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Os CAPS e se u s tra b al h a d o r e s : no olh o do fura c ã o

an ti m a n i c o m i a l . Ale gr i a e Alívio co m o dis p o s i t i v o s


an a l i s a d o r e s ∗ ♣

Eme r s o n Elias Mer hy / 200 4

Idéi a s

No seu estu d o sobre o trab al h o médico no Prog r a m a de Saú d e da


1
Família, em São Paulo, Angela Capozzolo teve a inter e s s a n t e
image m do olho do fura c ã o, par a rep r e s e n t a r o que via na
prom e s s a dest e Prog r a m a em ser alte r n a t ivo e substit u tivo ao que
cha m a de mod elo médico heg e m ô n ic o. Consid e r a qu e est e mod elo
não tem cap acid a d e de oper a r a prod u ç ã o da saúd e , pois está,
ant es de tudo, comp r o m e ti d o com os inter e s s e s econô mic o s e
corpo r a tivo s pre d o mi n a n t e s na socied a d e , e não com o mun d o das
nec e s si d a d e s de saú d e dos indivíduo s e coletivos.

Se m discor d a r da visão crítica que, com a sua pro m e s s a , nos


ofert a do mod elo médico heg e m ô n i c o, o que me cha mo u a
ate nç ã o , e da qual vou pedir algu m a s coisas emp r e s t a d a s par a a
Angela, é a idéia de que: que m pro m e t e ser alte r n a t ivo e
substit u tivo de um outro modo de prod u zir ações de saú d e , ou
mes m o, que m do seu luga r faz uma leitu r a crítica das form a s


Gost ari a de deixa r claro que este texto é um ens ai o e é devedo r de um trab alho
coletivo com os profissionai s do Cândido Ferr ei r a , Cam pi n a s , dura n t e o ano 2003, com
que m pude vivenci a r muita s situaçõ e s instiga n t e s , não confort áv eis, de como é dur a a
vida dos que apos t a m na muda n ç a . Sou deve do r tamb é m de muit a s de suas idéias, que,
aqui, sist e m a t izo e agr e g o novos elem e n t o s

Muitos dos term o s que uso, como alívio, cuidar de cuida do r e s , são deve do r e s de
vários outr os com que m venho trab al h a n d o. No deco r r e r do texto cito part e s das
fontes, outra s ficara m tão minha s tam b é m que não as localizo, mas as reconh e ç o como
de muitos auto re s .
1 A Angel a apr e s e n t o u est e trab alh o como sua tese de douto r a m e n t o no Curso de Pós

em Saúd e Coletiva no DMPS/UNICAM P

1
heg e m ô n i c a s de se const r u i r prátic a s de saú d e; só pode esta r no
olho do furac ã o.

Não que ro com isso copia r os mes m o s sentid o s dest a


repr e s e n t a ç ã o , mas ela nos ajud a a olhar o que, hoje, a red e de
CAPS pro m e t e no discu r s o do movime n t o antim a n ic o m i a l e no
camp o das estr a t é g i a s par a a refor m a psiq uiá t ri c a , no Brasil.

Quem vem propo n d o , e me pare c e com muito ace rt o , que


caminh a r na constituiç ã o de red e s subs tit u tiv a s ao Manicô mio é
apost a r na const r u ç ã o de CAPS, por sem elh a n ç a , est á em um
luga r muito par e cid o daq u el e que desc r evi atr á s do estu d o da
Angela. Pois, ent e n d o que, nest e sen tid o, os CAPS pro m e t e m fazer
a crítica do mun d o manico mi al e ser luga r de const r u ç ã o das
prá tic a s alter n a tiv a s e subs tit u tiv a s.

Reafirm o que as expe ri m e n t a ç õ e s de const r u ç ã o dos CAPSs têm


sido muito pro d u tiv a s, par a ger a r e m proce s s o s antim a n i co mi ais;
e, mais, têm de fato melho r a d o a vida de milh ar e s de usu á rios
deste s serviços.

Ousa ri a dizer que dent r e as várias missõ e s que eles comp o r t a m ,


há algu m a s que têm most r a d o a supe rio ri d a d e efetiv a dest e s tipos
de equip a m e n t o s per a n t e o que a psiquia t ri a clássic a e os
manicô mio s const r u í r a m , nest e s último s séculos.

O fato dos CAPS esta r e m dirigido s, como equip a m e n t o s de saú d e ,


par a a pro d u ç ã o de inte rv e n ç õ e s em saú d e men t al, que se paut a m
pelo(a):

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Direito do usu á rio ir e vir
Direito do usu á rio des eja r o cuid a d o
Oferta de acolhim e n t o na crise
Atendim e n t o clínico individ u al e coletivo dos usu á rio s, nas suas
complex a s nece s si d a d e s
Constr u ç ã o de vínculos e refe r ê n c i a s, par a eles e seus “cuid a d o r e s
familiar e s ” ou equivale n t e s
Geraç ã o de alívios nos dem a n d a n t e s
Prod uç ã o de lógica s subs tit u tiv a s em red e
Matricia m e n t o com outr a s compl exid a d e s do siste m a de saú d e
Geraç ã o e opor tu n iz a ç ã o de red e s de rea bilita ç ã o psico- social,
inclusiva s;

os torn a m , em ter m o s de finalid a d e s , ao mes m o tempo,


dispositivos efetivos de tens ã o entr e novas prátic a s e velhos
“hábito s”, e luga r e s de melho ria s reais na const r u ç ã o de forma s
sociais de trat a r e cuid a r da loucu r a.

Por isso, esta r e m no “olho do fura c ã o” antim a n ic o mi al, torn a m- os


luga r e s de manifes t a ç ã o dos gra n d e s conflitos e desafios, como
venho apon t a n d o no deco r r e r do texto; e ousa r dar conta dest a s
missõe s, giga n t e s c a s , é esta r abe r t o a oper a r no tam a n h o da sua
potê n cia e gover n a b ilid a d e , adota n d o como um dos princípios o de
ser um dispo sitivo para isso, o que implica em prod u zi r novos
coletivos para fora de si mes m o.

Nest e sen tid o, estã o no olho do furac ã o e, como tal, os que o estão
fabric a n d o deve m e pode m usufr ui r das dúvida s e das
expe ri m e n t a ç õ e s , e seria muito inte r e s s a n t e que torn a s s e m isso
um ele m e n t o positivo, como marc a d o r con tr a os que possa m
imagin a r que ele já é o luga r das cert e z a s antim a n i co mi ais.

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Esta últim a postu r a , das cert e z a s , carr e g a consig o um gra n d e
perigo. Esta r no olho do furac ã o é atiça r um inimigo pode r o s o: o
conjunt o dos que se constitu ír a m e constitu e m o mun d o, e um
mund o, manico mi al. Dest e modo, ter uma post u r a de que na
constituiç ã o dos CAPS deve m o s seg ui r mod elo s fech a d o s ou
receit a s, é elimin a r a inte r e s s a n t e multiplicid a d e deste, e não
aproveit a r de um fazer coletivo solidá rio e expe ri m e n t a l. Com isso,
abr e- se o flanco par a que aqu el e inimigo pod e r o s o seja o
refe r e n c i al crítico, fazen d o da crític a um luga r da neg a ç ã o e não
um camp o instig a n t e de coop e r a ç ã o , reflexã o, auto- análise e
ressig nifica ç ã o das prátic a s; que, ante s de tudo, se propõ e m
produzir e m novas vidas deseja n t e s , novos sen tido s par a a
inclusivid a d e social, ond e ante s só se realizav a a exclus ã o e a
inter diç ã o dos desejos.

Aposta r alto dest e jeito, é cre r na fabric a ç ã o de novos coletivos de


trab al h a d o r e s de saú d e, no camp o da saú d e men t al, que consig a m
com o seus atos vivos, tecn oló gico s e micro p olítico s do trab al h o
em saú d e , prod u zir e m mais vida e inter di t a r e m a prod u ç ã o da
mort e manico mi al, em qualq u e r lugar que ela ocorr a.

Aqui, esto u consid e r a n d o como marc a d o r nob r e, um dos eixos


nucle a r e s da reflexã o, a noção de que o trab al h o no cam p o da
saúd e men t a l - que se dirige par a desin t e r d i t a r a prod u ç ã o do
des ejo e, ao mesm o temp o , ger a r red e s inclusiva s, na pro d u ç ã o de
novos sentido s par a o viver no âmbito social -, é de alta
complexid a d e , múltiplo, inte r dis ciplin a r, inte r s e t o ri a l e
inter p r ofissio n al; que, em última instâ n c ia , só ving a se estive r
colado a uma “revoluç ã o cultu r a l” do imagin á r io social, dos vários

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sujeitos e ator e s sociais, ou seja, se constitui r- se, tamb é m , como
ger a d o r de nova s possibilida d e s anti- heg e m ô n i c a s de
comp r e e n d e r a multiplicid a d e e o sofrim e n t o hu m a n o , dent r o de
um camp o social de inclusivid a d e e cida d a n iz a ç ã o .

Reforço que est e trab al ho hum a n o tem que ser port a d o r de


capa cid a d e de vivifica r mod os de existê n ci a s inte r di t a d o s e anti-
produ tivos, tem que per mitir que vida prod u z a vida, implicaç ã o
última de qualq u e r trab al h o em saú d e , enq u a n t o trab al h o que
oper a na sua dime n s ã o tecnoló gic a, cen t r al m e n t e , modos em ato
de trab al h o vivo, que pode m e deve m, na minh a conc e p ç ã o ,
adq uirir sentido na medid a que a sua “alma” seja a pro d u ç ã o de
um cuida d o em saúd e dirigido par a gan h o s de auto n o mi a e de vida
dos seus usu á r io s. Par a que m a vida, como utilida d e , faz muito
sentido.

Aposta r alto deste jeito é se per mitir usufr ui r de ser luga r do novo
e do acont e c e r em abe r t o e expe ri m e n t a l, é const r u i r um campo
de prote ç ã o par a que m tem que inven t a r coisas não pens a d a s e
não resolvid a s, para que m tem que const r u i r suas caixas de
ferra m e n t a s , muita s vezes em ato, par a que m, send o cuid a d o r,
deve ser cuid a d o.

Se mp r e ser á uma apost a , em boa medid a, expe ri m e n t a l, const r u i r


novos modos tecn oló gico s e sociais que per mit a m o nasc e r , em
terr e n o não fértil da subjetivid a d e aprisio n a d a da loucu r a excluída
e inte r dit a d a , de novas possibilid a d e s deseja n t e s , prot e gi d a s em
rede s sociais inclusiva s.

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Por isso, par a todos aqu el e s que estã o implica d o s com esta s
apost a s, imagin o, que mes mo que ten h a m o s pistas sobr e como
isso foi feito em algu m lugar, como algu m coletivo já exercito u e
realizou isso, deve mo s nos prot e g e r de torn a r esta s expe ri ê n ci a s
em para di g m a s e rec eit a s, em guias de noss a s prática s; e,
sabia m e n t e , consid e r á- las como pista s, como mom e n t o s e luga r e s
par a mira r m o s , como alime n t o s par a dige rir m o s e
ressig nifica r m o s com os nosso s fazer e s , com os nossos coletivos
reais, nos nosso mu n d o s conc r e t o s.

Propo n h o entr a r nesta apost a de modo crítico, solidá rio,


expe ri m e n t a l, impe di n d o que os inimigo s seja m os que faça m o
nosso que stio n a m e n t o . Faça m o- lo entr e nós, amplia n d o, dest a
forma, noss a cap a cid a d e de inven t a r muita s man ei r a s de ser
antim a n ic o mi al. Parta m o s do princípio de que já sabe m o s fazer um
mont e de coisa s e que, tam b é m , não sab e m o s outr a s tan ta s, ou
mes m o, fazemo s coisa s que não dão certo; e, com isso, vamos
apost a r que é inte r e s s a n t e e prod u tivo const r u i r “escu t a s ” do
nosso fazer cotidia n o par a capt a r este s ruído s, neste luga r ond e se
apost a no novo, mas se está diant e da per m a n e n t e tens ã o ent r e o
novo e o velho fazer psiq uiá t ri co e/ou seu s equivale n t e s .

Como reg r a, ao nos depa r a r m o s dian t e de uma tar ef a dessa,


voltamo s nosso olhar imedia t a m e n t e par a aqu el e que dá o sen tido
do trab al h o em saú d e: o usu á ri o e seu mun d o de nece s si d a d e s e
possibilida d e s; e, com corr e ç ã o , saimo s a cata de modos de indica r
que o nosso agir antim a n ic o m i al est á prod u zin d o desin t e r d i ç ã o de
des ejos e inclus ã o . Entr e t a n t o , aqui, gost a ri a de uma outr a
viage m, pois ent e n d o que um coletivo, que esteja implica d o com

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este tipo de agir, par a ter as cap a cid a d e s que ele exige, nec e s sit a
esta r re- cria n d o em si, de modo const a n t e , mec a n is m o s de re-
produ ç ã o dest e coletivo, que lhe gar a n t a en q u a n t o luga r da vida
de seus prota g o n i s t a s .

Propo n h o , adian t e , olhar par a a “máq uin a deseja n t e ” coletivo de


trab al h a d o r e s de um CAPS, como um luga r que nos estim ula a
falar do que esto u apon t a n d o , tanto qua n t o aqu ele que
analitica m e n t e perg u n t a o que esta mo s fazen d o com o usu á rio
com o nosso trab al h o em saúd e.

Refl e t i n d o so br e o coti d i a n o de u m a eq u i p e de CAPS.


Ofert a n d o idéi a s

O me u olha r, que oferto nest a reflex ão, vem do luga r de que m


nest e último ano tem se dedic a d o a “cuid a r” de cuid a d o r e s . Termo
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que peço emp r e s t a d o par a Cinira M. Fortu n a , que ao estu d a r o
modus operandi de um coletivo de trab a lh a d o r e s de saúd e , em
Ribeir ão Preto, trato u dest a mira d a nas sua s anális e s. Pois bem,
estou oferta n d o um olha r dest e luga r que venh o ocup a n d o junto a
algu n s coletivos, que oper a m na saú d e men t al, em par tic ula r na
rede de Campin a s, vincula d o às equip e s do Serviço de Saú d e
Cândido Fer r ei r a ..

Dent r e muitas coisas inte r e s s a n t e s e ace rt o s que os trab al h a d o r e s


realiza m , vi e vejo, tam b é m , muita s dificuld a d e s dos tra b al h a d o r e s
par a ente n d e r e m e resolve r e m várias ques t õ e s que est ão

2A Cinira apre s e n t o u esta tem á tic a atravé s da sua tes e de douto r a m e n t o no Curs o de
Pós Gradu a ç ã o da Escola de Enfer m a g e m da USP/RIBEIRÃO PRETO

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envolvida s no seu exige n t e cotidia n o, no qual se cruz a m distint a s
e import a n t e s inte n cio n a lid a d e s . Entr e elas, dest a c o: de um lado,
a existê n ci a de um cotidia n o forte m e n t e habita d o por inte n s a s
dem a n d a s de cuid a d o, que usu á r io s, muito múltiplos e, facilme n t e ,
em esta d o s de crise s, têm sobr e a equip e; e, do outro, pela
pre s e n ç a ma rc a n t e de um imagin á rio do trab al h a d o r , de que o seu
agir clínico é suficie n t e m e n t e amplia d o e a sua red e de relaçõ e s
intra e inter s e t o r i al, para além da clínica, é suficie n t e m e n t e
inclusiva, que com os seus fazer e s, o louco não vai ficar nem mais
enlou q u e c i d o e nem excluído.

Camin h a r nest a s linha s tem coloc a d o, sobr e o omb ro dos


trab al h a d o r e s , “peso s” impo rt a n t e s par a o seu agir, e que
facilme n t e ger a m fazer e s árd u o s, que os faze m expe ri m e n t a r , o
tempo todo, sen s a ç õ e s ten s a s e polar e s, como as de potê n ci a e
impot ê n ci a, const r u i n d o no coletivo de tra b al h a d o r e s situa ç õ e s
bem par a d o x ais, nas quais cobr a m de si e do conju n to
posicion a m e n t o s profission ai s e esta d o s de ânimo s muito difíceis
de sere m man tid o s, dur a n t e todo o temp o do trab al h o;
partic ula r m e n t e , par a aqu el e s que oferta m seu tra b a lh o vivo par a
vivifica r o sentid o da vida no outro.

Não é por acaso, que muitos trab al h a d o r e s , em sup e rvis ã o, falam,


como um lame n t o , da sua exa u st ã o , da sua tristez a , da sua
incap a cid a d e de acolh e r o outro, o temp o todo, e do seu pavor
diant e das crise s dos usu á r io s. E, cobr a m, exata m e n t e de si, o
oposto: o de esta r sem p r e em pro n tid ã o e apto, o de esta r semp r e
ate nt o e aleg r e , o de ofert a r escu t a a todo mom e n t o, que se fizer

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nec e s s á r i o, e o de toma r as crises como even t o s positivos e como
oport u ni d a d e s .

Por est as manifes t a ç õ e s ser e m comu m, tão sofrid a s e dúbia s, é


que deve mo s nos abrir par a escu t á- las. E, neste sentid o, é disso
que que r o trat a r , agor a. Antes de mais nad a, gosta ri a de propo r
que enc a r a r e m o s esta s situ aç õ e s como luga r e s de pola rid a d e s não
exclud e n t e s , e, ao mes m o temp o , esta s pola rid a d e s como
constitu tiv a s do “olho do fura c ão ”, no qual os CAPS e seus
trab al h a d o r e s se encon t r a m . E, assim, como maté ri a s-
prima s/o p o r t u n i d a d e s par a se pen s a r , e proble m a t iz a r, sobr e o
modo cotidia n o como se fabrica, ou se pod e fabrica r, CAPSs anti-
manicô mio s.

Os para d o x o s do co ti d i a n o e o qu e apr e n d e r co m el e s
para pe n s a r a pro d u ç ã o do s anti - ma n i c ô m i o s

De novo, restrinjo- me ao âmbito dos CAPS, pois pod e ri a trat a r da


const r u ç ã o de anti- manicô mio s de uma man ei r a mais alar g a d a , o
que seria bem pertin e n t e pelo fato do ma nico mi al não ser um
luga r, mas uma prátic a social, cultu r al, polític a e ideológica.
Entr e t a n t o , par a efeito do que vem send o dito, até ago r a, situ a r- se
no CAPS, já é muito.

Partin d o do princípio de que só pro d u z novos sentid o s para o viver


que m tem vida par a oferta r , vou procu r a r pen s a r sobr e uma
equip e aleg r e , que não exau r e , que atu a na crise como
oport u ni d a d e .

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Nest e mom e n t o , um outro emp r é s t i m o é útil. Spinoza me ajud a a
pens a r – de form a bem livre - que a vida em prod u ç ã o , como luga r
de expr e s s ã o do divino que é, se manife s t a de várias form a s. Que a
aleg ria é uma dest a s manife st a ç õ e s das mais inte r e s s a n t e s ,
porq u e um corpo aleg r e está em plen a prod u ç ã o de vida, está em
expa n s ã o . Por isso, tomo este emp r é s t i m o , par a sug e ri r que só
pode esta r implica d a com um agir antim a n ic o mi al uma equip e de
trab al h a d o r e s aleg r e s . Ou seja, só um coletivo que poss a esta r em
plen a prod u ç ã o de vida em si e par a si, pod e oferta r , com o seu
fazer, a prod u ç ã o de novos vivere s não dados, em outro s. Ou, pelo
menos, instig á- los a isso.

Toma n d o a aleg ri a como indic ad o r da luta contr a a triste z a e o


sofrim e n t o , a que são sub m e ti d o s todos os coletivos de
trab al h a d o r e s da saúd e, pode m o s utilizá- lo tamb é m como
analisa d o r a das suas prá tic a s. Não que, com isso, imagin o que o
coletivo seria um ban d o de “pen élo p e s saltita n t e s ” , mas que pen so
o qua n t o na dobr a triste z a/ al e g r i a deste coletivo, no seu fazer
cotidian o, pod e esta r algu m a s chav e s auto- an alítica s par a re m e t ê-
lo a uma discu s s ã o de seu s proc es s o s de trab al h o e implicaç õ e s .

Tenho expe ri m e n t a d o , isso, com gru p o s de trab al h a d o r e s e me


instiga d o a idéia de que há que se instituir como part e do
cotidian o, além das supe rvisõ e s institu cio n ai s e clínica s, arr a njo s
auto- gerido s pelos trab a lh a d o r e s que lhes per mit a m re- orde n a r
suas tristez a s e sofrim e n t o s, realiza n d o , inclusive, auto- cuid a d o de
si como cuid ad o r e s . Arra njos que desloq u e m , mas os recolo q u e m ,
do faze r cotidia n o que lhes conso m e em vida e em ato, como se um

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fosse um ser antro p of á gic o. Situ a ç ã o não difícil de ente n d e r em
proc e s s o s de tra b al h o que se alime n t a m do tra b a lh o vivo em ato,
como qualq u e r agir em saú d e .

Por isso, agr e g o, sem fundir, a idéia de exau s t ã o ou, melho r, de


comb u s t ã o do trab al h a d o r e da equip e. Aqui, o emp r é s ti m o é das
linhas de investig a ç ã o que vêem, no camp o da saú d e do
trab al h a d o r , pen s a n d o o seu “burn out” como expr e s s ã o de
proc e s s o s de tra b al h o alta m e n t e explor a d o r e s e alien a d o r e s . Isto
é, tra g o como indica d o r an alítico a noção de exau s t ã o do
trab al h a d o r , par a se agre g a r ao de aleg ri a/t ri st e z a , no sentido de
que um pro d u t o r de novas possibilid a d e s de vida, que para isso
conso m e a sua próp ri a, se não prod u zí- la o tem p o todo, exau r e . Ou
seja, provoc a comb u s t ã o total de sua ene r gi a vital.

Pode r ger a r proc e s s o s , no cotidia n o, que expo n h a m esta s quest õ e s


é per mitir que o coletivo pen s e e fale sobr e isso; e, assim, atu a r
sobr e a prod u ç ã o desta s situa ç õ e s e esta d o s. Vejo que os
trab al h a d o r e s , que procu r a m camin h a r por aí inte r r o g a m de modo
bem prod u tivo o seu próp rio fazer manic o mia l, inter r o g a m o que
lhes entrist e c e m e exau r e m , e com estas inter r o g a ç ã o abr e m
oport u ni d a d e s de se re- situ a r e m em relaç ã o a novas possibilid a d e s
antim a n ic o mi ais.

Ofert a n d o im a g e n s

Imagin e m algu m trab al h a d o r relat a n d o em um enco n t r o da equipe


o sentido de não- vida que adq uir e ao final de cada dia de tra b a lh o
e a exau st ã o qu e sent e; que, qua n d o sai do serviço ou das

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ativida d e s , sent e um alívio eno r m e , adq uir e mais oxigê nio e
respi r a melho r; que não sent e vont ad e de voltar no dia seg uin t e .
Imagin e m este tra b a lh a d o r cheg a n d o em um CAPS, enco n t r a n d o
deze n a s de usu á rio s que irão particip a r de várias ativida d e s ,
algu m a s das quais ele é res po n s á v el; e, de rep e n t e , um dos seus
20 casos- refe r ê n c i a s entr a em uma crise séria, na mora di a.

Este trab al h a d o r , par a dar conta dest a s taref as, vai ter que se
apoia r na equip e, mas vai tamb é m ter que atu a r, diret a m e n t e , no
seu caso- refe r ê n c i a , vai ter que acolh ê- lo na crise. Vai ter que usar
de sua clínica, de suas pers pic á ci a s, de suas red e s de ajud a. Vai
ter que ger a r inte rv e n ç õ e s sing ula r e s e novas red e s. Vai ter que, e
pode, aprov eit a r a oport u n i d a d e que a crise per mit e para
ressig nifica r o Projeto Tera p ê u ti c o que vem gerin d o em relaç ã o
àqu el e usu á rio. Pode inclusiv e desco b ri r novas pista s
inter s e t o r i a is par a cria r outro s sentid o s, par a vários de seus
casos- refe r ê n c i a s.

Enfim, vai ter que acolh e r, escu t a r , ressig nifica r, expo r- se a


vínculos e jogos tra n sfe r e n c i a is, ab ri r- se em red e, atu a r em linha s
de fuga. Vai ter que exerc e r sab e r e s tecnoló gico s clínicos,
const r u i r red es de enco n t r o s ent r e comp e t ê n c i a s de inte rv e n ç ã o,
abrir- se para red e s intra- saú d e , que poss a m supo r t a r e agre g a r
novos agire s tecn oló gico s, inclusive no mom e n t o de uma crise que
pode se torn a r um sério caso de urg ê n ci a e eme r g ê n c i a . Terá que
ter red e de supo r t e .

Vejam, algu é m exau rid o e triste, sem alívio, diant e de toda s esta s
dem a n d a s e nec e s sid a d e s , como é qu e vai ger a r vida, além de ter

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que prod u zi r novas e inovad o r a s açõe s. Este tra b al h a d o r , se vier
par a um gru p o que o acolh a e se abr a par a escu t á- lo,
provav el m e n t e , vai relat a r dian t e disto tudo uma gra n d e sens a ç ã o
de mais exa u st ã o e tristez a . Uma gra n d e sen s a ç ã o de impot ê n c i a,
ou mes m o, vai relat a r que só deu conta das tar efa s porq u e não foi
antim a n ic o mi al, mas sim buro c r a t a do ate n d i m e n t o . Fez o fluxo de
ate n di m e n t o and a r, mas não o domin a, ne m o comp r e e n d e . Só
tocou o cotidia n o. Gerou alívios nos outro s.

De fato, muito do que ten h o visto, a partir de mom e n t o s muito


par e ci do s, são equip e s relat a n d o o seu medo com as crises, com as
urg ê n c i a s e eme r g ê n c i a s , e o mass a c r e que tem sido,
simples m e n t e , toca r os fluxos de ate n d i m e n t o . Isto tem sido tão
significativo, que em uma sup e rvis ã o conc r e t a algu n s
trab al h a d o r e s cheg a r a m a mont a r a seg uin t e imag e m , em uma
ativida d e de sup e rvis ã o: nós ger a m o s alívios nos outro s, mas não
temos nen h u m alívio par a olha r e rep e n s a r o nosso trab al h o; não
sabe m o s se esta m o s ou não send o um coletivo/dis p o sitivo anti-
manicô mio.

E, aí, o desafio que fiz para a equip e - com a qual pud e pen s a r e
siste m a t iz a r muito do que tem nest e texto -, foi o de imagin a r as
vária s possibilida d e s de prod u ç ã o de uma aleg ria e um alívio, no
cotidian o do tra b al h a d o r , implica d o com um agir antim a n ic o mi al,
enc a r a n d o a pro d u ç ã o cotidia n a dos seus inver so s: a trist ez a e a
exaus t ã o , par a pod e r criar uma apost a coletiva de desco n s t r u í- las.

Nest a direç ã o, esto u sug e rin d o, além dos eixos aleg ri a e


comb u s t ã o , toma r o foco da prod u ç ã o do alívio pro d u tivo

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antim a n ic o mi al como uma pod e r o s a arm a a favor da const r u ç ã o
dos CAPS anti- manicô mio s.

O que isso pod e significa r? Como imagin á- lo?

Todo proc e s s o de trab a lh o que capt u r a plen a m e n t e o tra b al h o vivo


em ato na prod u ç ã o , impe d e a const r u ç ã o do alívio prod u tivo pelo
trab al h a d o r e a equip e. Dá- lhes gra u zero de liber d a d e par a
ressig nifica r e m seus atos e inven t a r e m novas possibilida d e s e
sentido s par a os seu s fazer e s prod u tivo s. Orga n iz a r CAPSs, que
alivia m os dem a n d a n t e s , sem se const r u i r meca nis m o s
desca p t u r a n t e s do tra b al h o vivo em ato, impe d e a possibilid a d e do
trab al h o em saú d e men t al torn a r- se um dispo stivo de inte rv e n ç ã o
anti- manicô mio. O que coloc a, como uma gra n d e tar efa, a
const r u ç ã o cotidia n a de alívios para o trab al h o vivo em ato ger a r
novos camin h o s.

Como fazer, isso?

Se m receit a s . Creio que cad a coletivo deve proble m a t iz a r , no seu


fazer, a implicaç ã o com o agir antim a n ic o mi a l e a const r u ç ã o de
tempo real de trab al h o , no interio r da equip e , dirigin d o- o,
inten cio n al m e n t e , par a fabric a r novos sen tid o s par a o viver do
louco e da loucu r a na socie d a d e , abrin d o novas pista s, em cada
luga r onde os CAPS são const r u í d o s.

Mas, é possível pro d u zir alívios prod u tivo s no inte rio r da equip e ,
sem neg a r que uma das missõ e s seja a de gera r alívios nos
dem a n d a n t e s ? Ser á que isso não exige ressig nifica r o que vimos

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ent e n d e n d o como crise/o po r t u n i d a d e e const r u ç ã o de red e s de
interve n ç õ e s na urg ê n ci a e eme r g ê n c i a , em saú d e me n t al? É
possível abrir mão de apoio em hospitais ger ais? E, ond e não
exista m , os CAPS de “alta complexid a d e ”, par a acolh e r e inte r n a r
nas crises, resolve m ?

Não con h e ç o uma expe riê n c ia definitiva que dê cont a disso, mas
conh e ç o bons exem plo s que most r a m camin h o s diverso s. Há
aqu el e s que não abr e m mão de supo r t e esp ecializa d o em hospit ais
ger ais, par a a urg ê n ci a e eme r g ê n c i a , o que me par e c e uma das
boas idéias; há aqu el e s que cria m serviços próp rio s na red e de
saúd e men t a l, de uma complexid a d e distin ta para dar conta desta
situa ç ã o ; há os que apost a m que os CAPS, em si, deve m dar conta
desta situ aç ã o ; e, assim, por diant e .

Uma equip e de trab al h a d o r e s dos CAPSs que não poss a usufr uir
de alívios prod u tivo s e de esta d o s de aleg ria , de forma implica d a ,
não tem muito a ofert a r a não ser exa u rir par a ger a r alívios nos
outros, como o manicô mio já fazia e faz. Há que radicaliza r o
senti m e n t o deste “bom” medo, em relaç ã o às crise s, no inte rio r
das equip e s , e há que comp r e e n d ê - las como um “dispositivos em
rotaç ã o ”, que ao ope r a r e m ger a m novas form a s de cuid a d o no seu
interio r, mas agita m e mobiliza m os outro s, que compõ e m a rede
de cuid a d o s, nest e mes mo sentid o.

Creio, que ter uma red e bem articul a d a entr e serviços de saú d e
ment al (CAPS), serviços próp rio s de urg ê n ci a e eme r g ê n ci a (como
os SAMUs e PSs) e equip e s locais de saú d e , seja esse n cial par a
dar res po s t a s razo áv eis a um dos proble m a s que mais soma m , no

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imagin á r io social, a favor da lógica manico mi al. Ou seja, enfre n t a r
bem esta situa ç ã o tem um duplo sentido: de um lado, é uma das
chave s par a ger a r alívio prod u tivo nas equip e s de CAPS; de um
outro, ao ger a r alívio nos que convive m com loucos, em crise,
diminui a pres s ã o para a seg r e g a ç ã o e exclus ã o.

A melho r soluç ão enco n t r a d a é aqu ela que se basei a na red e


nec e s s á r i a , que dá conta efetiva dos casos de
urg ê n c i a/ e m e r g ê n c i a , sem gera r exclus ã o e seg r e g a ç ã o ; ao revé s,
ger a n d o oport u n i d a d e s de inte rv e n ç õ e s ter a p ê u ti c a s e trab al h o s
inter s e t o r i a is inclusivos. O melho r é a red e, possível no local ou na
regiã o, que consig a impe di r a manico mi aliz aç ã o e, ao mes m o, não
neg u e a nec e s sid a d e de gera r alívios nos familiar e s (ou
equivale n t e s ) e nos cuid a d o r e s .

O que inte r e s s a , em última instâ n ci a, é a oport u n id a d e de ope r a r


novos senti do s par a a ressig nifica ç ã o das crises, tan to no
des e n c a d e a m e n t o de projeto s tera p ê u t ic o s, qua n to na const r u ç ã o
de um conju n t o de ativida d e s , em red e, que trag a m o usu á rio para
amplia r suas red e s de vincula ç ã o, aum e n t a n d o as chan c e s de
produzir contr a t u a liz a ç ã o e resp o n s a b iliza ç ã o nas relaçõ e s com os
outros.

Aposta r na const r u ç ã o de proc e s s o s de tra b al h o que prod u z a m


cuida do s par a os usu á rio s e cuid a d o s para os cuid a d o r e s é vital,
nest e perc u r s o . Per mi te m vivifica r o tra b al h o em saú d e que apost a
na const r u ç ã o da qualificaç ã o de vidas.

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Constr ui r a aleg ri a e o alívio pro d u tiv o como dispositivos
analisa d o r e s é um desafio par a aqu el es coletivos sociais que
oper a m no “olho do furac ã o” e se prop õ e m como gera d o r e s de
anti- manicô mio s.

Bibli o g r a f i a

Ana Mart a Lobosq u e Princípios par a uma Clínica Antima nic o mi al


e outros escrito s Edito r a Hucite c São Paulo
Angela Capozzolo No olho do furac ã o: tra b al h o médico e o
progr a m a de saúd e da família Tese de douto r a d o Curso de Pós
Gradu a ç ã o em Saú d e Coletiva Unica m p Campi n a s
Angelin a Har a r i e Willians Valen tini A refor m a psiquiá t ric a no
cotidian o Edito r a Hucite c São Paulo
Antonio Lance t ti, Gregó rio Bare m b litt et al. Saú d e Lo u c u r a 4
Editor a Hucite c São Paulo
Cinira Fort u n a Cuida n d o dos cuida d o r e s Tese de douto r a d o
Curso de Pós Grad u a ç ã o em Enfer m a g e m EERP- USP Ribeir ã o
Preto
Eme r s o n Elias Mer hy A loucu r a e a cidad e : outro s map a s
Publica ç ã o do Fóru m Mineiro de Saú d e Men t al Belo Horizo n t e
Gregó rio Bare m b lit et al. Saú d e Lo u c u r a 5 Edito r a Hucit ec São
Paulo

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