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Índice
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Prefácio.................................................................................................................................................................................... 11
em parte, por qualquer processo mecânico, fotográfico, eletrónico, ou por meio
de gravação, nem ser introduzido numa base de dados, difundido ou de qual-
Crítica da Razão Clínica (tempo e Espiritualidade, medicinas, psicanálise e Alquimia)...... 14
quer forma copiado para uso público ou privado - além do uso legal como breve
citação em artigos e críticas - sem prévia autorização do editor. Médicos, enfermeiros e afins: poder e capitalismo................................................................................... 33

Enfermagem de Reabilitação e Fisioterapia: percepção de uma ameaça................................... 37

A triagem dos enfermeiros nas urgências hospitalares.......................................................................... 42

Sobre a crise (e emergência) da Fisioterapia em Portugal.................................................................... 44

Manifesto sobre a emergência de uma Fisioterapia pós-moderna................................................ 50

Fisioterapia “baseada na Evidência” ou “centrada no Raciocínio Clínico”?................................. 80

Sobre a des(importância) da Educação Física no ensino secundário............................................. 83

Homossexualidade e psicanálise: doença ou dogmatismo?................................................................ 86

O Paraíso (perdido) da modernidade.................................................................................................................. 91

O lugar da fé nos ritos e na Espiritualidade: o exemplo natalício.................................................... 95

Nietzsche e a psicologia do Super-Homem..................................................................................................... 99

Corpo de Lúcifer, paixão de Sophia (fragmentos e aforismos)......................................................... 103

Título: “A Clínica do Sagrado - Medicina e Fisioterapias, Psicanálise e Espiritualidade”


Autor: Luís Coelho
Capa e Paginação: Patrícia Gil
Impressão: xxx
ISBN: xxx
Depósito Legal nº:
1ª Edição: xxx 2014

EDIÇÕES MAHATMA
Tlm: 967319952
edicoesmahatma@mail.com
www.edicoes-mahatma.com
Luís Coelho A Clínica do Sagrado

Dedicado aos meus pais, «Antes da linguagem era a infância stricto sensu (a infantia, o não-falante)»
em particular à minha mãe,
que continua a encantar-se com Homero, «O originário fala em cada um por preterição. Isto é, sobretudo quando ele se cala»
os pilares míticos da Vida,
e a "aurora de róseos dedos". «Aquele que se ama está a meio caminho do fantasma»

«O que é a felicidade? Uma admiração que diz a si mesma adeus»

«A inconsistência de tudo funde-se ao adeus no centro de cada um de nós e então


Mãe, tu és a Origem nasce uma dúvida generalizada e inebriante de uma alegria estranha»
A força jamais esgotada
O fluxo e refluxo de um rio perpetuado «Um verdadeiro homem não se reconhece na sua imagem»
que é já o oceano de todas as madrugadas
Pascal Quignard («Vida Secreta»)
A tua dor é o dia negro
em que o sol jaz vencido pela ilusão
como a luz encoberta pela saudade
e a tragédia convertida em irrisão

A tua vida é o dia claro


em que a lua se expõe às noites brancas
como a luz encoberta pelo sonho
e a tragédia convertida em odisseia

Aos teus olhos de louvor divino


todos os caminhos mergulham no oculto
todos os trilhos prometem liberdade
como a Verdade do ocaso
na perdição de um bosque repleto de Outono.

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Luís Coelho A Clínica do Sagrado

«"Realmente", pensou o conde, "esta cabeça alia a extrema bondade à expressão de O Princípio
uma certa alegria ingénua e terna que é irresistível. Parece dizer: só o amor e a feli-
cidade que ele traz consigo são de importância neste mundo. E, no entanto, quando
(Na noite cósmica do ser)
chegamos a qualquer pormenor em que seja necessária clarividência, o seu olhar
desperta e maravilha-nos, e fica-se confuso. Encontrarás no fundo ígneo da tua sensaboria,
"Tudo é simples aos seus olhos porque tudo é visto do alto. Deus do Céu, como com- Aquele momento de redenção,
bater um inimigo destes? E, contas feitas, que é a vida sem o amor de Gina? Com que Ilusão, quiçá, mas a tez esperada da ousadia,
enlevo parece ela ouvir as deliciosas subtilezas deste espírito tão jovem e que, para Aquele momento em que a paz cansará,
uma mulher, deve parecer único no mundo!" E todos os mares se crisparão no teu núcleo,
Uma ideia atroz se apoderou do conde como um pesadelo: "Apunhalá-lo ali mesmo, Como quem procura a dúvida,
diante dela, e matar-me em seguida"». Para logo a seguir a querer ceifar,
Como quem busca vias intranquilas,
E já não chegue somente amar,
Stendhal («A Cartuxa de Parma») Aquele momento que principiará
A ser em ti o Ser jamais esquecido,
O Deus tornado Homem de mil suspeitas,
Derisão do mundo de pólos contrafeitos,
Ovo cósmico perdido na dúvida do regresso,
Odisseia que promete o infinito
Da busca própria,
O desconforto procrastinado,
O pensamento eternizado
Nesse ruminar de demónios irreconhecidos.

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Luís Coelho A Clínica do Sagrado

Prefácio
Em 2014, terá decorrido uma década desde que comecei a publicar de modo
mais sério. Primeiramente, artigos científicos, depois artigos mais acessíveis so-
bre problemáticas clínicas e fisioterapêuticas, assim como sobre as diferentes In-
dústrias do Corpo, incluindo o Fitness e o Wellness, relativamente aos quais ten-
tei manter uma postura de contraposição à moda, essa tendência para se reificar
a urgência de um corpo hegemónico em que um certo poder "estético" serôdio
quer afirmar-se totipotentemente. Nesta primeira fase do meu trabalho, come-
çava já a esboçar uma tendência para querer antepor-me à perspectiva de uma
Personna enquanto constructo sociolinguístico de uma cultura em que a doutri-
nação parece querer impor-se à verdadeira e "nua" Sabedoria. Perante a amea-
ça de imposição do "homo faber", o meu paradigma reeducativo de Fisioterapia
urgia já como resposta "alternativa", coisa que não terá sido plenamente com-
preendida pela esmagadora maioria dos clínicos e terapeutas.
De algum modo, também a Espiritualidade constitui a resposta "inibitória"
ao corpo hegemónico, ao nível mais carnal, saturnino e escatológico em que se
encontra actualmente o ser humano, o que não pode fazer admirar o facto de
me ter interessado pelo tema, nas suas diversas manifestações estético-esoté-
rico-religiosas.
Não obstante, a minha atracção e identificação com o terreno racional (noéti-
co) da Espiritualidade é mais o resultado lógico de um longo caminho de rumi-
nação psico-filosófica, sendo que o meu encontro com o Esoterismo foi, desde o
início, sentido como uma verdadeira actividade de anamnese ou reminiscência
platónica, um pouco como se aquilo que lia e ouvia fosse somente a confirma-
ção (e a desindividualização) do que em mim já tinha sido cristalizado.
E é assim que uma segunda fase do meu trabalho aparece mais cunhada com
livros relativos ao Universo que sempre me fascinou - a Filosofia - adaptada
recentemente aos condimentos da Espiritualidade profunda, e livremente in-
fluenciada pelos condimentos que atenho como obrigatórios à compreensão e
fascinação da realidade: literatura, arte, cinema, música, entre outros.
Com uma certa liberdade estética tenho tentado partilhar o meu mundo, as-
sim como a riqueza do mundo de Sophia, a paixão que a Filosofia e a arte têm
testemunhado na minha relação com a Vida. Não obstante, visto ser a Reali-

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dade complexa - leia-se, sobretudo, a realidade interna - não poderia a minha tinta quando nós próprios nos tornarmos luz.
obra ser assim tão isomórfica e "partidária" quanto o que muitos desejariam. Por fim, deixo um agradecimento especial a todos quantos têm tido a pa-
E é nesse contexto que os meus livros vão reificando visões diversas, real ou ciência de acompanhar o meu curso. Muitos saberão que nem sempre é fácil
aparentemente contraditórias, um pouco à semelhança da própria vida e da conviver comigo, que, por vezes, substituo os sentimentos pela urgência da Ra-
dualidade dialéctica que esta encerra. zão, mas esse é, sempre foi e sempre será o defeito do homem que atravessa
Assim, exprimindo a dualidade da minha própria vida - o confronto constante o deserto.
entre o Espírito e a matéria, o Masculino e o feminino, o Bem e o mal - os meus
últimos livros pareceram reificar no mínimo duas possibilidades de represen-
tação da Verdade: a Espiritualista e a materialista; mas tal aconteceu com uma
certa ponderação por um dos vértices. Ora, visto que no meu último livro as-
sumi um formato um pouco mais luciferino, para além de ter deixado ainda
algumas pontas soltas, nesta obra acuso uma nova ponderação Ética, coisa que
considero impreterível, ainda mais tendo em conta a tendência já "demasiada-
mente saturnina", senão verdadeiramente mefistofélica, do mundo hodierno.
Mas a dualidade mantém-se, e, neste livro, tento mesmo criar algum tipo de
mesclagem reflexiva, principalmente nos aforismos, os quais, a certa altura, re-
ceberam alguma inspiração da obra «Vida Secreta» de Pascal Quignard.
Este meu livro promete, igualmente, ser o elo final que permitirá unir as di-
ferentes peças do puzzle do que venho publicando desde o tempo de «O An-
ti-fitness (...)» (2008), é a obra que permite unir, integrar, fazer a "gestalt" dos
diferentes aspectos da minha mensagem, no ensejo, que considero urgente, de
re-espiritualizar o campo clínico, num esforço de compreender que esse campo,
como todos os outros, constitui um Todo, nesta também urgente necessidade
de "religare" noeticamente as diferentes "posturas" deste nosso caos do mundo
moderno, a manifestação ou concretização escatológica do que é, tem de ser,
na verdade, muito maior, muito mais espiritual, búdico, brahmânico, Divino.
Com esta obra, pretendo, portanto, encerrar uma fase da minha reflexão,
cristalizando e depurando sinteticamente os aspectos que considero mais re-
levantes à minha sensibilidade, à minha necessidade de criar pontes entre a
Filosofia/Psicologia perene e a Filosofia ocidental e Psicologia moderna, assim
como entre o Corpo/psicanálise e o Espírito.
Muitos dos textos aqui incluídos foram já publicados em diversas fontes, mas
nem por isso eles apresentam solução de continuidade entre si. Cabe ao leitor,
como sempre coube aos que me seguem, coser as diferentes peças de um todo,
tentando não escusar o tempo necessário à compreensão de certas aparentes
ambiguidades. A ambiguidade é o caminho necessário à Luz; somente será ex-

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Luís Coelho A Clínica do Sagrado

Crítica da Razão Clínica O tempo, a História e a dialéctica têm o poder de fundear o Homem no eixo
cabalístico dos contrários, numa reprodução incessante de dualidades instá-
(tempo e Espiritualidade, medicinas, veis, e somente a repetição cíclica do Princípio permite renovar a condição ori-

psicanálise e Alquimia) ginária, aquela que, na perspectiva do "bom selvagem" de Rousseau, denuncia
o carácter incondicionadamente benigno de um Homem ainda não traído pela
maldade da temporalidade entrópica. Uma renovação revista na perspectiva
«O fundamento do tempo é a memória» do "in illo tempore" mítico (Mircea Eliade) ou do regresso cíclico à Era de Ouro
Gilles Deleuze indiferenciada, antecipada pela destruição diluviana da Era precedente (cons-
purcada pela soberba do poder de uma cientificidade fausticamente rendida à
«As Luzes que descobriram as liberdades inventaram também as disciplinas» intenção de destruição mefistofélica).
Michel Foucault Este "não tempo" do Princípio reitera a inocência, a liberdade do conforto
de uma vivência despreocupada no Paraíso, portanto uma liberdade um tan-
to animalística, uma pseudoliberdade que requer o tempo para propender o
Atendo o absoluto da Singularidade divina enquanto Totalidade imanifestada caminho próprio de uma liberdade autónoma, trajecto destinado pelo próprio
do que as coisas são no sentido objectivo (para logo deixarem de o ser na perdi- Arché, incluindo a necessidade saudosista de regresso ocasional à estrutura
ção quântica do eterno presente e traduzirem o Nada do eterno movimento, no inicial.
sentido heraclitiano de um repouso permanente), e o reino material arquetípico A regressão indefinidamente perpetrada pelo passado mítico, um pouco dife-
como a Totalidade manifestada do que as coisas são e estão quase a deixar de rente da perspectiva cíclica do Bramanismo/Sanathana Dharma, na qual o "eter-
ser para outra coisa ser, não restam muitas dúvidas de que a temporalidade e a no retorno" está destinado a deixar de o ser para que uma libertação genuína
corrupção dos elementos por ela implicada são pertença do mundo da matéria, no sentido do Divino possa ser ciclicamente alcançada (o que não implica que
desse "inferior" que se inicia logo abaixo do Inefável para quedar luciferinamen- um novo processo involutivo não velha igualmente a ocorrer, mas com a pos-
te no seu nível mais grotesco e saturnino, no quase esquecimento de um reino sibilidade deste "retorno" não o ser verdadeiramente porque a nova involução
dantesco de demónios e fantasmas muitas vezes apelidados de "diabólicos". se dá no ventre de uma escala de evolução espiritual superior à que precedeu
O diabolismo, enquanto coisa que afasta ou desagrega, é menos o afã de um o grande ciclo temporal anterior). O retorno periódico ao conforto dos Deuses,
personagem secularmente demonizado por um certo cristianismo exotérico do Heróis ou Pais consoladores, que implica a diluição da "angústia de separação"
que a qualidade implícita da carnalidade, o tecido inestético das leis da animali- do Homem face a um "Superior" que a Humanidade mítica requereu construir
dade, a espessura própria do ser fenomenológico, do devir corruptor, do atrito porque não conseguiu tolerar a solidão da sua Condição originária.
desolador, enfim, a vestimenta veladora dos falsos absolutos, de um mundo em O tempo Histórico pode ser o que se iniciou há milénios, como também pode
que a relatividade e a incerteza vão sendo alimentadas pela corrente lodosa de ser, reiterando a perspectiva de Michel Foucault, o que se inicia derradeiramen-
uma temporalidade embriagadora. te com o liberalismo, sobretudo no que à "Clínica" diz respeito.
Embriaguês de um tempo que consome a perfeição paradisíaca de um "Prin- O tempo é, assim, o sinónimo da profanação, da secularização, da dessacra-
cípio" arquetípico (Arché), porque a relatividade produz a multiplicação numa lização da Unidade primacial, com esta a ser submetida a um processo de frag-
quase infinidade de acontecimentos, factores ou variáveis. Um tempo que mentação cognitiva, necessária de algum modo ao próprio processo de massifi-
remata o princípio do fim das origens, pondo ciclicamente fim ao sentimento cação secular dos saberes no contexto escolar e até das profissões (agora vistas
vívido do Sagrado, colocando um termo no receptáculo da necessidade do con- numa perspectiva smithiana).
forto mítico. O tempo clássico, na perspectiva de Foucault, antecede o liberalismo, até

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Luís Coelho A Clínica do Sagrado

ao qual o Sagrado se mantinha ainda como força dominante, se bem que há perspectiva Aristotélico-Judaico-Cristã de representação da Realidade, com esta
muitos séculos, senão milénios, que tinha assumido um formato exotérico de escolástica a desempenhar, de algum modo, um mediador de proximidade e
religiosidade popular confortadora e limitadora da liberdade de pensamento adaptabilidade da religião às perspectivas científicas da modernidade. Hegel
(estando a sabedoria profunda e esotérica reservada a uns poucos iniciados ou propõe uma dialéctica do tempo que somente vê o seu "fim" na assunção do
eleitos, e, particularmente desde os tempos medievos, sujeita a um tipo espe- Espírito, nos termos de uma temporalidade "ocidentalizada", e o materialismo
cial de secretismo, que teve a perseguição da cultura eclesiástica oficial enquan- dialéctico vem substantivar a dialéctica mas destronar o idealismo com a pre-
to catalizador). sunção de encontrar a Utopia no "fim da História", mas agora numa perspectiva
Cedendo à tentação de estabelecer marcos históricos, há que reter parti- "adequadamente" profana e materialista (se bem que não positivista). Mesmo o
cularmente o processo epistemológico de separação cognitiva entre Sujeito e relativismo do séc. XIX, nos termos de Schopenhauer e Nietzsche, não é do tipo
Objecto, iniciada com o nascimento da Ciência moderna e reforçada esmaga- "absolutista", mas somente ancora na perspectiva de que todo o Absoluto, todo
doramente pelo Positivismo do séc. XIX, processo que reificará decisivamente a o Espírito, se reduz a uma dinâmica de subjectividade, antecipando, de algum
tragédia da separação dos saberes, incluindo a dessacralização e a desvincula- modo, a obsessão freudiana do séc. XX.
ção Ética de um saber adequadamente "científico". Como se a Ciência/Epistémi No século XX, a assomar à tónica subjectiva da Psicanálise - que propende,
não fosse iniciaticamente todo o Conhecimento dito "racional", em oposição à por um lado, a "relativização" da quimera do Absoluto e, por outro, a proposta
Doxa, matéria opinativa e portanto irredutível ao julgamento da Razão... "determinista" face aos comportamentos -, temos o relativismo "absolutizante"
O irredutível é assim reduzido e dividido pelo fluxo da temporalidade desor- encaminhado pela nova Ciência quântica, que logo é aproveitado pelo Espiri-
ganizadora e relativizadora. Processo relembrado pelo orgulho de uma ciência tualismo para coisificar a proposta libertarista do Homem (nunca se chegando
que tem a fobia de ser confundida com o dogma religioso ou o dogma pagão a demonstrar adequadamente que aquilo que pertence à escala subatómica
que ainda vigorava na medicina do tempo anterior ao liberalismo, esta última pode ter algo a dizer no respeitante à escala do homem, no seu sentido restri-
tantas vezes parodiada nas comédias de Molière. to), num sentido próximo do Idealismo hegeliano e ainda mais próximo do Idea-
A nova ciência exclusivamente materialista assume o protagonismo no sé- lismo Objectivo das antigas Espiritualidades, e quase grosseiramente usurpado
culo de Darwin, retumbando esmagadoramente, ao ponto de até as matérias pelo Pós-modernismo, que vem re-substantivar a aproximação entre Sujeito e
humanas e espirituais se tentarem assumir nos termos do tecido semiológico Objecto, como se tal coisa fosse nova e não incluísse o tecido "cognitivo" do
próprio do positivismo. A Sociologia e a Psicologia nascem enquanto ciências reino milenar das Espiritualidades.
precisamente porque tentam explicar os fenómenos humanos mediante a uti- Não obstante, o Pós-modernismo tem uma relação bastante mais próxima
lização dos instrumentos da Física, e até a matéria espírita - interesse "lúgubre" com o relativismo que o mundo das Espiritualidades, pois se o primeiro conce-
dum século muito marcado pela atracção ocultista - se tenta definir em ter- be a possibilidade de um libertarismo enquanto regra abrangente, negando um
mos essencialmente científico-materialistas. O séc. XIX marca definitivamente pouco a metafísica - coisa que assumirá um aspecto mais radical com o pós-es-
a abertura à obsessão telúrico-individualista, e somente um certo Idealismo e truturalismo e o desconstrucionismo -, o segundo não pretende negar a realida-
algum Romantismo se manterão epistemicamente desligados da obsessão da de literal (ou será um velo?) de um Absoluto meta-humano, reduzindo o relati-
concretude (mas não em termos políticos, com os mesmos a abraçarem algu- vismo ao humano "velado", prisioneiro da caverna da carnalidade, sobretudo se
mas das pretensões "igualitaristas" da revolução liberal, e assumindo uma pers- inquilino de um edifício pouco elevado da escala/escada da Consciência.
pectiva utopista de uma nova Idade de ouro, de uma Sociedade "última" e reno- Ainda assim, munido de uma série de influências bem contemporâneas - para
vada). O idealismo alemão manter-se-á parcialmente a salvo da pretensão do além da ciência quântica e das filosofias idealistas e relativistas, o pós-marxis-
racionalismo científico das Luzes, se bem que a noção de um "fim da História" mo, o subjectivismo, a psicanálise, a ciência cognitiva, entre outras -, o Pós-
enquanto Utopia finalista de um tempo linearmente demarcado o aproxima da modernismo vem marcar a aurora de um ensombramento, que é o da ciência

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realista, positivista, ainda actualmente convencida de que a Realidade externa estratégia de independentização face aos Deuses/Pais. Não entende que a so-
pode ser estudada em independência face ao observador. Podemos dizer que ciedade de consumo, a mundaneidade prazenteira, a overdose de informação,
o Pós-modernismo é, então, uma "reactualização nostálgica das origens" espiri- a quimera tecnológica e a indústria cultural das "massas" exercem a violência
tuais (perdoe-me Mircea Eliade por repetir tanto as suas palavras), e, nesse sen- castradora de um modo semelhável a qualquer outra forma de castração inqui-
tido, é impossível não vislumbrar na Pós-modernidade o ensejo da Nova Era, sitorial. Queixa-se dos tempos do Sagrado e parece não reagir à "normalidade"
daquela que rematará o regresso ao Espírito (resta saber se a Nova Era que se do tempo moderno do Big Brother. Confunde Cânone e Dogma (no bom sen-
aproxima corresponderá a um "simples" retorno à Era mítica, ou se a corrupção tido) com aprisionamento e contenção, permanecendo alienadamente refas-
dos tempos modernos levará à destruição diluviana, com a possibilidade de a telado num mundo em que as Estruturas e os Pilares civilizacionais sofrem a
Nova Era ser também o tempo de uma nova "raça" - isto, claro, segundo a visão humilhação dessa inútil e trôpega juventude pseudo-reaccionária (e isto inclui
teosófica, e não me atrevendo eu a referir tempos concretos). aqueles que padecem da "doença infantil do Comunismo", que, pretendendo-
O "eterno retorno" parece figurar perpetuamente como a Regra da tempora- se livres do sufoco religioso, não se reconhecem nos termos tentaculares da
lidade dialéctica. E isto inclui, sabidamente, a própria História da Filosofia e das prisão ideológica). Um tempo em que, face à ausência do conforto religioso,
Ideias, com um faseamento triplo de "Idades humanas" (que tanto podem ser destruídos (pelo menos aparentemente) os pilares da protecção arquetípica, o
as do Homem civilizacional, como as do homem singular no sentido ontogené- Homem mergulha, mais do que nunca, no jogo de quimeras, ilusões placebe-
tico) em cíclica e constante repetição: (1) a infância, a idade mítica, arquetípi- tárias, feitiços mentais plastificados, dificilmente controvertidos pela força de
ca, em que os Deuses/Pais ainda desempenham o papel de protectores, e em uma Infância (que, de qualquer modo, já não existe, pois já nem os pais ou as
que a religião fortemente exotérica ainda assume a dianteira face à esotérica famílias existem...) ou do divã do psicanalista, quase sempre mais necessitado
e profunda; pode ser o tempo pré-histórico ou até mesmo a arqueologia fou- de terapia do que capaz de propiciar a evolução mental do seu "paciente". (3)
caultiana, a idade clássica anterior à modernidade liberal. Um tempo que não a maturidade (a pós-modernidade), a fase verdadeiramente evolutiva, aquela
exclui as excepções da espiritualidade esotérica para uns tantos eleitos e uma que remete para o arquetípico, mas que propende o avanço para o arquétipo
mística ocidentalizada por meio de uma Grécia assumidamente platónica e de próprio, para o Demiurgo que existe veladamente e em potência no próprio
um Idealismo que será sempre o modelo dominante da História da Filosofia, homem, senão Deus-Homem Ele mesmo enquanto Civilização, Totalidade, Uni-
espiritualidade, arte e literatura ocidentais até que o domínio aristotélico co- dade, Indiferencialidade.
mece a tomar a dianteira. (2) a juventude/adultícia, a idade moderna, científico Ora, revendo a temática do "eterno retorno", vide o número interminável de
-materialista, aquela em que o Homem utiliza o cepticismo científico enquanto vezes em que estas três idades se verificam (e repetem) na História do Homem,
instrumento de assunção de uma fúria libertadora face ao Paraíso agora visto incluindo as fases da vivência helénica: fase homérica (mítica), fase moderna
como castrador (de facto, se a "angústia de separação" da criança é o quesito (transposta, por exemplo, nas obras de Eurípides, marcando uma certa emanci-
dominante do apego ao Arché, a "angústia de castração" do jovem domina no pação face aos deuses míticos) e fase pós-moderna (o helenismo propriamente
(novo) apego ao dogma científico, com este "re-apego" a ser prova de uma falsa dito, a fase fulgurante de uma Alexandria enquanto foco centrípeto das mais
Luz, de um Arché reinventado, igualmente protector, mas agora mais apologéti- ricas culturas, não olvidando os saberes milenares profundos e herméticos).
co de uma nova autonomização que não viu, contudo, a sua realização integral, Veja-se também a própria História da Filosofia, que vive intermitentemente a
senão o perigo da eterna manutenção na compulsão da materialidade). A idade transmutação "paradigmática" do Idealismo em materialismo e este em Idea-
ainda dominante nos tempos em que vivemos, em que o Homem, desconhe- lismo...
cendo o verdadeiro e prístino objecto da Espiritualidade (porque a "doutrina" Esta vivência da temporalidade dualista, em que a Idade Síntese (Esotérica)
oficial insiste somente na visão dessa enquanto sinónimo de religião "mediada", poderá resultar do confronto dialéctico entre uma Idade Tese (Arquetípica) e
exotérica, literalizada, viciosamente cultuada), pressupõe a laicização enquanto uma Idade Antítese (Moderna/Liberal/Materialista) realça particularmente a

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tendência inalienável para a Existência se conceber nos termos de uma odisseia ele é o mundo, de que é livre e indeterminado, de que ele é o responsável único
de perpétuo e inextinguível movimento dinâmico, em que o eterno retorno pa- pela História, responsabilidade rapidamente abandonada para um "outro" (ho-
rece ser quase a regra, incluindo as grandes Idades míticas (desde a Idade de mem ou Deus), no preciso momento em que o peso inexorável de um destino
Ouro à Idade de Ferro), e até, de certo modo, os grandes processos cíclicos, tal escabroso revela acontecimentos históricos dificilmente suportáveis por uma
como vislumbrados pela antiga filosofia da Índia. Uma simples discussão filo- mente arquetipicamente oca (passe-se a incoerência da "insustentável leveza
sófica perpetrada entre dois simples seres poderá ser bem exemplificativa da do ser"...). A lógica do homem tem sido essa: livre para o que consegue fazer
forma como a temporalidade dinâmica de uma instabilidade perpétua ou "não com mérito ou quando as coisas correm bem, determinado para a incapacidade
concordância" poderá originar um mecanismo "ad eternum", sem solução final ou quando as coisas não correm pelo melhor.
e aparente à vista... A irrepetibilidade fenomenológica nutre obviamente a sensação de liberdade
Daí que a própria noção de Idade de Ouro enquanto Utopia do "fim da Histó- necessária a uma não desistência do caminho face ao devir. É ela que possibilita
ria" poderá parecer mera quimera, pois não há mundo Ideal que sempre dure o antes e o depois requeridos à evolução. Por outro lado, a evolução implica o
e que sobreviva à necessidade de mudança ou transposição. Tal como não há reencontro arquetípico, mas este deve ser um "retorno" essencialmente tempo-
existência Utópica que permaneça eternamente incorrupta e imaculada, até rário, de modo a que o "iniciado" possa firmar a aurora da sua libertação. Este
porque é a própria entropia que demanda o desgaste temporal do que parecia "prelúdio" precisará do Outono amadurecido da vida. Requererá a superação
incorruptível. dos condicionamentos que citei nas fases da Primavera (Infância/Era mítica) e
Esta tendência para considerar as coisas incorruptíveis também merece um do Verão (Adultícia/Modernidade materialista), com vista a uma lentificação da
certo esgar ou sorriso. É a própria ilusão (mayávica) da carnalidade que deman- temporalidade, em que a síntese esotérica se aproxima de algum modo da fase
da que as coisas pareçam "obra acabada", objectos do Absoluto (quando é a infantil arquetípica (o que é o mesmo que dizer que a evolução demanda o
própria História que acaba por demonstrar que aquilo que parecia inicialmente regresso à infância, ao útero materno, ao paraíso do "Pater"... para que uma
um Valor incorruptível demonstra ser, mais tarde, um pequeno valor relativo ao "infância própria" possa ser (re)criada).
tempo que somente alguns pretenderam absolutizar movidos por insegurança Este retorno rememora, obviamente, e num tom mais profano, o objecto da
interna - necessidade milenar dominante do espírito em querer ser Espírito - e/ Psicanálise, e também o objecto da Fisioterapia reeducativa (tal como a con-
ou intenções menos benevolentes). Como se o Absoluto pudesse sequer ser cebo, enquanto voz minoritária), com estas a assumirem o aspecto de uma
contemplado pelas nossas mentes relativisticamente determinadas. Como se verdadeira Alquimia transmutadora. Não se pretende, obviamente, que estas
o Divino estivesse ao alcance das mentes humanas, escolar e cognitivamen- terapias forneçam somente um placebo que, ao promover a mitigação do so-
te treinadas para serem "uma coisa e não outra". Como se o pensamento e frimento das "dores de crescimento", mais implica a "não evolução" do que o
a linguagem, que são necessariamente relativos, ousassem sequer reflectir o necessário crescimento espiritual. A Psicanálise tem sido muitas vezes aplicada
Irreflectível e pensar o Impensável, que é como dar coloração ou qualidade ao com o intuito de mitigar o sentimento de culpa face à tentação "teomaníaca"
Inefável, Inqualificável, Inexprimível, à Totalidade imanifestada, ao Nada da Sin- do homem querer melhorar-se de forma ética e redentora. Aí, estaria a assu-
gularidade quântica. mir um papel semelhável ao da religiosidade exotérica, confortadora do sofri-
A dialéctica do "eterno retorno" apela obviamente a um tipo de relativismo mento, com este último a poder constituir-se como a "espada" necessária ao
não comparável à noção de uma certa irrepetibilidade fenomenológica (como no crescimento («Não vim para trazer a paz, mas sim a espada»). Da mesma ma-
"Dasein" de Heidegger), com esta a ser, de algum modo, a regra da existência in- neira, a Fisioterapia e a medicina convencionais são usadas maioritariamente
terior, pensada como tendo um início e um fim definidos, se bem que esta "cons- enquanto estratégias de minoração da dor/sofrimento, como quem pretende
ciência linear" possa ser a norma do íntimo de cada ciclo, fase, Idade ou Era. calar a raiz de um sofrer mais profundo. Obviamente que o conforto importa,
Por meio dessa irrepetibilidade lá vai o homem alimentando a noção de que tanto quanto importa regressar ao Arché paradisíaco, com este a ser capaz de

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minorar a dor e de proporcionar algum alívio prazenteiro. E é no seio desse mítica pela temporalidade da modernidade liberal. Poderá vir, igualmente, a ser
mesmo Arché que pode e deve ser buscado o elo requerido ao caminho pró- o objecto da pós-modernidade, aquela que acredito criará a derradeira reden-
prio. Mas o risco de uma perpetuação de residência no paraíso em que o Pater ção da Espiritualidade esotérica (será possível acreditar que ainda actualmen-
é um "outro" é extraordinariamente grande, e é nisso que tanto o mito quanto te, no tempo hipermoderno, existem no nosso Portugal profundo pessoas que
a religião exotérica se fundem numa proximidade de "eterno regresso" (uma acreditam ser a maçonaria, a alquimia, o rosa-crucianismo ou a teosofia obra
neurose, no sentido psicopatológico), senão até de um mal maior que é a eterna do Diabo?... Se for obra o Diabo, é somente porque os níveis saturninos são a
manutenção na infância (a alienação da psicose). É certo que é uma requerida rampa de lançamento da iniciação. Talvez ainda possamos encontrar nessas
"atemporalidade", mas quer-se igualmente o momento da realização integral, terras alguns rituais mistéricos, e ainda mais provavelmente "crentes" "ortodo-
que, no sentido terreno (portanto, do "quaternário inferior"), é o Homem supe- xos" com uma atracção pelo fogo... E não é tudo isto a maravilha das trevas me-
rior (quiçá o Super-Homem) capaz de criar ele mesmo o seu Arché, e portanto dievas, aquelas a que ainda se associa a suposta origem "recente" da Alquimia?).
de ser criador, Pai Demiurgo. Claro que a obtenção do "Ouro" tem como pré-requisito a progressiva cons-
Não obstante a ligação das antigas terapias ao princípio espiritual da liberta- ciencialização e "libertação" face ao condicionamento relativista associado ao
ção (incluindo, com obviedade, a meditação) - subjacente, muitas vezes, a um velo da carnalidade. O que significa que há, de algum modo, uma relação de
trabalho feito no sentido Superior > Inferior - dificilmente podemos considerar proporcionalidade directa entre a consciencialização, a libertação, a subtiliza-
que a Psicanálise e a Fisioterapia reeducativa ultrapassam o elemento "alma" ção (em que o corpo começa, de algum modo, a deixar de o ser) e a lentificação
do quaternário inferior. O excesso de materialismo que as consome (porque gradual do tempo. No estado final, obtém-se a Totalidade, que é como abando-
surgidas institucionalmente na época moderna) leva-as a ousar, na melhor das nar a escala da materialidade (ou seja, a condição humana) e abraçar a escala
hipóteses, a criação do Demiurgo no próprio paciente. O que não invalida que quântica da Energia imanifesta. Que é como tornar-nos Deus, ou simplesmente
elas não devam ser o mais "holísticas" e totalizantes que for possível. Coisa que, pertencer ao Divino, que é o Éter que tudo É e atravessa, que em tudo jaz e tudo
no contexto da medicina e fisioterapia convencionais, ainda está longe de se controla; é o Testemunho e portanto a Totipotência; ou será simplesmente o
verificar. Nada, Não Ser Total sem consciência ou livre arbítrio (apesar de possuir pura
A Psicanálise e a Fisioterapia verdadeiramente holísticas (que, no caso da úl- Liberdade)?
tima, é uma raridade, não obstante aquilo que se advoga) podem ser vistas, Será certamente a ausência de "antes e depois", de atrito, de sofrimento, de
então, como uma reactualização da Alquimia, se bem que, considerando que se devir, e também de individualidade, de separatividade, de subjectividade; e é
mantêm ao nível da "manifestação humana", não deverão ir para além da mera por isso que alguns psicanalistas antipatizam com o objecto da Espiritualidade:
"purificação mercurial" (ou seja, o retorno à matéria prima). Assumindo que preferem a felicidade do Eu na Terra, de um Eu pacificado, quiçá Demiurgo ou
o ser encarnado está inextrincavelmente ligado a uma "condição humana" de Super-Homem (Nietzsche), mas desprezam maioritariamente o ensejo do esva-
determinação, não posso deixar de conceber que, mais do que a libertação (no ziamento egóico, do sacrifício ético, da perda da consciência própria em nome
seu sentido literal), o homem somente conseguirá, no melhor dos casos (por- de uma Totalidade indiferenciada. Alguma vez no contexto da teoria clássica
tanto, na condição de homem completo), escalar até ao topo da montanha de de Freud poderia ser concebido o "andrógino" ou o "Hermafrodita" enquanto
Consciencialização (quiçá, alcançando uma sensação de completude, não dese- ser "psicanaliticamente acabado", ainda mais quando o período "final" do seu
jará sequer a suposta "libertação" face à Totalidade, pois que já se sente como "desenvolvimento psicossexual" é o da diferenciação genital?
Total, narcisicamente compensado, um Sísifo pacificado...). O que significa a A esta perspectiva podemos assomar a interpretação psicanalítica da "cons-
obtenção de um adequado Noésis, mas jamais a verdadeira Totalização do Ser. trução Espiritual" que, valha-nos o elemento meramente interpretativo, poderia
O ouro alquímico não é, então, o desiderato das modernas terapias e psica- ser o objecto crucial da Psicanálise Jungiana. Porque em Jung, tanto o Arquétipo
nálises. Terá sido o objecto de outros tempos, anteriores à corrupção da idade como o Inconsciente Colectivo podem ser materialisticamente interpretados

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como uma Consciência Civilizacional/Colectiva no contexto do qual as constru- a sensação de completude da maturidade ou, antes disso, o momento de o ho-
ções religioso-espirituais dos diferentes povos teriam origem no mero facto de mem se tornar ele mesmo Pai de um ser vindouro (coisa não facilmente alcan-
possuírem genéticas comuns e também relações comparáveis com o seu am- çável pelo ser que não se redimiu a si mesmo no confronto com os fantasmas
biente exterior. Será isto suficiente para explicar tamanhas similitudes entre impregnados pela fixação arquetípica e que podem ser a angústia de uma pri-
construções espirituais de diferentes religiões, mesmo entre aquelas que dificil- são de recalcamentos). A lógica das analogias podia ser requerida eternamente,
mente poderão ter sido culturalmente miscigenadas? e se o materialismo vai sempre advogar que é o homem que fez Deus à sua
Esta é uma interpretação materialista que tem sido muitas vezes apresenta- imagem, o Espiritualismo vai sempre defender que Deus é que fez o homem à
da, e que assomada ao facto de muitas construções supostamente esotéricas sua imagem, para que o verdadeiro sábio não queira sequer importar-se mui-
terem resvalado para o lado da fraude, coloca muitas vezes a Espiritualidade to com estas questões (e divisões) e prefira somente viver simbolicamente os
numa situação de alguma delicada reputabilidade (temos de admitir que a im- processos, e crescer, libertando-se, ou ter a sensação de descondicionamento
possibilidade de podermos utilizar um qualquer critério falsificabilista de modo (esta liberta, mesmo sendo nominalmente uma ilusão, porque uma certa de-
a distinguir o "verosimilhante" do "não verosimilhante" na matéria pertencente pendência arquetípica, a ligação à condição animal, se mantém na persistência
ao domínio da Noésis pode levar a alguns excessos e, sobretudo, ao engano dos da materialidade). Também poderíamos entender a questão da Totalidade ética
mais desavisados ou nescientes... Isto é também a fraqueza de uma apregoada e do Eterno Presente como o resultado normal do ser pacificado, porque liber-
"não cientificidade" do método pós-moderno, incluindo a possibilidade de um tado do processo de Eterno Retorno. Livre da neurose e da vivência contínua do
certo "relativismo interpretativo" com intenções parciais e não cunháveis com a passado, o ser vive finalmente pacificado no presente, capaz de amar porque
Ética criar o "mau dogma" e a dominação a partir daquilo que seria no máximo se sente amado e securizado (segurança obviamente dependente do encontro,
um "bom dogma" do Espírito, o que nos rememora o objectivo do critério fal- fixação decisiva e redenção do Arché infantil enquanto pré-requisito da Estrutu-
sificabilista de Popper e dos "liberais"). Como convencer as pessoas, as massas ra própria, aquela que dará ao ser uma sensação de "firmeza" suficientemente
presas à carnalidade, da "obviedade" das construções do Idealismo enquanto grande para aniquilar o excesso de defesas sublimatórias ou mesmo destruti-
Obra maior da Sophia (pelo menos para os "destinados" ou "eleitos" a uma vas e maleficentes e igualmente de modo a permitir tolerar melhor a diferença
compreensão do que pode ser visto como reminiscência platónica)? Não será relativamente ao outro, ao Grupo e a uma Sociedade que rebola eternamente
talvez por isso que, em tempos passados, um certo secretismo mistérico permi- na intenção de controlo supergóico de uma "liberdade individual" potencial-
tia o acesso dos saberes profundos somente aos eleitos, aos mais preparados mente diluidora da estabilidade e da previsibilidade, senão da intenção políti-
e já mais desalienados? co-económica de dominação maquiavélica alienadora; tudo isto significa que o
Mantendo a visão da crítica materialista, é possível afirmar que, de algum ser não poderá ser pacificado na relação com o outro e fusão com o Todo, sem
modo, uma certa perspectiva psicanalítica poderá advogar que a Espiritualida- que primeiro aceite a sua própria condição relativa e se perdoe a si mesmo no
de é somente o resultado da generalização do Inferior mental individual para abaulamento das defesas primitivas, as mesmas que são constantemente re-
o Superior Civilizacional e Supergóico. Desse modo, o Arché é como a Origem crutadas no mais pequeno gesto ou relação do Eu com os acontecimentos diá-
do ser (o útero, o nascimento ou o início da consciência), o Paraíso é a casa dos rios e que repercutem a condição de uma determinação que visa a "libertação
pais, Deus é o Pai, e as fases da vida individual podem ser os inúmeros ciclos para trás" num plano sequencial em que a obtenção da "matéria prima" deve
a que já me referi, ou simplesmente os inúmeros processos reencarnativos; o antecipar a superação do próprio corpo e em que a frustração do processo
eterno retorno corresponde ao regresso constante aos nossos fantasmas infan- pela tentativa precipitada de "calar o corpo" reitera a "fuga para a frente" que,
tis e que preludia o neuroticismo da vida, assim como a evolução corresponde mais a mais, ajudará, de certo modo, a perpetuar a neurose do "eterno retorno"
ao crescimento individual, e a obtenção do próprio Arché, ou seja, a chegada ao [entretanto, e saindo da analogia "microscópica", devo acrescentar que tam-
topo da montanha (o mercúrio alquímico enquanto matéria impoluta), pode ser bém a própria Espiritualidade entende a eterna manutenção na manifestação

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à imagem do ideal da Psicanálise também como eterno retorno....... o que nos Princípio infantil, assim como na excessiva relativização dos novos tempos em
leva a encarar a possibilidade de a Psicanálise ver no Superego civilizacional a que nada se mantém ou perdura e tudo é instável, inseguro e efémero, um
defesa - no sentido psicodinâmico - de um processo evolutivo na carne, da mes- dos grandes fundamentos do exponencial crescimento da psicopatologia das
ma maneira que a Espiritualidade vê no adiamento da libertação uma "defesa" neuroses e "depressões", já para não referir a clássica "loucura da normalidade"
para a não evolução na Globalidade....... dito de outra maneira, a Liberdade do (Arno Gruen)?...
Eu, na verdade condição do filósofo e do Super-Homem, é a meta da Psicanálise A Psicanálise advoga a importância da evolução, mas, por vezes, abusa na
mas o meio-termo da Espiritualidade, enquanto que a Liberdade do Todo é a "ideologia" do descondicionamento. Pretende muitas vezes esvaziar o ser de
meta da Espiritualidade e, de algum modo, o sufoco castrador da Psicanálise, todo o sentimento de culpa, o que não é coisa perigosa se efectivado num ser
obviamente mais no aspecto de uma religiosidade exotérica edipianamente com uma forte "angústia de separação", mas, tornando-se "moda", pode ajudar
protectora - até porque esta acaba mesmo por perder o nível ético do Espírito a criar - como já está a acontecer - seres desprovidos de barreiras, e por isso
para abraçar o apriosionamento do "Grande Inquisidor" (Dostoiévski) - do que mesmo, incapazes de se auto-civilizarem e amputados do processo de evolução
no aspecto da Espiritualidade esotérica, se bem que mesmo esta possa ser vista no verdadeiro sentido do termo.
nos termos de um objecto Civilizacional que, na perspectiva de Freud, é supra A amputação do Espírito tem o resultado que se vê: a criação de uma Socie-
causa da "neurose de várias épocas culturais"]). dade em que não existe a consciência do "outro" (coisa que, como já vimos,
Será o esoterismo uma construção simbolicamente velada relativa à vida do não é a consequência obrigatória da actividade do divã). Todos se sentem Su-
homem singular? Ou será que isto existe desta maneira por causa da lei das per-Homens, e jazem já numa luta contínua pela supremacia. O neoliberalismo
analogias, porque "Atman é Brahman e Brahman é Atman" ou porque "O que é apenas um sinal clínico deste mundo em que a Hiper-modernidade toma o
está em cima é como o que está em baixo, e o que está em baixo é como o que aspecto de um vírus, altamente contagioso, que infecta o próprio cérebro das
está em cima"?... suas vítimas e que não levou muito tempo a manifestar-se numa pandemia
Parece-me, no entanto, que não deixa a perspectiva materialista de se conce- globalizada (lembremos que somente um tiro no cérebro é capaz de "matar" o
ber como eventualmente perigosa, isto no prisma da Ética e do comportamento morto-vivo, com esta "morte" a possibilitar a eventualidade platónica de uma
moral. Aceitar simultaneamente que todo o altruísmo é unicamente o resul- verdadeira vida).
tado final de uma injecção hormonal prazenteira e ego-maníaca, que a moral Nas mãos da modernidade viral, a própria ciência e o saber podem adquirir
se resume a uma construção relativa ao tempo, lugar ou até mesmo à classe um pendor fáustico, verdadeiramente destrutivo. E, perante isso, a engenharia
(Nietzsche) e que o Espírito é somente o produto de uma mente conturbada, genética, que poderia parecer a "Obra mercurial", e a Física quântica, que pode-
tudo isto importa menos pela sua potencial verdade nominal do que pela sua ria ser o prelúdio do Ouro da "Obra ao Vermelho", perdem tal estatuto, porque,
latente consequência na desconstrução do Arquétipo/Pater moralizador, sem ao invés de nos conduzirem à merecida Totalidade diluidora do sofrimento,
o qual o ser deixa de encerrar uma força de contenção supergóica requerida à mais rapidamente nos conduzem à destruição diluviana.
abolição da própria empresa de imoralidade. Obviamente, que, apelando mais Ora, este é apenas um dos resultados mais visíveis da dessacralização da
uma vez à perspectiva analógica, não é muito difícil ver os efeitos de uma certa Ciência. Ao fragmentar e dividir os saberes, esvaziando-os do seu conteúdo Es-
relativização radical no mundo moderno: não é só Deus que morreu, é também piritual, os corpus científicos da modernidade prometem criar uma espécie de
a consciência da importância dos Valores, do Cânone, das Estruturas. A Pátria Admirável Mundo Novo em que somente uns poucos terão acesso à Utopia, re-
e a Família passaram a ser "verbos de encher", o que não é particularmente legando para muitos a parca fatia da realidade de sofrimento. Para além disso,
perigoso para a nossa visão de homens feitos e minimamente morais. Mas que parece-me que os poucos que terão atingido a "libertação" não terão provavel-
consequências terá isso na "Consciência moral" da Humanidade futura? E não mente essa qualidade de ajuda a todos os outros que estão "no caminho" e que
poderá ser encontrada nesta desestruturação dos pilares sócio-familiares do o "Buda Dharma" tanto apregoa no formato da Compaixão.

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A própria Bioética surgiu com o intuito de criar alguma consciencialização nas quimera de um produto "final" nem por sonhos finalizado).
matérias da Vida, incluindo as várias medicinas, coisa que não faria sequer sen- A terapia verdadeiramente holística não é como os feitiços da mediania que
tido no antigo tempo milenar, especialmente no Oriente, onde a divisão entre vão ajudando a viver no "eterno retorno" de uma infância castrada e alienada,
os saberes não integrava o tecido cognitivo daqueles povos. "medicada" para a perpetuação da doença de um sofrimento meramente ate-
Esta divisão pode parecer a "normalidade" dos nossos tempos, mas isso não nuado. O terapeuta que age como "paliativo" ou "placebo" não é um verdadeiro
significa que estejamos perante o ideal de sanidade. Há uma diferença muito terapeuta, é mais como o fraudulento de um certo "esoterismo" que não é ver-
grande entre as três qualidades "normal", "são" e "moral" e vislumbra-se um dadeiramente "esoterismo". Uma terapia que não busca o retorno conciliatório
paradigma de "normalidade" que poderá atrasar indefinidamente a entrada no com as Origens não tem direito a denominar-se de "Terapia", e uma Psicanálise
mais "são" e "moral" paradigma civilizacional da Nova Era. que pretende evitar o sofrimento a todo o custo não é decerto uma Psicanálise
É triste notar que os novos profissionais de saúde já não concebem a sabedo- no verdadeiro e Total sentido do termo. É certo que a rapidez de resultados e
ria plena enquanto encontro não mediado com o Outro e a sua arte. o fogo de artifício da quimera de terapias atraentes atrai mais o paciente que
A obsessão pela Cientificidade parece ser a regra e o afastamento da realida- quase deseja ser alienado (até porque o peso da Realidade pode ser esmaga-
de do próprio paciente aumenta exponencialmente. Pretende-se trocar o terre- dor, e é nesse sentido que uma cuidadosa e lenta revelação deve antecipar um
no supostamente imensurável do Paciente Uno pelo terreno enganadoramente ainda mais lento desvelar, não vá a Luz fazer cegar ou enlouquecer o "inicia-
mensurável do Grupo, tal como reificado pelos estudos estatístico-probabilísti- do"...) e o terapeuta que deseja prosperar no negócio. Mas o caso é que tanto
cos a que a nova geração presta culto (estudos que, não obstante a "evidência" o Espírito como até a Mãe Natureza sempre requereram grandes períodos de
dos erros e da fraude, não deixam de espoletar uma certa forma de dogma tempo para se efectivarem como Obras (quase) plenamente firmadas. Quem
científico). deseja o Eterno Presente não deve ambicionar o rápido futuro. Arrisca manter-
Vende-se massivamente a noção de "bem estar", no plano de uma espécie se eternamente no passado.
de eudaimonia endorfínica, advogando a suposta holisticidade de métodos psi- A medicina afecta ao paradigma "científico-liberal" é, de algum modo, o mal
co-corporais, perpetrando a noção de uma falsa espiritualidade e os aspectos necessário à estruturação cognitiva dos saberes. Mas assumir que um médico,
embriagadores e alienantes de uma suposta mística, e criando a ilusão de que e sobretudo um terapeuta, não conseguiu transpor e desconstruir o Verão das
o Esoterismo é este acervo de feitiços mercantilistas (como se a ignorância rela- "disciplinas" para alcançar o Outono da Totalidade de um Corpo visto como
tivamente à palavra não fosse já monstruosa...). entidade bio-psico-espiritual é, no mínimo, preocupante. Obviamente a esma-
Cria-se a fantasia de que o caminho para o "Ser" passa somente pelo exercí- gadora maioria dos profissionais não consegue reificar tal desconstrução e a
cio do auto-encontro, repleto de "boas sensações" e de "iluminações pacifican- moda do "holístico" passa por ser mais publicitada do que genuinamente exer-
tes", quando, na verdade se há "alguém" em específico que se sente iluminado citada e integralmente compreendida. Pudera!... Com um aparelho educativo
então é porque não está definitivamente na Iluminação. Ilusão agravada pela (na verdade, doutrinador) comprometido com a cientificidade "dianóica" do sa-
noção de que as necessidades de um Ego carente são uma prioridade, como ber, para além da obsessão pelas categorizações e classificações, não admira
se o "caminho" não implicasse necessariamente o desígnio ético. Caminho do que a "normalidade" social maioritária pareça cada vez mais "louca" (se bem
peregrino, via da pedra, do deserto ou da floresta, de uma Gnose subterrâneo- que, para eles, somos nós os loucos). A ciência moderna parece agradar mais
filosófica (ou, se preferirmos, inferno-espiritual) que quase sempre aduz o "so- ao Sistema e à Economia que as matérias "inúteis" da Filosofia e da Espirituali-
frimento" como ingrediente inevitável (lembremos que o "caos" sofredor é um dade... com estas a representarem até um potencial inimigo da "ordem social"...
pré-requisito obrigatório, se bem que insuficiente, para a concepção do filósofo; O Sistema nutre um compromisso dominante nas sociedades modernas: me-
como obter o nascimento do Espírito sem as necessárias dores de parto?... as dicina, ciência, indústria e tecnologia. A medicina/terapia trata de manter os
mesmas que agora se pretendem suprimir a todo o custo, substituindo-as pela actores sociais (se preferirem, os proletários) "activos" e "funcionais" para que

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possam produzir a "indústria", auxiliada pela tecnologia que a ciência "pensou"; O mais curioso é que se torna bem notório para quem trabalha em Saúde que
por outro lado, a ciência precisa da tecnologia para ser "praticada" e a indústria não é a Razão científica aquilo que impera no sistema de avaliação, decisão e
necessita de "actores sociais" funcionais e ricos para consumirem. E o que é que intervenção clínica. O relativismo é que é a regra do funcionamento em saúde,
os actores sociais tanto consomem agora? Tecnologias e medicinas (nos forma- e isto inclui tanto a complexidade dialéctica de um corpo em contínua meta-
tos dominantes de "bem estar", terapias e Fitness). Por outro lado, também a morfose (e, portanto, dificilmente compreensível na sua totalidade fenomémica
medicina precisa da Tecnologia para ser praticada e da ciência para se legitimar. pelo profissional de saúde, por mais que este seja demiurgicamente sabedor e
E visto que o "esgotamento" do modelo keynesiano está a liberalizar cada vez experiente "Testemunha"), quanto o lado mais idealista/"pós-moderno"/psico-
mais a medicina, importa que a mesma seja cada vez mais "produtora de re- logista de um profissional de saúde que constrói e interpreta o seu paciente, na
sultados", coisa em que a ciência médica materialista domina, principalmente perspectiva de uma complexa matriz dialéctica interna ao profissional (a mes-
por meio da utilização das tecnologias, as mesmas que a ciência pensou e que ma que apela ao Espírito, pelo menos no seu sentido subjectivo) que integra a
requereram as tecnologias para as ter pensado. Os resultados surgem, o cliente síntese entre as referências internas e as referências do Paradigma interven-
fica satisfeito, a engrenagem do Sistema mantém o seu alimento, e ninguém cional que ele advoga (que começa e acaba também por ser interno). Isto não
precisa de se preocupar com as consequências a longo prazo do processo, é obviamente estranho à problemática discursiva e do Poder, segundo a pers-
seja para o corpo em que muitas vezes são alienadas as verdadeiras causas da pectiva estruturalista de Foucault. E deveria, a meu ver, ser um foco essencial
doença ou disfunção, seja para o Sistema em que a engrenagem acabará, mais da reflexão dos profissionais de saúde, coisa que tende a ser indefinidamente
cedo ou mais tarde, por entrar em falência, por efeito da já referida tempora- procrastinada pela noção que estes profissionais têm de que o discurso filosó-
lidade entrópica (associada ao ciclo vicioso acrescido pelo "efeito borboleta" fico-hermenêutico é uma excrescência inútil e catalizada pelas necessidades de
afecto à Sistémica da referida engrenagem). Este sistema está feito para que o um Sistema (pelo menos o público) que até aqui sempre ousou tratar o utente
paciente se mantenha enquanto tal eternamente, o que também significa que como (mais uma) mercadoria, agrilhoada fatalmente à engrenagem da Indús-
se mantém perpetuamente cliente da medicina e da sua indústria, legitimados tria do tratamento célere, "eficaz" e produtivo.
pela mesma ciência que não assume tal "conluio", até porque "o método cien- Claro que a lentidão de um gesto terapêutico único e fenomenologicamente
tífico é cego a intenções". irrepetível (e, portanto, dificilmente prescrevível ou distantemente vivenciável),
Mas é precisamente porque o novo espírito liberal "racionalizou" (cuidado, tecido na perspectiva de um acto puro, lento e sagrado com vista ao "Opus"
muito cuidado com este termo) a ciência que ela se tornou cega à intenção alquímico (na verdade, um Opus conjunto do paciente, do terapeuta, da Mó-
Ética e Espiritual. E é também porque a medicina se cientificou que ela per- nada que os indiferencia, da própria medicina/terapia enquanto projecto de
deu o contacto com a psique, e sobretudo com a Psique Divina. Se Sujeito e crescimento na pós-modernidade), parece estar fora de questão nos termos
Objecto não são um único elo porquê a preocupação ético-moral da medicina de um contexto em que o "descartável" é adulado. E, por vezes, até há quem,
científica ou por que há-de a Psicologia/Psicoterapia inquietar-se com mais do "espiritual" se diga, requeira que o corpo não interessa e que é matéria inerte,
que respeita ao bem-estar emocional do seu paciente? Se a medicina científica como se o Espírito não requeresse a encarnação e o jogo dialéctico da tempo-
possui qualidades de "falsificabilidade" por que há-de retroceder aos tempos ralidade precisamente para propiciar uma possibilidade de evolução, esculpida
do dogmatismo? Ignora que também o período moderno e a sua cientificidade dos níveis mais involutivos/saturninos para os níveis mais "solares", como se
acusam dogmatismo. O dogmatismo de quem diz que a Realidade externa exis- a carne não fosse o palco da transposição, da suma prova cabalística da duali-
te "absolutamente" e que é possível aceder-lhe objectivamente. O mesmo dog- dade polar, do caminho de avanços e retornos (céus e infernos) do peregrino
matismo que criou a mesma Psicologia cognitiva que admite a subjectividade pelo deserto afoito, da escalada do homem superior no encalce do topo da
do percepto e não quer muitas vezes assumir a introdução decisiva do método montanha, o tecido mental da purificação do mercúrio da matéria primeira, o
hermenêutico entre as suas "metodologias" de investigação científica. nível iniciático da escala com vista ao Ouro da Indiferencialidade... o Nada da

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ausência de Eu, e portanto, de sofrimento, terapeutas, filósofos e de tempo...


Termino dizendo que o novo paradigma hermenêutico que desejo para as
Médicos, enfermeiros e afins:
Ciências da Saúde não deverá, no entanto, rejeitar a realização de estudos cien- poder e capitalismo
tíficos segundo a perspectiva das "tendências estatísticas" (se bem que mesmo
para estes desejo um novo paradigma de rigor, tanto na execução quanto na
publicação), até porque a última coisa que desejo para a Nova Era é que um Não é preciso ser um especialista na filosofia de Michel Foucault para saber,
novo dogma imbuído de "mau relativismo" intolerante tome a dianteira (note- ou, no mínimo, desconfiar que a História do corpo, talvez mais do que as outras
se que a fase outonal da Espiritualidade é a síntese das fases mítica e científico- modalidades da Historicidade, se faz constituir mais por uma fenomenologia
liberal, requerendo-as e, de algum modo, integrando-as, jamais excluindo-as do irracional e até do dogma, do que propriamente por uma suposta objectivi-
categoricamente). Desejo, mais do que tudo, o empolar da reflexão, o respeito dade científica e/ou clínica. Essa irracionalidade aparece travestida, sobretudo,
pelas Estruturas, a revalorização do Cânone de Valores filosófico-Espirituais, e de uma problemática de poder, com este a exercer-se sobre o corpo e aparelho
o reaproximar fenomenológico do terapeuta ao seu paciente, do ser ao ser e decisional do doente, mas bastante mais no formato de uma querela interdis-
destes ao Ser, do Eu ao outro, do Ego ao Espírito, evitando que a Clínica das dis- ciplinar que, tradicionalmente, opõe médicos a enfermeiros e/ou outros profis-
ciplinas venha dividir o que, de algum modo, nunca deixou de estar aglutinado sionais de saúde não médicos. Actualmente, a presente "altercação" atinge um
numa extensão de impartibilidade divina. limite nunca vivido, com um desenlace que parece já adivinhar-se e que, mais
do que expressão de uma escolha reflectida e racional, é, na verdade, o resulta-
do do próprio paradigma económico emergente.
Publicado em "Hospital do Futuro", 2013 É bem certo que, mesmo sendo difícil de acreditar por parte das "maiorias" a
que vulgarmente chamamos de "opinião pública", um olhar mais analítico po-
derá permitir identificar uma série de questões complexas que parecem não ter
existência, mas são, na realidade, o fundamento de qualquer decisão política e/
ou institucional consciente. O meu duplo papel de fisioterapeuta e de ensaísta
promete complicar ainda mais as múltiplas questões que se levantam, essen-
cialmente porque o interesse do "profissional" parece contrapor a atitude do
ensaísta.
Não obstante, tal contraponto parece até nem existir, e vejamos porquê...
Ora, tal como referi em "Corpo e pós-modernidade" (Esfera do Caos Editores),
é inegável que, com o advento do liberalismo, teve lugar o surgimento de uma
medicina com carácter científico que, mesmo possuindo uma maior probabi-
lidade de se desenvolver enquanto ciência "séria" e "não dogmática", viria a
marcar o início de uma perspectivação do corpo que não mais mudou global-
mente até ao presente. Refiro-me à criação de uma visão "mecânica" do corpo,
que, subjacente ao modelo que apelidamos de "biomédico", pressupõe a divi-
são em peças, a categorização semiológica e/ou a decomposição estrutural de
uma entidade que não pode nem deve deixar de ser vista na sua globalidade
sistémica. A fragmentação do corpo tem a vantagem inquestionável de facilitar

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a "educação clínica" e até a especialização médica, mas é o processo que per- de exames desnecessários, que, a bom saber, é já, no mínimo, escandaloso.
mite epistemológica e inquestionavelmente a estruturação absoluta do conluio Ora, não deixo, no entanto, de estar de acordo com a autonomização dos
entre a medicina e o capitalismo. Pois que havendo que transformar a Saúde profissionais de saúde não médicos. Mas acredito que tal "caminho" deverá
em mercadoria e o corpo em indústria, o modelo biomédico encaixa-se na per- passar necessariamente pelo trabalho no sentido da mudança de paradigma.
feição, e é precisamente esta "conspiração" que permitirá reforçar o papel dog- Ou seja, a autonomia deverá basear-se num modelo epistemológico de inter-
mático de um "médico-Deus", dono e senhor do doente, um "Doutor" do corpo, venção também ele autónomo do modelo "biomédico". Somente na "diferença"
na realidade em constante despreocupação com a "alma" e até com uma certa fará sentido qualquer tipo de autonomização! Ora, reconheço que, nas últimas
intenção de subjugação paternalística desta. décadas, o paradigma "biomédico" tem sido sujeito a revisões e cuidada re-
Ora, é bem certo que o aparecimento das profissões de saúde não médicas flexão. E o resultado é que cada vez mais os profissionais de saúde - médicos
fez-se neste mesmo contexto de modelo "biomédico", sendo certo que uma incluídos - pretendem-se mais "humanos" e "globais". E a consciência de que
parca formação e a "falta de oportunidade política" manteve actividades como a a autonomia dos profissionais de saúde não médicos passa pela referida mu-
enfermagem e a fisioterapia numa posição subsidiária. Entretanto, como quem dança de paradigma é tal que, de facto, os enfermeiros e terapeutas se têm
é filho de determinados pais, ainda assim tem direito à saída do "paraíso ori- pretendido "holísticos". O grande problema reside precisamente aqui. É que,
ginal", uma certa carência de autonomização não poderia deixar de se buscar independentemente do que tem sido "vendido", a esmagadora maioria da ac-
numa necessidade de educação e graduação bastante fortalecida. Esse cres- tividade dos enfermeiros e terapeutas não pode ser considerada holística, pois
cimento da exigência da formação é uma realidade inquestionável, e cá estou que uma visão "nosológica", "mecânica" e "fragmentada" do corpo persiste em
eu para garantir os meus vários anos de grande sofrimento com vista à mera manter-se teimosamente arreigada aos profissionais de saúde. Culpa sobretu-
licenciatura. Portanto, que os profissionais de saúde não médicos têm já uma do do paradigma económico, bem o sabemos, pois que é impossível tratar o
formação "médica" robusta é inegável e a assunção do contrário revela somen- "todo" do doente quando simultaneamente o neoliberalismo pretende trans-
te ignorância. Obviamente que, perante tal exigência de formação, é impossível formar o "utente" num artigo catalogável e descartável.
o profissional de saúde não médico não se sentir, de algum modo, frustrado Bem sei que, pessoalmente, vejo o doente na sua "totalidade"; a minha inter-
perante a pouca autonomia que lhe é reservada. O crescimento das ditas pro- venção visa o corpo por inteiro, sendo que o tratamento de uma área do corpo
fissões parece, assim, possuir até uma certa e justa pertinência!... No entan- poderá significar o tratamento da totalidade do doente e até a intervenção psi-
to, parece-me que tal crescimento, feito em subjacência ao "modelo médico", coemocional. Mas também sei que, para poder praticar esta intervenção, tive
apenas vai levar a que os enfermeiros e outros profissionais se tornem novos de abandonar o Sistema, e, não havendo contexto de Clínica ou Hospital que
médicos. E, verdade seja dita, bem me parece que a luta pela autonomia não permita uma intervenção que vise a verdadeira holisticidade (pois que tais insti-
passa de mera luta pelo poder. E de que serve mais poder se este vai servir para tuições trabalham segundo o modelo das prescrições de tratamento de partes
alimentar um novo lóbi profissional, o qual pretende manter o mesmo tipo de do corpo divididas), sou automaticamente obrigado a trabalhar enquanto sem-
intervenção que se mantém numa relação de cumplicidade com o liberalismo? pre inseguro trabalhador "independente".
Parece-me que, assim sendo, somente se transferirão "competências", sendo A prometida liberalização do SNS vai, de facto, possibilitar o crescimento das
que, a acrescentar aos tantos e tantos "médicos-burocratas", passaremos a ditas profissões não médicas, pois que há a percepção de que tal "distribuição
ter (como, de facto, já temos) os "enfermeiros-burocratas". Por outro lado, a estatutária" permitirá tornar os serviços mais baratos, mas, como já terei dito, a
assunção de que tal transferência permitirá poupar dinheiro ao Estado é, de médio e longo prazo, o utente, aliás cada vez mais "cliente", acabará por perder,
algum modo, enganosa, pois, não só os enfermeiros estão prestes a ganhar porque o paradigma epistémico e económico básico continua o mesmo... mas
financeiramente mais do que sempre ganharam, como a mera possibilidade de agora nas mãos de um punhado de profissionais que, verdade seja dita, pos-
"passarem exames" vai levar a mais um "inflacionar" do processo de realização suem uma formação intelectual e cultural ainda muito deficiente; o risível desta

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Luís Coelho A Clínica do Sagrado

questão é que é precisamente essa mesma pobreza racional e epistémica que


continuará a manter os profissionais pregados ao desiderato do poder, assim
Enfermagem de Reabilitação e
como continuará a impedir a consciência necessária ao abraçar de um novo Fisioterapia: percepção de uma ameaça
modelo de tratamento e compreensão do "doente-Pessoa".

Decorrido, entre os dias 6 e 8 de Dezembro (de 2012), o mais recente Con-


Publicado no "Expresso", 2012 gresso da Associação Portuguesa de Enfermeiros de Reabilitação, e tendo
aflorado na Comunicação Social algumas notícias sobre a importância e novas
oportunidades relativas à actividade em questão, vozes de contestação por
parte de colegas fisioterapeutas fizeram-se soar ao ponto de uma antiga que-
rela, de uma antiga polémica, parecer agora renascer com força amplamente
recrudescida. Não obstante a minha visão dura e flagrantemente crítica dos
fisioterapeutas e da sua realidade, não posso deixar de me solidarizar com as
referidas vozes; é que, no caso em questão, os fisioterapeutas têm toda a ra-
zão na sua contestação, ainda mais porque somente neste nosso país do "cada
um por si" os decretos legais poderiam concretizar a possibilidade de existirem
duas actividades cujos objectivos e planos de intervenção são potencialmente
confundíveis e interpoláveis.
Não concordo com vozes acaloradas por parte de colegas que se sentem -
justamente - injustiçados, ainda que as compreenda. Os enfermeiros - esses
sim - são mestres nesse tipo de reacções irracionais, típicas de uma classe cuja
insegurança "psicodinâmica" requer uma reactividade em "alcateia". Também
não vejo que a apresentação de estudos relativos à nossa intervenção resolva
a questão "de quem tem razão" ou "deixa de o ter"; os enfermeiros também os
possuem, se bem que os fisioterapeutas contêm um tamanho incomensuravel-
mente maior de investigações potencialmente justificativas de uma interven-
ção do tipo "Evidenced Based Practice" (a comparação seria até ridícula, com
a profissão a ser identificada com um mundo incalculável de publicações e de
linhas imensas de investigação); de qualquer modo, possuo sabidamente uma
desmedida desconfiança relativamente a este tão propalado mundo de estudos
que não perdem o seu mero carater "estatístico-probabilístico" (para não falar
das incontáveis limitações dos ditos estudos, assim como as fraudes existentes
neste tipo de investigações...). Por outro lado, dispenso justificações legais por
parte dos proponentes das duas profissões, pois que ambas são baseadas em
"decretos legais" aparentemente transparentes. Assim como também dispenso
a lógica do "ovo e da galinha", até porque tanto a Enfermagem como a Fisiote-

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Luís Coelho A Clínica do Sagrado

rapia foram inicialmente criadas no contexto da medicina (o que não significa a Fisioterapia se encontra numa posição privilegiada para abraçar esse mesmo
que não possam afastar-se desse mesmo contexto e ganhar o direito à auto- modelo Holístico, até porque a natureza psicomotricista e posturológica da sua
nomia; assumir que tal não é possível é o mesmo que assumir que os filhos de Intervenção é ímpar no que respeita à preconização de uma prática específica e
determinados pais não possuem o direito a sair de casa e a ter os seus próprios verdadeiramente autónoma (e que só pode resultar se for de facto "autónoma",
filhos). É certo, isso sim, que a nível internacional, tais divergências legais não pois sendo a intervenção do tipo totalizante e metamórfica/fluídica, não pode
existem, e a profissão de Fisioterapeuta parece ter um nível de reconhecimento ser reduzida a prescrições e/ou a outras inconcebíveis limitações).
crescente, com as actividades de "enfermagem de reabilitação", "técnico auxi- Ora, perante tudo o que se apresenta, e atendendo às práticas, experiências e
liar de Fisioterapia" e "médico fisiatra" a não existirem ou em amplo processo à tão grande formação do Fisioterapeuta em termos de um quase inexprimível
de "extinção"... potencial de avaliação e intervenção neuro-musculo-esquelética, é quase ridí-
Recentemente publiquei no site do Expresso um artigo intitulado "Médi- culo pressupor que um Enfermeiro possa realizar uma prática semelhável à do
cos, enfermeiros e afins: poder e capitalismo" (http://expresso.sapo.pt/medi- Fisioterapeuta. Até porque, por mais que a Enfermagem também se considere
cos-enfermeiros-e-afins-poder-e-capitalismo=f744055) onde apresento o es- holística e autónoma, parece óbvio que a dita profissão está muito longe de
sencial do que defendo (o que vai muito para além da consideração óbvia de alcançar o já apresentado modelo Totalizante do doente. É que, mesmo que
que as lutas entre os profissionais de saúde são, como tudo ou quase tudo o a Enfermagem se conceba como biopsicossocial, não possui a tal visão de um
que acontece ao nível do animalismo humano, lutas em nome do Poder, o que, "Todo neuro-músculo-esquelético" que somente um Fisioterapeuta pode ter e
em última análise, já foi o grande desiderato da obra filosófica de Michel Fou- que as (suas) formações específicas do tipo neurológico e reeducativo neces-
cault) e que é o seguinte: Acredito, sobretudo, que a autonomização das profis- sariamente enriquecem. Trata-se, portanto, de uma diferença essencialmente
sões de Enfermagem ou de Fisioterapia passa essencialmente pela afirmação de Natureza Epistemológica, em que o Corpo de um Todo interdependente e
de um modelo próprio, autónomo da Medicina, consistente numa perspectiva em constante transformação está longe de ser adequadamente compreendido
holística de um "Todo" do doente, em que, ao invés de o vermos como um pelo enfermeiro (principalmente, porque a formação e intervenção do enfer-
conjunto de peças ou sistemas desarticulados, o passamos a conceber como meiro continua a ser essencialmente "médica", na sua perspectiva basilarmente
uma Totalidade interdependente (um pouco como o paradigma da Reeducação epistemológica).
Postural - e também os modelos neurológicos -, que há muito defendo, preco- Ora, a reforçar a minha noção de que a Enfermagem continua a possuir uma
niza), o que significa, em última análise, que a autonomização das profissões natureza essencialmente "Prescritivista-Patológica-Médica" vem o conjunto re-
em questão depreende necessariamente o abraçar de um Modelo Epistemo- cente de "ambições" da dita classe profissional: pretendem ter o poder de pres-
lógico renovado que, mesmo existindo na Teoria, está longe de se verificar na crever exames e medicamentos. Ora, a visão de um Fisioterapeuta é (ou deverá
Prática (visitem-se as diferentes Clínicas de Fisioterapia do nosso país, assim ser) necessariamente Não prescritivista, porque se vê o corpo como um Todo
como muitos outros contextos em que a Fisioterapia mantém o seu modelo não fragmentado, o que, mesmo não estando completamente presente na ac-
médico-prescritivista, porque ainda fortemente praticada segundo um mode- tual e não-ideal intervenção do Fisioterapeuta, pode e (acredito eu) virá a estar
lo de Códigos). Acredito, igualmente, que o abraçar desse novo modelo exige presente, pois que, pela sua formação e especificidade, o Fisioterapeuta possui
uma nova Cultura, uma nova atitude, um renovado interesse pelos modelos a Natureza Epistemológica e Profissional ideal e necessária.
filosófico-epistemológicos (que os meus colegas muitas vezes acusam de nada Admitir que uma Especialidade (por mais tempo que ela dure) torna um En-
servirem, não obstante o facto de há muito defender a sua importância e de fermeiro capaz de possuir a visão e a Potencialidade de um Fisioterapeuta é
"picar" os colegas para se agarrarem aos livros e aos Clássicos e não somente admitir que um Enfermeiro é capaz de deixar de o ser para se tornar um Fi-
à prática da Fisioterapia propriamente dita), que, como já disse, são a única sioterapeuta. Ora, se é de uma mudança profissional que se trata, é preferível
porta de acesso à merecida autonomização profissional. Acredito, também, que que o dito Enfermeiro mude simplesmente de profissão, aconselhando-o a tirar

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uma nova licenciatura. Ou vamos assumir que uma Especialização poderá dar uma profundíssima capacidade de cortesia, uma verdadeira tendência infantil
ao enfermeiro a riqueza de visões e até de métodos que possui um Fisiotera- para querer tudo Ser e, sobretudo, tudo Ter!
peuta? Saberá o enfermeiro de Reabilitação o que é o PNF, o método Bobath,
a Reeducação Postural, entre tantos outros? Compreenderá o enfermeiro que
todos estes métodos são passíveis de se entrosar num Corpus que somente o Publicado no "Expresso", 2012
Fisioterapeuta - pela sua formação tão abrangente e multi-paradigmática - po-
derá adequadamente compreender? Não perceberá o enfermeiro de Reabilita-
ção que uma adequada intervenção terapêutica requer uma compreensão de
múltiplos modelos, que somente um profissional adequadamente tocado pela
riqueza e até as lutas entre Métodos e Paradigmas poderá tentar "dominar"?
Ora, é indiscutível que a única coisa que interessa ao Enfermeiro de Reabili-
tação é a tentativa de se "safar" neste nosso mercado e país em crise, indepen-
dentemente de estar ou não a respeitar uma determinada Ética, ou de estar ou
não a ser minimamente cortês para com outros profissionais de saúde (que,
aliás, muitos enfermeiros desconsideram, pois que muitos deles têm por certo
que um Fisioterapeuta não é um profissional de saúde...). Por outro lado, é já
por si mesmo ridículo que um enfermeiro de Reabilitação possa achar que é um
Terapeuta capaz de ter a riqueza de visões que somente os Terapeutas (Fisiote-
rapeutas, Terapeutas Ocupacionais e Terapeutas da Fala, entre poucos outros)
podem ter, e isto inclui a ideia de que os enfermeiros de "Reabilitação" também
operam ao nível da Prevenção (afinal de contas, o enfermeiro de "Reabilitação"
reabilita ou é também um mestre dos "Cuidados primários"?).
Não gostaria de cair aqui nas limitações egomaníacas e lobistas das "espe-
cializações profissionais", até porque podemos conceber perfeitamente a inter-
venção em Equipa, e, dentro desta, a eventualidade de um modelo transdiscipli-
nar (por mais que a Realidade persista em não o admitir), em que os diferentes
profissionais partilham e entrosam as suas capacidades e papéis. Mas é preciso
igualmente ter uma adequada noção de Especialização, tal como a consequen-
te noção de respeito pelas capacidades e potencialidades de cada profissão (a
nível Sociológico, poderíamos apontar a limitação relativa à existência de dife-
rentes papéis sociais, mas igualmente poderíamos referir a incontornabilidade
da sua existência, pois que sem a "especificidade" não há Organização Social
possível, pelo menos nos termos da Sociedade moderna em que vivemos). Nes-
te contexto, é notório que estes Enfermeiros não se encontrem disponíveis para
respeitar um terreno rico, mas específico, que é dos terapeutas. Isso não indica
somente Egomania, desprezo, ignorância e desonestidade intelectual. Indica

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Luís Coelho A Clínica do Sagrado

A triagem dos enfermeiros quais, na verdade, não deixam de escamotear o desiderato do poder.
O mundo da Saúde tem muito mais a ver com o irracional do que os cidadãos
nas urgências hospitalares possam sequer imaginar, e presumir que há modelos perfeitos é, no mínimo,
vogar no desconhecimento ou na hipocrisia.
Daí que não posso deixar de condenar as afirmações do Bastonário da Or-
A propósito das declarações do Bastonário da Ordem dos Médicos acerca da dem dos Médicos, até porque também os médicos conhecem as referidas di-
menor competência dos enfermeiros para realizar as triagens das urgências ficuldades de diagnóstico e vogam em todo um mundo de relativismos e in-
hospitalares, acto basilar do processo da equidade no atendimento, não posso certezas (malgrado a petulância de alguns profissionais que se afirmam como
ignorar a necessária ressalva face a mais uma ignóbil e frustre polémica, que, totipotentes, e que, por isso mesmo, acabam por errar ainda mais).
a bem ver, nada mais é do que o aproveitamento de casos excepcionais do As afirmações referidas não passam de todo um aproveitamento contextual,
funcionamento dos Serviços de Saúde para fazer valer um lóbi face a uma Cor- que é o mesmo que é utilizado para fazer guerra a profissões que se encontram
poração em emergente crescimento. em situação de definição emergente.
Sou insuspeito, até porque ainda há pouco tempo era eu o autor de uma Quem trabalha em Saúde, sabe que este género de oportunismo é frequente,
polémica que contrapunha terapeutas a enfermeiros, assumindo eu um pouco tal como a constância da luta entre profissionais em nome do domínio do siste-
a salvaguarda dos direitos dos terapeutas face à crescente prepotência dos en- ma e da "posse" do paciente.
fermeiros e da figura do enfermeiro "Super-Homem". O Sistema de Triagem não pode jamais ser perfeito, até porque não se trata
Mas eis que, atendo a nova polémica das "triagens", não posso deixar de dar de um contexto de diagnóstico mas somente de um processo de selecção da
razão aos enfermeiros e de condenar as afirmações e actos do Bastonário da ordem do atendimento.
Ordem dos Médicos. Face ao que já disse, e acrescentando-lhe as condições e os tempos bizarros
Enquanto fisioterapeuta que sou, com treino aturado na compreensão do de atendimento do paciente, não podem restar dúvidas de que é impossível que
raciocínio clínico, o qual inclui a relação dialéctica da capacidade de diagnóstico a tarefa dos enfermeiros possa ser desempenhada com total ausência de erros.
(clínico e funcional) e da capacitação de realização do exame subjectivo e objec- E nada garante que a maior formação dos médicos implique que os mesmos
tivo do paciente, posso assegurar que, muitas vezes, é impossível compreender erros diminuam significativamente; a não ser que esse atendimento fosse feito
completamente a situação clínica do doente, mesmo no decorrer de diversas em muito mais tempo e com uma acuidade muito superior... o que não deixa
consultas ou sessões de tratamento. de ser risível, pois deixaríamos de ter uma triagem e aproximar-nos-íamos do
É que o paciente compreende todo um Universo semiológico, para não fa- modelo actual (e, diga-se, pouco benemérito) de consulta médica
lar da complexidade da relação dos sistemas orgânicos entre si e em relação
com o "sistema psicossocial", e muitas vezes situações aparentemente simples,
como manifestações clínicas específicas, escondem processos complexos, que Publicado no "Diário de Notícias", 2013
chegam a nem sequer ser adequadamente compreendidos no decurso de uma
ou mais consultas.
A presunção de que há uma relação directa entre a patologia e a manifestação
vigora somente entre quem não entende que o mundo da Saúde envolve todo
um manancial de sistemas, modelos, paradigmas, e também multi-valências,
com os consequentes conflitos interdisciplinares (quando o funcionamento da
Equipe continua a ser defendido como ideal, no seio de outros horizontes...), os

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Luís Coelho A Clínica do Sagrado

Sobre a crise (e emergência) já aludi), tentarei, dentro do possível, apresentar uma visão realista e inclusiva,
se bem que dificilmente desapaixonada ou descomprometida.
da Fisioterapia em Portugal A maioria dos portugueses já terá, decerto, tido algum tipo de experiência "fi-
sioterapêutica" numa qualquer Clínica das muitas que (ainda) por aí abundam.
Mas é provável que só alguns desses cidadãos se tenham dado ao trabalho de
No seio do paradigma económico-político actual, em que a entrada na Pós- comparar a qualidade dos seus tratamentos com o tipo de subsistema com
modernidade das meta-narrativas - em que todos os "ismos", certezas e latitu- que são servidos ou com o tipo de subsistemas com que a Clínica em questão
des terão sido derradeiramente desconstruídos - persiste em ser adiada pela se apresenta comprometida. O caso paradigmático de uma Clínica com acordo
afirmação da crueza de um "neoliberalismo de mercado" contumaz, a discussão com o SNS é flagrante, pois é precisamente neste tipo de clínicas que é mais
em torno do futuro do Serviço Nacional de Saúde (SNS), assim como dos Sub- provável o doente ser tratado em conjunto com mais quatro, cinco ou mais
sistemas por muitos considerados "alternativos", volta a marcar forçosamente doentes, por um terapeuta logicamente fatigado e muitas vezes limitado nas
a linha de um horizonte sentido como "de todos" e "para todos"; este mesmo suas capacidades de avaliação, decisão e tratamento. O número de doentes é
horizonte é incluso de um tecido de profissões de saúde, nas quais, não obs- quase sempre excessivo - a intervenção é, de facto, massificada (o que chega a
tante as nem sempre afirmativas representações sociais dos portugueses, a Fi- fazer com que o fisioterapeuta apareça travestido numa espécie de "educador
sioterapia e o Fisioterapeuta representam um papel fulcral e até inexpugnável. físico", "sargento de exercícios") - e este número é função do preço dos doentes,
Daí que o desconhecimento nacional relativamente à situação algo dramática com este preço a ser, por si, função das prescrições de tratamento que lhes são
que os fisioterapeutas portugueses estão a viver presentemente só pode ser impregnadas, com estas a possuírem mais ou menos valor dependendo do "va-
considerado como um pressuposto de uma atitude social acrítica, por parte lor" do seguro ou subsistema com que o utente se apresenta. O utente possui,
de um tecido social que, directa e indirectamente, poderá vir a pagar uma fac- de facto, um valor, e é muito comum o fisioterapeuta ser "instruído" para dar
tura cara por tal nesciência. Este texto pretende, obviamente, contrapor a tal, uma qualidade diferenciável aos doentes, presumindo-se sempre que o doente
contribuindo para dar uma visão, necessariamente sintética, mas nimiamente do SNS terá direito a "menos tempo" que o doente do seguro (e dentro dos
inclusiva, daquilo que é a Fisioterapia que se pratica em Portugal e de um dra- seguros, tudo dependerá do tipo de seguro). Ora, a problemática do "valor" do
ma que persiste, e que assim persistindo, contribuirá para agravar (ainda mais) utente não é independente da problemática das prescrições fisiátricas...
o "bem-estar" dos cidadãos. Apesar de a Fisioterapia constituir um território epistemológica e profissio-
Importa, antes, reafirmar aquilo que todos já sabem mas que poucos reco- nalmente autónomo da Medicina, a maioria dos sistemas de saúde requer a
nhecem: a fatalidade alusiva ao que somos e ao que sentimos (algo que intitulo existência de um fisiatra prescritor, com este a "criar" prescrições terapêuti-
por "determinação subjectiva") não pode deixar de determinar a posição que cas (limitadas pelos estatutos próprios de cada sistema) cujo tipo e número
qualquer cidadão ou profissional prefere considerar como "racional", mas que, decidirão o já referido "valor" do doente. A situação é risível até porque, não
na verdade, é sempre o desiderato de uma complexa teia de sensações, con- podendo o doente deixar de constituir um "Todo", com a óbvia limitação da
jecturas, sentimentos, crenças, entre tantos outros poluidores daquilo que de- sua divisão em peças (já muito falei disto no livro "Corpo e Pós-modernidade",
veria ser apresentado como Uno e permanente; daí que, querendo eu evitar tal 2012), a prescrição de tratamento para uma área do corpo apela a uma quase
subjectividade, combustível para mais um rol de discussões intermináveis que "amputação" do utente dos cuidados, agravada ainda mais pelo facto de ser
acabam por colocar os próprios agentes da mesma profissão numa turba de "decidida" ou "prescrita" por um agente que não é aquele que participa diaria-
contradições e aporias, mas não podendo nem devendo eu fazer uma qualquer mente na complexa e sempre metamórfica realidade fenomenológica do corpo
projecção da minha pessoa como Ente objectivo e absoluto (até porque estaria, do doente. Pois que a Fisioterapia possui uma natureza epistemológica muito
mais uma vez, a cair no mesmo tipo de ilusão de suposta "racionalidade" a que diferente da Medicina científica, e, não obstante constituir igualmente um ter-

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ritório científico, a sua essência prática não pode deixar de se conceber nos facilitar ainda mais o "abaixar da fasquia" da qualidade dos empregos; por sua
termos de uma Arte (baseada na Observação contínua tornada práxis, no Ra- vez, o facto de os terapeutas ganharem menos irá levar a que estes não possam
ciocínio Clínico ininterruptamente perpetrado, na avaliação e ajuste constante suprir as suas necessidades de formação, o que leva automaticamente a uma
de um corpo em permanente metamorfose, na vivência de uma intimidade de redução da qualidade dos serviços, o que, para muitas entidades patronais, não
intercorporeidade em que o corpo do doente se torna uma extensão do corpo é necessariamente grave, pois que a quantidade de doentes, tratados apenas
do terapeuta)! Limitar esta riqueza quase Humanista em que o 'físico' se torna com recurso a métodos pobres e técnicas anti-sintomáticas (técnicas que, mais
'motor' e este 'psicomotor', o corpo se transtorna em Soma e Motricidade e uma vez, persistem em dividir o doente-Pessoa em fragmentos, estilhaços des-
estes em Psicossomático e Psicomotricidade, o Corpo-acção renasce Corpo-in- governados), é aquilo que parece importar.
tenção e este renasce Corpo-representação, o "corpus" moderno/performativo/ Esta situação leva a que, consequentemente, a maior riqueza de métodos e
denotativo do "homo faber" se transmuta no "corpus" pós-moderno/reflexivo- paradigmas da Fisioterapia, aquela que é a verdadeira Fisioterapia, fique reser-
simbólico/narrativo do "homo sapiens", e o 'biomédico' se transmuta em 'biop- vada aos doentes que possuem capacidade financeira para recorrer ao sistema
sicossocial' e este em 'sócio-psico-neuro-músculo-esquelético', a um conjunto Privado, o que reduz as perspectivas de (re)conhecimento público das nossas
de códigos prescritivos ou a um conjunto de indicações mais ou menos quanti- possibilidades/potencialidades. Este mesmo meio Privado promete, de algum
ficáveis é, no mínimo, curto-circuitar a realidade. modo, vir a crescer, até porque, como sabemos, apesar de o valor das já ci-
Claro que a massificação dos doentes é menos a consequência da vontade do tadas prescrições fisioterapêuticas se manter o mesmo em termos de "lucro
fisiatra deífico do que do fraco valor das já citadas prescrições. E é precisamen- para a Instituição", a parte que cabe ao pagamento por parte do próprio doente
te o desvalor do doente que obriga tanto à sua massificação como à suposta tende a aumentar cada vez mais; daí que a tendência seja para se falar cada
utilização de profissionais "mais baratos", os técnicos auxiliares de Fisioterapia, vez menos do utente dos serviços de saúde, substituindo-se muitas vezes este
que, não obstante não poderem legalmente praticar Fisioterapia, abundam nas conceito pelo malogrado termo de "cliente" (em breve, o próprio SNS será cons-
clínicas já aludidas (o que faz com que, muitas vezes, o tal "fisioterapeuta" que tituído por "clientes", e esse mesmo SNS tornar-se-á melhor, não por imposição
tratou o nosso vizinho ou familiar não seja de facto um fisioterapeuta). Entre- do Estado, mas por imposição do cliente pagador); claro que o crescimento do
tanto, a questão dos citados técnicos parece vir a resolver-se de forma automá- "Privado" tem de ser relativizado, não seja vero o facto de, após inúmeras ses-
tica pelo próprio Sistema: precisavam de existir até há uns anos atrás, mas nes- sões de calores, pedaleiras ou maquinismos inúteis (feitos não se sabe muito
te nosso presente em que os fisioterapeutas persistem em ser "multiplicados" bem por quem), o tal cliente pagador, pensando que a Fisioterapia se resume a
exponencialmente pelas quase duas dezenas de instituições de ensino (com tais fracas experiências, prefere simplesmente mudar de "paradigma" (quando
muitas a terem sido criadas sem controlo ou pudor, com um tipo de cinismo não passa a multiplicar-se num rol de reviravoltas de "opiniões profissionais" e
mercantil muito condenável numa matéria tão "sagrada" quanto a do Ensino multi-perspectivas que o alienam progressivamente da realidade da sua condi-
Superior), a crescente desvalorização profissional/financeira do terapeuta leva ção), passando a recorrer a certas "alternativas" "não convencionais", que, não
a que possam ser utilizados sem grandes "dificuldades", se bem que para "obe- obstante a sua inalienável importância, seriam decerto mais sérias e aceitáveis
decerem" a uma Entidade que muitas vezes reconhecem como tendo um poder se cortassem na dose de misticismo e no alimento placebetário.
absoluto (poucos terapeutas arriscariam o seu emprego tentando negociar as Nos termos das soluções propostas pelos próprios fisioterapeutas para que
já citadas prescrições, o número de doentes ou o prestígio da intervenção utili- a situação apresentada possa "mudar", podemos identificar o mesmo tipo de
zada...); daí que a existência de perto de dez mil profissionais só pode significar divisão que se encontra tradicionalmente na economia política:
o desemprego (na verdade, genuinamente pandémico) ou o emprego precário; - A solução proteccionista: assenta no conjunto das leis, estatutos, regras que
por outro lado, a pressa de "arranjar emprego" facilita a aceitação das mais a Classe, e a sua ainda não factível mas desejada Ordem, pode e deve impor
desprestigiantes propostas, e o facto de existir tal aceitação vai, por sua vez, para estruturar as práticas (estigmatizando as pseudo-práticas de pseudopro-

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fissionais, assim como as tentativas de diminuir a autonomia da profissão já lecções e dos paradigmas seja marcada pela fatalidade da preferência indivi-
prevista pela Lei), um mínimo de remuneração, e um conjunto de padrões éti- dual... não seja o homem, singular ou colectivo, prenhe de relatividade.
cos pelos quais os terapeutas terão de se respeitar (a si-mesmos e aos doentes)
nos adequados termos de uma cortesia profissional. Trata-se, de algum modo,
de uma solução mais colectivista, que, na perspectiva de alguns, diminui a liber- Publicado no "Expresso", 2013
dade individual ou não se adequa ao contexto liberal em que vivemos ou a um
país onde as leis se fizeram para não ser cumpridas.
- A solução liberal: assenta no esforço individual do próprio profissional, na
tentativa de, enquanto representante da profissão, aumentar o seu prestígio e
representação social (incluindo a atitude de contraposição às situações e con-
textos que desprestigiam financeira e institucionalmente a Fisioterapia). Obri-
gando ao mérito e à responsabilidade individual, desejado decerto por quem o
tem e muito particularmente pelas empresas de formação profissional e pós-
graduada que pretendem ganhar no esforço de contribuírem para que o pró-
prio terapeuta se torne um ganhador, é visto por alguns como criador de um
estado de crua e pouco cortês competitividade inter-pares.
Logicamente, a solução liberal é fundamental no sentido em que o esforço
individual é imprescindível para que o profissional possa autonomizar-se e, so-
bretudo, aprofundar-se e especializar-se (por sua vez, condições da autonomi-
zação); a ausência desse esforço mataria a parte mais nobre e bela da Fisiote-
rapia, precisamente a mesma que não tende a ser do amplo conhecimento dos
cidadãos. O que significa que, de certo modo, é inútil apelar à responsabilidade
de/da Classe, sem que a própria Fisioterapia melhore intrinsecamente a sua
qualidade... (o que, ainda assim, não garante a melhoria da "condição profissio-
nal" do terapeuta dentro da instituição - razão da até compreensível inércia de
muitos colegas - mas cria um nível de consciencialização no profissional capaz
de produzir neste um aumentado estado de desconforto ou "dissonância cog-
nitiva"). Por outro lado, o esforço individual não coíbe a criação e estruturação
de alguns princípios regulamentadores fundamentais (porventura uma solução
organizacional que compromete pessoalmente menos o terapeuta dentro da
organização que o "vitimiza"), sem os quais o "cada um por si" matará decidida-
mente o "contrato social" em que ancora a noção da profissão.
Uma possível solução "compatibilista" e sustentável merece ser pensada e,
logicamente, ajustada à Realidade. Muitos passos estão já a ser dados (...), mas
é obviamente indubitável a importância do esforço Singular. Não posso todavia
fazer qualquer tipo de apologia mais concreta; já basta que a lógica das predi-

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Luís Coelho A Clínica do Sagrado

Manifesto sobre a emergência dialéctica entre o multi-perspectivismo e o Cânone, o Caos e a Ordem, o Múlti-
plo e o Uno, o Relativo e o Absoluto.
de uma Fisioterapia pós-moderna Não é este nosso "manifesto" senão um esboço, um discurso, um ensaio qua-
se experimental que se pretende fazer valer na representação de um certo pen-
«Já não sou eu, mas outro que mal acaba de começar» sar "fisioterapêutico" não limitável necessariamente por países ou continentes,
Samuel Beckett e, como tal, ambiciosamente "universal", se bem que a realidade portuguesa
acaba por aqui obter certa ponderação, coisa sana ao objecto do discurso, visto
que a realidade da Fisioterapia portuguesa é provavelmente das mais amargas
O início do séc. XXI assume a sua risibilidade ao permitir o cruzamento de da Europa, senão da própria Lusofonia.
estradas políticas e económicas aparentemente antagónicas. E de um modo E com este ensaio pretendo igualmente contrapor-me a uma nova, recém-
semelhável, trajectos incomensuráveis de pensamento autorizam-se numa nascida, geração de profissionais que, não obstante a agressividade e a motiva-
plêiade de paradigmas e sistemas, vituperando o novo tempo a miscelânea de ção "guerreira", revela um franco desentendimento do que é verdadeiramen-
orientações e a relatividade de escolhas. Não fosse a ameaça de um relativismo te a Fisioterapia, uma parca compreensão da sua natureza mais globalizante
claudicante, daquele mesmo tipo que perspectiva a verosimilhança no que é e humanitária, o que não pode deixar de contrastar com os excessos de um
quase inaceitável, e o multiverso dos novos tempos seria quase como o precei- certo discurso ("hipermoderno") psicologizante que pretende ver a "entidade
to há muito desejado da liberdade, senão do tipo "puro", ao menos do pleno Holística" em tudo o que diz respeito ao corpo e às terapias, como se nada
livre-arbítrio. Liberdade que, na textura da Singularidade filosófica e espiritual mais existisse senão o holismo, quando a verdade é que jamais o verdadeiro
(portanto, noética, no plano platónico), não pode deixar de se conceber como Holismo poderá residir numa entidade psico-física que permaneça despida da
condição necessária, flagrantemente obrigatória, do esculpir de um "corpus", sua extensão Espiritual, com esta última a ser algo de dimensão também ela
há muito procrastinado, de pensamento "fisioterapêutico", do "pensar" em tor- indefinida (quiçá porque indefinível), se bem que a perspectiva materialista pre-
no da Fisioterapia, dos seus métodos, das suas práticas, da sua Ética, da sua fira continuar a conceber o imensurável ou o desconhecido como inexistente.
cientificidade, enfim... em torno de uma «Epistemologia da Fisioterapia», que, Seria quase irónico indicar a respeito do Holismo a franca dificuldade em defi-
malgrado a resistência dos profissionais àquilo que consideram como "irrele- nir a Fisioterapia em independência de outras terapias do tipo "psico-físico", até
vante", urge como requisito pungente da evolução da Fisioterapia enquanto porque é precisamente a perspectiva do Todo que repreende a visão fragmen-
arte e profissão autónomas. Assim sendo, oponho à crescente relativização tária do Corpo, dos métodos ou dos modelos, o que contrasta, de algum modo,
consequente da reprodução de multiplicidades quase sempre desfasadas de com a tentação superlativa e obsidiante do fisioterapeuta (enquanto profissio-
um adequado tecido racional o desiderato de um núcleo de reflexão em torno nal socialmente representado e com vista a um crescendo dessa mesma repre-
da Fisioterapia, o pólo de uma «Filosofia da Fisioterapia», sem a qual a Fisiote- sentação) de definir a sua actividade com vista a autonomizá-la de outras como
rapia e os fisioterapeutas se arriscam a cair num profundo caos de inteligibili- a Osteopatia, a Quiroprática, a Acupunctura, ou mesmo a Terapia Psicomotora,
dade acrítica, que é o mesmo de que empresas carnívoras se aproveitam para a Terapia Ocupacional e a Educação Física. O que me leva a considerar que a
vender "métodos" como produtos de hipermercado, que é o mesmo também Fisioterapia encarada na perspectiva "institucional" e até mesmo "sócio-polí-
que vitima o fisioterapeuta à compreensão muitas vezes trôpega, francamente tica" não pode facilmente compatibilizar-se com uma visão "filosófica", senão
enviesada, da natureza funcional do paciente. Esta «Filosofia da Fisioterapia» é "antropológica", da Fisioterapia, a perspectiva de uma Racionalidade que visa a
pré-requisito obrigatório da assunção de uma nova Fisioterapia, de uma Fisiote- Totalidade, a impartibilidade, a infinita continuidade, os ditirambos de um Cor-
rapia do novo milénio, da Nova Era, do tempo pós-moderno, que é o tempo das po que urge como Unidade irredutível a categorias, classificações, nomeações,
meta-narrativas, aquele que afirma a epifania de um pensamento resultante da ou mesmo sistematizações patológicas, metodológicas e sistemáticas.

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Luís Coelho A Clínica do Sagrado

Ousa ser tão artificial quanto as definições socio-políticas das profissões e cientificidade do tipo de uma racionalidade noética, uma cientificidade pós-
actividades referidas a visão científico-materialista do Corpo, reificada de modo moderna que permite cruzar num só olhar indiferenciado uma pluralidade de
retumbante pela Medicina nascente com o liberalismo político e económico, olhares e perspectivas quase infinitamente transfiguradas. Porventura, o risco
perspectiva assumidamente importante para a Medicina prescritivista e até de firmar como verdadeiro o que é caricato existe, à semelhança do risco do
uma parte da Enfermagem, decididamente indispensável na aprendizagem do "relativismo dogmático" (Popper), o que lá nos leva a requerer como igualmente
estudante de Fisioterapia que mergulha nos livros de Anatomia, Fisiologia, Pa- indispensável o "corpus" de saberes tradicionalmente científicos, que, no plano
tologia e Biomecânica e que requer a "divisão" abstracta do movimento nas recente da nossa profissão, tem ganho o aspecto de um tumulto de estudos
primeiras observações e análises cinesiológicas (de outro modo, seria extraor- do tipo "estatístico-probabilístico", que tanto obcecam os nossos jovens na sua
dinariamente difícil reificar as primeiras aprendizagens no plano analítico dos visita diária ao Pubmed. Mas igualmente ridículo é obviar uma intervenção com
estudos do Movimento), igualmente necessária ao jovem profissional inexpe- base no que os "estudos" dizem ou deixam de dizer. Confio mais rapidamente
riente no tracto do doente e, como tal, demasiado agarrado às construções da nas leis da Biomecânica e nos princípios do Raciocínio Clínico baseados nos
Academia (pois que nele não habitam ainda outras referências), mas esmaga- pressupostos anátomo-funcionais (malgrado o princípio baconiano da observa-
doramente limitadora da visão avaliadora e da liberdade e criatividade de inter- ção - "ingénua" - que lhe está implícito), se bem que de nada serve utilizar um
venção no palco de um paciente que opera como totalidade, unidade complexa modelo sem a adequada adaptação à idiossincrasia do paciente...
em que as diferentes componentes do corpo funcionam como peças de um É conveniente desconfiar desse multiverso de estudos que preenche os olhos
puzzle, com este a reiterar um sentido somente quando completo e finalizado, dos académicos, dos estudantes e dos jovens terapeutas. As lacunas, a falência
integrado num Eureka gestáltico em que o Todo grita euforicamente a autono- metodológica e epistemológica, a fraude enquanto regra de execução de in-
mia perante as partes destituídas de "ser" e de "sentir". vestigações quase sempre movidas por intenções de título ou grau académico,
O fisioterapeuta experiente sabe aquilo a que me refiro. O verdadeiro fisiote- todo um manancial de epifenómenos associados à aventura da publicação em
rapeuta aprende a re-observar o corpo do paciente, destituído de marcos, qua- revistas quase sempre comprometidas com interesses, um pouco à semelhan-
se esquecendo os mapas anátomo-funcionais, visando o "ser" na sua prístina ça das motivações empresariais da investigação, que rememoram o conluio
nudez, na sua indiferencialidade e inseparatividade, permitindo-se, ousando, que filósofos como Marcuse, Habermas ou Lyotard reiteraram na relação com-
ver o corpo do seu paciente como se contemplasse um corpo pela primeiríssi- prometedora entre ciência, técnica, política e ideologia capitalista.
ma vez, à imagem de uma criança que lança o olhar ingénuo perante a robustez A dependência de estudos ou de "guidelines" enquanto instrumentos orien-
de um mundo que se pretende obra acabada, humanamente definida e orde- tadores e catalizadores da intervenção clínica não pode deixar de se semelhar
nada. à plena acção massificada do terapeuta, que, entretanto, deixou de o ser, para
O fisioterapeuta "criança" não é obviamente um selvagem (no sentido algo que se transformasse num "guia de exercícios" ou num "instrutor de classes",
rousseauniano da palavra), pois que a sua virgindade de olhar constitui menos que é como vender a alma ao diabo, porque já a Fisioterapia deixou de o ser no
uma virgindade primeva do que uma "virgindade readquirida", capaz de firmar momento em que o "terapeuta" substituiu a visão idiossincrática do Universo-
a sobreposição da criatividade e da heurística na avaliação e na intervenção, Sujeito pela visão probabilística do Universo-Grupo. Quem ousa controlar um
com estas duas a serem uma só, e o próprio terapeuta e o paciente a serem Grupo nada controla, nem sequer nenhum dos seus elementos. Como se um só
um só. elemento não fosse ele já todo um complexo Universo em permanente trans-
A Pós-modernidade demanda precisamente a síntese de um caminho dialéc- formação, um infindável interpolar de variáveis, capaz de ousar a impossibili-
tico em que a cientificidade teve o seu papel. Mas o tempo da intervenção não dade de controlo ou terapêutica, porque a quase infinita sucessão de aconteci-
é o tempo da cientificidade académica, se bem que o raciocínio clínico tem algo mentos que concorrem para uma só manifestação reivindica a impossibilidade
(muito, aliás...) do método científico. O tempo da intervenção reterá talvez a de alguma coisa controlarmos, percebermos ou influirmos (?)...

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Luís Coelho A Clínica do Sagrado

Reduzir o nosso Universo-Paciente a um conjunto de regras ou de itens orien- auto-inventiva e auto-reflexiva, não tem direito a ser "Superior", mas somente
tadores, esquecendo que os estudos de índole estatístico-probabilística falam a consubstanciar-se na redução de uma "profissionalização" com um mote de
somente de "tendências", "ponderações" e "generalizações", o que significa que dependência de outras profissões e outros profissionais.
podem não ser representativos de uma só unidade subjectiva, enfim, reduzir A leitura de estudos e a efectuação de formações e/ou de pós-graduações,
a complexa dinâmica psico-morfo-analítica a um quadro de médias e de jogos ou seja, o termo corrente de aprofundamento de saberes, não é suficiente para
ponderativos é de tal modo ridículo que até poderia ficar admirado pelo facto que o Terapeuta se reifique enquanto tal (apesar de desempenhar um papel
de muitos dos nossos jovens terapeutas não desconfiarem de que "o Rei vai importante no processo...). Diria até que é pouco importante face a outra coisa
nu". Mas é precisamente disto que se trata... Quando todos querem ver o Rei que considero verdadeiramente decisiva, senão a única coisa que fará do te-
nu com roupa acabam mesmo por vê-lo vestido, e da mesma maneira, os nos- rapeuta um profissional verdadeiramente autónomo, um homem no sentido
sos jovens terapeutas têm por costume sair das escolas e Universidades com ontológico do termo. Refiro-me à Sabedoria, a qual é, por definição dos antigos,
a cabeça mais absorta do que plena de Conhecimento, cumulada mais de con- conhecimento "não mediado". 'Sophia', para ser mais preciso, e que se refere a
ceitos do que prenhe de Sabedoria. Anos e anos de aprendizagens feitas mais um Conhecimento do tipo "Gnose" e que respeita ao conteúdo Interno ("Eso"),
em livros e mediante instrumentos artificiais do que propriamente por meio da profundo, do saber, o qual tem de ser necessariamente vivenciado, sofrido, per-
aprendizagem activa da Vida acabam por fazer com que os Saberes optem por corrido pelos estrépitos de uma reflexão que dói, que intimida, que assusta,
valer por si mesmos e não pelo seu objecto de conhecimento e desvelamento mas que não pode ser atalhada, porque quem a ela está destinado dela não
da Realidade. Quão triste é ter uma cabeça repleta de estudos, classificações e pode fugir. E o terapeuta, o verdadeiro terapeuta, dela também não pode ousar
conceitos que, ao invés de aproximarem Sujeito e Objecto, o Eu do Paciente, o fugir. Não pode utilizar estudos, guias e sistemas de regras indefinidamente en-
Ego da Totalidade, mais contribuem para toldar e agigantar o caminho que se quanto paliativos de um saber verdadeiramente vívido do Ser. Não pode adiar
pretende substantivar. No caso dos novos jovens terapeutas, a obsessão pela para sempre o encontro inexorável com a intimidade do paciente, que é a sua
cientificidade não pode deixar de ser vista como alienadora, já para não falar própria intimidade ontológica, que é também a intimidade Ética da Humanida-
das deficiências nas habilidades relacionais e tal-qualmente no respeitante à de e a intimidade Metafísica da Meta-Humanidade. Nada disto, nenhuma desta
aptidão compreensiva das necessidades do paciente. profundidade ontológica pode dispensar a Filosofia como pré-requisito central
Imputo grandemente aos académicos boa parte da culpa da referida aliena- do acto fisioterapêutico. Nenhuma desta intimidade prístina do "auto-encontro
ção, com a Fisioterapia científica a ser muitas vezes vítima do divórcio da reali- com o outro" (Ricoeur) pode despender da privacidade reflexiva e de anos de
dade do próprio paciente, como se a vontade deste fosse vã face à totipotência sofrimento de auto-encontro. Em suma, nenhum fisioterapeuta genuíno pode
da Técnica e do Terapeuta. Muitos de nós não nos admiramos com este tipo de deixar de ser um filósofo, assim como nenhum homem verdadeiro pode viver a
"desenvolvimento", até porque muitos dos professores das citadas técnicas não vida sem o pré-requisito do pensamento e da Palavra.
chegaram sequer a ser terapeutas (no sentido "profissional" do termo), realida- A Palavra feita Verbo, e se "No Princípio era o Verbo" é porque a Palavra é
de anedótica que foi crescendo em Portugal e na Europa na mesma proporção o início de todo o acto criador. A palavra é pensamento e o pensamento é a
do crescimento exponencial do número de escolas criadas para formar os ditos Palavra. E o terapeuta que observa, testa, avalia, toca, modela, verifica, retesta,
"terapeutas". E é este clima alienadamente científico que se prescreve aos fu- mobiliza, manipula, transfere, orienta, ensina, aconselha, reavalia, sente, faz-
turos terapeutas, um pouco como se a Universidade servisse mais a esclerose se sentir, ouve mais do que se faz ouvir, é quase como que um demiurgo, um
do pensamento e do cepticismo do que o exercício da Inteligência Criadora e construtor, um escultor, que tem no paciente o seu Deus, o seu Divino, porque é
a defesa das Estruturas, Valorativas e Intemporais. Uma escola de Fisioterapia o paciente que possui a pura Liberdade e a Pura Necessidade. E é assim que, se
que não forneça ao Terapeuta os instrumentos do espírito crítico e as matrizes é o Terapeuta o principal decisor do plano de tratamento, é o paciente o supre-
fundamentais do exercício de uma Fisioterapia consciente, criativa e criadora, mo decisor dos objectivos da intervenção. E nunca nenhuma parte do processo

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deveria ousar ser traída em nome de uma suposta cientificidade ou em nome manuseamentos com um efeito anti-inflamatório local, poderá ser o resulta-
de um qualquer "deve ser", pois que o "deve" deixa de "dever" com a velocidade do de uma dinâmica postural extraordinariamente mais complexa, no sentido
de uma décima de segundo, com a concupiscência de uma reacção química. inclusivamente anamnésico/histórico: a tendinite poderá ter origem na sobre-
É assim a Fisioterapia como a pura alquimia transformadora, auto e inter carga biomecânica do tendão associada à utilização "viciosa" da articulação do
transmutadora, que não se limita a dar ao paciente alguma habilidade ou a tol- ombro, que poderá ter o contributo de uma alteração postural como a hiperci-
dar o seu sofrimento; pretende, de igual maneira, presentear o paciente com a fose dorsal; por sua vez, a hipercifose dorsal poderá ter uma série de origens,
totalidade das ferramentas necessárias à sua transformação com vista à perfec- assumindo que não se trata de uma verdadeira e estruturada malformação
tibilidade, processo quase nunca inteiramente coisificado, raramente pretendi- congénita: compensação da hiperlordose lombar, retracção do diafragma, en-
do ou desejado, mas ambição da relação terapeuta-paciente, a única que uma curtamento das cadeias musculares ântero-internas, insuficiência muscular
Ética unificadora e construtiva poderá proclamar genuinamente. A Fisioterapia dos músculos inter-escapulares, entre outras, com as referidas a poderem es-
é, então, muito mais do que uma simples demanda de um Terapeuta Demiur- tar presentes em conjunto ou isoladamente; entretanto, cada uma daquelas
go. É a plena capacitação do paciente de tudo aquilo que pode Ser e já É mas alterações poderia estar associada a um conjunto extensíssimo de outras alte-
somente não consegue vê-lo ou reconhecê-lo, é a totalização de um processo rações... por exemplo, a hiperlordose lombar poderia ser o resultado do encur-
que unicamente o paciente poderá concluir, pois que se trata da busca de um tamento da musculatura paravertebral e/ou do encurtamento do diafragma e/
Sentido próprio, do encontro com o seu "Princípio" fundacional e arquetípico, ou do encurtamento do psoas, e poderia estar associada a uma alteração do
aquele que nunca deixou de estar presente. alinhamento dos membros inferiores com ou sem dismetria, aumentando o
Não pode obviamente o paciente iniciar um caminho de auto-encontro se risco de certas artroses ou de certos processos inflamatórios... E poderíamos
estiver toldado pela dor e o sofrer, o que demanda que, desde o primórdio da continuar eternamente, pois à semelhança do que acontece com o "efeito bor-
relação terapêutica, o fisioterapeuta não pode deixar de se sacrificar em nome boleta", uma causa ou manifestação muito simples poderá estar associada, cau-
do seu paciente, permitindo que a entropia do corpo deste seja transmitida sativa ou consequentemente, a todo um outro conjunto de alterações, com o
à entropia do corpo do próprio terapeuta. E não pode igualmente tal trans- ciclo vicioso resultante a poder não ter um fim realista em vista, o que nos pode
missão "energética" ocorrer verdadeiramente se o terapeuta se limitar a tratar até levar a pensar que toda a tentativa de intervencionar a um nível postural
uma parte do corpo ou um "locus" sintomático, pois que isso somente permitirá acaba por ser inútil, dado que não podemos controlar um número considerável
transmitir a entropia duma parte do corpo do paciente para outra parte do de variáveis ou factores envolvidos (tenho dito o mesmo relativamente à Psica-
mesmo corpo. nálise e à tentação do psicanalista de alterar "positivamente" o estado de uma
Daí que tenha sempre visto na Reeducação Postural e no raciocínio verdadei- "psicodinâmica"). Daí que se um qualquer Demiurgo ou Super-Homem (utilizo
ramente holístico a solução preventora de tais substituições sintomáticas ou o termo no sentido evocativo de Nietzsche) poderia ser o Ente capaz de con-
compensações patológicas. À semelhança do que acontece com a Psicanálise trolar a totalidade ou a quase totalidade de factores e dinâmicas envolvidas, o
no respeitante à complexa dinâmica da Psique, também a Reeducação Postural Terapeuta, enquanto simples homem que é (se bem que a sua plena maturação
permite conceber a interpretação causativa de uma simples manifestação num enquanto terapeuta não perde de vista o topo da montanha, residência apazi-
círculo psico-morfo-dinâmico que poderá não ter sequer um fim realista senão guadora do Super-Homem), nunca poderá ambicionar mais do que o controlo
aquele que consideramos como mais relevante ou significante para a situação dos principais factores, daqueles que ele mesmo enquanto profissional iden-
em causa. tifica como mais relevantes ou significativos, o que, de algum modo, aumenta
Posso dar um exemplo, entre um infinidade dos que poderia evocar. Uma ainda mais a responsabilidade do terapeuta. O que não implica que não possa
simples tendinite do tendão da longa porção do bicípite, que seria tratada na tentar controlar um número elevado de factores ou variáveis, o que, acrescen-
maioria das Clínicas e até mesmo dos Hospitais com recurso a tecnologias ou tando-lhe as possíveis contra-indicações de certos métodos para o paciente em

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Luís Coelho A Clínica do Sagrado

causa, as variáveis orgânicas, e as próprias necessidades do paciente, leva, por mento que fixará a palavra última e mais valiosa.
um lado, mais uma vez, à extrema dificuldade em controlar perfeitamente um Infelizmente nem a inteligência filosófico-conceptual poderá acautelar o
estado clínico (malgrado a tendência dos cidadãos para pensarem que, em Saú- abraçar de certas atitudes mais dogmáticas, sendo que, muitas vezes, o maior
de, tudo é óbvio e fácil, racional e absoluto, quando o "relativo" é que é a regra dogmatismo reside precisamente no ventre dos mais importantes Sistemas, os
dominante) - coisa que mais provavelmente o levaria à perfeita loucura -, e por mesmos que tenho pretendido valorizar. Popper diagnosticava o "relativismo
outro, à diminuição do conjunto de opções disponíveis em termos de métodos dogmático" na Psicanálise, no Platonismo, e também em Hegel e Marx, e, se
ou técnicas a utilizar (dependendo da condição do utente, haverá decerto mé- conhecesse, por exemplo, o método Mézières ou o método Bobath, não estaria
todos, posições e recursos terapêuticos que deverão ser utilizados preferencial- muito longe de identificar neles alguns aspectos do dogmatismo relativista (se
mente, entre outros que deverão ser esquivados). bem que estes métodos possuam bases seguras em leis da Biomecânica... o
A imprescindibilidade de um profissional de saúde ser adequadamente for- que os torna, de algum modo, incomparáveis aos modelos de teor mais men-
mado prende-se sobretudo com esta lógica de super-controlo, coisa menos talista)... o mesmo relativismo pós-moderno que também requeremos para a
provável de existir nos pseudo-profissionais, se bem que é teoricamente aceitá- necessária complexificação filosófico-espiritual da Fisioterapia, aquela que os
vel que um simples auxiliar de Fisioterapia ou de acção médica domine determi- fisioterapeutas ainda estão longe de reter, aquela que urge como obrigatória
nada técnica ou temática melhor que um terapeuta adequadamente licenciado para a emergência de uma Fisioterapia auto-reflexiva, assumindo que a inter-
(para não falar do conjunto imenso de terapeutas "mal" licenciados)... venção mais "responsável" e Humana será aquela que ancora num conjunto de
Relativamente aos resultados obtidos, lembremos que a própria "melhoria" bases como as que venho sublinhando.
ou "agravamento" de uma condição ou manifestação não deixa de ter algo de Assumir a ausência de um adequado "corpus" de Saber epistemológico den-
interpretativo, no sentido de um julgamento de valores. O que é melhor para o tro da Fisioterapia é antever o caos da própria Fisioterapia enquanto arte "cien-
terapeuta pode até nem ser melhor para o paciente, ou o que o paciente deseja tífica", senhora de um conjunto quase inesgotável de métodos e paradigmas
pode não ser aquilo que achamos que é melhor para ele. E lembremos que muitas vezes desnudados de uma matriz reflexiva e contextualizadora. Neste
respeitar a autonomia do paciente não significa necessariamente fazer tudo momento, em Portugal, apesar de existirem quase duas dezenas de instituições
o que ele deseja, tal como tratar um filho que se ama incondicionalmente não de ensino graduado e pós-graduado em Fisioterapia, não se conhece nenhum
implica que o mimemos exageradamente ou lhe façamos todas as vontades. corpo de investigação filosófica e epistemológica em Fisioterapia, tal como re-
Aparentes contradições à parte, o bom terapeuta precisa do necessário bom- dundam no vazio possíveis investigações casuísticas de mote hermenêutico.
senso requerido para equilibrar um conjunto de pressupostos e de decisões Um estudo de caso em Fisioterapia ou em qualquer outra área clínica não
aparentemente antagónicos. Não é decerto nos estudos ou na Academia que o deveria ser consumado só de aspectos quantitativos mas igualmente deveria
terapeuta irá recolher este tipo de sensibilidade (até porque, por maior que seja preencher-se de aspectos interpretativos, com alicerce numa hermenêutica (ou
a prolixidade de estudos realizados e lidos, nunca poderá ser realisticamente analítica) do paciente, numa "exegese" da fenomenologia da sua transformação
preenchida a necessidade de controlo de um número relevante de variáveis em qualitativa, semiológico-proxémica (vide a importância da análise semiótica...) e
jogo, no respeitante aos momentos avaliativo e de tratamento; se assim fosse, funcional (incluindo os aspectos do movimento representativo-funcional, numa
num qualquer futuro utópico, um computador seria capaz de nos substituir na óptica psicomotora e motricista). Assumir, como assume a grande maioria dos
nossa actividade, o que me parece quase impossível, pois que, mesmo no plano novos fisioterapeutas, que tudo o que não é mensurável não tem valor é as-
de uma visão "determinista", o número extraordinariamente elevado de facto- sumir alienada e orgulhosamente a limitação do paradigma científico-liberal e
res jogados inquina a possibilidade de um bom trabalho terapêutico poder ser o condicionamento mental na obsessão do concretismo materialista. Nada de
feito por um autómato autista). Seria mais provável que o recolhesse nas fontes grave se estivéssemos a falar de fenómenos estritamente físicos e de número
literárias e filosóficas, se bem que é a própria vida de relação e de auto-cresci- comensurável e finito de variáveis integrantes. Muito grave se nos referirmos

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ao ser humano e se recalcitrarmos na obsessão dos estudos estatístico-proba- texto da própria Sociedade? Como conseguir que a Fisioterapia consiga munir-
bilísticos, que são, a meu ver, a grande fraqueza das Ciências Sociais desde a se de "representações sociais" mais "aceitáveis" se não há sequer um empenho
sua frustrada tentativa de assunção de Cientificidade sob os auspícios da moda de mitificação, senão somente o esforço de forçar estudos a assumirem resul-
positivista no séc. XIX. tados "suspeitos", assim como o esforço ego-maníaco e narcisista de preencher
Como já terei demonstrado em «Corpo e pós-modernidade» (2012), a dialécti- o Currículo de formações e de graus académicos? Não reconhecerá o jovem
ca e o paradigma pós-moderno são os pré-requisitos do entendimento de uma académico a insegurança narcísica no eterno adiar da vida profissional, nesse
Fisioterapia da Nova Era, se bem que não será propriamente necessário abra- eterno "ser-se estudante", nesse inacabável enchimento de mestrados e douto-
çar certos exageros pós-modernos (que eu próprio perfilhei no dito livro) ou até ramentos que não possuem qualquer utilidade "operática" para a Fisioterapia?
mesmo espiritualistas (como terei perfilhado em obras posteriores). Entendo, A Fisioterapia do futuro precisa decerto de investigações, mas até estas re-
por exemplo, a epistemologia científica como um terreno tão relevante quanto querem a Epistemologia para que possam ser realizadas com um rigor e uma
a Ética, incluindo o estudo dos Paradigmas à luz de Kuhn, enquanto matriz con- dimensão que ainda não são os que se desejam. E a Fisioterapia precisa, muito
ceptual necessária ao futuro e actual fisioterapeuta. Matérias já bem presentes mais ainda, de um rigor crítico, de pensamento, de uma prática auto-reflexiva,
nos cursos de Psicologia ou Enfermagem, mas muitas vezes consideradas "ex- de homens capazes de questionar, de profissionais com a coragem de ousar, de
cedentárias", simples excrescências, no contexto da Fisioterapia. desafiar, de controverter, de revolucionar. E, obviamente, esse mesmo pensa-
Se é bem verdade que "quem só de Fisioterapia sabe nem de Fisioterapia mento, essas ideias deverão passar à prática, por meio de Obras, de projectos
sabe", tal não se esgota no contexto dos saberes filosóficos, psicológicos ou es- inovadores, conceitos vanguardistas, todo um manancial de "Óperas" em que
pirituais. Será, porventura, assim tão despropositado referir a importância dos esteja presente o cruzamento do clássico com o "nunca visto", até porque a Pós-
saberes literários, artísticos e musicais para a formação e engrandecimento de modernidade é o tempo "fora do tempo" em que todos os modelos, estruturas
um fisioterapeuta? Se é normal assumir que um médico os possua porque pa- e narrativas podem ser aceites e jogados no desafio do futuro e da tolerância, é
rece tão "a despropósito" no contexto de um fisioterapeuta? Se até há cerca de o tempo da "desconstrução", da re-interpretação, da "neo-construção".
20 anos os pré-requisitos da formação de um fisioterapeuta poderiam explicar, E perante este fluxo de possibilidades, o que fazem os nossos jovens? For-
de algum modo, uma certa falência intelectual, como explicar a nova ignomínia mações e mais formações, muitas vezes não integradas numa soma cumulativa
dos jovens terapeutas, quando estes possuem altos graus de escolaridade e que só servirá o caos, a confusão cognitiva, a intoxicação mental e interventiva.
até perdura uma certa exigência na nota de entrada para o ensino superior e Mestrados e Doutoramentos que servem somente o estúpido orgulho narcísi-
a suposição de uma exigência mínima da frequência e conclusão deste último? co, numa Europa em que só mesmo Portugal liga aos graus e aos títulos, pois
Que esperar da Fisioterapia portuguesa quando os jovens terapeutas revelam que tais pós-graduações pouco servem à experiência e até à reflexão. Partici-
tamanha ignorância literária e reflexiva? Como propor a competitividade da Fi- pações nos mundos do marketing, da publicidade, numa tentativa "multicolo-
sioterapia enquanto profissão e a assertividade dos fisioterapeutas no contexto rida" de exprimir a Fisioterapia pelo "lugar comum" dos desportos, dos atletas
de uma Equipa multidisciplinar, se os terapeutas se limitam ao estudo de alguns famosos, das Clínicas prestigiadas e luxuosas para uns poucos burgueses ou
aspectos mais quantitativos da Fisioterapia, relevando para segundo plano os novos-ricos (senão políticos de algibeira, como os que temos neste nosso país
clássicos, sejam os da área, sejam os do Universo filosófico-literário? Como con- da bananeira), como se o melhor fisioterapeuta fosse o mais rico, como se a
seguir que a "mística científica" da Fisioterapia consiga destronar a "mística es- melhor fisioterapia não fosse a que sai das nossas mãos, como se toda a Fisio-
piritual" das "medicinas" não convencionais, se o terapeuta se define pelo vazio terapia fosse a reabilitação do futebolista ou a preparação do atleta olímpico,
de conteúdos do reino do Inteligível? E, sobretudo, como ter esperanças que, quando a verdade é que estes são precisamente os "clientes" mais perturbados,
somente por meio de uma cientificidade estatístico-probabilística, o terapeuta porque, em nome da fama ou do dinheiro, escolhem voluntariamente fazer a
se possa afirmar intelectual e profissionalmente junto dos pacientes e no con- violência aos seus corpos, com a estúpida conivência dos "fisioterapeutas do

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desporto", que mais não fazem que ajudar na perpetuação de uma lesão, e muscular e do alongamento fascial - do que as técnicas de reforço, obsessão
se sentem vitoriosos por que a "sua" equipa venceu uma Taça, um bocado de ainda dominante no mundo da Fisioterapia e da Actividade física em geral, coi-
lata que nem ao orgulho patriótico serve. O alargamento da Fisioterapia para sa explicável pela tónica na performance, vista como instintiva e esteticamente
territórios como a Estética, os spas, como se tudo isto - os feitiços da mente - prazenteira e produtiva e profissionalmente pertinente, fixações do próprio Sis-
fosse Saúde, como se o simples "relaxamento" psico-físico não integrado em tema industrial e da Sociedade organizada segundo os preceitos da competiti-
algo maior pudesse confundir-se sequer com uma Psicanálise bem realizada ou vidade animalizada), em que o Instinto se torna pulsão, e o sexo sexualidade
com uma integração reflexivo-espiritual só acessível às mentes residentes num (e.g. Freud) e erotismo (Bataille), em que a acção se transmuta em intenção e
certo patamar de Consciência... esta em representação, e o movimento se transtorna Motricidade. Solicita-se
Spas, "Bem estar", Fitness, "indústrias do corpo" que ajudam a anestesiar o uma Fisioterapia integrativa dos diversos planos da existência, concorrendo o
poder de uma sociedade doente e opressiva. Paliativos da saúde mental, pla- plano somático e astral para o desenvolvimento do plano espiritual e humani-
cebos bem-vindos à ansiedade que estrangula. Os jovens fisioterapeutas con- tário. Uma Fisioterapia que transponha os diversos planos da Sociedade e os
tentam-se frequentemente com isto, ao mesmo tempo que criticam os anti- diferentes cuidados e sistemas de Saúde, auxiliando no jogo de gestão das osci-
depressivos e os ansiolíticos, como se não fossem todos eles estratégias de lações do mundo material, permitindo o apaziguamento psico-físico requerido
sobrevivência num mundo que sufoca o crescimento e oprime a consciencia- à etapa pacificadora do Outono da Vida. Enfim, uma Fisioterapia enquanto meio
lização (e será que a ilusão não é também necessária à felicidade? Será que a de crescimento, pessoal e colectivo, egóico e supergóico, individual e social, pul-
consciencialização é assim tão redentora? Não será tudo relativo? Não chega a sional e moral, familiar e civilizacional, na História, nas Eras, nos tempos, aqui,
Terapia a ser somente um consciencializar do que se deseja e requer e um não agora e sempre.
consciencializar das verdades mais inóspitas?...). Vejo, como sempre vi, nos grandes modelos e narrativas da Fisioterapia neu-
Quer-se mais, requer-se uma Fisioterapia adaptada a uma Era onde a con- rológica e da Fisioterapia de Reeducação Postural o tecido fundacional de uma
templação estética e a evolução espiritual sejam a regra de todos os seres e Fisioterapia narratológica irredutível ao discurso médico-prescricionista, vincu-
não somente de uns afortunados pela educação ou a sociedade. Requer-se ladamente neoliberal em termos económicos. Meta-narrativas da Fisioterapia
uma Fisioterapia como palco somático do crescimento, em que o Corpo Físico que obviam a visão de um corpo em que as pequenas afecções, e até alguns
(relevando o eixo moderno/performativo/denotativo do "homo faber", numa traumas, são explicados pela idiossincrasia postural (e pelo movimento visto
lógica de desempenho e produção, clinicamente associado ao modelo biomé- como totalidade "psicodramática"), com esta a incluir tanto os aspectos morfo-
dico e pragmaticamente ao controlo prioritário das manifestações sintomáticas lógicos como os caracteres relativos aos desequilíbrios neuro-mio-fasciais vistos
por meios predominantemente paliativos ou placebetários) perde terreno para como causativos dos anteriores. Meta-narrativas de uma Fisioterapia do passa-
o Corpo Soma (com este a relevar o horizonte pós-moderno/reflexivo-simbó- do, da Nova Era, do tempo arquetípico que é um "não tempo", uma arqueologia
lico/narrativo do "homo sapiens", numa lógica de entendimento e integração que Michel Foucault identificava como tempo "clássico", anterior ao liberalismo
projectivo-fantasmática psicossomática, clinicamente associado ao modelo e à revolução industrial, prévio à transformação das 'Artes', cuja transmissão de
bio-psico-social, senão ao modelo sócio-psico-neuro-músculo-esquelético, saberes e valores relevava uma relação do mestre com o discípulo ajustada às
pragmaticamente relacionado com os processos psicomotrizes, os métodos de necessidades próprias do último e à dinâmica ritualística do passado mediada
domínio neuro-motor e o longo prazo estrutural consumado no conjunto dos por iniciações e "passagens", em 'Profissões', com sobreposição de uma lógica
modelos que perspectivam um corpo enquanto palco de Cadeias musculares, de massificação do ensino que a recente tomada de uma atitude hiper-facilitista
senão enquanto única Cadeia neuro-mio-fascial ou mesmo Una Cadeia psico por parte das escolas e Universidades somente veio agravar... relativamente
-organo-neuro-mio-fascial... portanto modelos que valorizam mais as técnicas a este ponto, escasseiam as palavras suficientemente duras que permitam a
de "inibição do corpo hegemónico" - por meio exemplificativo do relaxamento crítica às escolas de Fisioterapia que se permitiu surgirem como fungos nos

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últimos 15 anos: vende-se a noção de Cientificidade como mote de desenvolvi- aluno não lê nem pesquisa, somente "marra" tópicos, o que, mais a mais, nos
mento de uma Fisioterapia do Futuro, permitindo escoar a ideia de que é esta a leva a não nos admirarmos que, mais tarde, os novos fisioterapeutas pensem
base própria e adequada do Academismo, num esquecimento daninho de que que a Fisioterapia é algo que possa ser praticado a partir de regras e linhas
as Universidades foram construídas como base de prossecução dos "Univer- estritas, como se a complexidade multi-paradigmática não existisse, como se
sais", dos Valores, do grande Conhecimento, no sentido da grande Racionalida- só existissem realidades certas e objectivas, receitas rígidas e respostas fixas
de noética... como se a Fisioterapia académica não necessitasse precisamente para a intervenção. Pois que, mesmo nos termos de um só paciente ou condi-
dos seus grandes Sistemas, dos seus ilustres Autores, da sua Teoria enquan- ção, várias respostas terapêuticas podem ser recrutadas, com este relativismo
to Testemunho, das suas Narrativas conceptuais e reflexivas, sem as quais a a depender mais do paradigma inerente ao Terapeuta que "constrói" o paciente
cientificidade per si não passará dum amontoado desorganizado e acrítico de do que da condição do paciente em "si mesma", que o terapeuta mais ecléctico
estudos (informação massiva, um pouco à imagem dos novos tempos interné- ou maduro, e sobretudo paradigmaticamente descomprometido, saberá (?) ver
ticos que preconizam a overdose de informação descentrada dum núcleo in- com maior objectividade. E pois que é precisamente a complexidade multi-pa-
terpretativo, crítico, comparativo, organizativo, meditativo); temos escolas sem radigmática presente idealmente no ensino das escolas e Universidades que
tradição académica com conteúdo, permitindo-se confundir os grandes Valores permite a adequada compreensão da multidimensionalidade do paciente, dos
da Academia, a tradição no seu sentido nobre, com estúpidas práticas de praxe, métodos, do próprio fisioterapeuta, base inerente à entidade de um terapeuta
reificadas por estudantes imbecis, sem palco de cultura, sem referências inte- que pensa e complexifica - pré-requisitos da vivência meditativa não mediada
lectuais, a não ser que consideremos como "cultura" ou "referência" a estúpida -, prólogo de uma Fisioterapia enquanto matéria pensante e pensada que não
capa ou batina que o ainda mais ignóbil e vazio estudante veste num exercício pode ser decidida nos termos de uma consulta médica mas somente mediante
de arrogância, que até poderia ser aceitável se tivesse por trás uma mente re- a actividade pensante e de "livre escolha"/"livre-arbítrio" de um fisioterapeuta
forçada de Valores e contextos, mas somente tem por trás o parasita que o capaz de avaliar e decidir os meios de actuação a partir da necessária dialéctica
novo estudante universitário constitui; nunca as escolas tiveram tantos cursos, interna entre aquilo que identifica no paciente e aquilo que é o seu próprio
mestrados e doutoramentos, nunca os seus corpos docentes foram tão gradua- acervo cognitivo de métodos e paradigmas.
dos, e nunca houve tamanha ignomínia, tanta incultura e desfaçatez por parte Será a desejável Fisioterapia da Nova Era possível no conjunto do mundo ou
dos novos docentes (com óbvias excepções), num desmazelo conceptual que somente na ilha da Utopia? Trará a Clínica o Admirável Mundo Novo somente a
nos faz ter saudades dos tempos do velho Alcoitão, num passado em que ainda uns poucos ou ao conjunto da Civilização que se pretende pacificada?
se ensinava que de facto "cada caso é um caso", em que os velhos mestres sa- Será preciso repetir o que está à vista de todos? Não está o secular e renas-
biam passar - com conhecimento pessoal, vívido, experiencial - os saberes dos cido sistema neoliberal a querer perpetuar a visão do doente como número e
grandes paradigmas e dos antigos modelos, em que existia mais exigência no da Fisioterapia como um conjunto desconjuntado de técnicas previstas num
exercício dos saberes, dos conceitos e das práticas no antigo e extraordinaria- agrupado de códigos prescritivos? Não está a Fisioterapia do presente feita para
mente difícil Bacharelato do que nas novas licenciaturas do "faz de conta", em agradar ao Sistema, com um conjunto inútil de intermediários - incluindo essa
que notas e passagens são servidas numa bandeja de prata, como se o curso especialidade serôdia da Fisiatria - a comerem à custa do esforço intrépido de
estivesse garantido a quem tem meramente a possibilidade de o pagar, em que, terapeutas afogados em trabalho e das carteiras de pacientes afogados em dí-
inclusivamente, um trabalho final de curso deixou de ser uma Monografia en- vidas? Que Sistema é este que, em Portugal, permite o tratamento feito num
quanto investigação verdadeiramente realizada para passar a ser um projecto número ilimitado de pacientes em simultâneo (num modelo de "fisioterapia de
ou anteprojecto que se faz em dias, as aulas deixaram de ter por base os livros, ginásio" que roça o cómico, com o terapeuta a parecer muitas vezes mais o
os clássicos e até os artigos e passaram a valorizar os slides desse epifenómeno instrutor físico que ordena exercícios do que o profissional que manuseia e se
chamado "PowerPoint", num exercício de estimulação da preguiça, porque o relaciona com o paciente)? Que Sistema é este que, no nosso país, permite a

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profunda confusão entre terapeutas licenciados, falsos terapeutas, terapeutas Urge fornecer ao jovem estudante de Fisioterapia uma adequada educação
"não convencionais", imiscuindo-os num caos de leis inexistentes ou mal cons- filosófica, muito particularmente na área da Epistemologia científica e da Filo-
truídas? Que país é este que se exclui do controlo do funcionamento do ensino sofia da Ciência, eventualmente compartilhável no exacto momento em que
superior, permitindo a abertura indiscriminada de escolas de formação, sem lhe são dados alguns instrumentos de análise metodológica. Sem essas bases
que haja uma adequação entre os números de formandos e as promessas do nunca o fisioterapeuta poderá seriamente fazer ciência e pensar a Ciência... e
mercado? Que Fisioterapia poderá ser realizada por terapeutas a trabalharem aqui utilizo o termo no seu sentido grego de «Epistémi», que significa "Conheci-
quase a título gratuito? Que tipo de Fisioterapia poderá existir no país se so- mento", "Razão" (sendo que, na escala platónica, a "Epistémi" se perfaz de dois
mente o Privado permite a prática dos métodos nobres e se só uns poucos pri- níveis: um nível de "Dianóia", que tem mais a ver com o terreno científico - aqui,
vilegiados poderão ter acesso a estes mesmos métodos, já depois de também no sentido convencional/clássico e materialista do termo - e até clínico com que
os próprios terapeutas terem tido um acesso enviesado às formações, dado a os terapeutas estão mais familiarizados, e um nível de "Noésis", que diz respeito
seu elevadíssimo custo? ao nível de Razão que advogo, ao nível de Ciência - não entendida enquanto tal
Recentemente os fisioterapeutas começaram a identificar uma potencial li- na sociedade moderna - que aproxima, e não distancia, Sujeito e Objecto, Inves-
nha de lucro na criação de empresas de formação. É um pouco como viver à tigador e Realidade Objectiva).
custa do engano dos próprios formandos. Mas quando alertados para o facto, Haja, então, uma adequada aproximação do terapeuta/investigador ao ter-
alguns dos jovens terapeutas vituperam que os recém-formados são adultos e reno da Razão no seu sentido mais subtil, noético, que é precisamente aquele
donos de si. O que é curioso, porque no momento em que os mesmos jovens que aproxima, que funde, que torna tudo uma só coisa, sem divisões, fragmen-
terapeutas se decidem à mesquinhez de "denunciar" pseudo-profissionais com tações ou inúteis abstracções. Reconheça-se a realidade inexorável do marke-
base no pressuposto da "defesa do interesse dos utentes", aí as regras do jogo ting a velar a realidade menos obscura dos métodos e das técnicas; dispam-se
mudam e já as pessoas passaram a ser umas pobres coitadas que precisam os métodos dos seus nomes e do fogo de artifício mercantilista, das suas teo-
de ser protegidas. É o mesmo tipo de coerência que leva os jovens terapeutas rias dogmáticas e estudos muitas vezes falseados, e espreite-se a natureza dos
a deificar os estudos fisioterapêuticos e a, imediatamente a seguir, demonizar "signos" desses métodos... entender-se-á que há muitos significantes para um
os estudos farmacológicos, referindo os supostos "conflitos de interesses" das punhado coeso, parcimonioso e unitário de significados, muitos formatos para
empresas e das indústrias; como se os estudos fisioterapêuticos não estives- um conteúdo comum, muitas técnicas e modas para que, no fim, uma natureza
sem também eles repletos de erros, invenções, plágios, descaracterizações eco- "nua" do corpo Uno ouse gritar o seu domínio fenoménico, o único que importa
lógicas, "interesses empresariais", com muitos estudos a referirem resultados ao terapeuta experiente, que deve ser aquele que vê a essência por trás de tan-
positivos no relativo a um método que foi criado pelo próprio autor do estudo, tos véus, ilusões, aparências (o esotérico vale mais do que o exotérico, o interno
o mesmo que pretende vender o seu método à mesma empresa que subsidia vale mais do que o externo, o profundo vale mais do que o superficial, o Uno
o estudo. vale mais que o múltiplo, o Eterno vale mais que o Impermanente, o Princípio/
Perante isto não posso deixar de pensar no "efeito Édipo" referido por Po- Arché vale mais do que o tempo). É, decerto, um campo de trabalho aparente-
pper e na importância do seu critério falsificabilista enquanto proposta de dis- mente contra-intuitivo, até porque a educação ao estilo ocidental condiciona e
tinção entre o verosimilhante/científico e o não verosimilhante/não científico, doutrina as nossas cabeças para pensar somente nos termos do mensurável,
um conteúdo da temática epistemológica entre muitos outros que poderiam do concreto, do dividido, do individual, do "separado", da "peça", do "corpo má-
ajudar o fisioterapeuta a ser um melhor investigador (e também um melhor clí- quina"... E parece bem certo que, se o futuro trará a tecnologização compulsi-
nico), mas que, face a uma "educação superior" em Fisioterapia mais centrada va, a engenharia genética virá a ser fundamentalmente uma medicina de tipo
nos aspectos metodológicos do que nos aspectos epistemológicos da Investi- "individual", adaptada à idiossincrasia genealógica de cada indivíduo, de cada
gação, manter-se-ão enquanto resíduo de desconhecimento, plena nesciência. alma. E é precisamente nesse momento, no puro momento em que os próprios

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conceitos de "alma" ou "Espírito" perderão a sua razão de ser, que o futuro trará e motriz, relegando para segundo plano a quimera tecnológica que, a meu ver,
a plena pacificação do sofrimento, pelo aprimoramento da resiliência genética sugestiona mais do que trata (se bem que, em certos contextos mais "desespe-
face ao atrito do mundo exterior, o que significa que o homem hiper-racional, rados", um placebo pode, de algum modo, ser um tratamento legítimo).
no sentido dado por milénios de construção filosófica e espiritual, terá o seu Imagino o momento futuro em que o fisioterapeuta será capaz de dispor de
derradeiro desabrochar no palco da medicina e da farmacologia do futuro. Mas, um franco capital de inteligibilidade, pelo menos um que lhe permita fazer jogos
mesmo nesse momento, lá continuará o fisioterapeuta a funcionar enquanto de raciocínio e compreender as vicissitudes da "dinâmica" de um paciente, pois
elemento do ambiente exterior, ajudando a desenhar o fenótipo, o design mais que, na ausência de capacidade analítica, fica flagrantemente comprometido
finalizado do sujeito, algo que não pode ser substituído por qualquer químico, todo o processo de intervenção, tratamento incluído. Mais importante do que
pelo menos no palco que se vislumbra no século presente. "boas mãos", boas capacidades manipulativas previamente automatizadas no
Reconheço que os organismos políticos não são sensíveis à visão de uma Fi- terapeuta experiente, é ter "mãos intencionadas por uma mente dona de um
sioterapia pensada para um utente, para o seu corpo enquanto totalidade, para poderoso domínio do Raciocínio Clínico"; estas últimas cumulam a boa capaci-
o trabalho realizado nas condições requerentes de uma (politicamente pouco dade manipulativa com a flexibilidade sempre requerida à adaptação à nova
desejável) consciencialização. Para o político vale somente o número de uma situação clínica do paciente... e, a um nível microscópico, novas situações clíni-
espécie de quantidades que possam ser medidas por si, pelos seus e sobre- cas surgem a cada momento, com a possibilidade da infinitude do decrescer da
tudo pelos eleitores. E à imagem desta perspectiva redutora, a Fisioterapia é escala e da dízima no espaço entre dois momentos imediatos... o corpo está em
pouco mais do que a massagem feita ao membro "dorido" ou do que a máqui- permanente - heraclitiana - metamorfose, e o terapeuta deverá ser a suprema
na que permitirá calar o sintoma funcionalmente limitador. Perante isto, como "Testemunha" dessa fenomenologia da continuidade, desse paciente enquanto
convencer as entidades de que um trabalho feito na totalidade, pensado com "existência a preceder a essência" (Kierkegaard), "ser que existe" (Sartre), "ser
a necessária complexidade, poderá ter uma vantagem gigantesca em termos com intencionalidade" (Husserl), "ser-aí" (Heidegger), dessa transcendência na
de prevenção da recidiva e de novas lesões, da "transmissão sintomática" e da liberdade (Jaspers) ou auto-percepção corpórea (Merleau-Ponty). O corpo fala
recaída no já parco sistema português do optimismo individual? continuamente e o terapeuta interpreta a sua linguagem, ajustando ininterrup-
Como demonstrar que o longo prazo importa, que a qualidade e o sentido tamente as mãos e a práxis à necessidade de um corpo cuja desarmonia requer
de vida são o sumo da existência, que não há já ninguém que queira reduzir a reequilibração, cujo desequilíbrio ordena ao terapeuta a reposição do "mais"
sua vida ao estrago do labor obsessivo de uma precariedade de trabalho inces- ou do "menos" que prenuncia o regresso à homeostase. A dialéctica subsiste
sante? no seio de tais transformações, e também na intimidade do canal que liga o
Imagino o momento futuro de aproximação da Fisioterapia do modelo psi- objecto-Terapeuta ao objecto-Paciente. Já no meu «Corpo e pós-modernidade»
coterapêutico/psicanalítico: uma fisioterapia paga à sessão e não segundo có- me referi à dialéctica materialista e ao Idealismo dialéctico, duas vertentes que
digos de métodos ou técnicas, uma fisioterapia decidida por quem faz, porque, concorrem para a Unidade Terapeuta-paciente, na realidade dois pacientes, e,
no acto de fazer está o acto de avaliar, no acto de observar está o acto de tratar, no fim, que também pode ser o Princípio ou qualquer (não) momento sem tem-
no acto de manipular está o acto de testar; mais uma vez à semelhança da po, Um só paciente, uma Unidade intemporal, metafísica e não metafísica, pura
Psicoterapia, segundo o modelo "psicodinâmico", idealizo uma Fisioterapia em fenomenologia que cruza o fenómeno Paciente com o fenómeno perceptivo
que a sessão de um só utente confunde propositadamente avaliação, registo num só Fenómeno que, apesar de terreno e concreto no sentido interpretativa-
e intervenção, num todo em que os métodos e técnicas "com vários nomes" mente materialista, se torna Ideal Subjectivo tornado Objectivo, porque o que
perdem os seus rótulos para originar o acto "fisioterapêutico" como um todo se passa dentro da mente do terapeuta se torna uma realidade per si, um fe-
e pago pelo utente ou pelo Sistema ou subsistema enquanto tal. Obviamente nómeno em si, que até poderia ser "sonho", mas, que, tal como diz o poema de
que valorizo a Fisioterapia no seu lado mais "artesanal", manipulativo, postural António Gedeão, "(...) é uma constante da vida/ Tão concreta e definida/ Como

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outra coisa qualquer". velmente aquele que tem direito a menos tempo e a menos "luxos", enquanto
Perante isto, no testemunho da complexidade do Uno fenomenológico que que o utente particular é tratado em gabinete particular, talvez com direito a
preside à realidade interna do fisioterapeuta em constante e irrepetível trans- tecnologias avançadas. Mas, independentemente da proveniência do doente,
formação ôntica (como no "Dasein" de Heidegger), não é legítimo conceber que é comum a "prescrição" de métodos ser feita em função de factores irrisórios,
se conhece adequadamente um paciente - o seu corpo, a sua dinâmica sempre à imagem da tendência massiva para "receitar" uma "manipulação vertebral"
renovada - no tempo limitado de uma "consulta". E da mesma maneira é risível a quem dela pouco precisa só porque é uma técnica "bem paga", ou a tendên-
que se aceite que um médico fisiatra possa "prescrever" Fisioterapia, seja por- cia para evitar "receitar" Ultra-sons, porque o prejuízo do material e o tempo
que a Fisioterapia não é prescrevível, seja porque o conhecimento da infinita perdido pelo profissional não compensam o potencial lucro; há uns anos, ouvi
complexidade do paciente requer a infinita presença, o infinito manuseamen- a seguinte justificação: a doente X, por vir à hora Y, não teria direito ao laser,
to, a inextinguível e sempre perdurável relação de "intimidade" com o "outro". porque a essa hora, "os lasers estavam todos ocupados". Por outro lado, como
Nada que possa ser exaurido num tempo-limite da consulta de um médico que sabemos, a utilização massiva de calores húmidos prende-se sobretudo por ser
se sente tentado a não tocar no paciente. Nada que possa ser decidido por algo que dispensa a atenção e o tempo do profissional (frequentemente o au-
quem nada entende dos métodos precisamente mais holísticos, totalizantes... xiliar, aquele que não pode praticar legalmente a Fisioterapia), e a necessidade
pudera... se o médico se mantém anquilosado no terreno da visão biomédica e de rentabilizar o tempo do profissional que ganha à hora tem a primazia, não
prescritivista, como conceber que o mesmo conheça e domine métodos e mo- vá a Clínica dar prejuízo.
delos de uma mínima complexidade dialéctica? O máximo que o médico poderá Pode parecer paradoxal que um "médico", supostamente dono de tamanho
prescrever, que é também aquilo que encontramos nos Códigos prescritivos, número de anos de formação, possa ser (claro que nem sempre) tão pouco
são técnicas desgarradas, com vista à sua utilização numa parte ou segmento ético e muitas vezes incompetente, mas os cidadãos ficariam consternados se
do corpo, que, de qualquer modo, é o que os Seguros pagam, e não ouse o tera- imaginassem a quantidade imensa de maus diagnósticos, a incapacidade gro-
peuta tratar mais do que o membro, mesmo que a cervical esteja implicada, não tesca em fazer um exame objectivo, o alarve do exagero do pedido de exames
ouse o terapeuta fazer algo que não esteja prescrito, pois é conveniente dividir complementares de diagnóstico inúteis. As excepções existem, é claro, mas, por
as responsabilidades... Mas que responsabilidade é esta quando tudo parece vezes, parece-me que a regra dos diferentes profissionais - fisioterapeutas in-
ser decidido pelas regras do Sistema, muito mais do que pelo que identificamos cluídos - é a incapacidade para se dar o máximo que se pode dar em nome do
no paciente?... cidadão, dono do "corpo frágil".
Como toda a percepção, como toda a cognição, como toda a fenomenologia, Muitas destas temáticas são sabidamente foucaultianas, principalmente no
também o paciente é "construído" pelo terapeuta, com a subjectividade deste que à temática do Poder diz respeito, pois que alguma desta incompetência
a condicionar a escolha de um paradigma interventivo e com este paradigma a tem por trás o desiderato de uma competitividade bacoca entre os profissionais
ser muitas vezes imposto ao paciente que se pretende ver como extensão do com vista ao domínio do corpo do paciente. Não nos deixemos iludir: a grande
modelo que se propugna. É a questão da subjectividade no seu sentido pós-mo- maioria das lutas em prol de direitos por parte dos profissionais de saúde tem
derno, tal como já referi neste ensaio e tratei com maior pormenor em «Corpo por trás a ambição animalesca, o ideal do domínio. Um Hospital é uma verda-
e pós-modernidade». E, diga-se, é, apesar de tudo, um mal menor. Pior do que deira sociedade hierarquizada, com os profissionais a respeitarem as decisões
isso é a "construção do paciente", num sentido mais consciente, mediada pelas e os pareceres em função do lugar que ocupam na Hierarquia, nos termos dum
pressões do Sistema e pelo afã de lucro. Muitos fisioterapeutas vivem corren- papel de maior ou menor protagonismo.
temente situações anedóticas nas Clínicas de Fisioterapia. Todos sabemos, por Vã ilusão a dos cidadãos que imaginam poder confiar no seu profissional de
exemplo, que é comum sermos forçados a tratar diferentemente doentes pro- saúde, que perdem a voz activa e o livre-arbítrio em nome da decisão "cons-
vindos de diferentes seguros. O utente do Serviço Nacional de Saúde é prova- ciente" do seu clínico. O caos parece ser quase a regra e os serviços de saúde

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portugueses carecem de uma organização, de adequados critérios que permi- para se avocar o preceito dos Direitos automáticos, porque legalmente insti-
tam a aproximação à desejada Racionalidade. E se eles não existem é porque tuídos, sem que tenha sido primeiramente demonstrado o seu merecimento.
os interesses e as corporações falam sempre mais alto, e pretendem sempre A Autonomia é um direito próprio do profissional que assume a complexidade
vilipendiar a presunção de uma Ordem. de Ser e pensar, a inteireza da avaliação e intervenção enquanto pressupostos
E já que de "Ordem" falamos, e sabendo nós que os fisioterapeutas carecem da plena assertividade do clínico; assertividade que importa mais pela Pessoa
deste organismo profissional, quase não posso conter a minha curiosidade face completa que urge enquanto tecido ontológico de suporte ao clínico do que
aos critérios que uma Ordem dos Fisioterapeutas teria de criar para poder em si propriamente pelo papel do profissional propriamente dito, com este último
incluir os profissionais legítimos... Esperemos que os critérios não sejam muito a ser muitas vezes o ser pessoal acrítico que, na defesa dos direitos da Corpo-
rigorosos, se é que alguns virão a existir. É que o fisioterapeuta e a fisioterapia ração ou do Grupo parcelar, perde a natural liberdade de pensamento, a auto-
tal como existem no nosso país não são capazes de sobreviver a critérios de nomia de Ser e "Tornar-se", que é, como sabemos, pré-requisito do Terapeuta
franca exigência... verdadeiramente Total.
Sejamos frontais. A Fisioterapia portuguesa situa-se na Era do Ferro (à seme- Assim, o "livre-pensador", um pouco à semelhança do preceito racionalista,
lhança com a quinta raça, que é, de facto, aquela em que nos encontramos), a não pode deixar de ser visto como condição obrigatória do Terapeuta, se bem
mais baixa das Eras mitológicas. Faltam leis, falta uma Ordem, faltam profissio- que a sua Autonomia não implica a Independência, a impermeabilidade, a in-
nais de excelência (temos alguns, mas são ainda poucos), falta uma adequada comunicabilidade hermética. Antes pelo contrário, a assunção do profissional
representação intelectual, falta um trajecto de investigação académica, faltam autónomo é pré-requisito obrigatório da assunção do membro da equipe, do
publicações, faltam instituições de referência, assim como falta uma política de grupo, da Sociedade, da Cultura, um pouco como a criança que requer a securi-
Saúde adequada que permita a utilização da grande Fisioterapia de vanguarda. zação do seu Self para que possa dar-se, relacionar-se, amar e ser amor.
Falta também um núcleo duro de representação da Intelligentsia fisioterapêu- A autonomização e a complexificação da entidade profissional "Fisioterapeu-
tica portuguesa, incluindo o que considero urgente: a reflexão desprovida de ta" (e igualmente do "acto fisioterapêutico", com este a dever ser único e irre-
poluição emocional, o exercício da Racionalidade no seu sentido Superior, Uni- petível, como se uma intervenção devesse sempre ser feita como se fosse a
versal, e também construtivo, sugestivo duma mudança de Paradigma, quiçá, "derradeira" e a "sublime"... Sagrada, porque repleta de significado, capaz de
uma mudança de todo o Paradigma português e europeu, a começar pela re- ser o momento único em que o tempo pára para deixar fluir uma quantidade
forma da mentalidade muito portuguesa que é ímpar no "bota-abaixismo", na massiva de Sentido, o momento em que tudo está plenamente pensado, nada
crítica desconexa, no cepticismo mal dirigido, no pessimismo secular, na inveja a mais nem nada a menos, tudo com a sua "razão de ser", e portanto tudo es-
dolorosa, na valorização das "aparências", no "enchimento de troféus inúteis", crupulosamente decidido e determinado, numa determinação para a liberdade
na pura cagança irrealista, no popularuchismo de natureza latina, no orgulho da dança da Mónada Paciente-Terapeuta, alimentada pelo fluir em que os Cor-
bacoco e na mais profunda inércia, no "deixa para depois", no "não vale a pena", pos, o Corpo, se transtornam de pura Arte, harmonia do movimento perfeito
no "não podes mudar o mundo". Mas, se assim é, se assim se pretende ser, e puramente livre. Resumidamente, o tratamento de um doente não é uma
porquê tanto queixume, porquê a tendência lamentável para o terapeuta por- questão de tempos, pagamentos, sistemas ou qualquer outra coisa mundana
tuguês sempre se lamentar numa lamentação lamentavelmente lamentável? e/ou profana; é um momento Sagrado, e portanto relativo à Pureza dum acto
Esquece frequentemente o cidadão português que o Direito é a consequência Criador, da Palavra/Logos enquanto Verbo do Princípio/Arché) urge, assim, en-
natural de uma luta, do exercício brioso de um conjunto de deveres, da deman- quanto condição prévia duma Totalização em que os membros de uma equipa,
da do mérito e dos aspectos algo contundentes com este relacionados. A luta incluindo o paciente e sua família, se fundem num só elemento, já não equipa
e a ambição, o esforço de progressão, reiteram o seu lugar enquanto quesitos mas sim Uno fenoménico. É um pouco como as etapas da "salvação" do Eu,
de afirmação, não podendo deixar de assumir o ridículo desta nova tendência individual e colectivo, com um primeiro momento de assunção plena do 'Eu'

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demiurgo, do Super-Homem, e um momento final de diluição do 'Eu' no Todo, ao invés de um "terapeuta" que nunca conseguirá verdadeiramente ser um clí-
de transfiguração quântica das fronteiras da pessoalidade individual e grupal, nico capaz de "viver" o seu paciente, capaz de "tornar-se" o seu paciente, na
para que soçobre a melopeia da infinita transformação, o murmúrio da voz de plena coesão de um "ouvir", de um "sentir compreensivo", de um "ser capaz de
Deus feito caos embriagador da matéria dos sentidos transviados. se colocar no lugar do outro".
O orgulho de se ser terapeuta deverá, na extensão dessa elipse de prístina Dimensões que resvalam continuamente nas mãos de terapeutas que limi-
liberdade, cingir o eco da plena libertação do Eu, do outro, do mundo, logo fei- tam o seu acto ao reduto de um "é assim que manda a regra" ou "o exercício
tos movimento perpétuo, uma sucessão de infinidade de posturas, e a postura é feito deste modo obrigatório", como se o manusear não devesse ser arte in-
a ser uma infinidade de movimentos, dança permanente da harmonia de um ternamente criativa, como se a Fisioterapia não devesse ser puramente arte,
Universo em cíclica transformação, um entre muitos, uns dentro de outros, e dançaterapia, escultura em movimento, como se cada momento do "toque"
outros tantos mais, numa sucessão infinda de infinidades, de parcas e ilusórias não pudesse firmar a procura do derradeiro instante de prístino Belo, sagrado
fronteiras. desvelo, momento de fusão com a irrefutabilidade da subtilidade divina. E é
assim que o acto ou gesto fisioterapêutico deve ser lento, moderado e contido
numa estoicidade embriagadora, vivido e prestado necessariamente por um
ser controlado, livre, esvaziado de oscilações mentais e instabilidades internas,
Postura como movimento, portanto sereno, pacificado, capaz de imprimir ao paciente a direcção de um
momento de alívio, de libertação face ao agrilhoamento da tensão e da dor. E
movimento enquanto posturas é assim que o acto ou gesto fisioterapêutico deverá sempre que possível ser
longo, prolongado num tempo jamais programado ou mundanamente limita-
do, dono da lentidão própria das coisas da natureza, porque esta última, na
«Movendo-se, descansa (o fogo etéreo do corpo humano)» sua inalienável sabedoria, sabe tecer a perfeição com a lentidão de um tempo
Heraclito de Éfeso "perdido" (Proust), porque as coisas belas e perfeitas requerem tempo, e já a
impaciência, a pressa e a rudeza são inimigos declarados da perfeição. E é as-
sim, finalmente, que o acto ou gesto fisioterapêutico deve evitar o mais possível
O gesto lento, prolongado quase infinitamente numa dança em que o corpo a dor, o sacrifício, o sofrimento muitas vezes imputado como "marca" do fisiote-
do terapeuta e o corpo do paciente se transfiguram numa dinâmica quase pro- rapeuta e de uma terapia vista como necessariamente qualificada.
míscua, nua, íntima, plena, repleta de significação, lotada de um "locus" de sen- A dor alimenta a apreensão, o espasmo, as defesas, promete tornar a Fisiote-
tido em que a possibilidade de trair o caminho para o equilíbrio é severíssima. rapia um momento criador de outras necessidades fisioterapêuticas, como se o
Um gesto a mais ou a menos, um pouco mais de força do que deve ser, um momento da terapia quisesse trair a qualidade de vida em nome de uma função
pouco menos de insistência do que o desejável, tudo isto pode comprometer quantitativamente louvável; como se só os números contassem e a dor fosse
decisivamente o caminho terapêutico, podendo magoar, ferir os resultados o único modo proficiente de alcançar resultados, quando é a persistência e a
até ali obtidos, ou mesmo aniquilar a possibilidade de uma continuidade. O temporalidade que fazem a Obra. Não, não vejo como conceber um corpo de
bom-senso, a razoabilidade, qualidades difíceis de definir, de mensurar, mas pedra ou uma argamassa biomecânica destinada a levantar pesos e a esforçar-
obrigatórias ao terapeuta que se assume como tal. Dimensões que revelam a se como que imbuído de competitividade atlética. O corpo é frágil, uma verda-
quintessência da Fisioterapia, o seu lado mais qualitativo e irredutível a siste- deira rosa de cristal dona de limites que não pretendemos ver corrompidos por
matizações, a regras de conduta ou a guias de prática, mas que são a "última uma estúpida cultura do "No pain, no gain" que confunde sacrifício físico sem
palavra" que decide o terapeuta que irá sê-lo no verdadeiro sentido do termo, sentido com o sacrifício espiritual do peregrino que caminha descalço no "de-

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serto dos tártaros". Queremos um corpo respeitado, tratado como elemento do criar a ilusão placebetária ou a resignação da vivência na dor; deve, sobretudo,
Sagrado que o próprio acto fisioterapêutico reitera. Não queremos o momen- ser o Super-Homem capaz de fazer do paciente outro Super-Homem, um Ser
to sacrificial trôpego que o paciente rapidamente imprime em si como aquela genuíno retornado ao Arquétipo da Consciência pura e desalienada, dono de
hora do dia em que será sujeito à tortura, ao maquiavelismo de um "princípio um corpo enquanto extensão antecipatória da Idade de Ouro, aquela que ousa
sem fim" ou de um acto destituído de um "fim em si". a beatitude do Nada, da ausência de atrito, de "mal" ou sofrimento, e portanto
Daí que o fisioterapeuta não possa jamais deixar de ser poeta, psicanalista, da ausência da própria evolução, porque já nada requer libertação, porque o
bailarino, escultor, músico, pensador, capaz de fazer do movimento-postura o Nada é já a Liberdade transtornada num caos de escalar quântico.
momento profundamente expressivo da intenção do alcance de um Sentido, Pretende-se um corpo "paciente", que, na perspectiva do "eterno presente"
coisa risível para quem transforma o movimento nos padrões mecânicos de intemporal, é movimento perpétuo, sucessão infinita de pontos ou posturas,
uma máquina destituída de conteúdo e para quem traveste o seu paciente de e a postura a ser infinito movimento, tudo é o mesmo, tudo é uma só coisa, e
um levantador de pesos ou de um atleta como "coisa acabada" (quando nunca também o eterno devir e o eterno retorno são o eterno presente, assim como
nada é coisa definitivamente "acabada") capaz de se lançar alienadamente na a liberdade pura, o Ser Total, é o Nada, o Não Ser, e o Absoluto é o Caos, o Ine-
produção industrial dos movimentos repetidos incessantemente na fusão com fável, o Irredutível.
a cultura massificada e plastificada dos "tempos modernos". Logicamente que o momento da Fisioterapia não é o Absoluto, se bem que se
E cuidai que o fisioterapeuta que se move nas entranhas desta cultura, como aproxima e reitera o Arquetípico, e, à semelhança do que acontece com o mito,
aquele que permite ao atleta competitivo produzir a acção destruidora e vio- pretende renovar o "Princípio", repetir o "acto criador", retornar ao Arché en-
lenta, somente porque a máquina do Sistema assim manda e demanda, é um quanto modelo exemplar, e é por isso que o acto fisioterapêutico deve ser um
cúmplice de um crime, do crime de fazer a violência ao corpo cristalizado que acto sagrado, porque renova a condição originária, porque reinicia a perfeição
tantos anos requereu para atingir um certo estado de riqueza práxica. da Criação, e é também por isso que o fisioterapeuta é um demiurgo e tanto
O fisioterapeuta que se envolve neste crime não é mais um profissional de o seu corpo como o seu acto devem ser puros, prístinos, extensões do que se
saúde. É somente (mais) um agente de um Sistema que tresanda a nulidade de pretende reificar no corpo do próprio paciente.
um paradigma económico também ele a tresandar a desgaste e a putrefacção. O tempo bem aproveitado desempenha a função descondicionadora, recria-
Tenho vergonha por estes fisioterapeutas e por este Sistema. Tenho vergonha dora, alquímica, gnóstica, e, no percurso do processo expansivo, tornar-se-á
que a Fisioterapia mais "mediática" seja precisamente esta que produz "máqui- mais lento, na mesma medida em que o aumento da consciência abre o Ser à
nas" da diversão das massas, na pletora de um modelo "moderno" que alguns pureza atemporal do Arché.
pressupõem "evoluído", numa estúpida incapacidade de distinguir "moderni- Erros, defeitos, más escolhas, dúvidas são também um elemento necessá-
dade" de "evolução", "desenvolvimento económico" de "desenvolvimento hu- rio, até porque o terreno maculado e inconsciente das trevas subterrâneas e
mano", "capital financeiro" de "capital de felicidade", "felicidade quimérica" de saturninas imiscui a estrutura arquetípica de pureza virginal com os fantasmas
"felicidade espiritual", "ilusão" de "revelação". do condicionamento castrador de um mundo de temporalidade carnal e deter-
O tempo alimenta a entropia, o envelhecimento e o desgaste, e a moderni- ministicamente relativo.
zação e o suposto desenvolvimento implicam mais a confusão de vozes e a re- À semelhança do que acontece com as Eras do Esoterismo, o tempo arque-
lativização e multiplicação de gestos do que propriamente uma adequada evo- típico é um "não tempo" paradisíaco, mas em que a liberdade animalística e
lução - muitas vezes confundida com o avanço temporal -, com esta a requerer infantil, como no "bom selvagem" de Rousseau, funciona como uma pseudoli-
o retorno à Estrutura arquetípica, a paragem do tempo no paraíso do "Eterno berdade, no sentido em que o conforto operado pela condição primitiva implica
presente". O terapeuta que actua no paciente não deve reificar a secularidade, a dependência do modelo primário dos deuses/pais; e o tempo histórico é o
numa atitude de "eterno retorno" ou "eterna dialéctica" que permite somente tempo do condicionamento que ora desagrega, relativiza, desabsolutiza, vela,

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macula e carnaliza, ora civiliza e imprime a consciencialização ética, significando A singularidade do momento único de uma Fisioterapia pensada no jogo da
isto que a História tem uma dupla vertente destrutiva e evolutiva, relativizado- multiplicidade de factores, na diversidade de olhares, em que a visão de uma
ra e organizadora, diacrónica e sincrónica, diabólica e simbólica, maleficente e "razão dialéctica" (Sartre) do relativo não abandona jamais o seu caminho, si-
beneficente, pecaminosa e accionadora, veladora e reveladora, com o aspecto multaneamente de retorno e evolutivo, no sentido da afirmação do Espírito, no
segundo (da Luz) a permitir o aumento gradual do patamar de consciência, o sentido inicialmente subjectivo, no sentido derradeiro de uma Totalidade que
mesmo que consentirá ao ser atingir o estado de Demiurgo/Super-Homem/Pai nunca deixámos de ser.
e criar o seu próprio Arché ou Totalidade noética manifesta (numa fase em que É essa Fisioterapia enquanto prática espiritualizada, no seu sentido esotérico
teria conseguido libertar-se do processo cíclico de "eterno retorno" e, portanto, pós-moderno, que desejo para o futuro próximo, para o futuro da Nova Era, o
do arquétipo modelar do pater... se bem que o seu próprio Arché se encontra mesmo que permitirá cruzar todas as estruturas e narrativas no ensejo valioso
no paraíso desse pater e, portanto, o encontro do "Princípio" autonómico reite- de criar toda uma Meta-narrativa de base canónica e categórica e de ápice des-
ra o encontro arquetípico primevo, no seio da odisseia do regresso ao lar), o seu construtiva e pluridimensional... uma Fisioterapia sem medo de se pensar nas
próprio paraíso, senão a sua própria condição divina de pura liberdade (aqui já suas múltiplas problemáticas, com vista à sacralização do acto de "tratar", do
não demiurgo, mas sim Deus Totalidade imanifesta e irredutível), com esta a ser instante de "tocar".
problematizada pela perspectiva pessimista de um fatalismo de determinismo
materialista que opõe a caverna da corporeidade ao intento da libertação, ao Publicado em "Hospital do Futuro", 2013
puro "Nous" e, obviamente, à obtenção de níveis de evolução metanóica.
Não me alongarei em temas que tratei mais pormenorizadamente nos meus
livros «O Corpo e o Nada» (2013) e «As Metamorfoses do Espírito» (2013), até
porque a perspectiva pessimista - igualmente apresentada - do eterno retorno
e do regresso cíclico às trevas involutivas (cunhada especialmente em «As Me-
tamorfoses (...)») poderia desanimar o terapeuta que se pretende motivado na
"recriação" do "Opus" alquímico do seu paciente, se bem que a óptica esotérica
pretende que a evolução cíclica propicia um "regresso" a um ponto mais alto,
mais evoluído, mais próximo do topo da montanha.
E se o fisioterapeuta pretende reactualizar o momento inicial no seu paciente
tal não será possível sem que a própria Fisioterapia inicie o seu íntimo caminho
evolutivo, a sua própria gnose, a sua própria Obra alquímica, no contexto da en-
trada na Nova Era, na pós-modernidade que é, de algum modo, a reactualização
dos antigos tempos de valorização da Espiritualidade profunda.
Caminho que irá requerer inicialmente o Singular, para mais tarde uma mu-
dança mais profunda de paradigma ser internamente compreendida por um
grupo mais abrangente, quiçá toda uma Classe profissional (imediatamente
antes do tempo em que a própria divisão em profissões e classes deixará de
fazer sentido, porque a ambição da Totalidade itera a diluição das categorias,
e portanto a transformação da interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade
numa "transUnidade").

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Fisioterapia "baseada na Evidência" trados no Pubmed, e, infelizmente, tornaram-se quase uma espécie de fonte de
"orientações terapêuticas" e de "prática profissional" para muitos fisioterapeu-
ou "centrada no Raciocínio Clínico"? tas. Anos de dedicação pessoal a este tipo de investigação levaram-me a desfa-
zer uma série de ilusões: os erros estatísticos, as metodologias quase sempre
muito frágeis, a fraca validade ecológica, as pressões de publicação, o efeito das
Estando a Fisioterapia directa e indirectamente ligada à actividade científica, expectativas do investigador, a fraude científica e académica enquanto "regra" e
e assumindo que muitas das minhas clássicas afirmações sobre aquilo que po- não "excepção"... doa a quem doer, a realidade destes estudos está muito longe
demos designar por "Fisioterapia científica" nem sempre têm tido grande aco- de ser ideal, e o facto de se pretenderem objectivos faz com que, segundo certo
lhimento, eis que sinto necessidade de resumir alguns importantes aspectos da ponto de vista, eles cheguem a roçar mais o "relativismo dogmático" do que os
Epistemologia científica que considero fundamentais para dar luz a questões estudos de índole hermenêutica, que assumem e admitem previamente o seu
nem sempre transparentes. subjectivismo.
Desenvolvi a temática com alguma acuidade no meu «Corpo e Pós-moderni- Daí que pretender construir uma Fisioterapia científica ancorada sobretu-
dade» (2012), se bem que a evolução do meu próprio pensamento me obrigue do neste género de investigação só pode ser visto como um erro, ainda mais
a adaptar os conteúdos da tabela que importo do livro e que aqui se apresenta. porque muitos profissionais substituem a intervenção orientada segundo os
Se ativermos, de forma muito sintética, a existência de três grandes tipos de preceitos do raciocínio clínico por uma intervenção baseada na lógica "dos es-
estudos ou investigação - os estudos da ciência clássica, os estudos com base tudos", que acaba por ser também a lógica dominante das imensas (na verdade,
em amostragem e os estudos de caso - podemos, à primeira vista, conceber inumeráveis) empresas de formação em Fisioterapia, com estas a encorajarem,
que a Fisioterapia se imiscui com todos os apresentados, se bem que de formas de algum modo, o mero empilhamento de uma informação que vale mais pela
bem diferenciáveis. quantidade (segundo os critérios da vendabilidade) do que pelo necessário
Começando pela coluna mais à direita da Tabela, os estudos de caso, aque- molde crítico e vivencial (lembremos que a verdadeira Sabedoria é experiencial
les que relevam da interpretação fenomenológica do Sujeito, no que pode ser e não mediada), isto para não falar daqueles casos em que os estudos sustenta-
traduzido segundo a velha máxima de "cada caso é um caso", importam pro- dos pelas formações em apologia do método A ou da técnica B são feitos pelos
vavelmente mais à prática profissional propriamente dita do que à investiga- próprios responsáveis da empresa que dá formação nesses mesmos métodos.
ção tradicionalmente aceite como "científica". A lógica da unicidade do sujeito, O facto de colocar em segundo plano os estudos de carácter estatístico-pro-
aquela que reitera a transformação sempre constante e irrepetível do corpo do babilístico (se bem que não chego a renegá-los) não implica que uma ciência
paciente, é, de algum modo, a única que importa à prossecução de um "caso baseada em Leis e num Logos clássico não possa ser reificada. E é aí que po-
clínico", se bem que uma franca maioria de jovens profissionais pretende fazer demos reiterar o lugar da Anátomo-Fisiologia e da Biomecânica enquanto ciên-
deste "doente" o depositário quase passivo da lógica quantitativa dos estudos cias estruturais da Fisioterapia, na verdade as grandes ciências da intervenção
estatístico-probabilísticos. fisioterapêutica, aquelas de que partem os diferentes testes de avaliação e os
Estes últimos, correspondentes ao centro da nossa Tabela, são baseados em múltiplos "signos" da Semiologia Clínica, ciências com um tipo de rigor que ape-
metodologias estatísticas, as quais, precisamente por serem "estatísticas", não la a uma concludência total e não probabilística (as leis da Biomecânica são isso
respeitam à totalidade dos casos e não assumem nem representam as excep- mesmo, Leis, que, a um nível macroscópico, nunca perdem o seu estatuto de
ções; por outro lado, o facto de serem fortemente baseados em médias, leva Leis da Física Clássica), e que, se ancoradas em critérios bem definidos de "fal-
a que, muitas vezes, os resultados obtidos sejam muito pouco representativos, sificabilidade", permitem acautelar a maioria das tentações "relativistas" e de
expressando isto uma margem de erro que pode ser monstruosa. Os estudos a manipulação consciente ou inconsciente dos resultados (malgrado a discordân-
que me refiro correspondem à esmagadora maioria dos que podem ser encon- cia da perspectiva pós-moderna, que não cabe discutir no espaço deste artigo).

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O domínio dos aspectos anátomo-funcionais do corpo é o pré-requisito


central para a compreensão integral de tudo aquilo que aparece "vestido" de
Sobre a (des)importância da Educação
Raciocínio Clínico, e que, a um nível utópico de conhecimento absoluto, e em Física no ensino secundário
confrontação com os objectivos terapêuticos pretendidos, dispensaria a neces-
sidade de realizar a maioria dos estudos "de aproximação", para além de que
transformaria os diferentes testes, manipulações, métodos/abordagens de in- Recentemente, dada a intenção governamental de que a nota da disciplina de
tervenção numa Totalidade indivisível em que o corpo dos doentes seria pers- Educação Física deixe de ser contabilizada para a média de entrada para a Uni-
pectivado como um Todo, incluindo o nosso próprio corpo enquanto extensão versidade, têm sido tecidos diversos discursos acerca da importância da "maté-
do corpo dos pacientes. ria" em questão - desde a quase total irrelevância à quase endeusificação que,
Lembremo-nos que todas as categorizações e organizações cognitivas visam de qualquer modo, atravessa paralelamente as diversas "indústrias do corpo" -,
mapear um território desconhecido. Depois de conhecido e dominado esse ter- muitas vezes desprovidos de uma ligação franca e coesa à realidade.
reno, as fronteiras e divisões passam a ser inúteis e até indesejáveis, podendo De algum modo, o meu papel enquanto estudante do ensino básico e secun-
levar a ver artificialmente um corpus que é contínuo e está em constante muta- dário contraria o meu papel enquanto praticante de actividade física e a minha
ção. Não deixemos que os saberes limitem a nossa liberdade, não autorizemos profissão de fisioterapeuta, pois que, revendo o passado, não posso deixar de
que a lógica dos métodos e formações nos leve a fragmentar o Uno do paciente, lembrar o quase "inferno" que as aulas de Educação Física sempre representa-
um Todo funcional em que o presumível das Leis do Corpo/Físico persevera no ram para mim, dado que um certo "mau-jeito" para as coisas do físico sempre
impresumível da singularidade de um doente cujo Corpo/Soma é intenção e serviu de mote ao agravamento de um "bullying" do qual fui vítima ininterrupta
reacção às múltiplas variáveis do meio. durante muitos anos.
Não representou, todavia, tal experiência um abandono da prática física, an-
Ordem Versus Caos tes me apaixonei por esse tipo de actividade, ao ponto de ter influenciado a
Filosofia sécs.
Empirismo > Racionalismo Racionalismo Idealismo escolha do meu curso de Fisioterapia. Curso e profissão que valoriza, logica-
Positivismo (mor Subjectivo)
XVIII »» XIX Realismo mente, as actividades ligadas à motricidade e ao treino, mas somente num tipo
Determinismo necessário Determinismo Livre-arbítrio (?) de representação maioritária e académica, pois que, nos últimos anos, após
“Deus não joga aos dados” “probabilístico” “Deus joga aos dados”
Metafísica “Deus joga aos dados mas estudos realizados no domínio de um paradigma fisioterapêutico muito especí-
estes estão viciados” fico, nomeadamente o modelo da "Reeducação Postural", me tornei novamente
Ciência (Física)/
Clássica/Positivista Ciência do Homem, na Quântica/Pós-moderno adversário de um vasto leque de actividades físicas (mas não da totalidade das
fronteira entre o macros-
Paradigma cópico e o subatómico mesmas) e um representante da necessidade de uma "revolução epistemológi-
Físicas/Naturais/Exactas Sociais, segundo o método Sociais, segundo o método ca" no domínio da Educação Física e da Fisioterapia.
Ciências (tipo) estatístico-probabilístico hermenêutico
A temática possui certos cambiantes complexos que não importa discutir
Observacionais Nomotéticas-sociais Idiográficas
Ciências (“população”) (100% concludência) (Amostragem) (Sujeito, caso único) agora, até porque, acerca da fraqueza do "fitness" enquanto "nova medicina" já
Adaptado e simplificado a partir de «Corpo e Pós-modernidade» (2012) terei escrito há vários anos, mas releva afirmar que, segundo o modelo "clínico",
e se tivermos em conta as leis biomecânicas pelas quais se rege o corpo e a
postura, a esmagadora maioria das actividades físicas - principalmente aquelas
que fazem uso da força e da resistência musculares - não possui real valor para
a saúde. O que não implica que todas as práticas sejam igualmente más, até
porque não cesso de valorizar as actividades físicas holísticas e de baixo impac-

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to (principalmente aquelas que fazem uso do alongamento e do relaxamento relação diferenciada entre os colegas, a prevenção do "bullying" e do precon-
psicossomático) e as actividades de domínio cardiovascular, das quais eu pró- ceito, a ênfase no modelo de aulas "teórico-práticas" e, sobretudo, o desfazer
prio sou acérrimo praticante. progressivo de uma imagem da prática física conluiada com o exercício "mili-
Não retiro, portanto, importância à actividade física, afirmo, sim, que o tipo de tar", estúpido e alienado da vida "real"; este tipo de exercício, ainda existen-
actividade que é praticado regularmente, incluindo as aulas de Educação Física, te no formato de professores que se comportam como "sargentos da tropa",
possui, de facto, pouca relevância no sentido clínico da questão. Bem sabemos tem de desaparecer, pois que, ao invés de encorajar a prática da actividade
que as aulas de Educação Física estão veiculadas flagrantemente para a prática física, antes contribui para a visão (ainda muito) negativa do exercício, a qual,
de desportos, o que, não deixando de possuir certas vantagens no respeitante ao contrário do que muitas vezes é afirmado, ainda é a regra da grande parte
às competências relacionais e "psicomotrizes", ainda assim representa um con- da "confortável" população portuguesa (exceptuando, talvez, as novas gerações
junto de esforços particularmente improfícuos, até porque muitas destas prá- que, de qualquer modo, realizam actividade física mais por imposições de "bem
ticas não são explicadas, adequadas à realidade diária e "práxica", contextuali- parecer" e/ou de "bem-estar" e/ou "bem trabalhar"/"bem produzir" do que pro-
zadas numa cultura de higiene corporal e de prevenção da doença; em última priamente por terem tido uma grande experiência de encorajamento no ensino
análise, a Educação Física tende a ser encarada como uma forma de "alienação" secundário). Reformule-se a Educação Física e aí talvez a disciplina passe a ser
do currículo escolar, fonte de desadaptação e até sofrimento para os alunos mais valorizada e acreditada.
mais "mentalmente meritórios" e de afirmação dos alunos que muitas vezes
só na Educação Física conseguem ter algum tipo de mérito. Com a prática e
manutenção deste tipo de modelo de Educação Física, e para desconforto de Publicado no "Expresso", 2012
certos lobies de académicos que sempre tendem a defender-se com linhas de
estudos cuja fragilidade metodológica é gritante, estou de facto a favor da nova
atitude governamental.
Por outro lado, tudo poderia ser diferente, e aí faria sentido que a nota de
Educação Física tivesse um maior pendor valorativo, se houvesse uma franca
revolução no modelo de prática das aulas, com vista a adaptar a lógica da acti-
vidade física a uma metodologia mais ligada à Saúde e menos à "performance",
incluindo o ensino de práticas de higiene do corpo e até de princípios básicos da
medicina e da fisiologia (gerais e do exercício) e da adequada complexificação
e relativização dos efeitos do exercício (com evitamento de "lugares-comuns"
que obstam à inteligência dos estudantes), e o esforço por sensibilizar os alunos
para a importância da continuação da prática física (incluindo a possibilidade de
criar mecanismos que permitam a actividade física fora - e para além - da escola
e até o prolongamento dessa actividade pelo máximo período de tempo) e da
adequação desta à prática das actividades da vida diária, sempre complexifica-
das pela vivência de um pouco sadio e activo envelhecimento.
Requerem-se novas metodologias (com estas a reclamarem uma reflexão e
uma mudança no seio dos conteúdos da própria realidade académica que lança
as bases para a formação dos profissionais da motricidade), a gestão de uma

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Homossexualidade e psicanálise: delos de intervenção, tal como as grandes escolas de pensamento, possuírem
uma certa tendência dogmática, o que não é necessariamente defeito, pois que
doença ou dogmatismo? grandes teorias podem significar grandes Verdades que teimam em querer afir-
mar-se muitas vezes como "boas novas" anti-Sistema, mas que pode ser um
defeito se, mesmo depreendendo a aparência axiomática dos princípios e "leis"
Enquanto fisioterapeuta que sou, estudioso não só de "terapias" e de "in- subjacentes à 'escola' em questão, o dogma esbarra com premissas erróneas,
dústrias do corpo", mas igualmente reivindicativo de um estudo já há muito que, associadas à recalcitrância da sua defesa intempestiva, resultam numa ac-
por mim enformado na área da psicologia e da psicanálise, não posso deixar tividade própria de um "relativismo" de "gurus" ou "vendilhões".
de, todos os dias, me impressionar com o conjunto de disposições assaz "rela- Ora, é nestas alturas que a defesa da cientificidade tende a ser adoptada
tivistas" respeitantes ao mundo do corpo e das terapêuticas que com este se (leia-se uma cientificidade do tipo clássica e quantificativa), pois que ela pode-
preocupam. Na verdade, a medicina, a fisioterapia e a psicologia/psicanálise, rá significar um maior número de critérios que possibilitem a objectividade, a
mais do que matérias dadas a uma pretensa e unidimensional objectividade medição de resultados terapêuticos e até a prevenção da prática "excessiva" ou
racional/clínica, relevam para temáticas com grande nível de ambiguidade e um interesseira. Por outro lado, reside sempre a problemática da maior ou menor
interminável veículo de paradigmas e de dimensões e escalas do olhar. relevância de obter resultados facilmente mensuráveis em matéria de com-
Pois que não existe somente a Medicina canónica, tal como não existe uma portamento humano ou bem-estar psicoemocional - qualquer coisa que revela
Psicologia ou uma Fisioterapia, mas sim várias Medicinas, várias Psicologias e sempre uma subjectividade adstrita a uma matriz que cruza um número quase
várias Fisioterapias. E, não obstante o valor científico das ditas profissões/ciên- infinito de factores e/ou variáveis - o que é, bem sabido, uma das temáticas
cias que dominam o panorama do trabalho clássico nestas matérias, a verdade centrais da polémica que opõe várias escolas de psicoterapia, como a diatribe
é que a experiência racional, associada a uma certa sensibilidade estética e éti- "Terapia cognitivo-comportamental versus Psicoterapia dinâmica".
ca, vem comummente demonstrar que o conhecimento de certas especialida- Ora, agarrando na temática psicanalítica - e assumindo que as suas diversas
des e/ou escolas minoritárias está mais próximo da Verdade (se é que esta é de "escolas" adoptam como dominante a verdade psicossexual, segundo a qual o
algum modo definível...) do que aquilo que a grande maioria dos profissionais modelo da identidade sexual é obtido fortemente a partir dos padrões de com-
advoga e/ou pratica. portamento e vivência com os pais e a conjugação destes com o sexo biológico
O caso da Psicanálise é, de algum modo, paradoxal, pois que, não sendo o descoberto nos primeiros e em si-mesmos - deparamo-nos, de facto, com uma
modelo dominante de prática diagnóstica em medicina psiquiátrica e até em das temáticas mais polémicas das ditas "interpretações clínicas dogmáticas",
psicologia clínica, não deixa de constituir uma teoria interpretativa de impor- a qual se prende - para ser mais específico - com a interpretação psicanalítica
tância crescente e de reconhecimento social já bem entrosado. Por outro lado, da causalidade da Homossexualidade. Mais uma vez se sublinha que esta tem
releva referir que, à semelhança do que foi dito relativamente aos "paradigmas tanto de potencial Verdade dogmática quanto de potencial Falsidade dogmáti-
clínicos", também não há uma Psicanálise, mas sim múltiplas psicanálises, mo- ca, pois que, na verdade, a cientificidade clássica das asserções psicanalíticas
delos diversos de escolas e autores também eles muito diversos... o que já por acerca da Homossexualidade é ainda extremamente débil... o que, obviamente,
si nos deveria alertar para o elevado grau de subjectividade que tal modelo de não recolhe o acordo dos psicanalistas, os quais, defendem o seu dogma como
explicação do comportamento poderá empreender. científico, mas de um tipo de cientificidade certamente diferente da "clássica"...
Não obstante a existência de múltiplos paradigmas de análise clínica (que, A temática é de extrema importância, até porque a resolução de outra temá-
apesar da possibilidade de confundir o terapeuta e/ou o doente nas suas de- tica dita "fracturante" - a questão da adopção de crianças por parte de casais
cisões, poderiam - ou deveriam - teoricamente facilitar o processo de flexibili- homossexuais - parece depender fortemente da opinião destes profissionais da
zação interpretativa e interventiva), é comum os grandes e "minoritários" mo- "Psicologia"... opinião que, como sabemos (e já não é difícil perceber porquê),

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está longe da consensualidade. narcísicas, angústias de separação, medos de destruição da mãe, figura primor-
Ora, eis que sugiro aos leitores a análise do texto "Homossexualidade", de Jai- dial de quem a criança totalmente depende. Identificações maciças com essa
me Milheiro, da obra "Novos desafios à Bioética" (Porto Editora), referência que mãe nos dois sexos para a manter dentro de si em perspectivas fusionais são
considero fundamental e verdadeiramente paradigmática. Tentarei resumir a de observação corrente, o que acarreta no adulto uma idealização dela quase
abordagem do autor. absoluta, muito visível na maior parte dos homossexuais, masculinos ou femi-
O psicanalista começa por explicar, de forma resumida, a importância das ninos, ou, em contrapartida, uma desvalorização reactiva do mesmo grau, igual-
experiências precoces e das vivências com os pais na formação da identidade mente quase absoluta." Mais uma vez esta tendência para dizer que a causa
sexual, colocando no padrão de relação com os pais (e no padrão de compor- pode ser uma coisa ou o seu contrário, o que até pode ser entendido numa
tamento destes com as crianças) a causalidade da identificação da criança em perspectiva de explicação teorética, mas dificilmente pode ser aceitável em algo
geral, tal como da identificação sexual em particular, num conjunto de múltiplos que se diz "científico"... Claro que também será necessário ter em conta a ques-
factores: género, escolha, prazer, encontro e idealização. Logo a seguir, cite-se tão estatística e probabilística. Será que todas as mães dominantes produzem
"Se o desenvolvimento se processar em moldes comuns, a identificação global rapazes gays? (Qual o número necessário para considerar a existência de uma
ao progenitor do mesmo sexo acontecerá sem grandes turbulências. Se houver relação de causa-efeito?...) Não existirão outros factores importantes? A fixação
inibição com angústias perturbadoras, podem desenrolar-se dinamismos ca- edipiana que produz a homossexualidade não deveria também produzir, numa
racterísticos e consequências. Poderão acontecer fixações em patamares tran- boa parte dos casos, alguma forma de neurose? Não seria de esperar que o
sitórios, pontos de passagem do amadurecimento. A homossexualidade será homossexual tivesse (quase sempre) alguma perturbação de ansiedade? E se
disso um exemplo." Sublinhe-se que o autor parece ser proponente da clássica a tivesse, não poderia ser uma consequência da forma como é tratado pela
teoria freudiana do desenvolvimento da personalidade, o que, já por si, é dis- Sociedade? Será que a explicação psicanalítica difere para gays "activos" versus
cutível e eventualmente criticável. Continuando a citar: "Costumo dizer que isso "passivos"? Os gays passivos terão maior nível de identificação com a mãe? Ou
acontece quando a criança não teve capacidade de "reivindicar" o seu próprio serão só os gays com tiques e maneirismos?... (Enfim... Será que alguma destas
sexo, ao discutir consigo própria a diferença entre os dois. E não terá tido essa questões precisa mesmo de ser respondida?... E se quisermos mesmo respon-
capacidade, conferida pela série animal aos seus elementos, porque alguém lha der a estas questões, não teremos que estabelecer primeiro uma série de crité-
retirou. Porque um clima relacional perturbado e crónico, por excesso ou por rios, de fronteiras e de definições operacionais? Mas não será tal rigor próprio
defeito, a sufocou. Não lhe terá permitido o exercício da formatação indutiva de uma ciência? Será que tal rigor é possível ou simplesmente aceitável?...)
natural, porque ela se prejudicou nas malhas onde se meteu. Mães grandio- A temática teria, decerto, que ser bem trabalhada, reflectida, e de algum modo
sas e possessivas, determinantes de tudo o que a criança será, incluindo a sua estudada, sempre tentando sobrepor o discurso racional ao discurso da prefe-
identidade e género sexual, terão especial relevo". É uma teoria interpretativa rência e do preconceito. Até que é precisamente a ideia de que o bom equilíbrio
possível, mas não deixa de ter forte carácter hipotético, com múltiplas possi- "Pai - Mãe" é necessário à produção de um ser "normal" que leva a que, muitas
bilidades, múltiplos questionamentos possíveis... Reparemos que se o modelo vezes, se produza o conhecido preconceito contra a adopção por casais homos-
de "mãe possessiva e pai ausente" pode "criar" filhos homossexuais, pois a do- sexuais... Pergunto eu: e que fazemos com os casais heterossexuais em que
minância da mãe cala a assunção identitária do filho (ou da filha, mas nesta o existe um desequilíbrio na "supremacia" de um dos elementos? Proibimos a
processo é menos grave, pois tratar-se-ia de um elemento do mesmo sexo), de reprodução nos casais matriarcais? Punimos as mães dominantes? Multamo-las
igual maneira também o modelo de "pai dominante" pode criar rapazes homos- quando produzem filhos homossexuais? (Cobramos às mães possessivas o di-
sexuais (e, sobretudo, raparigas homossexuais), pois que o domínio do pai evita nheiro gasto no "divã"?) Mas não será já tudo isto um preconceito?... Pois, afinal
a assunção identitária do filho... de contas, a homossexualidade não é uma doença... Ou é? Será que para os psi-
Eis outra citação de destaque: "Agressividades não elaboradas, fragilidades canalistas de que nos ocupamos a homossexualidade deveria voltar a constar

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dos manuais de psiquiatria? E será que, se isso acontecesse, alguma coisa mu-
dava na realidade do próprio homossexual? Mesmo que fosse uma "doença",
O Paraíso (perdido) da modernidade
não seria a homossexualidade uma parte da natureza do indivíduo? Deve uma
natureza ser modificada (com base em pressupostos de "anormalidade" versus Um sentimento profundo de abandono - a solidão como impropério de pila-
"normalidade" que podem estar errados)? Deve uma "Estrutura" ser alterada? res ainda não reificados pela intenção civilizadora - terá levado o homem a criar
Pode uma "Estrutura" ser considerada "anormal" (concebendo que existiria um os Deuses, face aos quais o desenvolvimento de uma dependência arquetípica
modelo de "normalidade"...)? urgiria como inevitável, a mesma que coisifica o h/Homem e que, simultanea-
Na extensão das perguntas anteriores, resta-nos questionar a fidedignidade mente, o condena à possibilidade do eterno retorno ao mesmo Princípio que
das psicoterapias que usamos no tratamento das nossas neuroses... Pois, que o iniciou. O eterno retorno é o resultado da angústia de separação face a uma
confiança posso ter neste tipo de terapias quando o grau de incerteza parece estrutura arquetípica rememorada como paradisíaca. Também pode ser a ne-
sobrepor-se ao grau de cientificidade? E que fazer perante tantos e tantos ca- cessidade de renegociar com os fantasmas propiciadores de uma identidade
sos em que o psicoterapeuta interfere directamente nas opções e escolhas do ultrajada, os demónios de uma infância em que os pilares arquetípicos, se bem
doente? Será isto legítimo? Não será perigoso mexer com a vida de outrem? que existentes, se tornaram laxos. E se esses pilares são frágeis ou laxos, ora
Não será incoerente, por exemplo, um psicoterapeuta ser "paternalista" e pro- por défice de deuses ou amor, ora por excesso do mesmo, a angústia de cas-
tector relativamente ao doente, quando é a autonomia do paciente que deverá tração surge muitas vezes no formato de uma agressividade, porque "o ataque
tomar a dianteira do processo terapêutico? Um psicoterapeuta paternalista não é a melhor defesa", porque urge gritar o domínio de um Ego deficientemente
actuará ele mesmo como um "pai/mãe" dominante? Não era desse género de integrado.
Ente que era "suposto" libertar-nos?... O comportamento do h/Homem é, a cada momento, o resultado determinís-
Reparemos que muitas das questões que temos feito só fazem sentido se tico da relação precoce com os seus deuses, e da relação dialéctica entre a úl-
tivermos como ponto de partida o facto de a homossexualidade ser uma coisa tima e o conjunto de outros "a prioris". E o homem do Espírito, o filósofo, é
a extirpar... Será que não é toda uma visão social que tem de mudar? Pois que aquele que, de forma genuína, empreende a viagem mais radical no sentido de
tudo é contexto, tudo é relativo! firmar os pilares arquetípicos, enganadoramente não tanto os do "Eu" pessoal
mas mais os da Civilização, se bem que mesmo estes acabam mesmo por ser os
do "Eu", a mesma subjectividade que preludiará a preferência por determinado
Publicado no "Expresso", 2012 paradigma e a escolha de um modelo filosófico em detrimento de outro.
Claro que o homem do Espírito se arrisca a manter-se como tal eternamente,
pois que o adiamento indefinido da negociação com os fantasmas privados no
formato de uma racionalização e projecção para matérias absolutistas e espi-
rituais promete não ter resolução à vista. O homem bem seguro de si mesmo
não se torna filósofo. Não pretende ser espiritual. Não tem sequer o sentimento
de culpa de origem arquetípica necessário à disciplinação do pensamento e ao
desiderato ético que subsume o desígnio do Espírito. A um nível radical urge o
risco do Super-Homem i/amoral.
O próprio acto ético, tal como o comportamento perfeccionista, é alimentado
pelo fantasma castrador, aquele deus fantasmático que, ao invés de permitir
a âncora securizante, alimenta o "Big Brother" interno. Fica o ser destinado a

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agradar ao seu próprio Pater fantasmático, processo não resolúvel sem a via- télica igualiza espírito e alma e contribui para individualizar aquilo que só fazia
gem terapêutica aos infernos, residência dos demónios recalcados. A "obra ao sentido na perspectiva da Totalidade Ética. O liberalismo vem iniciar decisiva-
negro" saturnina inicia o caminho de progressão, aquele que não é sentido mente a temporalidade, matando o Arquétipo, matando Deus, com a vantagem
como necessário ao que se possui a si mesmo e a um atraente ancoradouro da morte do mau dogma, com a desvantagem da morte do bom dogma, com
do Princípio. a vantagem da destituição do Deus exotérico e religioso, com a desvantagem
O Arché é assim causa de saúde e patologia, harmonia e desarmonia, é o iní- da destituição de um certo panteísmo de continuidades, e lá se trocou definiti-
cio e o fim, o que inicia e o que reinicia, o Pai fantasmático e o Ego tornado Pai. vamente a noção de Uno pela noção de Separatividade, afecta à cientificidade
O presente do ser, um pouco como o Eterno Presente do Espírito, só é possível das disciplinas e descontinuidades e ao espírito da individualidade político-e-
depois do Arché ter sido purificado. Sem a eliminação das impurezas castra- conómica.
doras e da poluição da relatividade carnal íntima à temporalidade entrópica é O próprio espírito autorístico e a obsessão pelo «Eu» é uma criação do Oci-
impossível atingir a Pedra filosofal, a sensação de completude que promete a dente e da modernidade. As Luzes vão reificar o racionalismo com vista ao para-
Imortalidade. digma de um Ouro liberal. Na Ciência, é a Razão empirista dos anglo-saxónicos
O tempo moderno pressente-se livre de Deus e da castração religiosa. Mas e o cartesianismo corpo-mente. Na Educação, a massificação dos conteúdos
ilude-se ao admitir a liberdade e a evolução. Uma nova religião tomou as rédeas cria a Pedagogia e reitera o racionalismo humanista, e a razão Espiritual que
do controlo das consciências: a ciência, o liberalismo económico. O homem tem justifica o Ensino magistrocêntrico perde-se e até acaba por ser demonizada.
uma fixação pela zona de conforto, recalcitra em procrastinar o momento do A obsessão pelo «Eu» na Educação moderna levou inclusive à perda da noção
encontro com o Si. Uma Histórico-Sócio-Psicanálise é requerida e o desiderato do verdadeiro objecto da Universidade, quando, na verdade, esta não é sequer
de uma Ética Espiritual afecta à presunção da Nova Era arrisca fazer regressar Educação, nem lhe compete visar a criação de competências ou profissões.
o Homem ao Arquétipo religioso, ao domínio de um novo Dogma. Nada de es- O mercado e a cultura da celeridade industrial e plastificada parecem querer
pantar, atendendo a que o eterno retorno cíclico há muito condenou o Homem dar o toque final na dessacralização dos tempos modernos. Mas desenganem-
a repetir sempre os mesmos erros... se os que pensam que esta cultura dessacralizada é isenta de deuses. O Big Bro-
A Espiritualidade só pode sê-lo se conluiada com a eticidade, mas a ausência ther tecno-científico e industrial aí está repleto de força, a ditadura do mercado
de um critério falsificabilista que permita ao "não sábio" fazer a distinção entre dita a degeneração final do que vale per si; as coisas já não valem o que valem,
o verosimilhante e o não verosimilhante exponencia o risco de uma nova dog- elas valem o valor que lhes é imputado, e esse valor é decidido pelo mercado, e
matização mefistofélica. ficam assim o clássico e o sagrado destituídos da sua qualidade, porque o mer-
A própria modernidade científica possui já esse pendor fáustico, promete dar cado os acha "antiquados", coisas do passado, quando o eterno não é passado,
ao Homem a capacidade de se autodestruir, nem que seja pela promessa "mé- presente ou futuro, mas a modernidade diz também que o eterno não existe, é
dica" da vida eterna, ou porque é a própria Inteligência artificial que promete a ilusão do homem do Espírito, o mesmo que teve necessidade de criar o Eterno
vir a ser o novo Deus. A tecnologização produz a indústria dos mortos-vivos. A por temer a sua própria destruição. Esquece o homem moderno que também
máquina e o homem são um só corpo, como transparece nos filmes de Cro- ele teme a sua destruição. Matou os deuses, mas inventou outros instrumentos
nenberg. E ainda há-de vir o tempo em que o Homem pensará que terá sido o pseudo-arquetípicos, mas que, não sendo sagrados, não param o tempo, não
computador a criá-lo a ele e não o contrário. securizam, não pacificam.
É que o tempo modifica a própria História, e são os Valores do presente que Às tantas, mais vale o arquétipo controlador do tipo ético, do que aquele que
constroem e demonizam os Valores do passado. faz a violência. Mas é que o Homem está condenado a transformar qualquer
A própria noção moderna de espírito não corresponde verdadeiramente à Arquétipo inicialmente bom numa estrutura de conforto alienante e castrador.
noção de Espírito da sabedoria perene. Pois a linearidade Judaico-Cristã-Aristo- Demanda o tempo entrópico que o homem volte sempre a fazer asneira. A en-

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tropia é a fisiologia do eterno retorno. Para que, transpondo a condição hu-


mana, o próprio Arché demande a evolução, a mesma que poderíamos querer
O lugar da fé nos ritos e na
gorar, mas que estamos destinados a não o conseguir desejar. E como estamos Espiritualidade: o exemplo natalício
condenados a tornar-nos deuses mesmo que o não queiramos, poderíamos
sempre tentar a vanidade da vontade, a desistência do caminho, mas é que a
nossa condenação itera a própria desistência da desistência, senão a ilusão da Assumindo previamente que a Espiritualidade enquanto "conceito" não igua-
liberdade... la a "Religião", e atendo que o contacto com o Esoterismo, no sentido de uma
A eterna repetição é a regra de um Ocidente que opta por manter a ilusão de filosofia espiritual profunda e racional, nos torna muitas vezes avessos à aceita-
que a actualidade é evoluída face ao passado, quando é o próprio mecanismo ção da fé enquanto princípio propulsor de uma vida centrada no Espírito, pode
temporal que obriga ao desgaste da estrutura do Princípio paradisíaco. É mais parecer contraditório que venha, de algum modo, defender a imprescindibilida-
uma ilusão, a concorrer com a ilusão etnocêntrica - que implica a noção da su- de da fé para a prática devocional e a vivência da iluminação espiritual.
perioridade da cultura ocidental, assim como a ideia de que a Europa é o velho A contradição radica, por assim dizer, na eterna oposição entre fé e razão,
mundo, quando, na verdade, a cultura oriental é que é realmente o berço da sendo que a última é muitas vezes advogada como base necessária e até su-
Sabedoria - e a ilusão especista - que depreende que o ser humano é o único ser ficiente para a compreensão integral do processo espiritual, o que, a meu ver,
dono de consciência, sofrimento, e, como tal, de direitos ético-morais. pode resultar numa ilusão, que é a mesma que ancora na presunção de que o
Há ainda a ilusão dos Valores estanques, aquela que permite avaliar o pas- pensar do tipo "filosófico" é meramente uma questão de Racionalidade.
sado à luz dos valores actuais, sem que um esforço de adaptação hermenêu- Seguindo a Escala de Platão, segundo a qual o acesso à realidade se pode
tica tenha sido requerido. A mesma que permite considerar o passado como processar por dois níveis - Doxa (opinião) e Epistémi (Razão/Conhecimento) - e
"atrasado" face ao presente, como "mau" relativamente ao "bem" do presente atendendo que a Fé ("Pistis") está incluída na Doxa, seria normal considerar, à
(como se o "bem" e o "mal" não tivessem sido sempre meros julgamentos de imagem do que classicamente tem sido feito, que a fé pertence ao domínio do
valores...), quando há somente uma incapacidade de perceber que não há ver- corpo e da mera "confiança" numa suposta verdade mesmo que não compro-
dade alguma senão a nossa verdade, o nosso contexto, e que a tentativa de nos vada racionalmente como tal, e que a Razão pertence ao domínio do "além do
colocarmos num outro contexto reitera a saída de nós mesmos, o exercício de corpo" e requer critérios objectivos de distinção entre diferentes verdades. No
uma racionalidade meta-egóica, e a necessária elevação na escada/escala da sentido esotérico, o Espírito teria mais a ver com esse racional "além do cor-
Consciência, o propósito da libertação da nossa condição, a tentativa de liberta- po" do que com a fé, considerando esta última como estando mais relacionada
ção de uma mente a partir da mesma mente de que nos pretendemos libertar. com a temática religiosa propriamente dita; assim sendo, também se poderia
Oxalá a mente permita o funcionamento quântico, pois, de outra maneira, a considerar que as sensações afectas à devoção não relevariam da verdadeira
libertação não terá outra resolução senão na morte da carne, na extinção do Espiritualidade, mas somente do fenómeno "popular" e exotérico da "Fé".
Eu, no encontro do Si-mesmo com o Nulo que somos incapazes de trazer à A perspectiva clássica de oposição Fé vs. Razão, Corpo vs. Espírito, Religião
cognoscência. Exotérica vs. Religião Esotérica medra de duas grandes ilusões quase milenares.
Uma delas é a consideração de que o Espírito ou o próprio acto do Filosofar
pode dispensar o corpo e a sensação, quando, na verdade, todo o acto de Cons-
Publicado na revista "Triplov", 2013 ciência ou Hiper-consciência reitera a existência de um palco somático (senão
da própria fé...), se é que não corresponde meramente ao próprio palco neu-
rológico (assumindo-se, assim, a "alma" e o "Espírito" como meras alegorias). A
outra ilusão corresponde à errónea pressuposição de que é possível uma vida

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espiritual sem a inclusão das sensações, emoções, sentimentos, quando, obvia- lismos e rituais muitas vezes não consciencializados como tal, tem ajudado a
mente, a mera compreensão racional da Religião é insuficiente para a prática de manter e a fecundar o tecido religioso das culturas, se bem que muitas vezes
uma vida espiritual no ponto de vista, não tanto da renúncia, mas da tolerância por vias que mancham definitivamente o objecto mais belo e prístino da Espi-
e da compaixão. ritualidade.
Daí que é preciso sentir o amor para amar, e tudo isto só é possível se o Eu for É bem verdade que a devoção perante a imagem do Mestre Jesus e dos seus
amado e tiver sido desde sempre um self estruturado pelo Amor. Sem ter sido ensinamentos, aceites com a fé própria de quem condescende a sua vontade à
amado e sem ser Amor, o Eu não pode amar, não pode tolerar, não pode sequer força verdadeiramente benigna do profeta messiânico, não desmerece aplau-
renunciar ou viver uma vida de dedicação a outrem. Sem a corporeidade, não sos, mas o risco dessa fé resvalar para a cegueira "confortável", acrítica, dogmá-
haveria sequer força trófica para o filosofar, até porque, como digo no agora pu- tica e destruidora é enorme. Veja-se o desempenho da Igreja Católica em milé-
blicado livro «As Metamorfoses do Espírito» (Apeiron Edições), o acto filosófico nios de uma História de perseguições, até mesmo da riqueza da cultura oriental
-espiritual requer, na verdade, um certo nível de caos interno ou desassossego e greco-latina da qual vieram muitos preceitos da religião oficial de Cristo (sem
mental, a angústia de quem busca as estruturas primárias do seu Ser, tal como que a Igreja admita sequer tais origens ou influências), e até a cultura gnóstica,
acontece com os ritos, que são desde sempre um reviver simbólico das origens, que inclui desde os primeiros verdadeiros cristãos (anteriores a Jesus, pois que
da criação, no sentido do "Arché" ou Princípio bíblico. o termo "Cristo" corresponde a um estado espiritual "alcançável", usado antes
O ritual é, assim, um pouco como quase tudo o que existe na religião: uma do suposto nascimento Histórico de Jesus) até aos Evangelhos proibidos, com
"reactualização nostálgica das origens", para utilizar as palavras de Mircea Elia- estes a mostrarem a grandeza da Sabedoria de Jesus de uma forma bastante
de. E é indubitável que os ritos são a expressão do simbolismo do retorno à diferente da que conhecemos pela "cultura oficial" (lembremos que os diferen-
Terra/Natureza (veja-se o exemplo do funeral), às águas primordiais (como no tes Evangelhos, canónicos e gnósticos, datam todos de uma data não anterior
baptismo, em que o mergulho na água implica a transmutação) ou mesmo do ao séc. II/III da nossa Era, o que significa que não existem registos das palavras
regresso ao Paraíso (vejam-se os templos, as torres, os rituais de ascensão) - do Mestre nos dois séculos seguintes à data calculada para a sua morte, o que,
com o próprio rezar a conceber-se como a "Palavra", que crida e repetida, trans- para muitos, contribui para provar que o Cristianismo corresponde sobretu-
forma e constrói a própria Realidade (interna e externa) -, com alguns deles a do a uma religião tornada dominante e influente de diversas obras - por um
serem tão antigos quanto as primeiras religiões, que eram aquelas em que se mecanismo de contágio - entre muitas outras seitas e sem nenhuma ligação
simbolizava/cultuava a união do homem à natureza e aos ciclos ou estações na- obrigatória a um Messias).
turais (por exemplo, a reencarnação e a própria noção cíclica de tempo, muito É precisamente com base na noção de devoção benigna (e nunca cega ou
importantes para os orientais, sobrevêm determinantemente da vivência dos apartada da racionalidade), no Amor fraterno e na profunda beneficência, que
ciclos das colheitas ou dos ciclos comportamentais dos animais e até da intimi- devemos viver a fase natalícia, sem uma preocupação exagerada com a seve-
dade lunar feminina). ridade Histórica da data, e mais com a preocupação genuína por sentir o Espí-
O próprio Natal era festejado já antes da Era Cristã em associação ao início rito, com o corpo e a alma, sem sentimentos de culpa, como base da vivência
do ano (do ciclo solar), com a entrada no solstício de Inverno, só mais tarde profunda dos afectos e do auto-encontro. Não é por acaso que tantas pessoas
adaptado pela Igreja Católica no séc. III da nossa Era para a conversão dos po- sentem tristeza ou saudade no Natal. Não é por acaso que muitos de nós aca-
vos pagãos sob o domínio do Império Romano. E até as liturgias (assim como bamos por condescender, perdoar, esquecer o ressentimento, apaziguar a in-
o 25 de Dezembro enquanto data na realidade pouco provável do nascimento quietação interior, precisamente na época natalícia... O Natal pode ser fonte de
de Jesus) reiteram o rito, incluindo uma simbologia riquíssima proveniente de ambivalências, sentimentos nefastos e memórias angustiosas, mas é também
diversas culturas e religiões da Pérsia e da Índia. o palco propício à negociação com todas essas sensações desvirtuadas, a data
A fé é assim uma força motriz muito antiga, e que em conjunto com simbo- do reinício, de uma nova fase que vaticinará a mudança e a pacificação com o

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nosso Eu e com todos os que amamos. É o momento de tocar no outro e dar a


palavra da redenção, o gesto do amor incondicional!
Nietzsche e a psicologia
do Super-Homem
Publicado em revistaprogredir.com, 2013
«O homem é uma coisa que tem de ser superada»

«Anuncio-vos o Super-Homem, aquele que há-de dominar a Terra»


Nietzsche («Assim falava Zaratustra»)

Se considerarmos que a Espiritualidade conforma um terreno que se estende


desde o desiderato da "Psicologia do auto-conhecimento" - e que inclui obvia-
mente o papel da religião (e, claro, do mito) como retorno saudosista (à se-
melhança do que propende a Psicanálise), como "reactualização nostálgica das
origens" (Mircea Eliade) - à moral martirizada da "renúncia" (que se reifica com
o 'Nada' da Voz meditativa do Silêncio e concretiza derradeiramente com a mor-
te pacificadora), podemos considerar que é sobretudo a primeira perspectiva
mais "psicológica/psicanalítica" que interessa mais à noção do Super-Homem
tal como apresentada por Nietzsche em «Assim falava Zaratustra»; este mesmo
Super-Homem é, assim, o resultado derradeiro de todo um crescimento, um
pouco como o produto finalizado de um processo de Gnose pessoal, a meta de
um caminho epopeico, que é no fundo a tragédia da vida psicológica e intelec-
tual.
Sabendo nós que a via Ética genuína implica a renúncia e que o verdadeiro
amor reitera o abandono do Ego (o desapego que um certo Budismo refere), é
igualmente verdade que nenhuma via de auto-exclusão poderá fazer com que,
de facto, um efectivo crescimento transpessoal e civilizacional possa ocorrer.
E esta perspectiva não pode deixar de recolher o consentimento próprio da
modernidade, que é, de algum modo, o contexto temporal por excelência da
valorização das relações inter-pessoais e mundanas, acrescentando-lhe por de-
trás o cenário de uma valoração científica materialista que há muito contribuiu
para dessacralizar o tecido social e igualmente de uma valoração política liberal
que veio contribuir para reificar uma dupla perspectiva de vida Individualista
vs. Igualitarista.
E é precisamente a imersão neste contexto liberal empossado pela moda

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"darwinista" e reaccionado pela revolução Socialista que veio dar a Nietzsche to não alcançável pelo "comum" (malgrado as filosofias liberais e igualitaristas
uma força motriz elevada na geração da sua perspectiva do Super-Homem, que pouco aceites pelo filósofo); por outro lado, se bem que concebo que a via do
viria a ser um dos pré-requisitos históricos capitais da criação das teorias de crescimento e da formação do Super-Homem acaba por permitir a eticidade,
Freud e de uma parte significante da Psicodinâmica. este tipo de moral não corresponde, de facto, ao tipo de "moral darwinista" com
Influenciado pela revolução científica do séc. XIX, e bem consciente da há mui- a propensão competitiva da Vida que Nietzsche tanto parece estimar.
to anunciada "Morte de Deus", Nietzsche viria a concorrer para uma avalanche Os aspectos das obras de Nietzsche posteriores a «Assim falava Zaratustra»
"secular" verdadeiramente dessacralizadora, tendo contribuído, como nenhum não implicam que não possamos dar livre interpretação a essa fantástica obra
outro, para demolir as noções "românticas" do Espiritualismo e de todas as Me- que propende que o homem está destinado a ser ultrapassado, de modo a criar
tafísicas, e também para mostrar que todo o Idealismo tinha por trás a razão o «Super-Homem», que, a meu ver pessoal, existe em potência em cada um de
própria de cada um, a necessidade doentia de cada Ego, a projecção psicológica todos nós, e que, sendo alcançado (ou "desvelado"), permitirá a harmonia, no
de uma ilusão, enfim... contribuiu para denunciar a aspiração Espiritual como sentido em que a fixação da estrutura fálica ou o pilar fundamental do Eu levará
meramente "humana, demasiado humana". automaticamente à capacidade do Eu de se virar para fora de si (é um facto, que
A pretensão da renúncia seria assim vista como doença do crescimento, a tolerância e a dedicação aos outros não podem ser obtidos sem que primeiro
medo da evolução, necessidade de totalização de um Eu que tem a fobia da o Eu se encontre a si mesmo).
aventura de ser; e, tal como defendido em «A Genealogia da Moral», a moral Penso que, na actual fase de "défice narcísico" da Humanidade, em que o
cristã seria somente o resultado da destituição de um tipo de moral mais antiga, egoísmo assumiu proporções desmedidas e o individualismo se tornou um va-
que é a "moral dos fortes", a "moral aristocrática". lor dominante, é precisamente o alcance do Super-Homem (e só depois, de uma
Para Nietzsche, o homem é sobretudo uma condição intermédia entre o ani- "Super-Humanidade") que reitera a prioridade. Não do Super-Homem aristo-
mal e o Super-Homem, e o ser humano está destinado a crescer e a "tornar-se". crático e individualista, porque esse já o temos e em excesso! Mas do Super-Ho-
O que vem em abono da perspectiva da evolução pessoal, do crescimento do mem cheio de amor, primeiro do auto-amor do Super-Homem individual, e só
nosso Eu, o qual irá implicar o "retorno", o recuo às memórias, e até o "marca depois do Amor Universal do Super-Homem colectivo.
passo", para que, no fim, após um caminho realizado enquanto "Odisseia", to- Como já disse, a via implica o caminho próprio, até porque a verdadeira Sa-
dos os condicionamentos tenham sido vencidos e a Liberdade (ou, pelo menos, bedoria tem de ser "não mediada". Não se pode esperar que sejam os outros
a sensação da liberdade) tenha sido obtida. a fazer este caminho por nós; isso seria arriscar a substituição do Crescimento
Esta meta seria a do Super-Homem, ou seja o homem que foi capaz de se pelo Conforto, que, apelando à analogia com a Espiritualidade, é como subs-
transcender - se bem que não tenho a certeza se este caminho possui um "fim" - tituir a espiritualidade esotérica pela religião exotérica (que, como sabemos,
obtendo-se um Ser capaz de criar os seus próprios Valores, que podemos inter- corresponde ao que de facto aconteceu com a Humanidade, principalmente
pretar como o homem maduro que se torna criador, de obra ou dos seus filhos. desde as trevas cristãs).
Ora, se bem que existe uma tentação de associar ao Super-Homem aquilo Ora, percebemos, então, que a Espiritualidade inclui este "caminho" do "Auto-
que seria o resultado de um longo trabalho de divã psicanalítico (que pode ser conhecimento", e que não é só o que Nietzsche nela quis identificar: a renúncia.
interpretado como o caminho próprio de transmutação que todos estamos O caminho ascético e a renúncia à mundaneidade são, apesar de tudo, cami-
destinados a perpetrar no devir das nossas vidas), não posso deixar de acres- nhos nobres de Eticidade, mas parece-me que, não obstante a possibilidade de
centar que esta é uma interpretação, que apesar de se manter válida e acei- serem somente uma construção velada dos espiritualistas racionais (ou mera
tável, não condiz, ainda assim, com a perspectiva que Nietzsche apresenta a projecção psicológica do Idealismo), ancoram numa via final de silenciamento
partir de «Para além de Bem e Mal», em que o Super-Homem é apresentado ou pacificação que a Humanidade não se encontra actualmente preparada para
enquanto Elite aristocrática destinada por várias gerações à grandeza, e portan- substantivar.

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Luís Coelho A Clínica do Sagrado

Assim, o crescimento, o silenciamento e o encontro do «Nada»/Absoluto -


fases do "processo Espiritual" - poderiam corresponder precisamente às fases
Corpo de Lúcifer, paixão de Sophia
da vida do homem/Humanidade, em que o crescer da criança e do adulto (fase (fragmentos e aforismos)
actual em que se encontra o Colectivo) seriam terminados pela pacificação da
maturidade (e em que a entrada no silêncio sem a adequada integração do
corpo egóico poderia implicar uma danosa "fuga para a frente", que os psicana- A solidão inicia e nutre o filósofo, para que este possa Iniciar-se e nutrir a
listas, de algum modo, denunciam nos que se "anulam a si mesmos", e em que, Verdade. O verdadeiro filósofo vende-se tão-só a uma opinião, a sua, que é
por outro lado, a vivência ad eternum do corpo egoísta destinaria o Homem ao também a de todo o mundo unido na indiferencialidade. O filósofo genuíno pre-
temido "eterno retorno"). fere a reclusão da sociedade que lhe cospe do que a reclusão do corpo traído à
Empreendamos, consequentemente, o desejado caminho para o Super-Ho- caverna da ilusão. Todo o homem de verdade é um Homem da Verdade. E todo
mem, que, ainda assim, estamos destinados a ser, nesta nossa impossibilidade o Homem da Verdade tem Sócrates ou Cristo em si, pois prefere o sacrifício ao
de não sermos Amor. Uno do que o prazer da mentira. O filósofo não se importa de ser "para-terre-
no", "estranho ao mundo", objecto de gozo, quiçá do ataque de massas amoti-
nadas. Quem está destinado a desvelar está destinado a sofrer, pela Verdade,
pelos outros, à cruz pregado, na cruz em rosa se transformando. Um contra to-
dos é o destino do pensamento. É o preço a pagar para que o "um" e o "todos",
o Eu e o Outro, se tornem Uno. Daí que, se a Filosofia é a tarefa de Um, o Espírito
é o destino do Todo. Se o pensar é o karma do Eu, o Uno é o Karma global, até
que virá aquele prístino (não)momento em que já nem há Karma, corpo, Eus,
outros, leis, tempo ou cosmos, senão o Eterno Presente.

A Totalidade procede da Verdade. E o filósofo vende-se à Verdade. Que fazer


se o filósofo descobrir que a Verdade do Espírito é somente a sua verdade? De-
verá ser fiel à Verdade que entretanto já não é a que deseja para si? Ou deverá
ser fiel à Verdade do mundo, a mentira que este precisa para continuar a ser e a
prevalecer? A escolha decidirá a diferença entre o filósofo e o sábio.

O Verbo transpõe nefandamente os neurónios do filósofo, para que o seu


Córtex pré-frontal passe a ser a Coroa cabalística do sábio. Dualidade e dialécti-
ca são os quesitos argumentativos do espírito, agora o Eu, depois o Todo, agora
o Todo, depois o Eu, porque o Espírito objectivo pode ser a partícula cósmica do
Ser, o ser-aí egóico, o ser-aí para-egóico. O ideal subjaz ao Ideal e o Ideal subjaz

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Luís Coelho A Clínica do Sagrado

ao ideal. O Todo está na parte e a parte no Todo. O Cosmos é um número infini- O bem e o mal são a diferenciação do Uno, só factível na mente de opacida-
to de outros Cosmos, o átomo é o locus de mundos infinitamente reprodutíveis, des. A mente reitera referências, valores que fixem a "normalidade", critérios
infinitamente clonáveis. Deus reside no Eu, é o próprio Eu, o seu pensamento de pertença ou exclusão. Tudo se define em termos de um critério e a ilusão do
aprisionado e logo colapsado no vazio, de um vazio que não o é para mais ser absoluto vem da banalização de critérios. A "banalidade do mal" é muito mais
a essência, o Ser, que é o Todo de Nada Ser, sem diferenças, sem densidade do que um mal "normalizado", é a própria supressão do mal pela mudança de
carnal, sem distinções mundanamente diabólicas. critério, porque o novo "normal" fixa uma nova referência moral. Não obstante,
a tentação de demonizar agrada às emoções desregradas, às próprias e às dos
 espectadores extasiados. Acusar um "mal" é possuir controlo sobre um com-
portamento, controlo sobre o si sempre em perigo de regredir à animalidade
É o caos que domicilia as profundezas do ser que demanda a mesma busca confrangedora. E defender o inocentemente mau não é muito diferente disso.
que visa a libertação do caos. O risco de perpetuar uma sucessão cumulativa
de caos é enorme. A loucura é uma possibilidade. Querer dar ordem ao Ser é 
contaminar a possibilidade de este se libertar da Ordem que o agrilhoou. Fortes
grilhetas condicionam mais do que as fracas. Fortes grilhetas condenam a (não) Quão inútil é tentar conhecer a Origem profunda do que nos angustia! É a
libertação. Como trazer à mente o palco indeterminado do eterno presente? própria Roda da Lei de todos os Divinos que acarreta que a Consciência Pura
seja o relativo de um Divino maior, infinitamente em todas as "direcções", que
 o esforço do Eu seja o desígnio da evolução no e para o Nada, a ausência de
Sentido, senão de um pequeno sentido.
Tudo é Espírito. Seja no Todo realista, seja no Todo do ideal do filósofo. Seja O Absoluto acarreta sempre o peso de ser relativo face a um Absoluto maior.
no que Há, seja no palco da residência neuronal do pensador. O pequeno re- Isto significa, por um lado, que é sempre possível alcançar o Absoluto nos ter-
produz o grande, como a gota de água reproduz o tecido purpúreo do oceano. mos de um critério, de uma definição, de regras necessárias de um jogo de
O homem é uma célula do Universo e inclui múltiplas células que são o universo determinação. Significa, por outro lado, que todo o Absoluto é um relativo, à
de outras células ou universos. A matéria é somente espírito formatado, torna- semelhança de uma Eternidade a comportar-se como um segundo de um Deus
do denso para ser trazido à consciência. Sem a matéria o espírito não poderia maior, para o qual tal eternidade é somente uma efeméride. O processo não
ser pensado, mas a matéria é também espírito etéreo de outros espíritos den- tem fim, o que acarreta a ausência de metas e a vanidade de toda a vontade,
sificados, tal como os deuses são os homens de deuses maiores, e estes são os a futilidade da acção, só contraditada pelo peso da Lei gigantesca de todos os
homens de outros deuses, para que, no fim, não sejam nada, de grande ou de tempos, que acarreta a obrigação de transcender o eterno retorno, para abra-
pequeno, de Uno ou de múltiplo, porque o eternamente grande, que é também çar um eterno retorno ainda maior.
o eternamente pequeno, dissolve todas as dimensões que nunca chegaram a Fica a dúvida de se esta Roda gigantesca não é também ela a Lei de um cor-
existir senão na consciência de mentes enclausuradas na caverna da carnalida- púsculo, que, em conjunto com a infinidade de outros corpúsculos, formam
de limitadora, na prisão da cognição dos desenhos de relações. uma outra Lei (senão uma desordem...) ainda maior, e isto sempre na base da
Infinidade.
 A ilusão é então a condição sempre provisória do ser. Não há, senão, a ilusão
face a outra coisa, ou o "absoluto" face a um qualquer objecto. Quem não do-
Tudo o que é o é em relação a algo. Nada é absoluto senão o Absoluto do mina as escalas do Ser nada domina. E dominar uma só linguagem é somente
Espírito, e este pode ser somente o resíduo solipsista da mente conturbada. perceber uma só escala, infinitamente pequena face a algo maior, infinitamente

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grande face a si mesma. O Absoluto transcende todas as escalas na perspectiva existencialistas ocidentais. Foi o Ocidente que tendeu a materializar e a dividir
escalar humana, mas é somente mais uma escala menor na perspectiva escalar o indivisível. Até mesmo a Filosofia Platónica constitui, de algum modo, um es-
de um Ser Supremo (Supremo para nós, pequeno para Supremos maiores). forço de charneira entre a Perenidade mistérica e oriental e aquilo que, mais
Fica, assim, a humildade a depender da aceitação de que algo só pode sê-lo tarde, será o contexto ocidental; veja-se que o que para outros é a Totalidade
em comparação com outro algo, tudo se define em termos de outrem, que nós, obtida após um número interminável de Vidas, para Platão passa a ser pre-
deuses de nós mesmos, somos apenas uma peça de um gigantesco e inacabável ferencialmente a Morte. E mesmo eu, que não deixo de ser um produto do
jogo, Divina Comédia, mas só "comédia" face à pequenez das nossas mentes. Ocidente, me sinto mais confortável - ou seja, menos sujeito ao desgaste de um
Fica, não obstante, a certeza de que a nossa existência é crucial ao Todo que descondicionamento e, de algum modo, "re-condicionamento" de uma nova
É, que nada seria igual sem o que Somos, e que, no mais pequeno dos nossos realidade cognitiva, que, para Platão, não seria condicionamento mas somente
átomos reside um Divino que contempla hostes de outros seres, que são o Divi- reminiscência ou desvelamento anamnésico - em aceitar que a libertação é a
no de outros seres, cujos átomos possuem um Universo (entre uma infinidade morte ou o Nada e não uma Essência do Irredutível que, mais a mais, para um
de outros) eventualmente semelhável ao nosso; no nosso palco encontramos ocidental, tem pouco valor.
todos os palcos, conhecer é somente trazer o palco à consciência, e mostrá-lo é De algum modo, desde a desmitização socrática e platónica, a Filosofia co-
levar o palco próprio aos outros que já estão a modificar o palco que lhes mos- meça a perder igualmente a sua relação de indiferencialidade arquetípica com
tro, e que já podia ter algo deles, e que, todavia, não podia deixar de ter, porque o Uno. Daí o seu próprio termo e o contexto ocidental do seu nascimento en-
todos os palcos são o palco comum, aquele que o Eu esqueceu e que não tarda quanto especificidade do filósofo, ser singular. É que, no momento em que se
a recuperar, numa não recuperação, porque nada se perdeu, tudo É, tudo flui, fala de um filósofo que pensa o Cosmos, já não estamos verdadeiramente na
tudo é Divino, o átomo do átomo do átomo de uma molécula de outro homem, Razão Contemplativa e muito menos nos níveis metanóicos coadunáveis com
talvez não homem, mas uma coisa inanimada, talvez não coisa, mas outra que o Atman "hindu"; começámos já a entrar no domínio da Razão Dianóica, coisa
é, para a minha pequenez, pura incognoscibilidade, mas, ainda assim, um mos- que atinge o seu apogeu telúrico com a revolução científica do Renascimento
quito de algo Maior, e este é o pequeno de outro mosquito.......... e com o Princípio indutivo de Bacon. Se bem que a Patrística já condensa uma
perspectiva da temporalidade ocidental linear, bem ao jeito da religiosidade Ju-
 daico-cristã, coisa que ajuda a reificar o afastamento do arquétipo paradisíaco
da indiferenciação, a cientificidade renascentista e, no contexto especificamen-
A realidade que em nós existe no formato de uma rede de esquemas cog- te filosófico (se bem que, nesta época, também a Ciência era "filosofia natural"),
nitivos não é a Realidade, senão a nossa realidade, a mesma que uma cultura a construção de Descartes, auxiliam no afastamento entre Sujeito e Objecto,
gravou na matriz de neurónios egotistas. A grande Sabedoria perene, e mui- que somente precisará da estocada final das Luzes e do Liberalismo para reifi-
to particularmente os saberes orientais, esotéricos e mistéricos, apercebiam o car uma Visão da Realidade que podemos designar de autorística ou egóica. O
Mundo enquanto Unidade, a partir da qual, qualquer tentativa de disciplinação tempo moderno é, assim, o tempo da liberdade, mas de uma que respeita ao
ou fragmentação cognitiva não poderia deixar de ser vista como acometimento Eu, e mesmo as perspectivas políticas contratualistas visam, de algum modo, o
de um afastamento diabólico em relação ao que as coisas São (se é que são respeito do Eu, que também pode ser o Eu adstrito ao Outro. Fica a Ética muito
alguma coisa... pois, se o Divino é irredutível, Ele é Nada de particular e em dependente do respeito pelo Outro visto como um Eu, que poderá, algum dia,
separado); de algum modo, para esse Saber, a própria divisão kantiana entre vir a ser o nosso próprio Eu a desejar ser respeitado pelo Outro. A Filosofia oci-
Númeno e Fenómeno não faz sentido, porque tudo é Númeno e o Fenómeno é dental e até a sua famosa divisão em Anglo-saxónica vs. Continental firmam, de
parte e o próprio Númeno... e isto é muito diferente de dizer que o Fenómeno uma vez para sempre, a fidelidade ao Eu, e o "Espírito" perde o seu significado
é a única coisa que interessa, um pouco à semelhança do que preconizam os de Totalidade Ética para quase ser confundido com a noção de mente ou alma.

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O dualismo cartesiano vem, inclusive, reificar a separação entre corpo e mente, exorcizar. Esforço do espírito que tem em si o orgulho de o ser, e que, como
quando a única coisa que poderia ter algum sentido problematizar seria a dua- tal, não pode sê-lo (Espírito), senão um demiurgo manifesto, preso ao orgulho
lidade Corpo-Espírito, se bem que mesmo a diferença entre materialismo e es- e à soberba de ser o que é, quando é a própria soberba que o impossibilita de
piritualismo é corruptela da mente ocidental, clivagem não aceite pelo contexto SER simplesmente NÃO Sendo. Sendo e orgulhando-me disso, como aquele que
do Oriente esotérico (apesar de aceite por algum esoterismo ocidental). O idea- isto escreve (e que é, portanto, relativo) e pretende ser lido e publicado, sou,
lismo alemão e o romantismo só aceitam o Espírito no seu sentido metafísico a mais uma vez, a confirmação do meu contexto, da frustração de não SER senão
um nível máximo, e, ainda assim, assumem a necessidade de referirem a "me- aquilo que sou para o Ocidente, a psique do Eu que decerto pretende o divã do
tafísica", quando o Oriente, reactualizado pela Teosofia de Blavatsky, assume o psicanalista com a minha saúde mental preocupado, mas não a Psique do Es-
Espírito como a Totalidade e a matéria como a substanciação do Espírito. O Oci- tado de Buda, que não é bem-estar, saúde ou felicidade, senão a Felicidade do
dente vê o Espírito como Eu livre, que também pode ser o EU Total ou mesmo Todo, que, a um nível imanifesto, não é senão algo que aqui não posso escrever,
Deus, mas mesmo aí o Espírito possui um lugar "localizável" no "topo" de uma porque, no acto de escrever, logo deixaria de o (não) ser.
escala, quando a Verdade mais prístina não se coaduna com escalas, mapas ou Daí que o Eu que o Ocidente e a sua Psicologia e Medicina reificam não é
referências cognitivas. A visão da História e da Dialéctica, e de uma Utopia que senão a doença de um Todo do contexto do Espírito. A Psicologia moderna e
firma o seu fim, seja num sentido Ideal e Superior - como em Hegel - seja num ocidental está preocupada com o Ego, quiçá com a Civilização na sua História,
sentido material - como em Marx, tudo isto são realidades escatológicas, coa- no seu contexto. A Psicologia profunda, esotérica e, sobretudo, milenarmente
dunáveis com um Fim, referência ocidental que uma mente de temporalidade oriental, está preocupada em não se preocupar, em deixar de ser Eu e em per-
cíclica e reencarnativa nunca poderia conceber. Mesmo o Pós-modernismo do der definitivamente de vista a História, a Civilização, o retorno e os contextos.
séc. XX vem em abono de uma perspectiva do Ideal subjectivo e só num sentido Quer ser "sem-texto", abandonar a "personna" (máscara), a ilusão, mesmo sa-
algo "forçado" pode ser incluído numa visão do Espírito enquanto Ideal objecti- bendo que tal abandono evolutivo será ciclicamente retomado pelo regresso
vo; mas aí, já o Pós-modernismo nada acrescenta à visão oriental. quedo à roda das encarnações, processo que é pura Necessidade, tal como a
Num nível radicalmente materialista, o reduccionismo, o subjectivismo, o re- evolução que o Ocidente pretende já reificar, não coisificando jamais senão o
lativismo, o desconstrucionismo, vêm empolar a entrada do homem na tempo- eterno retorno com o orgulho de o ser, e não tomando consciência de que a
ralidade dessacralizadora, e se há algum Universal é porque ele é fisicamente evolução é o destino fatal e que o mal, a involução e a existência infernal não
genético ou porque importa à sobrevivência das Sociedades, sobrevindo na são mais do que atrasos, erros pecaminosos, uma Luz adiada mas jamais eter-
totalidade das culturas que pretendem manter-se. Matou-se Deus, mas ainda namente "inevitada".
antes disso matou-se o Divino panteísta, e se há algum panteísmo que ainda E, agora, abandonando este mesmo texto, que, por escrever, logo confirma
sobreviva é porque somente se apelida a Realidade enquanto tal de "Deus", do que sou um Eu vendido a mim mesmo, lá vou eu ter de me arrancar ao que mui-
mesmo modo como se lhe poderia chamar outra coisa qualquer. A própria com- tos chamam de inutilidade e divagação, para abraçar o contexto do que outros
preensão de toda esta realidade força o autor deste texto a fazer um esforço vêem igualmente como inutilidade e divagação, que é a realidade carnal, real
de descondicionamento do esquema cognitivo que lhe é mais familiar... esforço para os primeiros, irreal para os segundos, não conseguindo ainda ter resolvido
inglório, vão, porque mesmo ele está condicionado pela (não) adaptabilidade a minha própria dualidade, aquela que me divide entre o Homem e a mulher, o
ao contexto que lhe é familiar e que deseja, quiçá, que deixe de o ser. Esforço Espírito e a matéria, o Oriente e o Ocidente, o Bem e o mal, os princípios de uma
espiritual que reitera o masculino que há em mim, para logo a noite querer diferencialidade que me agarra à carnalidade e me faz sofrer, e que possui a sua
sombrear-me com o feminino lunar, no preciso momento em que tento inter- resolução na diferenciação sexual face à infância da fixação edipiana bissexual
pretar psicanaliticamente a razão para tal ruminação, como se tal interpretação (para os primeiros) e/ou na vista da indiferencialidade da condição "meta-hu-
fosse a condição da exorcização daquilo que um oriental não quereria jamais mana" (para os segundos). Sei, somente, que, um dia, quando tudo isto estiver

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resolvido em mim, tudo parecerá ridículo por ser tão simples, tão banal tal in- Corpo-Mente. A mente diferencia-se do corpo por uma mera questão de men-
flexão. Resta saber se é possível tal coisa estar resolvida em mim, continuando surabilidade relevante; para o materialista, a mente não tem peso, a mente só
a ser "mim", pois que, quando já não for "mim", terei provavelmente a prístina existe enquanto abstracção quimérica de um cérebro comensurável; portanto,
resolução, que não é resolução alguma, pois aí não há sequer problemas, nesse para o materialista, o Espírito é como uma Super-Mente, que, pela sua relação
Paraíso que não é nenhum campo de papoilas ou a ilha de Circe. No Todo será com o Imperativo Ético, não pode deixar de ser a Civitas, o Superego de Freud.
o Nada, a não consciência ou existência... não admira que muitos queiram a
resolução pela ilusão da falsa Luz, que, de qualquer maneira, é também a con- 
sequência do condicionamento moderno de um Eu que não desiste de o ser, e,
que por isso mesmo, atrasará o momento de Não Ser. O Uno Sujeito-Objecto é a obsessão que conluia a Espiritualidade com o Pós-
modernismo. Mas se para a primeira esse Uno é um facto objectal e nominal,
 para o segundo o mesmo Uno é subjectivo, mesmo que acabe também por ser
objectivo. Não obstante, como o Uno Sujeito-Objecto do Espírito só pode ser
A indução é o pecado de todo o filósofo e aquilo que o "comunica" com o cien- acedido pela mente do filósofo, fica o Uno em questão a significar a subjectivi-
tista. O primeiro chega a transformar a noção do Eu em todo um Ideal objectivo, dade, o espírito ou o si-mesmo do pensador; por outro lado, sendo a realidade
e nessa generalização perde-se o sábio. Os homens de ciência, do conhecimen- interna do sábio toda a realidade que interessa, como se, para o pensador, a
to ou razão ainda não tornados "Consciência pura", criam as leis que impõem à Realidade fosse a sua realidade (mesmo que não o reconheça, seja por incapa-
natureza, para que depois possam tirar desta o que desejam ou ambicionam. O cidade, seja por falta de desejo), o Uno Sujeito-Objecto do Pós-modernismo aca-
sábio mais puro é a própria natureza, e como tal, dela nada pode tirar que não ba por ser o do Espírito no sentido da Sabedoria perene (isto, claro, assumindo
tivesse que tirar de si mesmo, aliás do Si-Mesmo. que a antiga Sabedoria, à semelhança do esoterismo teosófico, não utilizava a
literalização dos seus saberes enquanto velo de uma realidade subjectiva que
 somente põe em comum - aliás, confirma - a intersubjectividade duns quantos
eleitos do e/Espírito). Certas coincidências são vistas de diferentes formas pelo
Todo o filósofo tem em si um poeta fingidor. Ser filósofo "absolutamente" é materialista e também pelo espiritualista (passe-se a infelicidade da "clivagem").
ser poeta rendido à tentação, sem temer a clausura dos métodos ou a vergonha Enquanto que o espiritualista reconhece a "reprodução" do macroscópico no
dos Sentidos, na condição de ter em si "todas as opiniões do mundo". E mes- microscópico, o materialista reconhece a generalização do microscópico para
mo quando "todas as opiniões" são somente a sua opinião, não duvide o ser o macroscópico. A segunda perspectiva - de âmbito pós-moderno - não pode
comum que a opinião do filósofo/poeta tem mais peso que todas as opiniões deixar de ter um cunho muito contemporâneo, com o conjunto das influên-
pessoais de todos os Cosmos pessoais. cias relativistas e subjectivistas das tendências "modernas". Num certo senti-
do, o Pós-modernismo recai no "relativismo dogmático", na medida em que o
 pensamento de um generalizado para o Espírito objectal não passará de uma
incerteza (a)científica (no sentido popperiano do termo)... com o relativismo a
A Filosofia antecede a Sophia e esta antecede a Luz. A primeira começa algu- deixar de o ser no preciso momento em que o tal pensamento singular prova
res na Epistémi-Dianóia e estende-se pela Epistémi-Noésis. A segunda atinge ser o pensamento colectivo (do Singular Divino). Por outro lado, não podemos
o Nous. A Luz transcende o Nous, é o Atman do Sanathana Dharma (Brama- esquecer a componente literalmente construtivista do Pós-modernismo, relati-
nismo). Para o materialista, a Epistémi é explicada pela Doxa, dependendo até va à possibilidade da mente ter funcionamento quântico e poder - literalmen-
desta, e o Espírito é um artifício, uma generalização do Quaternário Inferior, do te - construir o fenómeno que deseja construir. Aqui, já a mente individual, o

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espírito subjectivo, poderá contribuir, de algum modo, para a construção do O Caos quântico que subjaz ao Divino é isso mesmo: a infinidade de possibili-
Espírito objectal, um pouco como se todo o homem fosse um demiurgo a con- dades, a pura Liberdade, dentro da qual uma escolha é já uma instrução parcial,
tribuir para a eterna transmutação do Divino. O subjectivo tornar-se-ia literal- ou seja, a Palavra ou Arché afecto ao Demiurgo. O Verbo é o Livre-arbítrio do
mente objectivo, não só no sentido da apercepção, mas também no sentido Demiurgo, as instruções ou Leis de um Cosmos. Um Cosmos é, por isso mesmo,
do percepto dos Logoi "superiores" (Atman »»» Brahman), para que, a um nível um Universo (Uni + diverso). O Infinito quântico que subjaz a tudo o que Há é
máximo de subtilização (a superação da condição humana precisaria da quali- a soma, aliás, o Todo de um número infinito de potencialidades e, portanto, de
dade quântica da mente) o puro livre-arbítrio semi-manifestado desencadeasse Universos. Aí não há Lei, pois esta, sendo uma coisa e não outra, é relativa, e o
a pura Liberdade do Divino imanifestado. Divino é o Absoluto.
Comprovada a existência de uma quântica mental, comprovada estaria tam- Se existe uma Verdade mais verdadeira que outra Verdade, se é possível cri-
bém a possibilidade real de uma evolução "para-terrena" do homem, incluin- ticar o relativismo, se é possível ver o início e o fim de um processo específico,
do a Libertação "búdica" no homem ainda encarnado. Algo que contrariaria a que é a Verdade vista como coisa precisa, tal só é possível no contexto de um
perspectiva de uma "Libertação" enquanto mero resultado de uma Roda da Lei Universo, de um Demiurgo, de uma Consciência. Ora, o Divino é Consciência
Kármica somente no sentido de uma gigantesca determinação do Ser (ou da Pura, Consciência absolutamente ilimitada, que, de algum modo, é Consciên-
ontogenética determinação do ser), o que, mais a mais, poderia nem ser verda- cia de Nada, uma não consciência, porque a consciência é sempre "de alguma
deiramente "Libertação". coisa", e já aí a consciência é demiúrgica, relativa, de uma coisa em detrimento
de outra.
 O estado de Buda (ou algum que o transcenda) tem sido descrito por alguns
como Consciência Pura, Não consciência, porque o Ego e o Relativo são calados
O "pensar" é puro acto demiúrgico e a linguagem do pensamento é o seu no desapego ao corpo e ao mundo (Cosmos), coisa muito dificilmente alcançá-
Logos. Sempre que o filósofo pensa está a ser um demiurgo, no sentido em vel ou mesmo perspectivável no contexto de um ser encarnado, mas potencial-
que está a dar forma ao Divino. Não obstante, não sendo o próprio Divino, o mente concebível nos termos da "mente quântica". Sem uma partícula da pura
seu acto demiúrgico é um pouco cego, senão uma das infinitas possibilidades Liberdade o ser humano não pode ser Deus, mas somente um Demiurgo. Para
do que Deus É ou pode Ser. Daí se explica o relativismo, a confusão babélica de que o humano se transcenda e chegue ao estado de Buda é preciso, a meu
vozes ou linguagens, a incapacidade do pensador ser Deus Total, senão mera- ver, conceber necessariamente a existência de um nível de pura liberdade no
mente demiurgo, parcialidade de uma Totalidade inacessível à mente humana contexto do ser humano. Sem ele, somente com livre-arbítrio, não vejo como
agrilhoada à carnalidade de opacidades, à caverna da ilusão que urge o desve- defender a possibilidade de o ser humano poder alcançar um estado verda-
lar. O filósofo revela, o sábio desvela, mas os dois, não sendo o Divino, mas so- deiramente Livre e Divino, um estado Final, se é que tal existe, o estado que é
mente partícula demiúrgica Dele, somente poderão revelar infinitamente, des- também o inicial e o de sempre, o que sempre lá está mas somente não pode
velar parcialmente. A condenação babélica urge sempre que o Homem tenta ser visto pelo sistema corpo-mente.
desvelar mais do que lhe permite a mente obscura. Resta o caminho de Sísifo, Não obstante, questionamos a possibilidade de atingir o estado de Liberdade
o eterno retorno de uma torre que o filósofo persiste em construir, a frustração após um ciclo muito maior e Civilizacional de encarnações e até de Eras e raças
de querer Ser, para que, no nível final, a reunião da infinidade de possibilidades (teosóficas), mas mesmo aqui há que questionar se o que "desvelamos" é o
crie a eterna brancura, o pleno preenchimento do oceano do Infinito, em que Todo ou se é somente o nosso Universo (mas haverá um Universo específico
Ser já Nada É, porque Tudo Ser ou Nada ser são a mesma coisa, e já nem o ho- em que vivamos?...).
mem se pode desiludir com tal opacidade de possibilidades, pois já este deixou Regressando à temática do relativismo, é inevitável pensar no Filósofo-Poeta,
de o ser para Nada ser e tudo Nada conter. aquele que admite todas as possibilidades, aquele que assume em si o forma-

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to de diversos demiurgos, a heteronímia de pessoalidades, que, obviamente, "cima" a deixarem de o ser, porque, no Absoluto, não há macro ou microcós-
quanto mais rica for maior será a aproximação ao Divino, também maior pare- mico. E lá vem a metáfora do "Pêndulo de Foucault", o ponto central que pode
cerá o relativismo, quando, na verdade, é maior a aproximação ao Absoluto. O ser qualquer um, porque toda a evolução e todo o movimento se perfaz à volta
relativismo enquanto multi-perspectivismo, uma certa forma de indiferencia- do ponto fixo, e qualquer ponto móvel é um ponto fixo relativamente a todos
ção face ao Divino, o pesadelo da ausência de "opinião" dos tolos, o pesadelo da os outros pontos.
ausência de "personalidade" duma certa Psicologia moderna e ocidental, este é
o caminho de aproximação ao Todo inter-Universal e inter-Cósmico; é também 
a correspondência ao muitas vezes apelidado "relativismo radical", aquele que
diz que todas as possibilidades se igualam e têm igual valor; ora, isto é falso O multi-perspectivismo é condição da racionalidade. O sábio, o filósofo do
para um Universo, Cosmos ou Arché específico, mas verdadeiro para o Todo Todo, aproxima-se do Absoluto, na medida em que assume em si mesmo múl-
Uno imanifestado, pois no Caos quântico do Divino, ou no oceano do que sem- tiplas possibilidades demiúrgicas. Não haja dúvidas, no entanto, que também a
pre lá Está, existe a já citada infinidade de possibilidades, o que, mais a mais, subjectividade subjaz a tal tentativa de Ser grandiloquente. O psicanalista pode
vem reificar que o relativismo verdadeiramente radical iguala o Absoluto, um ver no homem do Espírito a tentação teomaníaca de ser Deus enquanto defesa
pouco como o preenchimento infindo de riscos pretos num papel branco aca- para a incapacidade de ser homem, um pouco como se o perspectivismo mul-
bará por tornar esse mesmo papel completamente preto. Note-se que o campo ti-demiúrgico (ou mesmo inter-trans-demiúrgico) fosse a tentativa de vencer a
da Física enquanto ciência experimental moderna ainda ultrapassa dificilmente "dúvida" afecta ao demiurgo particular. É, portanto, a dúvida que alimenta a
o campo do que respeita ao Demiurgo que nos é familiar, gozando talvez jus- tentação do Absoluto. É também a dúvida que provoca o sofrimento do pen-
tamente com a ideia do Divino sobretudo porque ainda pensa que o Divino sador, o caminho do peregrino de pés sanguinolentos no deserto, aquele que
é somente o Deus criador do Judaico-Cristianismo, não entendendo que este tem mesmo que ser vivido na tentativa de purificar o ser, na tentativa final de
seria no máximo um demiurgo (e mesmo isto não seria, e é até ridículo recalci- libertar o ser da rota da carnalidade relativizadora, conduzindo-o ao Não Ser.
trar na noção fantasista de Deus num trono celeste, que, apesar de se conceber Todo o filósofo verdadeiro tem em si o objecto da libertação. Mas o caminho
como muito "maior" do que os deuses das mitologias arcaicas, ainda assim não para o mesmo não promete ser fácil, convida facilmente à desistência, ao peca-
é o Divino que temos tratado enquanto tal; interessa-nos, obviamente, mais o do da tentativa de ver a Luz onde ela não existe, à ilusão de ver o Absoluto no
panteísmo do que o teísmo...). Não tem a Física uma preocupação muito grande si-mesmo relativo. Daí que, de algum modo, todo o filósofo perseverante tenha
com aquilo que pode transcender o campo de um Arché específico, não queren- de ter um sentido mínimo do seu próprio ser, uma segurança egóica mínima
do perder tempo a pensar na possibilidade de existirem outros Universos, com que permita a perfídia do caminho sem a cedência à ilusão, à desistência, ou
outros códigos "genéticos"/logóicos, até porque a Ciência moderna pretende mesmo à "fuga para a frente". Ou seja, uma dúvida primária excessiva promete
estudar somente o "conhecido" e igualar o "desconhecido" ao "inexistente" (não simultaneamente formar o filósofo e gorar a sua meta. Todo o filósofo verda-
admira que o seu método "realista", positivista, potencialmente falsificabilista, deiro tem de assumir a possibilidade da Loucura, ou melhor, da "não loucura"
não possa jamais compatibilizar-se com o "relativismo dogmático" - passe-se a face ao oceano de relatividades e ao multiverso de incertezas. Ser filósofo é,
acusação popperiana - do método pós-moderno 'e/ou' espiritual). então, simultaneamente ter e não ter mapas, ter e não ter referências, ter e não
Numa linguagem "astronómica" (para os antigos, astrológica), a singularidade ter chaves.
"inicial" que "antecede" o Big Bang poderia ser o Absoluto, e o próprio Big Bang O produto do pensamento enquanto argumento racional é, como dizemos,
será já o momento primevo (o Arché) de um Cosmos específico, ou seja, é já o o resultado de uma Doxa, mas em que o aspecto exterior é o de uma Epistémi.
"relativo". O Absoluto seria feito de um número infinito de Big Bangs, de ciclos Não é criminoso assumir que todo o argumento racional possui uma matriz
cósmicos, infinitamente para baixo, infinitamente para cima, com o "baixo" e o genealógica emocional ou mesmo devocional, até porque o filósofo é um ho-

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Luís Coelho A Clínica do Sagrado

mem, um ser emocional que precisa de buscar na sua íntima volição o motor peitáveis Sociedades secretas... que são muitas vezes Instituições que de "Espi-
da defesa do argumento. Criminoso é que o próprio argumento seja externa- ritual" nada têm verdadeiramente... - estão repletas de homens de Cultura que
mente emocional, um pouco como vemos a acontecer nas defesas tempestivas fazem a violência à Cultura que pretendem ter ou servir, porque a trasladam
de seres conluiados com interesses. Por vezes, o criminoso da argumentação, o no aspecto exterior de um planeta sem núcleo, capaz de tornar o pensamento
oportunista, na incapacidade de argumentar racionalmente, "defende-se" acu- a epifania do "triunfo dos porcos" ou a morte da prístina Sophia. Mas Sophia
sando o pensador de possuir um qualquer "complexo de inferioridade". Não ressuscitará!... no momento em que o homem renunciar a todas essas ilusões:
percebe o oportunista que esse complexo (que, mais a mais, todos possuímos instituições, políticas, partidos, interesses, elites, todo o oportunismo mundano,
em algum grau) é somente o motor da argumentação mas nada diz sobre a a inteiridade do apego à matéria que vicia.
qualidade da racionalidade do corpo do próprio argumento. Se há, nesse mes-
mo contexto, algum ser que se vendeu à subjectividade, esse é decerto aquele 
que, por falta de capacidades, resolveu pessoalizar o impessoalizável.
Todo o homem sofre da adição da matéria. Urge o despertar, a libertação.
 Mas esta não surge sem a ansiedade da Sabedoria, a ressaca do dharma. Tema
o homem ainda mais a ilusão dos placebos, a metadona que é como a cultura
A ignorância é um pré-requisito da Sabedoria. Esquecer a cultura é condição que preenche e embriaga. O risco do eterno retorno é enorme e lá voltou o ho-
do despertar do Espírito. Há mais Espírito no recém-nascido ou na douta crian- mem ao vício. A droga do prazer acalenta e conforta, é um Paraíso travestido.
ça do que na mente do erudito. Saber muito é garante de não saber nada. E E longe estamos do Paraíso próprio, e ainda mais do que Existe (não existindo)
pertencer à História é a condição fundamental de se ser esquecido por ela. Por- para além do Paraíso, o Oceano do Infinito onde já nem droga, vício, prazer ou
que o acto de rememoração, a anamnesis mítica do "Princípio", é o verdadeiro sofrimento farão qualquer sentido.
objecto do historiador, como do homem da cultura, e de todo o homem que
pretende encontrar nas grandes Estruturas as suas próprias estruturas "falha- 
das". E é por isso que todo o historiador pretende deixar de ser História para
passar a ser mito, é por isso que a sua actividade visa fixar a História enquanto Tudo o que É é-o em relação a alguma coisa. Nada É sem o seu "relativo".
memória atemporal, um pouco como se o tempo dialéctico quisesse ser o Não O que consideramos "normal", "são" e até "moral" é aquilo que entra dentro
tempo da Eternidade ou como se a História quisesse nunca tê-lo sido. Assim do intervalo de referências entrosadas primitivamente. O "normal" e o "moral"
sendo, o Historiador trabalha para deixar de o ser. Tal como o homem da Cul- individual é o que respeita as Leis internas, as instruções do Arché próprio. O
tura que pretende extorquir o momento arquetípico do fluxo de aprendizagens "normal"/"moral" social é o que respeita o Arché dessa Sociedade, eventual-
do seu tempo, esquecendo muitas vezes que a evolução requer a lentificação e mente até o inconsciente desse Estado-Nação ou Pátria. O "normal"/"moral"
o abandono do tempo, que para se Ser é preciso deixar de se ser, que a cultura colectivo, aquilo que se entende como Eterno, axial/axiológico, valorativo, é
requer a Sabedoria mas que a Sabedoria transcende e despreza a cultura. No somente a obediência às instruções do Demiurgo do nosso próprio Universo,
máximo dos máximos, a cultura é somente o aspecto externo da Sabedoria, a do nosso próprio Cosmos. É, portanto, o respeito pelas Leis. O Arquetípico é a
rampa de lançamento do culto para o momento em que tanto a cultura quanto matriz das Leis universais que entendemos como a Moral eterna, eventualmen-
o saber se tornam inúteis. Olhem à vossa volta e encontrarão muitos homens te até o Imperativo Categórico. Não é o Divino, no sentido panteísta, pois esse
cultos. As Pseudo-Elites - literária, científica, artística, e, infelizmente, até filo- Divino inclui todos os Demiurgos, todas as Leis possíveis, o infinito de combi-
sófica e pseudo-espiritual, incluindo uma certa trupe de pseudo-iniciados, de nações logóicas.
pseudo-eleitos e pseudo-mestres que podem ser encontrados inclusive nas res- O que entendemos como os "Valores Universais" do Ser Humano, eternas

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e trans-históricas, é então o código genético do Demiurgo que nos é familiar. outra tentação: a de corrompermos a moral demiúrgica, sendo nós mesmos
Este código implica o Determinismo necessário, a Estabilidade que a Física iden- o nosso próprio Demiurgo, ou seja, ousar ser o Super-Homem que constrói a
tifica e que a Matemática traduz. Obviamente, os sortilégios da degeneração sua própria moralidade, a sua própria referência do que é "normal"/"anormal"
temporal, histórico-dialéctica, acarretam o surgimento de um Determinismo e "moral"/"imoral". Certamente que este tipo de liberdade relativista já existe,
probabilístico e, em última análise, de uma dialéctica individual idiográfica. Os mas falamos da "imoralidade" de construir uma nova "moralidade", e, portanto,
novos tempos de culto do "relativo" oferecem a dialéctica, o relativismo pós- já não uma "imoralidade". O velho problema do Livre-arbítrio acaba por ter de
moderno e o pós-estruturalismo enquanto produtos de interpretação do que ser recrutado para a discussão, pois nunca o Super-Homem o será verdadeira-
muda constantemente. É aceitável e até concorre para algo mais absoluto, não mente se se construir com base nas referências que já possui, nomeadamente
seja a própria hermenêutica/semiótica um condimento fundamental do estudo a referência primeva, o Arché da origem. É um pouco a imagem de um ana-
das Espiritualidades. Não obstante, à medida que uma certa sensação de desa- lisando que, por mais que pretenda vencer as "instruções" dos seus deuses
gregação e insegurança vai surgindo no Homem, lá vai urgindo a necessidade particulares/pais, nunca conseguirá ter "absolutamente" um Arché próprio, ou
de "retornar" ou "reactualizar" a realidade arquetípica. O próprio presente, e seja, somente poderá aproximar-se de um Arché próprio (de qualquer modo, o
até o devir, precisa desse retorno securizante. A religião, a moral, os Valores, os "próprio" é sempre o Eu e o dos outros, tal como o "outro" é ele mesmo a partir
Universais dos filósofos, são os ingredientes da Arqueologia eterna do Ser que de outros...).
recalcitram em ser recrutados, muitas vezes com o perigo de uma necessidade Lá fica, mais uma vez, no "caldo" a questão da Liberdade/Livre arbítrio e da
de retorno obsessivo-compulsivo. E isto acontece porque o h/Homem é natu- maior ou menor possibilidade de assumirmos o Demiurgo e o Divino que nunca
ralmente inseguro, requerendo constantemente a alusão ao Paraíso perdido. seremos e que, ainda assim, nunca deixámos de ser.
O H/homem seguro de si mesmo vive mais no (eterno) presente, porque é
aquele que dispensa a visita compulsiva ao Arché. Mas mesmo tal dispensa, 
eventualmente formatada pela tolerância à insegurança, requer o estabeleci-
mento de Pilares primevos robustos. E se eles não existem, quiçá talvez tenham A mais complexa das instruções herméticas ou especulações filosóficas pa-
de ser criados. Um pouco como se o Uno fosse a projecção do que une e põe recerá tão simples quanto a frase "o azul não é vermelho" ou "2 + 2 = 4", no
os homens em comum: o Corpo. O Inconsciente colectivo é, então, o que trans- momento do total desvelamento. Como parece tão óbvio hoje o que ontem se
creve as Leis, as mesmas que acabarão por estabelecer os limites do demiurgo enchia de opacidade. Como auguro ser tão idiota aos olhos de seres espiritual-
próprio/individual. Claro que esta interpretação materialista de um ser humano mente superiores a mim. Como somos pequenos aos olhos do Divino!
que cria os Deuses de modo a amenizar a sensação da sua própria solidão e
insegurança não deixa de estar repleta da subjectividade de alguém que foi 
fortemente enformado pela laica cultura ocidental. Na cabeça de um "espiri-
tual", decerto que certos Universais estão estabelecidos por algum tipo de Pro- A investigação radicada no paralelismo conteudístico entre a Espiritualidade,
vidência, Testemunho Superior ou Demiurgo. Mas o que interessa é que, dê por a Psicanálise e a Neuropsicologia (incluindo também a Psicologia cognitiva e
onde der, o Eterno existe e é recrutado no momento em que a insegurança da a Neuropsicanálise) urge como necessária, mesmo arriscando a possibilidade
"novidade" criadora requer a reactualização do Modelo arquetípico. de acabar por se desmistificar o que é geralmente visto como "belo", "místico",
Ora, obviamente que a tentação de ver na Moral absoluta a ilusão de uma "mistérico".
construção Humana, pela relação "inconsciente" que o Corpo genético estabe- Não é, consabidamente - e isto é só para dar um exemplo -, a Moral do Supe-
lece com o ambiente e pela Universalidade "memética" (Dawkins) das normas rego o resultado da actividade do Córtex pré-frontal do Cérebro? Não é razoável
requeridas à sobrevivência das Sociedades, é enorme e até pode alimentar admitir - passe-se a lógica escatologicamente materialista - que a Moral Civiliza-

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cional, o eterno arquetípico, é consequência da projecção, particular »»» geral, a Psicanálise dos seus primórdios freudianos é, de algum modo, a importância
microscópico »»» macroscópico, do Superego individual para o Superego colec- atribuída ao regresso ao Arché, no qual o ser recebe a energia tónica de reinício
tivo (com este a incluir um nível crescentemente civilizacional, mais tarde colo- da Vida. O mesmo Arché que permite a purificação, se bem que o seu conforto
cado sob a alçada da responsabilidade de um ser exterior divino, pela simples pode alimentar a manutenção indefinida no Inferno. A evolução é requerida nas
razão de que é mais forte/seguro o que é instituído a partir de "fora"/"cima"...)? perspectivas Psicanalítica e Espiritual, mas se a Psicanálise freudiana advoga a
Não será, então, a Moral civilizacional e Divina o resultado da Colectividade de necessidade de "libertação" (com esta a ser essencialmente "material" e, por-
homens cujos córtex pré-frontais requereram a generalização do que subjaz ao tanto, parcialmente ilusória) por meio da diferenciação egóica e personalística,
comportamento de preservação "vital"? uma certa Espiritualidade - como a relativa ao Sanathana Dharma, incluindo o
É um dado adquirido que o Córtex pré-frontal está envolvido nos processos Buda-Dharma - requer um passo final no sentido de uma libertação "maior",
avaliativo-antecipatórios do comportamento, ajudando a "projectar psicologica- para fora do corpo (se bem que mesmo esta pode ter algo de ilusório...), com
mente" as consequências da acção, o que nos leva a pensar que é também nele vista à indiferenciação. Os dois produzem o "eterno presente" e a Ética: a pers-
que reside o que entendemos como "liberdade responsável", que é nele que pectiva psicanalítica advoga que a descoberta do "Eu" leva à supressão da an-
reside uma importante causa das neuroses, com estas a estarem muitas vezes gústia de castração e, como tal, à derrogação dos impulsos destruidores; a pers-
associadas à capacidade sobrepujada de antecipar a morte ou a destruição. pectiva do Dharma advoga que a verdadeira Ética implica a morte do Ego, da
Também a Consciência, incluindo o Insight filosófico, requer a máxima confor- individualidade (se bem que mesmo isto é questionável).
mação da actividade destas áreas "mais evoluídas na escala evolutiva" com as Rapidamente, não consigo resistir a uma analogia cognitivista. Imagino já que
áreas somato-sensoriais (que possuem, geralmente, dominância no hemisfério o trabalho psicanalítico, muito associado ao tratamento da neurose, seria um
direito do cérebro, aquele que tende a estar muito associado ao "masculino" - pouco como divorciar o cérebro emocional do cérebro "pré-frontal", reduzindo
como o "masculino" da Espiritualidade - e à Gestalt - fundamental para o Insight, o peso do segundo, enquanto que um trabalho essencialmente meditativo rei-
o Eureka da descoberta filosófica, com a Filosofia a ser também uma actividade ficaria o mesmo tipo de divórcio, mas daria uma maior ponderação ao córtex
fundamentalmente masculina, e comigo a achar que tal não pode ser explicado pré-frontal (acredito que existe aqui uma evolução lógica de um possível "tra-
unicamente por um punhado de circunstâncias histórico-sociais...) e as áreas tamento do Espírito", mas isso foi um assunto que já tratei nos meus livros «O
emocionais da base do cérebro. Será o Espírito, a Totalidade Ética, o lado mís- Corpo e o Nada» e «As Metamorfoses do Espírito»...). O próprio Yoga começa
tico do Superego ou do córtex pré-frontal? É lá que reside Deus? Não é lá que por ser mais "corpóreo" e acaba por ser mais "meditativo", um pouco como se
residem os nossos Deuses/Pais?... a "Voz do Silêncio" requeresse primeiro a gestão das oscilações da dualidade
Sabidamente, a Psicanálise freudiana atribuía uma importância superior ao carnal do mundo infernal.
Inconsciente (Id), ao Corpo, à necessidade de regresso às Origens, do que ao O processo escalar evolutivo é, assim, um pouco como a evolução do próprio
Superego e à Moral castradora, que chegava mesmo a demonizar. O arquétipo cérebro (no sentido tanto filo como ontogenético), feita de "baixo para cima",
religioso operava como entidade "perigosa" para a liberdade e o "parricídio" do Id para o Superego, do Sistema límbico para o Córtex pré-frontal, do Quater-
(Dostoiévski) ou a "morte de Deus" (Nietzsche) afiguravam-se como necessários nário inferior para a Tríade Superior, do cérebro do Eu para o cérebro do Todo,
à construção do Arché pessoal. Também a Espiritualidade possui este tipo de da Psicologia para a Psicologia Social e desta para a Sociologia, e da Sociologia
construção, mas impõe mais restrições ao poder do "Arché pessoal", coisa que para a Macro-Sociologia, do deus-homem para o Deus-Homem, do demiurgo
uma certa Psicanálise iniciática não soube prever, acabando mesmo por enco- individual (analítico) para o demiurgo colectivo (moral), do demiurgo para Deus,
rajar o excessivo despimento do sentimento de culpa, sem o qual a "destruição" da Obra ao negro para a Obra ao branco e desta para a Obra ao Vermelho.
e a "imoralidade" ousam tornar-se a "regra". Na perspectiva da "Queda", imagem cunhada pela religiosidade primeva, só
Aquilo que põe em comum o terreno genérico da Espiritualidade profunda e temos mesmo é de inverter o sentido desta ordem, coisa que não reside na

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lógica interna de um materialista. Tal como um espiritualista não gosta de ver o O 'Masculino' é dominante na Espiritualidade e também na Psicanálise. Se a
Bem Espiritual transformado no Superego, e numa certa perspectiva nem o é, grande obra Espiritual evoca a sublimação do Espírito no "masculino" e da ma-
pois o Divino, de algum modo, não é moral ou imoral (mas o Superego pode ser téria no "feminino" tal deve-se também ao facto de ter sido o sexo masculino
o Demiurgo, a Lei do Universo a que pertencemos)... aquele que se problematizou mais ao ponto de sublimar a sua "inferioridade"
Estas analogias são aqui apresentadas de modo propositadamente simplista. para as grandes Estruturas do Espírito. Se o "masculino" é dominante na Psica-
O que se propõe não é, obviamente, novo, mas não podemos deixar de nos es- nálise é porque o rapaz tem um trajecto mais longo para percorrer na identi-
pantar com o terreno de alguma incomunicabilidade entre a lógica materialista ficação própria relativamente ao seu casulo "uterino"; a rapariga corre menos
e a lógica espiritualista. Talvez alguma Psicanálise constitua a excepção a esta riscos visto que, mesmo que não consiga desprender-se completamente da li-
regra, pois que ela sempre tentou fazer a ligação do Colectivo ao Individual, gação à Mater, ainda assim esta é do seu género. O "masculino" é, assim, mais
e esse esforço não se esgota obviamente com Jung. Nas últimas décadas do problemático que o "feminino"; o homem é, de facto, o sexo fraco, e é isso que
séc. XX houve até um esforço suplementar de redenção da Psicanálise relativa- faz com que os grandes filósofos sejam dominantemente do género masculino.
mente à Ética dos tempos modernos, com a sua aproximação aos modelos de
comportamento ético-moral numa lógica já bastante mais distante das cons- 
truções freudianas (que estariam obviamente adaptadas a um tempo em que a
castração religiosa era bastante mais visível e socialmente relevante). O esforço Aprecias as grandes Igrejas, os grandes monumentos, enches-te de prazer
de conciliar a Psicanálise com as diversas construções Espirituais é maior do na sua contemplação. Prefere-los aos elementos voláteis da modernidade. Na
que nunca e, a meu ver, tem todo o mérito. Também terá todo o mérito o es- verdade, procuras em tal contemplação as tuas próprias Estruturas, visas reti-
forço conciliatório da Espiritualidade com as neurociências ou, termo preferível, rar das Catedrais a Cátedra da tua própria Identidade. De facto, é preciso ser-se
a Ciência Cognitiva, algo que já se realiza há umas poucas décadas. O que não muito seguro de si mesmo para poder vogar numa cultura "nouvelle vague". A
é muito meritório é recalcitrar na incomunicabilidade hermética entre as dife- falta de segurança própria alimenta, muitas vezes, a nostalgia do antigo Dogma,
rentes fontes de Saber, um pouco como se a guerra de paradigmas justificasse do tempo do Cânone; por outro lado, o excessivo desprendimento das Estru-
o dogma que os alimenta. O moderno "religare", a lógica "simbólica" de aproxi- turas no mundo moderno (associado à velocidade vertiginosa da mudança, im-
mação e fusão disciplinar, deve representar o derradeiro esforço de compreen- permanência, relativismo multiperspectivista) leva à multiplicação da sensação
são da Realidade, a mesma que já sabemos ser "diabolicamente" procrastinada de insegurança. Uma certa Psicanálise freudiana propende a libertação das Es-
à custa da suposta "incomensurabilidade de paradigmas" (Kuhn). De resto, o truturas, mas também uma certa Psicanálise propende a existência de um míni-
"religare", a aproximação entre o que sofreu a diáspora da temporalidade en- mo de "Leis", sem as quais o ser poderá sentir-se perdido, assim como também
trópica e relativizadora é aquilo que todos desejamos: o regresso mítico ao "in se defende um mínimo de Civitas/Superego, na ausência do qual o ser se tor-
illo tempore", o Paraíso da Luz de entendimento. Tentemos, tentemos sempre naria associal, um pequeno ditador (também um pouco à semelhança do que
e sem desistir o regresso a Babel. Resistamos ao castigo da Queda, à tentação actualmente se verifica na Sociedade...). Parece-me que o caminho do meio, da
de gorar o caminho do conhecimento da árvore do "bem" e do "mal". Malditos virtude do meio-termo, é a via mais sábia: suficiente liberdade (Id) para que o
sejam os homens que preferem a destruição da Torre! E malditos sejam ainda ser possa vogar à sua (?) vontade, suficientes Estruturas que permitam ao ser
mais os que vêem a concordância e o encontro onde não reside qualquer Luz, manter a noção fantasmática do ancoradouro (Arché) e também a noção dos
os que resistem à espada desconfortável mas necessária ao Caminho, os que limites éticos. A boa "educação" passa pela arte de potenciar o equilíbrio entre
persistem em ver o Absoluto no Impermanente, e os que calam a solitária crian- os extremos, e visar a Autonomia da criança/paciente é sobretudo dar-lhe este
ça que corajosamente diz "O Rei vai nu". equilíbrio entre as Estruturas e a Liberdade, mas sempre tendo-a (ou tendo-o)
 como um fim em si.

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 racionais das mitologias, em particular certos "comportamentos paradigmáti-


cos" do que podemos encontrar em Homero ou Hesíodo, é bem certo que o
O Arché é, então, a base do conforto e também da criação. A assunção do lado "lunar" da espiritualidade também integra as estruturas arquetípicas, se
homem enquanto seu próprio demiurgo implica, como já vimos, o retorno ao bem que uma boa parte do Esoterismo conceba esses aspectos como o lado
Arché Pater, ponto de partida para a reificação definitiva do Arché egóico. Este luciferino correspondente de algum modo à "obra ao negro" da actividade evo-
Arché próprio não é, como também já pudemos constatar, comparável a um es- lutiva de Sophia.
tado de verdadeira Liberdade criadora, mas, ainda assim, dá ao sujeito o poder Obviamente a concepção de um Divino Absoluto não é muito compatível com
de criação, o Livre-arbítrio do Super-Homem nietzschiano. Se este novo ser rei- a noção dos "deuses humanos" e com atributos da mitologia grega, e é por isso
fica o seu próprio Arché, isso significa que ele é capaz de criar os seus próprios que nela encontramos o modelo flagrante do paralelismo entre o Macrocosmos
Valores, a sua própria Moral, a sua própria Lei, o seu próprio sistema de um de deuses e o microcosmos humano (ou seja, entre o Inconsciente colectivo e
"Nomos" (e também de um "Nosos", o anormal). Isto é, como sabemos, o ponto o inconsciente individual). A desmitização destas estruturas arquetípicas, assim
de partida para a perspectiva de um relativismo, que, se é perigoso, é porque como o empolamento dos seus aspectos familiarmente Racionais, têm o cunho
existem outros homens, eventualmente Super-Homens, também com os seus da subjectividade de filósofos (disfarçada de Racionalismo) e religiões moralis-
próprios Valores, as suas próprias referências. Daí que o evitar do conflito e da tas que pretendem ver somente o Absoluto em tudo o que é Sagrado. Mas o
destruição só possa ser obtido por dois grandes meios: a manutenção e cele- Sagrado transcende o Divino, assim como o homem é dimensionalmente mais
bração do retorno ao Arché Primário, genealógico, a rememoração das referên- inclusivo que o Super-Homem. A obsessão pela Racionalidade é a incapacidade
cias comuns do Universo do Todo, ou então, a criação de soluções contratuais, de o h/Homem lidar com a fenomenologia/dialéctica da subjectividade. A sub-
comportamentos "adaptados" que permitam a salvação do Eu no seio do Todo jectividade é criadora, inventiva, transcende o Arché básico e isso pode causar
e da liberdade do Outro face à liberdade do Eu. Estas soluções não são neces- muita ansiedade. E a obtenção do Arché próprio envolve a labuta do peregrino,
sariamente conscientes, como as que vemos nascer na época das Luzes ou no as dores de crescimento, o que acarreta quase sempre um certo grau de des-
formato de Teorias políticas e judiciais; incluem também os comportamentos conforto.
morais que as diferentes culturas arcaicas requereram adoptar de modo a se
permitirem sobreviver; o facto de muitas culturas com comportamentos "não 
adaptativos" à sobrevivência terem desaparecido nos confins do tempo leva
a que permaneçam tardiamente culturas com comportamentos semelhantes A procura do Arché perdido e a necessidade de fuga ao sofrimento são ob-
que o mais incauto tentará ver enquanto Universais genéticos, quando, na ver- sessões do homem que ainda não se encontrou, do homem que não se tornou
dade, são Universais culturais. ainda Super-Homem. Por outro lado, sabemos que o homem desencontrado é
aquele que muitas vezes assume certa forma de protagonismo, de liderança.
 Será razoável presumir que uma certa obsessão pela racionalidade por parte
do mito e da religião advém da obsessão racionalizadora do homem influente
Não obstante, as mitologias arcaicas mantêm a sua dominância no contexto cujo Ego »» Superego expansivo gerou o mito primevo? Terá a Religião origem
da construção de um certo tipo de "ethos" moral. Mas não nos iludamos. A na insegurança narcísica do homem que requeria criar Estruturas externas
religião não trata somente da Totalidade Ética e há muito que os aspectos noc- como modo de compensar a falta de Estruturas internas?
turnos e saturninos das mitologias puderam ser "desvelados". Se há toda uma
Filosofia preocupada com a Razão e uma boa parte da Espiritualidade preocu- 
pada com a questão da Moralidade que tentam empolar somente os aspectos

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O Jesus histórico é o resultado de uma construção supergóica. O avatar mitifi- 


ca-se pela sua insuficiência narcísica. E se o rato pariu uma montanha, tal como
um suposto e questionável Jesus histórico ajudou a parir o Cristianismo, é por- Colocassem o avatar no divã, teriam evitado inúmeros problemas! Coloquem
que uma altíssima dose de "complexo destruidor" enformou a mente de uma a ciência no divã, evitarão muitos outros. Coloquem a Civilização no divã, ela
personalidade e mais tarde de uma Instituição. A busca da Estrutura grandilo- precisa de exorcizar os seus demónios, não de Espiritualidade meditativa. Re-
quente é a busca do si-mesmo há muito perdido. A busca do Si é a busca do Ego ceitem anti-depressivos à Civilização e confortá-la-ão; mas temam o dia do des-
e a Obra somente existe porque há alguém para ser obrado. Todos os outros, mame!!
testemunhas inocentes e abandonadas à sua sorte, recebem de braços abertos
os pilares do Superego como quem deseja o chão do lar há muito desejado. 

 Ser homem plenamente é não requerer pilares, arquétipos, montanhas,


como quem despreza a floresta e o deserto alquímico. O ser seguro de si mes-
Ser Narciso é condição de ser Cristo. Ser pequeno é condição de grandeza. mo despreza a Espiritualidade, o mito, o Clássico, abraça o presente com cari-
O Uno hipermoral resulta da incapacidade de ser Uno na tentação. Temer a nho e serenidade, aceita a mudança, não teme o grupo ou mesmo a tentativa
tentação é temer a perdição ou a felicidade. Pecar é ousar ser feliz. Foi preciso de alienação, vive o engano sem grandes problemáticas. Se isto não é o eterno
uma grande dose de abandono e frustração para que o h/Homem ousasse criar presente não sei o que será. Requerer o Espírito, as Estruturas alheias que irão
as condições do seu próprio agrilhoamento. (?) ser as próprias e os divãs é a prova dada da inferioridade e o risco da sua
confirmação no eterno retorno.


Jeová, tal como Cronos, ousa temer o acesso à sua grandeza. Aquele que não
tem nome tem, na verdade, nome e encarnação; não deseja, na verdade, ter Nenhum homem seguro de si mesmo se quer conhecer.
nome ou diferenciação, pois assumir a sua diferença é assumir a liberdade des-
confortável e o risco do abandono (que abandono nunca seria se o homem 
existisse no lugar do não homem). E até o Absoluto tem nome e encarnação;
não conseguiu, no entanto, a diferenciação suficiente para renunciar à constru- O sentimento de culpa é a essência da moralidade. É preciso uma grande
ção da montanha. dose de recalcamento para que o homem anseie espiritualizar-se. Faria melhor
em aceitar-se, encontrar o seu Ego, para não querer transcender-se. Ame-se a
 si mesmo e amará o outro. Temer a força das emoções e a satisfação egóica
do amor é temer a punição de um fantasma incestuoso, a culpa que uma Ma-
Os Deuses e a religião não seriam possíveis sem a psiconeurose. Os confes- ter castradora foi capaz de entrosar num denso aparelho de auto-repressão.
sionários podem não ter o conforto do Divã, mas serviram bem na sua fun- A urgência da Libertação é a urgência da supressão da dor supergóica, o alívio
ção redentora. O padre receita rezas, o psicanalista torna-as inúteis. O padre do sentimento repressivo de culpa. O alívio do Sofrimento é o fenecimento do
conforta e o psicanalista também... O esoterismo está para a religião exotérica sentimento que força a moralidade. O dharma não é, então, o caminho para a
como a Psicanálise libertadora está para uma certa Psicanálise castradora. O libertação. O divã e os psicofármacos marcam aí mais pontos. Aceite-se o Ego,
perigo da Transferência existe em todos eles... o absoluto da individualidade, a perfeição da singularidade, a grandeza da di-

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Luís Coelho A Clínica do Sagrado

ferencialidade, sem temer ou lamentar o facto de tudo ser determinação, con- incomensurável de relações dialécticas entre possíveis variáveis (as mesmas
dicionamento, subjectividade, injecção hormonal. É certo que somos determi- condições originárias poderão gerar múltiplas possibilidades comportamentais,
nação relativa, mas, não o sendo, não seríamos o que somos, não poderíamos atendo o conjunto quase infinito de variantes culturais assomado ao poder es-
sequer lamentar ser o que somos, não poderíamos sequer ter a força, o motor magador do "efeito borboleta") dificilmente "controláveis"/"determináveis" por
da mudança no seio do que não chega sequer a mudar, senão na ilusão de que qualquer ser, instrumento ou Super-Homem [quiçá, alguma forma de inteligên-
o devir depende de nós, da nossa vontade, do nosso ser. Não aceitar o nosso cia artificial venha a assumir esse estatuto, dada a Hiper-consciência que advi-
Ego é ceder à vontade do fantasma do passado, ao sentimento repressivo que ria dessa capacidade de controlo multi-factorial - sempre problematizável pela
ele estende ao nosso próprio controlo. Aceitar o Ego, conviver com o facto de força infinitesimal do tomismo de variáveis e definições - que, perante tama-
sermos condicionados, não desejar-mos deixar de o ser, não temer não saber- nha complexidade (eventualmente reprodutível pela força numérica de chips
mos ou controlar tudo, tolerar a incerteza e o relativismo, aceitar que tudo é e circuitos, não biológicos... mas o que é ser biológico senão mera estrutura
impermanente, não resistir à mudança e saber que ela é a regra e que o Eterno, redutível às partículas mais básicas?... redução que aproxima o biológico do
as Estruturas, o Uno não passam de ilusões, não temer a mortalidade e a pró- não biológico), teria um nível de consciência basilarmente humana, senão me-
pria destruição, não temer ser ultrapassado, gozado, vilipendiado, inferiorizado, ta-humana (isto, na base de uma preocupação meramente semiológica). O que
rejeitado, ofendido (como quem nem tal poderia vivê-lo...), tudo isto implica é ser humano senão ser duplamente condicionado e consciente? (passe-se a
muita força, uma segurança interna, que, não existindo, requer segurança in- necessidade de uma "definição contratual") Seria esta forma de "inteligência ar-
terna para passar a existir. E a própria resistência (defesa) de quem lê isto e tificial" humana ou meta-humana?... homem ou Super-Homem? - Não esquecer
teme aceitá-lo é a prova suprema de que aqui jaz alguma verdade: a verdade que ser hiper-consciente não significa ser necessariamente mais livre, a não ser
de quem isto lê e nisto se reconhece, e, por reconhecê-lo, ser maior a zanga, a talvez "mais livre que outrem", mais livre que os alienados, mais livre no plano
fúria para que tal não suceda. ilusório... e, já agora, o divã dá, então, a liberdade ou a sensação de liberdade e
(E já este texto trai o autor do aforismo, porque o seu esforço, o seu perfec- controlo? Ser livre é o verdadeiro objectivo? Não procuramos aquilo que noutro
cionismo, tudo evidencia que o seu próprio Superego o impele, a sua própria plano revela ser somente a sensação subjectiva de liberdade? Esta sensação
necessidade de Compreensão o vitima, a sua própria frustração o movimenta, acarreta mais liberdade nominal do que aquela que os supostos "alienados"/"-
o seu próprio contexto fala por e através dele... o contexto que sabe ser deter- condicionados" possuem?... Deveria o divã buscar somente a Felicidade, mes-
minante, mas que, às tantas, deixa de reconhecer como tal). mo que esta requeresse mais "adaptação" e eventualmente menos liberdade?
Mas a adaptação não requer a sensação de liberdade, de modo a que o sujeito
 seja menos defensivo?...]. [Nota: a tentativa de um simples homem controlar
um número máximo de variáveis poderá ter o efeito secundário de frustrar a
O complexo de castração determina tanto na tentativa do ser de correspon- acção, um pouco como o obsessivo que se perde nas ruminações, o que, de
der à culpa recriada pelos fantasmas internos (arquetípicos) como na tentati- algum modo, significa que a complexidade é útil até ao ponto em que ela es-
va de controverter a esses fantasmas, numa alusão à luta contra a culpa, na barra com a loucura, que, no poeta, no ser livre, é assumida com as plumas de
perspectiva de uma potencial saudável emancipação arquetípica. Entre estes uma angústia sem angústia. Há, então, que escolher: ser homem ou ser poeta?
dois pólos (que não o são, porque há um punhado inumerável de possibilida- ser homem ou ser Demiurgo/Deus? ser humilde ou tentar ser Super-Homem?
des mais "polares" do que estas), podemos conceber a possibilidade de uma assumir a limitação e não sofrer com a culpa de não sermos mais que ela ou
infinidade de comportamentos ou atitudes possíveis por parte do Sujeito que assomar-mos a loucura castradora com o risco de implodirmos? (por enquanto,
responde a esse complexo fantasmático, sendo que o "relativismo" inerente a mesmo havendo a capacidade para mais, ficar-me-ei simplesmente por um ad
esta "infinidade" é sobretudo a "força de expressão" que advém do conjunto infinitum, menos por medo de implosão do que por economia de espaço, o que,

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mais a mais, explica o tamanho "controlado" dos meus múltiplos aforismos...)]. 


É a fraca capacidade preditiva da Psicanálise que ousa acusá-la muitas vezes
de ser "pseudo-científica", mas é por isso mesmo que o método hermenêutico/ O mal e o bem não passam de abstracções. O mal é o "bem" do outro que luta
pós-moderno desempenha nela um importante papel, o mesmo método que se pela vida, que luta defensivamente contra o que "interpreta" como um mal (é
adapta à idade Outonal da vida (3ª idade, maturidade), que é aquela que assu- daqui que vem o preconceito...).
me a plena complexidade e o multi-perspectivismo de vozes e linguagens (e até Dai ao homem um placebo arquetípico - um medicamento, um cigarro, o jogo,
a possibilidade de entrosar as vozes e linguagens num só constructo sintético, a paixão, a filosofia ou a religião - e reduzirás a sua ansiedade: o seu "bem(es-
síncrono, pós-moderno... Livre!!! Ora, ser livre é estar menos preocupado com tar)" é maior, o "mal" é menor, o bem exercitado na "comunhão" aumenta, as
previsões e controlo de variáveis - deixemos isto para a escala das ciências natu- tentações destrutivas diminuem. A solidão é destrutiva, a desadaptação gera
rais - do que com interpretações e vivências espontâneas, sem preocupação por mecanismos compensatórios que quase sempre se exprimem por uma hiper-
um qualquer tipo de engenharia de controlo... vide a tentação teomaníaca do moral racionalizadora, castradora. Dai o amor pleno ao profeta e ele desvane-
terapeuta em interferir, muitas vezes de forma abstrusa, com a conduta do pa- cerá no seu messianismo. Dai a compensação narcísica ao ser e ele passará a
ciente, com o equilíbrio do ser, que, de qualquer modo, ao procurar-nos, pede, amar a Humanidade nos seus erros, a aceitar a sua imperfeição (mesmo o que
de certa maneira, para que exista um certo nível de "interferência contextual", a interpreta como "mal" passará a ser respondido com tolerância...). Dai ao ser
mesma que ousamos ser "benéfica" para o paciente, a mesma que, sendo pela a felicidade e o mundo parecer-lhe-á todo ele mais belo, todo ele mais feliz.
Saúde do Singular, e atendo o Equilíbrio sinérgico e homeostático da Natureza E o "mal" passará a ser uma mera brincadeira de crianças, uma marotice de
Global, poderá significar a patologia de um "outro"... o que, mais a mais, poderia garotagem, uma provocação da adolescência, um rito assaz transportador do
ou deveria aumentar as preocupações ético-morais do terapeuta nos termos da exercício do prazer erótico.
"Humanidade", o que, ainda assim, não deixa de ser o desiderato de um senti- Tira as defesas ao ser e ele entregar-se-á mais facilmente ao outro. A religião,
mento de culpa, do mesmo "complexo de castração" que todos temos a algum a filosofia permitem a fuga do ser à relação, a perpetuação da visão de que o
nível, e que terá iniciado este mesmo "fragmento"). mal é uma condição absoluta, quando pode ser somente o "mal subjectivo" do
que não consegue dar-se, entregar-se. No dia em que o ser frustrado for amado
 o "mal" parecerá desvanecer-se (nem que seja por breves momentos). No dia
em que o ser não frustrado for, por qualquer razão, traído ou odiado, o mundo
Quando a mãe se recusa a largar o seu filho, quando o pai objecta à sua na- começará a parecer-lhe mais odioso, maléfico, até os dias parecerão mais "bor-
tural evolução, de quem é a angústia de separação? Do Pater/Mater castrador rados" na sua luz.
ou do filho que propende o conforto paradisíaco? Quando a mesma tendência Portanto, é a subjectividade que condiciona a escolha de paradigmas, de filo-
afecta a relação deste filho com o seu próprio filho, de quem é a angústia de sofias, que, ainda assim, não perdem necessariamente a sua objectividade in-
castração senão do franco poder de determinação transgeracional?... Será isto terna e conteudística. A escolha de hoje parecerá a traição de amanhã, porque o
o normal processo de evolução, o mesmo que alimenta milénios de Obras, de ser muda, não profundamente, mas nas suas percepções face ao que pensa ser,
arte, da ciência, do Espírito?... Ai Ego, como dominas tudo!!!... face ao que pensa ter alcançado, sendo que o que alcança "ser" parecer-lhe-á
sempre um dado adquirido, o alcance final daquilo que "sempre terá sido tão
 óbvio", daquilo que, de repente, "é o que sempre foi", mesmo que não o tenha
visto. Assim sendo, o ser não é senão o que subjaz a as estas mudanças, o Nada
Não existem verdades universais, exceptuando a verdade de que não exis- que reflecte estas personnas. No parecer clínico, parecerá falta de personalida-
tem verdades universais (ad infinitum). de, o que, mais a mais, é somente a avaliação de uma outra sombra que possui

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a sua (?) avaliação proveniente de um paradigma, um entre muitos possíveis. Se bem que um certo esforço Racional pretenda desmitizar a compreensão
Para outros, poderia tal mudança ser o reflexo do contexto, e mesmo esta visão da Realidade, ainda assim, o fundamento arquetípico mantém-se vivo nas cons-
é apenas mais uma entre tantas possíveis. Inúmeras visões, no seio das quais truções Espirituais, incluindo o Esoterismo, mais lançadas para a perspectiva de
aquela que parece mais "verdadeira" é somente a que obedece às referências uma Racionalidade noética. O mito é expressivo da subjectividade demiúrgica,
da "normalidade" do contexto em causa (aquilo que entendemos como "bom- mas é também a expressão do Inamovível, do eterno, do Valor racional. O tem-
senso" resulta do mesmo processo referencial). Ser o contexto é parecer mais po Judaico-Cristão pretende desvitalizar o arquetípico, e acaba mesmo por ser
são, travestir-nos de visões é parecer mais louco, ser coisa precisa dá mais se- assimilado ou por assimilar uma certa tendência científica, mais tarde dessacra-
gurança - ao Eu e aos Outros -, ser de tudo um pouco dá, aparentemente, mais lizadora (no entanto, o mito também se mantém camuflado no tempo Histórico,
insegurança. Veste-te, traveste-te, despe-te, faz o que te manda a ilusão, mas, por meio de símbolos, ritos e liturgias). Mas a Espiritualidade profunda e eso-
por mais que te esforces, nunca serás mais do que ilusão, mesmo quando pare- térica, incluindo a ocidental e cristã, mantém, de algum modo, a ligação à pers-
ces absolutamente trans-vestido ou, ilusão maior, permanentemente despido. pectiva mítica, que pretenderá sempre valorizar como o assomo do Intemporal
do Arché. Aqui já não nos referimos necessariamente ao mito mais "antropo-
 mórfico", se bem que mesmo este acaba por ser transformado pelo esforço de
"interpretação alegórica". O Esoterismo valoriza o mito, e até aceita a sua carga
A Doxa precede a Epistémi. "A existência precede a essência." A subjectivida- "subjectiva", mas aproxima-o do seu modelo de visão Racional do mundo. O
de precede a objectividade. O conflito interno, a necessidade de libertação face Esoterismo funde o arquetípico com o Racional, igualizando-os no demiúrgico,
ao fantasma castrador e a defesa do Ego face às ameaças de destruição interna na importância do Sagrado do Intemporal e do Eterno, e chega mesmo a man-
(sempre partindo do modelo psicanalítico de "complexo de Édipo" sem o qual ter vivo o esforço de literalização das construções cósmicas e "meta-cósmicas",
nada disto faz qualquer sentido) explicam a escolha do paradigma e a intole- com a Teosofia moderna a constituir o exemplo paradigmático de "reactualiza-
rância face ao paradigma concorrente. As conhecidas tendências marxistas do ção" da Totalidade arque-racional. Lembremos que, de todos os Esoterismos, a
jovem libertarista são, muitas vezes, o reflexo da necessidade de libertação face Teosofia moderna é provavelmente aquele que mais mantém vivo a cultura pe-
aos Deuses/Pais da 1ª idade do seu desenvolvimento, mas, ainda assim, não rene, o paganismo, grandemente pelo esforço de conciliar Filosofia, Religião, Es-
deixam de se consubstanciar como mais uma prisão arquetípica, um referencial piritualidade e Ciência na Totalidade "arquetípica" que nunca devia ter deixado
de securização. Somente o despimento dos conflitos e das defesas permitirá o de Ser (aliás, eideticamente falando, nunca deixou de Ser). O esforço teosófico
despimento dos referenciais a o surgimento da tolerância. A Tolerância não é, e de outros esoterismos reacorda, ressuscita, a realidade mítica, pretendendo
assim, algo que possa surgir de fora para dentro, mas somente com a mudança mesmo devolver-lhe a sua realidade literal. A Nova Era seria, assim, como o re-
interna (a própria abertura mental face a ideias "novas" somente pode existir gresso arquetípico literal ao "mito", um pouco como se o Homem necessitasse
se o Ego não tiver necessidade de se agarrar obsessivamente a um Paradigma (e bem que precisa!) e requeresse a nova lentificação temporal.
securizante). A Pós-modernidade multiperspectivista é, então, a maturidade do
Ser firmado que não "sofre" com a possibilidade de comensurabilidade de pa- 
radigmas ou de compatibilismo de referências opostas. O crescimento desfaz o
fundamentalismo, a maturação quebra o fanatismo, traz a paz interior de quem Todas as manifestações de "Espiritualidade" têm em comum o desígnio da
coexiste com todas as Verdades (agora tornadas mais próximas, semelhante- superação do Corpo. A grande diferença entre as manifestações do Ocidente
mente aceitáveis). relativamente às do Oriente está na importância atribuída à matéria enquanto
contraparte necessária à Evolução. O Oriente ousa um maior panteísmo, uma
 visão mais holística, monista, do Corpo-Espírito. O Ocidente teísta demoniza

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mais a entidade corpórea e até certas expressões esotéricas como o Herme- ça face ao Ocidente está na forma como perspectivam o corpo e o tratam (ou
tismo ou a Cabala possuem a sua tendência dualista, se bem que não atingem tratavam, até há algumas décadas), evitando a sua demonização e nele pers-
o grau de demonização do Corpo que se obteve com a entrada na História/ pectivando o aspecto "manifesto" da Essência Total. Vejam-se os exemplos do
Cultura reificada pela lógica Platónica-Cristã. A Filosofia ocidental demarca-se Buda Dharma ou do Taoísmo. O corpo é um templo que deve ser respeitado,
do mito precisamente no momento em que hegemoniza o lugar da Razão face a é o palco da evolução, sem a qual, na perspectiva do Sanathana Dharma, não
um Corpo com o poder de agrilhoar o ser na caverna da ilusão. Sucessivamente, é possível obter o saldo kármico. Obviamente, numa perspectiva de uma re-
o Judaico-Cristianismo, a Patrística e a Escolástica vão mergulhando o Homem ligiosidade de temporalidade linear, ou seja, não genericamente reificante da
numa lógica de temporalidade "linear" entrópica que reifica/antecipa o tempo "reencarnação", o corpo passa a ser visto facilmente como matéria a desprezar,
profano. O Cartesianismo agrava o dualismo em causa por meio da separação a ser o palco da renúncia. [devo acrescer que o tratamento do tema se apre-
do Corpo relativamente à Mente, e somente a partir do panteísmo de Spinoza senta como propositadamente simplista, pois, na verdade, cada filosofia, cada
voltamos a assistir a uma reunificação do corpo-mente que, de qualquer modo, momento preciso de um filósofo, pode ser avaliado e reavaliado, categorizado
não viria a ser apercebida pela maioria dos próprios filósofos. Leibniz estende e re-categorizado, sem limite, até que acabemos por compreender que é inútil
de algum modo o panteísmo de um certo Racionalismo no formato de uma vi- qualquer tentativa de categorização e que vale mais (tentar) entender a profun-
são do Equilíbrio do Todo, em que os males da matéria são vistos como a parte didade de uma só frase, de um só momento, de um só vislumbre filosófico-es-
requerida ao Bem de um Divino justificativo dos sofrimentos. Spinoza e Leibniz piritual].
realizam uma certa forma de panteísmo aproximável da visão Oriental, mas o A minha defesa do regresso das medicinas ocidentais ao contexto de um
racionalismo científico das Luzes viria contribuir para a derradeira separação Paraíso entretanto perdido parece quase frustre se constatarmos o conjunto
entre Filosofia e Ciência, com a segunda a vituperar a entrada extremada no existente de medicinas ditas não convencionais, que conseguiram manter al-
tempo profano da modernidade. Uma parte da Filosofia mantém o seu cunho guns resquícios de uma Sabedoria milenar, incluindo não só a visão de um Uno
dualista. A Filosofia Idealista, cunhada com a (pós)modernidade, aproxima-se Corpo-Mente como a visão de um Uno Corpo-Espírito. As medicinas e terapias
do Espírito, e, nesse sentido, também se avizinha de uma visão monadística. ocidentais já ultrapassaram parcialmente o cartesianismo (umas mais do que
Por outro lado, as tendências relativistas e materialistas de outra Filosofia le- outras), mas, com as devidas excepções, ainda não entraram verdadeiramente
vam à sua aproximação ao monismo fisicalista, antecipando, de algum modo, a no domínio do Espírito, sobretudo porque este ainda é muitas vezes entendido
preocupação obsessiva com o corpo e a subjectividade, que atinge o seu zénite como sinónimo de "mente". Por outro lado, desenganem-se os que pensam
no século XX. Um certo esoterismo ocidental possui uma visão panteísta com- que toda essa indústria de métodos pseudo-místicos reitera a desejada entrada
parável com as visões racionalistas de Spinoza mas é provável que somente a da medicina oriental no contexto ocidental, pois mais se perspectiva a ilusão
teosofia moderna tenha chegado a um certo tipo "superior" de profundidade placebetária e o feitiço mercantilista com vista ao mero "bem-estar" e à felicida-
monadística. de individual do que o assomo de um Caminho verdadeiro, de uma Libertação,
O que interessa perceber é que, se no Ocidente, a entrada no tempo profano que, mais a mais, é vista pelo materialismo ocidental como ilusória.
reifica, sobretudo nas mentes das massas, a "materialização", dessacralização
e desespiritualização do Ser, o Oriente mantém, ainda assim, uma certa resis- 
tência a essa tendência, até que a perda de tal resistência leve a que possamos
dizer que o Oriente se ocidentalizou. A Espiritualidade profunda do Oriente Toda a Terapia diferenciada é um pouco como um Arché autonomizado pela
mantém uma visão da Totalidade Corpo-Espírito bastante mais próxima do que progressão temporal face ao Arché Pater. Se a diferenciação alimenta a con-
se entende por Monismo, se bem que várias tendências dualistas e até algumas fusão babélica e relativizadora de linguagens, o destino evolutivo é o regres-
materialistas puderam surgir no Sanathana Dharma milenar. A grande diferen- so a um certo nível de Indiferencialidade primeva. Daí que, à semelhança da

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muitas vezes advogada síncrese das diferentes estruturas religioso-espirituais, Se, na mente do Espiritualismo, a emoção (Kama) ocupa o lugar mais elevado
também as diferentes expressões terapêuticas, desde as milenares prenhes de na hierarquia dos "corpos" do Quaternário Inferior (Corpo, no sentido abran-
um maior nível de holismo até às ocidentais mais corrompidas pela entropia gente), não é de todo incoerente considerar que também a Psicanálise actua,
do tempo, deveriam conspirar nos termos de uma síntese propiciadora do en- à semelhança de diversas Terapias não convencionais, no sentido Superior »»»
tendimento do que é comum, eterno, arquetípico. Caminho de Unificação que Inferior. Nesta perspectiva, a Psicanálise poderia, de algum modo, deixar de
tende a ser adiado sempre que uma "suposta novidade" ou um "novo método" ser conluiada com a visão de um certo reduccionismo que pretende traduzi-la
vem criar a ilusão de uma evolução, que, de qualquer modo, não poderia sê-lo por meio de uma linguagem neurobiológica. O Espiritualismo vê nos fenóme-
sem que a própria noção de tempo sofresse uma transformação profunda. Ob- nos neurobiológicos o "efeito" (ou a manifestação) e não a causa dos proces-
viamente, no contexto individual do próprio terapeuta, o conjunto dos métodos sos de doença. A velha batalha entre o Espiritualismo e o reduccionismo opõe
estruturados no tempo "paradisíaco" alcança um certo estatuto arquetípico, igualmente psicólogos e psicanalistas, querela muitas vezes alimentada pela
face aos quais o exercício da inventividade e da liberdade criadora do terapeuta incomunicabilidade de linguagens e paradigmas, seja porque eles são de facto
poderá vir a padecer de um certo receio. Perante a descoberta própria, o tera- incomunicáveis, seja porque não existe um entendimento contratual na relação
peuta sente muitas vezes a necessidade de procurar a semelhança da técnica já entre significantes e significados.
criada, um pouco como se requeresse a autorização do Pater. Quando o ideal Note-se que se a mensurabilidade científica (pelo menos, considerando a
seria que o acto irrepetível do terapeuta fosse somente a acção arquetípica indi- sensibilidade dos instrumentos de investigação de que dispomos actualmente)
ferenciada, sem nome ou categorização, etiqueta ou especialização, um pouco pretende ser o critério de distinção entre o corpo e a alma - o que, de algum
como se o novo fosse a reactualização inconsciente do eterno, sem que tal re- modo, significa que a obtenção de instrumentos suficientemente sensíveis ou
queresse a necessidade de firmar a origem, o nome de um criador, até porque o a utilização de diferentes metodologias pode tornar "científico" amanhã o que
criador é o próprio terapeuta, o artífice de algo que sempre foi o que É, o agente hoje consideramos como "acientífico" ou até mesmo, erradamente, "inexisten-
livre de uma Permanência que vê na nova expressão um meio heurístico de te" -, o grau de "Holismo" é aquilo que distingue o Corpo-Mente (Quaternário
manifestação. O Eterno é o Arché primevo, o Logos primário. A manifestação e Inferior) do Espírito (Tríade Superior), o que pode levar a concluir que o que
o tempo histórico do ser-aí permitem a concretização, a densificação por cami- pertence ao Espírito não é da responsabilidade do objecto da Ciência física e/ou
nho autónomo e irrepetível do que pertence ao permanente. A fenomenologia médica... conclusão que deve ser adiada atendendo à grande complexidade do
do Espírito é, assim, um modo de trazer à História o que pertence ao Arquetípi- objecto das diferentes ciências, incluindo uma Ciência Cognitiva que inclui uma
co, de modo a que o eterno se travista de uma dimensão de materialização fe- matriz de vários saberes e ciências... Onde colocar, por exemplo, a Psicologia?
noménica que, mais a mais, o acabará por levar de novo ao Eterno. A acção livre Não inclui ela também toda uma riqueza de paradigmas? Não poderá incluir
do ser, do terapeuta, é a relativização do eterno, pela livre acção - sempre se- igualmente o método hermenêutico? Será que este método prova seja o que
curizada pelo Arché que nunca perde de vista - do Permanente na mecânica do for? A Psicanálise pode ser incluída neste conjunto? É ela uma ciência? A ciência
"antes" e do "depois", um pouco como se o Eterno requeresse a separatividade, é uma Ciência? E lá nos perdemos nós na própria confusão de linguagens, em
a densificação, o ganho de consciência necessário à re-urgência do Eterno. que a realidade já não é o que É - se é que É alguma coisa - mas é aquilo que
O Relativo é, então, condição do Absoluto, a fenomenologia é condição do queiramos que seja, pois fica a verdade e a lógica dos termos dependentes
Divino, a razão dialéctica é condição da razão pura, o tempo é condição da In- de critérios, e estes critérios também dependem de outros critérios, e isto ad
temporalidade, o carnal é condição do Espiritual, o Eu inferior é condição do Eu infinitum. No fim, arriscamo-nos ao relativismo ou à loucura, ou, pelo menos, à
Superior, o corpo é condição do Nada, o Ego é condição do Espírito, condições consideração de "loucos" por parte dos outros, os "sãos", os que vêem a realida-
que nem o são, senão somente manifestações. de da forma mais simples e parcimoniosa, os tais que os complexos vêem como
 "loucos" de superficialidade.

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 determinismo materialista, é a fixação dos seres pela regularidade, pela previsi-


bilidade. O h/Homem teme o novo, o imprevisível, o acontecimento irrepetível
Uma neurose obsessiva coaduna-se com certas alterações verificáveis, por vítima do esquecimento entrópico. Buscar as Origens é buscar o Si perdido e
exemplo, na Tomografia por Emissão de Positrões. Estas alterações são a causa historicamente multiplicado, erradicar o efeito do tempo, fixar a imortalidade
da neurose e os aspectos psicanalíticos são somente a abstracção do que está do eterno presente. O h/Homem tem a obsessão da Estrutura, sem a qual não
na base ou as referidas alterações são a consequência de aspectos que se ini- pode ser e ter, não pode ser presente ou devir. Daí a busca de um Sentido para
ciam em níveis superiores? Obviamente que, no fim, pode até parecer inútil o a História e a dialéctica da Existência. O mito é como o inconsciente colectivo:
que é o início e o que é o fim, pois já nem há causa nem efeito iniciais senão um não desaparece genuinamente, mesmo no que aparenta o Profano.
ciclo vicioso, no seio do qual a intervenção é sempre meritória, independente-
mente da parte do círculo em que se actua (visto que tal "interacção" acaba por 
modificar também "viciosamente" o conjunto do ciclo).
A necessidade de mistificar as profissões é um pouco como o que acontece
 com as Terapias e a própria Psicanálise: na arte do hermetismo está o mistério
e o secretismo, capazes de criar o mito no inabalável e intransponível código
Toda a realidade é, assim, uma questão de entendimento. A comunicação secreto. O intransponível traveste-se da ilusão da eternidade, porque o segredo
só é possível porque existe a ilusão de comunicação. E esta ilusão só existe no reifica o inquebrantável. Nas Terapias, procura o terapeuta engrandecer a sua
devido respeito pelo contrato de linguagens. As linguagens permitem o pensa- "arte" (já não profissão) - aliás, engrandecer-se a si mesmo - e no paciente o
mento e a organização cognitiva, e as coisas precisam de ser organizadas em placebo arquetípico que permite ceder-lhe a sensação de conforto que uma
esquemas internos para o serem, como se nada fosse o que fosse sem que tal Estrutura própria reificaria de forma determinante.
fosse confirmado pelo assentimento da referência interna. Se diferentes cultu- Na Psicanálise, o psicoterapeuta busca tratar-se a si mesmo. Se o psicanalista
ras, linguagens e paradigmas assentam no diferendo de referências e critérios, fosse seguro de si mesmo não seria psicanalista, nem tentaria mistificar a sua
é certo que a multiplicidade de todos estes elementos se perde no Infinito da "arte".
união. Nesse Infinito, os critérios e organizações cognitivas passam por carica- A impermeabilidade hermética das artes e secretismos reifica a Elite e esta
turas "terrenas". Este Infinito é o Uno epistémico. Diferente do Uno entendido só pode sê-lo no irrepetível do incomum. O homem do Espírito tem a fobia do
como Bem no sentido ético-moral. O Espírito é muito mais do que a construção comum, pois a imersão no grupo parece amputar fantasmaticamente aquilo
hiper-moral de uma Espiritualidade vista quase como sinónimo de Ética. Um que é a diferença imortalizante. Ser popular é ousar ser esquecido. Ser comum
código moral pertence ao domínio do arquetípico, do demiurgo, mas não do é ousar ser feliz. Ser Eu diferenciado é ousar ser livre. Ser livre é poder morrer
Divino. e não temer o momento do apagamento. Libertar-se pela renúncia é já não ser
livre porque Nada se é. Quando se É não se quer a liberdade, pois o Ego sente
 em si a Estrutura que falta aos outros.

O inconsciente individual gera o inconsciente colectivo gera o inconsciente 


individual. O corpo gera a Lei gera o corpo. O eu gera o Todo gera o eu. O Ar-
quétipo é a Lei. A Lei multiplica-se e gera outras leis. O Arquétipo é a Física. A O secretismo reside somente na incompreensão do que, ainda assim, pode
busca do Paraíso perdido é a busca dos físicos de uma teoria unitária, de um estar à vista de todos. Por vezes, o grau de secretismo, a arte do oculto, é tanto
elemento fundacional da matéria. A actividade dos físicos, e a obsessão pelo maior quanto mais visível é o que se pretende ocultar. Esconde-se melhor o

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que se revela, porque na provocação do reconhecimento do velo está a confir- ção de hoje deixa de fazer sentido amanhã, que a Liberdade de hoje é o Dogma
mação da incapacidade de desvelar o que só alguns são capazes de reconhecer de amanhã, que a minha liberdade é a prisão do vizinho, que a minha felicidade
enquanto auto-tecido arquetípico. é o sofrimento do outro, que o meu bom Dogma é o mau Dogma de um outro,
O secretismo é, então, a condição espontânea da arte só por alguns domina- conduz tudo a uma lógica de Poder, Subjectividade, como se toda a presunção
da, se bem que se consigna como condição da magicidade própria da vida (o de Razão (incluindo uma boa parte da Ciência moderna) fosse somente a capa
segredo é fascinante, o proibido sidera!), do oculto que se pretende perigoso, travestida de uma Doxa dominante. No fim, resta somente o "Eu", quiçá sub-
inalcançável pelo comum dos mortais. O que, mais a mais, é o pré-requisito do mergido pelo sentimento de culpa perante a impossibilidade de ser mais do
respeito, aquele que os incapazes devem aos eleitos, o que a plebe deve ao que simples Sujeito, quiçá travestido da sensação de que tudo é inútil, tudo é
nobre, o que o comum deve ao aristocrata, o que o homem deve ao Super-Ho- vão, toda a luta é ilusória, quiçá simplesmente Livre!!
mem, o que o mortal deve ao imortal... base justificativa da importância das
Sociedades Secretas e do seu suposto elitismo... não vá a "Doutrina Secreta" 
cair nas mãos da "gentalha" perfeitamente incapaz de compreender os graus
mais subtis da Vida (ou da Noite). O que mais importa na Espiritualidade é o seu apriorismo axiomático Hiper
Não deixa, ainda assim, este grau de Secretismo de se aproximar de um certo -racional, aquilo que nela revela do que Somos, independentemente do motor
nível de Paternalismo que a Elite deverá ter para com os comuns mortais, o ou veículo que permite chegar ao Superior. A subjectividade, o caos interno,
que quase nos leva a entender a importância do Dogma e até a tentação do pode explicar o que motiva o h/Homem na procura dos "Porquês" mas isso
Poder, da Instituição e até da Ditadura. Releva, na linguagem ocidental, do Ideal não significa necessariamente que as respostas obtidas sejam mais falaciosas
Platónico, em oposição ao ideal Liberal, como quem opõe o Ideal do filósofo à só porque existe uma "vontade mediada pela frustração". Por maior que seja
Liberdade colectiva e à Liberdade individual nos termos do Liberalismo. É que o complexo de castração que oriente o ser no sentido da Verdade, a obtenção
a Verdade parece crescer em contraparte ao entendimento democrático e ao desta vale por si, senão pelo homem, pelo menos pela Essência desvelada. Ne-
utilitarismo das massas. E as maiorias só conhecem a linguagem emocionaliza- gar isso seria como desvalorizar a obra de arte só porque foi criada por um
da, abreviada pelos códigos da simplicidade descartável (se bem que a Emoção bipolar ou a obra literária "estimulada" pelo ópio. As vias são irrelevantes aos
ancora numa matriz Universal, e daí o fácil apego dos homens à sua Linguagem efeitos, desde que esteja em jogo a Verdade. Resta saber se o mesmo se afirma
Arquetípica). As mesmas maiorias que, por incapacidade de desvelo, requerem quando a Verdade não é compatível com a Ética, coisa que, de qualquer modo,
ser "protegidas" de si mesmas, por acção da Autoridade, do Arché Pater. (Tratar a Espiritualidade despreza, porque uma Verdade não ética não é vera ou, pelo
as pessoas "comuns" como crianças é, assim, como ser ditador, curiosamente menos, não é Absoluta.
respeitado e tornado popular; tratar as pessoas como adultas, apontando-lhes
os erros pelo domínio da Razão, é ser visto como ditador, muitas vezes crucifi- 
cado pela acção das massas sedentas de sangue; ser bom é ser insociável, ser
mau é ser agradável... nos termos do Espírito, claro!). «E é verdade que a Fortuna e a Natureza equilibram sempre as contas: nunca
Não obstante, toda a revolução faz sentido se se pretende fazer medrar a nos é concedido um bem que não surja um mal contrário» (Nicolau Maquiavel).
Autoridade ou a Cátedra, se entendemos estar nas mãos de incapazes, catedrá- A Perfeição é inatingível. Estamos condenados a uma evolução cíclica em que a
ticos exteriores, labregos do interior, coisa que, ainda assim, se torna perigosa, fase harmónica é seguida por uma desarmónica, em que o "mais" é compensa-
porque todo o Ego revolucionário se pretende "Catedral" de Sabedoria, o que do pelo "menos". O corpo, a Sociedade, a História, o Universo, todo este Sistema
mais pode ser ilusão endócrina. em que os elementos se gerem por equilíbrio, fluxo energético que não permite
Entender que, de algum modo, não há uma verdade definitiva e que a revolu- o ganho de uns sem a perda dos outros. A Eticidade pura, a Utopia final, tudo

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isto é sonho, só possível no sono da imanifestação temporal. De resto, todo o hoje torna-se possível amanhã. Vivemos no mundo das ilusões (claro que há ilu-
sonho de um Paraíso é pura ilusão, pois que sempre que o Sistema evolui a fa- sões e ilusões, uma escala de ilusões, e mesmo o que se "desilude" permanece
vor de uns tem de compensar em desfavor de outros, um pouco como o bem de (menos) iludido), da impermanência, da dialéctica da homeostática: os movi-
um a ser avaliado como o mal do outro. Estamos, por isso mesmo, condenados mentos aparentes reforçam a noção de um Equilíbrio, só perspectivável numa
ao desentendimento, à incomunicação, à luta constante pela vida, pela estúpida escala de "macro-História" (semelhante à Teoria da Gaia aplicada à natureza
sobrevivência, como quem quer manter a Roda da Lei, a mesma que determina ambiental terrestre). A guerra de hoje é compensada pela paz de amanhã, a qual
as lutas e os méritos que são requeridos ao Equilíbrio que garante a existência não durará eternamente, pois que a aparente estabilidade terá, mais cedo ou
da Roda. Sair da Roda é a ilusão de muitas formas de Espiritualidade e de Reli- mais tarde, que vir a ser compensada por uma lógica de crise. Apelamos, mais
gião. Mas para fazê-lo é inevitável fazer uso das regras que as mesmas leis de uma vez, à perspectiva cíclica da História (e dos Universos), aquela que promete
animalismo determinam em nós. Ser Unidade Ética requer, então, a competiti- que "nada dura para sempre" e que tudo terá o seu "eterno retorno". Pois que
vidade esmagadora, que alguns disfarçam da ilusão de comportamento moral, tudo tende para o equilíbrio e a História - e também a Não História - fará com
quando, mais a mais, neles fala a injecção hormonal. que a referência fixada pelo Demiurgo seja respeitada. Referência transtornável
pela ordem do Divino, transformável infinitamente num rol de diferentes Cos-
 mos, diferentes Verbos. Mas não duvidemos que a flexibilidade em torno desta
referência é enorme. E é por isso que, nos próximos tempos, poderemos vir a
A Fortuna determina o grande Equilíbrio entre o Bem e o mal. A Justiça é o conhecer mudanças únicas, variantes de comportamento social que as nossas
estado de homeostase prometido por esta Gaia de panpsiquismo/animismo/ próprias referências cognitivas estão longe de conceber (e que muitos apelam
vitalismo. Se não há justiça para os pequenos é porque os pequenos desequilí- como "imoral" ou mesmo "impossível de ocorrer"). A nossa própria estrutura
brios, as pequenas oscilações, são a condição do Equilíbrio Global. arquetípica apela à resistência perante a mudança, por motivos da mesma ho-
Se tudo fosse absolutamente Justo já estaríamos no Nada, na ausência de meostase (que não pretendemos ver corrompida pela permissividade face a
tempo e de atrito. É porque existem diferenças e desigualdades que existe a in- novos Valores). Mas seria mais sensato simplesmente adaptar-nos, pois que
justiça humana (as desigualdades são determinadas primitivamente); é a soma o que entendemos como Valores e também como a Lealdade aos Valores não
das injustiças humanas que faz o Equilíbrio Total, eventualmente só totalmente é o que as gerações futuras irão entender como Valores e como Lealdade aos
perfectível pela libertação pela morte. mesmos. Para eles, nós seremos os "maus da fita", os "conservadores", e eles
nem suspeitarão que também serão os "conservadores" relativamente aos seus
 filhos e netos.
Assim sendo a Pós-modernidade, não é, não obstante o que já muitas vezes
Os novos tempos prometem a extinção do Cânone, o derrube do Dogma, a afirmei no passado, necessariamente a promessa de uma Nova Era de Espiri-
urgência do multi-perspectivismo; a nova sociedade promete cruzar inúmeros tualidade, um pouco como pretendem os profetas messiânicos. O que também
modelos, inúmeras fórmulas de vida, muitas delas outrora susceptíveis de in- não significa que possa vir a Era da Desgraça, do Anticristo ultraliberal. Mais
criminação ou sugestionáveis do preconceito. A "anormalidade" ou "crime" de arriscaria dizendo que aí vem o "Admirável Mundo Novo", aquele que promete
hoje será a normalidade ou o vulgar de amanhã. A perda do Dogma lança-nos a Utopia, pelo menos vista enquanto tal, seja pelos clones de "baixa condição"
no caos, e o caos prenuncia um novo Dogma. O multi-perspectivismo autoriza seja pelos clones de "elevada condição". Isto porque a nova Medicina promete
a entrada num mundo de liberdades muitas vezes só desejáveis no mundo do curar a doença do corpo aos ricos (assaz a doença da alma) e a doença da "cons-
sonho contido no "ilhéu da Utopia". Claro que o excesso de liberdades pode vir ciência" aos pobres (frustrando-lhes a própria noção de que estão doentes ou
a ser rematado pela autorização de um novo Cânone. O que parece impossível de que possuem um Direito face à cura). A Utopia do Todo seria o fim desse

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mesmo Todo (até porque não há Bem Absoluto em terra que a entropia não A Tríade é o septenário, e é esta a constituição do Universo, septenários den-
venha transtornar, que a homeostase não venha desafiar nos termos do equi- tro de septenários, Universos dentro de Universos, com cada partícula a conter
líbrio entre o "bem" e o "mal"... salve-se a própria relatividade "subjectiva" des- todo o código demiúrgico em si mesma, senão o próprio Divino imanifesto.
tes termos...). Seja porque teriam alcançado o Nada, seja porque esse Paraíso O demiurgo é o Universo é o Cosmos é a Substância é pura Determinação
levaria à sua própria autodestruição, por mecanismo de implosão (gerada pela é extensível diferenciação e extensível relativização. O tempo prolonga a invo-
inércia, e não pela "luta", porque, na Utopia, esta já não existe). lução até ao centro e a partir do centro voltamos à evolução. A involução é a
expiração do Eterno passivo e a evolução é a inspiração do Eterno activo.
 A expiração diferencia, relativiza, externaliza, aumenta a aparência mayávi-
ca, o nível de sombra ou reflexo relativamente ao Uno, cria a distância face ao
Chegamos, enfim, à Teosofia... Inefável, aumenta a Saudade do homogéneo, reifica a incognoscibilidade e dis-
A mais pequena porção do Universo contém no infinito do seu núcleo a Infi- tancia os sentidos do que não pode ser compreendido. A Substância é a acção
nidade da Causa incausada, o Eterno Ser, Não Ser, Consciência Pura, Não Cons- do demiurgo que dá forma ao Númeno e o condena à aparência densificada do
ciência, Totalidade imanifestada, o Nada. É Pai, Mãe e Filho, ou Espírito, Alma fenómeno.
e Corpo, unidos na indiferenciação, na homogeneidade do Eterno Presente. É A inspiração condensa, internaliza, conduz o caos do relativo ao caos quân-
Parabrahaman, o Eterno, o Caos quântico, a matriz omnipresente que a tudo tico do Absoluto da Pura (não) Consciência. É a Totalidade indiferenciada, ima-
subjaz, o que é indestrutível, inefável, inalcançável pela finita e relativa mente nifesta, o Nada do Eterno Presente, Aquilo que não pode ser pensado, sentido,
humana. vivido.
O Imanifestado é Espírito Puro. O momento de um pensamento deste Espí- O Nada inicial é a criança ingénua e selvagem da pseudoliberdade e o Nada
rito é já Brahman, a Causa Primeira, o Demiurgo, a Lei primária e já relativa, o final é a criança retornada ao Absoluto activo puramente livre.
início da diferenciação. A Lei é o Universo é o 1º Logos (imanifestado). Corres- A Substância demiúrgica queda no tempo, no atrito, na materialidade do so-
ponde a Atman ao nível do microscópico. frimento. O topo da montanha é a indiferencialidade substantiva mas não é o
O 2º Logos é Buddhi e aqui os elementos masculino (espiritual) e feminino Eterno presente da plena Libertação.
(material) ainda se encontram numa extensão semi-manifestada do demiurgo. O demiurgo é relativo e diferenciado face ao Divino, pois é a (uma) Lei, mas
A manifestação e a diferenciação entre Espírito e matéria inicia-se com Mahat, é indiferenciado face aos níveis mais escatológicos e materialmente densos da
o Mental Cósmico, o nível mais elevado a que o ser humano enquanto tal pode Substância. O Divino é o repouso no eterno movimento.
ousar transcender-se (o nível superior da Alma). A ausência de respiração no eterno movimento imanifestado é o Pralaya e
A Tríade Superior é o nível Espiritual e só na Alma reside o elemento criador. este é o ponto de partida e o ponto de chegada. É o caos a partir do qual se
O demiurgo pode ser interpretado como o conjunto dos três Logoi, e o Arché origina o Cosmos e este é a temporalidade da Roda (re)encarnativa de ciclos de
(Verbo) é a Alma criadora, a Mãe virginal. separatividade.
Da contemplação à acção, do indiferenciado ao diferenciado, do imanifestado A Roda é a Determinação, o Verbo, o mesmo que condena mérito e demérito,
ao manifestado, chegamos ao Quaternário inferior, o Corpo somático que se o mesmo que determina a incognoscibilidade da Pré-História, do Caos, que é
estende de Kama ao plano físico. também o Destino da consciência de nulidade.
O homem encarnado só pode, na melhor das hipóteses, atingir o nível Mahat, É um processo inteligente? Somente na cabeça do ser humano, talvez não
o demiurgo no sentido mais diferenciado, material e atributivo. A Libertação su- tanto para quem consiga transpor esta Roda Gigantesca. Mas decerto que esse
geriria os níveis metanóicos, se não algo mais no sentido de uma imanifestação alguém é ninguém porque é Absoluto, que também é o alguém de um Absolu-
impossível ao homem do corpo físico. to maior, o relativo de um Eterno mais amplo. Infinitamente para cima e para

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baixo, e lá continuo com as imagens pequenas e as palavras relativizadoras. O sonho é o sono do Absoluto. É a noite do Ser que o dia formata na demiur-
Infinitamente para lado algum? É que o destino final é o caminho perpétuo, a gia de uma realidade que o homem confunde com Deus na eterna fantasia do
inteligência do sem fim, que é a não inteligência, a inutilidade de razões, o Caos homúnculo cerebral. A ilusão agarra o homem ao espelho lunar do Ser, evitan-
sem razão. Na Razão encontramos a desrazão. do o lunar da Inconsciência da prístina ilusão da consciência.
No cérebro máximo circula o sonho de Deus, que é engano porque o sonho
 é inconsciente e isso é abaixo do córtex, no hipocampo da noite do Ser, da
criança selvagem que ousa querer ser Deus, o desejado regresso à Luz que já é
O pequeno sublima-se no grande, deifica-se pelo véu do absoluto. A criança a escuridão da noite de Brahman, o não atributivo do Atributo máximo, a Indi-
virginal reside no caos, no estado pré-verbal, na inconsciência ou nas trevas do ferencialidade da máxima diferencialidade, o assexual da genitalidade, porque
Ser Absoluto. e/Ele é só ele e mais ninguém. Egóico sem ser egóico, porque o o sexo do pequeno Deus é o Nada do grande Deus, e porque as analogias são a
cérebro reptiliano é a carne acéfala do Absoluto Nada sem carne, o significante brincadeira consentida do poeta que tem em si neurónios dançantes no flamejo
de um significado que gerará o Verbo. A Palavra surge e é toda uma linguagem da liberdade herética, incompreensível ao pequeno, incognoscível no eterno.
que explode no Big Bang do Ser consciente. A carne do incarnado é encarnada
na verbalidade da consciência que não levará mais que um infinito para se tor- 
nar o infinito das linguagens, dos Universos, do sofrimento das existências, das
mortes e das vidas, dos recuos e dos avanços do peregrino que se diferencia na O sexo do homem é o não sexo de Deus. O sexo de Deus é o não sexo do
totalização do indiferenciado. A morte final será o retorno ao Nada perpétuo da homem. Se Deus-Pai não quer, o homem não sonha e a obra não nasce. Se o Pai
actividade, um movimento agora reencontrado na atemporalidade activa, no não consente, o Ser não se sente, e não se sentindo não se Torna e não se tor-
Eterno da ociosidade que é o destino do arco ascendente do ser que ameaçava nando não é Homem não é Deus sexuado é Deus assexuado, por imposição da
a ociosidade terrena da não evolução. defesa psíquica, não por evolução da mesma defesa que, de qualquer modo, é
O oceano das existências é assim a diferenciação da carne no oceano do eter- o resultado do mesmo Deus que quer e não quer, que sonha e que amedronta,
no presente, o cósmico a ser supra-cósmico, o caos é a ordem é o caos, tudo é que deseja e que frustra, que determina e indetermina determinando.
contínuo, tudo indivisível, mesmo no Universo da materialidade escatológica.
Cada Palavra é uma Ordem do Divino que não ordena. Cada Verbo é um Cos- 
mos que não perderá a oportunidade do combate pela consciência, porque o
demiurgo tem inveja de Deus, pretende ser Deus, a isso se destina, porque ele O Infinito reside em cada uma das partículas do Infinito. Ver partículas é, ain-
é o Verbo destinado pela matriz ociosa da Testemunha inconsciente. A música da assim, ver limites. Ver um septenário é igualmente ver limites. Se somos
originária é a totalidade de notas divididas pela continuidade da solução uni- absolutos não há limites senão os que a mente fenoménica teima em criar. Ní-
versal, é a fórmula mágica de um significado que gera o significante. A dupla veis superiores de Evolução são vistos - aliás, não vistos - como incognoscíveis,
articulação faz a linguagem no preciso momento em que a duplicidade se pensa mas a incapacidade de ver, porque a mente humana é limitada, não deve ser
para fora do Uno imanifesto. O Verbo é o significado, o Ser que está prestes a confundida com a incognoscibilidade Absoluta. Estamos longe de saber o que
ser significante, para que o mais escatológico desses tenha a consciência signi- Há e o que É, porque mesmo o que entendemos como Ideal é somente o que
ficada do significante da realidade, e já a realidade é criação do significado do alcançamos com o ideal próprio. O nosso ideal é a opacidade de um Ideal maior,
significante de células neurais onde circula o Verbo que é função das circunvo- o reflexo de um Deus enganador, que, se assim é, é porque a nossa limitada
luções cerebrais que não poderiam existir fora da significação de outras células mente assim o vê. O que pretende ser Essencial parece subjugado ao fenómeno
neuronais de outras circunvoluções. do Dasein. Até mesmo na Teosofia encontramos as limitações próprias de um

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Sistema que é sublimação da mente subjectiva. Porque a ideação do Divino no pria Determinação, a própria volição do oceano arquetípico da Eternidade que
Verbo que ordena o Logos demiúrgico parece a sublimação da ideação interna demanda a desrazão de progredir na Evolução que somente pretende fazer
na acção humana. As correspondências são explicadas pelo Esoterismo como do reflexo da caverna de carnalidade o meio termo do acesso à Ideia de uma
a reprodução infinita do Absoluto em cada partícula do finito já não finito. Mas, nulidade.
a ser assim, o reflexo fenoménico parece ser menos enganador do que consta O que é estranho é que o Divino, sendo Absoluto, tenha a necessidade de se
aos olhos do Ser Supremo (que é, na verdade, a Autoridade do autor esotérico). auto-consciencializar nos Logoi e nos níveis de encarnação. Percorrer todo um
O materialismo vê as construções esotéricas como ardis de mentes individuais, caminho só por ambição de ser Nada é um pouco estranho, e até irrita que o
personalidades que perspectivavam a sua própria mitificação; assim sendo, a Divino passe uma boa parte da eternidade finita com saudades do que já Era. Se
ideação divina seria o divino da ideação própria, e nada estaria na Essência que Deus está em repouso, também estranho que se ponha a pensar, porque isso é
não estivesse na essência própria, individual do Eu, mas não individual porque já relatividade. Como conceber a passagem do Absoluto ao Relativo? Como con-
também o Eu é composto de infinitas partículas de consciência, com cada uma ceber o desejo do Absoluto? Mesmo que o Absoluto tenha todos os desejos que
destas a ter a consciência própria do Absoluto e a ser o cruzamento do conjunto o Infinito permite, não será isso a grandiloquência de tudo querer ser e experi-
das consciências das alteridades. Este jogo de influências cheira ao Absoluto da mentar? Deus possui, assim, uma insuficiência fálica, como o seu filho, porque
quântica e mais me parece que um certo tipo de Determinação que a Teosofia não se contentam em ser algo especificamente, diferenciadamente, quando
defendeu tem de ser reactualizado na perspectiva de uma mente quântica que Nada ser é o mesmo que ser Todas as Infinitas possibilidades de todos os Logoi
pretende ser a ideação de muitas outras ideações, a acção de muitas outras possíveis (não será a manifestação um pleonasmo material da imanifestação?
acções, e que é também o resultado de todas as ideações do Universo, que não Se os Logoi são todas as possibilidades de Deus, então igualam-no na sua soma,
são plural mas sim Unidade. que é, na realidade, uma soma infinita, não contabilizável. Mas, ainda assim, é
Ser prolixo é ter mais caos quântico na nossa própria mente, já não nossa como dizer ao repouso para se movimentar de todas as formas possíveis, mas
mas de todos os outros que pretendemos mudar em prol do Eu e que só mu- esse Infinito movimento era já o repouso que existia inexistindo).
dam em prol do Eu agora Outro que será para eles vantajoso. E aqui temos a Peço, enfim, autorização ao demiurgo para chegar a Deus que o preside para
receita de uma Roda Gigantesca de influências, porque no Grande Universo de poder obter conclusões mais agradáveis ao meu Ego. Sei que o demiurgo não
Universos todas as forças conspiram entre elas para algo que mais parece a gosta do Ego, mas ele também tem lá o seu próprio Ego, e é através dele que
preservação, que, atendo a potencial ausência de Sentido - pelo menos alcan- me diz que Deus está indisponível para falar (e que nunca o viu a fazê-lo). Enfim,
çável pela minha mente limitada -, traveste-se de uma Existência que se explica visto que, de qualquer modo, Deus está em mim mesmo, e não no Céu do Cris-
por si mesma, na futilidade da inutilidade de um Plano maior, que só pode mes- tianismo, talvez tente contactá-lo no sono, que, existindo sem sonho, é o repou-
mo ser explicado pela não explicação da minha própria incognoscibilidade. Ser so Dele em mim, do mim que é Ele, do Ele que é já o Inconsciente, de Deus que
limitado é não entender os desígnios da Inteligência Maior, que quer manter-se passou a ser agora - para a tal mente limitada - o nocturno de Satã, que, ao vir à
à custa de uma evolução cíclica de cada um dos seus elementos no plano de um Luz, lá começou a dessatanizar-se, a fluir na consciência de um Ego que, a bem
quase "não plano". ver, é toda a consciência do mundo, com a metafísica a ser a mente superior, de
Uma possível querela entre o Espiritualismo e o Materialismo fica assim por uma ideação própria, digo do Eu-demiurgo, do cérebro da intenção, do corpo
resolver, porque o Sistema de referências não nos permite mais do que Isto. da acção, que é o Soma da intenção, que é corpo do Universo, um Infinito den-
Ser Aquilo é uma impossibilidade. Estaremos destinados ao repouso da inex- tro de um Finito dentro de outro finito infinitamente no Infinito. (Lá vou eu ter
plicação? Parece-me que o Eterno Presente gora a própria preocupação pelo de aumentar a dose de Clomipramina, até porque o Deus Cristão que a Cultura
Sentido, e se tudo estivesse determinado, um certo Buda-Dharma e até Scho- Ocidental sempre me conseguiu impregnar - mentira, se há algum é a mamã
penhauer teriam razão em dizer que toda a busca é fútil. Note-se que é a pró- castradora - já está a querer vociferar o castigo eterno de não chegar ao Paraí-

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so, que, de qualquer modo, é somente o Arquétipo do mito, a imaginação do O Universo é o grito de angústia do Divino, o seu impessoal desejo de ser-aí,
homem, o meu próprio fantasma deste momento irrepetível, que já não existe, de ser o prazer da Noite do tempo.
já é passado, na memória trazida ao presente, ao eterno presente que a mesma
Clomipramina ajudará a trazer à ordem do dia, aliás da noite). 

 A Noite Eterna do Divino repousado é a defesa absoluta do ser amedrontado.


No mundo, é o receio que leva o ser a defender-se do Outro, do século, pela
O Divino é o palco infinitesimal da mente. A sua intenção é a acção do demiur- imersão nas Trevas, como se o medo fosse a condição do Absoluto de Deus.
go, a criação do Universo do ser-aí, na vida, no mundo.
O Divino é o inconsciente, as trevas do (não)Eu, prestes a ser a consciência do 
mundo, do outro, do século.
Criar é trazer ao mundo uma só memória da noite eterna dos tempos.


A Ordem é o caos mundanizado, o Divino secularizado. A Ordem é o caos de
possibilidades..... determinadas mas relativas a... A linguagem divide e dissimula. O mundo é a personificação do que não tem
nome nem pode ser imaginado.


O drama é a personificação do Arquetípico, a máscara da indiferença.
A matemática é a linguagem de uma das naturezas de Deus. Ser poeta é tra-
 zer ao mundo a meta-matemática, a fórmula unitária do que não tem fórmula.

O ovo cósmico é o Universo, o Demiurgo, o Arché de um Divino intencionado. 

 A Filosofia institucional, tal como a ciência, é a condição da morte da Filosofia,


tal como a multiplicidade afasta da Unidade e o Universo dissimula o Uno.
Sempre que o Divino pensa surge a tragédia do mundo. O Divino contém em
si todos os mundos possíveis. 

 Ser são, para um psicólogo moderno, é ser "normal" segundo o critério do


Universo. Quem tenta ser Deus, meta-universal, sofre da patologia, da aliena-
O Arché é o cordão umbilical que liga o Divino ao Universo, a Totalidade indi- ção face ao mundo. Daí que, de certo modo, a psicose, a alienação, seja a con-
ferenciada à Totalidade diferenciada... que é indiferenciada face à corrosão do dição de Deus, mas que requer, no prelúdio do seu caminho, a angústia neu-
tempo. rótica. Estar no mundo eternamente é ser neurose de "eterno retorno". Evoluir
 é a garantia da esquizoafectividade necessária ao Divino. Ser Deus é ser pura

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alienação do que o humano entende como "consciência". A Consciência pura do absolutamente ilimitada, que é também a Não Consciência.
Divino é a "loucura" do humano, tal como a "renúncia" é a condição da patologia
do mundo. 
O psicólogo moderno consideraria o psicólogo oriental como louco e vice-ver-
sa. Não é só uma questão de temporalidade, é mesmo uma questão de lingua- As linguagens são a condição da incomunicação.
gens. E querer separar a "saúde" da Espiritualidade, como quem pretende dar
ordem a este discurso, é já por si manifestação da doença do Ocidente secular. 
Ser louco é, então, o objecto do filósofo. Morrer é o objectivo do Espírito.
Doenças no contexto da mente ocidental, a mesma que inventou o alfabeto e vê A língua permite comunicar a impossibilidade de se ser Amor.
as antigas línguas/linguagens como coisas antigas e ultrapassadas. A moderni-
dade é económica, no padrão e na atitude, e nisso vejo a sua doença. A mesma 
modernidade que faz o hino ao conforto, mas que, não obstante, produz mais
infelicidade e neurose do que alguma vez se viu. Obviamente!... pois a neurose O amor é a dissolução do Universo na volúpia da ilusão da união. A união é o
é a condição da própria modernidade, o eterno retorno no conforto da inani- retorno ao Amor da indiferença, da ausência de erosão.
ção, de uma que não é a noite de Deus, mas a noite do tempo medievo.


O Amor dissolve o tempo. A paixão expira-o, fá-lo explodir na diatribe do Uni-
Face ao peregrino o poeta é um louco. Ser poeta é saltar entre mundos, sa- verso.
bendo que também o salto é uma infinidade de mundos. Pertencer ao mundo
é ser o louco que afirma a loucura do poeta. 

 A paixão é o contrário do Amor, porque a sua loucura une os seres pertur-


bando a sua União.
Cá estou eu a tentar ser poeta e, não obstante, cumpro a pontuação, coloco
as vírgulas e respeito a sintaxe. Como é triste ser-se prisioneiro. Como o obses- 
sivo que retorna sempre à Ordem inicial. Mas é que quer-se mais. Quer-se a
desordem (não)inicial, a fonte de todas as ordens possíveis, o Infinito que existe A linguagem cifra o acesso ao Ser, interrompe a continuidade como a ponte
em mim e que a minha mente condicionada frustra nesta limitação de pôr bar- que liga e desune as duas margens de um rio.
reiras e de privar os meus olhos de Ver o subatómico.


A jangada que permite a fusão com a outra margem do rio é como o conceito:
O incognoscível de hoje é o evidente de amanhã. A dúvida de hoje é a certeza revela, confirma o velo; facilita, assegura, a incomunicabilidade.
de amanhã. As certezas do amanhã serão a folia do depois de amanhã. No fim,
resta a futilidade de todo o caminho, a ignorância da eternidade, a Consciência 

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Luís Coelho A Clínica do Sagrado

A linguagem é condição. Opõem-se ao Absoluto que só É na ausência de con- Os mesmos homens do Espírito que reiteram a União são quase sempre os
dições, na inércia da determinação. que não a conseguem viver, porque o Espírito é a compensação face ao medo
de perda do Eu na possibilidade da fusão. Daí que o homem mais genial seja
 sempre o mais pudico.

O Caos é a (não)condição da re-União, do regresso a Si mesmo. O caos é a 


condição da re-União, do regresso ao Si mesmo. O Uno caotiza-se para se as-
segurar, na individualidade, da sua condição de Uno, que, mais a mais, não é Pensar, buscar o Todo na busca do Eu, é o meio-termo do Silêncio muitas ve-
condição. zes adiado. O mutismo é a pacificação, a finalização do caminho de Sísifo, quan-
do não se trata de um Sísifo na base da montanha. E é a condição do regresso
 ao processo, que envolve a tomada de consciência do Absoluto, o aparecimento
súbito do tempo no Não tempo.
As palavras reiteram a comunicação, confirmando a sua impossibilidade. Elas
querem unir o que precisou de as inventar para que a desunião do Uno reque- 
resse a saudade do regresso a Ele.
O encontro do si arquetípico é, então, o encontro de Deus, da Humanidade.
 Trata-se de buscar a imortalidade, para que, no momento seguinte, logo se am-
bicione o regresso ao atrito.
O diálogo reitera e perpetua a incomunicação. Dialogar é não comunicar, é No mundo há a saudade da paz. Na paz há a (não)saudade da guerra. Eis o
confirmar o deus pessoal, o ascendente do não Ascendente. E, ainda assim, é Eterno Retorno, o movimento perpétuo que alimenta a Mesmidade.
tentar o retorno ao Paraíso do entendimento, ao Princípio do mundo, à Origem
de todas as coisas, quando elas não suspiravam, não ousavam sequer ser o que 
viriam a ser.
O Civilizacional é a traição da nudez dos primórdios, mas confirma-a se for
 verdadeiramente racional e evolutivo, se aproximar, logo desconfirmando-a se
o racional afirmar a eternidade da distância entre as duas margens do que,
Conhecer um número maior de relações de causa-efeito que concorrem para ainda assim, é Uno.
um fenómeno é ser inteligente. Compreender que esse jogo de relações é in-
cognoscível "absolutamente" - como quem duvida da possibilidade de se ser Su- 
per-Homem - é ser sábio (ou para isso tender). Reduzir a metamorfose contínua
e infinitesimal dos desenhos de relações factoriais a um punhado reduzido de O Ser humano completo supremo na linguagem é o Deus Supremo na não
relações consideradas "mais relevantes" - como quem esquece o "efeito Borbo- linguagem. A ponte dos homens confirma o desmoronamento da Torre de Ba-
leta" - é ser feliz. bel. E esse desmoronamento não é o resultado do ciúme de Deus, mas sim do
seu amor. O Pai que ama o seu filho frustra-o dos caminhos fáceis, como a mãe
 que bica o seu filho estimulando a saída do ninho e a urgência do voo.

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Luís Coelho A Clínica do Sagrado

No seu estado pré-verbal a criança vive no eterno presente de si-mesma, em 


que o Paraíso não tarda a transgredir-se na erosão do tempo. Com a aquisição
da linguagem, a criança perde a sua primeira virgindade, mas mantém uma A consciência implica o fenómeno, o fingimento, espelho que ousa reflectir
outra que a retém no início do Ser que não tarda a perder-se para a potência a verdade num reflexo lunar, que é somente a realidade distorcida na pura
da acção, a urgência da conquista. A conquista do mundo será a conquista de dissolução do Divino.
si-mesma, a explosão do Início no jogo do Universo embriagado. A ausência
de conquista é como a conquista da plenitude: o regresso à Origem do Verbo, 
para que o seu próprio Ser se venha a perder no tempo em que só os pais eram
os deuses, no não tempo dos primeiros anos de vida, aquele que nos lança à O verdadeiro místico reproduz o silêncio irreproduzível. O falso místico, que
memória da escuridão, à saudade do repouso, à eternidade do oceano em per- por aí vemos a fazer o exercício das terapias enquanto promessas de milagre
pétuo movimento pacificado. ou magia, produz somente a sensação do silêncio, o pecado de fazer ver a luz
humana no lugar da Luz eterna.


Mito, imperialismo, messianismo, o "falta cumprir-se Portugal"... Eis a fórmula
da esperança, do desespero da espera eternamente retornada. O Quinto Im- O trauma da separação inicial confronta-se com o medo da morte criando a
pério é o sonho grandiloquente do homem que não conseguia ser homem, é o fobia do não encontro com a Origem, o momento não assistido da criação. A
produto de um complexo que só pôde ser ilusoriamente sobrepujado através separação é somente a confirmação da descontinuidade do que se destina à
da morte redentora, da mitificação do encoberto. Todo o Império resulta da União, ao religare (religião) do que nunca chegou a separar-se.
loucura, da vontade de tornar grande o pequeno, de fixar o Eu na morte de
Édipo. A saudade portuguesa e o seu mito imperialista retardam a possibilida- 
de de se ser simplesmente, porque o sonho é convidado a substituir o corpo,
porque o futuro, o regresso contínuo ao passado, é recrutado na incapacidade O apego é somente o medo da morte, da impossibilidade de encontrar no
do presente. Diria que "falta cumprir-se o presente", aqui, agora, no passado outro o momento da União original.
revisitado e logo abandonado, no futuro desejado de ser presente, no presente
que já somos na felicidade consumada. 

 Só uma densa camada de recalcamento pode fazer encobrir a verdade fasci-


nada da mulher face ao falo primitivo. A Origem é sempre fascinante, porque
A Palavra é o pudor de Deus. Quando se vê na linguagem, já a sua omnisciên- é familiar.
cia é toda a potência do mundo.


A fobia do amor é o temor da anquilose do Ego e o Ego é a tentativa de re-
A autonomização, a interpretação de um papel ou máscara, é o meio caminho gressar ao amor.
para a sua inutilidade na comunhão. 

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Luís Coelho A Clínica do Sagrado

A angústia de separação é só a incapacidade de fusão primária. cial. O que é do ser individual parece diferenciar-se pelo meio e a cultura (que
também é meio), como a linguagem que se torna língua, mas também o meio
 é a expressão do Início na multiplicação da aparência, do simulacro dos seres,
que não são plural verdadeiramente, mas sim Singular, uma só coisa, um só
O poeta e o artista não produzem, reproduzem. São os agentes da represen- momento, preso ao fluxo e refluxo, expiração e inspiração do mesmo Todo, do
tação. mesmo Nada, do mesmo movimento de repouso eternizado.

 

Não há criação, senão na consciência. Aí o poeta finge criar. Fora dela, o poeta Toda a existência é uma in-xistência. Toda a in-xistência é uma existência. O
é só um imitador: imita-se a Si-mesmo, porque o objecto a reproduzir está no Divino existe no fenomenológico e o fenómeno é o in-xistir na mente do ser. A
Todo que nunca deixou de ser. cognição é o dentro que é o fora (fora da essência, do númeno, fora e também
dentro, porque tudo o que está fora está em manifestação "do dentro", assim
 "existir" é, de facto, "e-xistir").

E, ainda assim, o messianismo, o espiritualismo, o abstraccionismo, são doen- 


ças da alma que não encontra a sua natureza íntima, são o desequilíbrio do
Ser que não consegue reificar a sua sexualidade, que não consegue redimir-se A psique individual e a Psique de Deus são duas expressões aparentemente
enquanto terra. A Natureza é a via do equilíbrio, aquilo que jaz no meio termo inversas do Mesmo, ou seja, do que é e Não é verso e reverso.
entre o Divino e a pura escatologia, entre o Absoluto e o relativo, a via do meio
que permite a pacificação manifesta, realista, do ser humano. 

 O transbordo dos seres é a ausência de sexualidade. A sua fusão é o corolário


da cena primitiva e já as fronteiras deixaram de o ser. O sexo no seu sentido
Não há concepção, não há criação, não há liberdade. Só há formatação, con- mais puro não existe; no amor puro só existe a masturbação. Amar sem limites
cretização, materialização, carnalização, do que sempre lá esteve, sempre lá é amar-se a Si-mesmo, na ausência de mediações, na ausência do outro.
está e sempre lá estará. Não há "pensar", só há "repensar".


No Amor, no Uno, toda a agressão do "outro" é auto-agressão. Magoar quem
Todo o "religare", todo o "simbólico", é a aproximação ao momento originário. se ama no transbordo é destruir a possibilidade de se ser feliz, de coisificar o Eu.
E já a defesa mostra que ainda o amor não é Amor, porque há ainda um Eu que
 quer sentir-se nos seus "bordos", nas suas ilusórias fronteiras.

O destino está todo no Princípio. Os gostos, as preferências, os gestos, o mais 


ténue movimento, estão todos contidos no momento primário, no Logos ini- A necessidade é a relatividade do ser. A relatividade alimenta a necessidade,

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Luís Coelho A Clínica do Sagrado

como a peça de um puzzle que procura o repouso do puzzle finalizado. dades arquetípicas. Somos somente a ilusão do que somos, e também o mundo
será a ilusão que a nossa ilusão lhe confere. Ser livre é uma impossibilidade e
 até o seu pré-requisito - a consciência - é uma impossibilidade, porque não há
"ganho de consciência" que não seja feito a partir de uma referência "relativa" e
O devir é só a ausência de consolo, o défice de Infinito. Todo o porvir é um com vista a reificar ou a reagir a essa referência. Tudo o que conhecemos, aliás
regredir. tudo o que "auto-conhecemos", é, assim, a adaptação do conforto próprio ao
desconforto do mundo, para que este se torne mais confortável no percepto
 daquilo que nunca passou de desconforto próprio.
Não há, assim, qualquer possibilidade de pensar a partir do "vazio". Todo
A vulnerabilidade é o alimento do amor. o pensamento se faz a partir de referências, pontos de vista específicos que
minarão, condicionarão qualquer possibilidade de Hiper-consciência. O Estado
 mais próximo de tal consciência, da visão do Super-Homem, corresponde a um
nível de Totalidade heteronímica, poética, que leva o ser relativo a despersona-
Cada acto é um só Universo, uma multiplicidade de Universos, o multiverso lizar-se, a atentar a loucura (por incapacidade de suportar tal intoxicação per-
de leis e das relatividades que elas tornam necessárias. ceptual), a perder-se enquanto homem e a recriar-se no Demiurgo, que assim
se manterá se esta Totalidade não é ainda o cenário negro de um Todo-Nada
 (portanto, de Deus). Daí que talvez o homem tenha de se perder se quer alcan-
çar o Todo. Daí que o auto-conhecimento, a consciência abrangente, talvez se-
O livre-arbítrio é a determinação da ilusão da liberdade de escolha. jam profundos inimigos de uma Liberdade no sentido puro, divino. Atingir-se-ia
mais profundamente este estado de Liberdade pelo mero "desligar" meditativo,
 após um processo de "auto-conhecimento" revelador das quimeras condiciona-
doras, mas jamais após um processo de "auto-conhecimento" do mundo (mun-
Vens para esta discussão, trazes as referências que fazem de ti um homem, do que, neste sentido, não existe, senão no mundo próprio da consciência da
e ainda te atreves a presumir que não possuis preconceitos, que és livre e que personna).
auferes de uma "mente aberta"? Ninguém é livre, até a tua tolerância ou acei- Por outro lado, por que não simplesmente aceitar e fazer o luto do simples
tação são as que as tuas referências permitem. Não és livre, pois até a tua per- facto de sermos condicionados, de essa ser a condição da nossa máscara, quiçá
cepção é aquela que o teu Eu restringe. Não és livre jamais, pois o teu caminho exibida com o orgulho da identidade que pretendemos manter a todo o custo?
de descondicionamento, a tua tentativa de te libertares será sempre feita com Porquê o sentimento de culpa em nos constituirmos como um Arché específico
base no que possuis, no que retiras da Realidade, no que a tua subjectividade e em o mantermos na nossa imersão relativizadora do mundo?...
pretende ou deseja desvelar (a mesma que tentará sempre resistir ao que dói, Temos ainda outra opção temporal: assumirmos tantas máscaras quanto as
ao que custa ao conforto interno). que nos servem e são úteis. Sermos todas as referências que fazem a "norma-
Quando ganhas consciência da Vida já esta é a própria consciência, e já a lidade" de cada Época, sermos o Arché dominante de cada tempo, a partir do
consciência está minada pelo ponto de partida que a alteridade entrosou no teu qual estaremos sempre adaptados à dança de todos os "relativos", de todos os
corpo outrora selvagem. A partir daí, tudo o que entendes é condicionado pelos códigos, de todas as linguagens.
primeiros entendimentos, e estes pelos anteriores, e estes pelos dos outros que Temos assim três grandes possibilidades: Sermos o Nada divino, totalmente
te antecedem e, quiçá, te fazem nascer, e os deles pelos das suas próprias alteri- livres, sermos o Arché dominante que firmámos precocemente e adaptarmos

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a realidade às nossas necessidades (termos livre-arbítrio...), ou sermos o caos ser se tornar Super-Homem, Absoluto, Deus, ou seja, dono de todos os tempos,
que permite modificarmos o nosso Arché segundo os códigos de cada tempo de todos os Archés, do Nada que é o vazio em que "todos" se tornaram já UM.
(pois tudo é relativo e os Valores de hoje não são os Valores de amanhã).
A nossa psique tende a requerer uma certa estabilidade, uma certa estrutura, 
um Arché um tanto ou quanto definido e pouco flexível, sendo que a ansiedade
surge muitas vezes nas tentativas de sermos Nada ou de sermos simplesmente Só aceita a pura relatividade aquele cuja origem é absoluta. Só aceita a mu-
Caos. Mas sermos Caos pode ser somente o Arché "primevo" adaptado à dança dança aquele que não teme perder-se nela. É preciso muita Ordem interior para
do tempo, coisa factível sobretudo se aceitarmos que a ideia do Universal é uma não querer fazer parir uma estrela que dança. A Ordem interior é uma rede
quimera..... Quantos de vós estão preparados para aceitar que não há uma Ver- de Esquemas Cognitivos; esta rede não é sempre a mesma, e a referência mo-
dade objectiva moral alcançável, que não há Arquétipo Ético senão o que cada difica-se com o tempo, mas haverá sempre uma Estrutura para perceptuar a
tempo e cultura estabelece como tal, que a História é uma mera questão de realidade. Aceitar que os Esquemas se modificam e que o Eu de hoje é diferente
construção e de contrato de intenções, que a Verdade é somente a construção do Eu de amanhã é, no fundo, confirmar a força do Esquema/Arché primário,
feita à medida de cada Arché individual, que os próprios Valores do passado a certeza de que a Primavera da vida teve floração suficiente para que as mu-
são continuamente modificados de acordo com as necessidades do presente, danças do ser nunca fizessem enfraquecer a ideia de que ainda há algo do Ser
que a realidade está visceralmente dependente do contrato de linguagens e de primaveril em todos os outros seres com o mesmo nome.
códigos semiológicos que utilizamos e que "fazem" o nosso percepto? Aceitar
que "tudo é relativo", que tudo é a construção própria feita à imagem do Eu 
com necessidades subterrâneas (as quais também não podem ser plenamente
conhecidas, senão parcialmente na reconstrução do passado, pois lembrar é, O ocaso do presente tem o poder de provocar o ocaso do passado. A tristeza
na realidade, reconstruir, reaprender), é o primeiro passo para entendermos tem o peso esmagador de alterar a percepção da própria Realidade, escurecen-
que seremos sempre a nossa própria sombra (reflectir é ver o reflexo do Eu), do-a, alterando igualmente as memórias (a sua percepção, o sentimento rela-
que a própria tentativa de conhecer o mundo é inútil, que o auto-conhecimen- tivamente a elas, o peso das mesmas no presente), minando a própria volição,
to é somente um exercício de confirmação narcísica, e que mais vale sermos arma requerida à mudança. O Passado determina, então, também a própria
"livres" no transformismo constante do Eu na paródia do mundo do que viver- capacidade para alterar o futuro, e, portanto, a percepção desse mesmo pas-
mos perpetuamente infelizes porque não alcançamos o que o nosso próprio sado. O presente, já esse, mesmo quando desabrido, só determina na relação
Arché (na relação culposa com o Arché Pater/Mater) nos manda alcançar, e que dialéctica com o Eu do passado, um pouco como se a tragédia do presente fosse
mais valia nada demandar porque o nosso Arché já devia ter deixado de o ser somente o catalizador da Tragédia do Passado. Alterar o presente é, assim, inú-
para outro ser e outro ser, nesta impermanência que o mundo é (não sendo), til (a longo prazo), se a Estrutura em si não sofre mudança. Se é que a Estrutura
neste multiverso de "normatividades" em que a Lei e a Justiça dançam com a pode ou deva ser mudada... tal tentativa acarreta um conflito: este é a vida é um
nossa própria noção de "Valor" e "Norma" (nossa já não nossa, porque não há risco, a sua ausência é a frustração é a inércia. O terapeuta é a "interferência"
um "nós"). Não querer esta dança permanente é arriscar a eterna saudade do do presente, o catalizador do Passado, o factor de mudança; se é para "melhor"
Arché infantil (aquele a que tendemos a agarrar-nos como leões, ainda mais ou "pior", tal já se trata de um mero jogo avaliativo abstracto (o toque muda,
quando o mesmo vacila, vacila no presente na recordação do passado no qual não necessariamente para melhor, o conflito pode ser um mal necessário, os
algo pode ter falhado, e se não falhou é o presente que falha na recordação do efeitos do toque não são, de todo, completamente previsíveis ou controláveis,
passado que não falhou), portanto a inadaptação ao presente de cada tempo o terapeuta não é, verdadeiramente, um demiurgo totipotente, e o seu toque
cuja infelicidade consequente pode vir a ser compensada com a tentativa de o pode, na relação dialéctica com o "Universo paciente", produzir imensos efeitos,

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alguns até potencialmente catastróficos, o que nos leva a questionar a eficácia Condição (de não liberdade).
de certas terapias - vide a questão do relativismo dogmático com estas poten-
cialmente associado - e o jogo altamente "relativista" da "psico-análise"). 
A "sorte" do presente é, assim, em grande medida, a predestinação do pas-
sado, da capacidade de relação e avaliação com/do mundo envolvente. As re- A única especulação que interessa verdadeiramente é a (não) especulação da
lações dialécticas do Eu interno com o Eu objectal afectam a saúde do corpo Imaginação.
(corpo fantasmático, corpo físico), directamente pelo efeito do meio, indirecta-
mente via psique. E o Eu afecta o mundo que o rodeia, o que faz de cada um 
o "terapeuta" do outro. Os actos de agora condicionam os actos do futuro um
pouco por mecanismo compensatório, na base de uma equilibração de limites Maior inocência que a noite do ser é a noite de todos os seres. O ser(aí) é já
eternamente móveis e instáveis. representação do teatro da Vida. Antes da consciência existe inocência; antes
No fim, obtemos um ciclo vital de relações, um Sistema complexo de vitalida- do nascimento, a inocência é ainda maior. Antes de todo o teatro, a pureza da
des, em que a lógica de luta ou fuga tem de entrar inalienavelmente em jogo. A inocência eleva-a à Não Existência.
humildade de um é contrastada pela dominância do outro (humildade e domi-
nância reais ou meramente representacionais? As relações reais não serão so- 
mente a projecção das relações fantasmáticas?), a tentativa deste segundo em
ser humilde rapidamente se vê contraditada pela dominância do primeiro. Para O ênstase do Princípio propicia o êxtase do imediato. Entre os dois há só o
além disso, o sujeito tenta sempre tirar mais do que dar. Mesmo quando parece Infinito.
dar, oferecer atenção, passa ao outro a sua própria compreensão do mundo,
um pouco como se nunca chegasse verdadeiramente a sair de dentro do seu 
invólucro. A concordância não é comunhão, é somente o disparo simultâneo e
co-ilusório de um punhado de neuroquímicos. Esquecer a Origem é esquecer o devir, perder a vontade, deixar de ser, ou Ser
(Psicanálise, Psicodinâmica, Psico-Dialéctica, Psico-Dialéctica-Sistémica, o In- verdadeiramente no eterno presente.
finito...)


Ambicionar é querer o que já nos pertence. É corresponder aos fantasmas do
A relatividade pura torna as fórmulas peças de museu, inúteis para a regula- Início, e aos fantasmas dos fantasmas do Início, ad infinitum. Corresponder-lhes
ridade que não existe. é obter o que se ambiciona, o que já se possuía, daí que toda a ambição é vã,
toda a vontade é fútil, o objecto de um monstruoso jogo de determinação, de
 uma vontade superior que nos escapa e que também Lhe escapa.

Até o "estudo de caso" é a preocupação da regularidade. Na ausência desta, 


todos os estudos seriam inúteis, toda a Ciência/Epistémi destoaria da realidade
imprevisível, o relativismo seria a pura indeterminação. O Inverno é a alucinação da Primavera. Contém-na, como o Caos contém a
O ser individual é gerido pela autodeterminação, que é a condição de uma Ordem, que É não sendo. A Primavera é o renascimento da Ordem, tomada de

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forma de um Inverno/Inferno que a idealizou. Eternamente, porque é um círcu- O Amor Universal é o Amor nunca citado, nunca vivido, o que sempre está
lo de Permanência na substância da lucidez. onde está o que não é sendo sempre o que É não sendo. O Amor é o silêncio, a
A Primavera é o início do desastre do que será redimido no Inverno. E o Inver- noite suprema da ausência de signos, pólos e até vacuidades.
no voltará a desejar/intencionar a Primavera.


O Amor não é a tolerância do silêncio, mas sim o silêncio da tolerância.
O Amor Espiritual é a inversão da sexualidade do amor passional. O Amor Es-
piritual iguala o amor passional se a União da noite dos tempos é o inconsciente 
do sonho próprio.
O amor terreno tenta o silenciamento que trará o Amor Universal.


A atracção, o desejo, a sexualidade, são a perda da nudez. O sexo é a sua
recuperação. O falo marca o pólo Espiritual da desunião que tende para a fasci- O amor passional quer a loquacidade do prazer enquanto falso silêncio do
nação do pólo passivo, o retorno à União. sofrer e quer a fusão temerosa enquanto falso silêncio do Ego. A fusão terrena é
a tentativa de segurar o Eu na ilusão de um Todo. Todavia, se o Eu se conseguis-
 se, de facto, segurar, reificar, encontrar na sua Estrutura Original, encontraria
talvez o verdadeiro Amor, no exacto momento em que abandonaria a relação
A cultura cobre a nudez da Sabedoria. A razão dianóica cobre a nudez da com o amor passional.
razão noética. O Espírito (não)vê a nudez com (sua) (não) potência. A Civitas vê
a nudez com o pudor do prazer a refrear. A matéria vê na nudez a potenciação 
do desejo.
Mesmo no plano do amor passional o excesso de linguagem e de raciona-
 lização tende para a destruição da subtilidade da União arquetípica, original,
primitiva, primaveril.
A dialéctica, a concretude, o brincar da criança que já se afasta do Paraíso que
a iniciou, é a Divina comédia, o jogo simbólico de Deus. 

 O Amor subtrai-se ao Logos, à linguagem, à sociedade. O Amor é a subtracção


entre o Divino e o Verbo. Como a subtracção de Pascal Quignard: Homo - Logos
O verdadeiro Amor despolariza os seres, fusiona-os num só Ente, que não se = Animal.
sente, não dura, não vive, por se (não) consciencializar no eterno presente do
si já Não Si. 

Todo o homem do segredo é um dissimulado à custa de querer encarnar a

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ilusão da forma. Simula para sobreviver e é a própria necessidade de sobrevi- Também a sexualidade é, de algum modo, a conformação do Segredo, do
vência na forma que comprova a sua honestidade, a sua incapacidade de ser silêncio que lhe propõe o secretismo da descoberta da nudez. O corpo e o sexo
segredo pleno. O segredo não é compatível com o mundo. Não obstante, é a não são estruturas dessacralizadas, como propôs um certo cristianismo, antes
sua intenção, a prefiguração da Ordem, da forma em que o ruído tornou o se- são objectos que confirmam a nobreza do momento primevo, a beleza de teor
gredo indizível, inalcançável, amnésia assaz irreversível. arquetípico. Até a sua proibição, o seu secretismo, a sua castração às mãos de
uma religiosidade exotérica, terão sido elementos fundamentais para fazer do
 sexo a aventura inesquecível da descoberta. Os momentos da modernidade
dessacralizada, aqueles em que o sexo é já um vazio de olhar, em que o corpo
As fachadas sociais apagam o silêncio da emoção (Verbo). O silêncio da emo- já não produz a admiração, o espanto do temível desvelamento, são também
ção apaga o silêncio do Divino (pré-Verbo). os momentos que subtraíram o sonho e o mistério à voz criadora do momento
da descoberta do corpo. Ao desaparecer o tabu do sexo, desapareceu também
 parte da beleza da sua descoberta, grande parte da aventura do confronto com
as estruturas proibicionistas, agora tornadas "liberais" e indiferentes. De certo
O Silêncio do Divino contém em si todas as iniciações possíveis. Nele, a pró- modo, o arquétipo castrador é também o impulso derradeiro de libertação. Se
pria fascinação é castrada. O silêncio da noite intemporal é a pura indiferencia- não existe o ensejo de aprisionar (por parte de um Pater), também desaparece
ção. O silêncio arquetípico é o silêncio que já começou a deixar de o ser para as a necessidade (por parte do filho) de moldar um qualquer caminho de descon-
coisas se serem. dicionamento, de libertação face às Estruturas super-morais. É como permane-
cer mais perto do sossego do divino, na ausência da aventura da descoberta
 na encarnação. É que só mesmo através do corpo, através da substância e da
auto-consciência é possível possuir o "antes e o depois" requerido ao caminho
Se o Verbo vive no esquecimento, o Divino nem sequer o chega a permitir. evolutivo. Sem atrito não há caminho, não há descoberta, há somente a paz,
A anamnesis só é possível no reino do Verbo. O Início é, então, o segredo; já o que, de qualquer modo, não levará muito tempo até conhecer o seu estertor.
Divino é o puro Silêncio.


Enquanto criação humana, enquanto estrutura narrativa, o mito é posterior
O Segredo dos Primórdios implica que a grande Obra seja necessariamente à sexualidade, e engloba uma diferenciação linguística, social, capaz de incluir a
anónima. reprodução geracional de padrões culturais, comportamentais e de parentesco.
Falamos, claro, do mito mais enquanto constructo psico-sócio-familiar e histó-
 rico-cultural, e não do mito no sentido mais colectivo e singularmente primevo.
No fim, ambos são construções humanas, já diferenciadoras e algo temporais
As grandes obras da Humanidade não estão assinadas, não possuem História no relativo a um Paraíso "pré-arquetípico", aquele que respeita ao Uno imani-
e não cedem facilmente à erosão do tempo. festo e fusional (a noite eterna dos tempos).
O que acontece, portanto, é que o Homem sublima para as altas instâncias do
 Uno o que não é verdadeiramente Primevo, Original.

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É, assim, o Homem o construtor da sua própria Primavera, da sua (não sua) Algures, num tempo específico, diversos comportamentos terão sido eleitos
"cena Primitiva". como exemplares no sentido em que propiciam a sobrevivência do corpo da
O Homem constrói o sonho, o mito que o comandará. Projecta os Valores que própria cultura. As culturas que apresentavam comportamentos destrutivos
projectarão a acção e a cultura, e estas, por sua vez, projectam novos Valores. teriam perecido algures nos meandros da "evolução histórica". O que significa,
É, assim, a estrutura fantasmática do Mito e dos Valores um constructo plástico, que as culturas que sobreviveram poderiam possuir comportamentos semelhá-
em permanente reconstrução, metamorfose. veis, com um certo isomorfismo ético-moral, isomorfismo interpretado pelos
Dizendo de outro modo, o Inconsciente Colectivo torna-se Consciência Co- homens como prova de que os Valores em questão seriam Universais, de um
lectiva (a qual não deixa de se inscrever no inconsciente individual, pela forma Uno visto como basilarmente genético pelos materialistas e visto como demiúr-
como o Superego ajuda a esculpir o mundo fantasmático do ser). gico ou mesmo divino pelos espiritualistas. Quando, na verdade, se trataria de
um Universal transcultural.
 Acredito que comportamentos considerados como universalmente imorais
como o incesto não o seriam se as possíveis e verificáveis consequências físicas
O tempo é a condição da degradação do mito. O mito enquanto sublimação do mesmo não tivessem levado os homens a vê-lo como um "comportamento
de Valores construídos e sujeitos à mudança é, então, uma construção já "pós a evitar", algo que foi generalizado nas culturas e, mais tarde, nos mitos, algo
-Arquetípica", podendo até levar a identificar como "Arché" verdadeiramente tornado "comum" num sentido meramente transcultural.
primevo aquilo que o não é. Atemos, mais uma vez, a perspectiva relativista, O Universal transcultural não deixa, ainda assim, de ser um Universal, e a Mo-
segundo a qual os Universais são a ilusão de uma espécie de contrato social. ralidade não se perde face ao que se apresenta. Somente perde algum do seu
Aparentemente, podemos contrapor ao "Universal cultural", o Universal físico, conteúdo mágico, primevo, genealogicamente primordial. O imoral continua a
de raiz primariamente genética. Mas tenhamos cuidado! O que o corpo nos diz sê-lo, talvez não no sentido de um Uno verdadeiramente primevo, mas no senti-
em termos aparentemente Universais pode também ser o reflexo do tempo do do Universal transcultural ou mesmo no sentido meramente sócio-cultural...
Histórico, porque o contrato Histórico interfere com a expressão do corpo. pois, o imoral pode ser somente o que se considera como tal no relativo ao con-
Da mesma maneira como o mito pode ser um falso "Arché", também o "Prin- trato nomotético criado por cada cultura, cada sociedade, cada tempo histórico.
cípio" do ser individual pode ser somente a ilusão do "Princípio". O que se visa O facto de, por vezes, a moralidade estar confinada à variância sócio-cultural
recuperar não é, na verdade, o verdadeiro "Arché" - este já irrecuperável - mas e temporal - relativa ao facto de cada cultura marcar o conjunto dos critérios,
sim o que é entendido como tal, relembrado como tal. Como se, ao contrário padrões e referências do que é e não é normal/saudável/moral - não significa
do que diz a perspectiva platónica, já não fosse possível desvelar, mas somente que esse "moral" seja necessariamente menos possante face a algo que consi-
reconstruir. Assim, toda a anamnesis acaba por ser uma re-mitificação. deremos como Universal.
Obviamente, no sentido estritamente Espiritual, considera-se a Ética como
 sinónimo de Indiferencialidade, e isso, de algum modo, acarreta uma hierar-
quia, que aqui posso resumir:
O Arché passa por ser, então, não só o Universo singular do verdadeiro "Prin- Divino Imanifesto » Universal Arquetípico (Mito) » Universal transcultural
cípio", mas aquilo que a cultura projecta como tal, o "Princípio" construído (sub-arquetípico, também mítico) e Linguagem » Língua e Cultura » Sociedade
enquanto Mito original. De algum modo, a cultura vai criando historicamente » Família
diversos "Archés", várias estruturas míticas que apresentarão o padrão de "mo- É o tempo que faz deslocar o nível menos diferenciado para o nível mais di-
ralidade", "normalidade", "sanidade", de comportamento exemplar, paradigmá- ferenciado. Já o caminho evolutivo envolve a inversão do sentido da hierarquia,
tico, o que ajudará as culturas a subsistirem ao tempo e ao terror da História. mediante o trabalho de descondicionamento. Parando no nível do Universal

170 171
Luís Coelho A Clínica do Sagrado

Arquetípico, o homem é capaz de fundir-se com algum do seu primitivismo (ou 


será "primativismo"?...), de perfazer o encontro da diferencialidade sexual, que
é o objecto da Psicanálise freudiana de amplitude clínica e também daquilo que A criança no útero da mãe recria o raio cósmico do coito de Deus.
firmava a religiosidade arcaica, xamânica, ctónica, nocturna (aqui o Sagrado é o
Sexual). Somente na Espiritualidade oriental e também no Esoterismo é ambi- 
cionado o objecto de pura libertação, de superação do corpo, de qualquer tipo
de condicionalismo e, portanto, da própria manifestação (este nível é negado O coito entre dois corpos recria a cena primitiva da infância. Difere do coito
pelo materialismo, para o qual tudo é corpo físico, não existem sequer diferen- de Deus, que suspende todas as infâncias.
tes planos de manifestação espiritual, e a Liberdade é igualada ao design ge-
nético... coisa, de algum modo, mal suportada por um certo Espiritualismo que 
não quer aceitar o facto de sermos condicionados e estarmos fatalmente agar-
rados ao condicionamento genético... mais uma vez nos questionamos: será a O verdadeiro Amor, a paixão Universal, implica o sacrifício dos corpos unidos
essência da Libertação e a carência de um Absoluto Espiritual a necessidade na confirmação das suas infâncias. Ele está para além de qualquer infância,
sublimatória de um ser que não é capaz de lidar com a sua própria angústia de porque não é início de nada, senão o tempo abolido na Eternidade de todos os
castração?...). inícios.

 

O homem singular atribui um sentido à vida. O Homem-Deus desvela o signi- Amar um outro é confirmar a comédia da retórica. Permitir a assimilação no
ficante onde estão contidos todos os sentidos possíveis. Uno é exterminar a própria necessidade de retórica. Daí que a ausência absolu-
ta de guerra implique tão-só a ausência de vida.


O Amor precisa da guerra para se tornar Ele mesmo. Tal como o Divino que
requer a consciência na formatação do Cosmos. É a aventura de Psique no al- Na busca do Divino procuramos confirmar-nos. No seu encontro acabamos
cance de Eros. O Amor-Uno implica a resistência do amor humano: o primeiro por nos perder.
é a Unidade inconsciente, o segundo é o receio da fusão primária, da cópula
incestuosa com a Mater. O receio edipiano marca a guerra da dualidade, da 
temporalidade. Já, no Uno, todos os mitos terão sido extintos (nunca chegaram
sequer a existir). Todo o verdadeiro filósofo - todo o verdadeiro terapeuta - é pouco sociável,
porque requer a urgência da nudez primária e a crueza da noite indiferencia-
 dora. Ser cordial é perder a Simpatia Original. Ser "simpático com" é não ser
Simpático plenamente. Ser "para os outros" é permanecer na negação de "ser
A visão do Amor é cega, resguarda o eterno silêncio. E, assim, é o Amor o en- os outros".
contro da Rosa no coração do deserto. É um despertar no sono do tempo, é o
Tornar-se Testemunho do incomensurável, incognoscível, indizível. 

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Luís Coelho A Clínica do Sagrado

Quem Une come, devora, assimila. A antropofagia encontra o seu Sagrado porque estas já são o Ser Total que não se distingue delas, das mesmas que já
mais puro na vontade da aniquilação do múltiplo na Unidade devoradora (como não requer porque já é o Uno omnipresente.
nos ritos dionisíacos...). Escrever isto como quem tenta reificá-lo no plano de uma Totalidade que É
mas ainda não se desocultou perfeitamente é confirmar a inteligência do ho-
 mem limitado, que, ainda assim, visa a certeza da sua capacidade, a coisificação
da sua diferença, o que, mais a mais, comprova a sua pequenez, a sua finitude,
Não há união nem desunião, há só o Uno, que, de tempos a tempos, ganha a sua mortalidade.
forma.


A auto-consciência é o equívoco do ser que não existe existindo.
É a própria tentativa de recuperar a infância perdida do Eu que implica que
o amor não seja o Amor do desvelamento da infância eterna de todos os Eus. 

 O auto-conhecimento, no seu sentido profundo, é uma impossibilidade! Para


se conhecer, é necessário que exista uma separação relativa entre o Sujeito que
Não existe a consciência individual, só o fluxo das consciências alheias, que conhece e o objecto que é conhecido. Se o objecto do conhecimento é o próprio
não são elas mesmas senão o Verbo gerador. Sujeito, então é necessário que este se abandone a si mesmo para conhecer
o Objecto "Sujeito". No entanto, o acto de conhecer implica uma mente, uma
 estrutura onde radique a consciência, a mesma que teria de ser superada para
que o Sujeito se abandonasse a si mesmo de modo a se conhecer, a si já não si.
Crescer é deixar-se fascinar pelo Universo na servidão involuntária à Ordem A exteriorização do Ser relativamente a si mesmo implica a sua morte, e nesta
Divina. já o Ser e o si-mesmo (o objecto) se fundiram, se implicaram mutuamente no
Uno indiferenciado. E se é Uno já não é Separatividade, um Eu que possa con-
 ceber-se como tal.
É por isso que haverá sempre uma parte profunda do nosso ser individual
A inteligência criadora não é uma inteligência, porque a criação transcende a que estará irremediavelmente perdida no subsolo da memória, pois nem o Eu
competência. Ser competente é obedecer, ser clone do comportamento instituí- lhe acede (porque não consegue arrancar-se de si mesmo, daí que muitos dos
do, morto-vivo numa sociedade de autómatos. Ser sábio é perverter a inteligên- nossos defeitos só possam ser apercebidos pelas vítimas - os outros - dos mes-
cia, gorar as instruções dos livros e mandamentos, desafiar as leis do demiurgo, mos), nem o outro tem a convivência necessária com o Eu para neste poder
ousando ser a Lei própria ou mesmo a incerteza permanente. A Sabedoria cres- penetrar.
ce na mesma medida em que decresce a inteligência, se corrompe a cultura e A Espiritualidade, no seu sentido mais genuíno, implica a morte dessa ilusão
se deprava a Sociedade. A Sabedoria não se aprende ou se busca, não se obtém mercantilista das "terapias do auto-conhecimento", pois nem o Espírito é o "Eu",
senão pela desocultação da obviedade do Espírito em desvelo. E essa Sabedoria nem o Uno é conhecimento, pois, no silêncio, já a Razão Pura (?) se perdeu para
decerto não o parecerá para o Ser desocultado, o mesmo que terá perdido irre- gerar o Divino. Fica, assim, o auto-conhecimento a ser o marco psicanalítico
mediavelmente toda a inteligência, toda a aprendizagem, todas as capacidades, (para a Psicanálise mais profana nada mais existe, e o Uno é o ser individual

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Luís Coelho A Clínica do Sagrado

com um nível refinado de auto-consciência e potência realizadora e ética) ne- tornadas no palco infinitesimal da Unidade, aquele que torna todas as frontei-
cessário enquanto passo de um processo meditativo - o amor no sentido do ras ilusórias tentativas de minar a liberdade na qual nos inscrevemos no nosso
"apego" - que visa a Meditação final enquanto "Voz do silêncio" implicativa de sono divino, no Silêncio das amarras da manifestação.
uma visão do Amor no sentido de um Uno que é anterior ao próprio Princípio
(Arché). O amor afrodítico ou o self psicanalítico é, assim, condição do amor de 
Eros (no sentido que lhe foi dado pela mitologia grega, perspectivável na obra
de Apuleio) ou do Self no sentido do Buda-Dharma. Identificarmo-nos com um outro é conceder o que já não nos pertencia.

 

Todas as Terapias remarcam a sua validade no preciso momento em que Todas as relações são relações de incesto. E se a frase fere, se preludia a sua
passam a valer mais pelo conteúdo e o Ideal, do que pelo aspecto exterior. não aceitação é porque a defesa do Self não permite inteirar as verdades de-
Aí pouco interessa quem as pratica, se o Silêncio é implicado no que as pro- sagradáveis, as realidades que a Realidade não conformou à norma e à moral
cura. Fundeando a visão da Totalidade, profissões, artesãos, disciplinas, tudo (e, por isso, ferem a homeostasia interna ao desafiarem a referência normativa
isto é ilusório, tal como quem pensa que um "auxiliar" ousa necessariamente impregnada no Eu). Simples são os que refutam aquela frase, como simples são
menos que um "terapeuta" e o "terapeuta" ousa necessariamente menos que o os que a proferem porque requereram chocar os desavisados como quem quer
"médico", com base no aspecto "exterior" dos anos de estudo (e em academis- afirmar o Ego frágil, como simples também são os que com ela não se chocam
mos trôpegos, que parecem valer mais pelos hierarquismos do que pelo que porque é a defesa que embotou a sensibilidade, dessensibilizou a emocionali-
verdadeiramente interessa). Pratique-se o abandono das ilusões, da farsa da dade. Mas como tudo é tão ilusório!! Pois que o que hoje choca amanhã será
exterioridade, a mesma que já terei apresentado várias vezes no passado (não vulgar, o que hoje parece certo amanhã será frustre. O Absoluto é o momento,
por inconsciência ou limitação, mas porque o discurso deve apropriar-se ao quando a colecção de momentos é o Relativo, a frustração da efemeridade, que
contexto, às limitações do público que o lê). ninguém quer aceitar porque a ausência de uma Estrutura ofende a seguran-
É perfeitamente aceitável pensar que o terapeuta tradicional sem formação ça egóica, a manutenção da personna que se requereu escolher (?) na sempre
académica pode saber do que faz, e não tenho dúvidas de que a sua proximi- necessária adaptação à realidade de erosão, ao espaço de perpétuas ofensas,
dade à nudez arquetípica pode ser infinitamente vantajosa (face aos que jazem lutas e dissimulações. E é assim que nos agarramos a nós mesmos, pedindo
mergulhados na verborreia académica e na intoxicação conceptual, passe-se o socorro ao fantasma interno, maternal, o mesmo que nos olha e julga no mo-
que já tem constituído a minha própria mea culpa). mento da dissidência, o mesmo que promete fender-nos no preciso momento
E - acrescento - nada me opõe verdadeiramente à inteiridade das terapias di- em que condenamos a Sociedade do bem e do mal à ilusão de uma simples
tas "não convencionais". Elas trazem consigo o que falta ao Ocidente, incluindo abstracção, o fantasma que vê em nós o seu próprio fantasma de prolonga-
uma visão da doença enquanto palco de um desequilíbrio dos planos corpóreos mento egóico, e que já via na sua estrutura mistérica (ou seja, da infância) o seu
superiores (ao físico) ou até mesmo enquanto resultado do saldo kármico e da fantasma arquetípico de poder demolidor, o mesmo que permanece sempre na
acção antitética. E uma possível comunicação entre elas e as terapias ocidentais densa sucessão de gerações, não cedendo nunca à morte (nem ao divã) nem à
é perfeitamente concebível: na ciência (nos seus diversos sentidos, etimológico ilusão de tentar fazer disto a minha própria ilusão, a ilusão do autor que sabe
e moderno), na hermenêutica, na linguagem. (Planos dissemelhantes do Corpo que a sua própria angústia é somente o momento efémero numa sucessão de
têm em comum a modificação consequente do plano físico.) um momento maior, o de um tempo que não cessa, que, por isso, é Absoluto,
No fim, tudo é Uno, e todas as nomeações e catalogações terão sido trans- Divino ou Permanência, salvem-se os jogos simbólicos esotéricos, muitas vezes

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estupidamente literalizados (não entender a realidade esotérica como simbóli- são de ser livre! Ser Divino é ser livre genuinamente, na ilusão de coisa alguma.
ca, alegórica, é, tal como julgar que há fronteiras ou absolutos, não ter entendi-
do nada de nada, como se algo houvesse para entender nesta eterna extensão 
de um movimento que não cessa, que é metamorfose interminável).
No momento em que a reprodução humana passar a ser movida pelo intento
 altruísta a espécie extinguir-se-á. (E aí far-se-ia justiça ao pecado original, que
mais não é do que o infinito de actos que fazem desmerecer a continuidade da
No coito, encontramo-nos com o útero materno. Um regresso que é a expec- nossa existência).
tativa da recuperação do Paraíso, da nudez libertadora, do tempo em que nada
havia a provar, de uma infância despreocupada, sem pudor, sem vergonha, sem 
o "outro", sem a mentira. O mundo é uma ficção, a mudança eterna do que não
É, a transfiguração reflexa do que as coisas São, a corrosão do Princípio radical Estar no caminho para o Espírito é querer ser a Origem e temer a diluição no
que permite a cessação do sufoco dos espelhos que nos iludem. A materialida- teatro de máscaras (estar imerso inconscientemente nesse teatro carnal é não
de, as trevas femininas, permite-se dar sentimento à Ausência, e este parece estar no caminho para o Espírito). Estar no Espírito é ter superado a Origem, ser
ser o único sentido possível. O Espírito puro, as trevas masculinas, dão fim ao a liberdade pura da Origem própria, e não temer a possibilidade da submersão
caminho de erosão, mas já aqui não há aventura, a mesma que prefigura a no teatro da vida, que aqui é só a compaixão ou a distracção luciferina. A Ori-
recuperação da Ausência de aventura. Como tudo acaba por ser tão simples, é gem é a relação incestuosa com a Mater, a sua transcendência é o Amor mais
somente a questão de "Ser ou Não Ser", e os homens complicam tanto esta nu- puro. Como acontece com Fabrício em «A Cartuxa de Parma» de Stendhal, que
dez, tornam tão opaca e opressiva a Infância na qual deveríamos permanecer assume a suprema ingenuidade arquetípica no formato de um Ideal Superior,
eternamente, não a Infância Divina, mas a Infância que já fomos e queremos concretizado no (não) Amor incestuoso com a sua tia, e só mais tarde trans-
voltar a ser, uma em que tudo era tão simples e não existia esta luta tão grande portado para um Amor mais genuíno (por Clélia), coisificado no "Silêncio" da
entre os homens em nome de um Eu que é, na essência, a criança dominadora Escuridão.
das brincadeiras dos homens. Urge reactualizar a nossa própria Origem, urge
trazer ao presente o sentido de Sermos, para que possamos definitivamente 
fazer o luto da perda do Paraíso, para que possamos finalmente ser homens,
simplesmente seres plenos de sentido e entendimento, porque plenos do sen- A fobia das convenções sociais atesta o desejo da Idade da Inocência. E o
timento de Sermos e Estarmos. desejo da Infância é a busca da confirmação do Ser que teme desagregar-se
no mundo de estranhas sombras, demónios escondidos atrás de máscaras de
 concupiscências laceradas pela violência da loucura. Só a criança, o douto ig-
norante, o sábio selvagem, é capaz de tomar as rédeas do Amor no sentido
Transportamos connosco a criança que determina o adulto que pensamos mais puro, na sua tez de imortalidade alquímica. O Amor mais genuíno é uma
ser, com vista a ser a criança que nunca deixámos de ser. Crescer é, então, impossibilidade da vida. E é por isso que milénios de literatura conceberam a
decrescer. Evoluir é crescer verdadeiramente, regredir no tempo, lançando-o morte dos amantes no momento da concretização do Amor, que é o derradeiro
no Divino que em nós pede para (não) Existir. A criança é o Arché coexistente segundo da implosão dos seres num só elemento, no vazio da existência cós-
ao ser. O Divino é o que antecede e finaliza o Arché, podendo também sê-lo na mica. O amor terreno é a confirmação da dualidade. O Amor espiritual mata os
vastidão do Absoluto a incluir todos os arquétipos. Ser criança é ser feliz, na ilu- amantes, porque já não são dois, são já um só, um Uno que dará ao mundo o

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ovo cósmico de um novo trajecto, um novo caminho de tragédia predefinida. E Amar puramente é não estar em relação (no relativo). A relação é a "arte da
é também por isso, que, em vida, o amor mais profundo cessa todas as pala- guerra", a "arte de amar". O Amor Puro não é a Arte, porque a ausência de
vras, remata todas as intenções, esgota as respirações, remete para o silêncio tragédia desobriga a existência de estratégia. A Noite quebra o jogo, a ilusão
prístino do nocturno, o instante sem tempo em que a própria fonte da vida ecoa da cave de receios, leva ao esquecimento terreno na terra do Nunca. O dia é o
como cascatas de água enregelada, congelada pela imortalidade quase alcança- esquecimento da Unidade, a saudade da Glória Divina, a ambição da Perfeição
da pelos elementos transtornados pela química dos seres. O Amor é o colapso em que todos os jogos, relações, combates terão sido sacudidos para o momen-
de todos os ruídos, é a Utopia, a perfeição, a finalização de todas as consequên- to originário que não tarda a preludiar-se na aurora do Universo de atributos.
cias, e é por isso que o Amor mais profundo não existe, senão na eterna Ilusão, Esquece quem és, renuncia à existência e receberás o Reino de Deus, o Paraí-
no Ideal Supremo, aquele que o Romantismo urgiu alcançar, sem que alguma so onde não terás qualquer felicidade, porque Nada serás!
vez fosse possível ousar o incognoscível; é por isso que os amantes deste Ideal, Luta pela vida, combate na guerra das relações, enche-te de ilusões e terás o
deste númeno monadístico, nunca se encontram, porque o encontro envolve Paraíso da Terra onde só o sentimento de culpa poderá impedir a tua felicida-
dois seres, e a unidade é já o encontro sem encontro, o todo sem pólos, a noite de. Mas cuidado, pois a felicidade nunca dura para sempre, e uma nova meta
em que todas as concretizações terão sido lançadas no vazio da infância divina, quererás possuir, até que, na plenitude do conflito com todos os "outros" que
da inocência mais precoce. têm as suas próprias metas, correr-se-á o risco de tudo implodir num fantástico
holocausto. O vencedor será o que tiver a melhor vista para o Holocausto: a Tes-
 temunha, não um qualquer homem, pois nenhum ser egóico terá sobrevivido à
implosão para a qual deu o seu valioso contributo.
O Amor fusional é a tentativa de reproduzir na terra o Amor do Ideal de to-
dos os tempos. Acarreta quase sempre tormenta, a tempestade ou mesmo o 
colapso dos seres, porque estes se dividem entre o desejo de comunhão e a
defesa das suas próprias fronteiras. Mas não será a própria comunhão o desejo O amor enquanto virtude aristotélica é a "arte" consumada por anos de
de regressar ao ovo originário inquebrável? Não é a defesa do Eu por medo de aprendizagem, por vivências, aventuras e até ausências das inúmeras presen-
deglutição pela Mater a prova cabal de que a comunhão se vê como o perigo de ças a dois. É o "caminho do meio" que a vida sábia prefere à paixão escanda-
extinção, quando o próprio Eu deveria conter-se suficientemente a si mesmo de lizadora das oscilações do mundo material. É a via psicanalítica na utilização
modo a querer, a desejar sublimar-se na noite de todas as tragédias? de uma sabedoria da existência no equilíbrio, sem Egomania, sem carnalização
excessiva, sem mergulho obsessivo na mundaneidade, mas igualmente sem
 Teomania (e sem fusão dos dois em um, sem catexia, para além da virtude do
evitamento da construção de relações objectais nos quais é colocada a rede de
O amor platónico é o verdadeiro amor, porque o encontro na carne confir- segurança do Eu), sem sublimação Espiritual, sem mergulho obsessivo no Nada
ma a ausência de comunhão. O amor carnal é o verdadeiro amor, porque o ou na Terra do Nunca. O crescimento é isso mesmo. É a consecução da via evo-
encontro no Espírito é o receio do prazer, da afirmação do próprio sexo na con- lutiva em vida, neste mundo, com a capacidade de superar a Origem e o Arché
sumação do coito. O verdadeiro Amor é a renúncia ao Ego em nome do Outro, Pater, com vista a firmar um novo Arché que possibilite dar "sol" a muitos ou-
no palco da traição de todas as sensações possíveis, do vazio que não tarda a tros, incluindo todos os que continuarão a reinar na Terra. É a pacificação do Eu
antecipar a Sublimação. na sua relação consigo e com o outro. Esta - sim - é a verdadeira via Espiritual,
com todas as outras a serem esta, apesar de disfarçadas de vias racionais e de
 desapego (o desapego face ao mundo advém do exercício da segurança inter-

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na. O Eu securizado é naturalmente desapegado, pouco exigente de subterfú- lação" com os outros. Enquanto não resolver os seus conflitos internos será
gios carnais e "objectos" relacionais falsamente securizantes; o exercício "cog- incapaz de se "exteriorizar", de "ser para os outros". Ora, se a resolução dos
nitivo-comportamental" e "meditativo-transcendental" do desapego parece-me mesmos conflitos requer a presença do outro, é, então, necessário que o Outro
como mera "fuga para a frente" - talvez não tanto se estas estratégias, particu- seja "dominado" por este Eu dominante, ou não chegará sequer a haver relação
larmente a parte "psicossomática" da meditação, visarem o auto-conhecimento (porque o Outro não se deixou dominar pela necessidade do Eu patológico). A
-, meio tosco de consumar o desprendimento. O amor é a consequência óbvia problemática que se gera tende a perpetuar a existência de conflitos, internos
do auto-amor, não de uma imposição "pedagógica"), ou a serem simplesmente e externos. A Terapia urge como objecto necessário à resolução (quiçá conflito)
vias pouco realistas de firmar a tolerância e a compaixão. ou modulação desta inércia.
O amor a dois é a via da compensação do elemento masculino com o elemen-
to feminino. Os dois não se perdem, as suas fronteiras mantêm-se, somente se 
tornam mais permeáveis. A relação é a arte que se firma após o período inicial
de fusão (é aí que temos o verdadeiro amor, a verdadeira "arte de amar"). No Há os dominantes e os dominados. As relações são jogos animalísticos. Co-
final, a via da compensação da relação precoce (uterina, arquetípica, fusional mummente dominantes escolhem como amigos ou amantes seres que gostam
terrena... não confundir com o Amor fusional enquanto Divino, Nada, aquele de ser dominados, quiçá protegidos. O ser dominante pode querer, a toda a for-
que inexiste) será mínima e os dois serão somente companheiros de uma aven- ça, forçar o auto-encontro pelo domínio do outro, e o outro mantém a seguran-
tura de crescimento irreproduzível. ça objectal interna através da protecção conferida pelo domínio do primeiro.
Vejamos uma dinâmica que agora se verifica muito: uma Mater dominante
 pode ser um resultado da sua própria Mater dominante, e pode querer domi-
nar um homem mais inerte, futuro Pai ausente. Mater dominante + Pai ausente
Estar em relação com os outros utilizando-os como meio de conhecimento podem resultar num filho com tendências homo-eróticas, porque o elemento
próprio parece ser a melhor via para perder a relação com os outros. Estar com feminino dominou o elemento masculino. A filha também poderia ter tais ten-
os outros e "ser os outros" é a melhor via de alimentar relações de perfeita dências (contudo, menos provável) se a dominância da Mater fosse de mote a
confiança. deglutir a auto-identidade da filha. Podíamos apresentar muitas outras dinâ-
Estar em relação com os outros e não usar a relação para o auto-crescimento micas, mas mesmo estas são aqui mostradas de modo extraordinariamente
é desperdiçar as relações, perpetuar o isolamento. Sem as relações é impossí- simplista, porque entra sempre uma infinidade de outras variáveis em jogo.
vel ao Eu conhecer-se, confiar, amar-se a si próprio, e, por consequência, amar É esta infinidade de variáveis que faz com que as dinâmicas existentes sejam
os outros. tão diversificadas, muitas vezes difíceis de se prever. O que, para uns, é, exte-
Portanto, como pode o Eu pouco seguro de si mesmo crescer por meio da riormente, a prova do "relativismo dogmático" da psicanálise (acusação muito
exploração das relações que arriscará, inclusive, a criação de falsas relações popperiana, muito científico-liberal-falsificabilista), e, para outros, será, exter-
(portanto, não relações) de auto-engrandecimento? namente, a prova de uma enorme complexidade, dificilmente concebível pelo
Parece-me que a solução reside na recíproca dedicação ao outro, em que o poder de uma previsibilidade de estudos de ciência clássica (eventualmente, até
Eu ganha pela dedicação que o outro confere ao Eu. O problema é que a pato- mesmo, pela previsibilidade dos estudos de carácter estatístico-probabilístico,
logia do Eu leva quase sempre à Egomania (senão à simples auto-subtracção), daí a importância do método hermenêutico e da lógica de "cada caso é um
o que faz com que seja impossível para esse Eu dedicar-se ao outro, simples- caso" que tantas vezes tenho defendido; note-se que o critério falsificabilista de
mente "escutar". Popper não é directamente adaptável à lógica dos estudos sociais...).
O Eu patológico perpetua a existência na concha, mesmo na suposta "re- As dinâmicas psicanalíticas são inesgotáveis e, simbolicamente, é possível

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conceber uma infinidade delas nas relações do dia a dia; na verdade, as di- dominante, aceite, entrosado, condicionado enquanto tal, e visto muitas vezes
nâmicas são constantes e estão presentes na mais espúria das preferências, como sinónimo de "moral" e "normal"), flexibilizar infinitamente a escolha do
atitudes, comportamentos. Tudo é susceptível de interpretação simbólica! Nada relativo (ou do paradigma) que mais se adequa ao contexto ou critério em causa
escapa à Psicodinâmica, Psico-Dialéctica das relações. (ou do paciente que temos em conta), enfim... ser livre para tudo ser, mesmo
com o risco de alcançar o estado de um Super-Homem a/imoral. Mas este é
 somente o Absoluto possível em vida, aquele estado que nos dá a sensação de
que somos capazes de tudo entender, de tudo explicar pela Razão, como se já
Também as relações terapeuta-paciente "padecem" de uma carga simbólico- os próprios conceitos não importassem, e até o insight ou a gestalt fossem já
sexual impartível, inextinguível por qualquer tipo de imperativo ético. A relação secundários (terão sido fundamentais durante uma boa parte do processo, um
clínica acarreta uma tensão proxémica, uma aprendizagem dual feita em duplo que requeria o sentir como peça fundamental), porque já não são as partes que
sentido. se unem e transcendem num Todo, já é o Todo que dá Luz às partes. Quando
chegados a este processo, uma certa tentação teomaníaca apodera-se de nós,
 e é até fácil vir a parir novos Dogmas, Verdades das quais nos consideramos
donos e senhores, porque entendemos ser uma só Verdade, quando, na reali-
Se o caminho interessa mais do que o Destino, é porque a meta utópica, o dade, tudo poderá ter sido só o excesso de um Paradigma, aparentemente ra-
estado de Amor Divino inalcançável, corresponde àquela "Singularidade" do Ab- cional, sub-repticiamente emocional. Ora, como vinha dizendo, este não é ainda
soluto que transcende trilhos, florestas, desertos, conceitos, a dor, o sofrimen- o Absoluto a que podemos chamar Divino, a meta derradeira, a Noite de todos
to, o tempo, a entropia, e até as iluminações e o próprio Nirvana, enfim... algo os Cosmos, "Deus", se lhe quisermos chamar isso, porque, se fosse, Nada seria
que é simplesmente incognoscível e, portanto, indizível, mentalmente cegante, já, e todo este sofrer ou ruminar já teriam cessado, já teriam sido projectados
que, mais a mais, se define por Nada ser. A aproximação ao Absoluto feita em na memória quântica dos tempos (no máximo dos máximos, este é somente a
vida carnal é "somente" aquele estado de "flexibilidade terapêutica" que permi- ilusão do Absoluto, um relativo que, na melhor das hipóteses, se aproxima do
te conceber que tudo É e Não É, se bem que, atendo um critério ou definição Absoluto por excelência).
precisa do que pretendemos caracterizar, é provável que um "É" seja mais ver- O que todas as formas de Conhecimento humano pretendem, incluindo a
dadeiro que outro "é"; e é assim que, pessoalmente, tenho comummente uma religião, a Espiritualidade, a ciência, a filosofia (sublinhe-se a "ocidentalidade"
atitude "terapêutica", segundo a qual afirmo a subtileza nos níveis mais densos destas divisões), é o alcance desse estado quântico, o que, ainda assim, signi-
e a densidade nos níveis de maior subtileza. O Absoluto, tal como o sinto, cor- fica que todo o Saber concorre para o Não Saber, que toda a Sabedoria pre-
responde à predisposição para aceitar a mais absurda das realidades, porque tende deixar de o ser, que todo o Sábio é um ignorante e pretende deixar de
ser Uno é aceitar a Unidade e a "Omni-potencialidade" de todos os "relativos". ser sábio ou ignorante. O sofrimento reitera o alcance desse estado. E o medo
Estar ao nível de um 'Nous' é conceber todas as possibilidades (até porque a do Nada reitera a manutenção eterna no caminho para esse estado. Entre os
Filosofia tudo permite, e a retórica, se esgrimida com sabedoria, e também com dois está uma infinidade de possibilidades, onde podemos colocar o homem,
alguma corporeidade emocional visível contagiante, pode ser usada para tor- os animais, as guerras, as linguagens, as línguas, o prazer, a dor, etc., enfim...
nar tudo verdadeiro, ou tudo falso, compreendendo os próprios conceitos de a vida em si-mesma que, não obstante a nossa meta de Libertação, é, ainda
"verdadeiro", "falso", "bem", "mal"...) - incluindo a faculdade de a subjectividade assim, viciante, francamente aditiva. Vício que se perfaz na eterna insatisfação,
contaminar o processo de Justiça dialéctica (porque as emoções - a Doxa - têm no eterno retorno neurótico, no eterno querer Ser, no eterno afirmar-se, tudo o
as suas preferências) -, permitir todos os sentidos, aceitar a totalidade de relati- que perfaz a tragédia da vida, a comédia das relações, o que enche as existên-
vos (e que o relativo entendido como real é somente o verdadeiro do contexto cias, o que permeia o movimento, que, mesmo não tendo qualquer sentido, é o

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preço a pagar para querermos crescer, saber, conhecer, experimentar, sofrer, simbólico, o demoníaco a mirar o etéreo, porque no Inferno se encontra o Céu,
sofrer sempre para não sofrer, nada ser, e, mais tarde, voltar a querer ser, num no Hades se visa o Olimpo, no inconsciente se reconhece o Eu, no Arquétipo
movimento indefinidamente perpetuado de evolução e involução, expansão e do Pater se constrói o Arquétipo próprio, o ser auto-fascinado, auto-siderado,
retroacção, o ciclo sem sentido, a circularidade que se confina numa gigantesca premente da paz há muito destinada, do Graal ou da terra prometida, da rosa
Roda da Lei, lei inquebrantável, em que todos representam um papel, um des- há longo tempo demandada e agora estendida ao outro, ao par, ao que já era
tino a cumprir, para que o Plano possa ser consumado... Mas que Plano este? Eu sem o sabermos, ao que queremos em nós perdido, para que o Amor mais
Que Sentido este? É que, apesar dos esforços dos filósofos, acabamos sempre puro surja no outro lado do horizonte, que é a noite de todas as ilusões, desilu-
por dizer o mesmo de maneiras diferentes, alcançando sempre o mesmo, na didas no acto copular dos pequenos deuses, agora Deus Uno, a totalização de
mesma incessante dúvida, e, perante isto, só vejo uma possibilidade: atacar a um Nada ser, Nada sofrer.
caixa de chocolates.


Devorar terras e latitudes de falésias conspurcadas,
A renúncia é ainda desejo. A morte, o Adeus, a ausência de retorno, é a certe- no curso do rio que flui no regresso à fonte,
za do Silêncio, da consumação do Eterno Presente, o alvor pacificante. A morte trilhar sonhos e perspectivas,
do Ego é também a vida do ser na renúncia ao saber, ao atrito, ao deliquescer. frustrar as sombras pervertidas,
Ser simplesmente é o destino! Ser aqui, agora e sempre, Ser sem ser, Livre sem querer ser o ninho de outro mundo,
o fantasma do passado, porque o Passado é o presente eternamente confirma- como gotas de um oceano flamejante
do, frugalmente obstinado. a exigirem ser um só rio de um só eco,
voz distante de um mundo de sons,
 primavera de um caos de notas preludiadas,
nota única de um sonho volúvel,
A Existência é a insistência do despertar no núcleo do ser, para que as crostas, o esquecimento das Eras,
as peles, se percam na nulidade da noite dos tempos. Na noite do ser, no seu a volúpia de uma teia dançante,
nicho mais íntimo, desértico, nuclear, irrompe a luz rósea do despertar, a "au- inexprimível pelo errante,
rora de róseos dedos" que se consome no prelúdio do fim de todos os inícios, irredutível à predação das feras.
de todas as manhãs douradas, para que a nova aurora sucumba na temporária
atemporalidade, na quase eterna irrupção das ondas de uma dança de infinitos. 
Nas trevas do ser encontram-se as trevas de todos os seres. No mergulho mais
íntimo da confluência dos demónios da mais ténue partícula interna é possível A terceira Idade, a Idade do Espírito Santo, o Quinto Império espiritual, venha
desocultar a mais exterior, nominal, monadística de todas as realidades, a Reali- a nós o vosso Reino (o destino do "lusíada" no termo da viagem/Odisseia ou
dade de todos e de ninguém, o númeno da unidade em que toda a bipolaridade da Guerra/Mahabharata/Ilíada/Eneida, a "mensagem" do peregrino, o fado da
terá sido siderizada pelo canto divino. É, então, preciso mergulhar muitíssimo "esfinge" na figuração da comédia de ilusões), o Espírito que somos já e nun-
dentro de nós para que possamos abandonar-nos. O interno é a via do externo. ca abandonámos, a ilusão de uma carne conspurcada pelo eterno retorno das
O íntimo é a via do despudor. A alienação pessoal é a via altruísta, como o Ego eras milenarmente sucumbidas.
implodido na explosão do Todo, o mal na via do Espírito, o diabólico a visar o 

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Políticos há muitos, políticos inspiradores há poucos, políticos inspiradores e somente na Singularidade, na diferença virginal, e que toda esta ilusão a que se
com bom coração, partiu o último deles. O mito diz que sofreu e mesmo assim chama Sociedade, assim como as suas Elites e Autoridades, estão muito longe
perdoou. O mito é a verdade do silêncio do homem que não existe; existiu, de terem sequer a consciência necessária ao "desvelar".
voltou à Origem, à Paz depois de um longo percurso de luta!! E o mundo já não Diga-se, em boa verdade, que aquilo que escrevo agora não é necessariamen-
é o mesmo. E já estaremos quase esquecidos quando a imagem do homem te algo sobre o meu EU, mas mais sobre um estado impermanente de "espírito",
ainda permanecer no Eco da Esperança, que é aquilo de que o planeta precisa. que de Espírito verdadeiramente pouco tem. Mas tinha de dizê-lo, pois este
Descansa Madiba, que nós te seguiremos, na vida, na morte, no sono, no sonho! acto de escrita acordou o desabafo relacionado com os actos de escritas - entre
[escrito no dia da morte de Nelson Mandela, 05/12/2013, publicado no 'Público', outros - que têm preenchido os meus mais recentes anos.
dia 10/12/2013] Devo dizer que algo que, de algum modo, expresso na minha obra é o con-
flito entre dois lados que existem em mim, e que honestamente não poderia
 deixar de referir: o lado Espiritual, que acredito ter dominância, e que apela aos
Valores e à Verdade, algo que existe em mim por Necessidade não redutível a
Sentes-te pequeno, queres ser lembrado na imortalidade. Fazes a Obra, tor- qualquer possibilidade de exorcismo psicanalítico; e o lado material/saturnino,
nas-te grande, imortalizas a tua ilusão. E que a ilusão, a grandeza e a eternidade que tenta reduzir o lado Espiritual à necessidade de o pequeno homem que
te sejam concedidos, merece-los se a Obra une, se criaste Amor! sou procurar as Estruturas do Espírito para se preencher e reificar, tornar um
Grande Homem.
 O Espírito existe per si ou é a compensação de um processo interior? A minha
procura filosófica incessante pode ou deve ser reduzida a um processo fantas-
[Texto de auto-apresentação, no contexto de integração na Maçonaria]: mático interno?
Escrever este texto nesta fase na minha vida parece, de algum modo, vir criar O que é certo é que a minha vida sempre esteve cunhada com a procura da
um certo conflito comigo mesmo. Numa altura em que me preparo para publi- Verdade, e esta sempre valeu por si e pela Objectividade que a mesma reitera,
car aquele que penso vir a ser o meu derradeiro livro, a ideia de escrever surge independentemente de existir um qualquer conflito edipiano que marca essa
em mim com uma liberdade que há muito tempo não sentia. É que, perante procura. A procura em questão sempre me marcou, tanto numa infância "dife-
tantas desilusões face a uma possível compreensão do que publico, tomei, pre- rente" de "bullizado", quanto na adolescência parcialmente reprimida, quanto
cisamente há dias, a decisão final de interromper o processo de escrita de livros, na vida adulta em que actualmente me encontro.
que o mesmo não é dizer que deixarei de escrever ou pensar... tal seria, para Os livros sempre foram a minha grande companhia. Claro que também amei
mim, impossível. Desilusões, umas após outras face ao mundo, desde sempre e fui amado, claro que também tive as minhas tropelias físicas, e claro que tam-
e desde muito cedo... E a desilusão maior é precisamente essa confirmação de bém sou um homem carnal com desejos e vigor físico. Foi até uma fase dessas
que o mundo em que vivemos é pura relatividade, uma Ilusão, um mural de que me levou a escolher o curso de Fisioterapia, se bem que, no fim do mesmo,
alegorias e de imagens que, de uma vez por todas, mostram ser mero "fumo". já estava virado sobretudo para os interesses psicanalíticos e da Psicologia e
Sei que, em parte, escrevia para agradar a uma certa Elite; nada de concreto, Neuropsicologia.
tem mais a ver com os fantasmas internos, aos quais tentamos sempre cor- Os interesses não têm sido poucos e todos os territórios do Saber têm passa-
responder. Mas, decididamente, depois de alguns acontecimentos em que a do por mim, sendo que a Filosofia tem tido sempre a primazia.
defesa da Ética e da Verdade, às quais dou a prioridade absoluta, pareceu ser Em 2012 e início de 2013, depois de uma rápida passagem pelo materialismo
tentativamente derrubada pelos supostos homens da Cultura e da Elite, dou dialéctico e pelo pós-marxismo, acabei por abraçar o pós-modernismo, e, de
por mim, mais uma vez, a concluir que a Verdade mais pura, a existir, reside forma algo espontânea, acabei por "despertar" para a temática da Espirituali-

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dade. Percebi que aquilo que estava implícito na minha perspectiva de idade Queres retirar-me a religião?
pós-moderna poderia ter a ver com o mundo do Espírito... Poderá, alguma vez, a medicina
E isso levou-me a, até agora, com uma velocidade vertiginosa, a operar uma compensar-me na Ilusão?
grande revolução dentro de mim, o encontro mais verdadeiro, prístino, com Queres que seja montanha ou consciência,
aquilo que sabia ser o meu caminho. Nunca me senti tão próximo da minha caminho desperto, rei do coração?
essência como quando se começou a desvelar o mundo das Espiritualidades, Poderá a filosofia dar-me o consolo
um pouco como se estivesse, de facto, a viver uma anamnesis platónica. Tudo como o corpo da demência,
aquilo fazia sentido, tudo aquilo era tão óbvio, tudo aquilo era já o meu Eu, sem- como a poesia e a devassidão?
pre lá esteve e estava à espera de "algo" para despertar. A noção do Universo
demiúrgico, encarnado, como ilusório, a noção do Nous, o Arché, os Logoi, tudo 
isto que o meu lado saturnino pretende reduzir a uma projecção mental, mas
que, ainda assim, é tão Real, a Verdade no seu sentido tão axiomático, axial, a Queres retirar-me a clomipramina?
pura obviedade!... Obviedade, porque tudo isto era já o meu Eu (desde há vários Poderá, alguma vez, a filosofia
anos), mas precisava, de algum modo, da confirmação, como quem precisa que compensar-me na Ilusão?
lhe digam que "não está louco". Queres que seja montanha ou consciência,
Recentemente, consegui perceber que mesmo o meu lado saturnino não po- caminho desperto, rei do coração?
deria apagar o meu destino de conluio com a Verdade, até porque ela É o que Poderá o Espírito dar-me o consolo
É independentemente dos pré-requisitos psíquicos de quem a desvela. Estou como o corpo da demência,
ainda numa fase de identificação, cada vez mais árdua, do conjunto de ilusões como a poesia e a devassidão?
em que o materialismo e a sociedade ocidental me mergulharam. Processo que
já iniciei há muito, mas falta ainda a "desilusão" final!... Falta também a perda 
do meu próprio orgulho, da minha presunção, do meu Ego, se bem que estes
instrumentos me impelem à descoberta, me auxiliem no processo de Ser. Tudo Duvidar é só a consequência de um transtorno da serotonina. Ser inerte é só
com vista à visão da indiferencialidade das coisas, do que elas são verdadeira- o défice da dopamina. O amor ou o prazer preenchem o sangue de endorfinas.
mente na sua pura continuidade, num caos Divino que se disfarça de Ordem de Queres a felicidade mais pura? Busca a droga, o "paraíso artificial" embriagador,
um caos de relatividades. o ansiolítico e outras proezas da medicina: aí terás toda a metafísica necessária!
E, mais do que nunca, numa fase em que sinto uma nova pacificação do meu
ser, preciso de uma nova orientação, preciso de saber qual o próximo passo. 
Pois, difícil para mim não é compreender, difícil é saber para onde hei-de dirigir
o meu esforço, difícil é também encontrar outras pessoas que se encontrem no Não caias nas agruras do Espírito. Despreza os que tentam dar-te a consciên-
processo de desvelo, outras pessoas que possibilitem o caminho conjunto com cia. É tão bom ser simples, feliz na inanição, no objecto inerte da sobrevivência,
um Sentido... coisa egóica, no sentido em que há a procura da "compreensão", na escravatura dos dias de monocordia prazenteira. Sê feliz com o pouco que
mas também coisa supra-egóica, porque há a procura de algo mais. somos, que é tanto para outros. Recolhe da natureza tudo o que esta concede
da sua beleza Universal. Bebe os sons e as letargias, consente o teu corpo à
 preguiça mais odiosa, aos prazeres mais invejados. Deixa que o teu corpo expe-
rimente o sexo tórrido de uma poligamia orgulhosa, arrisca ser só o presente

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entontecido, deixa-te levar na alucinação uterina. Mergulha na Primavera da Ser louco sem implodir. Implodir sem o temer. Ser poeta e desprezar os tolos.
tua condição, aceita-te como és e expõe o teu destino com o orgulho do que é Tentar ser Tudo e sofrer por não o conseguir. Ter orgulho desse sofrimento!
único e irrepetível. Não tentes libertar-te de nada senão da infelicidade. Os filó- Deixai-me ser "Deus", deixai-me lembrá-lo a todos os pequenos!!
sofos e os sábios invejarão a tua liberdade. Tentarão dizer-te que não és livre,
que és somente um iludido, um vendido à perdição mundana, um degenerado 
involuído. Quando são eles os iludidos, os agrilhoados pelo pensamento, os
obsessivos categóricos que não ousam o prazer e a libertação, os conformados O pior erro das Ciências Sociais, Humanas e Espirituais: tentar compreender
pelo senso de uma obrigação: a de se libertarem, quando a sua própria ilusão e legislar aquilo que não é regular, legislável. A cada um a sua própria "receita",
os impede de ver nessa "liberdade" a busca do conforto, da satisfação, a mesma a cada um a sua própria dinâmica, a cada um o seu próprio caminho, a cada um
que "os simples" já possuem na adaptação a um mundo "normal" no qual os o seu próprio destino.
filósofos se sentem "estrangeiros", desadaptados, inadaptáveis.


Ser homem, força telúrica de um só sentido, dimensão definida de um só des-
Ser poeta, trilhar inexoravelmente o caminho da loucura, da liberdade de ser tino, condição, montanha própria, como quem aceita a limitação de se ser Eu
transtorno, do domínio de todos os caminhos possíveis como quem adia inde- simplesmente, máscara vencida, correspondida por si mesma, vendada no seu
finidamente o encontro do que nem chega a ser demanda, roçar a Verdade e prazer, na felicidade que é só o prazer mantido, projectado, antecipado. Desis-
mostrar-lhe a língua, provocar os deuses com a subtil irrisão, ser Atena de mil tindo de ser Super-Homem, demiurgo, Deus, e ser apenas o peso próprio, que
formas e Ulisses de mil ardis, alquimia sem destino, obra ao negro provocatória, é já tão difícil de suportar. Aceitar as fronteiras do mundo, poder ser somente
o caos de mil e uma noites, consentindo adiar a diluição, mergulhar no eterno a ilha própria, a lei própria, o deus de si próprio, e nem isso sequer... aceitar a
de formas lugubremente consentidas, preludiar o infinito de explosões de cos- degradação, o momento da perda, o instante em que a insignificância, o erro, a
mos infinitamente transformáveis (em crescendo e descrescendo...), cosmos derrota se apoderam de nós. Ser homem simplesmente, fazer o luto da peque-
dentro de cosmos, em que o mais pequeno do mais pequeno possui infinitas nez, ter orgulho de ser pequeno, ser e não procurar ser mais, ser a dúvida e não
latitudes, dízimas infinitas de cores impossíveis de nomear. O poeta é o viajan- procurar corresponder-lhe, tolerar o desconhecido e viver a magia de um mun-
te, o peregrino de uma viagem de deboche: o deboche de todas as dimensões do que é feito de véus, infinitamente permutáveis, infinitamente escamáveis.
possíveis, de todos os Universos que criam entre si pontes inumeráveis. Mas Ser Eu e agir na grandeza da certeza de querer ser Eu somente, poeta da nossa
quais Universos? Quais pontes? Não há limites, não há dimensões, não há no- falésia, do nosso pequeno monte descoberto, do nosso carvalho suportando
mes nem escadas nem mapas nem esquemas, há somente o movimento per- a agrura do tempo, as tempestades de lágrimas, os rios de vento. Para que
pétuo, a dança de todas as virgindades, o poeta como ovo imaculado de todos surja finalmente o momento, o segundo quase perdido do encontro, encontro
os ovos de todas os germes possíveis. O caos, o Nada, as trevas de todas as próprio no encontro com o outro, as defesas perdidas, as muralhas desempare-
tempestades, de todas as tragédias, de todas as epopeias... Transpõe tudo isto dadas, o segundo já perdido do amor incondicional, de um "ouvir" da amizade,
até ao limite do indizível e encontrarás o Poeta. O verdadeiro poeta não escreve que é o instante da pura redenção, o único segundo humano. Aqui terás sido
com palavras... não escreve sequer... Espírito, e a Razão, os ritos, as crenças, as filosofias, os paradigmas, a arte e os
livros, tudo isto terá sido tornado inútil, matéria estéril que atrofia as relações
 de homens estupidamente racionalizados. Ser homem, não ser Civilização. Ser
homem, coração encontrado na ilusão.

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 Querer assustar a Verdade,


como quem a apanha no momento dúbio,
O sol remete para o ocaso todas as esperanças de ver a luz na frugalidade do é querer o amor e o transtorno da ansiedade,
olhar reflectido nas águas túrgidas, empoladas pelos ciclos da vida nocturna. Na E é tão fácil ceder, conceder na teimosia,
noite, a dúvida desperdiça-se em mil tentativas de vivificar a ânsia da vida dor- partilhar o sono com as tardes há muito idas
mente, o estertor do sonho recria o prurido de matérias e ferrugens, putrefac- da inocência de outros tempos,
ções da carne divinizada pelo som perdido no eco litúrgico da poeira cósmica, como a infância de outras Eras,
do leite derramado pelo arco-íris da matriz tecedora do mapa dos universos de que é só o momento do mistério,
leis caotizadas pela dispersão de olhares perdidos na temeridade do esqueci- o que move a urgência de querer ser,
mento. Recria nos teus poros o leito de todos os céus esculpidos pelas mentes de querer voltar ao primevo Império,
bárbaras da Torre de Babel, retém a liberdade dos povos na aurora da tua pai- de urgir no tempo prometido,
xão, manifesta em ti o princípio de um acorde de nostalgia, como um oceano que é a paz de onde algures me retiraram.
de nuvens a projectarem a sombra merecida no mar de ácidas lavas, retorna ao
vulcão fulgurante que projectas no teu olhar, sucumbe ao amor transtornado Sê criança, não ouses crescer,
dos loucos que rugem pela voz do vento da paixão, preludia a estocada funesta Trai todas as expectativas, tudo o que pedem,
dos sonhos corrompidos pelas grilhetas da tua própria misantropia, esgrime o Trai-te a ti mesmo não traindo a tua ilusão,
desejo perdido no ódio à tenacidade, Mergulha no sonho, nele permanece,
preenche o vazio dos que odeiam arqueologias, Sê grande em ser pequeno,
tentaculiza a verdade dos sóis e das engrenagens, Ser homem simplesmente,
recua perante o frio enchendo-te da sua luz, Como quem quer ser feliz somente,
sê livre, sempre, aqui, em todas as realidades, Não pensar, não ser transtorno,
mata a tentação de te escoares em vis barragens, Ser só a terra, e as tardes douradas,
mata a tentação de não seres o caos merecido, A emoção de ser sentindo,
a loucura dos grandes, o crime enaltecido, Sem Razão, só distracção,
suspende a tua lei, levita, levita sempre, Ser Eu mesmo, sem disso duvidar,
suspende a gravidade, suspende a tua mente. Ser Eu mesmo, e afirmar o orgulho de o ser,
Ser Eu mesmo, e não ambicionar,
 Ser Eu mesmo, e nunca despertar,
Ser Eu mesmo, o guardador de rebanhos,
Descansa, cessa de buscar, Tudo ignorar, tudo ser,
de perder o fio da vida, Ser o orgulho de não querer saber,
a ilusão enternecedora. de não me importar sequer por não querer saber,
Não procures explicar, de não me importar com seja lá o que for,
Ser deus ou devaneio, senão com a felicidade e o egoísmo dos simples,
quando a Vida é já tão curta da criança mais plácida,
e o seu fluxo perde a tenacidade. Agnus Dei despido de sacrifício.

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Entro no Inverno, deito-me, prenuncio a noite de mim, a noite de todos os


mins, nesta prometida hibernação, nesta nostalgia do Absoluto. Boa noite e
até à próxima manifestação...

21 de Dezembro de 2013

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