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ORG.

CHARLES MARLON

Antologia
Tempo de
Fratura

São Paulo 2022


Contos e poemas baseados nas obras
"Tempo de Fratura" (1979)
de Alcides Neves.

Vozes dessa coletânea

Ademir Demarchi

Alfredo Leonardo

Beto Menezes

Bruna Mitrano

Bruno Gaudêncio

Camila Veilchen

Cinthia Kriemler

Charles Marlon

Eduardo Sabino

Letícia Simões

Marina Ruivo

Ohana Meira

Rodrigo Mendonça

Ronaldo Kirilauskas
Prefácio para tempos de fratura
por Charles Marlon Porfirio de Sousa

Alô, é o Alcides? Charles aqui, sim, sim, tô bem, tô vivo, ao menos foi o que o
meu psicólogo me garantiu, eu acredito nele. Não, tô ligando por isso não, é aquele
projeto nosso lá, lembra ainda? Aquele que mandei mensagem, convidei os autores,
ano retrasado, novembro de 2019, cara, todos toparam de primeira, gente muito
querida, talentosa e importante na minha vida, que chegaram até mim pelo caminho
palavra-pessoa ou pelo inverso, pessoa-palavra, mas todos eles me falam muito de
perto, muito ao coração, mais aos sentidos do que ao raciocínio, maquinismo que, em
resumo, me trouxe muito, me levou muito - e são aprendizagens.
Então, rapaz, na mensagem eu dizia que no dia seguinte mandaria e-mail,
explicando tudo, amanhã nem sempre é ali, no outro dia, cedinho, esse amanhã, em
especial, levou 6 meses quase, um dos nossos, ficou pelo caminho, meu amigo que
tive a felicidade de dividir teto em Paraty, dividir a alegria da chegada de um rebento
seu em breve, o Devair, a quem vai dedicada esta, porra nenhuma de obra, porque
obra vai ficar presa no museu pra pegar fogo, como tudo o que não tem valor de troca
amplo e imediato neste país, ainda é um país isso aqui, Alcides? Enfim, ao Devair,
que não nos deixava ficar distraídos da cultura e do povo do norte, para que não se
passasse boi, nem boiada, não sem briga, vai dedicada esta coleção de esforços, de
labutas, de trampos para passar pelas fraturas, novas e antigas, engendrados por
pessoas que se permitem sentir ainda as dores das quebras diárias, para quem sabe
um dia, o remendo, a calcificação, desse fóssil que ainda estrebucha, o Brasil, claro,
por meio da sensibilidade, a muito custo, não embotada, não perdida, possa resultar
melhor do que a peça original de um esqueleto sempre seu próprio simulacro, desde
o princípio.
Claro, o trabalho, hoje se multiplica, muita gente trabalhando por conta, sem
patrão, na corrida do ouro, mas a gente quer ir contra a História, o Jameson falou já,
a História é o que dói, a gente que nasce no Brasil, é brasileiro, aquele trabalhador,
meio marginalizado, só não tinha a Marginal do Tietê ainda, que explorado sugava as
riqueza do nosso país, para mandar sabe-se lá pra onde, que vendia barato ou de
graça o seu trabalho, nascemos isso já, brasileiros, extratores do pau-brasil, aqueles
que roubam a si mesmos por outros que não nos favorecem, hoje somos
desempregados, freelas, subempregados, microempresários (dono de negócios que
na quarentena tão falindo), a fratura de antes, do teu disco, não é a mesma, mas
lembra que há um osso, aliás, há ossos, há um esqueleto, que é a nossa própria
História, muito mal enterrada, aquela em que os Portugueses descobriram o Brasil,
que já era habitado por muita gente, inclusive, que a colonização foi branda, que
houve a Independência, que as estátuas são só de heróis, que índio, em primeiro
lugar é índio mesmo, não é tupi, kaiowa, tabajara, é preguiçoso, vagabundo e ocupa
terra útil, que tivemos um Império e depois uma República, que temos no ar uma
gripezinha e uma ameaça comunista, que temos um Presidente e que milícia não
existe. A simbologia da fratura lembra que não podemos esquecer a História, porque
é ela quem dói, não podemos fugir da dor, porque é a dor que nos faz alerta, pra não
voltarmos para o lugar de exploração e submissão de onde nunca saímos, a CLT, os
direitos dos trabalhadores, são sonhos breves em nossa história, não são a regra, aqui
é esse prato raso, esse prato fundo, [esse] grito magro do terceiro mundo. O
trabalho entre nós é tão malvisto, que os próprios colegas ilustrados, escritores, que
trabalham com a Cultura, essa sim a do “Pum do Palhaço”, se arrepiam quando
alguém diz que escrever, que um texto é trabalho. Por isso, reforço, os textos aqui
reunidos, são fruto do trabalho artístico, mas sobretudo, humano, nossa
remuneração é mantermos a esperança, esperança de martelar um pouco o osso duro
do real que nos cabe, para que as fraturas surjam e moldem nosso fóssil zumbi para
algo mais próximo de um país, de um lugar, onde exista, no mínimo respeito. Aos
colegas da cultura aristocrática, sugiro buscarem algum canto bucólico na Inglaterra,
pois sinto desapontar, aristocrata no Brasil, nunca nem teve, te(ve/m) escravocrata, é
uma opção.
Seu disco, Alcides, me corrige, aí, lembra uma coisa, isso ouvindo hoje que
chama à ação, não só escrever, não só postar nas redes sociais e achar que as coisas
vão mal e se posicionar, mesmo que se posicionar hoje seja quase, por si só, um ato
heroico, mas não precisamos de heróis, precisamos de nós mesmos e, sobretudo, de
coragem, esses anos que estamos vivendo, desde 2006, mas bem antes, os anos Lula,
por terem sido festivos, a seu modo, desarmaram a crítica, o pensamento crítico,
agora pagamos um preço alto por isso, estamos desorganizados e sonolentos,
envoltos pelas águas desse rio congelado, que congela tudo, até a dor, precisamos
deixar doer, precisamos ter raiva, ter ódio, ter amor, claro, mas sem bom mocismo de
esconder aquilo que nos oprime, que nos fere, congelados, estamos domados, lá fora,
na vida, o mundo, os imbecis, que estão ganhando no momento, são truculentos,
batem com porrada, pois com palavras eles se atrapalham, até se entregam, mas tá
tão pode tudo, que tudo pode e nada acontece. Lá fora, agora, a gente sozinho e
desorganizado, apanha e fica sem gesso e a fratura exposta ao medo, precisamos
chegar nas ações, organizadas, eu organizei esta antologia, que não muda o mundo,
mas martela um pouco, um produto cultural, quando se quer acabar com ela a
qualquer custo é um ato, uma ação urgente, é uma resposta, precisamos ir sem medo
e a fratura exposta, sem paz, um zás, um crás, um quebra-dedo, pois se ficarmos
esperando, estamos mesmo fodidos, esperando, o que há é o mundo e a fratura
estática. O nosso cenário atual, entristece, emputece, mas não espanta, é a
representação do que o Brasil tem de mais Brasil, entre um cambalacho ou racho à
bala a balalayka.
Precisamos quebrar o branco dos ossos, fazer cacos, deixar refazer, se não der
certo, quebrar de novo, enquanto ralarmos joelhos, soprarmos e pedirmos perdão a
Deus, qualquer revolta será só volta aos passados que parecem nunca passar, acho
que é um momento muito fecundo pra voltarmos ao seu disco, Alcides, ouvir e ler
você, pensar no sentido de tudo isso, na bagunça sonora, que faz da sua música uma
criação que não vem com o gosto já fabricado junto com a peça, como falar do Brasil,
de São Paulo, com uma forma artística bem organizada, começo (qual é o começo
fidedigno e digno para uma História do Brasil?), meio (qual o meio?) e fim (será que
tarda?).
Vejo a capa do teu disco, te vejo caminhando sozinho para a Paulista e me
sinto ambíguo, ao mesmo tempo que afirmei que precisamos andar juntos, para não
sermos alvos fáceis e frágeis dos canalhas, covardes que mudam de endereço mas
representam as forças repressivas de sempre, sinto cada vez mais uma vontade de
andar sozinho, porque para andar de mãos dadas sem um projeto, sem um plano,
sem uma visão de futuro, acho que é repetir a inutilidade do movimento pelo
movimento, ando meio sem energia para isso, para ser engolido pelos movimentos
que não se percebem, mas mais dividem, que unem, na hora mais crucial, em que o
abraço nunca foi importante, agora que está bem definido, quem somos nós, quem
são eles.
Pois é, Alcides, falei um monte, aqui, viajei, mas quero tar certo na vida mais
não, já quis, já até achei uns momentos que tava, hoje quero juntar uns amigos, nos
livros, nas livrarias, nos livramentos e ter coragem para não me calar quando
precisar dizer algo, independente do que for acontecer. Estes amigos aqui são desse
tipo de barro também. Claro, claro, vou falar pra você meus critérios, todos afetivos,
a qualidade literária eu atribuo a todos, todos são artistas trabalhadores árduos em
suas formas de criar, mas isso fica pros especialistas, eu quero falar dos meus
motivos, pra dar essa dimensão também que quem escreve, não o autor implícito
(aprendi na Usp, chique, né?), é um ser humano ali, ultimamente para mim isso tem
sido uma questão importante, chegamos num ponto, em que a preocupação tá mais
nas obras, nas divulgações, nas festas cult, que nas amizades reais, todos aqui, não
precisavam ter produzido nada, já seriam ótimos artistas, pela sensibilidade de se
doar sem medo de se importar com os outros.
Ademir Demarchi nasceu em Maringá-PR, em 7/4/1960 e reside em
Santos-SP. Publicou a revista BABEL, de poesia e é co-editor da revista Poetrishy,
(Bristol, Inglaterra). Publicou, entre outros, os livros de poemas: Os mortos na sala
de jantar (Realejo, 2007); Pirão de Sereia, que reúne sua obra poética de 30 anos
(Realejo, 2012); Gambiarra – Uma pinguela para o futuro do pretérito (Urutau,
2018); Louvores gozosos (Olaria Cartonera, 2020); In Fuck We Trust (Urutau, 2020)
e Cemitério da filosofia (Kotter, 2020); Baile de máscaras – Odiário da Peste
(Kotter, 2022); Antologia Impessoal (Nave, 2022). Reuniu crônicas publicadas
durante oito anos em jornal no livro Siri na lata (Realejo, 2015) e publicou os livros
de crítica Espantalhos (2017) e Contrapoéticas (2020, ambos pela Nave). Tem livros
publicados no Peru e Paraguai e poemas em antologias e revistas publicadas na
Espanha, Peru, Argentina, Portugal, Estados Unidos e Inglaterra.
Alfredo Leonardo
Beto Menezes
Bruna Mitrano é filha de camelô, neta de lavadeira, escritora, editora,
professora e mestre em Literatura Portuguesa pela UERJ. Tem poemas publicados
em jornais, revistas e antologias no Brasil e no exterior. Em 2016, publicou o livro de
poemas Não, pela editora Patuá.
Bruno Gaudêncio é escritor e historiador. Doutor em História Social pela
Universidade de São Paulo.
Camila Veilchen
Cinthia Kriemler é romancista, contista e poeta. Carioca, mora em Brasília.
Autora, pela Editora Patuá, de O sêmen do rinoceronte branco (Contos, 2020); Tudo
que morde pede socorro (Romance, 2019); Exercício de leitura de mulheres loucas
(Poesia, 2018); Todos os abismos convidam para um mergulho (Romance, 2017 —
Finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2018); Na escuridão não existe
cor-de-rosa (Contos, 2015 – semifinalista do Prêmio Oceanos 2016). Tem textos
publicados em diversas antologias e em revistas eletrônicas.
Charles Marlon sou eu mesmo. Sou pai da Louise e escrevo. Tenho quatro
livros pela editora Patuá, Poesia Ltda (2012), Sub-Verso (2014), Re-trato (2016) e
Quarto (2018). Lancei recentemente, There’s a lull in my life (2021), pela Amazon
Kindle Direct Publishing. Periscópio é minha estreia no romance, saiu em junho de
2022. Sou formado desde a graduação pela USP, sou mestre em Letras e doutorando
em Estudos de Cultura, ambos pela USP.
Eduardo Sabino é escritor e editor, autor de quatro livros de contos, entre
eles Naufrágio entre Amigos (Editora Patuá) e Estados Alucinatórios (Caos e
Letras). Recebeu, pelo conto “Sombras”, o prêmio Brasil em Prosa, organizado pela
Amazon e o jornal O Globo. É um dos fundadores da Caos e Letras, editora de
literatura independente localizada na Região Metropolitana de Belo Horizonte. 
Letícia Simões (Salvador, 1988) formou-se em Comunicação na PUC-Rio e
estudou Roteiro e Documentário na London Academy of Film, Media and TV e Artes
Plásticas na London Art Academy. É Mestre em Cine-Ensaio pela EICTV, em Cuba,
Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela UFF e Doutoranda em
Comunicação e Informação pela UFRGS. Como diretora e roteirista, assina a trilogia
de longas-metragens sobre literatura brasileira "Bruta Aventura em Versos”, “Tudo
vai ficar da cor que você quiser" e “O Chalé é uma Ilha Batida de Vento e Chuva”; e o
documentário autobiográfico “CASA”. É autora dos livros "Pessoas de quem roubei
frases" (Editora 7 Letras, poesia), "daqui, em 1976, acenei para você", (Editora Patuá,
poesia) e “abraços randômicos de uma imagem para obliterar notícias ruins”, (edição
independente, apoiada pela Lei Aldir Blanc - PE).
Marina Ruivo
Ohana Meira é educadora, leitora e escreve em dias em que só as palavras
dão conta do desenrolar dos dias.
Rodrigo Mendonça nasceu no século passado; paulista, já morou em uma
dezena de lugares diferentes e talvez já tenha sido seu vizinho ou passado por você na
rua. Formado em letras pela USP, já foi diversas coisas. Hoje é pai, escritor, professor
e artista. Rodrigo espera pelos tempos de fartura, mas vive eternos tempos de
fratura. Escreveu um livro de poesias, “Quando Coisa Alguma”, e um de crônicas,
“Pai Diário”, (ambos pela Editora Selin Trovoar, em 2019 e 2022 respectivamente).
Ronaldo Kirilauskas

Tempo de Fratura 2.0


faixa um - baseado em "Tempo de Fratura"
por Ohana Meira
Faixa 1- Tempo de fratura

rio congelado
estraçalhar
rio congelado
estraçalhar
rio congelar
rio congela (dor)
sem gesso e a fratura exposta ao medo
sem medo e a fratura exposta
sem paz, um zás um crás um quebra-dedo
o mundo e a fratura estática
Da janela do trem, o rio estático cruza a metrópole. E como em uma
demonstração inútil de resistência, os seres humanos - uma das últimas espécies
sobreviventes às cidades de concreto - se amontoam em plataformas e esperam
calados. Os primeiros raios de luz do dia instauram o bafo fétido à espessa e quase
visível camada de ar que me acompanha de casa ao trabalho.
Penso no rio.
Conheço seus afluentes, a origem dos seus nomes e o desenho que formam no
mapa, como a espinha dorsal de um animal em decomposição em meio aos
arranha-céus. Sei da afeição de filósofos e poetas pelos rios: da impermanência de
Eráclito à calmaria bucólica de Manuel Bandeira. O rio pode ser divino, força
transcendental da natureza: lar de Oxum e das Nereidas.
Mas esse rio está morto e me abandonou.
O trem acelera a cada estação e o ar comprimido por pernas, braços e cabeças
parece não ser suficiente. Observo o trilho flutuar em paralelo ao rio e me
surpreendo com a sua extensão. Também conheço sua origem. A potência criadora
de cada mão calejada nada tem de celestial. O trem range em velocidade sobre
humana, esbanjando sua finalidade em cinza sujo de poeira.
Tento me lembrar de algum exercício de respiração para aplacar minha mente, mas a
cada inspiração a água densa e escura do rio invade meus pulmões e sobrecarrega
meus músculos cardíacos, que imploram por engrenagens tão fortes quanto às do
trem que habito às 6h15 da manhã.
Sinto meus membros se paralisaram, não sei se por falta de espaço ou falta de
coragem. Sou uma mulher razoável, admiro as criações dos deuses e homens e a cada
dia vejo o sol nascer como um espetáculo único e gratuito em uma cidade dividida
por pontes, centros e periferias. Mas é esse o gelado das portas do trem subindo
minha espinha que me mortifica… É o desviar de olhos e esbarrar de ombros…
É o cheiro do rio que me persegue.
Desencontro das águas
faixa dois - baseado em "Desencontro das águas"
por Ronaldo Kirilauskas
Faixa 2- Desencontro das águas

ah
que essa cidade só atrapalha
trabalha atrapalha trabalhador
na marginal do tietê
eles se multiplicam
e as águas se agitam de ver
que é marginal no tietê
anhangabaú-tamanduateí
_ Ah!
O tempo que se apresenta a um sujeito ao ser contada a sua própria história.
Um roteiro completo e complexo que, no entanto, dependendo do encaminhamento
do diretor, a narrativa pode ser significativamente diferente. Entre uma cena e outra
o diretor dizia: Áspero. Infinito. Escorregadio. Rugoso. Fluído. Intenso. Tudo
aparentando contraditoriedade.
Em pensamento perguntou. _ Quem dirigiu essa história de minha vida? Não
gostei do trabalho, principalmente do final, eu deixaria mais evidente a fluidez da
coisa e aproximaria o fim do início indicando um ciclo.
Nunca lhe disseram, por não saberem, que além do filme, para quem não
tivesse medo do inevitável, de sua sombra, de seus pecados e de seus rastros, teria
como bônus uma profunda reflexão. Um questionamento crítico. _ Se eu atuei e
co-roteirizei, quem dirigiu o filme de minha vida? Alguns, um pouco mais
resistentes ou corajosos que conseguem chegar até este ponto, se encontram com
Deus, neste momento, para forjar uma resposta. Deus ex machina (ἀπὸ μηχανῆς
θεός). _ Pra mim não basta.
Foi um sussurro.
Aflora uma coragem radical – não de um fazer, por não haver mais força para
essas trivialidades – de pensar. É difícil se comprometer com algum pensamento em
instantes como este.
Outro que estava ali parado perguntou o que ele disse? Ninguém conseguiu
ouvi-lo. Então eu repeti para me ouvirem e constatarem a minha mais profunda
indignação e filosofia.
Ele falou que pra ele não basta. As buzinas e a sirene que estava se
aproximando deixaram tudo ainda mais conturbado.
O burburinhar da cidade grande pode ser, ao mesmo tempo, inspiração
melódico para o músico e estímulo reflexivo para o poeta. Se encontrarem tempo. _
Sem tempo não seriam artistas. O artista talvez seja o sujeito que consiga notar tudo
aquilo através de múltiplos focos, mas deixar ou não palatável aos demais citadinos é
uma questão de estética e de valores. _ Eu já escutei o primeiro badalar do sino e o
próximo chegará antes da ambulância.
Foram pensamentos.
O que? Pra ele não basta! Como assim? Não sei! Outro concluiu, segurando
uma bíblia, que não vai dar tempo. Já era! Não era médico, mas tinha visto aquele
contexto algumas vezes. Sabia que todo esse caos e falta de nexo é o prelúdio da
morte. _ Sinto a vida.
Outro pensamento.
Poucos sabem que minutos, horas ou dias antes do grande fim a loucura se faz
notar – fora – onde a lucidez se faz presente – dentro –. O que varia de caso para
caso é o seu nível de radicalidade e que pode ter relação com o seu grau de
envolvimento com a cidade. _ e arte.
Ontem batucava na mesa de um bar cantarolando. “Esse prato raso. Esse
prato fundo. Esse grito magro do terceiro mundo. Desague nas águas”. _ Não era um
samba. Cantava como se fora. Foi motivado pelo pedido de algo para comer feitos
por um transeunte com um sotaque diferente do habitual. _ Igual ao meu. O rapaz
saiu com fome. _ Se eu pudesse editava isso. Pudeste. _ Ele pediu para o sujeito da
mesa ao lado. Neste instante, todos já sabem.
Entendia seus limites. Poucos tenores soam como trovões, diferente dos
barítonos. _ É com a água que deveríamos nos preocupar, pois ela não deixa de ser
quando a tempestade passa. Corroendo as margens. Poucos entenderam a força
disso. _ E o que sua direção pode fazer a respeito? Já fiz readaptações que não vou
lhe mostrar. Tempo água camarada e não convém voltarmos às nuvens da
tempestade.
Deixemos no ar que houve um certo arrependimento. _ Preferiria o corte.
Mas foi você quem escreveu essa passagem. Isso é imutável, mesmo que esteja
arrependido. _ Estou! Pronto! _ Entendi.
Seu sangue viscoso escorre na calçada e em breve se encontrará com as águas
fétidas do rio Tietê. _ Acho que ele não chega até lá. Mais cedo ou mais tarde
chegará, mas o ciclo pode ser longo e você não vai ver. Quase ninguém vê. Lembrou
da canção de Almir Sater. _ “A vida vem lá de longe. É como se fosse um rio. Pra rio
pequeno cano. Pros grandes rios navios. E bem lá no fim de tudo. Começo de outro
lugar. Será como Deus quiser. Como o destino mandar”. Lembrou também da
Afrodite de Hesíodo. A beleza nascida da violência. Fluídos corpóreos e as águas.
Espuma. _ Santana do Parnaíba, Salto e Pirapora do Bom Jesus.
Seu trajeto matinal tinha a mesma direção das águas do Tamanduateí.
Embora não tivesse a mesma fluidez. Saía com seu carro da favela central plaza. _
Um marginalizado, saído da central para o centro. Me lembro de ter escrito isso em
algum guardanapo. Assim como ele, milhares correm parados na avenida do estado,
na marginal do Tietê ou em outras vias que ligam as periferias ao centro em busca do
pão de cada dia. _ “Na corrida do ouro”. O ouro de aluvião somos nós e só enxergo
isso agora. Nesta nova dissociação me reconecto a algo revolucionário e que
transcende os limites do corpo. Aliás, somos mais que ouro. Somos água.
Os engenheiros retificaram os grandes rios da cidade para deixá-los correndo
mais rápido, assim supostamente resolveriam o problema das enchentes na cidade
que começava a crescer vertiginosamente. _ Os burgueses retificaram os grandes
rios da cidade para deixar o capital correr mais rápido. Ambos buscavam algum
tipo de fluidez. _ Eu também, mas é quase impossível por essas vias, e nesta busca
algo deu errado. Seu sangue se esvai. _ Queria senti-lo novamente correndo em
minhas veias e rosando meus lábios. Estão pálidos e contrastantes com o rubro do
sangue que escorre lentamente no canto de sua boca.
Quem matou o homem? A cidade. _ Quem matou a cidade? O homem. Causa e
efeito. Mas a natureza mais cedo ou mais tarde recoloca as coisas em seu devido
lugar. Se assim quiser.
O afluente Anhangabaú que desaguava no Tamanduateí também teve o seu
curso alterado pela vontade humana. Tornou-se afluente direto do Tietê, assim como
o seu antigo destinatário. Agora é neste rio que suas águas se reencontram. E não há
força humana que mude este destino. O encontro das águas, inclusive as que estão
nos corpos, é fato inexorável. Por sua vez, o Tietê cansado da cidade corre para o
interior. Muitos desejam o mesmo. Todavia o poeta faz o caminho inverso. Algo novo
sai de seu interior embora sejam derivações do que entrou.
Migrações pendulares com todo o seu agito. Os desagues. As marés. Casa,
trânsito, trabalho. Trabalho, trânsito, casa. Sensação, transformação, poesia. Poesia,
transformação, sensação. Evaporação, liquefação, solidificação. Solidificação,
liquefação, evaporação. Sujeito, objeto. Objeto, sujeito. Vida, morte. Morte, vida.
Chegando mais próximo do final vai ficando mais fácil. Já não sinto
interferência direta na minha direção. Os fatos todos já foram apontados. As vozes
outras silenciadas. A cidade mais calada com movimentos mais lentos. A narrativa
fica mais neutra, chegando ao ponto de ficar translúcida e inodora. O suor frio e o
sangue quente ganham a temperatura da atmosfera. Qual a graça nisso tudo? É
melhor entrar em outra frequência. Um novo ciclo e deixar, tal como o corpo, a
mente virar vapor e quem sabe, no futuro, ao precipitar vire cerveja e alimente outras
almas de poeta.
UM, NENHUM,
SETECENTOS LAMPIÕES
Faixa 3 - baseado em "Lampião"
por Ademir Demarchi
Faixa 3- Lampião

quando arrebatados
700 cavaleiros
invadiram o mundo inteiro das quebradas do sertão
cada qual seu sabre
a morte e sobre, sobre nada
a jaula a força o vento o diabo
e sobretudo o capitão
não é mentira não
não é mentira não
vamos que não fossem
700 ou 600
de certeza eu vi 500
nas quebradas do sertão
cada qual mais forte
à testa, a estrela, o sobretudo
o bacamarte, o clavinote
e sobretudo o capitão
400 eram
ou 300 ou quem sabe
200, 100 ou 50
nas quebradas do sertão
se não vi a todos
vi os rastos, me contaram
de um valente e justiceiro
e sobretudo o capitão
O teto do quarto está rodando há horas como um LP. Gira, gira, gira, indo e
voltando de espiral a chão, rangendo, arranhando, sonoro em meio a grunhidos, som
e sentido, som sem sentido, sons ressentidos. A agulha come-come desliza esfomeada
pelos sulcos do disco como fosse eu num vagonete por um ribeirão em forma de
estrada de ferro fazendo um leito seco pelo sertão atravessando a Paraíba até a grota
de Anjicos.
Brejo de Areia está árido, suga, suga, suga o seio esperando a água do veio. Essa
água prometida virá como leite do grelo do São Francisco, o sertão vai virar Mal. Os
calangos vão sorrir, vão ficar só dentes, as estrelas vão retinir sua prata nas abas na
noite enluarada, os bacamartes cantarão som de patos, as clavinotes baterão
pandeiros, não é insônia não.
O comprimidinho colorido também parecia um disquinho que desceu dançando,
um disquinho musical com estórias infantis de camelô de onde saía a voz de Alice
evocando um cordel no Paraíso, mas não, não é mentira não, Alice parou de
farfalhar, parou de sair, o Paraíso ficou estático no quadro da estação de trens
quando passei, dele restou somente as manchas colóreas de um tênue vestido de
chita com flores do sertão e nada por baixo, fitando a margem, tomando o vento do
rio, mais molhada que o rio, enquanto o LP vai rodando no teto e a música tocando
sem fim trazendo Maria Bonita do agreste, um perfume na caatinga, um perfume que
aspro serpenteando a caatinga áspera, arrebatado pelo sonho de setecentos
cavaleiros do apocalipse inzoneiro, não, não é mentira não, meu sonho invadindo o
mundo inteiro desde as quebradas do sertão, não vai faltar samurai cangaceiro
amolando sabre no vento agreste do sertão, serão setecentos, podem ser seiscentos,
podem ser quinhentos, quem sabe quatrocentos ou trezentos ou trezentos e
cinquenta ou nenhum e apenas eu cantando na garganta do Anhagabaú que sempre
terá valente justiceiro vindo do meio das quebradas do sertão para comer o homem e
fazer a antropofagia bem antes e bem depois da bossa nova, bem antes e depois da
tropicália agreste, minha voz ecoando dentro da garganta do Anhangabaú, que
depois desta treva haverá luz, haverá lâmpada, haverá lamparina, haverá lampião,
um, nenhum, setecentos lampiões iluminando este sertão.
poemas: "Bis"-
baseado nas demais canções do álbum
"Tempo de Fratura”
por Ademir Demarchi
O RISO CONGELADO

é zás
é crás
é bum
é bomba
é bumba
é bumba, meu
é bumba meu doido
é bumba minha dor
é crás é crec
o tempo tá ruim
tá congelado
não tem futuro
e só tem
tempo estraçalhado
então é bum
é bom é muito bom
o congelado estraçalhar
é bom poder cantar
é muito muito som
na cabeça
é zás
é crás
é bum
é bomba
quebra quebra
quebrando o dedo apontado
faz muito bem
estraçalhar
em pleno ar
sentir o céu
se transformar
num lindo blue
no crás azul
é zás
é crás
é bum
é bumbo na rua
é bimba na lua
é zás
é crás
derretendo o rio
aquecendo o riso
e o congelado
estraçalhar
é zás
é crás
na cabeça contumaz
CIDADE DESENCONTRADA

esta cidade
não tem saciedade
é um fazer boia
é um entrar em fria
é um comer homens
tirando o sangue
jogando na guia
sangue vermelho faz ouro
promessa de trabalho faz tolo
sobre o mudo clac som do modernismo
que nunca chegou
não há vida no tietê
não há vida no tamanduateí
os sonhos dos peixes buzinam
pisados nas calçadas
esta cidade é um cemitério
de pessoas dormindo
deitadas nos pratos rasos
esta cidade de gritos mudos
cemitério de túmulos
zumbindo ouro
servindo ciladas
esta cidade não tem vaidade
esta cidade não é cidade
ANTA NAPOLEÃO

vamos acender a brasa


vamos queimar o brasil
cada pau vamos torrar
todos os segredos da mata
não vai sobrar bicho pra queimar
não vai sobrar árvore
pra tapar a sombra do mal
nada vai sobrar pra chorar
somos o pai do vendaval
nada vai sobrar pra dizer
vamos queimar a brasa
vamos queimar o brasil
o tamanduá vai lamber
vai lamber de babar
vai lamber a boca
e comer as formigas
o tapir vai fugir da efígie
o tapuya vai jogar o veneno na seta
o tupy vai falar o que não se diz
o brasil vai virar brasa
a brasa vai queimar
até o céu azul e anil
o lp gira
a boca dá tiro
ecoando o som
invadindo o mundo inteiro
do sonho que vem do sertão
sempre haverá valente cantadeiro
a voz gritando na garganta
um anhangabaú
depois desta treva haverá luz
haverá lâmpada, lamparina e lampião
um, nenhum, setecentos iluminando este sertão
ABELHAS DO TEMPO

o tempo tece mel


paciência de abelha
brilhando no céu

américa, o rio a ondeia

encurva asas e voa


em retorno à áfrica

a vida sem casca, sem medo


as flores sem caule
o fruto de raiz e degredo

a flor imatura
o sol ofuscado, a manhã
se abre madura

o homem, abelha ao vento


passageiro
e algazarra do tempo
o inventa deus
um multiversátil
de ligeiros eus

toca viola sem medo


pra balalaica de balas
cambalacho no lodo

a flor de lotus olha pro céu


com ferrão de aço
e faz algazarra de mel
TANGO

sem pátria nem patrão


nada tenho nesta miséria
sem dinheiro, religião
meus lábios você beijaria

do que resta faço canção


recobertos e nus de desejos
flauta bebida punhal sedução
vida de cambalacho é o que vejo

sou um mendigo neste mundo que


sempre sabemos foi um charco
que pisamos juntos até o fundo
e dele danço o tango piso e marco

seus olhos vejo cegos de paixão


espero queimar o tempo fumando
consumindo a vida à toa e sem não
me cerco da fumaça atroz amando

minha loucura me fez vibrar


danço um tango apaixonado
pela vida que seduz e faz sonhar
meu atroz coração atropelado
BANQUETE

na suntuosa casa de pedra


no alto da montanha secreta
do imenso banquete o que resta
lágrimas e indícios da festa

da fantasia do que brilhou à testa


dos fartos e incontáveis gastos
de tanto luxo e fausto o que resta
além do alto brilho dos astros

lambendo ávidos seus beiços


só os indiferentes olhos dos gatos
os enganos as ilusões os feitiços
tudo vendo estreito pelas frestas

os gatos piscam olho aberto


o outro fechado mas desperto
prontos para o bote a jato
esperam a saída dos ratos
TREM

nem precisava que passasse


um
os trilhos sempre ali

podia-se ir
para qualquer lugar
sem nunca ir

a fumaça comendo
um grande pedaço do céu
anúncio do escarcéu

o coração aflito
o agito
a chegada do inesperado
a partida do indesejado

muitos vieram
muitos se foram
muitos ficaram

o trem partiu
URUBUZAL

uh uh uh
urubu urubu urubu
uh uh uh que beleza
urubu urubu urubu
urubu na realeza
pra todo lado urubu
fazendo limpeza
come pobre
come rei
come beleza
uh uh uh
a ave se espalha
e não tem tristeza

morra e voe

para o espaço
dentro de um urubu
em sua delicadeza
uh uh uh
urubu urubu urubu

com a morte não tem esperteza


uh uh uh
urubu urubu urubu
ave de profunda limpeza
uh uh uh
urubu urubu urubu

nessa viagem você vai com certeza


uh uh uh
urubu urubu urubu
NA GARGANTA DO ANHANGABAÚ

o lp gira gira gira


no teto do quarto
há horas o chão não respira
o som
o som sem sentido
os sons ressentidos
as vozes são só grunhidos
e os gritos vindo de anjicos
só se ouve tiro
o sertão virou mal
não falta mentira
mas também não falta tiro
vindo das quebradas do coração
os calangos sorrindo
é o apocalipse de dizer não
são milhares de sonhos
são milhares de tiros
contra o capitão
OS INVASORES

as barrigas vão surgir


elas vão se insurgir
as barrigas vão invadir
elas virão pra comer
as barrigas vão rir
até mais não poder
a cidade se diz grande
pequena num instante
uma cauda de gente virá
lá das bordas da serra do mar
lá onde o lixão infesta o ar
lá onde fina a fome da cidade
onde o plástico é todo maldades
as barrigas virão
as barrigas rirão
do pavor e do medo
de todo este arremedo
de cidade que se diz grande
pequena a cada instante
as barrigas rirão
deste inferno reinante
DESEN(FADO)

meu destino é este


este como um leve fardo
feito de plumas e estrelas
é este o meu terno fado
aspirar perfumes no alecrim
é este o meu fado
puro desenfado
até o meu fim
Lótus
faixa quatro - baseado em "Hibernante in Tempore"
por Charles Marlon.
Hibernate in tempore

entre em cambalacho
ou racho à bala a balalayka
a ola da viola
só pra ver
flor do lodo (lótus)
na mesma ferida a vida, o aço
(a vidraça) a crescer
Ninho de algazarra e mel
ferrão de aço
fé (refle) reflete
um (des) despetalar zummmm
abelha in tempore
rio carcaça
zero grau
barcaça e o que é que há?
(lá-lá-laiá...) (pê-lá-lauê...)
sem caule e sem casca
sou fruto maduro
sem raiz sem medo
e sem manhã de sol
é um cocktail de culto e de cultura
deus nasceu na américa
uni-multiversátil
leve passageiro
leve sageiro
ligeiro
légere
Foi depois da última enchente, gente vira indigente quando a água entre pela
fresta da porta, os móveis, imóveis sobre o improviso de blocos, madeira e o que mais
servir de suporte e suportar água, esgoto e dentada de rato, o serviço social
providenciará, certamente, uma escola, um abrigo temporário, para que se possa
lavar o chão, quando a água evapora, resta o lodo e muito trabalho a ser feito, a
rotina já se travestiu de sina, quando chove, o céu sonoro, como uma praga de
abelhas de metal, o braço morto do Rio Tietê volta a vida, zumbido de zumbi de rio,
carcaça que se move faminta a caça de vidas às margens de si.
O rio subiu em menos de meia hora, como um louco arrancava seus cabelos
ciliares, todos os programas davam o alerta, usando do pretenso grau zero, que
mascaravam mal o desejo por cadáveres para terem o que contar, se os números se
quedam estáticos, não resta função para as estatísticas, o vereador pastor Everaldo
apareceu condolente, pediu a todos que ficassem protegidos e desejou que Deus lhes
acudisse, indicou técnicas de meditação, pedindo que observassem com especial
atenção os pensamentos que estavam tendo, pois a melhor forma de evitar o pânico
era manter o pensamento positivo, pois aquilo que a gente pensa, acaba atraindo,
acima de tudo, manter a fé em Deus, pois tudo ficaria bem, entretanto, quem
passasse por perdas materiais, poderiam ligar no número que aparecia na tela, pois
ele e sua equipe estariam a semana toda de prontidão nas proximidades do Templo
de Salomão para receber e acolher os menos afortunados e as vítimas da força da
natureza.

Você ligou para Igreja do Apocalipse, seja bem-vindo, se deseja fazer uma
doação, digite 1, se deseja se voluntariar para trabalhar conosco, digite 2, se foi
convidado para o culto-cocktail beneficente de empresários, digite 3, se quer tirar
licença para porte de arma e curso de tiro, seu número é o 4, se deseja fazer uma
sessão de descarrego para algum familiar, digite 5, se estiver em débito com nossa
Igreja por motivo de empréstimo, digite 6, outros assuntos, aguarde que uma de
nossas servas do Senhor terá prazer em atendê-lo em poucos minutos.
Alô, bem-vindo à Igreja do Apocalipse, como podemos ajudá-lo, entendo,
falar com o pastor Everaldo, claro, claro, nós podemos resolver por ele, pode falar,
qual seria o assunto? Ah, sim, claro, o senhor viu na tv, antes da chuva, perdeu
tudo? Defina tudo. Aham, aham. Sim, ainda tem teto? Não? Desmoronamento, sei,
mortes? Só o bichinho, mas e gente? Tá, deixa eu anotar aqui na ficha, gente não.
Perfeito, vou anotar sim, “a água só não nos afogou, porque escoou pelos buracos
de bala de refle na parede”, o que é refle, senhor? Ah, perfeito, perfeito. Preciso
confirmar alguns dados, antes de darmos prosseguimento, tudo bem? Frequenta
nossa igreja? Amém, amém! Sim, creio que lembro sim do senhor, pai da menina
que canta no coral, sim, lembro sim, seu filho é aquele que toca aquele instrumento
russo de três cordas, belo instrumento. Não, não chora, vou fazer todo o possível
para te ajudar. Me confirma o seu CPF, ótimo, não tem dívidas e nem empréstimos
conosco. Agora uma última pergunta, a mais importante, o senhor já foi agraciado
alguma vez com o Sacrifício do 13º? Ótimo, ótimo. Perfeito, terminamos a
entrevista, o senhor está apto ao novo programa criado pelo próprio pastor
Everaldo, com apoio do seu gabinete e da prefeitura, em breve receberá uma carta,
pode passar o endereço de algum conhecido ou parente, trabalho se tiver, ah, que
triste, mas o senhor vai conseguir outro em breve, Deus proverá, ótimo, pode ser
conhecido mesmo, chegando a carta, confidencial, é bom dizer, são poucos os
escolhidos para esse programa, ela dá direito de participação a você e aos parentes
de primeira linha, pai, mãe, filhos, cônjuge. Algo mais que eu posso ajudar o
senhor? Ótimo! Amém, amém! Não desliga ainda, para o senhor avaliar o meu
atendimento, é muito importante para mim. Tenha um dia abençoado!

Fiel servo do Senhor,

É com alegria que comunicamos que foi selecionado para o novo programa de
superação definitiva das dificuldades da vida terrena, venha com seus familiares ao
endereço abaixo, mantenha o sigilo, caso o contrário perderá o benefício, é favor
queimar a carta após a leitura, decore o seguinte endereço e venha com os seus, na
próxima sexta-feira.

Rua Anchieta, 2222, Sé.

P.E.
*
Na entrada do antigo galpão, fugindo da algazarra da rua, barulho
ensurdecedor de gente brigando pelo resto do lixo nas calçadas, fechado o portão
entre os muros que serviriam para separar os selecionados dos mouros de fora, no
palco, o pastor e seus secretários começam com uma oração, organizando o que será
a ação que tirará a todos das vidas miseráveis que tiveram até ali, são os escolhidos,
para serem recolhidos e retornar em uma época mais frutífera, mais próspera, mais
justa a todos os homens de boa fé. Pedindo atenção total a todos, pergunta se há
alguém que quer desistir e ceder a vaga para quem tiver real interesse em fazer parte
dos planos divinos, na platéia, os olhares se cruzam sem encontrarem com as
palavras, silêncios consentidos, os seguranças trancam o portão com cadeado.
Meus consagrados, agora é a oportunidade de uma vida inteira, que por
meio do meu gabinete venho oferecer sem custo a cada um de vocês, o programa
Hibernate in tempore, por meio de estudos feitos em nossa universidade cristã, de
pensamento livre, onde podemos seguir os ensinamentos sagrados, não sofrendo
com a ditadura da ciência, chegamos a este método de conservação de vidas para
um futuro digno, consiste na conservação do corpo e da alma, para que sejam
desadormecidos quando o mundo for um lugar de prosperidade em que nada falta
a nenhum servo fiel do Senhor. Para isso, na fila da esquerda, passarão pelo
processo de anestesia, aplicaremos em suas veias, uma picadinha de abelha, que
lhes conservará o sangue para que possa, quando reaquecido retomar todas as
suas funções, bastando ter fé e uma fonte de calor, segundo nossos técnicos e
mestres em estudos bíblicos, vocês testemunharão na pele o que testemunhou a filha
de Jairo, o filho da viúva de Naim, Lázaro e Nosso Senhor ele mesmo. Que Deus os
abençoe, vocês que estavam em farrapos, só o ola da viola, voltarão e terão tudo
aquilo que, por direito, lhes pertence.
Façam fila aqui, conforme receberem na mesma ferida o aço e a vida, sigam
nossas ajudantes, elas lhes guiarão até a cápsula de conservação do corpo e da
alma, sim, parece com geladeira vitrine de loja de conveniência, mas é apenas
coincidência na aparência, os cadeados? Fiquem tranquilos, apenas para garantir
que as portas não se abriram antes do tempo, não há prazo pois o Senhor trabalha
de formas misteriosas e no Seu tempo, fato é que eu, pessoalmente, não fosse
pecado, estaria a lhes invejar neste momento, respirem, todos prontos, cada um em
sua cápsula, daremos início ao processo, respirem com calma, concentrem-se,
pensem que o sofrimento acaba agora, acaba e nunca mais voltará, quando
retornarem a este mundo, serão felizes e plenos, não se esqueçam de quem os
ajudou, lembrem de mim com carinho, me ofereçam uma oração. Vão respirando,
fechem os olhos lentamente.
Morienti cuncta supersunt. Morienti cuncta supersunt.
Tango
faixa cinco - baseado em "Tango"
por Eduardo Sabino.
Tango

atroz
atropelado coração
marcado
como um tango apaixonado
em pleno sol da américa abatida
por místicos, bandeiras e bandidos corações
atroz
atropelado coração
marcado
como um tango apaixonado
em plena américa
atroz
atropelado coração
marcado
como um tango apaixonado
em plena américa
Atroz
atropellado corazón
marcado
como um tango apasionado
en pleno sol de américa abatida
por místicos, banderas y bandidos corazones
atroz
atropellado corazón
marcado
como um tango apasionado
en plena américa
atroz
atropellado corazón
marcado
como um tango apasionado
en plena américa
atroz
atropelado coração
marcado
como um tango apaixonado
em pleno sol da américa abatida
por místicos, bandeiras e bandidos corações
atroz
atropelado coração
marcado
como um tango apaixonado
em plena américa
Alano se mandou e sem ele a vida tá embaçada. A gente trombava com o
maluco em tudo quanto é canto, o violão sempre nas costa, tocando Raul, Zé
Ramalho e uns bicho lôco psicodélico de verso esquisito que ele bebia e repetia,
repetia e bebia até desafinar no violão e nas corda vocal e ninguém entender mais
porra nenhuma. Era tipo um alarme pra gente nas noite de sexta: o show ao vivo de
Alano começava a virar ruído, a galera pedia a conta e todo mundo tomava seu rumo.
Joaquim fechava o buteco e a gente tinha que amparar Alano até em casa, aquele
bafo de cana virando o rosto pra gente, querendo conversar qualquer merda na
língua dos bêbado, sabe como é, o mal dos bêbado é que quanto mais bêbada a
cabeça mais a boca quer falar, tá ligado, isso quando ele não ficava arredio demais e
apagava no banco mesmo em frente ao buteco, olhando as estrela e dedilhando o
violão.
Num tinha quem não manjava Alano em Ouro Verde. Em tudo quanto é lugar
o bicho tava. Dançava nas quadrilha junina, tocava nos festival tudo e não perdia um
jogo do Ouro Verde Futebol Clube na série D. Só não curtia evento religioso,
procissão, via cruci e o escambau porque pra ele religião era ópio, vivia dizendo isso,
ópio, e entre ópio e maconha ele sempre ia escolher maconha. Falava isso pra gente
rindo na cara lavada e soltando fumaça pelas narina enquanto a gente repartia um
fininho no cemitério do Rosário, só falo isso pro cês, ele dizia, pras beata ele sorria
amarelo e dava uma desculpa qualquer quando elas tentava pegar ele pra Cristo da
Semana Santa por conta do cabelão e da cara de vira-lata sofrido. A gente rachava os
bico e falava que ele sendo Cristo nós tudo ia inscrever pra romano e chicotear ele
com gosto na Sexta-feira da Paixão.
Alano gostava de umas coisa diferente. Vivia com livro velho debaixo do braço,
misturado com os caderno de partitura, uns livro que comprava em sebo da capital e
que os óio da gente ardia de tanto fungo só de folhear, tá ligado? Era lôco com poesia,
umas poesia cabulosa com o mesmo nome daquela carne, parmegiana, que a gente
tinha de escutar no intervalo das música. O pior de tudo é que o bicho se foi e ele era
o único de nós que podia dar certo em Ouro Verde. Isso porque o pai, seu Jorge,
deixou pra ele uma padaria e Alano tinha tudo pra fazer o negócio crescer, tá ligado?
Não tinha só dom artístico. O puto era bom com número pra cacete, um tino do cão
pra negócio. O pai sacou logo e botou ele no primeiro Sebrae que abriu em Ouro
Verde, quando só os rico da cidade estudava lá. Pagava a mensalidade na rabeira, não
andava vendendo muito, o infeliz, a galera da área não fortalecia, povo preferia
queimar uma gasosa e ir comprar pão no centrão, acho que só pra passear de carro,
tá ligado? Então cê imagina como o véio ficou possesso quando viu que o filho tava
dividindo tempo de estudo com violão, cantoria e bebedeira – e olha que a nota de
Alano era boa, uma das melhor da sala, mesmo assim o véio apertou o bichinho e
soltou uma pérola assim, como é mesmo, que ninguém pode servir a dois deus neste
mundo! Alano trucou na hora, disse que não concordava, que ele serviu a dois deus
até no batizado: o pai queria Alam, a mãe Elano, botaram Alano no cartório e
dividiram a autoria no meio, e Alano ainda emendou, deixando o véio com sangue
nos óio, que ele tava no mundo pra servir a muito deus, uma caralhada de deus que
nem cabe no céu, e que a vida dele ia ser assim e pronto. Curtia administrar a padaria
e tal, entendia de finança, fazia balancete de caixa de olho fechado mas era também
um artista e artista tem fome que não dá pra remediar: todas as coisa entre o céu e a
terra atiçava o interesse dele. Falava bonito o fidumaégua. A gente também ouvia
bastante essas frase lôca dividindo beque, tinha uma outra que ele falava, como é,
que ele tava no mundo pra colecionar mistério. Essa a gente zuou pra cacete: a gente
satisfeito de colecionar selo, figurinha, fita VHS, calcinha das peguete e o desgraçado
tava no mundo pra colecionar mistério? Rimo um bucado. Mas voltando, foi assim a
treta de Alano com o pai, e o velho retrucou, dizendo que quem tenta abraçar tudo
fracassa em tudo: vai na sombra que tô te vendo, meu filho.
Não viu por muito tempo, não, véio zicado, morreu do nada, estourou a veia
da cabeça quando via futebol na tevê, não por causa do jogo, o povo diz, que era uma
partida aleatória de campeonato inglês, mas de angústia com o filho mesmo, e Alano
ficou órfão de pai e mãe (a Dona Cleusa tinha morrido há uns dez ano com câncer de
mama). Alano passou uma temporada fudida, bebendo muito, caindo pelos beco,
sem pai nem mãe nem parente já que o casal tinha fugido do ninho na Bahia e vindo
só eles prestas banda, Alano brotando no útero da mãe ou ainda balangando no saco
do pai, vai saber. A gente tentava ajudar porque uma coisa é beber, igual a gente bebe
a rodo, outra é tentar se matar na cana e virar o bebum da porra toda. Teve um mês
que a gente até desconfiou que ele tinha mesmo era pirado das ideia depois que
enterrou o véio, porque a gente nunca via ele sóbrio mais, tá ligado, e o bicho só
falava em língua de bêbado naquele estágio do golo que bêbado e lunático são uma
coisa só. Tem gente que via Alano da janela subindo a rua principal em zigue-zague lá
pra meia-noite, conversando em voz de choro, sozinho, e dizia que ele via o fantasma
de Seu Jorge, que pedia perdão ao véio e que, pelo visto, o véio tinha guardado
rancor, porque Alano não acabava nunca a ladainha, mas a fofoqueira Carmita, que
tinha os ouvido mais treinado do Oeste, via Alano proseando mesmo era com as
barata que saía do bueiro naquela hora pra dar um rolê nas calçada e jurava perceber
um intervalo nas fala, como se as barata respondesse, e isso era um sinal evidente: o
bicho tinha deixado de ser ateu e tava começando a ver Deus nas pequena coisa, tá
ligado, que nem São Francisco de Assis enxergando Deus nos animalzinho tudo. Ô
ano fudido na vida do nosso amigo. Não faltou padre, beata e gente tentando levar
Alano pra igreja e ele recusava sempre dizendo que tinha perdido tudo mas a
dignidade ninguém ia tomar dele não.
Demorou mas passou. De repente ele voltou a andar com a gente, curtir show,
tocar em festival, ir em jogo no Alçapão de Ouro Verde, participar dos sarau tudo
com seus livro embolorado, foi voltando a ser Alano. Mas com uma mudança de
proceder, tá ligado? Começou a beber uma aguinha entre uma brêja e outra e entrou
numa onda fitness de praticar esporte, voltar a ser adolescente, tempo em que corria
na banqueta e disputava maratona, jogava bola e fazia essas coisa de exercício físico
que a gente só assistia de longe, dando uma moral de leve, vai, Alano, cê consegue,
porque ninguém merece praticar esporte depois dos trinta, mermão. De onde tinha
vindo tanta energia eu não sei. Como a semana do bicho rendia tanto?
Reabriu a padaria, botou um moleque pra ajudar, comprou um violão novo e
desandou a fazer tudo o que lhe dava na telha: trampo de show ao vivo, aula de boxe,
curso de cerveja caseira. Pulou de Asa Delta na Serra da Piedade, começou a mexer
em cimento nas manhã de quinta num desses curso Faça Ocê Mesmo do Senai.
Começou a reformar a casa, cismou de fazer o quarto do falecido virar sala. Arroiava
seu tempo e não deixava de reunir com a turma no cemitério do Rosário, bolar o
fininho e compartilhar na roda. Servia a mais de um deus até nisso, Saúde e Droga, tá
ligado, também não ia deixar seus amigo véio de guerra no vácuo, né? Claro que a
gente ficou mó felizão de ter Alano de volta e de conseguir entender de novo as
palavra que saía da boca dele e quando a gente perguntou de onde veio essa força,
bom demais ter ocê de volta, ele fez um teatrinho com o beque e disse: a vida é que
nem fumaça, sufoca e passa, e isso era tudo, no que a gente saudou um eita ferro, o
poeta tá de volta. Ele festejou também, mas aí do nada ficou meio borocoxô, disse
que o luto é foda, no primeiro dia cê acorda e a pessoa tá em tudo, não só ele virou
órfão, os objeto tudo da casa parecia órfão do pai, e a vida vira um buraco bem maior
que a cova onde enterraro o corpo, e depois, é uma coisa lôca, ocê vai se deixando
esquecer, não da pessoa, da sensação de ter ela em tudo: um dia cê acorda sabendo
que ela vazou e começa abrir espaço pras nova experiência, tá ligado? Nós achamo
bonito que só e no outro dia me arrependi pra caralho da risaiada que arrumamo
nessa hora e do deboche infantil, mas acho que Alano não deve ter importado muito;
sabia que a gente tinha chapado o melão de com força e ele só tinha dado um tapinha
e corrido pra casa porque o outro deus soprou no ouvido e ele precisava tirar uma
música no violão.
Aí veio o tango, a aula de tango, e essa merda roubou a alma de Alano. Ele
deixou todo o resto de lado, até o curso do Senai. Comprou terno no brechó, um troço
mó carregado que tinha sido de um desses barão das antiga de Ouro Verde, e que
Alano vestia nas aula e andando na rua, debaixo de sol quente, todo estiloso igual o
conde Drácula. Cê ia na casa do bicho e via os tijolo empilhado no antigo quarto do
pai, a parede derrubada e metade sem reboco, tá ligado? O negócio da padaria
desandou: povo dizia que o Rafinha, o moleque do caixa, tava roubando na cara dura
e o pão francês, feito nas côxa, tava saindo duro e queimado ou macio e com gosto de
farinha, nunca no ponto sem Alano segurando as rédea, tá ligado? Era um tal de ler
sobre tango, botar tango pra rodar na vitrola, virar a noite treinando e treinando, os
vizinho ameaçando chamar a polícia, e um tal de fazer aula toda manhã, toda tarde,
desembolsando uma nota pra treinar mais, de um jeito que ficava só o bagaço da
laranja de noite e começava a faltar nos compromisso de bar tudo. Faltar até na
nossa roda do cemitério: crime de lesa pátria, mermão. A gente não entendia como
uma dança tão cabulosa tinha arrebatado ele assim com violência de furacão. Aí um
dia ele apareceu no cemitério, com o violão, umas grama de chá e dois quilo de
justificativa. Ah, que o tango é um estado de espírito, é isso e aquilo, é a trilha sonora
desse continente triste, mas caliente, chamado América Latina. Que só podia ter
nascido onde nasceu: nos puteiro de Buenos Aires e Montividéu. E dá-lhe poesia,
dá-lhe citação, e que, segundo um maluco aí que nem sei mais o nome, o tango é um
pensamento triste que se pode dançar e ele, Alano, que adorava viver mas era cheio
de pensamento triste, podia dançar tango vinte e quatro horas por dia se quisesse. Só
que não, óbvio que não, e a roda da Jan revela tudo, até as motivação que a gente
nem sabe que tem, tá ligado, ainda mais com uns gole de conhaque envolvido. Uns
vinte minuto e a mente de Alano abriu igual planta carnívora, deu a real pra ele e fez
ele admitir pra nós, talvez pra ele mesmo, que sua motivação no tango tinha nome e
sobrenome: Florença Ríos, a professora. Que ele vinha se esforçando pra
impressionar a mulher, gastando todo seu estoque de compositor, dançarino e poeta,
e que ela tava retribuindo, que o fogo tinha pegado nela também, e o atrito do tango
ajudou pra caralho, e isso morre aqui, galera, cês promete – como se as coisa já não
nascesse morta e enterrada no cemitério: a real é que eles tavam trepando igual duas
besta no cio depois das aula. Só que na aula daquela noite Florença não foi e nem
respondeu sms dele e Alano foi parar ali, com os fracassado, nós, no caso, em busca
de apoio moral e maconha.
Lamentamo demais a onda errada, putaqueopariu, tanta mulher em Ouro
Verde e ele pega logo a argentina? Geral sacava ela na cidade, não tem como não
chamar a atenção com os óio verde, o sotaque, a gostosura toda mas todo mundo
sabia também do noivado dela com o Henrique, o filho do juiz, onde é que Alano tava
se metendo, meu Deus? Claro que desaconselhamo, cagamo na alma dele, família de
juiz não é flor que se cheira e o moleque era bombadinho, ainda por cima, dono de
academia e tal, no que Alano disse, numa macheza que desceu de repente nele como
se tivesse pegado o espírito do Bruce Lee, que no um contra um ele se garantia. Podia
até ser, mas a gente não colocava a mão no fogo nem fudendo, uma coisa é manjar
dos paranauê na teoria e chutar saco de areia, outra coisa é ir pro fáite de verdade, tá
ligado?
Alano disse fiquem de boa que ninguém vai chegar nesse ponto, a não ser se
ocês derem com a língua nos dente, cambada. Nunca né, a gente queria ele vivo, e na
real de nós Henrique não ficou sabendo uma palavra – mas do celular de Florença
sim, ela vacilou e o puto viu as conversa tudo. Não só viu como respondeu a última
mensagem de Alano, marcando encontro na praça da Matriz, como se fosse Florença.
Alano caprichou nos pano e foi todo perfumado. Se era na praça da Matriz, em dia de
feira de artesanato, Florença só podia ter dado a mala pro outro pra ficar com ele, o
bicho era iludido, bobo demais, tá ligado? Se tivesse raciocinado um pouquinho ia
sacar o caroço no angu: quem é que sai de noivado e começa namoro em praça
pública, Jesus?
O cara fez um barraco, mermão. Juntou uma roda ao redor dos dois, galera
dividida entre os deixa-disso e os deixa-o-pau-comer. Barraco de touro com os chifre
brilhando pra todo mundo ver, tá ligado? E num é que a gringa tava lá também?
Lógico, né, Henrique queria dar um show pra ela. Ela tentou proteger Alano, ficou na
frente dele, por Dios, Henrique, por Dios, cena de novela mexicana da porra. A gente
tava de boa fumando um paiol de leve no alto da escadaria da igreja da matriz
quando ouvimo os grito da moça e disparamo. Invadimo o ringue no meio da rua e
apontamo os dedo em riste pro arrombado: só por cima do nosso cadáver cê vai
matar nosso amigo, seu bosta, no que os playba amigo dele também viero pra cima, e
Henrique disse, isso é entre eu e ele, e Alano disse, aqui cês deixa, e arregaçou os
pano igual um galim de briga. Bicho pacifista, mermão, poeta romântico. Como uma
gringa mexe com as ideia da pessoa assim? A novela continuou quente que só:
Florença chorando nos ombro das amiga, virando o rosto, no quiero ver, no quiero
ver, Henrique fezendo juras de morte a Alano, Alano bucejando. Sim, de deboche,
mano. A gente ruendo as unha e encomendando a alma dele pra Jesus e o
desgramado pleno igual Muhammad Ali.
Tinha motivo. Num é que isso do bicho colecionar mistério e interessar por
tudo no céu e na terra salvou a vida dele? Porque a cabecinha alucinada dele buscou,
numa faísca de segundo, as aula que ele teve com Binha Borracheiro dez ano atrás –
igual naqueles filme que o cara tá pra morrer e lembra do treinamento na hora h, tá
ligado? Binha Borracheiro era um cara brigador, terror dos boy, mal-encarado igual
um gambá com monocelha, que adorava Seu Jorge. Os dois era sócio de uma
borracharia antes do falecido ir mexer com pão. Alano era adolescente e Binha, que
entendia de kravo magá, aquela luta do Oriente Médio que desgraça a pessoa
todinha, ensinou pra Alano muita coisa. Na hora que Henrique partiu pra cima dele,
Alano viu certinho na guarda aberta do outro onde tinha de bater. Foi três golpe só,
mermão, um nas articulação do braço, outro no joelho do cara e um de misericórdia
no pescoço. Mandou Henrique sem ar pro hospital com as bravata dele e as fratura
exposta tudo. A multidão ficou passada e nem aplaudiu. Sujou total e todo mundo
deu linha.
Depois ele ia desabafar com a gente na roda de cemitério: aquela tinha sido a
pior noite de sua vida. Sacou na hora que tinha perdido a briga quando viu o horror
de Florença olhando o osso pra fora no braço de Henrique. Sim, a gente tinha
escutado bem sim, ele disse que perdeu a briga, porque algumas briga nesta vida o
camarada tem que apanhar muito pra poder ganhar. O orgulho não deixou ele
enxergar isso. Um dente quebrado e Florença podia romper com o corno violento.
Vários dente quebrado e ela ia declarar amor eterno pro banguela estrupiado mas
feliz que ele ia ser do lado dela. Mas o vacilão achou melhor quebrar o sujeito e pagar
pra ver. Entendeu ligeiro, fim da linha: Florença nem olhou na cara dele. Entraro na
ambulância, ela e o corno quebrado, os dois prontim pra colar o noivado nos mês de
hospital e fisioterapia, e Alano ficou lá, só os caco da vitória, coitado.
A noite dele foi longa. Escutou um tango sinistro de um tal de Alcides Neves
até a vitrola esquentar, até a cabeça dele zuar e ele jurar que o vinil tava tocando de
trás pra frente e o diabo tava falando no ouvido dele igual o disco da Xuxa ao
contrário, tá ligado? O bagulho foi tão lôco que dessa vez chamaro a polícia pra
desligar o som e os hômi arrastaro ele bêbado pra delegacia. A sorte, nosso amigo
disse pra nóis enquanto a gente fumava um verde muito bom, é que o delegado, Seu
Jairo, não quis registrar o BO. É que ele não saía dos buteco onde Alano tocava e
sempre se emocionava ouvindo Belchior. Foi o que Alano entendeu: uma colher de
chá pelas lágrima gostosa derramada nas noite de fossa. Vá, suma daqui e bote a
cabeça no lugar. Ocê é jovem, tem muita coisa pela frente.
Não sabemo se teve a ver com essa conversa com o delegado, mas Alano
resolveu isso aí mesmo, que tinha muita coisa pela frente. Muito chão. Pôs a ideia na
cabeça e ninguém conseguiu arrancar ela de lá. Mais fácil arrancar a cabeleira dele,
fio a fio, do que tirar a ideia maluca que ele enfiou nos miolo. Vendeu a padaria nos
classificado do jornal de Ouro Verde. Mixaria do caralho, ainda mais que transferiu
dívida. Guardou metade da grana na mochila, em nota de vinte e cinquenta, e com a
outra metade comprou uma bicicleta de aro grosso, dessas cara, mermão, quase três
mil pila – aro grosso que guenta chuva, sol, desnível e os buraco tudo do caminho
que Alano resolveu trilhar. Não ia ser o primeiro, mas um dos pouco que realizaro o
feito, se chegasse até o final: pedalar a América Latina todinha. O último que
conseguiu virou notícia. Levou um ano pra isso.
Ficamo de cara com a ousadia, como se o fidumaégua tivesse preparo físico
pra isso, né, mas Alano já tinha ensinado pra nós que dele não podemo duvidar –
mas foda-se, duvidamo assim mesmo, truco, cê vai morrer igual o maluco que comeu
cogumelo envenenado, cê vai ver, e fomo desfiando tudo o que podia acontecer
porque na real a gente não queria que ele fosse embora. A gente achava que mais
cedo ou mais tarde ele ia largar isso pra lá e voltar pra via sacra de golo, música,
buteco, poesia e bagulho. Mas, ô desgraça, a ideia não virou fumaça, não. Ele passou
umas semana fazendo trilha em cidade vizinha, baixando e imprimindo mapa,
estudando essas bagaceira de viage de bike, traçando rota, e depois se mandou.
Ontem fez um ano que o bicho deu linha e a gente fez umas homenage doida
pra ele no cemitério. Lemo umas poesia dos livro fungado que ele deixou pra nós de
presente e o Tonho até tirou no violão a música de Alcides Neves que desgraçou a
cabeça dele na noite que ele decidiu partir. A gente fala dele sempre no passado, né,
Alano era assim e assado, dizia isso e aquilo, mas na real a gente torce pra ele tá vivo,
apesar do maluco não dar notícia, não telefonar, nem mandar e-mail. O melhor a
fazer é ignorar as fakenews: povo dizendo que bandido tinha roubado a bike dele e
que ele virou mendigo na Bolívia, ou que tinha entrado pra uma gangue de um
traficante na Colômbia – alguém reconheceu a fuça dele no noticiário –, que virou
morador de rua e andava escrevendo poesia nos muro do Chile: uma série de
abobrinha que o povo conta.
A gente até ri dessas história e fica se perguntando se agora, um ano certinho
de viage, se ele ia fazer a curva e voltar. O Mathias acha que sim, o Beto diz que nem
fudendo, o bicho não volta, que esse negócio de amor não correspondido é igual
bomba: o troço explode e o cabra tem que sair correndo, correndo, até a explosão não
alcançar ele mais, tá ligado? Aí um outro da roda, nem lembro quem mais, mostrou
que o chá daquele dia tava da melhor qualidade e disse que no caso de Alano o amor
não correspondido é bomba atômica, daquela bruta que nem explodiro ainda, senão
a gente nem taria ali reunido. Essa é cabulosa mesmo: pode ir pra China, mermão,
que a bomba te busca. Acho que os livro embolorado que Alano deixou tá fazendo
nossa cabeça também, só pode. Pelo menos, quando a gente fica comovido pra diabo,
todo mundo com os óio de aguardente no meio da lombra, botamo logo a culpa nos
fungo.
Banquete na casa de pedra
Faixa Seis - Baseado em "Banquete na casa de pedra"
por Rodrigo Mendonça.
Banquete na Casa de Pedra

à sombra da mesa
amor-sobremesa
a família reunida (unida)
o silêncio em flor
os rostos em paz
o copo a cerveja
o doce a cereja
a família em volta reunida
na ponta do vento, o ventilador
ah, ah, ah, ah
falam de sedas-escarlates
unha, esmaltes
agora em gênios e pintores
e a cerveja...
espumou na mesa...
por sobre a toalha...
no branco da saia...
caiu.
beatriz chorou
ao chorar lembrou
daquela foto suspensa por trás
do espelho-vivo dos olhos
que na mente ela guardou.
À sombra da mesa
ninguém percebia
porque beatriz tanto sofria
de lenço na mão
de olhos no chão
Debaixo da mesa
dois olhos acesos
é o gato esperando o fim da festa
sonha com purês
restos, ossos...
ah, ah, ah, ah
“Rattus norvegicus, também conhecido como ratazana, rato de esgoto ou
guabiru, é uma espécie de roedor originária do leste da Ásia (norte da China e
Mongólia), mas naturalizada em quase todas as regiões do planeta. Uma das mais
corpulentas espécies murinas com até 25 cm de comprimento corporal, tem pelagem
cinzenta ou acastanhada, cauda longa e orelhas curtas. É considerada a espécie de
mamífero com mais sucesso do planeta, após os humanos, graças à sua agressividade
e adaptabilidade. As ratazanas possuem comportamento canibal e é uma das espécies
de roedores que mais invadem domicílios. Seu maior predador é o gato doméstico,
que…”
- Desliga essa tevê.
- Calma, vô, é uma fita!
A família ia colocando as coisas sobre a toalha de mesa: o arroz que a avó
fazia, o grão de bico que é receita de família, o purê de batata com nata que a mãe
tinha inventado, o coelho à caçadora que o tio-avô fazia depois de se embrenhar
pelas florestas da Espanha. A mesa rangia ante o peso da história daquela família.
À sombra da mesa o gato malhado se escondia, brincando com o novelo de lã
que a pequena tinha lhe atirado apesar das objeções da mãe. Esta se encontrava
agora na sala porque somente a perfeição era aceitável nas reuniões de família: as
revistas estavam sendo arrumadas, o móvel da televisão recebia uma generosa
camada de lustra-móveis e os brinquedos das crianças era recolhido (os mais novos e
caros ficariam obviamente por cima para que as visitas pudessem apreciar).
- Desliga essa tevê, pô! Já falei!
No desespero, o primogênito tentava puxar a fita que estava presa no
moderno aparelho de fita VHS, o primeiro do bairro todo. A fita da enciclopédia
Barsa se retorcia na tela:
- Seu maiiiiiiior preda predaaaador é o gat doméstico. Responsável pela
morte, pela morte, pela morte de mui mui tos ratos.
Com um passo firme aprendido em muitos anos no exército, o patriarca se
materializou ao lado do jovem. O tapa ecoou pela casa e todos voltaram às tarefas
com o som do choro baixinho do garoto.
- Se chorar, vai apanhar mais.
O menino voltou a se concentrar em soltar a fita do aparelho. O vento levava
as flores para o chão da ampla sala, onde era prontamente varrido para fora por uma
das filhas do coronel. As flores ficavam muito bonitas no chão, mas o chão do coronel
não aceitava flores.
Um dos genros do grande homem organizava as cadeiras de espaldar alto. O
outro trazia garrafas e garrafas de cerveja que eram colocadas na mesa. Para o
coronel só o melhor, as cervejas de rolha eram “non plus ultra”, as cadeiras de
estofado de veludo, de alta qualidade como tudo mais do coronel deveria ser: a casa,
a família, os móveis, o sexo, os sapatos. Enfim, a imagem.
Beatriz trazia uma grande travessa de pães recém assados. A forma quente
ardia em suas mãos, mas ela andava firme, sem demonstrar. Anos na casa do coronel
tinham lhe ensinado a não demonstrar dor porque o patrão se alimentava do
sofrimento alheio. Ela colocou a pesada fornada na mesa e uma das cervejas que
estava só um centímetro fora do lugar fez um balé invisível antes de tombar, abrir e
cobrir a toalha de mesa com a espuma.
Beatriz tremeu e naquele momento um dique se rompeu em sua mente, todos
os abusos do coronel que tinha lhe recebido em casa ainda menina. Os pais que
foram embora e deixaram a garota ali, certamente nenhum destino poderia ser pior
do que ser pobre e não ter o que comer, as visitas noturnas do coronel que lhe cobria
a boca para que não gritasse. O choro que ficou tanto tempo preso na garganta que
sequer era consciente. Debaixo da mesa o gato via a cerveja cair, as pupilas dilatadas
pela brincadeira de gato e rato que se aproximava quando Beatriz chutou o novelo
sem perceber.
Ela sentiu a aproximação do coronel pela movimentação do ar às suas costas.
Muitos anos no exército. Na sala a tevê gritava: rato, rato, rato, rato. O menino em
pânico, o rosto pálido antecipando a surra que levaria. O vento insistia em levar as
flores para o chão do coronel. A natureza parecia não perceber que o senhor daquela
casa (e de tudo que via) era o coronel. Os olhos acesos debaixo da mesa viam as
pernas se aproximando, o rabo, que tinha perdido os pelos, se agitava.
O coronel chegou, o gato pulou e se enroscou entre suas pernas, o homem
puxou a toalha de mesa finíssima enquanto caia, a terrina do purê se espatifou em
mil pedaços.
Na queda ele bateu a cabeça na cadeira de espaldar alto, caiu no chão
transbordando sangue pela orelha. A morte do coronel foi espetacular, como tudo
mais do coronel. A natureza se negava a reconhecer o grande homem em vida. Agora,
na morte, escancarava a todos que somos todos matéria perecível. Da sala, a tevê
repetia baixinho:
- Seu maior predador é o gato doméstico. Responsável pela morte de muitos
ratos.
O trem
Faixa Sete - Baseado em "O trem"
por Letícia Simões.
O trem

lá vem o trem pela estrada


lá vem, olha a fumarada
perto da ponte já vem
tanta gente em pé na estação
se pisando e se empurrando vão
pondo a vida no esperar de um trem
de horário incerto, mais perto chegou vem.
Trem velho quando chegou
não viu ninguém na estação
não havia nem estação não senhor
só um vigia e um farol, que brilhou
brilhou e o trem parou
depois rolou e a noite o tempo levou
e hoje esse barulho de gente
de longe a meninada gritou:
lá vem o trem pela estrada
lá vem olha a fumarada
perto da ponte já vem
Uns chegados vão descer do trem
uns vexados vão subir também
vai unir riso e saudade, vai
um novo apito e contrito o povo sai.
Quem estava na esperança de encontrar e não encontrou
voltou feito criança e chorou
depois que toda a festa acabou
é esperar outro amanhã
outra incerteza
uma surpresa talvez
um dia não é tão distante
é esperar mais uma vez.
um dia não é tão distante
é esperar mais uma vez.
Terça-feira, 31 de março

Despertei com essa pergunta: o que faremos com a casa agora que ela não é, mais,
casa?

Casa enquanto tapete da alma: aquele lugar onde se decai depois de um dia. Na casa
não há trabalho, nem discussões de relacionamento, nem ligações de chefes, sequer
academias, sequer colegas insossos, sequer preocupações. Casa é não ter medo: por
isso volto a ela todos os dias.

Eu morei em muitas casas; ou talvez, melhor dizendo, muitas casas estiveram em


mim ao longo desses anos. Casas de Inglaterra, casas de Rio de Janeiro, casas de
casamento, casas de passagem. Casas que existem somente para perceber que ir é
necessário para voltar.

Estou à espera de um trem.

Ele ainda não chegou. Sequer se pressente o apito.

De alguma forma, o exercício de queimar os dedos criando casas tornou-se uma


espécie de sobrevivência. Não é melhor nem pior: é uma estratégia. Minha casa agora
– enquanto o trem não chega – consiste de: um sítio perto da estação. Quinze,
cinqüenta, quinhentos metros: é uma distância a se caminhar. A casa dos homens
está a dez metros da minha; lá há algazarra e pratos sujos. A minha casa é um quarto
de roupas organizadas, pois só consigo escrever quando há ordem no mundo
exterior. Cama feita, chão limpo e banheiro lavado. Algumas vezes eles adormecem
aqui: minha televisão carrega duas manchas à esquerda da tela, e faz com que os
atores pareçam (são) seres iluminados. Rimos (disso e de outras coisas).

Tenho constante saudade de casa mas não posso tê-la pois não sei quando a verei
novamente. Tenho saudade dos meus, que são, obviamente e tanto, a minha casa.

Para subir no trem, é preciso estar aqui por um tempo. Não se pode sair de casa e
comprar uma passagem diretamente à estação. É um momento de trânsito, de
preparação (assim dizem).

Se nos outros dias não havia ninguém ao mar, hoje o sol exerceu a sua dança do
livre-arbítrio: sangrou laranja por toda a manhã e tarde, com a água azulíssima e a
areia fina. Sequer as borboletas saíram diante tamanho desbunde. Deixaram o sol
brincar sozinho.

Sexta-feira. 03 de abril

Amo um poeta português chamado Manuel António Pina. Ele dedicou sua vida a esse
mistério chamado casa: com quantas pilastras se ergue, por onde o vento entra e qual
língua é a língua da casa. Uma astróloga me disse certa vez que esta minha obsessão
pela casa vem da imensa concentração de casas 4 em lugares altamente improváveis
do meu céu, como Saturno, Urano e Netuno. Como se a casa estivesse fincada em
terrenos onde não se pudesse estar. Mais ou menos como a definição de poesia:
colocar algo que não cabe onde não se suporta. A frase é outra, mas…

Passei a encará-la como uma posição de glória: descobrir o tempo da invenção da


própria casa. Parece-me uma missão bonita na vida.

Hoje tampouco chegou o trem. Dizem no fim da semana.

Lembrei-me de quando o chefe de uma aldeia Huni Kuin, na fronteira do Acre com o
Peru, me ensinou a fazer chover.

Será que quando partilhamos segredos entre os nossos criamos uma casa? Uma casa
feita com as chuvas e as águas de cada um, não sendo necessariamente a mesma, mas
partilhando de um desejo?

Uma tentativa de poema (poemas sobre a espera):

partimos esperançosos rasgando horizontes e


veja só, estivemos a duas horas do futuro
onde sangue e amor se encontram
possibilidades nuanças entregas arrependidas
hora atrás de hora
vêm as faíscas de sonho
não estamos dormindo continuamos no mesmo lugar
onde o coração intranqüilo
se desdobra em navios e solidão
agora estamos pelo mínimo pavio
olhos ávidos
a noite despenca, quebrando três estrelas
suavizando a tragédia
tudo que se esconde sob o seu sorriso
(sob a imensidão do mar
do seu sorriso)
fatalmente aparecerá

Segunda-feira, 06 de abril

Estou bêbada novamente. Meus dias, essa semana, se dividiram entre sonhar com os
mundos que tive - quando morei na Inglaterra, quando morei em Fortaleza, quando
morei na Alemanha – e os que agora poderei ter, quando o trem chegar.

Aliás. acho que os momentos mais leves da minha semana foram quando estive
dormindo e estava em liberdade.

A memória de uma fuga.

Tenho dois óculos: um fora escolhido por Hilton e o outro, por Pablo. O primeiro é
pequeno, de aro levemente dourado, circular. Sério. “Finalmente vemos seu rosto e
temos uma leve pista da sua verdadeira idade”, um diz.

O outro é enorme, azul, de lentes quadradas e cobre meu rosto das sobrancelhas ao
nariz. Pablo diz que o azul casa bem com minha pele, além das lentes me darem um
ar mais divertido. “A todo o tempo, você diz coisas sérias, trabalha de forma séria e
pensa na seriedade do mundo. Esses óculos escondem aquilo que realmente está
dentro de você”, o segundo aponta.

E, assim, oscilo entre as duas armações. Com qual delas subirem ao trem?

Que diário triste, meu deus. A verdade é que hoje está sendo um dia triste. O vizinho
de uma amiga morreu. O irmão de uma conhecida morreu. A atriz companheira de
peça do meu amigo morreu. Meu amigo perdeu dois amigos na semana passada. A
mãe do amigo do meu amigo morreu mas não podem contar a ninguém porque se
disser que morreu as pessoas entram em pânico e querem se afastar até de quem
sequer convivia com a pessoa mas está de alguma forma ligado a ela. Já vimos essa
história. A conhecemos.

Nós temos três passagens para o trem. Será que no próximo mundo ao qual o trem
nos levará as pessoas são menos apavoradas?

Há dias que são muitos dias e há outros em que falta dia; contudo, a lua imensa sobre
nós, lembrando da nossa existência ínfima, pode ser um conforto.

Meios de se mover no labirinto: areia movediça.

Uma vez me disseram que a palavra mais bonita da língua portuguesa era
TROPICAL

Creio ter me agarrado a ela com unhas e dentes.

Quarta-feira, 15 de abril

“Eles pensam que podem equilibrar o inferno.”

estou com esta frase na boca da garganta desde a madrugada de ontem. Ela pertence
ao livro da Olga Tokarczurk, um relato em primeira pessoa na fronteira da República
Tcheca sobre vida em comunidade, solidão e a sagacidade diante de tudo isso para
seguir exibindo os dentes.
(Adoro dentes. Acho-os fascinantes. A mim, revelam a idade, os caminhos, os
desejos. Pessoas de caninos prontificados gozam de palavras fortes. Pessoas
sorrateiras costumam fazer clareamento. As sedutoras também, mas elas vão em
dentistas mais baratos. Gosto de quem tem dentes tortos, geralmente são alcoólatras.
Também gosto de quem usa aparelho tardiamente, parece uma brincadeira com o
tempo. Caber onde não pode. Ou poder onde não deveria.)

Pablo disse que eu não deveria ler livros tristes pois sou sensível demais e depois me
ponho a chorar pelos cantos pensando em todas as bezerras mortas pela literatura
ademais das assassinadas pela realidade. (Essa semana decidi não pensar sobre o
trem). O livro, porém, encontra sua beleza em seu quinhão de dor: ele começa com a
descrição de uma morte, a morte do vizinho, no meio de um inverno; um vizinho
solitário e, de certa forma, detestado pela comunidade.

A narradora, depois, se põe a nos situar na comunidade da mesma forma como em


um mapa astral: ela é astróloga e enxerga o mundo através da astrologia; mas uma
astrologia cínica e um tanto quanto pessimista. Porque assim são as pessoas, para
ela: cínicas e um tanto quanto pessimistas. Contudo, se há uma força maior nos
movendo - os astros, o cosmo, o destino - seríamos mesmo tão cínicos e pessimistas?
Há esperança na dor.

poemas são poemas são poemas são


poemas são escrotos. eles nascem no meio da madrugada e nunca vêm por inteiro.
eles vêm pela metade, rastejando pela cama, mordem as pernas e depois ficam
parados, na cama à frente, olhando para a sua cara, à espera.
à espera de quê? eu pergunto aos poemas.
eles dizem: que você nos complete.
vocês deveriam vir prontos, pequenas bestas.
eles gargalham e jogam água gelada na minha cara às quatro da manhã, sob o
argumento de que o trabalho do poeta é justamente terminá-los: poemas sem o braço
esquerdo ou sem uma orelha, ou com a sobrancelha mal desenhada. poemas sem
vagina.
queria dizer a eles que não sou médica. mas não adianta. enfim.

Tenho cozinhado muito, tanto, até as palavras deixarem de ter sentido e serem
reviradas pelas ondas. Cozinhar acalma a saudade. Estou aqui há um mês e parece
daqui nunca ter saído. O ser humano se acostuma a tudo, não?

(Nota mental: pesquisa se há pessoas cuja espera prolongou-se por mais de um ano.
O que faziam? O que comiam? Encurtaram de tamanho?).

Hoje sonhei que era carregada em uma briga de duas mulheres meio asiáticas, meio
brasileiras. Era um sonho de espionagem (sonho demasiadas vezes com agentes
secretos, espiões, missões a cumprir, pacotes enterrados a descobrir, enfim) e no fim
eu era seqüestrada pela mais nova e posta em um carro a 180 km/h, indo de Botafogo
à Gávea. A mocinha dirigia muito bem e provocava um acidente de carro na outra, a
mais velha, a de cabelos à la chanel. Eu ia visitá-la no hospital e lhe pedir desculpas
pois não sabia como tinha sido envolvida naquilo. Ela me respondeu: “uma vez que
estamos dentro das situações, não nos cabe perguntar como chegamos aqui, mas
como sairemos ilesas”.

A vida, cheia de nós.

Sábado, 02 de maio

Sim. É verdade. Ele chegará. Em três semanas chegará: ao fim do mês.

Há algum tempo não escrevo. E não é exatamente por não querer: é por não saber.
Não saber o que escrever ou sobre o que escrever: estou reclamando ou estou
criando? Desabafo ou um lamento? Toda a situação é tão absurda que qualquer
dúvida parece incabível.

Estaríamos fugindo? Somos desertores?

Há perdão para quem deserta de uma guerra ou seremos encaminhados diretamente


ao inferno? O que há do outro lado do trem, seguramente, é melhor.
Caber onde não pode, poder onde não tem.

Estou aqui há 46 dias e parecem 46 meses. O que há de novo a contar? Hoje estava
um dia lindo, belíssimo. Desses dias onde há vontade de estar vivo. Fui à praia e
havia uma mulher grávida. Imediatamente meu pensamento foi: como essa moça vai
sobreviver a essa catástrofe? Como ela vai parir? Como ela pode se resguardar?

(Será que ela também tem uma passagem para subir ao trem? Mulheres grávidas têm
prioridade. Isso significa que estamos ameaçados.)

Ou seja: que horror.

Continuo, todas as noites, sonhando que sou uma espiã. Às vezes, é um sonho de
época: estou na segunda guerra mundial. Outras, é uma ficção científica: sou uma
espiã do estado de Pernambuco contra a China. Ontem, não havia exatamente uma
linha temporal: era um almoço de família, havia um segredo sobre a mesa e eu
deveria descobri-lo para entender como melhor proceder. Talvez alguém tivesse uma
segunda identidade. Enfim. Eu sei que meu sonho foi basicamente observar os
comportamentos durante um jantar para pensar quem estava inventando a si dentro
da mesa.

Dizem que a lua cheia de maio trará mudanças. Abrirá um vácuo cósmico. A primeira
lua cheia em escorpião, em maio e segundo os registros indianos, foi nesta lua que
Buda descobriu seu caminho.

Devo dizer: o acaso é divino mas não é deus. (não quero desistir dos astros. mas…)

Quinta-feira, 07 de maio

Comecei a ler “A guerra não tem rosto de mulher”, de Svetlana Aleksiévitch. Ela
atravessa mortes e violência, mas me parece, até agora, um livro sobre sobreviver.
Estou circulando-o como um manual: como sobreviver mantendo-se inteira, esculpir
um cristal no recôndito mais espinhoso do fígado, para que nada alcance. O cristal, o
cristal: buscá-lo, poli-lo, cultivá-lo diariamente.

Ontem foi meu primeiro sonho onde abertamente vivi um mundo com o vírus. Dessa
vez, minha mãe era a espiã e eu era a infectada. Ela precisava me esconder, me
salvaguardar de exércitos determinados a me prenderem. E nisso, entravam perucas,
alucinógenos, roupas. Tudo para ultrapassarmos a fronteira do Brasil e
conseguirmos entrar no Paraguai, onde havia um país a nos receber com a vacina. Na
verdade, sequer sei se o país era nomeado Paraguai. Talvez fosse outro estado. talvez
fosse apenas um outro estado de consciência, na verdade. Engraçado que na nossa
fuga não se falava de um trem clandestino; ele sequer existia como possibilidade para
deixar o Brasil.

Depois, uma elipse: eu estava curada e minha mãe era uma espiã viajando pelo
mundo para salvar outras pessoas de outros estados. Eu precisava - ninguém dizia
nada, era um verso a martelar em minha cabeça - ser tão boa quanto ela em
resguardar a população. O vírus já tinha evoluído e se tornado a arma do Novo
Estado: agora, os infectados tinham se transformado em seres com extensões
robóticas, e eram recrutados para um serviço militar - mesmo que não
concordassem. Contudo, caso fossem levados para situações menos dificultosas, mais
humanas, essas próteses desapareciam, dando lugar a tecidos humanos. E os robôs
se pareciam mais e mais com pessoas normais: amigos, conhecidos, ex-colegas.
Mamãe me havia deixado no comando de nove gatos e sete pessoas, todas muito
mais novas do que eu. O Novo Estado as perseguia, pois elas eram soldados sem o
saberem, e uma delas era muito parecida fisicamente comigo. Havíamos conseguido
construir uma linda comunidade na casa de minha avó, que era muito mais nova e
efetivamente ativa e dona de um clube de dança de salão. Mas nos descobriam e eu
não os conseguia salvar. Daí, acordei.

“Dizem: ah, mas as memória não são nem histórias, nem literatura. É só a vida, cheia
de lixo e sem a limpeza feita pelas mãos do artista. nosso cotidiano está repleto de
matéria-prima da fala. Esses tijolos estão espalhados por todo lado. mas os tijolos
ainda não são o templo. Para mim, é diferente… Justo ali, na calidez da voz humana,
no reflexo vivo do passado, está escondida uma alegria primitiva, e se desvela a
intransponível tragicidade da vida. Seu caos e paixão. Seu caráter único e insondável.
Construo templos a partir de sentimentos, de nossos desejos, decepções. Sonhos.
Daquilo que aconteceu mas pode sumir.”

Me prometi parar de fazer perguntas por 72 horas.

Sempre tive problemas com a palavra jóia. Ou pelo significado mais imediato, da
herança, do salvo conduto caso algo dê errado, do tesouro de família, ou pelo dialeto,
de ser mero substituto para... legal. Contudo, conversando com Pablo sobre o quão
importante está sendo ler os relatos sobre atravessar uma guerra, ele me disse:
aprender a sobrevivência é uma jóia.

Os dias têm me ensinado isso: reinventar palavras.

Afinal, foram os homens que criaram os nomes. Assim como criamos, podemos,
também, reorganizá-los.

(“A palavra cão não morde”).

Segunda-feira, 18 de maio

Essa noite tive um sonho em finlandês. Eu trabalhava como redatora de um


telejornal público apresentado por um casal loiro, alto e magro. Até o dia em que a
moça ficou subitamente resfriada e eu tive de substituí-la às pressas. No sonho, eu
usava um cabelo muito preto, liso, meio à la chanel. À medida em que as semanas
passavam - e ao longo do telejornal, eu acaba me envolvendo em uma reportagem
investigativa para desmantelar um grupo de fraude e clonagem de cartão onde ao
final eu descobria ser liderado por meu pai -, meu cabelo crescia e ficava mais e mais
ondulado. Todo o sonho transcorria na paisagem elegante e aquática de Helsinque, e
também havia pessoas dinamarqueses e noruegueses trabalhando na emissora de
TV.

Eu não falo nenhuma dessas línguas.


Talvez meu inconsciente esteja me preparando para a chegada do trem: em nenhum
lugar de nenhuma das três passagens há um indício de onde é a nossa parada. De
tudo o que eu li, quanto menos se sabe, mais seguro é diante do Novo Estado. E se o
trem nos deixar na Escandinávia? É preciso arriscar o básico: bom dia, com licença,
quanto custa, como chego a esse endereço, quero ir para minha casa.

Por outro lado, também podem nos deixar em alguma província latino-americana
cujo governo não reconheça o Novo Estado. Por isso, comecei a estudar quíchua e é
absolutamente belo como a noção de tempo infinito - e as conseqüências desse
infinito tempo - se revelam dentro de uma língua. No quíchua, os adjetivos colocados
ao lado dos substantivos não somente qualificam a palavra, mas lhe dão um sentido
de vida. Por exemplo: se eu digo criança alegre, isso significa que ela é alegre, que ela
foi alegre e que ela será alegre. Pode ser tanto uma constatação quanto um desejo: eu
desejo que essa criança seja alegre. Porque ela é alegre. Porque ela foi alegre. Porque
ela será alegre. Da mesma forma, quando constato ser alguém de fora, essa condição
torna-se da existência, e não somente de passagem: você é alguém de fora, sempre
será, sempre o foi. para ser alguém de dentro, você precisa mudar a sua condição
existencial, e não somente uma condição de qualidade.

Ser estrangeiro é da ordem da existência, e não do momento.

Aprendi semana passada que a expressão em aramaico (e se o trem me deixar em


Jerusalém?) equivalente para em boa hora ou na hora exata é: o osso do infinito.
Fulano de tal apareceu no osso do infinito: eu realmente precisava falar com ele.

Meu deus! a língua não é algo de sublime? Se o infinito fosse um corpo, raspar teus
ossos… É assim que se acomete a surpresa. Como cuidar de um tempo osteoporoso?
Como dar cálcio aos dias?

Isto é hora, de pensar em linguagem? Eu confesso: não sei mais direito sobre o que
pensar. Cansei os meus assuntos.

Pensar o osso do infinito, nesse tempo existente em uma dimensão da linguagem -


existe, está! - onde não há estados de doença, onde não há estados de exceção, onde
não há Novo Estado, mas uma alegria enfim, uma doçura íntima, uma qualidade de
existência de vida - ah. Isso ao menos é acalanto.

Raspar o osso do infinito.

Sábado, 23 de maio

Não há muito mais o que dizer: hoje é sábado, choveu por três dias seguidos, o trem
passou e ainda não era nossa hora de subir. As passagens foram validadas: são
verdadeiras, conseguiremos fugir, mas ainda não.

Talvez estejamos aqui há 70 dias, talvez há 68 - não menos -, busco ler, essa semana
pouco escrevi, e cozinhei de olhos fechados. Fiz uma salada de polvo com pimentão
na brasa e batata doce. Funcionou. Azeite, pimenta calabresa e açafrão. Pablo a
chamou de “Os três mosqueteiros”.

Busco olhar o amanhã. Busco olhar o amanhã. Busco olhar o amanhã. Se acreditar no
amanhã, o hoje passa a ser, assim, um trampolim. e nisso me agarro.

(um poema em processo)

a mãe de uma amiga


dizia saber da piada mais engraçada do mundo
- quer fazer deus rir?
- faça planos

minha amiga era criança


e o sorriso não veio
ela não conseguia entender quem diabos era deus
e por qual tamanha crueldade ele ria de suas vontades.

eu tenho planos:
quero ir à praia no domingo
quero brincar com minha cachorra chamada brigitte bardot
no quintal da minha avó
quero fazer uma pizza de massa fina e borda crocante
quero ouvir do menino que gosto que ele gosta de mim também
quero passear de barco pelo rio são francisco com meu pai
e ver a girafa triste de salvador no zoológico com minha mãe.

a minha amiga se chama esther


e eu a conheci perto dos trinta anos
quando me mudei para o recife e descobri
que não se pode ir ao mar por causa dos tubarões

dois meses depois de me mudar para o recife


minha avó morreu
há muitos anos
moro em apartamentos
cujas vistas são também outros apartamentos
nunca um quintal
as pizzas do recife são ruins e custam caro
mas é preciso entendê-las: são a cura para as ressacas
(e em recife, todos os dias são dias de ressaca)
meu pai teve dois avcs e um câncer
e pouco a pouco esqueço do seu rosto
apesar de minha mãe dizer que o abraço do meu sorriso
vem dele
no recife, tentei levá-la para passear no capibaribe
ela tremeu de pavor quando o rio se chocou com as águas salgadas
nesse momento, minha mãe, tão atéia
chamou por deus para
não morrer em lugar tão fétido.
por quê, por que, minha filha
você decidiu viver em uma cidade com cheiro de esgoto?

- quer fazer deus rir?


- faça planos

“me levou trinta anos para entender essa piada”


esther é sábia.

ela também me disse


- mesmo sendo atéia -
que de vez em quando se pode avistar deus:
basta ir para perto do mar e buscar a estrela mais brilhante,
a morta.

se ela lá está,
e nós cá estamos,
é porque ainda há alguma piada,
algum plano,
para se ter graça
de romper.

Quinta-feira, 04 de junho

Um dia não é tão distante: é esperar mais uma vez.


Deslocar: uma das necessidades
primárias do vivo
Faixa oito - Baseado em "Urubuzalê"
por Bruna Mitrano.
Urubuzalê

urubuzalê
urubuzal
urubuzalê
urubuzal
urubuzalê
urubuzalê
urubuzalê
urubuzal
corpo balança
urubê
corpo é pedaço
urubá
cabeça levanta
urubuzalê se espanta
na mira de um fuzil vai urubulelê
Deslocar: uma das necessidades primárias do vivo.

Também está na mira do fuzil quem segura o fuzil.

Urubu para tanta carcaça não falta.

Mosca em ziguezague-ê.
É a lei do menos fraco, coitado, cedeu a qualquer das tentações do deserto.

“Ontem foram três mortos na rua A, favela da Coreia,


Senador Camará. Nada do que acontece aqui vira
notícia de jornal. É como esquecer de jantar, o
estômago não se percebe vazio, cheio ou cheio de
quê.”

Comia o pedaço menos estropiado do cachorro atropelado.


Desdenhou da minha presença. Eu mais perto a cada bicada.

“Estamos do mesmo lado.”

Amanhã vai ter matança na Maré, a polícia mandou


avisar. Ai de quem remar contra.

EM TERRA DE URUBU-REI
QUEM É LIMPO BICA O
OSSO.

Prato do dia: picadinho de carne.


Título:
Faixa nove - Baseado em "Aventuras de um Luso-Tropical"
por Marina Ruivo.
Aventuras de um Luso-Tropical

meu pai
a abertura dos portos do Brasil
a criação da gazeta do Rio, meu pai
me fazem crer
o novo Napoleão
o novo Napoleão das antas
Meu pai
o tapir o tapuya o tupy
na avenida
eu quero é isso aqui, meu pai
rei do sertão
maior que Napoleão
maior que Napoleão, nas matas
Meu pai
abandono essas terras do Brasil
essas matas exalam só segredos, meu pai
e esse povo
não quer nada ou quer de vez
Ao contrário!
Faixa dez - Baseado em "Los invasores"
por Alfredo Leonardo.
Los invasores

verdes
in urbe, in grande cidade
colorida cauda
caudal colorido da serra e do mar
olheira, olhara minha gente
que pena, rosário:
judeu-mundistante ah rá rá
verdes
in urbe, in grande cidade
colorida cauda
caudal colorido da serra e do mar
olheira, olhara minha gente
que pena, rosário:
judeu-mundistante ah rá rá
Machado: toque de violência
a ciência
a seara
araras-verdes
in urbe, in grande cidade
olhos de menino
caudal colorido de serra e do mar
menina-pureza, pureza no róla do mangue
a barriga a barriga é o que importa ah rá rá
Ao contrário!

São os invasores?
Norte ou nortista
para
o
sul

invasores…
Bandeirantes
para
américas
heróis desbravadores!
Norte ou nortista são
Título:
Faixa Onze - Baseado em "Desenfado"
por Camila Veilchen.
Desen (fado)

nem mais a um canto ruminar


determinar as coisas
espalhar pelos canteiros d'alecrim
Hematófagos:
Faixa bônus - Baseado em "Odisseia nº2"
por Cinthia Kriemler.
Odisséia nº2

numa noite escura


noite de terror
mil morcegos negros
fogo sangue e ódio
e de espadas de fogo
e de capas de lodo
invadiram
a cidade nascente
e de espadas de lodo
e de capas de fogo
invadiram
a cidade poente
nascente… poente
os horrores das câmaras
os tremores do medo
e os morcegos vencendo
comendo maçãs
no pomar jaz um corpo
entre bagos e bílis
um herói messiano
fugido
das cruz
é só cruz e estrada
é só povo e mais nada
é só gesto
é só resto
numa noite escura
noite de terror
três homens de aço
sede tanta sede
e armados de pás
e encapados de luz
devolveram
a cidade poente
e armados de luz
e encapados de paz
devolveram
a cidade nascente
nascente… poente
os sorrisos de leite
o feijão o centeio
e a gente sorrindo
entre festa e pão
no pomar corpo novo
entre beijos e risos
um herói escondido fugido
da cruz
é só cruz e estrada
é só povo e mais nada
é só gesto
é só resto
Eles vêm como bichos. Guiados pelo cheiro preto e pobre dos corpos vivos que
logo serão caças abatidas e atiradas em uma vala comum. Vêm com a noite, como os
morcegos-vampiros. Ninguém nota os celulares inesperadamente sem sinal nem os
postes de luz subitamente apagados. São 3 horas da madrugada. A hora dos mortos.
A hora do capeta.
Quando Jorginho se dá conta de que os sons que chegam aos seus ouvidos
chapados não vêm dos animais da noite, é tarde demais. Nem ele, nem Juca Bala,
nem Marcelo da Tia, nem Nego Beleza escutaram o ruído intermitente dos rádios do
Bope. Nem viram as viaturas subindo as ruas de faróis apagados. Talvez por causa do
barulho ensurdecedor do baile funk. Talvez por causa do crack derrubando as
barreiras de alerta nos seus corpos ainda adolescentes brincando de gente grande.
Talvez porque os meninos-vigias na entrada do morro já estejam mortos. Porque um
caguete torturado ou chantageado ontem revelou onde eles estariam posicionados.
Tudo acertado, tudo coordenado. A polícia ataca. Em bando.
Ninguém ouve os meganhas. Até que o primeiro tiro acerta a testa de Marcelo
da Tia. Um olho vermelho jorra entre os dois olhos castanhos estatelados pelo
assombro da morte. Outro tiro acerta de raspão o braço esquerdo de Nego Beleza.
Depois, o caos. As mãos furiosas de Juca Bala disparam a submetralhadora HK MP-5
para o ar, resgatando o aviso que não foi dado a tempo. A música do baile funk é
interrompida. Corre-corre.
Aquartelado nos telhados, nas casas, nos becos, o pequeno exército de
soldados do pó tem nítida vantagem numérica. Mas é por pouco tempo. Em minutos,
uma fileira interminável de camburões sobe as ruas estreitas do morro. Procissão do
inferno. Na troca de tiros, os corpos vão se acumulando.
Jorginho está puto. Ele é o “atividade” de hoje e a segurança da boca está nas
suas mãos. Logo esta noite. Que ele convenceu Rosylayne a trepar com ele para pôr
fim à agonia de se masturbar dia e noite pensando nela, até o caralho ficar ardendo.
Logo esta noite. Que ele vai finalmente conhecer aquele corpo escondido pela saia
abaixo dos joelhos e pela blusa abotoada até o pescoço. Que ele vai desafiar o Pastor
Damaceno. Imagina quando o homem souber que a filha perdeu a virgindade com
um traficante. Jorginho ri enquanto atira e dá ordens.
Na igreja do Pastor Damaceno, o medo é relativo. Os tiros são estouros
conhecidos. Não fosse semana de Páscoa e ninguém estaria lá às três da madrugada
para a vigília da Quinta-feira Santa. Mas eles estão protegidos pelo Senhor Jesus.
Rosylayne foi com o pai para o culto. Um plano combinado a dois. Escondida atrás
do rosto impassível de filha obediente, a antecipação ansiosa do primeiro encontro
com Jorginho.
Agora, tudo está errado. E ela se desespera. Sabe que é Jorginho quem está no
comando da boca esta noite. Hoje que o Bope tomou as ruas para destruir quantas
vidas puder. Ela precisa ir atrás do seu homem. Para saber se ele está bem.
Pelo caminho, os mortos de olhos abertos a impressionam mais que os outros.
Como se ainda espiassem a vida. No céu escuro, as rajadas azuladas das
sub-metralhadoras a distraem. São tão lindas, pensa sem remorso. Jorginho está em
casa. Ela sabe. Ele contou para ela. Mais cedo, nas mensagens que trocaram sobre o
encontro daquela noite. Quando acertaram tudo. Que ela iria com o pai para a igreja.
E que diria ao pai, um tempo depois, que queria voltar para casa. O pai não poderia
acompanhá-la, ocupado com o culto e com a vigília. Ela então sairia sozinha para se
encontrar com Jorginho na casa dele. Para a sua primeira noite juntos.
A tempestade está forte. Cobrindo de lama as ruas inquietas e os cadáveres
imóveis em suas posições grotescas. Ela apressa o passo. Assim que enxerga a casa de
Jorginho, corre. Não pensa no tiroteio pesado. Não pensa que um corpo correndo na
chuva não tem forma. Sente primeiro uma ardência nas costas. Depois, no peito.
Com a terceira bala alojada no pescoço, cai numa poça de água suja. E fica ali
estirada no chão molhado de paralelepípedos. Morta. Virgem e morta. Como os
inocentes. De olhos abertos.
Jorginho comanda o confronto até que amanhece. Quando a claridade do dia
ameaça revelar os rostos escondidos pela conivência da noite, os policiais vão
embora. Os pneus cantando em retirada falam de uma trégua frágil para uma guerra
estúpida.
Jorginho segue com cinco ou seis moleques para as valas de desova que ficam
ao lado do campinho de futebol. Ele sabe que os nove corpos deixados para trás, nas
ruas, são apenas afrontas. Nas valas é que se contabiliza o grosso das mortes. Nas
valas, os AR-10 usados para matar os meninos do tráfico nos telhados e nas casas e
nos becos são substituídos por pistolas semiautomáticas. Jorginho conhece as
Glock.40 usadas para o extermínio a curta distância. Na sua frente, amontoados, 12
corpos ensanguentados.
Apagaram dez bróders e duas minas, mermão, diz Juca Bala, indiferente.
Sete e meia da manhã. Em casa, o Pastor Damaceno se desespera com a ausência da
filha. Sete e meia da manhã. No fundo de uma vala, Jorginho reconhece o corpo sem
vida de Rosylayne. Quem escuta o seu urro tem medo desse bicho raivoso. Menos os
morcegos-vampiros. Eles agora estão dormindo. Esperando que seja novamente
noite para farejar sangue fresco.
Descampado:
Faixa bônus - Baseado em "Descampado"
por Camila Veilchein
Descampado

Quadros-verdes das campinas


qual as saias das meninas
girassóis ao sol
contentes pedras-polidas
surdas ao canto e cantigas:
manhã
discretas formas no ar
borboletas a voar
e os primeiros urubus
ah, dia mau
ah, dia mau
será que o meu boi morreu?
será que ele se escondeu?
será que a cobra mordeu?
será que a onça comeu?
nevoeiro de desgraça o silêncio traz
pé na estrada é quase em vão
pingo d’água no sertão
mas sem calo e sem semente
não exala a flor na mão
nem chegava homem na lua
nem no escuro esta canção
que o homem é parte do fruto da cova que fez no chão
botas, foice, espinho-bruto, vou em busca do boi fujão
Fortes águas nas vertentes
superabundância, enchentes
e o ano que vem
pode levar muitas vidas
retirantes nas veredas sem fim
mas a terra é como a mãe
amor por ela se tem
florestas morrem de pé
ah vou ficar
ah vou ficar
será que o meu boi morreu?
será que ele se escondeu?
será que a cobra mordeu?
será que a onça comeu?
nevoeiro de desgraça o silêncio traz
pé na estrada é quase em vão
pingo d’água no sertão
mas sem calo e sem semente
não exala a flor na mão
nem chegava homem na lua
nem no escuro esta canção
que o homem é parte do fruto da cova que fez no chão
botas, foice, espinho-bruto, vou em busca do boi fujão
De quando novilho, tinha as patas tronchas. Cada uma aponta para um norte

diferente. Um curupira de corte. Desmamou para sobrar queijo, ganhou peso para

virar carne. Foi dispensado da sina de vitelo porque em época de Quaresma não

convém. Fosse robusto do jeito certo e o trotar não causasse tamanha espécie, teria

chances de crescer touro. No dia que lhe arrancaram a macheza, Valdir disse ver

uma mosca se afogando numa lágrima que pendia nos grossos cílios do agora boi.

Obedecer, obedecia. Entrava na fila para vermifugar sem dar trabalho, resignado,

espreitado por fêmeas que, por nada saber, abanavam pestanas e rabos. Há algo de

irresistível no desalento. Dr. Henrique aposta em Piroplasmose. Valdir sabia só de

olhar que era tristeza de boi Até a doença tem nome sério e apelido. O boi não

tinha. Na orelha esquerda etiquetada se lia 021088.

Foram seis luas de aborrecimento desde maio vendo o pasto pelas fendas do

curral. O verde foi desverdeando rápido, mas teria dado pra uns bons repastos

antes do confinamento, sentissem os homens o que sente o bicho quando vê um

pasto verdinho, todo ele borrifado de rocio. Via-se o capim rarear, amarelar,

amarronzar e se misturar ao barro. A sorte do capim era também a do gafanhoto,

que descorava até que já não fosse mais folha com asas, mas um torrão seco que

estala no chão e ricocheteia. Já não tinha gosto de nada. A ração do cocho não teria

mais gosto. Uma mistura de sorgo, milho e cana quando o sol se levanta, um tal

forrageiro quando o sol esfria mais um pouco. Voltam todos pra baía sem o

digestivo, o paiero e o café que estica a prosa e dá por acabado o dia. Mas pra quê

se eles não se entendiam. O 021052 cacarejava, o 021031 balia, o 021014 sibilava.

O 021088 não tinha vontade de fazer som nenhum. Era um ruminar de mus jamais

mugidos. De tanto ruminar pôs-se ainda mais triste. Faltava 1 dia só.
No dia que se sucedeu, os vaqueiros se juntaram na boca do curral. Vão 30 de cada

vez. Aqui tem 4 paus de choque. Valdir, Julin, Nei e um pra mim. Mas o Dr.

Henrique já falou que não é pra usar, que encrua a carne. Eu não tenho o dia todo

pra ficar adulando boi, não. Se não subir, tome choque pra largar de ser besta. Mas

se tu fosse boi, ia mansinho? Ó o tamanho desses bicho. Um coice só e você voa

longe e não volta. Uma mordida arranca metade e meia da perna e gangrena.

Glória ao nosso senhor Jesus Cristo que eles não sabem que a gente só bota medo.

Tem que saber botar.

As carretas boiadeiras esperavam em fila exalando diesel. Uma a uma se enchiam e

Gerval ia ticando os números na prancheta. Pera lá que tá faltando um. Reconta

isso aí, que não é possível. Algum passou batido. Olha lá no curral. Olha lá. Passei

de novo aqui a lista. Tem 119, tá faltando um. Qual é o que tá faltando? Agora que

deu. Vai ter que ver os brincos. Tirar os boi tudo e olhar um por um? O pessoal do

frigorífero tá lá esperando, vai dar xabu. Ê que vem lá Valdir, achou o boi? Não.

Achei o brinco lá perto do cocho. É aquele boi troncho. Sei que é porque era o

número certinho do aniversário do meu mais velho. Cê viu o boi troncho subir na

carreta? Não viu. Se não lembra é porque não viu. Quando ele passa o vento até

gela. É bicho bichado. Nasceu com olhado do povo lá da fazenda de Miro. Lembra

que foram os vaqueiro de Miro que tava junto quando a vaca pariu ele? Puxaram a

cabeça primeiro. Nunca que pode fazer pela cabeça. Bezerro é gente, por acaso? O

bicho nasceu mole, tinha todo jeito de pé-duro, levou foi 3 dias pra abrir o olho. Só

não deram por morto porque o couro tava morno e às vezes ele ponhava a língua

pra fora. Seu Henrique tinha desenganado e tudo. O menino de Julin ficou dando

mamadeira, alisava que nem cachorro. Eu tenho pra mim que ele saiu no sereno.

Não vi nenhuma hora desde cedo.


E dia mau, e dia mau. Patrão vai tirar do salário. O bicho era enfezado, niquento,

mas de peso até que não era de não prestar. Vai pelas beiradas do rio com Julin

que eu vou com Valdir junto da fazenda de Miro.

Mais 6 luas e deu tempo do boi virar causo. Toda teoria e teorema se colocaram.

Julin ia de cobra, Nei ia de onça, Aldo, achou que morreu de fadiga de fuga e foi

comido urubu. Todos jogaram no bicho, mas deu vaca. Valdir arrumou as trouxas

foi-se embora.
TEMPO DE FRATURA (1979)

UM ÁLBUM HISTÓRICO

Com a palavra: Bruno Gaudêncio

TEMPO DE FRATURA: MEMÓRIAS, CANÇÕES, POEMAS, CONTOS,


TRANSGRESSÕES.
Por Bruno Gaudêncio1
1. Primeiras incursões
A primeira vez que ouvi falar de Alcides Neves foi no livro de poemas A Roza da
Recuza2. O ano era 2014. Na época eu pesquisava material para a produção de uma
biografia do poeta e militante negro Arnaldo Xavier3. Na última página do livro
citado, o poeta informava aos seus leitores que em 1979 teria sido parceiro de um
cantor e compositor em um disco chamado Tempo de Fratura. Imediatamente fui
pesquisar e encontrei o disco disponível no Youtube. O impacto foi imediato. As onze
canções eram profundamente bem elaboradas, tanto nas letras, como na sonoridade.
Havia algo ali de experimentação musical, de nordestinidade, de paulistanidade, que
me seduziu. A pergunta que fiz a mim mesmo foi: “como é possível o
desconhecimento quase geral no Brasil de um disco como Tempo de Fratura?”
Como colecionava LP’s procurei ver a possibilidade de adquirir o disco físico,
porém o preço estava acima das minhas condições financeiras. Exemplares de Tempo
de Fratura chegavam a custar 900 reais em sebos virtuais na época4. Um disco,
portanto bastante raro, um verdadeiro artigo de colecionador. Paralelamente
encontrei dados sobre Alcides Neves na Internet: um psiquiatra cearense, radicado já
há algum tempo no estado de São Paulo. Vasculhando mais um pouco me deparei
com o Facebook do mesmo. O adicionei e ele aceitou. Por timidez acabei não
puxando conversa.
Em 2016, encontrei em um blog fotos de shows de Alcides Neves, contendo
endereço e telefone localizados em Barueri, São Paulo. Decidi então entrar em
contato com o autor. Foi daí que passei a travar alguns diálogos mínimos via
WhatsApp. Tímido, conversei um pouco com ele sobre seus discos, sua parceria com
Arnaldo Xavier e acabei adquirindo o CD de Tempo de Fratura e do seu último
trabalho autoral, dr. Louk’ américas, de 2007.
Em 2017 passei meses escutando o Tempo de Fratura, isso trouxe um impacto
em meu livro de poemas que já estava burilando desde 2015. Surgiu então A Cicatriz

1
Escritor e historiador. Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP).
2
Livro de poemas da autoria de Arnaldo Xavier publicado em São Paulo, em 1982, pelas edições Pindaíba.
3
Arnaldo Xavier, (1948-2004) - poeta e militante negro. Nascido em Campina Grande, Paraíba, migrou para São
Paulo no final dos anos 1960, reencontrando Alcides Neves, visto que se conheceram na cidade paraibana. Publicou
alguns livros, a maioria coletâneas de poemas e ensaios, com destaque para Roza da Recuza e Ludlud. Foi letrista de
algumas canções. No disco Tempo de Fratura, colaborou nas letras de Desencontro das águas (Faixa 2) e Urubuzalê. (Faixa
8)
4
Pesquisando no Mercado Livre neste ano de 2021 é possível encontrar o LP Tempo de Fratura, bem como
(Des)trabelhar ou não, por mais de mil reais.
que canta o incêndio da raiz5. Nesse livro há um poema dedicado a Alcides Neves
intitulado Tempo de Fraturas6.
Em 2018, por conta da minha aprovação no doutorado em História Social na
Universidade de São Paulo (USP), acabei indo morar alguns meses na capital
paulista. Lá comecei a entrevistar amigos do meu biografado, Arnaldo Xavier (poeta
falecido em 2005), como Aristides Klafke7 e José Nêumanne Pinto8, entre outros
nomes. Procurei entrevistar Alcides Neves, mas nossas agendas impossibilitavam.
Até que marquei o lançamento do meu livro de poemas no bar e livraria Patuscada,
pertencente ao poeta Eduardo Lacerda9. Convidei vários amigos, alguns para
declamar, outros para prestigiar o evento. Entre os convidados especiais estava o
poeta Charles Marlon, organizador desta coletânea-homenagem. Poeta que havia
conhecido em 2016, em João Pessoa.
Uma semana antes do evento convidei Alcides Neves para o lançamento. Ele
inicialmente asseverou que iria se organizar para ir, não confirmando a presença.
Porém, dois dias antes do evento recebi a mensagem afirmando que iria. Fiquei em
êxtase. O evento começou às 15 horas de um sábado frio, porém ensolarado. Meus
amigos e convidados foram chegando. A ideia é que cada convidado especial lesse
poemas de sua autoria e outros meus. Foi quando Alcides Neves chegou. Relatei
então brevemente ao público presente quem era ele e li o poema que lhe dediquei.
Lembro que neste momento os olhos de Charles Marlon brilharam. Lembro que ele
estava com uma camisa vermelha e tomando a sua cerveja próxima ao balcão da
Patuscada. Em certo momento vi quando Charles se aproximou de Alcides.
Conversaram muito depois do evento.
Quando foi na hora da dedicatória, Alcides Neves enfim se apresentou
pessoalmente a mim. Conversamos rapidamente e combinamos que quando tudo

5
Livro de poemas lançado em 2018 pela editora mineira Moinhos, da minha autoria, constituída por trinta e dois
poemas, escritos entre os anos de 2015 a 2017.
6
“São tantas sementes nas flores pisadas/o sangue enterrado no caule incomum//A foice assevera as folhas
manchadas/rompeu mais um corpo que acolhe a raiz//O tempo que colhe os ossos quebrados/ouvindo os estalos
dos braços com medos//Temer o futuro dos pobres quintais/marcados por exílios contados nos dedos”
7
Aristides Klafke (1953-), poeta e artista plástico. Natural de Paranaíba (Mato Grosso). Fundador do Grupo
Pindaíba. Publicou diversos livros de poemas. Mora entre São Paulo e Nova York. Com Alcides Neves assinou
juntamente com João Miguel Valencise uma composição “Tempo de fratura a “destrambelhar ou não” (faixa 5), do
disco (Des)trabelhar ou não, lançada em 1983.
8
José Nêumanne Pinto (1951), jornalista e poeta. Natural de Uiraúna (Paraíba). Chegou a São Paulo no inicio dos
anos 1970, vindo do Rio de Janeiro. Trabalhou nos principais jornais do sudeste brasileiro, a exemplo do Jornal do
Brasil, Estado de São Paulo e Folha de São Paulo.
9
Eduardo Lacerda (1982-), - editor e poeta, responsável pela editora paulista Patuá, responsável pela edição deste
livro..
acalmasse no lançamento sentaríamos para conversar melhor. Minutos depois foi a
vez de Charles Marlon, ele estava completamente eufórico com a presença de Alcides
no lançamento. Disse-me que era fã de Alcides, herança que veio do seu pai, que
adorava o disco Tempo de Fratura. Imaginava naquele momento que o cantor já
estava morto. Nascia ali uma amizade entre os dois, que hoje se materializa
exatamente neste livro.

2. Alcides Neves: um perfil musical


Naquele mesmo dia do meu lançamento fiz uma pequena entrevista gravada com
Alcides Neves. O depoimento durou apenas 30 minutos, o suficiente para
compreender a simplicidade, a sofisticação, a timidez, a genialidade de um homem,
infelizmente, pouco conhecido do grande público. Compreendo que seu Tempo de
Fratura deveria estar no rol dos grandes discos da música brasileira. Penso que este
livro, misto de homenagem e ressignificação de uma obra, organizado por Charles
Marlon, é uma tentativa de colocar a musicalidade de Alcides Neves no lugar que ele
merece.
Durante a entrevista Alcides Neves revelou ter nascido em 9 de junho de 1947, na
cidade de Maurity, Ceará, porém com seis meses de idade foi morar na cidade de
Bonito de Santa Fé, Paraíba, onde fez os primeiros estudos. Filho do comerciante
José Timóteo das Neves e Alzira Carvalho de Lima, sua família paterna era de
músicos, com destaque para o seu primo de segundo graus, José Neves, que tocava 15
instrumentos diferentes e chegou a regente da banda de música da polícia do estado
da Paraíba.10
No estado da Paraíba, além de Bonito de Santa Fé, Alcides Neves residiu nas
cidades de Cajazeiras nos anos 1950, além de Campina Grande e João Pessoa, nos
anos 1960. Dessas cidades, destaque maior para Campina Grande, pois em sua
adolescência tomou conhecimento com o universo cultural da cidade, fazendo parte
de uma rica geração de jovens artistas.
No final da década de 1960, começou a amadurecer suas composições
participando de festivais em cidades nordestinas. Uma de suas primeiras incursões
nesse período foi sua participação em um festival em João Pessoa, quando sua
música O Trem, presente depois em Tempo de Fratura, cantada por Francisco
Mendonça, foi acompanhado pelo conjunto de Ogírio Cavalcante11, sendo classificada
para a final. Entre os jurados estava o poeta e maestro Marcus Vinícius12, que seria
um dos expoentes da música nordestina na década de 1970.

10
Em depoimento Alcides Neves ainda destaca no campo da música três irmãos, Cezário do Ceará, que chegou a
lançou dois LP’s independentes chamados “Sanfona, Feira e Viola” e “Brilho do Olhar”; Val Motta, também autora
do LP “Paixão ardente” e Ik Carvalho, que gravou o CD “Linha de ferro”. Ambos são artistas residentes no Recife..
11
O conjunto de baile Ogírio Cavalcanti foi criado pelo músico de mesmo nome, que fez muito sucesso no
Nordeste entre as décadas de 1960 a 1990. A peculiaridade do grupo eram a qualidade dos instrumentistas.
12
Marcus Vinícius (1949-), cantor, compositor e produtor musical pernambucano. Criado entre João Pessoa e Recife,
venceu alguns festivais de música, migrando para o Rio de Janeiro e depois São Paulo. Nesta primeira formou-se no
curso superior de música no Instituto Villa-Lobos, onde passou a lecionar. . Gravou dois discos bem recepcionados
na época: Dedalus (1974) e Trem dos Condenados (1976). Produziu o primeiro disco de Belchior, também em 1974.
Nessa mesma época, Alcides Neves interpretaria, além de suas primeiras canções
autorais, músicas de Marcus Vinícius, em um espetáculo musical e teatral chamado
“Pindorama Idolatrina salve salve”, concebido pelos jovens artistas Carlos Aranha13,
José Nêumanne Pinto, Iremar Maciel de Brito14, - estes últimos membros do Grupo
Levante15, em Campina Grande, com textos e canções que questionavam o poder
estabelecido pelos militares. A encenação ocorreu no auditório da Faculdade de
Agronomia, na cidade histórica de Areia, brejo paraibano, e provocou reação do
público, que saiu no meio do espetáculo.
Nessa época, ainda em Campina Grande, Alcides Neves tomou conhecimento dos
trabalhos da vanguarda musical europeia e brasileira, com nomes como Pierre
Boulez16 e Arnold Schönberg17, além do brasileiro Marlos Nobre18, bem como das
vanguardas literárias: movimentos da poesia concreta e da poesia-práxis19, por
exemplo.
Em 1969, Alcides Neves veio pela primeira vez a São Paulo, morando depois em
Manaus e no Rio de Janeiro. Na capital amazonense, entre os anos de 1969 a 1973,
no Instituto de Música da Fundação Universidade do Amazonas, desenvolveu ainda
mais sua aptidão musical. Formou-se em Medicina, na Fundação Universidade do
Amazonas, com internato na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em janeiro de
1975, Alcides Neves desembarcava definitivamente em São Paulo. Com amizades
antigas na capital paulista, ele foi socializando com o quadro artístico e cultural da
cidade, principalmente com os nordestinos ali atuantes. Dessa época, o cantor
lembra bem o papel do jornalista José Nêumanne Pinto no processo de

13
Carlos Aranha - jornalista e poeta paraibano. Nos anos 1960 e 1970 tornou-se um dos principais nomes da
vanguarda artística paraibana, aproximando-se dos expoentes do tropicalismo e do cinema novo. Atua até hoje na
imprensa paraibana como colunista na área cultural.
14
Iremar Maciel de Brito – Professor e dramaturgo. Natural de Campina Grande (PB), vive no Rio de Janeiro desde
1969. É doutor em Letras pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor adjunto de Literatura Portuguesa
do Instituto de Letras da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e da Escola de Teatro da UNIRIO.
15
Grupo Levante foi um grupo de jovens artistas, que atuaram por pouco tempo em Campina Grande e região no
final da década de 1960.
16
Pierre Boulez (1925-2016) foi um maestro, pedagogo musical, ensaísta e compositor francês de música
erudita. Foi uma personalidade influente no cenário musical e intelectual francês contemporâneo.
17
Arnold Franz Walter Schönberg foi um compositor austríaco de música erudita e criador do dodecafonismo, um
dos mais revolucionários e influentes estilos de composição do século XX.
18
Marlos Nobre de Almeida (1939-) é um pianista, maestro e compositor brasileiro. Natural do Recife (PE) é
um dos músicos mais inovadores.
19
A partir dos anos 1950 a poesia brasileira passa por transformações, com jovens grupos de vanguarda que
procuraram modificar o fazer poético. O concretismo surgiu em São Paulo em 1952, através de Augusto e Haroldo
de Campos, juntamente com Décio Pignatari, através da revista Noigandres. A poesia-práxis foi um movimento
liderado por Mário Chamie, que a partir de 1961 começou a adotar a palavra como organismo vivo gerador de novos
organismos vivos, ou seja, de novas palavras. 
descobrimento da paulicéia, bem como o de Marcus Vinícius, que segundo o artista o
ajudou a desmistificar São Paulo.
Os anos 1970 é a década do crescimento da indústria fonográfica no Brasil, com
uma forte concentração de gravadoras no Rio de Janeiro e São Paulo, porém com
uma política cada vez mais restrita de absorção de novos artistas. Alcides Neves
procurou algumas dessas gravadoras, porém não obteve êxito em uma possível
gravação. Enquanto isso, no Rio de Janeiro, o músico Antônio Adolfo20, em 1977,
lançou de forma independente o LP Feito em Casa. O disco foi bem sucedido
comercialmente, vendendo cerca de 10 mil cópias, tornando-se um marco na música
independente brasileira. 21
Alcides, então, se inspirando no modus operandi de Antônio Adolfo, começou nos
anos finais da década de 1970 a idealizar o seu disco, Tempo de Fratura.
O disco foi gravado em oito canais no estúdio Sonima, localizado à Avenida Rio
Branco, centro de São Paulo. Para gravação, Alcides Neves convidou um grupo de
amigos: Wilson Cortês, no baixo; Armando Tibério Jr., na percussão; Ik Carvalho,
seu próprio irmão, no violão de doze cordas e no cavaquinho e Milton Calvoso, no sax
alto e flauta transversal22.
Tempo de Fratura é constituído por onze canções. São elas: Tempo de
fratura, Desencontro das águas, Lampião, hibernante in tempore, Tango, Banquete
na casa de pedra, O trem, Urubuzalê, Aventuras de um luso-tropical, Los invasores
e Desen(fado). Na contracapa do disco, uma espécie de síntese desse projeto: “Se
algum mérito tiver esse LP, é o de se achar inteiro na sua disformidade, tendo sido
totalmente planejado sem interferências externas”.
A censura vetou trechos de uma das onze canções do disco, Urubuzalê, música
de Alcides Neves e letra de Arnaldo Xavier. No órgão censor, o responsável vetou o
último verso da letra que dizia: “na mira de um país cabe um fuzilelê”, ficando “na
20
Antônio Adolfo (1947-), músico carioca. Ficou mais conhecido no Brasil em 1977 justamente quando lançou de
forma independente o disco Feito em Casa, pelo selo Artezanal. A partir de 1985 dedicou-se a sua escola de música
e na publicação de seus livros dedicados ao mesmo tema. Lançou outros diversos discos durante sua carreira.
21
Criadas entre os anos de 1976 a 1976, segundo o pesquisador Bento Araújo, em seu livro Lindo Sonho Delirante, o
músico Antônio Adolfo atravessava uma fase muito tranquila de sua carreira. Depois de uma temporada na França,
o compositor voltou ao Rio de Janeiro trabalhando com artistas como Danilo Caymmi, Joyce e Jamil Joanes. Nas
palavras do pesquisador sobre a concepção do disco em si: “O astral das gravações foi tão bom que Antônio Adolfo
nem se intimidou quando nenhuma gravadora se interessou em lançar o material. Num ato visionário, decidiu cuidar
de todas as etapas que envolviam o lançamento de um LP (...).” (p.54)
22
Na ficha técnica temos ainda: Alcides Neves, na direção de produção, arranjos, violão acústico e mixagem; Ivo
Marques, na flauta doce; Luiz Augusto, conhecido como Lu, no trombone; Ilka Meinberg, no piano acústico, piano
elétrico, moog e órgão; Homero, também no piano acústico e elétrico; Júlio Vicente, no acordeom; Luiz Eduardo,
conhecido como Viana, na bateria.
mira de um fuzil vai urubulelê”. O argumento do censor, segundo o próprio Alcides
Neves, em entrevista ao Jornal da Tarde, de São Paulo, é que a música não estava
em conformidade com os costumes e tradições brasileiras. Na mesma reportagem,
Neves afirmou que a retirada do trecho não comprometeu o conceito e qualidade do
disco: “Tempo de Fratura é, de qualquer forma, um marco em minha vida. Foi feito
com muito suor e cerveja, e com auxílio de Deus, que é brasileiro”.
A capa expressa bem a simbologia máxima do disco, contendo elementos
modernos e arcaicos, a urbanidade de São Paulo, o teor notadamente
subdesenvolvido, anunciado, por exemplo, em sua simplicidade estética, no traço da
fonte do título do disco, bem como no nome do autor. As fontes utilizadas tanto no
título, quanto na apresentação do nome do autor, são semelhantes a uma espécie de
pichação, com as letras imperfeitas e grosseiramente colocadas, fixadas. Somado à
espontaneidade da foto do próprio autor, camisa aberta, magreza visível, trocando
passos, passando sob um viaduto movimentado na capital paulista, em direção à
Avenida Paulista. Na base, o desenho de homem, com olhos profundos, segurando o
spray em uma mão e em outra o cartaz com o nome do autor, Alcides Neves.

Capa do disco Tempo de Fratura, 1979.


Tempo de Fratura, além de sua intensa e inventiva sonoridade, chama
atenção por sua construção poética. Metáforas bem edificadas, em conformidade
com uma moderna poesia brasileira e internacional, em sintonia, por exemplo, com o
concretismo e a poesia-práxis. Da primeira à última canção, as letras são densas,
sintéticas, algumas vezes irônicas e de alto grau simbólico em suas estruturas,
chamando atenção, ainda, sua visualidade, na qual o corte nos versos conecta-se
muito bem com os jogos sonoros.
As onze canções possuem uma mesma espinha dorsal conceitual, que se
desdobram em cortes, flashes e pedaços subsequentes à primeira canção, que dá
título ao disco. O tema da fratura é a metáfora máxima, seja de um rio que estraçalha
e congela a dor, deixando os ossos à mostra; de uma cidade que tritura o trabalhador
por suas imposições; da quebra de um sujeito ou país. Em outras palavras, figura-se
o indivíduo em sua vivência psíquica interior fraturada ou uma espécie de
inconsciente coletivo, relacionados ao Brasil como palco de experiências repressoras.

Os dois lados do vinil Tempo de Fratura.

Um exemplo é a canção Desencontro das águas, parceria de Alcides Neves


com Arnaldo Xavier, quando evidencia com grande qualidade a experiência urbana
como traumática. A cidade de São Paulo que não passa de um dormitório, que se
torna “uma cilada, cemitério”, para seus habitantes, que com seus gritos magros do
terceiro mundo, com seus pratos rasos e fundos acabam por desaguarem
metaforicamente nas águas da cidade locomotiva.
Para o pesquisador Bento Araújo, o músico Alcides Neves é um dos artistas
mais inclassificáveis da sua geração. Visto que na época em que lançou Tempo de
Fratura e depois (Des)trambelhar ou não tentaram "colocá-lo no balaio da
Vanguarda Paulistana, ou do Pessoal do Ceará, mas ele não se encaixa em
movimentos musicais estabelecidos, muito menos rótulos” (p.198). O mesmo
pesquisador faz uma indagação consistente: “Talvez a associação mais próxima seja
um Walter Franco, ou não” (idem).

Contracapa do disco Tempo de Fratura.

Acredito que a interrogação de Bento Araújo de certa forma condiz. Assim


como Walter Franco23, cabe em Alcides Neves a alcunha de inventivo, rebelde,
experimental, até certo ponto maldito, pois a sua incursão na música estava longe na
década de 1970 e hoje ainda mais longe dos pressupostos da indústria fonográfica.
Tempo de Fratura foi o segundo LP independente da safra paulistana, antecedido
apenas pelo Grupo Um (marcha sobre a Cidade)24. Produzido no final de 1979, ano

23
Walter Franco (1945 — 2019) foi um cantor e compositor paulista. Alguns dos seus principais discos foram:
Ou não (1973), Revolver (1975) e Respire Fundo (1978). É considerado um dos mais inventivos músicos
brasileiros de sua época.
24
Grupo Um foi um grupo brasileiro de música instrumental, criado pelos irmãos Lelo Nazário e Zé Eduardo
Nazário em 1976, quando faziam parte da seção rítmica dos músicos que tocavam com Hermeto Pascoal.
Desenvolveram um trabalho com identidade própria, bem diferente da concepção de Hermeto, que se permitia
influenciar pela música eletrônica e pela música eletroacústica.
simbólico, quando do início do processo de redemocratização25, foi lançado no
famoso Lira Paulistana26, em 1980, exatamente no ano do estabelecimento de um
movimento artístico e musical que ficou conhecido como Vanguarda Paulista27.
Tendo como principais nomes Arrigo Barnabé28 e Itamar Assumpção29, em
grupos como Rumo, Premeditando o Breque e o Língua de Trapo, a Vanguarda
Paulista tornou-se reconhecida inclusive pela própria historiografia da música
brasileira. Artistas que possuíam entre suas características o aspecto
teatral-performático, os usos da ironia e letras muitas vezes utilizadas como
instrumentos de denúncia. Desta forma, produzindo música dentro de outro viés, o
que ligava ambos a Alcides Neves é o esquema independente e alternativo de
gravação musical, diante da consolidação de um modelo restrito e concentrado da
indústria musical brasileira, presente desde final da década de 1970, o que reforça
como a produção musical em si em São Paulo, nesse período, era diversa em seus
autores e grupos surgidos.

25
Consideramos simbólico pelo fato que muitos políticos, como também artistas retornaram a convivência com seu
país, além disso, a partir daquele ano houve uma maior liberdade, com a censura sendo pouco a pouco abrochando o
seu poder de controle na produção artística-cultural. Evidentemente que a censura permaneceu, na prática até o final
da década 1980.
26
Teatro Lira Paulistano, fundado em 1979 em um porão, no número 1091 da Rua Teodoro Sampaio, com uma
lotação por volta de 200 desconfortáveis lugares – teve uma importância fundamental no sentido de aglutinar e dar
visibilidade aos músicos independentes de São Paulo. Localizado estrategicamente no bairro de Pinheiros, próximo à
Praça Benedito Calixto, e maio caminho das principais universidades de São Paulo – USP e PUC, o Lira paulistano
funcionou como um centro difundidor da nova cultura universitária que se apresentava na cidade nos fins dos anos
70 e início dos anos 80. Com o sucesso o Lira, como ficou conhecido Se transformou depois em uma gravadora
independente. Os primeiros LP’s de Itamar Assumpção e Língua de Trapo foram lançados pelo Lira Paulistano, o
que levou o Gordo (Wilson Souto Jr.), um dos fundadores e idealizadores do projeto a assinar contrato com a
gravadora Continental. Segundo Laerte Fernandes de Oliveira (2002) o Teatro Lira Paulistano teria tido dois
momentos bem distintos: o auge, entre os anos de 1980 até 1983; e a segunda fase, compreendendo entre os anos de
1984/1985.
27
Segundo José Adriano Fenerick (2007) o termo vanguarda paulista foi uma criação da imprensa de São Paulo no
início da década de 1980, “(...) muito possivelmente imbuída deste espírito vanguardista que vem acompanhando a
cidade algum tempo” (p.17). Para o mesmo pesquisador a expressão nem sempre foi bem recebida pelos músicos, a
exemplo de Arrigo Barnabé.
28
Arrigo Barnabé (1951-) é um músico e compositor paranaense. Foi um dos maiores expoentes da música
alternativa paulista nos anos 1980.
29
 Itamar Assumpção (1949 — 2003) foi um compositor, cantor, instrumentista, arranjador e produtor
musical brasileiro, que se destacou na cena independente e alternativa de São Paulo nos anos 1980 e 1990.
O que fica evidente, no meu entender, é a exclusão de nomes como o próprio
Alcides Neves, dentro de um movimento da música independente em São Paulo
naquele período. A própria memória prioriza nomes em detrimento de outros. O fato
é que maioria dos nomes mais referendados nesse período do que se chamou de
Vanguarda Paulista é justamente, em sua maioria, de paulistas nascidos ou há muito
tempo radicados em São Paulo, de classe média e estudantes da Universidade de São
Paulo, em especial na ECA (Escola de Comunicação e Artes)30. Nordestinos, como
Alcides Neves, mesmo com formação universitária, seu jeito introspectivo, solitário,
produzindo uma música que não se enquadrava em nenhuma estética ou movimento,
fez dele um excluído da memória musical do cenário alternativo de São Paulo,
mesmo se utilizando dos mesmos espaços, como foi o Lira Paulistana e dos mesmos
esquemas alternativos.
O disco Tempo de Fratura teve boa aceitação da crítica especializada da época de
seu lançamento. Recebeu atenção de três dos principais críticos musicais brasileiros
da época: Maurício Kubrusly 31, Tárik de Souza32 e José Ramos Tinhorão33. Nos dois

30
O já citado pesquisador José Adriano Fenerick (2007) evidencia esta questão de formação da maioria dos artistas
ligados ao movimento.
31
Maurício Kubrusly (1945-) é um jornalista carioca. Trabalhou durante 34 anos na Rede Globo de Televisão.
Foi fundador e diretor da revista de música Som Três (1979-1989).
32
Tárik de Souza (1946-) é um jornalista e crítico musical carioca. Desde os anos 1970 especializou-se em
jornalismo cultural, em especial na música.
33
José Carlos Tinhorão (1932-) - jornalista e crítico musical paulista. Autor de diversos livros sobre cultura popular e
música.
últimos casos ambos colocaram Tempo de Fratura como um dos melhores discos do
ano de 1980.
Maurício Kubrusly, em sua pioneira revista Som Três, de setembro de 1980,
afirmou: “Soa um ruído dentro da música brasileira. Bem-vindo ruído... Alcides
oferece uma das respostas possíveis para a descomunal diferença entre a palavra e o
som na música brasileira... Há muito tempo que os “letristas” que atuam na área da
canção, vêm se atualizando, bebendo os coquetéis dos novos poetas eruditos... Na
melodia, ao contrário, a música popular teima em permanecer lá trás... E, de repente,
Tempo de Fratura, mostra que a parte musical também pode se aproximar do
presente...”.
Tárik de Souza, que colocou o disco como destaque entre as produções no ano de
1980, em maio do mesmo ano, no Jornal do Brasil, assim qualifica a obra:
“Incluindo elementos nordestinos/tonais/seriais/atonais, populares e eruditos, outro
disco independente, o do estreante Alcides Neves dinamiza o setor. Não é
simplesmente um LP produzido fora do circuito comercial, mas uma proposta nova
em termos musicais (...).
José Ramos Tinhorão, também no Jornal do Brasil, em abril de 1980, escreveu:
“O LP de Alcides Neves, Tempo de Fratura, (...) surge como uma dupla revelação:
Alcides vem contribuir com inovações não apenas na parte dos poemas (...) mas na
parte da música (...) Alcides Neves tem um lugar garantido no panorama atual da
música popular brasileira, de nível universitário. Uma música que (...) pode ser ao
mesmo tempo regional e universal, sem confundir universal com multinacional”.
O segundo LP de Alcides Neves (Des)trambelhar ou não, de 198334, não teve a
mesma repercussão do primeiro, Tempo de Fratura. Com composições que seguiam
o mesmo caminho inventivo e experimental, o retorno do público e da crítica foi
mínimo. Alcides Neves, entre 1980 e 1985 manteve nos intervalos de sua atividade
como médico psiquiatra, alguns shows. Com o tempo, segundo ele, houve pouca
acolhida, escassearam os convites, os festivais também se tornaram cada vez mais
raros. Alcides Neves foi se distanciando cada vez mais do universo da música. Mesmo
assim, para um grupo pequeno manteve-se firme a sua imagem.

34
O disco foi gravado em 16 canais na gravadora Vice Versa, em São Paulo, localizada Rua Alves Guimarães,
Pinheiros.
3. O FIM E O COMEÇO

Feita esta contextualização necessária, propósito maior deste posfácio, espero


que o leitor possa ter conhecido um pouco da trajetória deste inventivo artista
brasileiro, Alcides Neves, desconhecido do grande público, mas que possui seu grupo
de fãs, como eu, como Charles Marlon, esse que é responsável por esta grande
homenagem, conectando a música com a literatura brasileira contemporânea,
dialogando e expandindo ainda mais os efeitos de significação do “tempo de fratura”
do disco, através de contos e poemas, produzidos por algumas de nossas melhores
vozes deste início de século XXI.
Sobre a coletânea literária em si, organizada pelo poeta e professor Charles
Marlon, podemos observar uma diversidade de olhares a partir das canções que
inspiraram as narrativas e poemas aqui contidos. Enquanto Ademir Demarchi,
Cinthia Krimler, Eduardo Sabino, Letícia Simões e Ronaldo Kirilauskas construíram
contos amparados no imaginário produzido por Alcides Neves; Bruna Miltrano e
Alfredo Porfírio elaboraram poemas, redefinindo a lógica desconstruída do mesmo
cantor e compositor. Somados, temos um mapeamento íntimo causado sobre o
impacto da leitura e audição de “Tempo de Fratura”.
As ideias de fratura são, portanto, ressignificadas, expandidas, através dos
universos múltiplos e o repertório de cada autor desses contos e poemas. Alcides
Neves nasce e renasce em cada verso ou construção de personagem. Enquanto alguns
textos seguem por uma lógica de aproximação ou semelhança, outros tantos
procuram costurar alternativas, tendo as letras das canções como ponto de partida
ou de chegada. O que constitui um verdadeiro caleidoscópio de referências,
prevalecendo aspectos de ironia, inventividade e dissonância, tão presentes na órbita
poética de Alcides Neves, em seu cancioneiro vanguardístico. Transgressão a toda
prova em um livro-homenagem.
4. REFERÊNCIAS

LIVROS

ARAÚJO, Bento. Lindo sonho delirante, volume 1: 100 discos psicodélicos do Brasil
(1968-1975). São Paulo: Poeira Press, 2016.
ARAÚJO, Bento. Lindo sonho delirante, volume 2: 100 discos audaciosos do Brasil
(1976-1985). São Paulo: Poeira Press, 2018.
FENERICK, José Adriano. Façanhas as próprias custas: a produção musical da
vanguarda paulista (1979-2000). São Paulo: Annablume, 2007.
GAUDÊNCIO, Bruno. A cicatriz que canta o incêndio da raiz. Belo Horizonte:
Moinhos, 2018.
OLIVEIRA, Laerte. Em um porão de São Paulo: o Lira Paulistano e a produção
alternativa. São Paulo: Annablume, 2002.
XAVIER, Arnaldo. A Rosa da recuza. São Paulo: Pindaíba, 1982.

DISCOS

NEVES, Alcides. Destrambelhar ou não (LP). São Paulo: Independente, 1983.


NEVES, Alcides. dr. louk’americas (CD). São Paulo: West, 1997.
NEVES, Alcides. Tempo de fratura (LP). São Paulo: Independente, 1979.
NEVES, Alcides. Tempo de fratura (CD). São Paulo: West, s/d.

PERIÓDICOS

KUBISKY, Maurício. Som Três, setembro de 1988.


SOUZA, Tárik de. Jornal do Brasil, maio de 1980.
TINHORÃO, José Ramos. Jornal do Brasil, 12 de abril de 1980.
s/a. Jornal da Tarde, 18 de Abril de 1980.

ENTREVISTA

Alcides Neves, 34 minutos, São Paulo, junho de 2018.

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