autonomia das
pessoas. Nessas condições, o profissional da saúde se encontra em um constante
dilema onde qualquer tomada de decisão deve ser previamente ponderada com
muita atenção. Com a finalidade de suprir essa demanda, Tom Beauchamp e James
Childress (2013) propõem aos profissionais de saúde o desenvolvimento de uma
atitude moral baseada em quatro virtudes fundamentais. O objetivo dessas virtudes
é dar a esses profissionais um aporte psíquico e moral para que as suas tomadas de
decisões sejam condizentes com o papel da medicina frente à vida e ao livre-arbítrio
do indivíduo. Para esses autores, “[essas quatro virtudes] são amplamente
reconhecidas na ética biomédica e [...] ajudam a examinar o caráter dos
profissionais da saúde” (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2013, p. 500). Ou seja, são
valores cardeais na condução de um comportamento profissional engajado na
motivação interior para o bem e o que é certo. Assim sendo, a virtude da compaixão
é vista por esses autores como um elemento fundamental, pois se caracteriza como,

[...] um traço que combina uma atitude de consideração pelo bem-estar do


outro, uma consciência imaginativa e uma reação emocional de profunda
simpatia e afeição e de desconforto com o infortúnio ou sofrimento da outra
pessoa (ou de um animal) (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2013, p. 500).

O profissional de saúde que embase as suas práticas na virtude da


compaixão estaria vinculando ao seu fazer técnico um elemento imprescindível às
relações pessoais, o humanismo. Ser capaz de se simpatizar e de se solidarizar com
o próximo é um valor inestimável que aproxima o agente do paciente, e vice-versa,
viabilizando assim uma naturalidade na relação entre ambos e, sobretudo, um olhar
mais perito do caso por parte do técnico. Contudo, vale complementar que essa
fórmula é válida, “[enquanto] a compaixão motiva de maneira apropriada e exprime
bom caráter, [aí então] possui um papel importante na ética, juntamente com a razão
imparcial e o julgamento desapaixonado” (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2013, p.
502, grifo nosso). Ou seja, a virtude jamais deve cegar a razão e a justiça de
qualquer ato, pois então seria um despropósito e acarretaria em consequências
daninhas.
A segunda virtude apontada pelos autores é o discernimento. Entende-se que
esse caráter seja fundamental na prática médica, pois segundo Beauchamp e
Childress (2013, p. 502), “[ele] se baseia numa visão sensível que envolve um
julgamento e uma compreensão profundos, o que resulta numa ação decisiva”.
Especialmente quando se fala em pacientes em estado terminal, uma decisão
técnica oriunda de um julgamento substancial, sem influência de considerações ou
vínculos exteriores, favorece a efetivação da atitude mais correta e, por isso, menos
prejudicial a ser tomada. O caráter do discernimento pode ainda ser resumido como,
“[o entendimento] daquilo que é mais importante e [que] precisa ser feito”
(BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2013, p. 503). Com isto, se verifica que não basta
apenas o profissional da saúde saber fazer, é necessário também que ele saiba
como fazer, quando fazer e por quais motivos fazer, pois deve levar em conta a
situação geral do paciente.
A confiabilidade é a terceira virtude requerida na assistência à saúde. É de
extrema importância para o paciente o fato de que ele possa confiar em quem lhe
presta um serviço tão íntimo e delicado, que é o cuidado com a sua saúde. Para
Beauchamp e Childress (2013, p. 503), “a confiança é uma crença na habilidade e
no caráter moral de outra pessoa. A confiança é uma convicção de que outra pessoa
agirá com os motivos certos de acordo com regras morais”. Dela deriva uma
“abertura” e entrega do paciente pela fé nos bons serviços do seu médico ou da
equipe técnica em geral. Sem a confiança é quase impossível que haja sucesso em
qualquer relação hospitalar.
Por último, Beauchamp e Childress (2013) apontam que, a integridade é a
quarta virtude cardeal para o exercício profissional da saúde. O papel que
desempenha esta última nas práticas de assistência à saúde é irrefutável e o seu
sentido é muito abrangente. De acordo com os autores,

em seu sentido mais geral, integridade moral significa firmeza,


confiabilidade, inteireza e integração do caráter moral. Num sentido mais
restrito, e o principal para nós, integridade moral significa fidelidade na
adesão a normas morais. Desse modo, a virtude da integridade representa
dois aspectos do caráter de uma pessoa. O primeiro é uma integração
coerente das características da pessoa – emoção, aspiração, conhecimento
etc. –, de modo que se complementem [...]. O segundo aspecto é o traço de
caráter de ser fiel a certos valores morais e de erguer-se em sua defesa
quando eles estão sendo ameaçados ou atacados (BEAUCHAMP;
CHILDRESS, 2013, p. 505-506).

Partindo dessa explicação, pode-se considerar a integridade a partir de dois


pontos de vista. Um se refere à capacidade de coesão entre as diferentes
características de um mesmo indivíduo, de modo que esse não se contradiga por
sentir uma coisa e agir de outra maneira, por exemplo. O segundo ponto de vista da
integridade, como bem explicitado, se refere à fidelidade do indivíduo em relação às
suas próprias concepções e valores morais. De modo geral, se pode afirmar em
favor da integridade, que esta é uma das virtudes primárias, pois é aquela que
“regula” certa constância moral num indivíduo multifacetado, que é o ser humano, e
que também é a responsável por lhe estabelecer limites morais. Segundo
Beauchamp e Childress (2013, p. 509), “há algo de enobrecedor e de admirável na
pessoa que se recusa a transigir além de um certo limite moral [...]”. Tenha-se em
mente o exemplo de um médico disposto a fazer “qualquer coisa” que o seu paciente
lhe solicite, com certeza poderia cometer um ato de improbidade profissional e,
inclusive, prejudicial à integridade física e moral do próprio paciente.
Essas quatro virtudes apresentadas permeiam a discussão bioética e
biomédica. Elas são imprescindíveis para os profissionais das diversas áreas da
saúde, contudo, quer-se nesta pesquisa ressaltar a importância das mesmas quando
da necessidade de uma tomada de decisão que leve em conta o respeito à vida e à
autonomia do paciente. Dada a gravidade das circunstâncias que envolvem os
pacientes em estado terminal, o cuidado necessário a ser prestado extrapola o
âmbito puramente técnico-objetivo e adentra pormenores morais e subjetivos muitas
vezes inferiorizados e, até mesmo, refutados. Apesar disto, são pontos de extrema
importante para uma atitude coesa, hábil e devidamente ponderada.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegada esta etapa do trabalho cabe refletir sobre alguns pontos decisivos
expostos nesta pesquisa. O objetivo apresentado no início deste artigo indicava a
necessidade de articular sobre questões referentes à Bioética, no sentido de
apresentar alguns dos seus problemas e indicar possíveis soluções. Neste sentido,
mantiveram-se em foco questões relacionadas aos doentes em estado terminal e à
devida atenção que esses casos, em especial, merecem. Assim, se inquiriu
basicamente sobre quais seriam as melhores práticas e os melhores meios de se
cuidar desses doentes, já que qualquer tratamento que se empreenda nessas
circunstâncias pode ser considerado ineficiente ou, até mesmo, prejudicial ao
paciente.
Deste modo, apresentaram-se quatro objetivos propostos por Santos (1996)
que servem como meios de intervenção nesses pacientes, de maneira que se
alcance tanto o seu bem-estar, quanto o respeito às suas decisões, cultura, religião
e, sobretudo, à vida. Mas vale a pena lembrar: essas regras são apenas meios que
servem para esclarecer qual o papel da medicina frente à vida e à autonomia das
pessoas. E uma atitude correta para cada caso não pode derivar de generalizações.
Para isto, se expôs e discutiu a proposta de Beauchamp e Childress (2013) que trata
de amparar a atitude profissional dos agentes de saúde através da criação de uma
postura moral e psíquica que facilite a tomada de decisões. Segundo o que foi
apresentado, esses autores recomendam a prática de quatro virtudes indispensáveis
na assistência à saúde. Como se viu, são justamente essas virtudes que promovem
um caráter nobre e admirável nos profissionais da saúde que lhes permite tomar
uma decisão correta, tendo sempre em vista a prática do bem e a busca pelo certo.
O profissional respaldado por essas quatro virtudes primordiais saberia, por si
mesmo, qual a melhor atitude a ser tomada em cada caso e não estaria limitado por
um rígido “manual de práticas”, pois teria a liberdade moral para agir por consciência
ao refletir sobre cada caso.
Dadas estas análises, conclui-se este artigo com a certeza de que são de
suma importância as discussões pertinentes à Bioética, à ética biomédica e aos
cuidados com o final da vida; que as considerações técnicas na área da saúde, em
se tratando, principalmente, de pacientes em estado terminal, devem se
fundamentar em atitudes convenientes ao próprio paciente, sempre que estejam em
concordância com o respeito à vida e à autonomia desses mesmos pacientes; os
membros da equipe de assistência à saúde devem estar de tal forma engajados
entre si e com o paciente que consigam proporcionar um ambiente salutar ao seu
estado, como também um cuidado baseado na transparência e na confiabilidade
mútua. Ademais, cabe à própria sociedade e, principalmente, à família do doente lhe
respeitar, acolher e buscar proporcionar a ele o melhor bem-estar possível.
REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Marco Antônio Oliveira de. Bioética fundamental. Porto Alegre: Tomo
Editorial, 2002.

BEAUCHAMP, Tom; CHILDRESS, James. Princípios de ética biomédica. 3. ed.


São Paulo: Edições Loyola, 2013.

LIMA, Maria de Lourdes Feitosa. Bioética e o fim da vida: o debate sobre a tomada
de decisão, às portas do infinito. 2013. 69 f. Dissertação (Mestrado em Ciências na
área de Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva) - Programa de Pós-Graduação
em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva, UFRJ/UFF/UERJ/FIOCRUZ, Rio de
Janeiro, 2013.

SANTOS, Alexandre Laureano. O fim da vida. In: ARCHER, Luís; BISCAIA, Jorge;
OSSWALD, Walter. (Coord.). Bioética. São Paulo: Editorial Verbo, 1996.

Você também pode gostar