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Nos Caminhos da Fé: São Sebastião, meu padroeiro!

Por Rayanne Melo

Legenda: à esquerda Maria Luiza, ao centro Luane e à direita Rayanne. Foto: Acervo
pessoal

12 de janeiro de 2002

Uma tarde agitada para os padrões normais da minha família materna, desde manhã,
estávamos concentrados em receber o santo [São Sebastião]; minha mãe e tias na preparação
do almoço na cozinha para aqueles que chegavam com o santo na zona rural. Enquanto a
casa pequena enchia de pessoas desconhecidas para mim, o som pesado da zabumba e
cada batida parecia meu coração entrando em sintonia com aquele momento, o
acordeão também acompanhava uma sinfonia conhecida por mim.

“Na Glória do Céu oh São Sebastião


Salvai vosso povo, fazei o cristão!”

Era a anunciação, a hora do almoço chegava, mas é claro beijamos o santo, fazia algumas
orações e logo nossas mães despachavam para o almoço antes dos músicos aparecerem. Comi
o meu pratinho e fiquei pela sala acompanhando a chegada da banda e olhei atentamente
aquilo com olhos curiosos de uma criança de seis anos, por volta de umas 16h, minha mãe
me chama para arrumar e ir até o local onde sairia a procissão, na casa de Seu Manoel
Correia. Nesse dia, fui com minhas tias e primas até o lugar, enquanto elas arrumavam com
as roupas de santos e anjinhos, as moças mais velhas pegando o estandarte, a minha maior
vontade era estar ali, queria participar naquela procissão, ser parte daquele momento era tanta
que, pela manhã, brincando no balanço do sítio do compadre do meu pai falava “Quero ser
anjinho, depois pegar na faixa…”, acredito muito provavelmente o santo ouviu as minhas
preces, dona Marisa, também noitária pegou uma roupinha para mim, vesti extasiada, sem
pedir autorização dos meus pais, também noitários, eu fui.
Por debaixo da blusa rosa com estrasses coloridos, uma saia jeans e uma sandália preta, uma
roupa de anjinho era posta, naquele momento, sim, senti representando a minha família.
Instruída a ficar ao lado da minha prima Luane vestida de Santa Terezinha, no seu lado
direito e no seu esquerdo ficaria minha outra prima Maria Luiza. Nessa hora, minha mãe
chegou e autorizou, às 17:10h saímos em direção a matriz na zona urbana. De um lado, várias
pessoas acompanhavam seus filhos, netos, por trás tinham jovens rapazes com o andor de
São Sebastião, o acorde dos instrumentos e as músicas cristãs era de um sentimento
inigualável. Naquele momento prometi um dia contar essa história quando ficasse mais velha.

Vinte anos se passam entre essa foto e agora, resolvi revisitar uma história de fé passado por
geração a geração. Uma história dos seus antepassados, onde a peste, a fé e a tradição elevam
Pilõezinhos como o município mágico para aqueles que entram em contato com essa
festividade.

Como tudo começou: a peste assola Vila de Santa Cruz

Há 101 km da então capital paraibana em 1855, Parahyba, a Vila de Santa Cruz pertencente
ao município de Guarabira servia como um posto de descanso para aqueles que iam até o
sertão do estado. Sua subsistência era proveniente dos engenhos ali contidos, principalmente
pelo açúcar da cana de açúcar, uma boa parte da população eram de escravos e alguns
homens livres que trabalhavam na agricultura familiar. Por ser uma vila dificilmente haveria
ali alguma forma de ter saneamento básico, o que até mesmo na capital não existia naquela
época. Com poucas casas entre a imensidão do verde da mata atlântica, um cruzeiro e alguns
engenhos, uma certa bactéria assolou e dizimou uma boa parte daquela pequena população.
A cólera, doença advinda da água contaminada, vem de uma bactéria conhecida como
“Vibrio cholerae”, ainda desconhecida pelos brasileiros e já conhecida pela Europa graças ao
médico Jhon Snow que vinha dizimar uma boa parte da população brasileira. No Nordeste,
Ceará e Paraíba eram os focos da peste.
Antigos contam que a doença chegou com um tropeiro em viagem para o sertão, sem saber
estava contaminado, espalhando entre o povoado, outros já contam, a falta de saneamento
básico, água contaminada fora responsável pelo contágio.
Não tardou para em poucas semanas boa parte da população ser contaminada, aos que
tinham dinheiro eram enterrados em caixões, aos que não tinham, redes para cobrir o corpo.
Não tinha mais espaço nos cemitérios para enterrar os mortos, sendo uma boa parte
enterrados em valas e vários corpos ao mesmo tempo. Era um ambiente caótico e a vila
parecia perder seus habitantes, certamente não era isso o que esperava Seu Pedro Dantas
Correia de Amorim, quando doze de seus parentes faleceram em menos em sete dias,
desesperado um dos homens mais ricos da região via sua família falecer, impotente diante
desta situação resolve pedir a intercessão de São Sebastião, santo que na tradição cristã é
invocado para guerras, peste e fome, em poucas semanas a cólera cessará na região.
Em agradecimento, ele tomará uma empreitada até Itabaiana com algumas jóias de família
para trocar pela imagem do santo. Em meio a terras batidas de barro e trens, o objetivo foi
alcançado com sucesso, a promessa poderia ser realizada, cuja girava em torno da construção
de uma capela e uma peregrinação nas regiões arrasadas pelo cólera na vila.
A sua chegada era aguardada por aqueles moradores e em procissão saíram até a divisa da
vila até Guarabira. Desde esse dia em diante por 166 anos cada noitário, cada habitante deste
município vem levando de geração a geração a devoção ao santo.

As noites: Procissão de fé nos quarteirões

A zona rural em sua maioria continha os moradores da vila que circuncidavam os engenhos
ali presentes, cada sítio o qual também foi contaminado pela cólera sai em procissão até a
igreja matriz, na primeira quinzena de janeiro. Uma rotina frenética, mas ela não começa pela
procissão, antes das nove noites de novena, cada comunidade se empenha ao máximo para
que a tradição se mantenha firme para as próximas gerações.
Muito antes de janeiro terminar, as pessoas procuram os responsáveis pela noite para pedir o
estandarte o que de certo modo é extremamente disputado, também é nessa época a
circulação de um envelope para os moradores ou conhecidos de moradores contribuir com
uma certa quantia para a festa que no dia da noite do quarteirão será remetido aos fogos em
comemoração a festa do padroeiro.
O dia da saída da procissão daquele quarteirão mal começa, entretanto é um dia antes que a
rotina daqueles responsáveis pela parte da organização se inicia. Ao matar a galinha de
capoeira, prato típico da culinária local para servir as pessoas, estas as quais são confiados o
santo para peregrinar na zona rural e urbana como também a sua família ou até mesmo
àqueles que moram e fazem parte da comunidade noitária da noite em questão. Rezas de
encaminhar na capelinha para as bênçãos recair nos moradores locais, preparação e separar
quem irá caminhar com o santo, quem irá ficar para ajudar no lanche ou arrumar o andor é
decidido com antecedência.

Na segunda noite, do dia 12 é a vez do Sítio Pedro Vieira assumir as rédeas. Desde criança,
nós filhos e netos de noitarios sabemos que é um dia especial. Nas minhas memórias nunca
perdemos uma procissão, pois como minha mãe, filha do noitário Mariano Melo, sempre fez
questão de que eu e minha irmã possamos estar sempre em conexão com as nossas raízes.
Como de costume começa com uma salva de fogos, em seguida pela manhã minha mãe e tias
vão até a casa do meu tio José Mariano fazer os preparativos do almoço, mas antes de contar
como funciona as partes, preciso voltar no tempo. Quando a jornalista em sua apuração se
depara com uma conexão de famílias e a noite. A ressurreição de uma noite e empenhos de
duas famílias.
Seu Manoel Correia um noitários do dia 12, cuja sua casa serve como ponto de partida para
procissão do dia 12, trouxe informações muito valiosas, até um certo momento sempre soube
de dois nomes fortes desta noite, Seu Manoel e Mariano, mas ao conhecer como essa parceria
que durou por mais de quarenta anos surgiu. Foi de uma grande valia.
- Seu Manoel, gostaria de saber como a noite ficou com a sua família?
- Desde o início da promessa que ficou com as famílias - adiante entra uma informação
importante para a jornalista, a participação da familia paterna até então desconhecida
de mim- Como no caso o seu bisavô João Guida, os meus bisavós, eram os noitários
de Pedro Vieira, ai passou para meu pai, ele faleceu.

Seu Manoel toma conta da noite desde seus quinze anos, lá se vão mais de sessenta anos no
comando junto também com o meu avô paterno Manoel Guida, logo após a morte do seu pai
E foi ele que trouxe a minha família materna, nesse entrelace de famílias e amizades, a
história ia sendo cruzada. Tio Zezé com seu rosto envelhecido pelo tempo, mas sua memória
tão lúcida como se os fatos acontecessem agora traz como a família Melo entra.
- Um dos noiteiros da noite veio falar com Mariano, a possibilidade da noite se
encerrar, Mariano disse que se fosse por ele não ia acontecer essa situação,
então ele me chamou e até hoje eu tomo conta a noite antes com ele, agora
com os filhos.

Desde de então há cinquenta e sete anos o almoço do dia 12 acontece na propriedade da


familia Melo, um almoço regado de festas, pois coincidentemente era aniversário de Luiza,
sua esposa. Para os filhos ficam as lembranças de uma noite de muita música e a casa cheia,
mesmo ela falecendo em 1997, a festa continuava e a memória também, pela aurora do dia
netos, filhos dos noitários e os moradores do sítio vão em peregrinação com uma imagem do
santo pela zona Rural que compreende o lugarejo e a zona urbana, neste momento é
reservado para as orações e agradecimentos ao padroeiro. Enquanto isso, as mulheres como
minha mãe e tias e primas ficam responsáveis para fazer o almoço e arrumar a chegada para
quem vem andando com o santo se abastecer. Para a família Correia, fica a responsabilidade
de ornamentar o andor com o santo, atualmente saindo de carro a cada noite e com o resto da
procissão. Tanto eu, como minhas primas fizemos parte como anjos, santas e pegar no
estandarte, no meu caso fora mais um promessa, mas nas demais vão desde promessas a
apenas a chance de fazer parte do evento.

Às 17:00h é o momento que a procissão sai, o som da zabumba grave, pulsa nos nossos
corações, o sax traz o contraponto doce entre os demais instrumentos da banda marcial. Com
onze estandartes, atualmente com duas bandeiras e uma faixa saímos em direção a matriz,
entre o verde da paisagem, o vestido caprichado das moças, entre as crianças como santos ou
até mesmo as meninas pequenas pegando a fita, esse é o cenário visto por mais de cem
pessoas, com o sol sumindo no horizonte chegamos a zona urbana, uma pausa para organizar
mais uma vez a entrada, desta vez vamos até a imagem de Frei Damião todo o percurso com
olhares atentos dos moradores que na janela de sua casa ou na porta preta homenagem ao
santo, não somente os moradores,mas curiosos de outros municípios sobre essa devoção
secular, no fim damos a volta até chegar a matriz,lá somos recebidos pela salva de sinos e a
espera de todos na praça para a novena começar.

Os fogos: Viva a São Sebastião!


Provavelmente o ápice da noite esteja nas mãos dos fogueteiros, um detalhe importante é o
município ser o celeiro de grandes fogueteiros, o show pirotécnico atrai olhares atentos de
todos os moradores e visitantes. Inúmeros nomes fazem parte, todavia Severino Galdino seja
uma das figuras mais importantes quando falamos desse segmento de fogos artesanais.
Genildo Azeredo é o quinto filho do fogueteiro desde sua infância ajudava seu pai na tenda
com a produção de fogos artesanais lembra de uma fala de seu pai:
- Só que meu pai dizia algo interessante: os fogos artesanais iriam se acabar”

E de fato sim, atualmente na festa a queima de fogos não é composta por fogos artesanais e
sim de fogos industriais. A cada noite no alto do morro após o fim da novena com as
badaladas do sino e a música do padroeiro é visto por todos a chuva de fogos, desde
bombas,a fogos tradicionais.
Uns anos atrás a festa tinha umas surpresas para os espectadores, como por exemplo balões
coloridos e com a imagem do santo, quem dominava esse momento era a noite de Amarelinha
com a presença de 25 balões e Camará, ambas disputavam em suas respectivas noites quem
soltava mais balão, atualmente balões não são mais permitidos a serem lançados, restando a
disputa entre girândolas, o que não sai da boca daqueles que veem afinal, uma queima de
fogos bem feita sempre atraiu aos nossos olhos.
Outro ponto de grande lembrança pelos antigos era a imagem de São Sebastião, conhecida
como peça, nela a foto do santo envolta a fogos era espetacular aos moradores e visitantes.

O secular: a igreja e sua preparação para a celebração

A igreja tem um papel fundamental na condução e na organização da festa, a matriz que


fica defronte a praça principal. Padre Joaquim está há três anos no comando. Natural de
Pirpirituba, município vizinho a Pilõezinhos, ele cresceu ouvindo falar dessa devoção. Antes
de ele chegar, Padre Joandersson fez uma grande revolução na festa. A imagem do santo, a
mesma da promessa, estava guardada na matriz, junto com uma relíquia, um osso do santo.
Para impulsionar cada vez mais a fé naquelas comunidades longe do centro urbano, o padre
teve a ideia de sair, com o santo, em procissão, começando na comunidade de São Francisco,
passando por 16 comunidades.
Na comunidade de Vila Padre Cícero, a saída por meio de carreata a abertura do novenário
com a benção do padre nos carros e motoqueiros da cidade, com uma missa celebrando a
volta do santo à Matriz.
Durante todo o novenário ficam responsáveis os quarteirões, animadores e os padres dessas
comunidades são nomeados de acordo com a disponibilidade de suas agendas. A festa do
padroeiro é tão relevante que os religiosos priorizam a festa.

– Os padres gostam de participar, como eles mesmo dizem quando recebem o convite, ‘Aqui
a fé é celebrada com fervor, com o testemunho de São Sebastião’.
Para o ano que vem a igreja promoverá algumas mudanças como por exemplo a noite de
Pedro Vieira entregará a relíquia para a comunidade das Lages e esta por sua vez a Vila de
Padre Cícero, outra mudança está na cavalgada instaurada no período do padre Joanderson
será revertida para um casamento comunitário. No demais, a igreja manterá o que vem
fazendo durante anos.
No encerramento, no dia 20, o dia de São Sebastião, a igreja faz uma missa com um salva de
fogos na certeza de que a fé não morrerá.

Memórias de moradores dos 166 anos de procissão

Existem diversas histórias de fé sobre a procissão. Uma delas ouvi, durante uma conversa
entre meu pai José Raimundo e seu Beto Mendes, noitário da primeira noite de novena. Eles
lembrando de como era a festa há uns 50 anos.
– Que memória o senhor tem da festa?
– Antigamente, tinha um pavilhão, feito de palhoça, e umas garçonetes, as meninas mais
bonitas, tinham leilões. O que fosse arrecado era da igreja. O pavilhão era de palhoça.

Entre lembranças está no dança das moças bonitas e na festa apenas regional com músicos
locais, como também a presença da Alvorada um pedaço de tronco levado pelos quarteirões
com rosas fincadas neles, antigamente ao chegar na matriz ele era posto em frente a matriz
até o fim da novena onde a população poderia pegar e levar algumas rosas para casa. As ruas
eram enfeitadas de bandeirinhas.
Os vestidos das meninas eram mais simples, pequenos detalhes, atualmente, os vestidos são
rodados em estilo princesa. Eu tinha feito, em janeiro de 2020, uma promessa. Se conseguisse
um estágio na área de jornalismo, levaria o estandarte de Santa Clara, padroeira dos
jornalistas, para a igreja. Levei, consegui e cumpri a promessa. Um momento de orgulho,
minha mãe, noitária, fez o meu vestido.

Uma outro dado curioso: um dos estandartes da noite de Pedro Vieira, já tem quarenta anos, e
passou por várias mãos.

No ano de _____, com a morte do pai de seu Manoel Correia, não houve procissão, apenas a
novena.

Será que vai ter fim?


Uma tradição centenária não acabará tão facilmente, a fé de uma família e de uma população
não acaba de uma noite para o dia.

A terceira geração, composta por netos dos noitários, vem assumindo a responsabilidade de
manter a tradição. Netos sempre dispostos a levar o santo nas peregrinações e, também, de
participar da organização.

Ana Caroline, neta dos noitários Manoel Correia e Mariano Melo, comenta, em conversas
trocadas no grupo da família.
– Acredito que continue, seria muito triste essa linda tradição acabar. O povo pilõezinhese é
um povo de muita fé!

Também acredito que continuaremos entoar aos quatro cantos o "Viva a São Sebastião". A fé
desse povo jamais será perdida, afinal, toda uma geração cresceu com essa história de fé e
passará para os seus filhos, netos e bisnetos.

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