Nº USP: 8547262
INTRODUÇÃO
O presente trabalho busca tratar em breves páginas acerca do lugar, papel e capacidade da
atuação do Direito Econômico na sociedade, com foco na relação entre o direito como instrumento
político e os preços, entendidos como expressão do valor, e este, por sua vez, como o nexo do trabalho
social em uma sociedade cuja forma do modo de produção se dá a partir de produtores privados - a
sociedade capitalista. A partir do delineamento de uma estrutura social que apresenta diversas tensões e
contradições, e da inserção do Direito Econômico no seio dessa estrutura – permeado, assim, por tais
tensões -, busca-se sustentar uma chave de leitura que permita ao Direito Econômico alcançar nos preços
os fluxos sociais de trabalho e riqueza, de modo a pensar seu controle não a partir de modelos parciais de
eficiência econômica, mas da compreensão material da totalidade social, objetivando contribuir para a
capacidade do Direito Econômico de cumprir com seus objetivos constitucionais.
Para o ser humano, o trabalho é social, tal como ele mesmo. Toda sociedade demanda uma certa
quantidade de trabalho para sua reprodução. Assim, tal como o produto de um trabalho que é social
implica uma dada maneira de distribuição social (ser distribuído entre os membros sociais), o mesmo
ocorre com o próprio trabalho. Toda sociedade apresenta, portanto, uma certa maneira de dividir o
trabalho socialmente, para a realização da totalidade do trabalho social. A divisão e distribuição do
trabalho (e dos meios de produção), justamente por ser trabalho social, se dá através de relações sociais,
das quais depende, também, a distribuição do produto do trabalho. A história é um movimento de
acontecimentos no tempo que se desloca, reproduz, modifica e, por vezes, rompe essas relações, dando
surgimento a outras formas de relações sociais. Os diversos tempos históricos apresentaram diferentes
formas de relações sociais, as quais marcaram o ser histórico de seu tempo, deram o aspecto essencial e
específico de sua reprodução1.
1
ALTHUSSER, Louis. Ler o capital. Vol. I. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980, p. 26 e ss.
2
RUBIN, Isaak Illich. A teoria marxista do valor. São Paulo: Editora Polis, 1987, p. 21 e ss.
3
OCTAVIANI, Alessandro. VIDIGAL, Lea. Preços Administrados: disciplina e experiência jurídica no Brasil
(homenagem a Washington Peluso Albino de Souza). In: Problemas de Direito Econômico: Estudos e Pareceres. São
Paulo. Editora Liberars, 2022. p. 3.
4
BALIBAR, Étienne. Cinco estudos do materialismo histórico. Vol. I. Lisboa, Presença, 1975. p. 96 e ss.
fenomênica e inteligível (e mesmo condição de existência) é o preço, é o nexo social das relações de
produção, transformado em uma informação que se transmite não de pessoa para pessoa, mas de coisa
para coisa, chegando à consciência de cada produtor e permitindo-lhe um cálculo mais ou menos
adequado para uma distribuição do trabalho que seja suficiente à reprodução social.
Assim, na sociedade do valor, ter valor implica a capacidade de movimentar o trabalho humano,
vencer no ser humano a resistência ao trabalho, pô-lo em ação. Daí chega-se à pergunta acerca de qual é
a direção desse movimento, ou seja, qual é a direção da produção e de sua distribuição. No capitalismo,
esse movimento é regido, em última determinação, pelo capital, sendo este o movimento do valor que se
valoriza. Se o preço é a informação do nexo social da produção, ele não é, entretanto, tomado em forma
pura pelo cálculo do capital. Ele é, na verdade, o componente básico do elemento principal de cálculo do
capital: a taxa de lucro. O capital desloca a força produtiva social para um ou outro setor a partir da
perspectiva de lucro. Está só existe, porém, no seio de um mercado, o que significa que o lucro direciona
o capital, e, portanto, a força produtiva, a partir da taxa de lucro, que resulta do fracionamento social da
produção (vez que feita privadamente) e, assim, da competição entre capitais nos diferentes setores da
economia. A perspectiva de lucro pelo investimento em determinado setor apenas pode ser tomada para
o cálculo e movimento do capital em face da concorrência com a perspectiva de lucro de investir-se em
outros setores. O valor será direcionado para onde puder se valorizar mais, a partir da concorrência entre
os diferentes setores econômicos. A distribuição mais adequada do trabalho para a reprodução social
depende, portanto, de um grau mínimo, suficiente, de concorrência no mercado. Problemas na
concorrência devidos a fatores como falhas de mercado podem significar, a depender de sua relevância,
em um estado de distribuição crítico, de transferência de valores que implique uma distribuição de
trabalho e capital problemática.
É preciso ainda, para completar este panorama, abordar os limites da sociedade, e, com isso, das
frações do capital que se colocam em concorrência. O capital apresenta uma potência globalizadora, de
forma que a produção social não pode ser entendida apenas no interior de sociedades isoladas. A
produção social no capitalismo se dá na sociedade global, a partir das múltiplas dependências econômicas
e dos fluxos de capitais e mercadorias. As sociedades, em outros tempos históricos tão diversificadas,
passam a se assemelhar cada vez mais, uma vez que suas formas nucleares das relações de produção
passam a ser as mesmas: o trabalho e seu produto, ambos na forma mercadoria; a forma jurídica de um
sujeito abstrato que reveste necessariamente tais relações; a forma política estatal, como terceira em
face dos agentes econômicos etc. Tem-se, assim, uma tensão entre a busca de maiores taxas de lucro para
a acumulação, resultando em tendências monopolistas, e a necessidade de distribuição do capital de
forma adequada, possibilitada por condições de concorrência que implicam em distribuições do valor
produzido proporcionais ao trabalho investido.
5
MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo, Boitempo, 2013. p. 124 e ss.
determinações cujo tratamento foge ao objetivo deste trabalho) a exclusão de parcela da população deste
sistema. Percebe-se, por isso, uma tensão, que se erige a partir do conflito entre duas lógicas distintas.
De um lado, a produção social capitalista é direcionada pela acumulação, de outro, há o ser humano e
suas necessidades.
Esse conjunto de elementos não se apresenta exatamente dessa forma na realidade concreta.
Trata-se, em verdade, apenas das determinações em última instância da totalidade social. O concreto real
manifesta ainda muitas outras determinações, que, no entanto, se estruturam a partir dessas mesmas
formas sociais fundamentais. Outras determinações vão se somando e construindo a variabilidade das
formações sociais concretas, e mesmo dos casos particulares dentro de cada formação social. As tensões
básicas subjazem a conjunturas mais ou menos harmônicas, bem como as formas do modo de produção
que estruturam um mercado que, em tal grau de abstração, apresenta um movimento desimpedido do
capital em sua distribuição nos diferentes setores econômicos, apenas são a determinação mais profunda
de um sistema social que, em sua concretude, se apresenta de forma muito mais irregular e com falhas
de mercado. Entretanto, as formas fundamentais não são desmentidas pela realidade concreta, apenas
realizadas6 por esta.
O Direito Econômico se insere no seio de tais tensões e formas sociais. O capitalismo, sendo um
modo de produção jurídico, porquanto estruturado sobre relações sociais que manifestam a forma
jurídica (já que a produção social é realizada por agentes privados que, ao equivalerem o produto de seu
trabalho pelo encontro entre suas mercadorias, equivalem-se a si mesmos, o que se manifesta na
equivalência de sua manifestação de vontade), é, ao mesmo tempo, regulado, contornado, desenhado
pelo Direito. Daí que perdemos um vislumbre fácil de um objeto próprio do chamado Direito Econômico,
vez que o Direito é fundamentalmente econômico. Por isso, ao querer expressar o sentido estrito que se
busca na junção das palavras “Direito” e “Econômico”, sem objetivar uma abordagem filosófica ou
sociológica, mas jurídica, indicamos não apenas um ramo específico, mas também, e sobretudo, um
método de análise, compreensão e abordagem do Direito. Poderíamos, talvez, dizer que o Direito
Econômico expressa uma compreensão política do direito. O Direito, elemento estrutural da forma
fundamental do modo de produção capitalista, é, assim, submetido à vontade política. A vontade política
6
ALTHUSSER, Louis. Sobre o trabalho teórico. Editorial Presença. p. 60.
instrumentalizada pelo direito é incapaz de superar o modo de produção que dá causa ao próprio direito,
mas pode impactar sobre ele, modificar seus fluxos de riqueza, privilegiar uns ou outros dos diversos
interesses. Tal é o motivo pelo qual a disputa entre capitais, e mesmo a luta de classes, luta pela
determinação política do conteúdo do direito, sem, no entanto, romper sua forma.
Essa compreensão do direito, da economia, da política, não pelos elementos que diferenciam
umas dessas instâncias sociais das outras, mas pela sua relação na totalidade social, afasta de pronto as
explicações parciais que os tomam em separado e que desembocam, na parte que lhes falta (já que são
explicações parciais), em algum tipo de metafísica, declarada ou pressuposta, de forma consciente ou
não. Nem existe um mercado por natureza humana, nem um direito produto de uma vontade, jurídica ou
política, que paira sobre o terreno da concretude social, guiado apenas por um racional absoluto. Ambos
se imbricam na estrutura da totalidade, e, por isso, o econômico é jurídico e o direito é econômico, bem
como a política age no econômico a partir do direito objetivando interesses de ordem, mediata ou
imediatamente, econômica.
Sendo o Direito Econômico, então, um método, tanto mais aprimorado pode sê-lo quanto for sua
compreensão do lugar que ocupa e de suas possibilidades. Como instrumento jurídico de opções políticas,
pode impactar a estrutura econômica (e, portanto, social), sem ser refém de dogmas econômicos, que
partem de modelos parciais e metafísicos. Olha-se então, não para o sistema fechado dogmaticamente,
mas para os reais interesses, que se instrumentalizam, também, por tais modelos dogmáticos. Estes,
então, são vistos em sua relação ao interesse que favorecem. O Direito Econômico consegue, assim,
alcançar, por detrás dos modelos jurídicos e econômicos, sistemáticos e morais, a realidade do poder que
dá causa a tais modelos, sistemas e discursos.
A produção social realizada de forma privada expressa a ligação laboral da totalidade social pelo
valor. Este elemento se manifesta, por sua vez, a partir do preço. É o confronto e comparação das
mercadorias como forma do produto do trabalho que faz manifestar um sistema de preços. O Direito,
estruturado a partir do sujeito de direito, comporta a existência do preço a partir da manifestação de
vontade individual (o que explica as teorias subjetivistas do valor, nascidas no seio da sociedade
capitalista, na qual a subjetividade por excelência é a subjetividade jurídico do indivíduo abstrato, livre e
igual). Na fase de regulação liberal do capitalismo, época na qual a lente jurídica privilegiada era o Direito
Civil, o entendimento do preço como fenômeno jurídico apareceu primeiramente focado na relação
intersubjetiva do contrato. As transformações do século XIX e, sobretudo, XX, implicaram uma maior
presença do Estado não mais apenas como força garantidora do direito privado, mas como potência
política chamada a tomar as rédeas de um processo que apresentava cada vez mais demandas que
escapavam à capacidade cognitiva do Direito Civil. Cada vez mais a presença do Estado como modelador
e impulsionador do desenvolvimento econômico tomava o lugar da crença na natureza do mercado,
compreendido como simples conjunto das vontades particulares. Ademais, a realidade ia se sobrepondo
às expectativas dos modelos econômicos liberais, demandando novos modelos que dessem conta de, a
partir de impulso político, efetuar mudanças necessárias no movimento das forças econômicas7. A crise
econômica, a tendência à concentração das forças produtivas, o crescimento de poderes econômicos
exacerbadores de falhas de mercado, bem como a guerra, exigia dos modelos econômicos, políticos e do
direito uma nova abordagem da realidade social. O Direito Econômico é o filho dessa conjuntura.
No que diz respeito ao preço, este não podia mais ser compreendido pela ótica do contrato entre
indivíduos isolados, como pura manifestação de vontade livre. Os contratos não se dão no vácuo, mas no
seio de constrições sociais diversas, o que implica que determinação de preço entre indivíduos apenas
pode ser compreendida inserta nessa estrutura. Além disso, necessário e urgente se fazia olhar para além
da declaração de igualdade do direito e chegar nas desigualdades reais, em alguns casos procurando
produzi-las ou amplificá-las, a fim de alcançar vantagens competitivas econômicas, em outros procurando
mitigá-las. O Direito Econômico, como método, passou a desenvolver uma forma superior de
compreensão jurídica dos preços, se comparado ao direito civil. O indivíduo vai deixando o primeiro plano,
que vai sendo assumido pelas estruturas sociais e econômicas8.
Não há, entretanto, no plano da consciência jurídica e política, uma superação do Direito Civil
pelo Direito Econômico9. Passa, sim, a haver uma coexistência, ora mais tensa, ora menos; ora com a
sobreposição de um, ora de outro. Não se trata de um jogo dado e construído a partir de discussões
acadêmicas. Não são os argumentos contra ou a favor uma maior atuação política do Estado sobre a
7
POLANYI, Karl. A grande transformação: As origens de nossa época, trad. WROBEL, Fanny, Rio de Janeiro: Campus,
2000. p. 166 e ss.
8
Conforme DE CHIARA, citado por OCTAVIANI: “a equivalência em inúmeras hipóteses se dimensiona em termos
dos interesses de coletividades ou categorias (...)”. em OCTAVIANI, Alessandro. VIDIGAL, Lea. Preços Administrados:
disciplina e experiência jurídica no Brasil (homenagem a Washington Peluso Albino de Souza). In: Problemas de
Direito Econômico: Estudos e Pareceres. São Paulo. Editora Liberars, 2022. pp. 3-4.
9
OCTAVIANI, Alessandro. O viajante e o consultor: Ascarelli, do Direito Privado ao Direito Econômico. In: Problemas
de Direito Econômico: Estudos e Pareceres. São Paulo. Editora Liberars, 2022. p. 2.
economia que geram esse movimento. Essa apenas é a expressão superficial de um movimento bastante
mais profundo, tectônico: é o movimento das próprias formas do capitalismo e sua consequência nos
regimes de acumulação, modos de regulação e na divisão internacional do trabalho.
No caso do Brasil, podemos verificar uma fase de tomada de força do capital nacional em face do
capital internacional, quando seu estabelecimento a partir da dependência de produtos importados sofre
um abalo nas primeiras décadas do século XX, rompendo cadeias produtivas e dando lugar aos interesses
do capital nacional que demandava a industrialização do Brasil. Esse movimento se dá sobre um terreno
no qual o modo de regulação se apresentava a partir de elementos em comum em grande parte do
mundo, o chamado período fordista do capitalismo. A crise desse período dá lugar ao chamado período
pós-fordista, o qual acentua a divisão internacional do trabalho de forma a privilegiar certos capitais das
nações centrais em detrimento das periféricas.
Em meio a todas essas tensões (entre acumulação e necessidades humanas – dentro do que se
compreende a luta de classes; entre os capitais nacionais competindo entre si e com o capital
internacional; entre estruturas jurídicas e concepções erigidas a partir de fases distintas do capitalismo)
se coloca o Direito Econômico. Na sociedade do valor, a maneira com que ele compreende o fluxo de
riqueza e a distribuição do excedente se transforma em meio a tais transformações estruturais, que
implicam regimes distintos de acumulação. No Brasil, o Direito Econômico busca fortalecer, a partir dos
anos de 1930, o capital nacional, tendo em vista o desenvolvimento industrial do Brasil e sua superação
como país agroexportador10, pautado também por uma ótica de mitigação do conflito de classes por meio
da inserção de camadas sociais mais vastas no circuito do trabalho e do consumo, bem como pela busca
de garantias mínimas aos trabalhadores. O coletivo se apresenta como elemento cognitivo privilegiado
do Direito Econômico. Tal fase deixou sua marca até o tempo em que o terreno no qual surgira havia já
se transformado pela crise do fordismo. A Constituição Federal de 1988 se coloca em grande parte, e
sobretudo no que diz respeito à Constituição Econômica, nesse lugar ideológico. O Direito Econômico
passa a lidar, então, de forma destacada, com a tensão colocada entre a concepção surgida de um período
fordista com aquela que se levanta sobre os interesses do período atual. Marca este tempo a acentuação
da divisão internacional do trabalho pela força do capital central, que, em crise, demanda por maior
10
Conforme Viviane Alves de Morais, citando a ideia de “sentido histórico” de Caio Prado Jr: “Conclui-se que esse
“sentido” seria a extração de riqueza sob as mais diversas formas, dedicadas a alimentar necessidades externas ao
território que, em tempos tardios, seria a República Brasileira (...)”. MORAIS, Viviane Alves de. Sociedades anônimas
e sociedades por quotas de responsabilidade limitada na República Velha. Tese de Doutorado. FD-USP, 2017, pp. 31-
32. O momento atual parece reafirmar esse sentido histórico pela posição na divisão internacional do trabalho
assumida cada vez mais pelo Brasil.
concentração e dominação. O discurso neoliberal é assumido por países centrais e, ainda que estes não o
pratiquem de fato11, é adotado, na prática, por países periféricos (inclusive como condição para o aporte
de capitais internacionais e inserção em grupos institucionais de Direito Público Internacional, tal como a
OCDE). O Brasil sofre, então, e a despeito de sua opção constitucional, um processo de
desindustrialização, passando a ser, novamente, visto como potência alimentar, como “celeiro do
mundo”, além de exportador de comodities.
Tal diferença impacta no Direito Econômico. Sua possibilidade de atuar sobre o controle de preços
permite-lhe impactar sobre os fluxos de capital e trabalho. Uma das vertentes dessa atuação se dá pelos
preços administrados. Outra, por exemplo, pelas formas de proteção da concorrência. Neste sentido, o
11
CHANG, Ha-Joon. Chutando a escada. São Paulo: Editora Unesp, 2004. p. 166 e ss.
artigo 36 da Lei de Defesa da Concorrência trata da possibilidade de coibir o aumento arbitrário dos lucros
(inciso III), bem como o abuso de posição dominante no mercado (inciso IV). Ambas podem implicar o
controle de preços, uma vez que os lucros podem ser aumentados pelo aumento do preço de forma a
torná-lo muito discrepante do valor, o que é possível caso se tenha posição dominante e estruturas de
mercado que impeçam, ao menos a curto prazo, a entrada de novos concorrentes. Se,
constitucionalmente, é dado um sentido à atuação econômica do Estado (conforme mencionado acerca
do artigo 3º da Constituição), sua concretização exige instrumentos técnicos complexos, onde acaba por
infiltrar-se a ideologia neoliberal, mitigando a opção constitucional para o Direito Econômico. A
possibilidade de controle de preços abusivos, tomado aqui a título de exemplo, é sustentada ou refutada,
em geral, por discursos ideológicos que se valem de modelos parciais (meio técnicos, meio metafísicos).
Evidencia-se isso pelo entendimento predominante de que a função principal do direito concorrencial é o
bem-estar do consumidor, o qual ora é dito alcançável pela “eficiência do mercado”12, não devendo os
preços serem de forma alguma controlados13, ora pelo seu controle, mas ainda assim tendo em vista o
interesse desta figura, o consumidor14, apenas parcialmente útil para a concretização real daqueles
objetivos constitucionais. Em um país em que grande parte da população é excluída do consumo, o
consumidor aparece mais como o elemento metafísico que dá às curvas de oferta e demanda a aparência
de bom funcionamento, o “homo economicus” dando conteúdo à metafísica da natureza humana de que
elas dependem.
12 PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos. Objetivos da proteção do consumidor e da defesa da concorrência. In: PFEIFFER,
Roberto Augusto Castellanos. Defesa da Concorrência e Bem-Estar do Consumidor. 2010. Tese (Doutor em Direito) - Universidade
de São Paulo, [S. l.], 2010, pp. 89-91.
13 MANKIW, N. Gregory. Principles of Microeconomics. 5. ed. Boston: South-Western Cengage Learning, 2009. pp. 325-326.
JENNY, Frederic. Abuse of Dominance by Firms Charging Excessive or Unfair Unfair Prices: An assessment, in:
KATSOULACOS, Yannis & JENNY, Frédéric (ed.), Excessive Pricing and Competition Law Enforcement, International
Law and Economics, Springer, 2018. p. 31. Veja-se, também, a declaração dos EUA, que, em uma conferência na
OCDE, na qual se discutiu a precificação excessiva em mercados farmacêuticos: “A alocação eficiente de recursos
baseada em preços é a razão fundante da política antitruste e de sua aplicação nos EUA, assim como outros em
outras jurisdições membras da OCDE. “Há um consenso geral de que o objetivo básico da política de defesa da
concorrência é proteger a competição como o modo mais apropriado de assegura a alocação eficiente de recursos
– e desse modo eficientes resultados de mercado – nas economias de livre mercado.” Nos EUA, a preocupação é
que proscrever a precificação excessiva possa interferir no mecanismo de determinação de preços próprio do
mercado e nas importantes funções de sinalização e alocação de recursos que ele leva a cabo.” (tradução nossa)
(OCDE, 2018, p.4). Para uma compreensão dos argumentos principais contrários ao controle de preços excessivos,
leia-se RAGAZZO, Carlos Emmanuel Joppert. A Eficácia Jurídica da Norma de Preço Abusivo. Revista de Concorrência
e Regulação, v. 7/8, 2012. Disponível em: https://www.concorrencia.pt/sites/default/files/imported-
magazines/CR07-08_- _Carlos_Emmanuel_Joppert_Ragazzo.pdf. Acesso em: 20/08/2022. p. 4.
14O'DONOGHUE, Robert & PADILLA, Jorge, Excessive Pricing (9 Novembro, 2019). The Law and Economics of Article 102 TFEU, 3ª
Edição, p. 10.
O Direito Econômico precisa, portanto, ter em vista seu lugar na estrutura da totalidade social.
Sua força cognitiva deve estar pautada não apenas em modelos parciais feitos para a gestão do capital,
mas na realidade das relações sociais. O valor, o capital, o lucro, não são elementos da natureza humana
que se colocam como já dados em modelos matemáticos que tentam vestir-se com a roupa da razão
técnica universal. São, em verdade, expressões de relações sociais. Não faltava ao antigo faraó
racionalidade econômica para perceber que melhor do que planejar seria deixar a economia ao livre
mercado. Tampouco lhe faltava criatividade para imaginar que poderia fazer do papiro um papel moeda
e facilitar assim a troca de mercadorias. As relações sociais produtivas de então não eram dadas na forma
da mercadoria e, portanto, tampouco na do valor. Estas são expressões não do progresso da razão e
técnica humanas, mas de uma específica forma de relações sociais, que operam de forma privada o
trabalho social. Deve o Direito Econômico, portanto, perceber a especificidade do tempo histórico que o
gerou (e que também gera tais modelos econômicos que assumem, como sempre aconteceu com o
pensamento ao longo da história, os caracteres próprios do seu tempo histórico como se eternos e
universais fossem). Deve perceber nos preços o valor, e neste o elemento de interconexão do trabalho
social, implicando nos fluxos de capital e, portanto, na distribuição da riqueza. Deve alcançar estes fluxos
de riqueza, a fim de ser capaz de perceber a quem eles beneficiam, de poder atuar sobre eles não
conforme modelos abstratos de eficiência, mas a partir da realidade social e dos objetivos políticos que
lhe são dados.
REFERÊNCIAS
ALTHUSSER, Louis. Ler o capital. Vol. I e II. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980.
BALIBAR, Étienne. Cinco estudos do materialismo histórico. Vol. I. Lisboa, Presença, 1975. p. 96 e ss.
MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo, Boitempo, 2013.
MORAIS, Viviane Alves de. Sociedades anônimas e sociedades por quotas de responsabilidade limitada na
República Velha. Tese de Doutorado. FD-USP, 2017.
OCDE. Excessive Pricing in Pharmaceutical Markets - Note by the United States. In: 130TH MEETING OF
THE COMPETITION COMMITTEE, 2018, França. Note [...]. [S. l.: s. n.], 2018. Tema: Excessive Prices in
Pharmaceutical Markets, Disponível em: https://www.ftc.gov/system/files/attachments/us-submissions-
oecd-2010-present-other international-competition-
fora/excessive_prices_in_pharmaceuticals_united_states.pdf. Acesso em: 18/07/2022.
OCTAVIANI, Alessandro. O viajante e o consultor: Ascarelli, do Direito Privado ao Direito Econômico. In:
Problemas de Direito Econômico: Estudos e Pareceres. São Paulo. Editora Liberars, 2022.
OCTAVIANI, Alessandro. VIDIGAL, Lea. Preços Administrados: disciplina e experiência jurídica no Brasil
(homenagem a Washington Peluso Albino de Souza). In: Problemas de Direito Econômico: Estudos e
Pareceres. São Paulo. Editora Liberars, 2022.
O'DONOGHUE, Robert & PADILLA, Jorge, Excessive Pricing (9 Novembro, 2019). The Law and Economics
of Article 102 TFEU, 3ª Edição.
RAGAZZO, Carlos Emmanuel Joppert. A Eficácia Jurídica da Norma de Preço Abusivo. Revista de
Concorrência e Regulação, v. 7/8, 2012. Disponível em:
https://www.concorrencia.pt/sites/default/files/imported-magazines/CR07-08_-
_Carlos_Emmanuel_Joppert_Ragazzo.pdf. Acesso em: 27 fev. 2022.
RUBIN, Isaak Illich. A teoria marxista do valor. São Paulo: Editora Polis, 1987.