Você está na página 1de 3

Questões linguísticas envolvendo gênero,

sexualidade e interação social


Linguagem, gênero, sexualidade: presta um grande serviço à comunidade
acadêmica leitora do português brasileiro e aos
clássicos traduzidos. demais públicos interessados em prol do
fortalecimento dos estudos voltados para a
OSTERMANN, Ana Cristina; FONTANA, construção de um saber humanizador no tocante
Beatriz. à questão da diversidade de gêneros e à questão
da sexualidade no âmbito das interações sociais.
São Paulo: Parábola Editorial, 2010. 166 p. Organizada por Ana Cristina Ostermann, ph.D. em
Linguística (Universidade de Michigan, EUA), e por
Beatriz Fontana, Doutora em Letras (UFRGS, Brasil),
a publicação traz a compilação, competente-
mente traduzida, de artigos acadêmicos escritos
A Declaração Universal dos Direitos por pesquisadores e pesquisadoras estaduniden-
Humanos,1 no seu artigo primeiro, diz que “todos ses e britânicos/as considerados basilares dentro
os seres humanos nascem livres e iguais em do escopo compreendido por gênero, sexua-
dignidade e em direitos” e que, portanto, lidade e interação social, abordado sob o viés
“dotados de razão e de consciência, devem da linguística interacional.
agir uns para com os outros em espírito de fraterni- O capítulo que abre a obra, escrito por
dade”. Partindo do pressuposto, elaborado pelo Ostermann e Fontana, auxilia leitores e leitoras a
filósofo alemão Immanuel Kant, de que o ser se situarem em relação às pesquisas voltadas para
humano é, primordialmente, fruto daquilo que as questões interacionais envolvendo homens e
a educação faz dele, é plausível pensar que a mulheres e realizadas no espaço temporal que
construção de uma sociedade livre, fraterna e compreende as décadas de 1970, 1980 e 1990.
igualitária passa pelo acesso ao conhecimento. Conforme esclarecem as organizadoras, a
É sabido, contudo, que não todo e qualquer coletânea oferece para o público leitor estudos
tipo de conhecimento se põe a serviço do de diferentes perspectivas que marcaram a
respeito à diversidade em amplo aspecto como trajetória da sociolinguística dedicada à
fator preponderante para a humanização das investigação das interações dessa ordem.
relações sociais de modo a assegurar o convívio Os artigos estão dispostos em uma
livre, fraterno e igualitário entre as pessoas. sequência cronológica que se inicia com os textos
Se o conhecimento é a chave para o escritos dentro das perspectivas teóricas de déficit,
entendimento e o aprimoramento das relações dominância e diferença que orientaram os estudos
sociais dos seres de natureza humana, indepen- relacionados a linguagem, gênero e sexualidade
dentemente de raça, etnia, credo, opinião até o final dos anos 1980 e início dos anos 1990 e
política, orientação sexual etc., toda obra que termina com os textos escritos a partir da década
contribua para a construção do saber nesse de 1990, que, por outro lado, são guiados pela
sentido é digna de elogio. O livro Linguagem, perspectiva da diversidade. Estes, segundo
gênero, sexualidade: clássicos traduzidos, Ostermann e Fontana, se apresentam como uma
sendo assim, merece ser celebrado. A obra “contestação às relações essencialistas entre

294 Estudos Feministas, Florianópolis, 19(1): 283-300, janeiro-abril/2011


linguagem e gênero social defendidas pelas Escrito por Deborah Tannen no início da
abordagens anteriores” (p. 10). década de 1990, o artigo “Quem está
“Linguagem e lugar da mulher”, escrito por interrompendo? Questões de dominação e
Robin Lakoff (1973) e traduzido por Adriana Braga controle”, traduzido por Débora de Carvalho
e Édison Luis Gastaldo, inaugura a leitura proposta. Figueiredo, é uma crítica aos trabalhos anteriores
Marco referencial na área, a obra de Lakoff ainda que olham para o fenômeno da interrupção sem
hoje serve de fonte de inspiração para levar em conta o contexto em que ele acontece.
pesquisadores e pesquisadoras que desejam Em seu texto, Tannen argumenta que as pessoas
avançar nos estudos que problematizam as possuem estilos conversacionais diferentes e que
relações homem/mulher sob o viés linguístico. No as rusgas interacionais se dão, em parte, em razão
extrato escolhido para compor o livro, Lakoff da diferença cultural na maneira de interagir
defende, entre outras coisas, que “às mulheres é existente entre os/as participantes. Tannen separa
sistematicamente negado acesso ao poder” (p. os estilos conversacionais dos/as participantes em
17) por conta da (má) educação linguística a dois tipos: o estilo de fala cooperativa, que,
elas passada desde a infância e pela qual elas segundo a autora, seria a fala típica das mulheres,
são chamadas a responder na idade adulta, sob e o estilo de fala relato, mais propensa a
pena de serem excluídas das discussões caracterizar a fala dos homens. Essa maneira
importantes da vida pública ou do trabalho. Desse diferente de falar própria de cada sexo seria uma
modo, a fala da mulher, segundo Lakoff, seria das razões pelas quais os homens são percebidos
deficitária para os propósitos conversacionais ‘que como interruptores da fala feminina. Mais do que
importam’, vistos sob uma perspectiva masculina. investigar o fenômeno da interrupção de forma
Diferentes do trabalho de Lakoff, “O trabalho descontextualizada, Tannen diz que é preciso olhar
que as mulheres realizam nas interações”, escrito para aquilo que os/as interagentes “estão
por Pamela Fishman (1978) e traduzido por Viviane tentando fazer ao falarem uns com os outros” (p.
M. Heberle, e “Pequenos insultos: estudo sobre 74) antes de afirmar que toda interrupção é sinal
interrupções em conversas entre pessoas de uma tentativa de dominação conversacional.
desconhecidas e de diferentes sexos”, escrito por Em oposição aos estudos que apresentam
Candance West e Don H. Zimmerman (1987) e uma divisão binária para descrever as
traduzido por Ana C. Ostermann e Mariléia Sell, implicações da relação gênero e interação
são artigos que procuram evidenciar a dominância social, o artigo “Comunidades de práticas: lugar
da fala masculina em eventos que envolvem onde co-habitam gênero e poder”, escrito por
interações entre homens e mulheres. A pesquisa Penélope Eckert e Sally MacConnell-Ginet (1992)
de Fishman, baseada em análise feita sobre e traduzido por Branca Falabella Fabricio, oferece
interações entre parceiros heterossexuais íntimos, uma nova perspectiva para pesquisadores e
aponta como fator de empoderamento pesquisadoras que pretendem escrutinar tal
masculino o uso de algumas estratégias relação de modo não essencialista. Eckert e
conversacionais feito pelas mulheres no sentido MacConnell-Ginet propõem um olhar holístico
de oferecer suporte à fala dos homens. A autora sobre as pessoas e suas atividades dentro das
defende que enquanto os homens, geralmente, várias comunidades de prática2 às quais elas
selecionam o assunto a ser discutido e tendem a pertencem como arcabouço para a investiga-
não prover material interacional de forma a dar ção das possíveis implicações existentes na
sustentabilidade aos assuntos propostos pelas relação gênero e interação social. As autoras
mulheres, elas, por sua vez, “fazem um trabalho de entendem que a identidade de gênero é um
apoio enquanto os homens estão falando e “valor simbólico da forma linguística que está
geralmente trabalham ativamente para a sendo constante e mutuamente construído” (p.
manutenção e continuação da conversa” (p. 45). 105) e, portanto, não deve ser abstraído das
Fishman também pondera que as mulheres práticas sociais e transformado em um objeto
tendem a utilizar estratégias interacionais estanque de estudo. As autoras asseveram ser
observadas nas falas das crianças para conseguir preciso “pensar praticamente e observar
atenção dos homens e “garantir a interação e localmente” (p. 96) para entender como as
também os direitos diferenciais dos participantes” pessoas performatizam gênero, além de outros
(p. 39). A pesquisa de West e Zimmerman, por valores, tais como categorias sociais, relações
outro lado, enfatiza a interrupção feita pelos de classe e raça, nas diversas comunidades de
homens às falas das mulheres como razão práticas pelas quais transitam. O entendimento
preponderante para o domínio masculino nas de gênero como performatização através da
conversas entre casais. interação social foi, na verdade, introduzido por

Estudos Feministas, Florianópolis, 19(1): 283-300, janeiro-abril/2011 295


Judith Butler, cujo pensamento, aliás, é o fio realizado através da linguagem que é responsável
condutor que agrupa esse e os dois últimos artigos pela “constituição de pessoas enquanto sujeitos
da coleção sob um mesmo guarda-chuva. generificados” (p. 144).
O mote sexualidade constante no título do Ao disponibilizar aos leitores e às leitoras do
livro é discutido no artigo “É uma menina!: a volta português brasileiro uma coletânea de textos que
da performatividade à lingüística”, escrito por podem ser utilizados para amparar as reflexões
Anna Lívia e Kira Hall e traduzido por Robrigo Borba que levam em conta a construção do gênero e
e Cristiane Maria Schnack. Lívia e Hall avançam da sexualidade através da fala em interação, a
na problematização das questões de gênero na obra se torna indispensável para os/as profissionais,
medida em que discutem a teoria queer, que estudantes e interessados/as no assunto. Lingua-
propõe “o estudo da linguagem com base nas gem, gênero, sexualidade: clássicos traduzidos
perspectivas combinadas de gênero e sexuali- é, sem dúvida, uma publicação que agrega um
dade, considerados como categorias separa- saber em prol do alargamento das fronteiras do
das, mas intrinsecamente ligadas” (p. 113). Tida conhecimento, ao mesmo tempo, humano e
como a “volta à performatividade”, a teoria humanizador, o que, em última instância, auxilia
queer, portanto, se distancia dos modelos a fundamentação de uma sociedade mais livre,
essencialistas abordados pelas perspectivas de fraterna e igualitária.
déficit, dominância e diferença e se aproxima Notas
da perspectiva da diversidade por considerar que 1
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1993.
os estudos preocupados em debater gênero e 2
Jean LAVE e Etienne WENGER, 1991.
sexualidade à luz da linguística devem levar em
conta outros parâmetros sociais em suas investi- Referências bibliográficas
gações e devem entender “gênero como um LAVE, Jean; WENGER, Etienne. Situated Learning.
processo ao invés de um estado” (p. 127). New York: Cambridge University Press, 1991.
Na mesma linha de pensamento está o ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. “Declaração
artigo “Desempenhando identidade de gênero: Final e Plano de Ação”. In: CONFERÊNCIA
conversa entre rapazes e construção da masculi- MUNDIAL SOBRE OS DIREITOS HUMANOS, 1993,
nidade heterossexual”, escrito por Deborah Viena.
Cameron e traduzido por Beatriz Fontana. Ao
analisar a conversa entre um grupo de amigos
heterossexuais, Cameron defende a existência Daniela Negraes Pinheiro Andrade
de um “trabalho performativo de gênero” Universidade do Vale do Rio dos Sinos

296 Estudos Feministas, Florianópolis, 19(1): 283-300, janeiro-abril/2011

Você também pode gostar