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“ANIMUS UNIVERSUM”

Todos os direitos reservados ao autor © Lucas Anelli, 2022


Número de registro de obras: 312244587

Lucas Anelli Cunha


2ª edição

Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida ou


utilizada sem permissão do autor Lucas Anelli, exceto pequenos
trechos em artigos, resenhas e banners, exclusivamente para
divulgação do livro.

Revisão: Lucas de Souza


Capa e arte: Jady Forte – Desteatrando (J. P. Forte)
Diagramação: Lucas Anelli

Essa é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com fatos


reais é mera coincidência.

A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei


nº.9.610/98 e punido pelo artigo 184 do código penal.

Criado no Brasil
4

Para todos aqueles que buscam apenas ser


(Lucas Anelli)
5

Carta ao leitor 6

Capítulo I 8

Capítulo II 15

Capítulo III 30

Capítulo IV 51

Capítulo V 72

Capítulo VI 85

Capítulo VII 101

Capítulo VIII 126

Capítulo IX 145
6

Carta ao leitor
Um escritor, às vezes, é como um minerador. Ele cava
os mais profundos recantos da mente em busca de algo
precioso, seja a mente de outros ou a dele mesmo. E por mais
que se esforce, é comum o trabalho não ser recompensado.
Porém há momentos em que vamos tão ao fundo desse lugar
misterioso, fonte de questionamentos infinitos, que é inevitável
se deparar com algo extremamente valioso.
Mas o trabalho não para por aí, pois uma ideia é como
um diamante bruto que requer um bom trato na lapidação. E só
depois de muito esforço, dedicação, pausas, incertezas,
reformas e, às vezes, até lágrimas, sentimos que a ideia está
pronta para ganhar o mundo.
Foi inevitável compreender melhor as emoções
humanas enquanto escrevia este livro. A cada novo
personagem, um sentimento diferente se apresentava e ficava
ao meu lado, ensinando tudo que era possível. Em certos
momentos o ensinamento foi tão intenso que eu mesmo não
pude conter a emoção.
Talvez você não se identifique tanto com a história e
ache ela OK. Talvez você nem mesmo goste do que está lendo.
Porém, se eu compreendi corretamente o que Jô quis me
mostrar com sua jornada, você poderá chegar ao final dessas
páginas com uma nova visão das pessoas, de si mesmo, do
mundo e até da vida.

Boa viagem
Lucas Anelli
7
8

Capítulo I
9

Nada...

Vazio...

Escuridão sem fim…

Por que eu estava ali?

O que estava acontecendo?

Quem… Quem sou eu?

Há quanto tempo estou aqui?

Tempo... Onde está você?

Tem algo aqui… Posso sentir…

Meus pés… Está subindo por eles… É quente…

Minhas pernas… O calor… Tem uma... Energia… O que


é isso?
Está na minha cintura… Meu tronco… Está frio agora…

Um soco em meu peito… No coração… Batendo…


Pulsando… A energia… Isso…

Meus braços sentem agora… Os dedos… O sangue…


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Ela continua… A energia... Acordando meus sentidos…


Ansiosos para chegar ao topo…

Subindo… Subindo…

Acorda… Você precisa acordar…

Acorda…

ACORDA!

Meus olhos se abriram aos poucos. Tudo estava


embaçado, sem foco. Um misto de sensações bagunçava
minha consciência. Pisquei algumas vezes, esfregando o
rosto com as mãos para tentar aliviar.
Estava deitado na cama do que parecia ser um
quarto comum; o armário logo de frente com as portas
abertas revelava seu interior; uma mesa à esquerda da
cama mostrava um caderno aberto.
Seria meu quarto? Por que eu não lembrava?
Quem sou eu? Qual meu nome? Onde eu estava?
O abraço sufocante do desespero me prendeu de
súbito e algo pareceu ganhar força no mesmo instante.
Achei que fosse a visão fraca me pregando uma peça, só
que havia uma espécie de névoa pairando ali. Não tinha
uma forma física, era apenas treva. E aquilo estava
consumindo a pouca luz do quarto, fazendo com que ela
lutasse para conseguir se manter.
11

— O que é isso? — indaguei em voz alta.


— É exatamente o que você precisa descobrir. —
Segurei o grito na garganta ao ouvir a voz.
A sombra surgiu ao lado do armário, mesclado
quase totalmente ao ambiente. O choque maior foi
perceber que aquela pessoa não tinha corpo. Eu não
conseguia ver seus olhos, seu rosto, apenas a silhueta de
um homem (ou seria uma mulher?) composta de uma
mistura de sombra e uma matéria escura desconhecida
para mim, mas que lembrava muito o céu noturno.
— Quem… O que é você? — perguntei, incapaz de
disfarçar meu espanto.
A figura se aproximou e sentou na cadeira da
mesinha.
— Quem ou o que sou não importa no momento,
porém, para facilitar nossa relação, peço que me chame
de Umbra.
Seu tom de voz combinava com a sua aparência:
sombrio, ambíguo, quase indefinível, como se houvesse
uma dualidade constante, assim como suas palavras.
— Umbra… O que está acontecendo? Onde
estou?
— Você não sabe? Não se lembra de nada? —
perguntou.
Balancei a cabeça em negativo.
— Qual a última coisa que se lembra?
Vi a escuridão do lugar e me lembrei do vazio que
sentira antes de abrir os olhos. O desespero novamente
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me abraçou. Uma sensação de pânico percorrendo meu


corpo como espinhos ao me recordar de como era o nada.
A treva presente ali se intensificou, reagindo ao que
eu sentia, fazendo a escuridão aumentar. Umbra pulou da
cadeira, agarrou meu rosto com as mãos e virou seu rosto
para cima. A escuridão se tornou um redemoinho e
começou a entrar em sua boca. Ao mesmo tempo, sentia
meu rosto esquentar levemente. Umbra estava sugando a
treva. Do quarto. De mim. De toda a sombra que fazia
parte de sua composição, eu sabia que havia luz naquele
ser. Aquele calor familiar afastou o desespero que havia
me dominado.
A umidade em meus olhos se acumulou e não pude
mais controlar. Chorei de alívio ao sentir o peso ir embora.
Umbra me soltou, deixou uma mão no meu ombro
esquerdo e ficou ali, mostrando sua disposição em ajudar.
— O que foi isso? — consegui perguntar após
algumas lágrimas.
— Isso… É o Fuscus — explicou, se largando na
cadeira. Parecia cansado agora. — É a…
Materialização... De tudo que é negativo — completou,
ofegante.
Limpei os olhos com as costas da mão,
examinando meu companheiro e tentando compreender
aquilo.
— Mas o que é aqui? Como você consegue fazer
aquilo? Eu não entendo.
Umbra levantou a cabeça, e sua face inexpressiva
me encarava, analisando.
13

— Creio que há uma razão para tudo, afinal… —


Umbra parecia refletir sobre algo.
Ele se ajeitou na cadeira e fitou a porta, enquanto
eu olhava sem entender nada. Finalmente, depois de
alguns minutos, ele respondeu:
— Primeiramente, entenda que está em um mundo
além do que talvez você possa achar normal. Este quarto
ao qual estamos foi feito apenas para te despertar aos
poucos. Você ficou preso por um tempo considerável
dentro do Fuscus e precisava descansar. Esperava que
você pudesse voltar a si com falhas na memória, mas não
imaginei que fosse esquecer quem é. Porém, levando em
consideração o que te aguarda, isso pode ser útil.
— Espera, então você sabe quem eu sou? —
Indaguei.
— Sim, seu nome é Jô.
Ao ouvir meu nome, um arrepio percorreu meu
corpo. Aquilo me deu uma espécie de certeza, um senso
de propósito caído no limbo de minha amnésia. Contudo
sentia que faltava algo, uma parte grande de mim.
— Ah, estamos tendo resultados, que ótimo —
comentou Umbra ao ver minha reação. — Imagino que
ainda não se lembre de muita coisa, não é?
— Não… apenas me sinto… melhor — confirmei.
— Entendo. Era o que eu esperava. Creio que
assim será mais proveitoso no que te aguarda. Há outros
que irão auxiliá-lo de agora em diante, Jô. Você pode não
se lembrar deles, mas fique tranquilo. No tempo certo,
14

suas perguntas serão respondidas. Por ora, confie nos


seus sentimentos, e, acima de tudo, confie em você.
Umbra se levantou da cadeira, foi até a porta e
girou a chave. Uma luz azul clara surgiu por baixo.
— Prometo que logo tudo fará sentido. Agora vá.
Sem esperar que eu me manifestasse, ele me
agarrou pelo braço, abriu a porta e me empurrou para fora.
E comecei a cair.
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Capítulo II
16

—AAAAAAAAAAAAAHHHHHHHH!!!!!!
Foi só o que eu pude dizer antes de sentir o chão.
Por sorte, o local onde aterrissei era extremamente fofo,
como um travesseiro. Eu me sentei para me recuperar do
susto, tateando aquela superfície macia e tentando
entender ao mesmo tempo onde me encontrava.
Era outro reino, a começar pelo fato de que havia
um sol, apesar de não ser nada comum. Eu conseguia
olhá-lo diretamente sem ferir meus olhos, mesmo com
toda aquela luz. Isso facilitou muito para que eu pudesse
entender o que estava vendo, pois sua aparência era
completamente única, estranha. Era como se aquela
estrela fosse obra de uma criança. Havia um redemoinho
que começava no centro e formava um círculo laranja e
amarelo, terminando em 14 riscos irregulares que
apontavam em todas as direções. E o mais
impressionante era que ele se mexia levemente, como se
estivesse vivo.
Fiquei parado um tempo sem acreditar naquilo.
Não fazia sentido. Então olhei para o chão, para tudo ao
meu redor. Estava literalmente em um desenho de
criança. Haviam árvores, montanhas, nuvens, rios, uma
imensidão infantil, pura. Tudo era muito colorido, tudo
traçado na mesma forma do sol que ali iluminava.
Me coloquei de pé no chão de travesseiros com
uma certa dificuldade e comecei a andar por aquele lugar.
O mais engraçado era que não tinha muita coisa que
preenchesse a paisagem, por mais bonito que fosse de
17

olhar, o que facilitou enxergar de longe uma casinha e


uma estradinha de tijolos que levava até ela.
O que significava tudo aquilo?
Aquele lugar mágico parecia se referir à infância de
alguém. E conforme eu andava, os meus sentidos me
davam mais certeza. O lugar tinha um cheiro levemente
doce, como de um parque de diversões cheio de barracas
de comida. Ao longe, eu podia ouvir vozes de crianças
misturadas ao vento, como se estivessem em uma
montanha-russa. Tudo isso me lançava de volta ao
passado, em momentos nostálgicos de pura inocência, do
qual não podia recordar. Os sons e os aromas ficavam
mais fortes à medida que me aproximava da casinha.
Seu arquiteto com certeza era uma criança. Um
telhado em V invertido, com uma porta na frente e duas
janelas de cada lado, com contornos e cores feitas com
lápis de cor. Era modesta e impressionante ao mesmo
tempo. Fui logo abrindo a porta.
— Olá? Alguém em casa?
Nenhuma resposta. Comecei a examinar o interior.
A sala com os dois sofás e a TV de tubo transmitia uma
saudade inexplicável, parecia dizer que sentia falta
daqueles tempos, com todos aqueles brinquedos
espalhados pelo tapete.
PLOFT.
Uma coisa mole me atingiu na nuca, estourando e
me molhando consequentemente. No susto, eu pisei em
um carrinho de brinquedo e caí de bunda no chão.
— HAHAHA, te acertei.
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Limpei a água e tirei o pedaço da bexiga que me


atingiu. Olhei em direção à cozinha, buscando a voz. Era
uma criança com certeza. Porém, não havia outra maneira
de explicar, feita de desenho animado. Parecia que
acabara de pular fora da televisão. Seus contornos pretos
definiam as linhas do corpo, roupas e rosto, coloridos
infantilmente.
— Hã, oi?
— Anda, pega o balde ali também. — A criança
apontou para um canto da sala, onde havia um balde com
bexigas d’água.
— Você não pode estar falando sé…
PLOFT.
Outra bexiga me atingiu em cheio no rosto.
— VOCÊ QUER PARAR COM ISSO? —
esbravejei, tentando limpar a água.
— Não, hahaha — o guri ria sem parar.
Peguei o balde com as bexigas, começando a ficar
com raiva.
— GUERRA DE BEXIGAAAAA — gritou a criança,
se preparando para jogar mais uma.
Desviei dessa vez, correndo para trás do sofá.
Coloquei a cabeça um pouco para fora, esperando ver
onde ele estava, só para me molhar novamente, bem no
rosto. Aquele garoto era rápido. Abaixei, peguei uma
bexiga em cada mão e me levantei de súbito, lançando a
primeira na direção dele. O pestinha deu um salto para o
lado, mostrando a língua, e, na mesma hora, meu
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segundo lançamento o pegou, deixando sua boca cheia


de água.
— Agora eu te pego — comemorei.
Sem piedade, comecei a atacá-lo, um lançamento
após o outro. PLOFT, PLOFT, PLOFT, PLOFT.
— HAHAHA, tá bom, você venceu, eu desisto —
ele ria de quatro no chão, todo ensopado.
— Que ideia foi essa, afinal? Me pegar assim
desprevenido? — reclamei.
— Mas essa é a brincadeira, hehehe.
— Podia ter me perguntado antes se eu queria
brincar, pelo menos.
— Você diria não. — Olhou firme para mim, sem
tirar o sorriso no rosto.
Percebi nesse momento que não era somente a
aparência daquela criança que era incomum. Seu olhar
era inteligente, como o de um adulto me analisando.
— Qual seu nome? — perguntei.
— Que diferença isso faz? Nome é coisa de adulto.
Criança quer só brincar. — Ele se levantou do chão, ligou
a TV e se sentou no tapete.
— Você não vai limpar a bagunça? — perguntei,
indignado
— Não, aqui as coisas se limpam sozinhas.
Olhei para onde ele tinha acabado de sair, e
realmente a água e os restos de bexiga haviam sumido.
Minha roupa também tinha secado sem eu perceber.
— Nossa, que conveniente.
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— Você fala muito difícil às vezes, sabia? — disse


o garoto, sem tirar os olhos da TV.
— Na verdade, não. Afinal, não me lembro de muita
coisa.
— Eu acho o Superman o mais legal de todos — o
guri me ignorou completamente, enquanto focava sua
atenção no desenho passando na tela.
Me sentei no tapete, abraçando os joelhos, ao lado
daquela representação de uma infância perdida, e
comecei a assistir também. Por mais que tudo que eu
estava vivendo até então fugia do normal, do que eu
imaginava ser real, uma sensação no peito me dizia para
não se importar. Umbra havia dito para confiar em meus
sentimentos, e eu decidi acreditar em suas palavras.
Superman estava levantando um pedaço de viga
de prédio, caída em cima da perna do Batman.
Aparentemente, vários vilões decidiram atacar Gotham
City ao mesmo tempo e o homem-morcego não estava
dando conta.
— Tá vendo? Só o Superman consegue salvar o
dia no final — a criança falou, admirada.
— Pode até ser, mas o Batman sempre tem um
plano e nunca perde. — Descobri que sou fã do Batman,
quem diria.
— Aaaahh, nada a ver. Ele não tem poder nenhum.
— Mas é exatamente por isso que ele é o melhor.
— JÁ SEI! — exclamou a criança, animada,
pulando do chão. — Vamos brincar de Heróis!
21

Sem esperar minha resposta, o menino saiu


correndo da sala em direção ao corredor dos quartos. Mal
tive tempo de me levantar e ele já havia voltado, usando
uma fantasia de seu herói favorito.
— Nossa! Você é rápido — admiti, impressionado.
— Claro, eu sou o Superman, dãã — dizendo isso,
começou a levitar do chão.
Era impossível não me admirar com o que estava
testemunhando naquele universo particular.
— Anda, Batman, coloca sua roupa. Precisamos
salvar a cidade! — O Super Guri apontou para o sofá atrás
de mim.
Me virei e dei de cara com um uniforme do homem-
morcego perfeito. Não fazia ideia de onde tinha saído,
mas me vi animado em experimentá-lo. Coloquei as
calças, o uniforme do torso, as botas e luvas, a capa e
finalmente o capuz. Eu tinha que admitir: a sensação era
demais. Eu realmente me sentia como se fosse o próprio
Cavaleiro das Trevas.
— Caramba! Isso é muito legal, eu confesso.
— Eu sei, hehehe. E você nem viu o carro ainda.
— Quê?! É brincadeira, né? — Ele tinha que estar
brincando comigo.
O Super Guri levitou até o corredor e eu o segui,
ainda sem acreditar. Entramos em uma salinha que
parecia um escritório. O garoto pegou um livro preto sem
graça na prateleira de cima e, logicamente, a estante
inteira se moveu para o lado, revelando uma porta.
22

— Vai em frente. Te encontro na cidade — e


dizendo isso, abriu a janela do escritório e saiu voando.
Ao acompanhar o garoto com os olhos, notei que
era noite. Uma lua acompanhada por algumas estrelas
desenhadas no céu iluminava ao longe uma cidade com
várias luzes noturnas apontando para cima.
De volta ao escritório, olhando a porta recém-
descoberta, me permiti um tempo para raciocinar sobre
tudo que estava acontecendo. Umbra, o quarto escuro,
aquele lugar feito de desenhos infantis, um guri com o
poder de fazer o que quiser e eu prestes a ir para uma
cidade vestido de Batman.
— Que diabos está acontecendo comigo?
— Anda logo, Batman. A cidade precisa ser salva.
Tomei um susto com a voz que falou no meu
ouvido, mas percebi que era um comunicador que o Super
Guri deve ter colocado no capuz.
— Tá bom, estou indo — respondi.
Um elevador esperava por mim atrás da porta.
Desci até o subsolo e, mais uma vez, fiquei
impressionado. O lugar era perfeito, tudo remetendo a um
autêntico esconderijo de herói mascarado. Poderia
examiná-lo por horas e descobrir tudo que tinha ali, mas a
ansiedade em dirigir um Batmóvel era demais.
O carro estava posicionado alguns metros à frente.
As barbatanas imitando asas de morcego no final, a
carroceria alongada, o escapamento de foguete atrás...
Tudo era incrível. Estava pensando em como fazer para
abri-lo e, como se tivesse lido minha mente, a entrada da
23

cabine deslizou para frente. Pulei no assento e me permiti


ser invadido por aquela sensação absurda de realização
infantil que estava contida em mim.
Mesmo que tudo aquilo não fizesse sentido
nenhum, o que importava? Era só curtir.
— Certo, agora pra onde devemos ir? — falei
sozinho. Um visor ligou no painel do carro, mostrando o
GPS já com o meu destino. — Ok, vamos lá, então.
Com as mãos ao volante, pisei no acelerador e
senti o tranco daquele monstro. O túnel escuro à frente
acendia as luzes conforme dirigia, me guiando para uma
passagem que terminava em uma estrada de asfalto.
Segui o caminho conforme o GPS, reparando no cenário
em geral. Outras casinhas apareceram durante o tempo
que fiquei entretido com o garoto, juntamente com
edifícios de vários tipos, dando a impressão de que aquele
mundo estava crescendo aos poucos.
A cidade subitamente se fez presente. Entrei por
uma rua que julgava deserta, até ver uma pessoa dentro
de uma loja — ou pelo menos pensei ser uma pessoa.
Aquele ser tinha o mesmo aspecto de desenho animado
do Super Guri, só que lhe faltava uma expressão mais
humana, real. Se eu fosse arriscar uma definição, diria se
tratar de um figurante. E mais gente com essa aparência
foi aparecendo na cidade, criando um pouco de
movimento. Os figurantes andavam para lá e para cá, com
seus “afazeres”, alguns poucos olhavam o carro e
apontavam. Era uma sensação engraçada.
24

— BATMAN, PRECISAMOS DA SUA AJUDA


AGORA!!!!!! — a voz do Super Guri gritou no
comunicador.
— Estou chegando — respondi, assustado.
O GPS finalmente apitou a chegada ao destino.
Várias viaturas cercavam um espaço aberto em uma
praça, onde o Super Guri estava caído no chão,
parecendo fraco. Em volta dele, nada mais do que três
versões figurantes do que pareciam ser vilões. Com a
minha chegada, os três vilões viraram para mim com
sorrisos diabólicos no rosto. Um deles segurava uma
pedra verde próximo ao peito do garoto. Aquilo era
Kriptonita? Como é que essa brincadeira chegou nesse
ponto? O que estava acontecendo ali, afinal?
Pulei do carro com uma agilidade que não sabia
que tinha para tentar resolver aquela situação.
— Muito bem, quem quer ser o primeiro? — O
personagem me subiu à cabeça.
Um dos vilões correu em minha direção. Por
instinto, eu abafei um golpe do primeiro bandido que
mirava meu rosto. Mal o fiz e outro já queria acertar o pé
nas minhas costelas, o que não teve sucesso, pois
consegui agarrar sua perna e jogá-lo contra seu colega.
Percebi que os figurantes não eram tão espertos, uma vez
que ambos saíram dali correndo de medo. Patético.
— Não se aproxime, ou eu mato seu amigo idiota
— o figurante com a pedra falava com uma voz anasalada
bem ridícula, como uma criança imitando um vilão.
25

Com um batarangue retirado do cinto de utilidades,


desarmei meu inimigo. Surpreso e com a guarda baixa,
ficou fácil dominá-lo com as mãos.
— Eu nunca mais quero te ver por aqui, entendeu?!
— Eu realmente encarnei o herói.
— Ahh, tudo bem, não me machuque — a
lamentação dele soou ainda mais deprimente naquela
voz.
Os policiais figurantes pegaram o vilão e o levaram
para uma viatura.
— Obrigado, Batman. Mais uma vez você salvou o
dia — disse um dos policiais.
— Hã, só fiz o meu trabalho — respondi sem jeito.
Voltei minha atenção pro Super Guri. Ele
continuava caído no chão.
— Que brincadeira mais séria foi essa, garoto? —
perguntei.
— Ué, até parece que você não gostou, hahaha —
ironizou.
— Tá, não vou mentir, foi bem divertido.
E tinha sido mesmo. Aquele mundo mágico e
inocente me trouxe uma sensação até então
desconhecida. Não conseguia deixar de sorrir, o que devia
entrar em um baita contraste com minha fantasia.
— Está na hora de você enfrentar seu maior inimigo
— disse o Super Guri, já de pé.
Algo em seu tom de voz chamou minha atenção e
percebi que seu semblante envelhecera repentinamente.
Seu olhar era sério, preocupado.
26

— Meu maior inimigo? Quem? O Coringa? —


ironizei.
O garoto não me respondeu, mas sustentou sua
preocupação.
— HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA.
Aquela risada, o som exerceu um controle
assustador sobre mim. Era como se a voz tivesse entrado
em meus ouvidos, se arrastado no meu inconsciente e
buscado, bem no fundo, um sentimento de pânico que
havia sobrevivido à minha amnésia, me mantendo refém
do medo, sem escapatória.
Ele estava bem na minha frente. Seus olhos
estavam arregalados e não paravam de me encarar. Sua
boca aberta em um sorriso torto e horrível. Diferentemente
das pessoas daquele mundo, ele era real, assim como eu,
porém composto de uma matéria escura, úmida, exalando
um cheiro nauseante.
— HAHAHAHAHA, OLHA SÓ, SE ELE NÃO É UM
HOMINHO AGORA. CRESCEU, NÃO É? CRESCEU,
MAS CONTINUA UM FROUXO, UM MULEQUE!
Eu estava paralisado. A visão daquele monstro à
minha frente me desmontou por completo. A cada palavra
que saía de sua boca, eu me fechava mais, e o mundo
começava a escurecer.
— SEMPRE DEPENDENDO DOS OUTROS,
HAHAHAHAHAHA. VOCÊ SABE O QUE VOCÊ É, NÃO
SABE? AH, VOCÊ SABE SIM!
Eu tentei tapar os ouvidos, mas ele gritava demais.
— FRACO.
27

Tentei correr dali, mas as pernas não obedeciam.


— INÚTIL.
Não queria ouvi-lo dizer. Eu estava livre daquilo.
Não podia ouvir.
— COVARDE.
A escuridão ganhou vida e engolia tudo envolta,
prédio por prédio. A cidade estava desaparecendo dentro
do Fuscus, e eu não podia fazer nada. A presença do
monstro me impedindo de ter qualquer reação. Somente
saber de sua existência era o suficiente para colocar em
dúvida minha coragem.
Mas por quê? Quem era ele?
A voz de Umbra surgiu na minha cabeça: “Confie
nos seus sentimentos… confie em você”.
Escondido em algum canto de meus pensamentos
estava uma certeza: eu já encontrei esse ser antes, e já o
havia superado. Ele era apenas uma representação do
meu passado. Não era real.
Uma pequena chama brotando no meu peito,
irradiando juntamente do meu sangue e se espalhando
em meu corpo, pulsou. Uma força que jazia esquecida,
porém despertada no meu encontro com Umbra.
Olhei para o monstro novamente e me deixei
dominar pela energia daquela chama, incapaz de me
controlar.
— EU NÃO SEI QUEM VOCÊ É, MAS SINTO AQUI
DENTRO O QUE VOCÊ FEZ COMIGO! E MESMO
SABENDO QUE VOCÊ NÃO É O VERDADEIRO, QUERO
QUE SAIBA QUE EU TE SUPEREI, CONTRA TODAS AS
28

CHANCES EU TE SUPEREI, SEU DESGRAÇADO


COVARDE! E NUNCA MAIS DEIXAREI QUE SUA
LEMBRANÇA ME MACHUQUE! NUNCA MAIS IREI
PERMITIR SEU ÓDIO ME DOMINAR! NUNCA!
Surpreso pela minha reação, o monstro tombou
para trás e começou a se dissolver no chão até
desaparecer, juntamente com o Fuscus.
Removi o capuz da fantasia e limpei o suor do
rosto, respirando o máximo que meus pulmões permitiam.
A chama em meu peito retrocedeu até sumir.
— Caramba, você foi demais! — começou o Super
Guri. — Primeiro, ele veio todo “hahaha, eu sou o maior,
você não é nada”, aí você ficou parado, aí veio aquela
nuvem preta, aí tudo ficou escuro, e aí você ficou forte do
nada e mandou ver nele!
— Eu só não entendi direito o que aconteceu.
Quem era aquela criatura? — perguntei. — Sei que ele
me fez algo terrível, mas não me lembro.
— Não tá na hora de lembrar. Você só tinha que
saber o que podia fazer, e agora você sabe, “Batman”! —
Ele olhou e me deu o maior sorriso até então. — E agora
você tem que continuar.
O Super Guri apontou para um prédio próximo,
onde a porta de entrada se abriu e revelou uma cascata
caindo logo na entrada.
— Espera um pouco. Eu tenho mesmo que ir? Você
não pode me dizer mais nada? — Queria muito entender
tudo aquilo de uma vez.
29

O garoto se limitou a acenar com a cabeça, sem


parar de sorrir. Ele levitou até um pouco acima dos meus
olhos.
— Não se preocupe, Jô. Logo, tudo vai fazer
sentido — e dizendo isso, saiu voando para longe.
Acompanhei com o olhar aquela criança
excepcional sumir da minha vista no horizonte, mais
confuso do que quando acordei no quarto com Umbra.
Afinal, o que eu sou? E o que é esse lugar?
30

Capítulo III
31

Ensopado após atravessar a cortina de água, saí


em uma espécie de parede de pedra por onde uma
cachoeira caía, resultando em um riacho. Busquei a
margem para escapar da água gelada, me deparando
com uma selva totalmente fechada. Era lindo, porém havia
algo inquietante em volta.
As árvores eram muito altas e uma neblina
esbranquiçada acima não me permitia enxergar a copa.
Só era possível enxergar troncos e alguns galhos. O rio
por onde saí corria entre a mata, ziguezagueando até
sumir. Um arbusto aqui e ali diferenciava a paisagem,
juntamente de pedras e montes de terra e folhas secas.
Um verdadeiro refúgio de paz.
Ao parar e admirar a floresta, percebi o que me
deixou inquieto: o silêncio. Fora a água que serpenteava,
nada mais fazia barulho. Não havia pássaros cantando,
insetos ou o vento batendo nas árvores. Nada.
Mesmo com aquele silêncio anormal, só notei a
figura atrás de mim quando já estava no chão.
— Aaii! Que isso? — Alguma coisa me passou uma
rasteira, me jogando de costas para a terra.
— Fraco. — Uma mulher estava em pé na minha
frente, apontando uma espécie de cajado no meu peito.
Sua aparência era mais impressionante do que a
do Super Guri. A pele era avermelhada, como argila,
exceto por muitos riscos brancos em vários lugares de seu
corpo, de muitos tamanhos. As unhas dos pés e mãos
eram compridas, como garras. Ela não tinha cabelo
32

nenhum e seu físico era digno de uma atleta, cada


músculo definido como se eles mostrassem seu propósito
de força, e isso era possível de ver pelo fato de ela não
usar nenhuma roupa. Porém o mais curioso era a
ausência de órgãos sexuais. Ela não possuía seios ou
mamilos, apesar de uma leve indicação de volume no
peito. E a virilha era totalmente reta, sem vagina ou nada
que indicasse sua sexualidade. Achei se tratar de uma
mulher pela voz e a curvatura do corpo.
Ela tirou o cajado do meu peito e me deu a mão de
garras para me ajudar a levantar.
— Por que você fez isso?
— Precisa estar atento — ela respondeu.
Quando me puxou para cima, notei sua força
absurda ao quase arrancar meu braço.
— Quem é você? — perguntei.
— Mollitiam — ela levou a mão direita em punho
até o peito e bateu uma vez. Depois, apontou para mim:
— Você, Jô.
— Sim. Até onde sei, esse é meu nome. Escuta,
você precisa ser assim tão bruta?
— Você fraco. Precisa crescer. — Ela sempre
falava de uma forma direta, com poucas palavras.
— Que quer dizer com “precisa crescer”?
— Vem. — Virou-se de costas para mim e começou
a andar.
Segui minha colega selvagem a contragosto, já que
não parecia ter muita opção. Passamos entre as muitas
árvores e elevações de terra da floresta. Ela andava
33

rápido, e eu tinha que me esforçar para acompanhar seu


ritmo. Seu olhar estava sempre concentrado, de uma
maneira calma. Havia uma espécie de tranquilidade
dentro daquela mulher de aspecto tão agressivo.
Minha cabeça fervilhava de perguntas. Sobre
aquele lugar, sobre ela, sobre o fato de eu estar ali, só que
toda vez que eu tentava falar algo, perdia a coragem ao
me dirigir a Mollitiam. Não sei por que, mas o silêncio ali
parecia sagrado. Sentia que aquelas árvores eram santas,
guardiãs de um sentimento muito profundo.
Após andarmos por um bom tempo sem nenhuma
mudança de paisagem, chegamos em uma clareira. No
meio, uma árvore, cujo tronco era da grossura de uma
pequena casa, tão alta quanto as outras e que crescia
irregularmente em direção ao céu. Galhos menores
cresciam em volta, fazendo uma espécie de escada em
espiral que levava até uma base em cima, onde o tronco
se dividia em três.
— Casa — Mollitiam explicou. — Vem.
Seguimos entre as muitas raízes altas que
sustentavam aquela árvore majestosa. Mollitiam saltava
aqui e ali com graça e agilidade, enquanto eu me
esforçava usando mãos e pés para pular, e minha roupa
deixava tudo mais difícil. Mal chegamos perto e ela já
começou a subir os degraus como um felino bípede,
enquanto eu precisei engatinhar para não perder o
equilíbrio.
Após um considerável esforço do meu corpo,
chegamos na enorme base dos 3 ramos. Foi inevitável a
34

sensação de sagrado ao avistar o lugar. Um altar crescia


no meio dos ramos, onde um cristal de um tom levemente
púrpuro e meio opaco descansava. Trechos que
lembravam assentos rodeavam o local. Mollitiam se
sentou em um dos nichos e apontou para outro local à sua
esquerda, me convidando a fazer o mesmo. Ela
descansou seu cajado no colo, ao passo que eu me
acomodava o mais confortável possível.
Uma mistura de sentimentos surgia em mim
enquanto fitava aquela mulher. Respeito, força,
sabedoria. Era inevitável não sentir ao olhá-la, mesmo
sem compreender o motivo de tais sensações.
— Eu posso fazer uma pergunta? — A ansiedade
em obter respostas já estava me consumindo.
— Não — ela falava em um tom que encerrava
qualquer discussão. — Ouça. Perguntas depois.
Mollitiam fitou a pedra do altar por um tempo. Sua
concentração era visível, como se estivesse ouvindo
instruções ou coisas do tipo. Depois de alguns minutos
assim, ela desviou o olhar e me encarou.
— Você fraco agora. Precisa conhecer força. Olha
pra pedra.
Devido ao pouco que conhecia da minha
companheira, achei melhor obedecer logo. Virei minha
atenção para o cristal, sem saber o que procurar. A pedra
tinha um formato irregular, natural. O interior era visível
por conta de sua transparência, e só por isso percebi a
ausência de algo dentro. Não sabia do que era feito o
35

interior daquele cristal, porém o que faltava ali me causava


a nítida sensação de saudade.
— Feche os olhos — ordenou Mollitiam.
Obedeci sem desviar o olhar.
— Ouça agora.
Foquei minha atenção na audição, ainda sem
entender muito o que estava acontecendo. Procurei o que
ela queria que eu ouvisse, mas tudo que encontrei foi
minha própria respiração. Não havia mais nada, nem
mesmo minha companheira fazia som algum.
— Sinta — Mollitiam falou em um tom mais suave.
— Corpo, coração. Sinta quem é Jô.
Tentei obedecer, porém isso era mais difícil. A todo
momento as várias perguntas surgiam na minha frente e
minha atenção se dissipava. Comecei a focar no corpo,
porém os pensamentos não se calavam. Tentei ir para o
coração, mas a angústia de saber quem eu sou não
parava. Tentei, tentei, várias vezes indo e voltando.
Finalmente desisti e abri os olhos, derrotado por mim
mesmo.
— Não consigo. Minha cabeça não para. — Desviei
o olhar para baixo devido à frustração.
Ela acenou como se esperasse aquele resultado.
— Pensar demais cansa. Focar no agora.
Resposta vem quando tiver que vir.
Ótimo. para variar, a pilha de dúvidas só
aumentava.
— Levanta — ela ordenou enquanto pegava o
cajado para fazer o mesmo. — Agora prestar atenção.
36

Ensinar como sentir corpo, depois coração. Primeiro,


troca roupa.
Ela apontou para um montinho de vestes que
apareceu bem ao meu lado. Ao pegar, notei que era
apenas uma calça feita de alguma fibra natural que não
soube identificar. Olhei para Mollitiam, esperando um
pouco de privacidade, porém ela não demonstrou
qualquer vontade de me ceder esse luxo. Tirei a fantasia
ali mesmo e coloquei a calça.
— Certo, e agora?
PAF.
Rapidamente e sem avisar, Mollitiam bateu com o
cajado no meu peito.
— AAII! Isso dói.
— Dor faz corpo acordar — ela respondeu sem o
menor sinal de remorso.
PAF.
Dessa vez o alvo foi meu braço.
— Você quer parar? Tá me machucando.
— Não. Precisa aprender.
PAF, PAF, PAF. Ombro, canela e rosto.
Ela era rápida demais e dessa vez perdi o
equilíbrio, caindo no chão.
— Por que você tá fazendo isso? — Já estava
ficando com raiva daquilo.
— Dor ensina. Dor faz lembrar do que não gosta.
Se não errar de novo, não sente mais dor.
— E o que eu devo aprender então desse jeito, hã?
— Dor não controla você. Você controla dor.
37

— Claro, como se isso fosse fácil.


Me levantei e dessa vez fiquei mais alerta, o que
não adiantou muito.
PAF, PAF. Coxa e barriga.
A essa altura, meu corpo inteiro estava doendo e
minha raiva, subindo. Aquilo estava me cansando.
PAF, PAF. Braço direito e costas.
— CHEGA!
Avancei para Mollitiam, decidido a tomar seu
cajado. Ela apenas desviou para o lado e me empurrou.
Com o impulso, tropecei e caí de cara no chão. Agora todo
meu corpo doía.
— MAS QUE MERDA. QUAL O SEU PROBLEMA?
QUER ME MATAR? QUE DROGA DE PROFESSORA É
VOCÊ, SUA MALUCA? — gritei, segurando meu nariz que
sangrava.
Na mesma hora, um rugido monstruoso soou em
algum lugar da floresta. Não era simplesmente um grito de
animal selvagem, era algo maior, mais forte… mais
insano. Mollitiam apontou o cajado para meu peito e
pressionou, me segurando no chão. Seu rosto se
aproximou do meu e, pela primeira vez, vi um sinal de
emoção em sua face. Era uma mistura de raiva e
preocupação.
— Você não sabe nada. Ser imaturo, teimoso,
deixa emoção falar demais. Ouve Mollitiam. Confia em
Mollitiam. Mollitiam quer seu bem. Aquilo que ouviu na
mata é Furore. Furore machuca. Furore não pensa, só
grita e destrói. Furore fez isso com Mollitiam. — Ela
38

apontou para os vários riscos brancos de sua pele. —


Mollitiam precisou aprender a curar corpo, ignorando dor.
Se Mollitiam consegue, Jô também consegue.
Ela recuou e tirou o cajado do meu peito. Fiquei um
tempo ainda no chão, absorvendo aquilo.
— O que é esse Furore? Por que ele fez isso com
você? — perguntei.
— Não importa agora. — Outra emoção passou
brevemente pela minha companheira: tristeza. — Sente
corpo. Sente dor.
— É só o que estou sentindo agora, Mollitiam.
Como eu faço pra controlar da maneira que você está
dizendo? Como deixo de sentir?
— Foco. Tira foco da dor. Não pensa na dor. Pensa
na cura.
Olhei com um certo desdém após aquela instrução,
mas resolvi tentar. Cada lugar ao qual ela me golpeou
parecia gritar comigo, implorando minha atenção como
uma criança chata. Relaxei minha respiração e resolvi
focar onde estava pior: meu rosto. O nariz dilatava,
parecendo aumentar a cada pulsação. Segui a sugestão
de minha professora, tentando pensar na cura para aquilo,
mudando meu pensamento. A cor verde não parava de
aparecer na minha mente, provavelmente devido à
paisagem que nos cercava. Resolvi me deixar dominar por
aquele pensamento. Um fio minúsculo pareceu sair de
algum canto da minha mente em direção ao meu foco,
anestesiando cada uma das células que gritavam seu
sinal de alerta. A pulsação começou a parecer menos
39

incômoda, cada vez mais fraca, até que repentinamente


sumiu. Toquei meu nariz com o dedo e não senti mais o
incômodo da dor.
— Caramba. Parou. — Procurei o olhar de
Mollitiam, maravilhado. Ela não demonstrou nada.
— Continua. Foco.
Foquei agora na canela. Osso e músculo latejando.
Me concentrei na cura, e o fio esverdeado pareceu se
estender até embaixo, levando seu remédio. Novamente
o desconforto foi sumindo. Passei para a coxa, depois os
braços, costas. Cada vez que me concentrava, o fio me
obedecia imediatamente e a dor sumia. Quanto mais eu
acreditava que podia fazer aquilo, mais rápido ficava, até
o ponto em que não sentia mais nada fora do normal. Nem
mesmo a lembrança dos golpes permanecia no meu
corpo.
— Deu certo! Não sinto mais nada! — Levantei-me,
empolgado com aquela descoberta.
— Bom. Mantém ensinamento. Quando acredita,
cura vem.
— Não vai mais me bater? — perguntei,
preocupado.
— Não precisa. Aprendeu a sentir corpo. Agora,
sentir coração. Vem.
Ela se direcionou para um canto entre dois ramos
da árvore, onde um cipó caía até o chão. Mollitiam agarrou
o cipó com uma mão enquanto segurava o cajado com
outra e começou a descer, achando que eu poderia fazer
igual. Obviamente, ela não me deixava muita escolha.
40

Peguei o cipó e olhei para baixo. As raízes pareciam bem


mais duras vistas de cima.
— Ok, vamos lá. Você consegue — disse a mim
mesmo, tentando achar coragem.
Comecei a descer. Usei as mãos e os pés para
desacelerar, o que deu certo, porém o preço foi sentir o
calor do atrito. Felizmente, o cipó não era tão seco,
facilitando a descida. Aterrissei, surpreendentemente
inteiro, somente com um leve incômodo nas pernas.
Mollitiam virou para a mata e começou a andar.
Saltamos novamente entre as raízes em direção à
floresta. A névoa lá em cima continuava silenciosa,
protegendo o sagrado das árvores.
— Aonde vamos agora? — Estava ansioso para
descobrir mais coisas.
— Agora, correr.
Ela acelerou o passo. Imitei para não ser deixado
para trás. Meus pés sentiam o chão de terra e folhas
secas como se pertencessem ali. Aquela conexão fez
brotar mais um sentimento esquecido em mim. Uma
vontade de continuar, de respirar e voar, de sentir.
Percebendo meu entusiasmo, Mollitiam aumentou
o ritmo. Seu porte felino ficou ainda mais em evidência
enquanto corria entre as árvores. Elegância e agilidade
em perfeito equilíbrio. Fiz um esforço para acompanhá-la
agora. Meus pulmões começaram a subir e descer com o
esforço. Minhas pernas endureceram para aguentar o
impacto do solo.
41

A cada passo que eu dava, meu corpo queria mais.


A floresta passava correndo por nós. Saltamos os montes
de terra, criamos nosso próprio vento. Desviei de cada
árvore que ousava se colocar na minha frente, porque elas
não eram dignas de me parar. Eu queria mais, mesmo
com meu peito arfando, mesmo com os pés latejando, eu
queria mais, porque meu coração implorava para
continuar. Seu ritmo parecendo tambores de guerra, onde
cada batida era um sinal para ir além, um lembrete de que
eu sempre iria me superar. Qualquer que fosse o esforço
que meu corpo pedisse, meu coração estava pronto,
ansioso para atender.
— Pare! — Mollitiam gritou ao fundo.
Parei e olhei para trás, para ver que minha
companheira estava tão cansada quanto eu, reféns do
fôlego que nossos pulmões pediam, porém satisfeitos em
sentir.
— Bom — ela disse, já recuperada. — Sente
coração forte. Jô pode muito mais. Não esquece.
— Sim… isso é… muito bom. — Agora que estava
parado, senti o preço do esforço.
— Senta. Merece descanso.
Obedeci, agradecido dessa vez. Apoiei minhas
mãos no chão de terra e fiquei olhando para cima. A
neblina estava menos densa. Parecia que alguns raios de
sol queriam chegar até nós.
— Esse lugar é lindo — admiti.
— Sim. Mollitiam ama floresta. Floresta é lar. É vida
e paz.
42

Sorri, concordando.
A calma que reinava em volta me fez fechar os
olhos e sentir a mim mesmo e a floresta. A respiração das
árvores no meu peito, minha consciência notando cada
tronco ligado ao solo. Mollitiam tinha razão. Era vida e paz,
mais nada.
— Jô está pronto.
Saí do meu transe ao ouvi-la.
— Pronto? Pra quê? — questionei.
— Furore. — Mollitiam me fitava com seriedade. —
Vem.
E mais uma vez estávamos andando. Devido à
surpresa de conhecer aquelas habilidades do meu corpo,
tinha esquecido do barulho monstruoso de antes e não
insisti em mais detalhes sobre quem ou o que era aquele
tal Furore. Agora parecíamos estar indo ao seu encontro,
e eu receava não ser algo bom.
— Então... o que é esse Furore, exatamente? —
tentei parecer despreocupado, mas sem sucesso.
— Furore é raiva. É sentimento puro que só quer
machucar. Furore não consegue pensar, só quer quebrar
o que tem perto.
— E por que estamos indo encontrá-lo?
— Só Jô pode ajudar Furore — Mollitiam me
encarou nessa hora com apelo no olhar.
— Ajudar? Por quê?
— Antes, Furore era Viribus. Viribus não
machucava, mas ensinava, assim como Mollitiam ensinou
Jô. Viribus era companheiro de Mollitiam. Andava sempre
43

junto. Mas Viribus adoeceu por causa de Fuscus, e virou


Furore. — Ela parou e se aproximou de mim. — Agora Jô
precisa tirar Fuscus de Furore, para devolver Viribus a
Mollitiam.
Ao examinar melhor aquela mulher selvagem e
forte, por um breve momento vi sua única fraqueza. Ela
sentia saudades do seu amigo, e estava desesperada
para tê-lo de volta.
— Como posso ajudar? Quer dizer, se ele fez isso
com você, que chance eu tenho?
Ela voltou à sua habitual seriedade e continuou o
caminho.
— Jô mais forte agora. Só que força de Jô não está
no corpo, está no coração. Fuscus é fraco quando coração
forte. Usa isso.
Não tinha a menor ideia do que eu tinha que fazer,
mas depois da experiência com o Super Guri e do que
Mollitiam me ensinou, um pouquinho de coragem ingênua
se instalou em mim.
Nosso percurso durou mais alguns minutos,
sempre vigiados pelas velhas companheiras de minha
amiga, que permaneceram inalteradas até certo ponto.
Chegamos em um local onde as árvores estavam
danificadas. Marcas negras, como garras, haviam
machucado algumas delas. E conforme andávamos, mais
dessas marcas apareciam. Quando avistamos a primeira
árvore caída, Mollitiam me fez parar.
— Agora Jô precisa atenção. Furore não pode ver
Mollitiam, se não ataca. Jô sozinho agora.
44

— Tá brincando, né? — Encarar um animal raivoso


e ainda por cima sozinho. Ela não podia estar falando
sério.
— Confiança. Furore não entende calma. Furore
revida se ataca. Quando aparecer, focar aqui. — Ela
apontou para os próprios olhos.
Uma espécie de corda grossa e invisível, feita com
raízes de uma árvore antiga, nos conectava, onde uma
energia intensa fluía entre nós dois pelo olhar.
— Quando olhar Furore, faz ligação — ela
continuou sem piscar os olhos. — Furore vai sentir mesmo
que Jô, e Viribus vai acordar. Jô só precisa confiar no
coração, energia faz o resto.
Ela desviou o olhar, e a conexão se desfez na
mesma hora. Sacudi a cabeça, aturdido, sem entender o
que acabara de sentir.
— O que foi isso?
— Olhos são espelho da alma. Quando alma é
forte, energia flui — ela explicou.
— Então essa força que senti é sua?
— Não. — Mollitiam virou e me encarou. — Essa é
força de Jô.
A sensação de calor que surgiu em meu confronto
anterior com o monstro negro soprou dentro de mim, como
se dissesse “ainda estou aqui”.
Não soube o que me levou a dar o primeiro passo
depois desse momento, mas não pensei mais no medo.
Ele ainda estava ali, porém eu não queria mais deixá-lo
me guiar. Olhei para Mollitiam uma última vez e acenei
45

sem dizer nada. Ela levou o punho ao peito e bateu uma


vez.
A floresta agora estava visivelmente ferida. Mais
pedaços faltavam em alguns troncos. Árvores inteiras
caídas apareciam com mais frequência, enegrecidas
como carvão. A cena de destruição se alastrava para todo
o lado, mostrando a fúria incontrolável do animal que
passara por ali. A neblina acima estava mais densa, num
tom grafite que lembrava a fumaça. O sagrado estava
ausente daquele trecho da floresta, e, portanto, não
conseguia se curar ou impedir aquele caos.
Andei o mais calmo que pude, evitando barulhos
desnecessários e prestando atenção em tudo que via e
ouvia. Não sabia como encontrar meu alvo, porém algo lá
no fundo me dizia que isso não seria necessário. Ele viria
até mim.
Pressentindo minha aproximação, um rugido
pressionou o silêncio mórbido. O som veio de todas as
direções, me impossibilitando de localizar sua origem.
Alerta ao encontro iminente, meus instintos tomaram
conta, como se o raciocínio lógico fosse apenas um
espectador dentro do meu corpo. Percorri tudo que
alcançava com o olhar na esperança de enxergar Furore
antes que estivesse próximo demais. Só teria uma
chance. Precisava focar imediatamente nos seus olhos
para tentar impedi-lo de fazer qualquer coisa, rezando
para dar certo.
Talvez tenha sido a ausência do vento fazendo
barulho pelas árvores, ou o vácuo que o silêncio produzia
46

ali; talvez meus instintos recém-descobertos


enxergassem além do que eu podia compreender; talvez
tenha sido a própria sorte. O motivo não importava agora.
O que estava em jogo era a fera quadrúpede e preta me
encarando a alguns metros de distância, com seus olhos
amarelos furiosos.
Só percebi sua presença quando a ligação já
estava feita. A corda de raízes presente entre nós dois.
Dessa vez, pude sentir suas extremidades. De um lado,
estava minha consciência, minha força, meu coração
pulsando. Do outro, apenas uma imensa, insana e
perigosa ira. A energia que eu acreditei ser nossa conexão
parecia uma linha muito tênue e fraca. Qualquer
movimento em falso, qualquer distração e um lado
perderia. E eu sabia que se eu perdesse, Furore iria me
atacar.
A conexão refletiu o medo do meu pensamento, e
pude sentir a ira do meu oponente se aproximando,
fortalecida. Devido a isso, Furore deu um passo à frente,
ansioso para me pegar. Somente meu extinto de
sobrevivência elevado na forma que estava podia me
fazer manter a conexão pelo olhar com aquela fera.
Não podia enxergar perfeitamente sua aparência,
mas o pouco que via mostrava que, assim como seu
corpo, sua boca também era totalmente negra. Um líquido
preto espesso pingava, revelando a ansiedade em cravar
seus dentes em mim.
O medo estava maior agora. Quanto mais eu
pensava no que me aguardava, mais eu sentia a ligação
47

fraquejar. Eu não iria resistir por muito mais. Toda a fé que


Mollitiam parecia ter em mim se mostrava infundada.
Apenas um pequeno galho, frágil, sustentava nossa
conexão agora, e eu não conseguia encontrar uma forma
de mantê-lo. Como eu poderia enfrentar algo tão
assustador? Como Mollitiam esperava que eu vencesse
tal criatura apenas firmando o olhar?
Derrotado pelo meu pessimismo, o elo se desfez e
a ligação quebrou. Furore disparou em minha direção,
acertando meu braço esquerdo com suas garras. O
sangue começou a escorrer do ferimento, a dor irradiando
até meu ombro. Os olhos amarelos de fúria me encararam
por um momento. Ele olhou para cima e emitiu um rugido
diferente, pausado. Parecia querer dizer algo.
Um instante depois, uma massa negra surgiu no
chão como um redemoinho, e de dentro dele uma mulher
saiu. Seu corpo esquelético era composto por uma
matéria branca similar ao Fuscus. As órbitas dos olhos
eram vazias e negras, assim como sua boca escancarada.
O cabelo se mexia feito fumaça e as mãos possuíam
dedos compridos que ansiavam por me puxar para dentro
do redemoinho negro.
Ondas de choque percorriam meu corpo, me
fazendo tremer, tamanho o pavor que aquela mulher me
causava. Dessa vez eu não consegui sentir nada dentro
de mim que pudesse me salvar de tal criatura. Só pude
permanecer deitado no chão, vulnerável ao que quer que
me aguardasse, sentindo a exaustão física e emocional
me puxando aos poucos para a inconsciência.
48

Uma luz branca e violeta surgiu bem acima de nós,


me deixando temporariamente cego. Pude ouvir Furore
rugindo de espanto e outro som extremamente agudo que
parecia ser a mulher-fuscus berrando indignada. Tentei
lutar contra a exaustão, mas ela logo me dominou.

Ao abrir os olhos, me deparei com Mollitiam


limpando meu braço com um líquido esverdeado
misturado com várias ervas. Não havia notado, mas o
ferimento formava 3 linhas retas no meu antebraço,
pegando boa parte do comprimento entre a região interna
do cotovelo e o pulso. A dor era bem maior do que a surra
que Mollitiam havia me dado. E eu sabia que trabalhar o
foco não seria suficiente.
— Me desculpe — foi só o que consegui dizer.
— Não. Jô fez o que pode. Aconteceu o que tinha
que acontecer — ela explicou.
— Quem era aquela mulher?
— Timoria. Ela controla Fuscus.
— O que ela queria comigo?
— Timoria não gosta de luz, e Jô é luz. Timoria
destruir Jô se puder. Por isso precisar aprender a ser forte.
Mollitiam terminou de limpar o ferimento, e eu me
sentei onde estava. Notei que ela havia me trazido de
volta ao topo da árvore-lar. O cristal desta vez não estava
no altar, mas no cajado de Mollitiam.
49

— Foi assim que você me salvou? — Apontei para


o cajado.
— Sim, mas Mollitiam não consegue manter luz de
cristal por muito tempo. Cristal está fraco, precisa de mais
luz. Luz de Jô.
— Que luz, Mollitiam? O que você quer dizer com
isso? Como vocês esperam que eu faça algo se nem sei
direito quem eu sou ou onde estou?
— Mollitiam não pode dizer porque Jô ainda não
pode entender. Mollitiam entende raiva de Jô, mas Jô
precisa confiar. Mollitiam e os outros querem o melhor pra
Jô. Confia, por favor.
O tom amoroso de minha companheira me pegou
desprevenido. Aquele era um sentimento que não parecia
ser natural dela. Assenti, ainda mantendo minha
insatisfação com tudo que estava acontecendo.
— E agora, o que faço?
— Continuar jornada. Ainda tem muito que
aprender, e Mollitiam promete que mais tarde tudo vai
fazer sentido.
— Como se eu tivesse muita escolha — comentei,
emburrado.
Nos levantamos e Mollitiam me guiou para baixo,
ajudando a descer os degraus. Ao chegar no chão, notei
uma abertura no tronco da árvore que não estava lá antes.
E para minha surpresa, uma cortina vermelha pendia
dessa abertura.
— Agora vai. Quando Mollitiam e Jô se verem de
novo, Jô já será outra pessoa.
50

Fiquei encarando aquela mulher selvagem,


responsável por despertar tantos sentimentos confusos
em mim. Uma coisa eu precisava admitir: ela realmente
me mudou em pouco tempo.
Me virei em direção a porta para continuar meu
caminho. Nem pude tocar na cortina para afastá-la e uma
mão surgiu, me puxando para dentro.
51

Capítulo IV
52

—Minha nossa, finalmente você apareceu. Tem


noção de como estamos atrasados? Ele odeia atrasos,
sabe. Ah, céus, tomara que ele esteja de bom humor —
dizia uma mulher com jeito de assistente de produção, que
ficava me empurrando para frente e falando sem parar. —
Ande logo, precisamos te preparar pro programa.
— Espera aí, do que você está…? — Emudeci ao
olhar com atenção aquela doida. Ela não tinha rosto, e sua
pele era da cor de gesso. Era um manequim, igual aos
que ficam expostos em lojas de roupas. Vestia roupas
normais e um daqueles coletes de quem trabalha em
bastidores de TV. Na cabeça havia um fone com
microfone que conectava em um rádio preso na cintura, e,
na mão, uma prancheta.
— Pare de perder tempo e entre logo aí. — Abriu
uma porta e me empurrou para dentro.
Parecia com um camarim. Uma mesa no canto
direito, um sofá branco à esquerda e uma porta que levava
para o banheiro do fundo da sala. Mal tive tempo de me
virar para falar com a mulher-manequim e ela já fechara a
porta do lugar com um tranco.
— Mas o que…? — frustrei-me.
Reparando melhor na sala, havia um armário em
um canto que não tinha notado e outra mesa com comidas
e bebidas. Notei como estava faminto e fui pegando logo
uma coxinha e um copo de suco de laranja.
53

Enquanto eu me deliciava com tudo o que podia,


comecei a ouvir um tumulto do lado de fora que ia se
aproximando.
— ... tolero isso, você sabe muito bem. Temos um
cronograma a ser seguido.
— Sim, Sr. Fastus, entendo perfeitamente.
— Creio que pelo menos ele já está pronto para o
show, certo?
— Na verdade…
A conversa parou no momento em que a porta do
camarim se abriu. A pessoa que entrou era
definitivamente o ser mais chamativo que eu vira até
então, mais até que o Super Guri e Mollitiam. Ele usava
um terno amarelo purpurinado com uma gravata verde
igualmente brilhante. A calça era preta com riscas de
prata, terminando em um sapato que brilhava como um
carro novo ao sol. Mas nada daquilo chegava perto de seu
cabelo roxo vivo, com um topete enorme. E todo esse
conjunto ainda não conseguia desbotar a pele, que
parecia feita de mármore.
Minha cara devia estar bem ridícula, porque ele
logo disse:
— Você vai acabar de comer o que está na sua
boca ou eu vou ter que continuar olhando pra essa massa
nojenta?
Enquanto me recuperava do choque, o pavão virou
para falar com a manequim que me trouxera:
— Comendo quando já deveria estar pronto pra
iniciarmos o show. É esse o trabalho que eu posso
54

esperar de vocês? — Seu tom de voz era arrogante, como


se fosse o dono de tudo. — E que estado lastimável é
esse? Essa calça tão imunda quanto o resto. Oh, céus!
Quanto amadorismo. Aposto que ficou séculos brincando
de super com aquele infantil do Gaudia e depois foi bancar
o Tarzan com aquela selvagem.
— Espere, quem? Gaudia? — perguntei. — Você
está falando do Super Guri?
Ao ouvir o nome "Super Guri", o pavão revirou os
olhos para cima, claramente mostrando desdém. Estava
gostando cada vez menos do sujeito.
— Olha, rapaz, você já brincou, já comeu, agora
vamos ao que interessa, não é? Tira esse trapo, escolha
algum conjunto do que temos no armário e se apronte logo
porque eu não tenho o dia todo. — Virou-se para a
manequim. — E chame logo o maquiador pra dar um jeito
nessa criatura, pelos deuses!
Dando sua última ordem, simplesmente saiu.
— Anda, se apresse. Escolha logo uma roupa que
o maquiador já vai chegar — mandou a manequim, antes
de sair e fechar a porta.
Eu comecei a desconfiar da minha própria
sanidade naquele momento. Se tudo aquilo fosse um
sonho, eu tinha que ser muito maluco.
Puxei as portas do armário e encontrei algumas
roupas simples, nada de muito chamativo, o que me
deixou um pouco aliviado depois de ter conhecido aquele
sujeito tão espalhafatoso. Algo neutro me pareceu a
55

melhor opção, então escolhi uma camiseta branca sem


estampa, uma calça jeans azul e um tênis preto.
— Muito bem, onde está a criatura lastimável que
preciso consertar? — Outro manequim vivo entrou no
camarim, abrindo a porta e me dando um susto. Esse,
diferentemente da mulher, tinha algo no rosto:
maquiagem. Fiquei olhando aquela figura sem face com
um monte de produtos na cara e tentei conter o riso com
a mão, mas sem sucesso.
— Olha, meu querido, acho bom você ter um pouco
mais de respeito se não quiser ter essa sua carinha linda
apagada — terminou a frase num tom claro de ameaça.
— Você pode fazer isso? — temi na mesma hora.
Ele cruzou os braços em tom de desafio, o que
interpretei como um “experimenta”.
— Ok, já entendi.
— Senta que eu vou dar um jeito nessa calamidade
— mandou o manequim-maquiador.
Ele colocou uma maleta na mesa e começou a
retirar vários pincéis, acessórios e outras coisas que eu
particularmente não entendia qual função tinham. Pegou
uma espécie de caneta preta meio esquisita e começou a
trabalhar.
Depois do que me pareceu uns 20 minutos, o
maquiador terminou.
— Ótimo, assim está melhor. — Olhou admirado
para meu rosto. Novamente alguém surgiu de supetão
pela porta:
56

— Estamos prontos? Ótimo, já chega de atraso por


hoje. — A manequim-assistente havia voltado com sua
habitual pressa. — O Sr. Fastus já está irritadíssimo com
toda essa demora.
Novamente ela pegou meu braço e me arrastou
para fora do camarim. No corredor, comecei a reparar
melhor no lugar à medida que avançávamos. Parecia
realmente um estúdio de TV, com salas cheias de
aparelhos e vários anúncios que mostravam sempre o
mesmo rosto e programa: Fastus Show.
— Espera. O que é esse “Fastus Show”? Quem é
ele, afinal? Pra onde você está me levando?
— Olha, deixe suas perguntas pra depois do
programa, ok? Já basta de perder tempo. Aguarde aqui
que já irão te anunciar. — Ela continuou a me puxar até
outra sala, me deixando atrás de uma cortina vermelha
enorme sem me dar mais nenhuma instrução e voltando
apressada para o corredor.
Mais uma vez, desde que resolvi abrir os olhos, me
encontrava sem entender nada do que estava
acontecendo. Porém o mais estranho era a sensação de
familiaridade com tudo aquilo que havia ali e não me
espantar tanto como seria de se esperar, mesmo sem
memória. O que é esse mundo, afinal de contas?
— SENHORAS E SENHORES, COM VOCÊS…
FAAAAAASTUUSSSS!!!!! — uma voz masculina anunciou
atrás do pano vermelho, seguido por aplausos e gritos de
admiração. Uma musiquinha bem estilo “Talk Show”
57

começou a tocar no fundo, o que me fez supor que o tal


Fastus estava entrando em cena.
— Muuuito boa noite, caros amigos. É com imensa
satisfação que começamos o programa de hoje. —
Reconheci a voz do Sr. Simpatia logo atrás da cortina,
porém o tom era mais amistoso. — E que programa
especial, não é mesmo? Sempre ouvimos falar dele,
sabemos tudo sobre sua vida e acompanhamos de
pertinho cada momento decisivo de sua jornada. E hoje
finalmente temos a honra de trazê-lo em pessoa no nosso
palco. Sem mais delongas. Com vocês, o convidado desta
noite: JÔ!!
A cortina se abriu, me deixando
momentaneamente cego devido à luz que apareceu.
Aplausos ecoavam ao redor. Conforme minha vista se
acostumava, notei uma plateia com centenas de pessoas
me encarando. Ou pelo menos foi o que pensei, já que
aquele público também era composto por manequins de
loja vestidos e vivos. Logo à minha frente, se estendia o
que parecia um palco com um piso dourado. Olhei para
esquerda e vi o tal Fastus de pé, com sua roupa
extravagante e um sorriso absurdamente brilhante,
fazendo total oposição ao seu humor durante nosso breve
encontro no camarim.
— Bem-vindo, bem-vindo! — Fastus veio me
cumprimentar, num excesso de simpatia que beirava a
falsidade. — Finalmente conseguimos trazer você para
nosso palco, não é mesmo? Ah, que emoção, que
emoção!
58

Eu não consegui dizer nada no momento, tamanha


era minha confusão com tudo aquilo. Ele me conduziu
para um sofá vermelho, ao lado do que parecia ser sua
mesa de entrevistas.
— Venha, temos um grande show hoje — falava
com uma animação que só se via na TV, sempre com o
sorrisão no rosto de mármore. — Então, meu caro, aposto
que você não está entendendo nada, estou certo?
— Olha… não — concordei.
— Continua perdido, minha gente, este é nosso
rapaz — Fastus dizia para a plateia, ao passo que eles
concordavam e riam abertamente. — Não se preocupe,
pois agora iremos mostrar a você tudo o que te aguarda.
Mas antes, vamos passar algumas lembranças para
refrescar os motivos de estarmos aqui hoje, certo?
Ele apontou pro telão, onde uma chamada para um
quadro dizia “A ESTRADA ATÉ AQUI”. Em seguida, um
trecho do que eu vi quando conheci o Super Guri (ou
Gaudia) apareceu, bem no momento de nossa pequena
guerra de bexigas. Curiosamente a imagem mostrava
meu ponto de vista. Era como se meus olhos fossem as
câmeras que filmaram tudo. Como aquilo era possível?
Me virei para perguntar exatamente aquilo, mas Fastus
me interrompeu.
— Um momento, meu rapaz, já iremos iniciar as
perguntas. — E voltou a atenção para o telão.
A imagem a seguir cortou para a “batalha” contra
os vilões-mirins, e depois meu encontro com o monstro.
Fiquei feliz em perceber que não sentia nada além de
59

pena agora por ele. Depois, meu encontro com Mollitiam


na árvore, onde ela me bateu tantas vezes. A cena de
quando corremos livres pela floresta veio depois, a
lembrança me dando uma sensação gostosa. Finalmente
a luta visual entre mim e Furore, terminando comigo ferido
no chão e o surgimento de Timoria. Agora que me
encontrava recuperado, provavelmente graças ao
remédio de Mollitiam, pude reparar melhor em Furore e
Timoria. Não era somente a aparência física deles que me
assustava. Havia algo além, oculto pela minha amnésia
que me fazia temer os dois, especialmente Timoria.
A luz do estúdio começou a falhar, mas logo
estabilizou. Fastus, nessa hora, deu uma breve olhada na
iluminação lá em cima. Por um momento, parecia haver
preocupação em seu rosto exuberante, mas logo ele
disfarçou.
— Quanta emoção, não é mesmo, senhoras e
senhores? Nosso querido Jô aqui, mesmo sem saber das
ameaças, enfrenta qualquer adversidade. Que coragem!
Logo se vê que nossa fé não foi em vão. E pensar que
tudo isso começou graças ao grande Umbra...
A imagem da tela mudou novamente. “O INÍCIO”,
dizia a chamada. Primeiro, parecia que tinham desligado
o vídeo, por conta de todo o preto. Só quando um risco
estranho e esfumaçado passou deu para entender melhor
o que estávamos vendo. Vários contornos e traços negros
passeavam em um espaço que não consegui identificar, e
no meio de tudo aquilo, vagando com os olhos abertos e
vidrados no nada, estava um homem de nariz fino, cabelo
60

curto raspado e barba malfeita. Somente quando Umbra


apareceu no vídeo, abrindo caminho naquela névoa
negra, que eu pude entender realmente o que era aquilo.
O homem vagando era eu.
As luzes do palco começaram a piscar
freneticamente, como se estivessem perdendo a força. Na
tela, aparecendo a cada momento que a energia oscilava
estava o rosto de Timoria.
Meu corpo começou a tremer. O pavor… O medo…
Por quê? Quem é ela?
A luz do estúdio finalmente cessou e as imagens
do telão pararam.
— Ora, ora, parece que estamos com problemas
técnicos, meus queridos. Vamos para uma pequena
pausa e já voltamos.
Após anunciar o intervalo, Fastus me chamou:
— Jô, olhe pra mim.
Mesmo com a fraqueza pesando em meus ombros
naquele momento, obedeci.
— Eu sei o quanto ela te afeta, e sei que não
entender o motivo é ainda pior. Porém você precisa
entender que tudo isso tem um propósito.
— Que propósito? Por que não me dizem logo? Por
que tenho que passar por tudo isso? Eu só quero saber
quem eu sou.
Uma após outra, as gotas de suor foram descendo
pelo meu rosto. Eu estava cansado, ferido, perdido nas
minhas incertezas e não via como poderia continuar
61

fazendo o que esperavam de mim. Fastus agarrou meu


colarinho e me fez encará-lo:
— Agora me escute, rapaz, se estamos fazendo
isso dessa maneira é porque TEM QUE SER ASSIM. Há
coisas que se você souber agora irão colocar em risco
tudo que estamos fazendo e não só você, mas todos nós
estaremos ferrados com aquela droga de Fuscus. Agora
bote uma coisa na sua cabeça: pode não parecer, mas
você é mais do que capaz de enfrentar Timoria, caso
contrário nenhum de nós teria fé em você. Então engole
esse choro, ergue essa cabeça, cala essa boca e faz o
que eu mandar, entendeu?
Encarei Fastus, incapaz de fazer nada a não ser
concordar com a cabeça. Apesar da bronca, suas
palavras limparam a incerteza que me rondava.
— Ótimo, controle-se. — Ele largou minha
camiseta. — Vou explicar tudo o que precisa fazer por
hora, é só ter paciência e confiar em mim. Podemos
continuar o show?
Acenei mais uma vez, absorvendo suas palavras.
Fastus podia ser um pavão arrogante, mas era seu jeito,
e isso trazia também uma segurança sobre si mesmo que
era inquestionável. Eu o compreendia agora.
As luzes voltaram, sem piscar nenhuma vez.
— Eeeeeh, estamos de volta, meus queridos. Acho
que é hora de colocarmos uma luz no caminho do nosso
Jô, não é mesmo? Chegou a hora do grande momento do
nosso programa. — O jeito pomposo e sorridente de se
portar tinha voltado.
62

Uma musiquinha indicando o suposto ápice do


show tocou no fundo. Fastus se levantou, deu a volta na
mesa e me chamou com um gesto ao meio do palco.
— Sua tarefa agora, rapaz, será passar pelo
Damnum Essentia!!!
Ao dizer aquele nome estranho, o palco onde
estavam os manequins começou a se dividir e deslizar
para ambos os lados, revelando uma espécie de arena.
Uma estrutura grande, metalizada e retangular surgiu no
meio, com uma porta branca voltada para o palco.
— Eu vou ter que entrar ali? — perguntei, receoso.
— Exatamente! Sua tarefa é entrar no Damnun
Essentia e sair do outro lado — Fastus dizia aquilo como
se eu estivesse entrando na casa dos meus sonhos.
— O que é que tem lá dentro? — Minha
preocupação só aumentava.
— Isso é o que você precisa descobrir por si só,
meu caro Jô. Mas não se preocupe, não é nada com o
qual não tenha lidado antes.
— Só que eu não lembro, não é mesmo? — Não
conseguia mais disfarçar minha insegurança, era como se
meus sentidos soubessem o que havia ali.
— Ora essa, onde está sua coragem, querido Jô?
Vamos lá, confie em si mesmo. — Fastus olhou bem nos
meus olhos após dizer essa frase. Achei melhor não
questionar mais e segui para mais uma porta misteriosa.
Girei a maçaneta e coloquei o pé direito para
dentro. E, novamente, não havia chão.
— Ah, meu Deus!
63

Caí para frente e parei de quatro no ar. Ou era o


que parecia. Não tinha chão, porém havia algo ali que
segurava minhas mãos e joelhos. Após o breve susto,
reparei em algo através do chão invisível: mesas e
cadeiras espelhadas por baixo, uma após a outra,
flutuando no ar. Cada conjunto em um nível diferente do
outro, indo cada vez mais para baixo, até onde minha vista
podia alcançar. Fui subindo os olhos conforme via aquilo
chegando até o nível que eu estava e, para minha
surpresa, havia uma cadeira e uma mesa na minha frente,
na altura do meu corpo. Então veio o choque: o chão não
era invisível, era um espelho. Só que eu não estava sendo
refletido nele. Olhei para cima e, novamente, infinitas
mesas e cadeiras pairando no ar, refletidas uma após a
outra até onde eu podia ver. Mas nada de Jô. Fiquei de pé
e olhei para os lados. Mais espelhos. Era uma maldita sala
que refletia tudo, menos a mim.
Virei para trás, querendo sair daquele lugar
estranhamente claustrofóbico, e me deparei com outra
surpresa desagradável: A porta não estava ali. Tateei o
espelho sem poder me ver refletido, mas não encontrei
abertura nenhuma.
— Me tirem daqui! — gritei, na esperança de que
abrissem a porta.
Nada. Silêncio. Peguei a cadeira da sala e joguei
na parede. Várias cadeiras imitaram por todo o lado,
porém eu continuava inexistente a toda volta. Tanto o
espelho como o móvel se recusaram a quebrar. Meu
desespero começou a tomar conta. Andei tateando a sala,
64

esperando encontrar alguma abertura que pudesse puxar


e revelasse a saída, mas nada. Apenas as marcas da
minha mão embaçando o vidro.
— Ok, calma, respira — comecei a falar para mim
mesmo.
Recoloquei a cadeira no lugar. Na mesa havia um
retângulo preto, do tamanho de uma folha A4, que eu não
tinha reparado. Ao pegá-lo, percebi que era uma espécie
de notebook e abri. Ele ligou e apenas uma palavra
aparecia: “Veja”. Me aproximei da tela, esperando que me
mostrasse o que deveria ver. A palavra continuou ali.
— Tá, o que eu deveria ver?
O computador não respondeu. Tentei achar algum
botão no aparelho, algo que desse uma pista, mas ele não
tinha nada além da base e da tela. Revirei, abri e fechei
de novo, porém a imagem continuou sem alteração.
— Só pode ser brincadeira! O que eu tenho que
ver, caramba? Me dê uma dica!
Nada de resposta. Tive que me conter para não
jogar aquele notebook na parede do espelho.
De repente era algo na sala talvez? Olhei para
cima, para baixo, esquerda, direita, embaixo da mesa, da
cadeira, mas não tinha nada, somente aquelas repetições
infinitas dizendo que eu não existia. Me debrucei na mesa,
cansado. O que eu não estava percebendo? Deveria
haver alguma coisa escapando dos meus olhos.
Quando a frustração estava quase me dominando,
fitei por acaso a tela. Uma nova palavra apareceu embaixo
da primeira: “Você”.
65

Veja você.
— Como eu posso me ver, se a droga da sala NÃO
ME REFLETE? — gritei.
Não era só a frustração de não encontrar a saída
dali que me irritava. Estar naquele lugar e não poder me
ver era assustador. Era como se a sala estivesse tentando
dizer algo que eu não entendia. A sensação de não se
reconhecer…
Levei as mãos até a testa, derrotado. Comecei a
fitar meus pés, os tênis pretos que escolhi para usar
cobrindo as marcas de sujeira e arranhões de quando
estive com Mollitiam. Me recostei na cadeira e olhei para
a ferida no meu braço esquerdo, seguindo as marcas com
meus dedos. A dor ainda incomodava. Era estranho
pensar em tudo que eu vivi até agora neste mundo
exótico. Cada vez que eu cruzava uma porta, algo
inesperado e inimaginável aparecia. E mesmo sem me
lembrar, sentia como se aquilo tudo estivesse conectado
a mim. Mas como? E o que dizer dessas pessoas, esses
guias que têm me auxiliado até agora? Tão diferentes, tão
extraordinários, e, mesmo assim, tão crentes que eu seja
capaz de… de quê? Curar Furore e enfrentar Timoria?
Sem entender quem sou ou onde estou?
No entanto eu venci o monstro, não foi? Sem
mesmo me preparar, sem ao menos saber como fazer.
Gaudia simplesmente me levou até onde eu precisava
estar e confiou que eu faria o que tinha que ser feito. Será
que eu sou como eles? E o que é esse calor no meu peito?
Eu posso controlá-lo?
66

Cerrei meus olhos para me lembrar da sensação.


Um mar de emoções pulava à frente, implorando por
atenção. Mergulhei nos recantos de minhas memórias
recentes, esperando encontrar onde estava escondida
aquela pequena esfera quente. Algumas emoções eram
boas e chegavam apenas para dar um reforço no
mergulho, outras queriam me atrasar o máximo possível
e permaneciam na minha frente até eu empurrá-las de
vez. Havia sentimentos que eu não compreendia e
pareciam apenas observar meu trajeto, esperando.
Alguns eram pequenos, leves, outros eram enormes e
exigiam um esforço maior para ultrapassar. Uma após a
outra, finalmente cheguei onde queria. Senti o pequeno
orbe de luz que me salvara antes a uma pequena
distância, e logo ao lado outra esfera. Era de um preto
azulado e parecia estar fazendo força para arrebentar,
mas algo a segurava ali. Ela estava me chamando,
dizendo que iria revelar tudo, bastava só tocar. A verdade,
as respostas que eu tanto ansiava sobre minha
identidade, tudo ali contido em um pequeno espaço e
desesperado por se ver livre, implorando pela minha
ajuda.
“Confie em você”.
A lembrança de Umbra surgiu ao meu lado, me
fazendo recordar do porquê de estar ali. Ignorando o orbe
negro, estendi a mão para o orbe de luz e o toquei. A força
me puxou do mar de pensamentos como um míssil, me
fazendo voltar do transe para a sala espelhada.
67

Meu corpo pulsava, o calor me preenchia


novamente. Era nisso que Umbra e todos os outros
confiavam, era isso que me representava. Essa energia
que fluía em mim agora e que eu precisava entender.
Uma porta se abriu logo após a mesa e eu disparei
para fora.
— ELE CONSEGUIU! — O grito de Fastus foi
seguido pela ovação da plateia. — Nosso Jô encontrou a
saída da Damnum Essentia. Sensacional!
Os aplausos seguiam sem parar. Fiquei meio sem
jeito, mas aliviado por estar livre de novo.
— Diga-nos, então, meu querido, como foi a
sensação?
— Não sei explicar… Foi difícil no começo, aquela
prisão espelhada, não conseguir me ver… Achei que iria
enlouquecer lá. Mas, depois, comecei a pensar em tudo
que aconteceu e…
A energia estava sumindo aos poucos mais uma
vez. Só que agora eu sentia um rastro marcando o
caminho ao qual ela fazia, enquanto voltava para meu
interior. Estava ficando mais fácil senti-la, mas não
compreendê-la.
— Não esquente a cabeça agora, querido Jô, as
respostas virão. — Fastus colocou a mão no meu ombro.
— Agora você deve comemorar, rapaz, pois é graças a
essa vitória que iremos mostrar algo incrível.
Ele indicou outra porta dupla no final do estúdio.
Parecia ser a entrada da plateia. Olhei para Fastus,
receoso:
68

— O que tem ali?


— Haha, relaxe. Prometo que as surpresas
desagradáveis acabaram. E eu irei te acompanhar dessa
vez.
Não relaxei, mas também não tinha mais tanto
receio do que poderia vir.
Seguimos em direção a mais uma porta. Fastus foi
na frente e a abriu, deixando os braços escancarados ao
passar como se estivéssemos entrando no paraíso. Não
era bem o paraíso, mas era bem impressionante.
— Seja bem-vindo ao “Animus Universum”. O
centro de inspiração da vida.
Saímos no que me pareceu uma galeria de
shopping, porém mais imponente. Quatro corredores,
cada um com um tema, convergiam onde estávamos.
— Primeiramente, “Omnia”. — Fastus apontava
para um dos corredores. — Planetas, luas, estrelas, ou
até mesmo galáxias inteiras em exibição. Às vezes alguns
fenômenos galácticos extraordinários que ainda não
podemos compreender, mas em breve alcançaremos
seus mistérios. E vez ou outra um meteoro irá passar
voando para dar um alô.
O corredor se estendia até o escuro do espaço,
variando entre um planeta aqui, uma lua ali. Era como um
grande portal para o universo desconhecido que ia além
do planeta Terra.
— Aqui vemos “Gaia” — Fastus continuou no
próximo corredor. — O conhecimento da Fauna e da
69

Flora, a força da natureza e o equilíbrio que ela precisa


para nos manter, tudo você encontrará neste lugar.
Foi inevitável não me lembrar do lar de Mollitiam,
repleto de verde. Contudo reparei que somente alguns
ambientes possuíam essa característica, e, ainda assim,
em muitas variações. Em alguns espaços, oceanos
inteiros se agitavam, furacões giravam ferozmente e até
mesmo vulcões marcavam sua presença. Desertos,
montanhas, cavernas, era uma grande exibição da vida na
Terra.
— O terceiro, “Creaturae”. Meu favorito, se me
permite dizer. Um verdadeiro festival de todas as criações
da humanidade, da arte à ciência. As infinitas histórias, os
descobrimentos, as inspirações, tudo, absolutamente tudo
que fez dos maiores gênios da nossa existência
verdadeiras lendas está aqui.
Artes visuais, escrita, arquitetura, matemática e até
tecnologia, que parecia estar além da minha
compreensão. Personagens e ambientes de filmes, obras
de arte, exposições sobre música, em que parecia ser
possível ver as vibrações que inspiram a criação de
melodias e te fazem flutuar por elas. Alguns locais eram
mais abstratos, retratando certas inspirações que não
faziam sentido de imediato, porém algo ali indicava um
raciocínio mais profundo que demandava tempo para
conseguir captar sua mensagem. Basicamente, tudo que
o ser humano já trouxe ou trará para o mundo presente
em um único lugar.
70

O último corredor, cujo nome era Oriri, estava com


a entrada barrada por um portão em que não era possível
ver através. Fastus o ignorou completamente.
Eu fiquei sem palavras. Não tinha reação que
definisse o que eu senti ao ver tudo aquilo. Extraordinário
parecia pouquíssimo, como definir a grandeza do mar em
apenas uma única gota. Fastus deu uma risadinha ao
reparar no meu estado após aquela revelação.
— É, eu sei, rapaz. Também não consigo definir
como é estar aqui — admitiu.
Percorri com os olhos todo aquele lugar
indescritível e senti como, de alguma forma, me
alimentava, me nutria. Somente uma palavra chegava
perto de definir aquele local: divino.
Passado o espanto, consegui perguntar:
— Fastus, o que é esse lugar?
— Infelizmente, não me cabe dar mais explicações.
Há alguém te aguardando justamente para isso. Mas
saiba que foi um privilégio te auxiliar neste momento tão
sublime. Nos veremos de novo, em breve. — Com um
floreio exagerado, apontou o braço em outra direção.
E, mais uma vez, uma porta surgiu, bem no meio
do cruzamento entre os corredores do Animus Universum.
Tinha um aspecto mais rústico, parecendo feita de bambu.
Olhei para Fastus, cheio de dúvida, mas, assim como
Mollitiam, Gaudia, e Umbra, ele não parecia disposto a dar
mais informação.
Dei uma última olhada para todo o inacreditável
que definia aquele lugar, esperando absorver algo mais.
71

Queria entrar em cada um daqueles corredores e me


perder por todo o conhecimento que forneciam.
— Apenas continue seu caminho, rapaz. O
momento para desfrutar do Animus virá — Fastus falou,
sorrindo.
Com um aceno de cabeça, me despedi, cruzando
a porta.
72

Capítulo V
73

Mal cheguei ao outro lado e fui surpreendido mais


uma vez. O sol quase tocando o mar no horizonte brilhava
de um laranja cálido que refletia no céu. Era como se ele
tivesse reduzido sua intensidade para que pudessem
admirá-lo, gerando calor o suficiente apenas para tornar o
clima agradável. O mar se recusava a refletir sobre a cor
do sol. Parecia haver um acordo entre ambos, onde o mar
quis contribuir com sua própria beleza. Seu tom azul tinha
uma personalidade feminina e deixava claro que não
precisava de nada nem ninguém para brilhar. As ondas
acariciavam a praia, em um suprimento contínuo de
acalento para todos que molhassem seus pés.
Sem nem pensar, tirei os tênis e me permiti sentir
a textura daquele solo tão perfeito. A brisa me recebia com
alegria, dançando ao meu redor. Eu poderia ficar ali por
horas, apenas olhando, sentindo, respirando...
— Ora, ora. E não é que ele tem o dom das coisas?
Ao buscar a fonte da voz à direita, reparei em um
senhor de muita elegância que me olhava. Sua pele negra
mostrava uma intensidade ancestral, como o filho
primogênito da melanina. Isso fazia um tremendo
contraste com seu cabelo e vestes. Dreads brancos de um
tom marfim caíam até abaixo dos ombros, amarrados em
um rabo de cavalo. Usava terno e calça brancos com
riscas pretas finas, muito bem alinhados, e uma camisa
preta por dentro aberta no último botão. O curioso eram
seus pés nus, divergindo de toda sua vestimenta
exuberante.
74

Pela lógica, e também pelo seu jeito peculiar, ele


deveria ser o próximo guia. Isso já me deixou receoso,
visto que os anteriores não me receberam tão bem logo
de cara. Minha deficiência em disfarçar as emoções mais
uma vez se mostrou evidente, pois ele logo falou:
— Haha, meu caro, não há razão para
desconfianças. — Ele revelou um sorriso extremamente
branco e acolhedor. — Aqui não há ameaças, surpresas
desagradáveis ou qualquer outro empecilho que possa te
minguar. Por sinal, comemore, pois agora é momento de
desfrutar de suas vitórias anteriores.
Aquele homem singular falava de uma forma
tranquilizadora. Havia uma aura de confiança no seu jeito
de ser que deixava qualquer medo de lado.
— Desculpe. Não quis parecer rude.
— Não há o que se desculpar, meu caro. E permita-
me dizer que é um imenso prazer ter finalmente vossa
companhia. Senex é o nome.
Senex fez uma pequena reverência com a cabeça,
levou a mão até a testa e depois para cima, em um gesto
que me pareceu demonstrar respeito. Respondi
brevemente o cumprimento acenando com a cabeça.
— É muito gratificante vê-lo finalmente presente,
caro Jô. Aguardávamos ansiosos sua chegada para que
pudesses admirar tudo que temos aqui. — Ele acenou
para a minha direita, onde novamente a beleza aguardava
com outra surpresa.
Havia uma pequena cidade que beirava a praia, na
qual vários prédios pequenos se estendiam para ambos
75

os lados até onde eu podia enxergar, cada um com uma


característica única. Bares, restaurantes, locais que
lembravam hotéis e outros estabelecimentos que eu não
soube identificar. Até mesmo um teatro não muito longe
me pareceu convidativo. Cada um deles era colorido de
uma forma orgânica, ou exagerada, ou simples. Alguns
eram temáticos, outros pareciam ter se deslocado no
tempo e ficado por ali.
Tão chamativo quanto os prédios eram as pessoas
que circulavam nas calçadas. Era difícil classificá-las de
uma única forma, pois todos tinham seu destaque.
Cabelos coloridos em formatos e tamanhos diferentes,
chapéus e roupas variadas de todos os estilos
imagináveis e acessórios de muitos tipos enfeitavam os
habitantes da cidade, de etnias igualmente variadas.
Alguns ornavam com os locais que se encontravam.
Outros se misturavam em um bar, criando um festival vivo
de humanidade. A única coisa que todos tinham em
comum era a elegância.
Todo aquele cenário natural atrás de mim, aquelas
pessoas, a cidade à minha frente…
— Senex… eu estou morto?
— Hahahaha — ele gargalhou, satisfeito. — Não,
meu querido. Você não está morto. De fato, está mais vivo
do que nunca. Mas é compreensível que penses assim. É
um paraíso, com certeza. Nosso paraíso.
— Nosso? Como assim?
— Temos muito o que conversar. Venha, vamos
desfrutar um pouco.
76

Senex me guiou até fora da praia, ambos ainda


descalços. Uma passarela de madeira em frente aos
muitos estabelecimentos da cidade nos esperava,
juntamente com os habitantes que conversavam
animadamente enquanto andavam ou descansavam nas
mesas e cadeiras ali expostas. Todos pareciam muito
felizes enquanto faziam seus afazeres.
— O tempo está ótimo para uma cerveja, não? —
sugeriu.
— Acho que sim — concordei, ainda meio abobado
com tudo que via.
— Então, por favor, escolha um bar que te agrade.
Dentre todas as opções, acabei optando pelo bar
com mais diversidade de pessoas. Era aberto na frente,
com plantas decorativas de vários tipos, mesas e cadeiras
aqui e ali e alguns locais com sofás e puffs coloridos entre
verde e laranja de frente para o mar. Me sentei em um dos
puffs e Senex escolheu o sofá ao lado. Uma moça veio
nos atender. Seu cabelo com vários tons de vermelho,
bem curto, combinando com a saia colorida e a blusinha
lilás.
— O que vão querer, rapazes? — perguntou.
— Dois chopes bem gelados, por gentileza — pediu
Senex.
Ela deu uma piscadela amigável e foi atrás das
bebidas.
— Bom, enquanto esperamos, acho que posso dar
algumas explicações. — Senex se encostou no sofá em
77

uma pose bem relaxada. — Aposto que tem muitas


dúvidas rolando nessa cabeça, não é?
— Não sei nem por onde começar — admiti.
Foram tantas situações fantásticas e emoções
extremas que era espantoso eu estar calmo como estava.
Deveria ser efeito daquele paraíso.
— Senex, onde eu estou? O que é esse mundo? —
Esperava que finalmente ele pudesse me responder.
— Creio que suas conquistas recentes mostram
que está pronto para compreender o que está
acontecendo. Primeiramente, entenda que tudo foi feito
para te testar. Você tem uma força impressionante, Jô, e
era fundamental que entendesse isso antes de prosseguir
sua jornada aqui.
— Quais vitórias? Você fala do monstro preto e
aquele Danus qualquer coisa? — perguntei.
— Damnun Essentia. — Senex riu. — Que bom que
Fastus não te ouviu falando assim. Ele é meio sensível
com relação aos itens de seu show. Mas sim, você está
certo, Jô. Tudo isso está relacionado ao fato de você estar
aqui, neste nosso mundo extraordinário.
A garçonete chegou com as bebidas e as deixou na
mesinha de apoio. Senex imediatamente tomou um gole.
— Aaahh, delicioso. Você deveria experimentar
logo, vai por mim. — Ele apontou para minha bebida.
Peguei a alça da caneca e levei o chope à boca. O
líquido desceu de uma maneira bem reconfortante, era
realmente saboroso. Descansei o copo na mesa e olhei
78

novamente para Senex, esperando que ele me desse


mais informações.
— Está bem óbvio que você está ligado
diretamente a tudo que pertence a este mundo, certo? —
perguntou.
— Acho que sim. Me assusta essa expectativa que
vocês têm em mim, só que a todo momento eu senti uma
conexão que não consigo explicar. Parece que eu
pertenço a todos esses lugares.
A cidade infantil e inocente de Gaudia, a floresta
sagrada de Mollitiam, tudo me passou uma sensação de
admiração, mas também de uma estranha familiaridade.
Até mesmo o show esquisito de Fastus, me fazendo sentir
importante. E o Animus Universum, nossa! Não conseguia
descrever ainda o que era aquilo.
— Então quem são vocês? E o que é o Animus
Universum? E quem sou eu? — Agora eu queria saber de
tudo.
— Acalme-se, Jô, irei explicar o que for possível,
mas na ordem certa. — Senex ergueu três dedos de sua
mão direita. — O Animus Universum é composto por três
fontes de energias externas: Omnia: a energia do cosmos,
Gaia: a energia do planeta Terra e Creaturae: a energia
das criações humanas. Essas fontes são responsáveis
pelos aspectos mais básicos deste mundo e fornecem um
suprimento constante de inspiração. Acreditamos que
todos os seres humanos possuem uma ligação com essas
energias vitais, porém poucos conseguem usufruir.
Através das informações contidas nesses campos
79

nascem os revolucionários da humanidade, que


mergulham em um ou mais dos muitos aspectos
presentes nas três fontes, impulsionando a sociedade
rumo à sua evolução. — Senex fez uma pausa para outro
gole. — Para que uma pessoa possa ter contato pleno
com qualquer uma dessas energias, é necessária uma
boa estruturação de sua personalidade e certo grau de
autoconhecimento, gerando, assim, uma quarta energia:
Oriri, a energia da ascensão humana.
Me lembrei do quarto corredor, trancado por um
portão enorme.
— Todo esse mundo que você está conhecendo foi
criado pela energia do Oriri. Eu, Gaudia, Mollitiam e
Fastus somos responsáveis por, digamos, cuidar de
certas partes deste mundo, ou reinos, se preferir. O motivo
de tudo parecer tão fantástico é porque este é o que você
chamaria de mundo dos sonhos.
— Então eu estou sonhando, é isso? — perguntei,
incapaz de me conter.
— Sim e não. Sonhos são criações da mente,
baseados em vivências e emoções do ser consciente.
Algumas pessoas sonham apenas uma mistura de sua
rotina material com sentimentos diversos, sejam estes
bons ou ruins. Porém existem almas com uma mente tão
poderosa que são capazes de criar universos inteiros
dentro de si mesmos, onde a imaginação é realmente livre
para percorrer esse infinito particular. Somente essas
almas conseguem uma ligação forte com o Animus
Universum.
80

— Espera um pouco. — Levantei a mão. Estava


sentindo certa tontura com toda aquela informação. —
Basicamente, você está me dizendo que todo este mundo
aqui, tudo isso que eu conheci até agora, existe dentro de
mim?
— De certa forma, meu caro. Você está dentro de
sua própria mente, em uma viagem que poucos têm a
oportunidade de fazer.
Minha lógica negava aquilo, entretanto as emoções
falavam mais alto, dizendo que era tudo verdade. O tempo
todo elas estavam querendo me mostrar a real conexão
que possuo com aquele mundo.
— Eu entendo que seja difícil absorver esta
informação, Jô, mas uma parte de você sabe que isso é
real. Por mais inacreditável que possa parecer, tudo isto
aqui é seu.
Tomei um longo gole da cerveja, relembrando mais
uma vez tudo que eu vivi até ali.
— Como isso é possível? — perguntei.
— Na verdade, é mais simples do que parece. A
capacidade criativa do ser consciente deriva dessas
energias superiores concentradas no Animus, porém a
existência material só permite a utilização de uma parcela
muito pequena dessa força da criação. Isso porque a
humanidade ainda possui uma capacidade autodestrutiva
muito presente na sociedade. Sendo assim, tudo que não
é utilizado da força criativa fica acumulado na mente, se
misturando com as emoções e fazendo nascer mundos
como este ao qual estamos. E, através dos sonhos, cada
81

um pode acessar aquilo que criou. A parte de você que


acha isso inacreditável demais é apenas o seu lado
material falando mais alto. Porém a sua essência, o Jô
real, sabe que tudo isso é um fato.
Fiquei encarando Senex por um tempo, refletindo.
Tentei achar alguma forma de discordar de tudo que ouvi,
mas não conseguia, porque eu estava em um sonho, e os
sonhos são reais.
Enquanto terminava minha cerveja e absorvia todo
aquele oceano de revelações, um pensamento veio à
tona.
— Senex, se este mundo é isso que você está me
dizendo, o que vocês são?
— Nós somos seus guardiões, Jô. Protegemos o
que você tem de melhor.
— Proteger? De quem? Alba?
Ele me fitou, e algo em seu olhar dizia que
estávamos em um ponto delicado da conversa.
— Vamos caminhar um pouco.
Senex se levantou e dirigiu até a passarela de
madeira. Eu o segui, esperando que ele continuasse com
as explicações.
Retornamos para a praia, onde as ondas
continuavam sua carícia pela orla. Ele acendeu um cigarro
e me ofereceu, o que eu recusei. Senex se sentou na areia
e me convidou a fazer o mesmo, sem tirar seus olhos
negros do horizonte azul que se estendia à nossa frente.
Algo em seu semblante me fez perceber que havia algo
muito errado acontecendo comigo.
82

— O sentido da vida é uma das coisas mais


complexas de se entender, porém um dos seus muitos
propósitos é ensinar. Algumas lições são assimiladas com
facilidade, outras levam um pouco mais de tempo e
trabalho, e há também lições que exigem tudo de alguém.
Momentos cruciais responsáveis por mostrar a força que
uma pessoa pode ter. Porém, devido à sua intensidade,
esses momentos podem derrubar toda a vontade de viver
que uma pessoa possui e, ao invés de enxergar força,
acaba-se vendo as fraquezas. — Ele desviou o olhar do
mar e me encarou. — E é isso que está acontecendo com
você agora, Jô.
Senex tragou mais uma vez seu cigarro.
— Está na hora de recordar sua história. Você
aprendeu onde encontrar a força que te fez chegar até
aqui, estou certo?
Afirmei com a cabeça, receoso.
— Ótimo. Ao lado dela estava algo que te chamou,
implorou para que pudesse se libertar, correto?
— Sim…
— Vá até ela, deixe-a sair agora.
Encarei Senex, me perguntando se isso era
seguro, incapaz de conter o medo em mim. O tempo todo
brigando com a ansiedade de descobrir quem sou, para
chegar neste momento e não ter certeza se queria mais
saber a resposta.
— Está tudo bem, meu caro. Eu estarei aqui ao seu
lado.
83

Senex sorriu, e pude sentir sua aura de confiança


me envolvendo. Fechei meus olhos e pulei no oceano
profundo do meu inconsciente.
O percurso da esfera de luz estava mais visível e
as braçadas agora eram mais suaves, quase como se eu
estivesse flutuando. Os orbes de pensamento se
afastavam com respeito, esperando ansiosamente minha
chegada ao destino. Desci até onde estavam as duas
esferas, luz e treva colocadas lado a lado, flutuando no
que parecia ser o centro do meu ser. Sua dança orbital
continuava, ambas lutando com igual intensidade para
sobrepor a outra. Senti a esfera de luz ligada a mim e
tentei pedir que ela desacelerasse para que eu pudesse
tocar sua rival. A conexão funcionou e a dança entre as
duas ficou mais lenta. A esfera negra, pulsando treva,
percebeu o que eu queria fazer e não reagiu. Ela queria
que eu a tocasse.
Tinha medo sim, e minhas mãos refletiam isso ao
hesitar. Mas passar por tudo que passei, buscando saber
simplesmente quem sou para chegar naquele momento e
desistir?
Levei os dedos até a superfície negra da esfera.
Uma bomba atômica explodiu, me expulsando do
inconsciente enquanto rodava no oceano de minhas
memórias.
84
85

Capítulo VI
86

Terra molhada por todo o lado. Nas mãos, nas


pernas, no rosto e até na fralda. Essa é a primeira
memória que tenho sobre minha vida.
Mamãe tinha comprado aquelas sandalinhas rosas
do comercial de TV, combinando com um vestidinho
delicado e cheio de unicórnios e estrelas. Ela ficou
consideravelmente chateada ao ver seu trabalho em
arrumar a filhinha para o almoço em família arruinado pela
vontade de ser um tatu.
As coisas não melhoraram muito conforme crescia.
Sempre que podia, estava trepada em alguma árvore,
deitada na grama olhando o céu ou brincando com os
cachorros da rua. Mamãe tentava sempre me mudar,
insistindo em vestidinhos, sapatinhos rosa e lacinhos de
cabeça que não duravam mais de uma semana — para a
tristeza de mamãe e alegria da vendedora da lojinha na
esquina.
A fase aventureira continuou até o momento em
que eu tomei gosto pela TV. Minhas manhãs eram
repletas de adolescentes com superpoderes, heróis
salvando o dia, animais falantes e toda a ilimitada
imaginação que os desenhos proporcionam.
Toda semana eu queria ser um personagem
diferente. Na semana dos Power Rangers, eu pegava
caixas de papelão e tentava imitar um robozão gigante
lutando pela cidade e fazendo uma zona na sala. Mudava
depois para a semana do Homem-Aranha e saía
escalando o muro de casa e os armários, fazendo papai
87

me dar uma bronca por ter destruído alguns objetos da


sala.
Ganhava várias bonecas e panelas dos meus pais,
especialmente de mamãe, pois ela não gostava de me ver
agindo como um moleque por conta da televisão. Teve até
uma época em que ela me proibiu de assistir meus
desenhos, o que resultou num berreiro só e dois joelhos
ralados depois de eu tentar subir no telhado para fugir
dela. Mamãe achou melhor desenhos do que cicatrizes
depois deste dia.
Eu tinha 9 anos quando estava brincando no chão
da sala com os hominhos que minha avó deu de presente.
Papai estava trabalhando e mamãe tinha ido ao mercado
comprar algumas coisas que faltavam em casa. Quem
tinha ficado comigo era meu tio Humberto. Ele estava no
sofá assistindo a algum jornal sensacionalista. Uma lata
de cerveja na mão e o controle remoto na outra.
— Esse bando de vagabundo, imprestável. Só tem
bandido nesse país, e a polícia não faz porcaria nenhuma,
tudo corrupto — tio Humberto reclamava entre um gole e
outro, olhando para TV.
— Se o Batman estivesse aqui, ele pegava todos
eles e botava na cadeia — falei, ainda brincando no
tapete.
— Batman? Que Batman, fedelha? Batman não
existe. Isso é mais uma besteira que inventam pra fazer
criancinhas como você acreditarem em idiotices.
88

— Ele existe sim. Você é mal, e se continuar assim,


vai ver só. — Estava munida de uma coragem tola,
querendo defender meu herói.
Tio Humberto tirou os olhos do jornal e me encarou,
a raiva começando a deixá-lo vermelho.
— Eu vou ver, é? Vai fazer o quê, hã? Vai me
bater? Tu é a valente então, é isso? — ele cuspia a cada
palavra, o hálito de cerveja barata invadindo meu nariz.
— Não, tio, eu tava brincando. — O choro de medo
foi inevitável.
— Tá chorando? Cadê sua valentia agora, hein?
Cadê a menininha corajosa agora, hein? Continua que eu
te mostro quem manda nessa merda. Se quer agir como
homem, vai aguentar igual homem. Engole o choro, sua
merdinha, ENGOLE.
Por mais que tentasse, por mais que brigasse com
minha garganta e meus olhos, não pude evitar o soluço.
O primeiro tapa veio rápido, direto no meu rosto.
Fiquei sem reação por um momento, mas a sensação
gélida do medo de uma criança vulnerável diante de seu
agressor não esperou. Comecei a chorar ainda mais,
tomada pelo pavor que aquele homem causava em mim.
— EU MANDEI PARAR DE CHORAR!!!!

Acordei no dia seguinte, já no hospital. No começo,


não conseguia entender nada; a visão totalmente
embaçada. Mamãe estava segurando minha mão, papai
89

do lado dela. Ambos começaram a chorar de alívio


quando viram que eu estava bem e me abraçaram.
Tio Humberto tinha me dado um soco tão forte que
me deixou desacordada. Ele percebeu o que tinha feito
tarde demais, e fugiu da casa dos meus pais, me deixando
sem ninguém. Quando minha mãe chegou e me viu, por
pouco não desmaiou. Havia sangue saindo da minha
boca. Ela teve que gritar por um vizinho para ajudar, pois
seu desespero era tão grande que ela não conseguia
chamar uma ambulância.
No hospital, o médico a tranquilizou, dizendo que
tinha só uma laceração na bochecha devido ao golpe, mas
o cérebro não apresentou nenhuma lesão. Os policiais
conversaram com minha mãe, pedindo mais detalhes
sobre seu irmão agressor. Mamãe não se conformava
com aquilo. Tio Humberto bebia muito, mas nunca havia
apresentado comportamento parecido.
Após minha recuperação no hospital, meus pais
conseguiram um tratamento com uma psicóloga infantil.
Foram várias sessões para conseguir deixar de temer a
lembrança daquele dia e começar a aprender a
convivência com o trauma. Se não fosse o tratamento, o
gelo que aquela memória causava ecoaria eternamente
na minha vida.
Anos mais tarde, soubemos que o corpo do tio
Humberto fora encontrado em um rio. Ele tinha se
envolvido com agiotas e não conseguiu pagar a dívida.
Não pude deixar de sentir o alívio em saber que tinha
menos um ser daquele no mundo.
90

Acho que foi nesse momento da minha vida onde


comecei a perceber as pessoas e notar que havia algo
diferente em mim. Por que eu não gostava do que as
outras meninas gostavam? Por que era tão importante eu
ser do jeito que mamãe queria que eu fosse? E por que
aquilo incomodava tanto a todos?

No início da minha adolescência, minha família se


mudou da casa com quintal enorme onde tive minhas
várias aventuras para um apartamento no meio da cidade,
restringindo não só nosso espaço e privacidade, mas
também minha imaginação.
— Passa essa bola logo — Marcos gritava para
mim.
Eu estava na quadra do condomínio, tentando
jogar futebol. Aos 13 anos, minha insistência naquilo não
fazia sentido, já que nunca tive talento para o esporte.
Porém não tinha outra forma de conseguir fazer amigos
naquele prédio no qual tinha acabado de me mudar.
Marcos era um dos que mais se mostrava aberto a me
conhecer e não ligava para o fato de eu ser uma garota
jogando futebol. Na verdade, gostava muito dele
principalmente pelo fato de ter me dado o apelido de Jô,
sabendo que não gostava do meu nome. O único
problema é que ele não tinha muita paciência na hora de
jogar.
91

— Jô, por que você quer tanto jogar bola mesmo


sendo tão ruim nisso? — Marcos reclamava enquanto
ficávamos sentados na mureta após o jogo.
— Eu não sei. Só não levo jeito — admitia a
contragosto.
— E pra que você leva jeito, então?
— Sei lá. Gosto muito de música, sabe?
Meu pai era um grande fã de música, mas nunca
havia tocado nada. Às vezes ele ficava falando sobre os
shows da época em que ele era mais jovem, as bandas e
artistas que mais admirava. Por conta disso, desenvolvi
um gosto musical mais eclético. Eu não tinha um estilo
favorito. Simplesmente achava que todos eram válidos,
porém bandas de rock faziam parte da minha trilha sonora
particular.
— Queria aprender bateria — revelei para Marcos
— Bateria? Jô, isso é caro. Seus pais podem te dar
uma?
— Eu não sei. Ainda não tive coragem de pedir a
eles — admiti, chateada.
— Então por que não pede logo? O não você já
tem.
— É, pode ser.
Quando cheguei em casa naquela tarde, fui direto
falar com meu pai sobre aquela minha vontade incontida.
Ele estava na sala assistindo a um programa de auditório.
— Pai, eu queria te perguntar uma coisa.
— Diga, Joana. — Fiz uma careta ao ouvir meu
próprio nome.
92

— Na verdade, é um pedido. — O nervosismo tava


batendo na boca, mas eu já tinha começado. — Eu posso
aprender bateria?
Ele tirou os olhos da TV e me fitou, intrigado.
— Bateria? E pra que você quer aprender bateria?
— Acho que eu quero trabalhar com música. —
Cada vez mais eu achava que devia ter ficado quieta.
— Você acha? — ele me olhou por cima dos
óculos.
— É… eu quero.
— Joana, eu sei que você ama música tanto quanto
o pai, mas isso não é vida. — Senti que um dos famosos
sermões dele estava chegando. — Artista é tudo perdido.
É gostoso ouvir o trabalho deles, mas estar nesse meio é
muito arriscado, e quase sempre a pessoa que tenta se
dá mal. Fora o monte de droga que rola solta nesse meio.
Além do mais, onde vamos colocar uma bateria nesse
apartamento?
— Mas eu queria aprender pelo menos pra saber
como é, sei lá… — tentei apelar pro lado emocional dele.
— Vamos fazer assim: foca nos seus estudos. Logo
você vai precisar escolher qual faculdade seguir, qual
profissão de verdade vai exercer. Quando você tiver sua
vida feita, com seu emprego, sua casa, aí se você ainda
quiser aprender bateria, vai em frente. Mas agora,
infelizmente, não dá, tá certo? — perguntou num tom que
mostrava o fim da conversa.
— Tá bem, pai — não tive outra escolha senão
concordar.
93

Restringir uma pessoa que está descobrindo quem


é e do que gosta quase nunca dá certo. Se um pai ou mãe
diz não para uma criança de imaginação fértil e cheia de
energia, é de se esperar que essa energia vá parar em
outro lugar, ainda mais se for uma leonina de
personalidade forte como eu estava me descobrindo. Isso
vai se acumular até o momento que irá explodir, e o
resultado pode ser um tanto catastrófico.
Como era de se esperar, minha preferência por
andar com garotos ao invés de garotas não mudou
quando estava no colégio. Marcos e eu estudávamos na
mesma escola e nossa amizade só crescia. Durante os
intervalos, a gente se encontrava para andar pelo pátio e
conversava sobre desenhos, bandas e videogames. Se
todos se comportassem igual a ele, as coisas talvez
tivessem sido mais tranquilas, porém existe um diabinho
safado em muitos adolescentes chamado puberdade, e
esse filho-da-mãe, quando aparece, vira a vida de ponta-
cabeça.
Marcos estava me mostrando um CD de uma
banda de rock nova durante o intervalo, quando um garoto
passou do nosso lado e me deu um tapa na bunda. Na
hora eu não consegui reagir direito devido ao susto, mas
Marcos ficou muito bravo:
— Oh, seu idiota! Qual é seu problema?
— Ué, ela é gostosa, eu não tenho culpa. — O
garoto ficava rindo, satisfeito por provar sua
masculinidade.
94

— Vai se foder, Vitor. Não encosta mais nela. —


Marcos queria me defender de qualquer jeito.
— Ah, então vocês estão namorando, é? Desculpa
ae, hehehe. — Vitor saiu com sua cara de sonso.
Marcos ficou muito vermelho depois disso. Talvez
se eu não estivesse me sentindo tão horrível com o que
aconteceu, sem saber ao certo o porquê, teria notado que
nossa amizade era algo a mais para ele.
Depois desse dia, tudo ficou um pouco estranho
entre nós dois e eu não compreendia. Achei que o
problema era comigo. Só fui entender em uma maldita
brincadeira de garrafa. Algum idiota desafiou Marcos a me
beijar e eu recusei. Éramos amigos, caramba! Seria
estranho demais. Não queria beijar ele nem qualquer um
daqueles garotos idiotas. Na verdade, só tinha uma
pessoa que me despertava esse interesse naquela
rodinha: Giovana. Minha recusa fez com que Marcos
tivesse raiva de mim e se afastasse, tornando tudo muito
pior.
Obviamente, todas as dúvidas que eu tinha a meu
respeito aumentaram. Já não bastavam todas as
diferenças que minha personalidade provocava em mim,
agora isso? Some o fato do meu corpo dar sinais de que
queria aparecer e as roupas femininas não ajudarem nem
um pouco a esconder e o que temos? Uma garota de 16
anos, revoltada, chateada, cheia de raiva das pessoas, da
família, da escola, mas principalmente de si mesma.
Espelhos eram meu maior temor. Não conseguia olhar
95

para o reflexo e me reconhecer. Estava tudo errado. Eu


era toda errada.
Fiquei com garotos na esperança de que aquilo
tudo se corrigisse, que eu me encontrasse no meio do
caos e pudesse satisfazer o que todos pareciam esperar
de mim. Você espera sentir alguma coisa, uma cosquinha
no fundo da barriga nesses momentos de ingenuidade
jovem, mas, em todos os meninos, a sensação de nada
no toque era igual.
Marcos e eu reatamos nossa amizade, e o tempo o
fez perceber que entre nós só existiria a parceria de
sempre. Isso era um grande conforto no meio da minha
bagunça interior, pois pelo menos ele parecia me aceitar
de qualquer jeito, até mesmo meu gosto por roupas
escuras e folgadas que escondessem aqueles malditos
seios. Na verdade, a única que implicava o tempo todo
com o que eu vestia era minha mãe, com sua mania
irritante de usar branco.
Sexta à noite era sagrada nessa fase, pois a galera
se reunia no estacionamento de um teatro inacabado para
trocar ideia, rir, fugir e principalmente beber. Podíamos
parecer marginais, infantis, devassos ou até mesmo
vadios, mas ali, de alguma forma, nos sentíamos livres e
protegidos uns pelos outros. Podíamos ser nós mesmos,
e isso me dava coragem para me descobrir.
Seu nome era Paula. Ela sempre usava uma
camiseta xadrez vermelha aberta até o decote. Já fazia
um bom tempo que sua presença chamava minha atenção
nas sextas, porém nunca havíamos conversado. Coincidiu
96

que Marcos começou a ficar com Ana, melhor amiga de


Paula. Aquilo me deixou numa mistura de felicidade e
nervosismo. Queria conhecê-la, mas também tinha muito
medo do que eu sentia.
O sexto sentido feminino de Ana deve ter percebido
algo que eu não pude esconder, pois ela não demorou a
nos apresentar:
— Paula, essa é a Jô, amiga do Marcos. Jô, essa
é a Paula.
— Oi, tudo bem? — Paula me cumprimentou
abraçando.
Apesar do meu nervosismo nítido, que só piorou ao
sentir seu perfume no breve abraço que demos, a
conversa entre nós fluiu naturalmente. Era fácil gostar
dela, não só pelo gosto parecido que tínhamos, ou por ela
ser de Sagitário, mas simplesmente por Paula ser Paula.
Isso só tornava minha situação ainda mais difícil.
Já nos conhecíamos há umas três semanas, porém
nossa amizade não tinha avançado em nada, e aquilo me
incomodava muito. Meu paladar não permitia apreciar
bebida como todos os outros, porém quando a gente é
jovem e desesperado por se provar, ao invés de cerveja,
você acaba lendo “coragem” no rótulo. Peguei uma
latinha, para espanto de Marcos, e comecei a beber. A
cada gole eu imaginava que estava dissolvendo meu
medo. Mesmo que fosse ruim, iria beber até o fim, se
preciso, para conseguir dar aquele maldito passo de uma
vez.
97

Após terminar a bebida, interrompi a conversa


entre Ana e Paula.
— Paula, eu posso falar com você?
— Claro!
Puxei-a para um canto isolado do estacionamento,
porém eu não sabia o que dizer, nem como dizer. Por que
eu fui fazer aquilo? O que eu tinha na cabeça?
— Jô, tá tudo bem? — ela perguntou.
Fitei seus olhos por alguns segundos, o que
pareceu um tempo muito maior para mim, e isso foi
suficiente para destruir o que restava do grande muro de
incerteza que eu tinha construído. Só percebi o toque dos
lábios quando já estávamos juntas. Eu tinha sede, fome,
eu estava me afogando e Paula podia me salvar. E assim
ela o fez, deixando claro que estava tudo bem enquanto
seus braços me envolviam. Pela primeira vez pude
entender um pouco o que eu buscava. Eu vi a tal luz no
fim do túnel e senti que a escuridão que me envolvia era
passageira, e Paula carregava a lanterna que iluminava a
saída.
Mas um grito me puxou de volta para as trevas da
caverna.
— JOANA!!!!
Dona Marta, minha mãe, havia decidido me seguir
naquela noite. Estávamos cada vez mais distantes uma
da outra, com brigas constantes em casa. E em sua mente
mal informada, aquilo significava drogas.
Depois do que presenciou, acho que uma parte
dela desejava que fossem realmente drogas o problema.
98

Seus olhos eram puro ódio quando chegou perto de mim


e me agarrou pelo braço.
— Venha comigo agora! — ela sibilou.
Existem poucas coisas na vida que marcam uma
pessoa, ainda mais na adolescência, onde qualquer coisa
é motivo para vergonha. Ser rebocada pela sua mãe, no
meio de todos os seus amigos, no único ambiente onde
você sentia um pouco de liberdade sentimental e ainda
logo após descobrir um ponto crucial sobre você mesma?
Acho que eu não preciso explicar mais nada.
Não sei como conseguimos chegar em casa. A
tensão que pairava dentro do carro era palpável de uma
forma que se podia pegar um pedacinho dela e fazer uma
pequena bomba de discórdia. Dona Marta deve ter batido
o recorde de multas em uma viagem só naquela noite.
Em casa, ela arremessou a bolsa branca em uma
cadeira, virou para mim e gritou:
— O QUE VOCÊ TINHA NA CABEÇA? O QUE É
QUE VOCÊ TINHA NA CABEÇA, JOANA?
Como se eu pudesse responder. Mal tinha
encontrado uma saída para todos os conflitos internos que
me agrediam há tanto tempo, e agora me encontrava mais
aflita do que jamais estive. A culpa me socando, a
incerteza me envenenando, a vergonha me massacrando.
Um combo de surras emocionais impossível de ser
evitado.
Meu pai chegou após o primeiro surto vindo do
quarto, sem entender nada. Dona Marta não o havia
avisado de seus planos para essa noite. Agora ela o
99

ignorava completamente, espumando palavras aos berros


em minha direção.
— Marta, por favor, olha o escândalo. Já são onze
da noite. Os vizinhos vão ouvir — dizia meu pai.
— EU QUERO QUE OS VIZINHOS SE FODAM,
ROGER. — Ela se virou para dividir um pouco da sua
raiva insana com ele.
A relação dos dois sempre foi uma droga, na minha
opinião. Meu pai era uma pessoa tranquila, na dele, só
que era submisso demais à minha mãe. Eu nunca entendi
como alguém como ele poderia se apaixonar por uma
narcisista manipuladora como ela. Somente a vontade de
Dona Marta prevalecia. Nada deveria ir contra seus
planos.
— EU ACHEI QUE ERAM DROGAS, BEBIDAS,
MAS NÃO, É MUITO PIOR. DEPOIS DE TUDO QUE EU
FIZ POR VOCÊ, DEPOIS DE TODO MEU SACRIFÍCIO
EM TE TORNAR UMA MULHER DECENTE, É ASSIM
QUE VOCÊ ME RETRIBUI?
É engraçado como certas emoções reagem com
determinadas palavras. As pessoas não se dão conta de
como há certa magia naquilo que você pronuncia. Dizer
algo positivo em um momento de confusão tem o real
poder de transformar uma vida. Infelizmente, o contrário
também é possível.
— EU PREFIRO TER UMA FILHA PUTA DO QUE
UMA FILHA SAPATÃO!!!
Uma adolescência inteira em busca de si mesma,
somado às exigências que o mundo joga em cima de
100

você. Junte a isso uma criatividade gigante e acumulada,


transformada em pensamentos negativos. Tudo se
revirando e lutando desesperadamente para escapar.
Então apenas algumas palavras infelizes se juntam ao
caos.
O resultado? Fúria.
Meu peito arfava, tentando puxar mais ar do que
podia. Meu corpo tremia, cada célula fervendo de uma ira
que nunca senti. Só me dei conta do que fiz quando era
tarde.
Dona Marta estava sentada, confusa. O sofá
branco manchado pelo vermelho do sangue expulso pelo
machucado na testa. Meu pai do seu lado vendo a
gravidade do ferimento. A estatueta feita de pedra em
minha mão sendo sufocada pelo aperto.
O meu caos interior finalmente explodiu, e eu não
sabia o que fazer.
— Fora.
Saí do transe ao ouvir meu pai. O que era aquela
cena na minha frente?
— EU DISSE FORA!
101

Capítulo VII
102

O problema de sair andando sem rumo no meio da


noite logo após ter agredido sua mãe é que você só
percebe onde está quando seus pés protestam de dor.
Somente a raiva para me fazer caminhar por tanto tempo
sem sequer perceber o destino.
Atravessei a cidade e estava de volta ao
estacionamento, ainda cheio de gente curtindo. Antes que
alguém pudesse me ver, busquei o refúgio das sombras
de uma árvore ali perto, sentindo toda a vergonha de
horas antes. Estava cansada daquele sentimento de
solidão, mas, ao mesmo tempo, não tinha coragem de
pedir ajuda a ninguém. Um vasto penhasco me separava
daquele local no qual eu me sentia um pouco mais livre;
onde cheguei mais perto de descobrir, por um breve e
maravilhoso momento, quem eu realmente era.
— Jô? O que houve?
Marcos deve ter me visto de longe, se aproximando
sem que eu notasse. E para piorar, Ana e Paula vinham
logo atrás. Parte de mim até queria sair correndo para
evitar um vexame ainda maior, porém eu estava exausta,
física e emocionalmente. Tudo que eu queria era deixar
de sentir o peso dentro de mim.
O choro veio e eu me dissolvi até o chão.
Felizmente existia Paula, que, com um abraço, me
mostrou um pouco mais de seu carinho. Marcos e Ana se
sentaram conosco, e ficamos os quatro ali por alguns
minutos, em um silêncio cortado apenas pelos meus
soluços. Assim que pude formar palavras novamente,
103

expliquei a cena protagonizada por mim e Dona Marta,


dos berros insanos ouvidos por todo o condomínio até a
agressão. Os três ouviram até o final, ficando um silêncio
incômodo depois.
— Acho que eu sou uma sem-teto agora — disse,
tentando tirar alguma graça de tudo aquilo.
— Não viaja, Jô. Você pode ficar em casa —
Marcos logo se prontificou.
— E correr o risco de encontrar a mãe e o pai no
corredor? Não vai dar certo, Marcos. Ela precisa de outro
lugar.
Ana estava certa. Não tinha como eu voltar para
casa agora e estar no mesmo prédio que minha mãe não
iria ajudar também. Por sorte, Marcos me deu a solução
mais óbvia possível:
— Ei, e quanto a sua avó Violeta?
Violeta — Vivi, para os íntimos. A única pessoa da
minha família com quem eu me sentia à vontade, segura
e que me permitia ser eu mesma desde sempre.
Claro! Como não pensei nisso antes?
Ela chegou de carro 20 minutos após Marcos ter
ligado de seu celular e tentado explicar o mais breve
possível o que tinha acontecido, sem dar muitos detalhes.
Mesmo sendo de madrugada, vovó Vivi sabia que algo
não estava bem e correu para me encontrar. Ela desceu
do carro, me abraçou e se limitou a dizer “Vamos pra
casa”.
Me despedi dos meus amigos, agradecendo por
terem suportado toda a confusão que causei. Paula me
104

deu um beijo na bochecha, que acabou me causando um


calorzinho reconfortante no estômago. Entrei no carro e
fomos em direção à casa que eu mais amava. Vivi morava
em uma chácara com um terreno ainda maior do que
minha casa antiga, cheia de árvores em volta. Pés de
acerola, amora, romã e até de mamão davam as graças
no seu pequeno pomar. Porém minhas árvores favoritas
eram as que não tinham frutos, pois somente nelas eu
podia subir. Dona Marta achava péssimo, afinal eu
sempre voltava suja ou com o joelho ralado.
A casa em si era, como Vivi mesmo definia, um
universo particular. Por fora existiam inúmeros enfeites,
sinos dos ventos, mandalas e plantas decorativas. Na
cozinha era comum encontrar objetos rústicos e algumas
plantinhas aqui e ali. A sala tinha um ar de história, com
uma estante cheia de livros, esculturas e quadros com
pinturas de diferentes países. Mas o melhor era a "salinha
zen". Não havia como evitar a sensação de entrar em um
mundo sagrado, cheio de magia. Uma pintura enorme que
pegava uma das paredes mostrava diversos símbolos
místicos espalhados em um fundo de estrelas e, no meio
de tudo isso, uma porta branca parecia se abrir para outra
dimensão. Na parede oposta, um altar com diversas
divindades: santos católicos, deuses Hindus, Buda,
orixás, Jesus Cristo, todos expostos ali em uma harmonia
ecumênica.
Mas nada disso era tão impressionante como a
moradora daquele lugar, Violeta De Luca. Vovó era uma
escritora que trabalhou durante um tempo com teatro e
105

TV. Ela sempre usava saias e vestidos coloridos, com um


cabelo grisalho bem curto e acessórios um pouco
extravagantes. Conheceu gente de todos os tipos e
colecionava histórias incríveis sobre a própria vida. Isso a
fez ser uma pessoa que avaliava todos com quem se
deparava, tornando-a, assim, alguém que ou você amava
ou detestava logo de cara. Uma mente incrivelmente
experiente e aberta, com um conhecimento de dar inveja
a qualquer professor universitário.
Ela estacionou o carro na garagem, abriu a porta
de casa e foi direto para a cozinha.
— Vou preparar um chocolate quente pra você.
Me sentei na mesa para esperar, ainda sentindo o
peso de tudo, mas um pouco mais segura por estar junto
de minha avó. A casa tinha uma espécie de poder,
trazendo paz a quem quer que entrasse ali.
Vivi me trouxe uma caneca da bebida e se sentou
na minha frente. Tomei sem dizer uma palavra, a cabeça
ainda baixa. Tinha esquecido como o chocolate quente
com toque de canela de vovó Violeta aquecia até a alma.
Após meu último gole, ela sorriu e disse:
— Agora você precisa dormir. Quando estiver bem
descansada, nós conversamos.
O quarto que eu ficava quando dormia naquela
casa era decorado com notas musicais, gravuras e afins
nas paredes. Vovó fazia questão de deixar aquele cômodo
exclusivo para mim e mais ninguém.
Deitei na cama e me cobri, dando graças a Deus
por sentir o cansaço que chegava, mesmo com a cabeça
106

a mil. Vivi se sentou na beirada da cama, olhou nos meus


olhos e disse algo que nunca vou esquecer:
— Existe uma força obscura no meio dos homens
que faz o possível pra manter as coisas como são, que
não aceita mudanças e muito menos que existe algo maior
nos guiando. Essa força é o que sufoca todos aqueles
responsáveis por transformar os valores de nossa
sociedade e nos orientar em nossa própria evolução. E
aqueles que obedecem a essa força são tão dependentes
dela que fazem de tudo pra agredir quem é contrário à sua
crença. Porém, por mais que se esforcem, por mais que
ofendam, destruam e matem unicamente por medo, essas
pessoas, cedo ou tarde, irão enxergar a verdade. E cabe
àqueles que receberam a missão de iluminar nosso
caminho resistir, pra quando o momento chegar estarem
prontos pra educar a todos que aqui estiverem.
Olhei para vovó sem saber o que dizer. Às vezes a
inteligência dela me assustava, confesso. Ela meramente
sorriu, me deu um beijo na testa dizendo “Durma bem,
meu coração” e saiu do quarto.
Durante a noite, me lembro de ter sonhado muito,
porém sem recordar de nenhum detalhe. Quando acordei,
me sentia descansada do corpo, só que minha cabeça
parecia meio pesada, como se tivesse estudado para uma
prova muito difícil. Cheguei na cozinha ao som de Queen
tocando no rádio e fui surpreendida com um café da
manhã fenomenal. Parecia coisa de hotel, com pães, frios,
sucos, frutas, leite e muito mais. Vivi estava no fogão
cantarolando enquanto preparava o café.
107

— Bom dia, coração. Como foi a noite? — ela


perguntou.
— Booom… dia — bocejei. — Não foi ruim. Minha
cabeça tá meio estranha. Parece que eu fiz uma maratona
aqui dentro.
— Isso é fome. Sente aqui, pegue o que você
quiser. Achei que hoje seria um bom dia para esbanjar no
café.
Não pensei duas vezes e fui logo fazendo um
sanduíche, pegando um pedaço de bolo e um pouco de
suco. Vivi me acompanhou com um café preto a princípio.
— Te contei sobre o dia em que conheci Freddie
Mercury? — ela perguntou enquanto passava geleia em
uma torrada.
— Não! Você o conheceu mesmo? — Eu sabia que
ela era uma grande fã do Queen, mas conhecer o
Freddie? Caramba.
— Foi nos bastidores do Rock In Rio de 85. Na
época, eu estava escrevendo um artigo pra uma revista
de música e meu diretor conseguiu uma exclusiva.
Freddie era um amor. Após a entrevista, conversamos um
tiquinho mais sobre coisas aleatórias. Que pessoa
extraordinária. Era nítida a inteligência daquele homem.
Uma pena que ele tenha partido tão cedo. Seu pai estava
nesse show também. Implorou pra que eu o levasse.
Ao mencionar papai, me lembrei do ocorrido da
noite anterior. Aquele incômodo que estava escondido
subiu até meu rosto e eu desviei o olhar para o chão. Vivi,
sempre atenta, percebeu.
108

— Vamos acabar com esse café, coração. Não há


nada como um estômago cheio logo pela manhã.
Comemos mais um pouco até não aguentarmos
mais. Eu amava a comida da minha vó.
— Muito bem, assim é bem melhor. Vamos lá fora
um pouco, eu cuido dessa louça depois — Vivi sugeriu.
Fomos para a varanda ao lado da sala, onde
ficavam algumas cadeiras para quem quisesse tomar um
ar. Ela se sentou e apontou a cadeira ao lado. Já
imaginava o que viria a seguir. Me sentei e imediatamente
comecei a reparar nas rachaduras do piso.
— Falei com seu pai mais cedo. Estava bem
preocupado, mas eu o tranquilizei. Expliquei que você
dormiu aqui e pedi a ele pra deixá-la passar esse final de
semana comigo. Ele me contou melhor o que houve
ontem entre você e sua mãe.
Ela parou de falar, esperando que eu dissesse
algo. Por mais que eu quisesse explicar, dar minha
versão, não adiantava. Sabia da gravidade do que tinha
feito.
— Eu sei bem como sua mãe é estúpida. Até hoje
não entendo por que meu filho se casou com aquela
mulher. Mas, apesar da ignorância com que ela te tratou,
nada justifica sua atitude, Jô. Ela teve que ir pra o hospital
levar pontos e seu pai teve que mentir, dizendo se tratar
de um acidente doméstico.
Senti a gravidade aumentar ao redor, quase como
se a terra fosse me engolir. Não conseguia mexer meu
109

corpo de jeito algum. Vivi pegou minha mão e, do jeito


mais carinhoso possível, perguntou:
— Coração, o que está acontecendo aí dentro?
Um vulcão entrou em erupção na minha cabeça e
eu desatei a chorar novamente. Parece que minha vida
agora só se resumia a perder o equilíbrio e o controle de
tudo e desabar nos braços de alguém, esperando
encontrar uma forma de me sustentar de novo. Vivi me
puxou para seus braços e eu me sentei em seu colo como
uma criança em busca de um refúgio.
— Eu não aguento mais — desabafei entre muitos
soluços.
— Eu sei, meu amor, eu sei. — Ela segurava minha
cabeça em seu ombro enquanto eu encharcava sua
camiseta com lágrimas.
E mais uma vez fiquei esperando que o caos me
deixasse em paz um pouco, apenas para que eu pudesse
ter um dia sem o peso de ser quem eu era.
— Eu tenho uma proposta pra você — Vivi
começou após meu choro diminuir. — Quer morar aqui
comigo?
Tirei a cabeça de seu ombro e olhei incrédula para
minha vó.
— Morar aqui? Sério?
— Por que não? Amo sua companhia, e sei que
você ama estar aqui. Além do mais, acho que está na hora
de intervir no estrago que sua mãe está fazendo contigo.
E seu pai não vai se atrever a me impedir, ele sabe o lugar
dele.
110

Me joguei em seu pescoço e a abracei, mal


podendo acreditar no que ouvia. Já queria aquilo há muito
tempo, mas não sabia como ou se deveria pedir. Somente
naquele lugar eu me sentia livre e sem medo. Não pela
casa em si, mas por estar ao lado de Vivi.
— Sim, por favor! Quero muito!
— Está decidido, então — ela ria de satisfação.
Vovó conversou com meu pai naquele mesmo dia.
De início, ele não concordava muito com aquilo, porém
sabia que, no momento, eu não poderia voltar para casa.
Ele comentou algo sobre minha mãe, mas Vivi achou
melhor não me dizer. No dia seguinte, meu pai trouxe
algumas roupas e outras coisas minhas. Foi bem
constrangedor quando nos vimos. Eu ainda tinha muita
vergonha do que aconteceu. Ele se limitou a me dar um
abraço sem dizer nenhuma palavra e depois foi embora.
De certa forma, achei melhor que fosse assim. Nenhum
de nós dois era bom em se expressar um com o outro.
Como havia prometido, Vivi conseguiu convencer
meu pai a me deixar viver com ela depois de duas
semanas já na casa. Minha mãe estava se recuperando
do ferimento, porém a mágoa parecia ser mais difícil de
curar, de acordo com o que vovó me falou.
— Não se preocupe com isso agora, coração. O
tempo cura muita coisa — ela tentou me confortar
enquanto pegávamos algumas amoras no pomar.
Particularmente, eu não me importava tanto. Agora
que me sentia mais livre, meus sentimentos se mostravam
mais verdadeiros. Estava cansada de tentar viver a vida
111

que Dona Marta queria para mim. Pela primeira vez pude
experimentar ser eu mesma.
Os primeiros dias com Vivi foram à base de muita
conversa. Contei a ela como estava me sentindo, a
confusão sobre mim, sobre as pessoas, sobre não saber
o que fazer com minha vida. Foi graças à sabedoria de
seus conselhos e à liberdade que ela me proporcionou
que pude assumir minha sexualidade.
Devido ao prazer de Vivi em receber visitas, pela
primeira vez eu pude ter amigos em casa. Ela sentia um
carinho especial por Paula e, por conta de todo o apoio
que agora eu tinha, finalmente encontrei a coragem de dar
mais um passo em direção à minha felicidade.
Começamos a namorar dois meses depois de eu ter me
mudado.

Passado um ano, a vida já não era mais a mesma.


Descobri um mundo de felicidade ao sentir a liberdade que
Vivi fornecia. Ao me assumir, comecei a sentir uma
vontade absurda de explorar minha própria vida e fazer
tudo que eu não poderia antigamente, a começar pela
música. Comentei com Vivi sobre minha vontade em
aprender bateria e ela prontamente se dispôs a pagar
algumas aulas, antes de comprar o instrumento.
Fiquei empolgadíssima no começo, já imaginando
que estaria fazendo solos, montando minha banda e
dando shows em breve. Porém, passado algumas
112

semanas, percebi que não era tão simples como eu


pensava. Eu me perdia ao tocar, e a falta de coordenação
não ajudava em nada, o que me levou a desistir da ideia
logo.
Mas eu ainda queria tentar outra coisa. Queria me
encaixar em algo que me completasse, que externasse o
turbilhão de sentimentos e energia dentro de mim. E foi
Vivi quem me mostrou a solução.
Era um sábado particularmente gostoso. O tempo
agradável, os raios de sol penetrando entre os galhos das
árvores, os gatos da casa de preguiça no chão da varanda
enquanto eu e minha avó tomávamos café com bolo de
cenoura.
— Sabe, coração... — Vivi começou após pousar
sua xícara na mesinha. — Os gatos sempre gostaram
muito de você, mas ultimamente eles parecem não querer
sair mais do seu lado, especialmente o Hórus. Ele sente
muito sua energia, e olha que não é qualquer um que o
conquista.
— Eu amo a companhia deles. O Hórus vive
entrando no meu quarto pra dormir comigo — comentei.
— É mesmo? — Vivi pareceu bem surpresa ao
saber disso. Virou o rosto para fitar Hórus, perdida nos
próprios pensamentos. — Esse gato é extraordinário. Eu
confio muito no julgamento dele em relação às pessoas.
Nunca erra.
Percebi que Vivi estava em um de seus momentos
de raciocínio místico e resolvi deixá-la viajar em seus
pensamentos enquanto comia mais um pedaço de bolo.
113

— Vamos dar uma volta, querida? Gostaria que


você conhecesse uma pessoa. — Ela se levantou sem
esperar minha resposta e foi até a sala. Engoli o restante
do bolo, enquanto ela voltava com a bolsa e a chave do
carro.
— Aonde vamos? — perguntei.
— Você verá.
Dirigimos por cerca de 15 minutos até um bairro
residencial de classe média. Ao estacionarmos, a primeira
coisa que reparei foi na porta vermelha do galpão. Logo
acima, um letreiro anunciava “Cia Melpômene de Teatro”.
Vivi tocou um interfone ao lado e uma voz perguntou:
— Pois não?
— Boa tarde, querido. Pode avisar ao Olavo que
Vivi está aqui? — ela anunciou.
— Um momento.
Após alguns segundos, a porta se abriu e um
homem de meia idade ligeiramente calvo e sorriso enorme
saiu.
— Vivi, minha querida! Que surpresa maravilhosa!
— O homem que julguei ser Olavo a abraçou por alguns
segundos.
— Olavinho, meu amor. Como você está?
— Ah, você sabe, ainda na busca eterna pela dama
da inspiração. — Ele deu uma piscadela para Vivi e depois
virou sua atenção para mim. — E presumo que essa deve
ser a famosa Jô?
114

— Sim. — Vivi colocou uma mão em meu ombro,


sorrindo. — Jô, esse é Olavo Santana, meu amigo e um
grande mestre do teatro!
Ele abriu espaço para entrarmos, após trocarmos
um breve aperto de mãos.
— Venham, por favor. Fiquei ansioso aguardando
vocês chegarem após sua mensagem, Vivi. — Olavo nos
conduzia até uma pequena recepção enquanto falava.
— Ora, querido, eu não poderia pedir isso a mais
ninguém, você sabe — Vivi comentou.
Vendo meu silêncio e a provável expressão de
quem não está entendendo nada, ela explicou:
— Fiquei pensando em sua busca por algo que
complementasse sua vida, coração. Não queria que você
desistisse disso tão cedo, então conversei com o Olavo e
ele está disposto a dar uma ajuda, já que é perito em
colocar as mais brilhantes mentes no caminho certo, não
é mesmo? — Ela se virou sorrindo para o amigo.
— Não seja tão lisonjeira, querida. Apenas faço
meu trabalho.
— Pare de ser modesto. Seu faro pra descobrir
talento nunca falha, Olavinho, mesmo que a pessoa ainda
não enxergue o verdadeiro potencial que tem.
Olavo deu uma risadinha, admitindo.
— Coração. — Vivi pegou minha mão enquanto
falava. — Eu sei como é difícil se encontrar e saber o que
queremos fazer com nosso tempo. Conheço muitas
pessoas que passam a vida em busca daquilo que não
encontram em si mesmas e se preenchem com coisas
115

absurdas, na ilusão de que um dia irão se encontrar. E se


tem algo que aprendi é que a resposta pra isso é confiar
no que nos faz bem, mesmo que o mundo diga que não
vale a pena, que você vai errar e não vai obter sucesso.
Tente, erre, arrisque. É pra isso que a vida serve.
Mais uma vez a sabedoria infinita de minha avó
apontava um caminho a seguir e dava um pequeno
empurrãozinho para facilitar a trajetória. Eu confiava no
julgamento de Vivi, por isso resolvi dar uma chance.
Um receio muito grande do desconhecido falava
mais alto no começo das aulas. Graças ao tremendo
esforço de minha mãe para segurar todos os meus
impulsos naturais de criança e adolescente, muitas
barreiras haviam se formado ao redor de minha
personalidade, e isso me impedia de expressar
sentimentos e emoções mais abertamente, o que percebi
ser algo essencial no teatro. Porém não demorei para
notar o que Vivi queria dizer sobre Olavo. Ele tinha o dom
de chegar até as emoções mais profundas e resgatar algo
que nem mesmo eu sabia que podia existir.
— Qual sentimento que mais lhe vem à cabeça
agora, Jô? — Olavo tentava outra abordagem em uma
aula particularmente difícil.
— Eu não sei… Às vezes eu sinto muita… raiva —
admiti a contragosto.
— Muito bem. Me traga um objeto qualquer de
dentro de sua mochila.
116

Fui até minha bolsa e vasculhei até pegar uma


palheta de guitarra que o Marcos me deu de recordação,
onde estava escrito “Alice”.
— Agora quero que você pense em uma história
pra esse objeto, usando o sentimento de raiva.
“Mais fácil falar do que fazer”, era o que eu queria
dizer, mas me limitei a fechar a cara e pensar em uma
história. Olavo passou o mesmo para os outros alunos,
sempre pedindo um objeto e um sentimento aleatório.
Uma das coisas que fiquei feliz em notar era que
não era tão tímida como imaginava. Ao começar as aulas
juntamente de pessoas que não conhecia, tinha
antecipado várias situações envolvendo humilhação
dignas de um pesadelo adolescente. Porém todos ali
pareciam ter algo em comum comigo, talvez nessa
questão da busca por você mesmo, ou por desejarem um
pouco mais de expressão em suas vidas. Fosse o que
fosse, eu me sentia à vontade ali no meio de todos.
Por fim, acabei bolando uma história onde uma
cantora chamada Alice havia me abandonado após meu
empenho em lançar sua carreira na mídia.
— ... e mesmo depois de tudo que eu fiz por ela,
mesmo depois de todo o empenho, o sacrifício, o suor que
gastei pra fazer dela “A Alice”, ela teve a coragem de me
abandonar, dizendo que eu não poderia fazer mais nada
pela sua carreira. COMO ELA TEVE CORAGEM DE
FAZER ISSO? ELA NÃO SERIA NADA SEM MIM, NADA.
FICARIA CANTANDO EM BUTECO PELO RESTO DA
VIDA GANHANDO MIXARIA. VOCÊ ME PAGA, ALICE.
117

Olavo e os outros alunos aplaudiram minha


pequena encenação.
— Muito bom, Jô. Excelente improviso. — Ele
voltou sua atenção para todos. — Às vezes um sentimento
é o suficiente pra criar-se um personagem, mesmo que
seja um sentimento negativo. Usem o que já existe dentro
de vocês. Doem-se, façam da sua história uma parte da
vida de seu personagem. Com o tempo vem a vontade de
abordar novos sentimentos pra criar uma personalidade
ainda mais complexa e rica. Aproveitem esses momentos,
pois vocês poderão tirar muito proveito disso, não só no
teatro, mas também pra a vida.
Após a aula daquele dia, Vivi e eu estávamos
preparando o jantar enquanto eu falava sobre tudo que
aconteceu.
— … então eu… quer dizer, o personagem,
começou a gritar de raiva por ter sido abandonado pela
Alice. Foi bem bacana, deu até pra aliviar um pouco
algumas coisas que eu tinha guardado, eu acho.
— Fico tão feliz por você, coração. Esse é um dos
poderes da arte. Ela pega aquilo que não gostamos de
admitir que existe internamente e transforma em histórias,
melodias, cores e movimentos que encantam quem vê,
ouve ou sente.
— Vó, por que você teve essa ideia de eu começar
a fazer teatro? — Já queria perguntar isso há alguns dias.
Vivi parou de picar as cenouras e me olhou com seu jeito
mãezona.
118

— Você é minha neta, Jô, e nasceu com dons que


ainda não conhece bem, mas que irão aflorar
eventualmente. Sinto que é meu dever fazer com que
você passe por esse momento da melhor forma possível,
desvendando cada aspecto da sua personalidade com
calma e aprendizado. Quero que você viva a vida como
eu acredito que ela deve ser vivida. O teatro é apenas uma
forma de descobrir mais de si mesma, como uma terapia.
— Ela limpou as mãos e me deu um longo abraço. — Você
é livre pra fazer o que quiser, coração, mas tente sempre
dar uma chance pro novo. O resultado pode te
surpreender.
Eu já estava me acostumando com o jeito meio
bruxa de Vivi em adivinhar o que se passa na minha
cabeça, mas aquele momento em particular pareceu
surpreendente, pois ela parecia chegar no canto mais
escondido de minha mente.
Apesar de toda a vida maravilhosa proporcionada
por ela, havia certos momentos do dia em que eu me
odiava, principalmente quando eu ia tomar banho e tinha
que me despir. Não conseguia olhar para baixo às vezes
e me reconhecer. Ficar na frente do espelho, somente de
roupa. Era como se eu estivesse constantemente presa
em uma fantasia da qual eu não gostava e não conseguia
tirar. Não tinha certeza se estava louca, se era exagero ou
se eu tinha algum problema. Fosse o que fosse, não tinha
coragem de falar para ninguém, nem mesmo Vivi.


119

Passado um ano desde que Vivi havia me levado


para a escola de Olavo, eu já havia me apaixonado pelo
teatro. Assistia peças, vídeos no Youtube, trocava ideias
com meus colegas, era minha vida.
Minha primeira apresentação não foi lá essas
coisas, claro. Eu estava hipernervosa, pensando que não
seria boa o suficiente, que iria esquecer as falas; fiquei tão
focada no que poderia dar errado que interpretei uma
personagem totalmente mecânica, sem graça.
— Não seja tão dura consigo mesma, coração.
Você está apenas começando. Confie mais em você da
próxima vez. Aprenda com seus erros, é pra isso que eles
servem — Vivi me consolava após a apresentação.
Eu não havia comentado com Vivi, mas não ver
meus pais na apresentação me deixou bem chateada.
Meu pai ainda me visitava de vez em quando em casa.
Geralmente não tínhamos muito o que conversar, mas
pelo menos ele fazia um esforço em me ver. Dona Marta,
no entanto, nunca mais havia falado comigo. Eu esperava
que, àquela altura, já fosse possível me perdoar, porém
também não queria ser a primeira a dar o braço a torcer.
Terminei o ensino médio com boas notas e
pensava seriamente em fazer artes cênicas. Vivi me
apoiava totalmente, apesar de deixar claro as dificuldades
que iriam aparecer em minha vida:
— Vivemos em uma sociedade que preza o
material acima de tudo, Jô, e infelizmente as artes estão
sendo colocadas cada vez mais de lado. Não quero que
120

você desista de seus sonhos, apenas espero que você


entenda como funcionam as coisas atualmente pra que
possa se preparar no futuro. Tudo tem mudado muito
rápido e sua geração tem desafios muito maiores do que
a minha. Eventualmente eu acredito que as pessoas irão
se cansar de consumir tanto e voltarão a buscar maiores
fontes de inspiração, e iremos precisar de grandes artistas
quando essa hora chegar.
Arrumei um emprego em uma loja de roupas no
shopping. Não era bem o que eu queria, porém Vivi
insistiu para que eu assim o fizesse. Ela dizia que certas
coisas só aprendemos vivendo, e uma delas era o valor
do dinheiro.
A vida era boa. Eu tinha um lar cheio de amor, com
uma avó que me inspirava o melhor todos os dias, um
sonho a perseguir, amigos que me queriam bem e até um
emprego. Não precisava de mais nada. Até mesmo
minhas crises existenciais estavam sossegando e eu
estava começando a não odiar o espelho. Sentia como se
estivesse subindo cada vez mais na escala da felicidade
e nada poderia me derrubar. Pelo menos era o que eu
acreditava.
Quando o resultado do primeiro vestibular saiu sem
meu nome na lista de aprovados, me senti muito mal,
porém era apenas o primeiro e eu não iria desistir.
Aumentei minhas horas de estudo, sacrificando um pouco
meu relacionamento com Paula. Ela até compreendia,
porém não conseguia ou não queria disfarçar sua
insatisfação. Matheus vivia mandando mensagem
121

também pedindo para fazermos algo como antigamente,


só que eu não tinha mais tempo. Precisava manter o foco
nos estudos.
Após meses de dedicação e 5 tentativas frustradas
de ingressar em uma faculdade, a dúvida sobre minha
própria capacidade começava a virar uma certeza.
Certeza de que não era boa o bastante, que não iria obter
sucesso no meu sonho e seria uma vendedora de
shopping para sempre. A escala da felicidade começava
a mostrar sinais da descida à qual eu estava destinada.
Como se não bastasse as constantes recusas das
faculdades, veio o término. Não podia culpar Paula por
estar cansada da minha companhia, afinal nem eu
aguentava mais com tanta pressão na cabeça. Só
esperava que ela não me abandonasse naquele
momento. Custava ter um pouco mais de paciência?
Custava se colocar no meu lugar e ver que eu precisava
dela comigo? Vivi fez o possível para ficar ao meu lado,
conversando, tentando mostrar que tudo tinha um porquê,
um propósito. Mas mesmo com todo seu apoio, eu não
pude evitar o desânimo que me consumia.
Os espelhos se aproveitaram de todo meu fracasso
e se juntaram para me infernizar. A toda hora eles me
mostravam a derrota ambulante que eu era. Errada por
dentro e por fora. Tirei todos aqueles malditos refletores
da vergonha do meu quarto e banheiro, esperando que
tivesse um pouco de paz. Imagino que Vivi percebia que
estava acontecendo algo, mas não interferia.
122

Eu esperava que a felicidade não me abandonasse


mais, que ela permanecesse ali, paradinha onde estava.

Só que estávamos entrando em 2020.

No Brasil.

Assistimos as notícias na TV com uma grande


incerteza do que estava acontecendo. Não bastasse
nossa política parecer estar cada vez mais destruída,
agora um vírus ameaçava nos trancar em casa por meses.
Nem mesmo a incerteza do que viria daqui para
frente não me deixava tão aflita quanto ver como aquilo
afetava Vivi. Todos os dias ela entrava em sua "salinha
zen" e ficava lá por horas. Seu rosto até tentava mostrar
segurança ao sorrir para mim, mas uma desviada breve
no olhar ou um vacilo no canto da boca denunciava seu
estado.
Quando a febre apareceu, eu rezei pela primeira
vez. Implorei de todas as formas possíveis, para todos os
deuses que conhecia:
“Por favor, ela não. Vocês já tomaram tudo de mim.
Ela não. Deixem ela aqui comigo…”
Vivi deu entrada no hospital 2 dias após o primeiro
sintoma. Tentei ficar ao seu lado o máximo possível,
porém fui barrada logo na entrada. O desespero em deixar
Vivi ser levada por aqueles enfermeiros com olheiras
aparentes, mesmo através das muitas proteções no rosto,
sem a certeza de que iria voltar a vê-la...
123

Não! Isso não podia acontecer. Eu não iria permitir.


Tinha que haver um jeito, algum remédio, qualquer coisa
que a deixasse boa de novo. Afinal, era a Vivi.
Permaneci do lado de fora, parada, esperando que
a qualquer momento ela apareceria ali andando
tranquilamente ansiosa para voltar para casa. Cada vez
mais pessoas chegavam no hospital pela porta da frente,
porém quase não se via alguém saindo. Não queria
admitir, mas eu sabia que só havia um lugar por onde os
pacientes estavam sendo retirados. Nunca pensei que
veria tantos carros funerários perto de um hospital.
"Por favor, quem puder me ouvir, deixe ela aqui".
Eu bem que tentei, mas, com tantos pedidos vindos
do mundo todo, não consegui botar a culpa em Deus.
Talvez Ele precisasse de toda ajuda possível lá em
cima e os anjos estavam sendo chamados de volta.
Só que eu também precisava dela.

Cada vez que me levantava da cama, sentia três


vezes meu próprio peso. Dar um passo consumia todo o
pouco fôlego que eu tinha. Não conseguia mais sentir
prazer na comida, na água, na música... A casa se tornara
um túmulo. O silêncio gritava a todo momento em meus
ouvidos, espreitando em cada cômodo, me seguindo
como um maldito parasita. Tudo estava mais escuro, mais
cinza.
124

Não sei o que me levou a pegar o telefone, só me


dei conta quando já havia discado.
— Alô?
— Mãe?
Palavras. No momento certo elas podem
transformar as trevas em luz e resgatar alguém de seu
inferno particular, do abismo no qual se viu obrigado a
chamar de lar. Porém nem todos entendem a
responsabilidade por trás de tal poder.

— Eu não tenho filha…

O triângulo irregular refletindo meus olhos vazios


cortava a palma de minha mão. No chão, os pedaços
menores que não iriam servir ao meu propósito. O espelho
em forma de sol que enfeitava a salinha zen de Vivi jazia
ao meu lado, com seu interior oco após o encontro com
meu punho, manchado pelas gotas de sangue do meu
braço esquerdo. Três linhas passavam pelo meu pulso,
fazendo pequenos rios vermelhos até o chão.
Eu olhava para a pintura da porta na parede,
esperando ansiosamente que ela se abrisse e ali
estivesse Vivi, de braços abertos, vindo me buscar e
dizendo que tudo havia acabado. Imaginei nós duas
subindo pela luz que saía da porta, chegando até uma
cidade no meio das estrelas, onde tudo que me corroía
por dentro não existia mais.
Mas, ao invés da luz, senti uma sombra surgindo
do chão, fria, áspera, escurecendo meu corpo e me
125

puxando aos poucos para o vácuo. Não conseguia


encontrar forças para brigar com meus olhos que
teimavam a se fechar cada vez mais. Ao longe, pude
escutar meu nome, imaginando que alguém estava
tentando chegar até mim, mas sem conseguir lutar com a
sombra.

Flutuei na escuridão…

E desapareci…
126

Capítulo VIII
127

As ondas batiam com uma frequência maior,


indicando um aumento na maré. O mar parecia desejar
chegar até mim, me envolver e consolar a turbulência que
havia no meu coração. A ferida causada por Furore no
meu braço esquerdo agora pulsava sem sangrar, me
lembrando do ato.
Como eu pude deixar isso acontecer?
A mão de Senex pousou em meu ombro enquanto
eu tentava inutilmente segurar as lágrimas.
— Deixe as ondas te lavarem, meu caro.
Forcei meus olhos a se fixarem no horizonte
alaranjado, esperando ser puxado em direção ao azul que
me aguardava, ansioso. Um pé após o outro, caminhei
pela areia branca. Ao tocar o oceano, imediatamente ele
retrocedeu, formando uma onda com duas vezes minha
altura. Sem se desculpar ou dar qualquer justificativa, o
mar azul antes tão calmo e convidativo agora me girava
em todas as direções. Não havia mais terra ou céus,
somente o gelo da água me envolvendo.
Da mesma forma que veio, o mar se foi, me
largando na praia. O sal expulso da minha boca deixava
sua lembrança incômoda enquanto eu buscava o conforto
do ar. A areia envolvia meus braços e pernas, me
presenteando com sua estabilidade. E lá em cima, com
toda sua imponência, o sol prometia aquecer cada poro
castigado pelo frio.
Senex parou à minha frente, se ajoelhou e beijou o
topo da minha cabeça.
128

— Bem-vindo de volta, Jô.


Meus olhos se ergueram para enxergar Senex
enquanto os pensamentos me dominavam, tentando
administrar, absorver tudo o que estava acontecendo
comigo naquele momento.
Desde criança tentando ser alguém que minha
mãe, meu tio, as pessoas em volta e até meu próprio
corpo diziam ser, tentando satisfazer as expectativas
daqueles que viviam à minha volta, esperando que eu
pudesse me olhar no espelho e me reconhecer. E quando
eu finalmente encontrei alguém que me permitia explorar
minha própria identidade, alguém que me mostrou um
mundo de possibilidades…
No final das contas, ela não estava lá, naquele
paraíso no qual me encontrava.
— Pensei ter ouvido você dizer que eu não estava
morto… — Minha voz saía rouca devido aos soluços que
acompanhavam as lágrimas.
— E não está. — Senex correspondia meu olhar
com uma expressão carregada de compaixão, sem tirar o
sorriso do rosto.
— Como não?
— Não iremos permitir que alguém tão poderoso
assim tire a própria vida. Você ainda tem muito a fazer, Jô.
Só precisava enxergar melhor quem realmente é. Seu
corpo material está dormindo agora em um hospital. Seu
pai te encontrou no momento em que desmaiava.
129

Me lembrei da voz que ouvi ao fundo quando senti


a escuridão começando a me puxar, e notei o grito de meu
pai ao me encontrar com o pulso cortado.
— Ele… ele veio… por quê? Como?
— Ao notar a resposta de Marta quando você ligou,
algo o fez correr até sua casa. A morte da própria mãe o
deixou muito abalado, e parece que há uma mudança
acontecendo nele, assim como em você.
— Vivi… Ela não está aqui? — perguntei,
esperançoso.
— Não da forma que você gostaria, meu caro. Mas
a essência dela vive em você. De onde achas que nasceu
essa força que tens sentido desde que acordaste neste
mundo? Vivi foi quem plantou a semente que fez todo
esse calor aí dentro pulsar. Uma semente desprezada
ainda por muitos, porque somente aqueles com coragem
de enfrentar as próprias sombras compreendem o poder
que ela tem. Ela te deu o amor, Jô.
A luz surgia de um local próximo ao meu coração e
irradiava lentamente através do meu sangue. Podia sentir
cada veia, cada artéria ser preenchida por aquela energia
vital percorrendo toda a extensão do meu corpo, levando
embora todo o peso dos meus erros, preenchendo todo o
oceano de sentimentos e pensamentos do meu interior e
transformando tudo em luz. A esfera negra não mais
existia, pois ela havia cumprido seu papel, e agora sua
irmã estava pronta para se apresentar devidamente a
mim.
130

O puxão violento do chão me tirou do transe. A


areia da praia me engoliu em segundos, sem me dar
tempo de reagir ou entender o que estava acontecendo.
Senti os pés encontrarem sustentação novamente e caí,
tendo tempo somente de colocar as mãos para evitar
beijar o solo.
O primeiro choque foi a diferença de temperatura.
O calor do sol havia desaparecido, e tudo que eu sentia
era um frio seco e áspero, morto. Não havia quase luz
nenhuma, o que tornava difícil enxergar onde me
encontrava, porém meus olhos logo se acostumaram e
revelaram um vasto corredor com nichos que pareciam
conter diferentes salas com entradas altas. O corredor
parecia se estender até onde minha visão permitia
enxergar, o que era dificultado pela névoa densa e negra
que preenchia o lugar — o Fuscus.
Sabia onde estava. As portas trancadas no centro
do Animus Universum. O local que parecia conter a quarta
energia e do qual eu ainda não compreendia sua função.
Oriri.
O arrepio em minhas costas me fez levantar. Algo
ou alguém havia passado por trás. A escuridão do Fuscus
me deixava vulnerável, e não pude conter o medo que
começava a sentir.
Todo o sentido de alerta foi inútil frente ao silêncio
de Furore, que me olhava agora a poucos metros de
distância. Seus olhos amarelos e vazios se destacavam
naquela treva e fitavam os meus, sondando, analisando.
131

Demorei um tempo para conter meu pavor e perceber que


ele poderia ter me atacado se quisesse.
— Ele não irá se mexer, não até termos uma
conversa. — A voz feminina sussurrava na quietude
mórbida que ali reinava. Timoria surgiu em meio ao
Fuscus, ao lado de Furore. Seu corpo branco e fino e seus
cabelos se misturavam à névoa, e tudo se tornava uma
coisa só. O arrepio na espinha se espalhou por todo meu
corpo.
— O que é você? — indaguei.
— Não é óbvio? Eu sou tudo que você odeia em si
mesmo. Seu fracasso, seu passado, seu corpo... Seu
medo. Eu nasci na treva que você cultivou por tanto
tempo, moldada por cada uma das suas feridas mal
cicatrizadas. E graças ao seu último ato de covardia, eu
pude finalmente me libertar.
— NÃO ME CHAME DE COVARDE!!!
— GRRRAAAAAAAAAAAUUHH — Furore rugiu
em resposta ao meu grito.
— Do que eu deveria te chamar, então? Nunca
levantou a voz pra expor seu interior, dependendo sempre
dos amigos ou da querida vovó pra ser feliz. Quando
confrontada pela própria mãe, preferiu a violência.
Desistiu da carreira, da felicidade, da vida. E o resultado?
É só olhar em volta de onde estamos. — Timoria acenou
para o corredor do Oriri. — Você não sabe o que é
exatamente o Oriri, não é? Ainda não te contaram? O Oriri
é onde está registrada toda a trajetória de vida do ser
consciente. Cada decisão, cada momento marcante da
132

sua existência estão gravados nesse lugar. Agora me


diga, Jô, consegue ver algo? Onde estão suas
conquistas? Onde estão os momentos de glória?
Olhei para aquele imenso corredor lúgubre,
esperando ver algo além da escuridão. Mas não havia
nada. Nada além daquele maldito Fuscus que me
perseguia constantemente.
— Exatamente. Nada. Você apagou tudo porque
estava cansado de si mesmo. E isso é o que há agora em
você, nada. E caso ainda tenha alguma dúvida, basta
olhar pra Furore. — Timoria acariciava o topo da cabeça
negra e espetada da besta. — Olhe o que seu egoísmo
causou. Antes, quando ele era Viribus, sua força inspirava
a todos dentro do Oriri, imponente, destemido, seguro do
destino que existia pra nós, principalmente você. Viribus
era a pureza do Animus. Mas, agora, há somente a fúria
insana que o contaminou. A sua fúria.
Ela estava certa. Não conseguia argumentar,
revidar, combater as verdades que Timoria apontava.
Sabendo de toda minha trajetória de vida, era inevitável
perceber que tudo que fiz de bom foi porque sempre tive
ajuda de alguém. Mas quando me encontrava só, tudo que
pensava era no vazio que minha existência representava.
Será que minha vida estava tão fadada ao fracasso assim
para ter que usar a saída de emergência? Por que não
pude resistir mais um pouco? Por que passar por tudo
aquilo? Fastus, Senex, Mollitiam, Gaudia…
— Porque você se esqueceu de nós faz tempo, ué,
mas a gente sempre esteve junto. — A voz de Gaudia
133

soprou no meu ouvido, como se estivesse ao meu lado.


Me virei para enxergá-lo, porém não havia ninguém. — Eu
não estou aí, bobão. Eu estou aqui.
Uma mão pequena e invisível pareceu tocar meu
peito, exatamente no ponto onde sabia estar o orbe de luz.
— Nós nunca deixamos de te acompanhar, só que
você não queria ouvir, principalmente a mim. — Gaudia
falava com um tom ressentido. — Se esqueceu de tudo
que podíamos fazer nas nossas aventuras? Quantas
cidades nós salvamos, quantos lugares novos
descobrimos, quantos poderes diferentes já tivemos? Aí
você foi crescendo e prestando atenção mais no que os
outros diziam e se esqueceu do quão forte é, e cada vez
mais ficava alimentando tudo que via de ruim.
— Jô ainda não conhece força que tem — a voz de
Mollitiam se pôs ao lado de Gaudia. — Só precisa
entender que vai cair até aprender a se levantar.
— E perceber que toda a sabedoria vinda de cada
uma de suas quedas vai te guiar para uma vida plena —
Senex se juntava ao coro.
— Só assim você se tornará o ser fantástico que
nasceu pra ser — Fastus completava a união de vozes no
meu peito. — Aceitando que veio pra trilhar um caminho
duro, sofrido no começo, mas com um propósito
grandioso, levando tudo o que aprendeu a quem souber
ouvir.
A cada surgimento de um deles, eu me abaixava
ainda mais, até o momento de estar de joelhos no chão
com as mãos no rosto, de volta às lágrimas.
134

— Me desculpem.
— Não é a nós que você tem que pedir perdão,
meu caro, até porque não há o que perdoar — Senex
respondeu.
Eu sabia o que ele queria dizer. Limpei o rosto
úmido e senti minha respiração acalmar. Como
pressentindo o que estava acontecendo, Timoria ordenou:
— Furore, pega!
Encarei a besta nos olhos antes que ela me
atacasse, mais uma vez no elo entre nossas emoções.
Corpos imóveis e mentes alertas. Furore rasgando e
empurrando de um lado enquanto me defendia ou
desviava de outro, tentando chegar no cerne de sua ira.
As raízes de nosso elo permaneciam mais firmes que
nosso encontro anterior. Havia um alimento constante de
certeza vindo diretamente do orbe em meu peito que
mantinha a força necessária para o que precisava ser
feito. E graças a essa força, percebi algo diferente em
Furore.
Escondido entre toda aquela raiva e violência, bem
no fundo das trevas que o dominavam, tinha um pequeno
sentimento, acuado no coração da besta. Um pedido de
ajuda desesperado, que não conseguia encontrar formas
de escapar dali, e sofria com toda aquela ira o
pressionando. Meu coração pulou em harmonia com o
calor do orbe de luz. A cada batida em meu peito, a luz
fluía para a corda, fortalecendo-a e empurrando a ira para
trás. Furore sentiu a mudança em nossa batalha e abaixou
a cabeça levemente, mostrando, pela primeira vez, um
135

sinal de fraqueza. Lá dentro, reagindo ao que eu


emanava, percebi que era Viribus quem tentava sair.
Sentindo que eu estava ali, agora ele estava alerta.
Furore percebeu o perigo e rugiu. Devido à
proximidade, a força de seu urro me atingiu e eu vacilei,
desviando os olhos brevemente. Isso foi suficiente para a
conexão se romper e ele partir para cima, esperando usar
sua vantagem física contra mim e acabar com tudo. Suas
patas imediatamente deixaram o chão para trás,
impulsionado pela violência que ele tanto almejava. Numa
fração de segundo, a distância entre nós foi encurtada
pela metade. Foquei seus olhos bem a tempo e senti
novamente a conexão. Furore parou sua investida, e
apenas um passo nos separava agora. Eu precisava
vencer.
Por algum motivo que não consegui entender, me
lembrei da corrida no meio da floresta, da sensação de ter
meus pés sentindo o chão e meu coração pulsando vida.
O momento em que descobri que meu corpo quase não
tinha limites. Viribus, na mesma hora, se mexeu lá dentro
de Furore. Algo em minha lembrança lhe deu coragem, e
uma parte de sua verdadeira essência voltou. Furore
estava com medo agora. Ele estava perdendo, por fora e
por dentro. A ligação se tornou inquebrável, e minha
vontade, aliada a de Viribus, mantinha toda aquela raiva
encurralada na corda que era a fusão de nossas energias.
Dei um passo à frente, obedecendo meus instintos,
minha mão indo em direção à besta. Ele tentou rugir em
alerta, mas nem mesmo Furore acreditava mais em sua
136

vitória. Ao tocar sua cabeça, a conexão se expandiu e a


fúria que estava presente se foi. A pele negra de Furore
caiu no chão, dando lugar a uma pelagem branca com
listras vermelho-cobre.
Um gato doméstico do tamanho e porte de um leão
me encarava com um olhar inteligente e avaliador. Me
ajoelhei, deixando o rosto na altura de Viribus, ainda
captando suas emoções. Um sentimento de gratidão
muito além do que qualquer humano poderia demonstrar
emanava daquele animal magnífico. Seus olhos, agora de
uma cor âmbar e quente, me fitavam com uma ternura que
eu não podia compreender em sua totalidade. Eu entendia
agora a aflição de Mollitiam em reaver seu amigo de volta.
Viribus encostou sua testa na minha para que eu sentisse
a pureza do seu perdão.
— Devo supor que agora você entende quem
realmente é? — Timoria me fitava, incerta. Procurei os
olhos vazios de minha rival enquanto levantava.
— Creio que sim. Lamento te decepcionar, Timoria,
mas todo seu esforço em me destruir foram inúteis.
— Então não sou mais necessária.
Timoria ergueu a cabeça e um redemoinho negro
se formou em sua boca, começando a sugar todo o
Fuscus à nossa volta. Apesar da força gerada por aquele
tornado de trevas, eu permaneci imóvel ao lado de Viribus,
testemunhando a escuridão abandonar aquele lugar e
revelar a grandiosidade do que havia por trás. Cada nicho
do Oriri continha uma memória de minha vida. Minha
infância dividida em muitas brincadeiras, as muitas fases
137

musicais da adolescência, os personagens que havia


imaginado no teatro, sonhos que já tive e havia me
esquecido, desejos não realizados, descobertas,
emoções, esperança. Em uma das extremidades do
corredor, o infinito aguardava, ansioso por continuar a
preencher mais da minha história. Do outro lado, pude ver
o portão que sabia conter a conexão com o Animus
Universum. Timoria agora havia sugado todo o Fuscus e
revelado sua verdadeira identidade.
— Umbra?
— Olá, Jô.
Não sei se era devido ao local no qual nos
encontrávamos ser mais claro que o quarto onde o
conheci, porém era visível uma mudança na aparência de
Umbra. Seu corpo sombreado e quase indefinido agora
possuindo ainda mais matéria escura similar ao céu
noturno. A luz à sua volta parecia dobrar e contornar seu
corpo. Pude sentir com nossa proximidade que algo, como
uma força invisível, era atraído diretamente para ele.
— Você está diferente — comentei.
— Graças a você. Suas conquistas moldaram
minha essência, e agora eu sou mais do que antes.
— Eu não entendo. Se você era Timoria, por
que…?
— Porque é minha função. Eu guardo seu lado
mais escuro, onde se encontram seus medos, rancores,
mágoas, os detalhes sobre si mesmo que não gosta e não
pode se livrar. Eu existo para te levar dentro de sua
própria sombra e aprender com ela, ao invés de odiá-la,
138

para que assim consiga ver a própria luz. Sem mim, você
não veria a si mesmo.
— Então o Fuscus… você o criou?
— Não. Aquilo foi o resultado da sua escolha em
acabar com a própria vida. O Fuscus era a materialização
de sua tentativa de suicídio. Eu apenas tive um controle
parcial sobre sua influência, e por muito pouco esse
controle não me escapou. Porém não consegui evitar que
Viribus fosse contaminado. — Umbra se aproximou de
Viribus e se ajoelhou. — Lamento, meu amigo. Fiz o que
pude para amenizar sua dor.
Viribus encostou o focinho na testa de Umbra, onde
uma pequena luz apareceu. Umbra levou a mão até a
lateral do rosto daquele felino sagrado, acariciando, e se
levantou em seguida. A pequena estrela ainda brilhava em
sua cabeça.
Todo aquele universo espetacular, inacreditável e
ao mesmo tempo tão real, e eu quase destruí tudo.
— Não se culpe. — Umbra lia meus pensamentos.
— Você apenas colocou todo seu foco em algo que não
era verdade. O ser consciente é refém de seus próprios
pensamentos. Cabe a ele aprender a identificar o que
deve ser cultivado e o que deve ser descartado. É uma
tarefa árdua, e possivelmente a maior batalha que alguém
pode ter, mas plenamente alcançável. Basta começar
conhecendo a si mesmo.
Observei meu professor por um momento,
enquanto a grandeza do seu ensinamento somava com
tudo que havia presenciado desde o meu despertar, no
139

nosso primeiro encontro. A consciência de quem Jô de


Luca era estava ali, montada em detalhes. Cada
momento, cada escolha, cada fase recheada de emoções
diversas, colocadas minuciosamente em um único
propósito: moldar uma vida.
O orbe de luz em meu peito crescia,
acompanhando as batidas do meu coração. A cada pulso,
a energia aumentava. Em algum momento, tanto o orbe
como o coração se fundiram, e agora havia apenas
energia fluindo em minhas veias. Minha consciência se
conectou a cada um dos muitos nichos do Oriri e seus
ensinamentos, mostrando a cadeia de eventos que
lapidava minha existência. De mãos dadas com o
entendimento, veio também o propósito:
— Conhecimento — sussurrei. — Esse é o
propósito: compartilhar conhecimento.
— Sim, meu amigo. Esse é o seu objetivo e de
tantos outros que passam por situações semelhantes. O
fim pelo qual o Animus Universum existe.
O portão que barrava o Oriri se abriu. Umbra fez
um gesto, me convidando para seguirmos o corredor.
Passamos pelo Oriri, Umbra, Viribus e eu, até
encontrarmos nossos amigos no centro do Animus.
— Eu sabia que você iria conseguir! Você é o maior
super de todos, Jô! — Gaudia veio flutuando em nossa
direção.
— Obrigado, Gaudia. Eu não teria conseguido sem
vocês.
— Nisso você tem razão.
140

Fastus chegava junto de Senex e Mollitiam. Ao


avistar sua amiga, Viribus saiu correndo ao seu encontro,
a saudade tomando conta de seus passos. Ele pulou em
cima de Mollitiam e ambos caíram no chão. Viribus
esfregava seu rosto em sua amiga, tentando saciar toda a
saudade sentida. Ela o agarrava com amor, e pela
primeira vez um sorriso iluminou aquele rosto endurecido.
— Mollitiam muito feliz. Viribus de volta. Obrigada.
— Ela se levantou, levou o punho ao peito e fez uma
reverência com a cabeça. Depois, pegou o cristal violeta
de seu cajado e me entregou.
— O que é isso? — perguntei.
— Esta é a prova do amor de Vivi por você, meu
caro — Senex respondeu. — Na noite em que ela te
acolheu após o desentendimento com sua mãe, o amor
de Vivi criou uma pequena semente em nosso mundo.
Essa semente que você segura agora foi a responsável
por estabilizar todos os reinos que você conheceu. Não
havia ordem antes, era apenas o caos de sentimentos que
batalhava dentro de você, e, portanto, nada se
concretizava, nada era criado. A semente manteve seu
brilho durante a permanência de Vivi ao seu lado, porém
a luz do cristal fraquejou com a passagem de Violeta de
Luca para a outra vida.
Observei o cristal em minhas mãos,
compreendendo o que havia sentido falta em seu interior
na primeira vez que o vi.
— Viribus, por ser o mais puro de nós e guardião
da luz, ficou encarregado de proteger a pouca energia que
141

o cristal dispunha — Umbra continuou. — Mas sua pureza


não foi capaz de segurar a destruição causada pelo
Fuscus, o que resultou na sua transformação em Furore e
desencadeou o caos que você presenciou em alguns
momentos. Infelizmente eu não tive outra alternativa a não
ser somar seus medos no meu corpo e me tornar algo que
pudesse controlar o Fuscus, nascendo, assim, o monstro
e Timoria.
— Espera, você também era aquele monstro
negro?
— Sim. Precisávamos ter certeza de que o trauma
gerado pelo seu tio Humberto estava curado.
— Eu… sinto muito, Umbra… — respondi,
envergonhado.
— Como já dissemos, você não precisa se
desculpar, Jô. Pode-se dizer que faz parte do meu
trabalho enquanto guardião e do seu aprendizado. E,
novamente, você só focou demais nas dificuldades e se
esqueceu dos momentos maravilhosos que moldaram sua
vida. Você é humano, afinal. E se ainda possui alguma
dúvida quanto ao seu destino, basta olhar para onde
estamos.
Omnia, Gaia, Creaturae e Oriri. As quatro
essências que compunham a grandiosidade do Animus
Universum. E eu me encontrava bem no meio de tudo
aquilo, rodeado por seres extraordinários que me
proporcionaram tantas lições em tão pouco tempo.
O calor do orbe de luz se concentrou em meus
braços e o cristal reagiu com um brilho fraco que
142

aumentava gradualmente. Nutrido pelas lembranças de


Vivi em minha vida, o orbe pulsava seu calor para a
semente em minhas mãos. Quanto mais minha atenção
focava no cristal, mais sua luz crescia, até o ponto de não
poder mais enxergar seu contorno. A semente não era
mais necessária, pois meu mundo estava pronto.
Não pude conter o sorriso ao ver a felicidade que
se fazia presente.
— Olhe só para você, meu caro. Quanta força,
quanta energia emana desse coração. Esse velho aqui
agradece por ser testemunha de algo tão extraordinário.
— Senex abria seu sorriso em minha direção, abaixando
a cabeça com a mão no peito no mais profundo sinal de
gratidão.
Me ajoelhei perante os seis guardiões, juntando as
mãos em retribuição ao gesto. Ao me levantar e vê-los ali,
um ao lado do outro, notei algo que estava bem evidente:
— Vocês não são frutos da minha consciência
realmente, são?
Todos eles deram uma pequena risada enquanto
me olhavam, cada um à sua maneira. E foi Senex quem
falou:
— Um ensinamento de cada vez, meu caro. Isso é
algo para outra visita.
Assenti, ciente de que já havia alcançado o objetivo
de estar ali.
— Hora de voltar, não é?
— Sim. — Umbra se aproximou e colocou a mão
em meu ombro. — Você atingiu algo incrível em sua
143

existência, Jô. Agora é sua função auxiliar a outros, da


mesma maneira que Vivi te auxiliou. Escolha a forma que
mais lhe agrada, lembrando-se sempre de compartilhar
aquilo que aprendeu.
— Eu vou me lembrar de tudo que vivi aqui?
— Com a mente, não. Seu coração agora é o que
irá conter suas memórias. Confie no que sente e o
caminho nunca será incerto.
Umbra deu um passo para trás e abriu levemente
os braços. Gaudia se colocou ao seu lado, ainda
levitando, imitando o gesto e fechando os olhos, seguido
por Mollitiam, Viribus, Fastus e Senex. Os seis formaram
um círculo ao meu redor, onde ficaram em silêncio.
Um pequeno cansaço me invadiu e meus olhos se
fecharam. Meu corpo parecia momentaneamente feito de
ar, leve e flutuante. Senti um puxão forte para baixo — era
a gravidade me chamando para a Terra como um meteoro
rasgando a atmosfera, as chamas transformando minha
carne, ciente da inevitável proximidade com o solo a cada
segundo da minha descida, enquanto meu corpo se
tornava cada vez mais rígido.
Com um impacto esmagador, senti o abraço do
solo.
E abri meus olhos.
144
145

Capítulo IX
146

Exausta.

Pesada.

Confusa.

Estava bom lá.

Mas… onde era mesmo?

Tinha o…

E aquele com…

Por que não conseguia lembrar?

Foi um sonho tão bom…

Agora tudo que eu sentia era meu corpo rígido na cama.

Olhei para o lençol branco que me cobria, com dois


montinhos no final mostrando onde estavam meus pés.
Uma mangueirinha ligando meu braço direito ao soro
pendurado ao lado e as cortinas nas laterais da cama me
explicaram que eu estava em um hospital.
Mas por quê?
Foi a atadura no meu braço esquerdo que trouxe à
tona o que eu havia esquecido. Toquei a mancha de
147

sangue do curativo e senti a dor irradiar pelo meu braço.


Incomodava sim, mas me mostrou que eu estava
realmente viva. Me senti grata por um momento. Eu não
queria me matar. Sabia disso. Estava cansada, perdida e
sem ter onde me apoiar, mas não a ponto de tirar minha
vida. Aquilo foi somente mais uma consequência da minha
estupidez impulsiva. Tudo porque eu havia dado
importância demais ao que dona Marta havia dito.
"Eu não tenho filha".
Um botão na minha cabeça acionou algo, ligando
tudo o que havia acontecido em minha vida até aquele
momento. Era como se cada fase, cada erro e acerto me
guiassem em um caminho cujo destino final era onde me
encontrava agora.
Me sentei na cama, sentindo ainda um pouco a
tontura. Não parecia haver ninguém perto e eu precisava
de privacidade para fazer o que queria. Tirei o lençol de
cima dos meus pés e me virei para levantar. Ainda estava
fraca, provavelmente pelo sangue perdido, mas consegui
ficar de pé. Com a mão no apoio do soro, puxando-o até
o limite do meu leito e olhando os dois lados para ter
certeza de que ninguém iria me impedir, fui em direção ao
local que eu sabia ter o que precisava. Após certificar que
a porta estava trancada, pude examinar o lugar e
encontrar quem eu estava procurando.
— Aí está você. Acho que temos algumas coisas
pra conversar, e a primeira delas é que eu te devo
desculpas. Por muito tempo tive raiva, porque tudo que
você fazia era mostrar minhas falhas, as coisas que não
148

queria lembrar sobre mim. E toda vez que eu tentava


esquecer esses detalhes, sua voz sussurrava de volta. Foi
difícil perceber qual era sua intenção, mas hoje acho que
finalmente entendi. O tempo todo você estava me
ensinando, fazendo com que eu enxergasse minha
essência, me mostrando quem sou de verdade. Todo esse
tempo era você quem estava à frente, dando a cara à
tapa, enfrentando o mundo pra que eu pudesse... ser eu
mesmo. Nós dois sabemos como foi difícil chegar até aqui.
E sabemos que o desafio ainda não acabou. Porém,
graças a você, eu tenho algo que me motiva, um propósito
a seguir. E poder estar aqui, conversando contigo sem
desviar o olhar, me mostra que estou certo. Por isso eu
preciso te deixar ir agora. Você já fez a sua parte. Chegou
a minha vez.
Joana me encarava do outro lado do espelho, as
lágrimas descendo pelo seu rosto. As gotas caindo na pia
levavam o que restava dela, limpando a tristeza do
momento e abrindo caminho para minha chegada. Ao
procurar o olhar de Joana novamente, não a encontrei. Vi
apenas o reflexo me encarando de volta, mostrando
alguns detalhes que precisava acertar para expor quem
estava ali dentro.
Dona Marta estava certa, afinal.

— E aí, galera! Está começando mais um "Quem


fala?", o programa que dá voz a quem tem muito a dizer.
149

Meu nome é Sabrina Pedrosa e recebo hoje um querido


que tive a sorte de conhecer nos acasos da vida. Ele é
ator, escritor e tem um dom incrível de ensinar com
poucas palavras. Jô de Luca!
— Fala, Sabrina. Fala, pessoal. É um prazer
enorme estar aqui hoje.
— O prazer é nosso, Jô. Conta pra gente um pouco
sobre você. Quem é Jô de Luca?
— Haha, essa é uma pergunta que eu mesmo
descobri dois anos atrás. Como você já adiantou, eu sou
ator, tenho algumas esquetes na minha página do Insta e
fiz algumas participações em peças teatrais na Cia
Melpômene de Teatro. Atualmente estou escrevendo
também algumas crônicas sobre fatos que ocorreram na
minha vida e coisas que venho observando nas mudanças
que a sociedade vem enfrentando.
— E o que seriam esses fatos que aconteceram na
sua vida, Jô?
— Bom, pra quem não me conhece, eu sou um
homem trans. Nasci em um corpo feminino, porém me
identifico como homem. E até chegar nesse momento de
entender quem sou, passei por algumas complicações.
Momentos de incerteza, baixa autoestima, crises
existenciais, até cortei meu pulso uma vez. E tudo isso, de
alguma forma, me fez enxergar o que eu não queria
admitir.
— Não deve ter sido fácil.
— Realmente não foi, Sabrina. O que me ajudou
nessa transição foi o apoio de uma pessoa em particular,
150

que foi minha avó, Vivi. Infelizmente ela não conseguiu


sobreviver ao Corona, porém, nos anos em que estivemos
juntas, ela fez o impossível pra me colocar nesse caminho
do autoconhecimento. Eu não seria quem sou hoje se não
fosse por ela.

O que eu não pude compartilhar durante o podcast


foi que, mesmo após falecer, Vivi deu um jeito de garantir
minha permanência no caminho que ela sabia ser o
correto. Uma carta escrita antes de ela partir e entregue a
mim pelo seu amigo, Olavo Santana, logo após minha
cirurgia de mastectomia:

"Coração,

Já te contei tantas histórias, não é mesmo? Porém


nunca disse o porquê de te chamar assim. Lembro até
hoje de um sonho que tive, onde eu andava pela areia de
uma praia linda, com meus pés sendo molhados pela
água do mar. Por mais que a praia não fosse tão diferente
daquelas que conhecemos, eu sabia que havia algo
especial. Andava calmamente, sem pressa, com o vento
dançando ao meu redor. Minha caminhada terminou
quando encontrei um grupo de 7 seres extraordinários.
Não sabia se eram anjos, espíritos, extraterrestres, talvez
fossem tudo isso e nada disso. Só sabia que eles tinham
muita luz dentro de si e estavam conectados por um laço
muito forte. Um deles se aproximou de mim e, com um
sorriso, me disse tudo que eu precisava saber. De seu
151

peito, um facho de luz me iluminou. Era amor. Quando


acordei naquele dia, seu pai havia me dado a notícia de
que você estava chegando.
Desde então eu tenho feito o possível para que
você crescesse e se tornasse a pessoa extraordinária que
estava destinada a ser. Porém, quando se tem tanto
conhecimento como eu, a gente acaba percebendo que
só pode interferir até certo ponto. Meu desejo era que
você morasse comigo desde sempre, mas jamais poderia
me intrometer na educação de seus pais. Tive que olhar
de longe você crescer e passar pelas muitas descobertas
da infância e adolescência, aguardando o dia em que você
estaria sob a proteção do meu lar.
Tive muitos momentos maravilhosos em minha
vida, e sou grata por todos eles, mas sei que ter você ao
meu lado todos os dias é o que me faz mais feliz nesta
existência. Sempre soube que precisaria te ensinar certas
coisas para garantir que não se desviasse do seu destino.
Rezo a Deus para que tenha cumprido meu papel, pois
meu tempo aqui está no fim. Por isso deixo a você essas
últimas palavras, para quando eu já não estiver mais
presente na matéria.
Meu peito dói de preocupação ao pensar que ainda
há um último teste para você, coração, e que não estarei
aqui para te ajudar a suportá-lo. Contudo eu sei que, ao
ler esta carta, você já terá superado e iniciado seu
verdadeiro propósito neste mundinho pequeno. E pode ter
certeza que eu continuarei ao seu lado nessa jornada.
152

Com todo o amor do infinito,

Vivi."

— Ela deve ter sido uma pessoa incrível.


— Ah, com certeza, Sabrina. Ela tinha aquele dom
de enxergar através das pessoas. Às vezes desconfio que
ela descobriu minha sexualidade antes mesmo de mim.
— Ela ainda estava aqui quando você assumiu sua
identidade?
— Não. Ela partiu um pouco antes. De uma forma
estranha, a dor de perdê-la me ajudou com a transição.
— O que quer dizer?
— Houve um momento decisivo na minha vida em
que tudo de ruim aconteceu, inclusive o falecimento de
Vivi. Foi quando me senti mais desacreditado,
principalmente sobre mim, e, num impulso, tentei tirar
minha vida. Felizmente, o corte não foi tão efetivo, e meu
pai apareceu um pouco depois disso, me levando
imediatamente pro hospital.

Após minha despedida de Joana, uma das


enfermeiras havia me explicado que meu pai interrompeu
a circulação do sangue no meu braço amarrando uma
camiseta apertada entre o corte e meu cotovelo. Ele havia
chegado em casa apenas alguns segundos depois da
minha tentativa de dizer adeus. Ao que parece, dona
Marta estava ao seu lado quando tentei ligar e falar com
153

ela e, ao ouvi-la dizer a bendita frase-gatilho, o Sr. Roger


saiu correndo, preocupado com o que eu fosse fazer.

— Então é graças ao seu pai que estamos aqui


tendo essa conversa hoje?
— Sim. Devo minha vida ao Sr. Roger.
— Como foi contar pra ele sobre quem você é?
— Mais fácil do que esperava. Ele foi o primeiro a
saber.

Quando saí do hospital, depois de três dias de


observação e com consulta marcada com um terapeuta,
meu pai me levou para casa, dizendo que ficaria comigo
umas semanas. Nos dois primeiros dias, trocamos apenas
algumas palavras, porém eu precisava me abrir, e alguma
coisa me dizia que tinha que ser naquele momento.
Papai estava lendo na varanda da casa com Hórus
em seu colo. Me sentei na cadeira ao lado e esperei. Meu
olhar deve ter chamado sua atenção, então ele baixou o
livro.
— Está tudo bem, filha?
— Sim. Eu preciso falar algo com você. Não é fácil
o que vou dizer. Na verdade, precisei reunir muita
coragem pra conseguir te contar. E mesmo que você não
entenda, ou não aceite, saiba que não vai mudar nada. Só
quero que você ouça isso de mim.
— Você está me assustando, Joana.
— Eu não sou Joana, pai. Meu nome é Jô. Eu sou
um homem.
154

Os olhos de Roger encaravam os meus sem


permitir que eu decifrasse suas emoções. Por alguns
segundos, esperei que a informação fosse digerida,
mesmo que alguma azia mental fosse necessária. Ele se
levantou e foi até o limite da varanda. Hórus ficou olhando
do chão meu pai caminhar, atento, como se estivesse
esperando uma resposta tanto quanto eu.

— E como foi que ele reagiu? — Sabrina


perguntou.

— Algumas semanas atrás, pelo Facebook, eu


encontrei um amigo que não via há muito tempo. — Roger
começou. — Nos conhecemos quando tínhamos uns 11
ou 12 anos na época da escola. Henrique, o nome dele.
Não tinha como evitar nossa amizade, gostávamos das
mesmas coisas, especialmente música. Estávamos juntos
o tempo todo, assistindo à TV, jogando bola, andando de
bicicleta. Eu vivia na casa dele quase tanto quanto ele
vivia na minha. — Roger se virou e me encarou. — Ele se
declarou pra mim quando estávamos com 16, e por 3 anos
namoramos escondidos.
Papai desviou o olhar para as árvores que
balançavam com a brisa da tarde. Observei aquele
homem que, para mim, sempre fora uma caixa-forte de
emoções, imaginando o que estava guardado no cofre.
Foi naquele momento que percebi o quanto eu
desconhecia sua identidade.
— O que aconteceu depois? — perguntei.
155

— Ele queria assumir, mostrar ao mundo quem


éramos… Eu não.
Roger limpou uma única lágrima que escorreu do
olho esquerdo, se recompôs e se sentou ao meu lado.
— Você tem muito mais coragem do que eu, Jô.
Sempre soube disso. Me sinto feliz pelo privilégio de ser
seu pai. Ainda vou levar um tempo pra entender, mas
saiba que vou compensar essa distância entre nós. E vou
apoiar qualquer decisão que você tomar.

— Ele foi incrível — respondi a Sabrina. — Naquele


dia eu senti que somos realmente pai e filho.
— E sua mãe? Como foi a reação dela?

Já fazia 4 meses desde que havia me assumido.


Papai continuou morando comigo na casa de Vivi. Ela
havia deixado tudo para nós dois, em instruções que
somente meu pai tinha lido. Às vezes desconfio que ela
escreveu uma carta para ele também. O pedido de
divórcio chegou para dona Marta naquela época. Sua
reação foi previsível: gritos, ofensas, ameaças, lágrimas
de remorso e pedidos de desculpas. Porém nada fez com
que Roger mudasse de ideia.
Fomos buscar o restante das coisas dele no apto.
Eu já havia mudado todo meu guarda-roupa e doado tudo
que era feminino. Com o cabelo curto pintado de roxo e
iniciando o tratamento hormonal, já me sentia quase eu
mesmo, faltando apenas a cirurgia de mastectomia, que
já estava agendada. Ao entrar na sala, dona Marta
156

aguardava na brancura de sempre, com as 3 caixas de


pertences do meu pai no chão. Ela parecia pronta a dizer
alguma coisa, porém seu choque ao me ver tirou
completamente a linha de raciocínio.
— Oi, mãe! Vim ajudar o pai. Mas não esquenta
que já vamos embora.
Peguei uma das caixas enquanto meu pai pegava
as outras duas. Já íamos em direção à saída quando me
lembrei de um detalhe que faltava e me virei para ela:
— Ah, antes que eu me esqueça, obrigado. Estava
certa, afinal. Você não tem uma filha, tem um filho.

— Ela ficou sem palavras — comentei com ar


sarcástico. — Infelizmente a gente não se fala, mas hoje
não me importo mais com isso. Ela vive a vida dela e eu a
minha, e está tudo bem.
— Do que adianta ficar se preocupando com quem
não enxerga o seu melhor, não é? — Sabrina comentou.
— Exatamente!
— Mas, Jô, além da sua vida familiar, o que mais
mudou após a transição?
— Eu acho que o principal foi a forma como eu
passei a enxergar o mundo, em especial as pessoas.
Depois que me assumi, senti que havia saído de um lugar
escuro, sombrio; foi como nascer de novo, mas dessa vez
tudo que via estava mais claro. E foi por aí que comecei a
prestar atenção em certas coincidências que todos nós
parecemos ter.
— Que coincidências seriam essas?
157

Quando soube da sexualidade contida de meu pai,


comecei a pensar em tudo que ele enfrentou durante a
vida para manter isso em segredo. Sufocar uma parte da
sua essência por medo do julgamento de outros; se ver
forçado a ser quem você não é; achar que pode amar
quem você não ama. E se ele, sendo o Roger que eu
conheço, escondeu isso todo esse tempo, quantos mais
não existem por aí? Quantos mais vestiram uma máscara
que agradasse a sociedade e passaram a viver com ela?

— Olha, Sabrina, todos passamos por algum


momento de descoberta sobre quem somos. Alguns
fingem não se importar com isso, outros já sabem desde
sempre, e alguns lutam todo dia com o espelho, como era
meu caso. Acredito que essa batalha onde enfrentamos a
nós mesmos é a maior dificuldade que alguém pode
superar. Ninguém vai te cobrar tanto quanto você mesmo.
Ninguém vai te criticar tanto quanto você mesmo. Certos
julgamentos machucam simplesmente porque
permitimos, porque concordamos com o que está sendo
apontado, seja em nosso corpo, nossa personalidade ou
qualquer outra característica. Por muito tempo o espelho
foi meu inimigo. Evitava a todo custo passar na frente de
um. Hoje vejo meu reflexo e tenho um orgulho do caralho
de ver o cara que está ali. Não só pelo jeito que ele se
veste, pelo corte de cabelo e as tatuagens, mas
principalmente porque eu sei o que ele passou pra poder
ser quem é. E quando eu penso nisso e lembro que tem
158

muita gente passando pela mesma coisa, me dá um


orgulho maior ainda de fazer parte disso.
— E o que você acha que motiva todo esse
movimento de descoberta de identidade?

Marcos, Ana e Paula voltaram a falar comigo


quando souberam do que tinha acontecido. Todos eles
ficaram felizes quando contei sobre quem eu era
realmente. Paula, em particular, dizia que já desconfiava,
mas não achava certo interferir no meu processo de
descobertas.
Comecei a ter mais contato com pessoas trans e
trocar algumas experiências. O brilho no olhar de todos
era inevitavelmente igual. Todos nós tínhamos a mesma
energia emanando quando falávamos sobre como nos
sentimos hoje em comparação com o passado. E o mais
engraçado é que as pessoas que não sabiam na pele
como era essa experiência, como o Marcos, por exemplo,
se sentiam contagiadas e se emocionavam.
Nesses momentos eu notava algo influenciando a
todos nós. Uma espécie de sentimento muito leve, sutil, e
que parecia possuir uma força de transformação
impossível de se definir. Um sentimento capaz de te levar
ao universo particular de alguém e te mostrar tudo que há
ali em apenas alguns minutos. A força da empatia.

— Acho que a maioria de nós se cansou de ser


quem não é, independentemente de orientação sexual. É
um movimento que vai além da aceitação do próprio sexo.
159

Existe esse “manual do bom cidadão” que dita regras de


comportamento supostamente criadas pra manter a
ordem da sociedade, mas o que isso mais faz é oprimir o
lado natural de milhões de pessoas. Somos treinados
desde cedo a buscar coisas que não precisamos e a ser
aquilo que não somos. E quando alguém foge do padrão,
é visto como uma ameaça pelo medo daqueles que não
conseguem encontrar forças pra olhar fora da caixa. Só
que esse é nosso estado natural. Esse sentimento de
liberdade que ansiamos está presente em cada ser
consciente que anda nesse planetinha azul. E existe uma
coisa simples que tem despertado em muitos ultimamente
e que vai nos ajudar a vencer todo esse medo existente.
— E o que seria?
— Amor.
160
161

—Prefiro Ipa. Eu sei que é mais amargo, mas o


sabor é bom.
Marcos e eu tomávamos uma cerveja no nosso
encontro sagrado da sexta-feira. Era um dia quente, no
meio do verão. O sol se despedia com seu brilho
alaranjado, iluminando as mesas do bar.
— Aahh, desculpa, mas não tenho paladar pra
cerveja amarga, não. Uma pilsen já tá ótima — respondi.
— Também, seu paladar é igual ao de uma criança.
Me admira que você tenha aprendido a tomar cerveja,
hahaha.
— E aí? Vai implicar com o que eu bebo agora, é?
— retruquei rindo.
— Hahaha, desculpa. Ei, me fala como é a
faculdade. Psicologia não deve ser fácil.
— É tudo muito novo ainda. Mas até agora não
tenho dúvida sobre o que estou fazendo. Li um pouco a
respeito de Carl Jung e estou ansioso pra começar a
estudá-lo.
— Você vai se dar muito bem. Só de te ouvir
naquele podcast dá vontade de aprender contigo.
— Valeu, Marcos. Gostaria que todos pensassem
assim.
— Do que você está falando?
— Algumas pessoas não gostaram do que eu falei
naquele dia. Disseram que eu era louco, que não sabia do
que estava falando, enfim. Gente que não sabe ouvir
opiniões diferentes.
162

— Isso vai ter sempre, Jô, cê sabe.


— Sim, eu sei. Até porque houve muita gente me
apoiando e dizendo se identificar com o que eu falei. Eles
me motivaram ainda mais a entender esses pensamentos
que me vêm à mente.
— Por favor. O mundo precisa de gente como você.
Depois de tudo que aconteceu com o Corona e com a
nossa política, acho que as pessoas estão se sentindo
meio perdidas. E desculpa a sinceridade, mas, levando
em conta que nada é por acaso, é bem capaz de você ter
um papel fundamental em todas essas transformações
que estão acontecendo na sociedade.
— O pior é que eu sinto isso às vezes. Não é
querendo me gabar, mas pensar que tudo que eu vivi me
levou a ter a visão de mundo que tenho hoje, parece até
meio óbvio que foi um preparo pra esse momento que
estamos vivendo.
Algo me fez virar a cabeça para a calçada do outro
lado da rua. Várias pessoas passavam saindo do trabalho,
indo para a faculdade, entretidas em seus celulares e
fones de ouvido. Porém um homem em particular chamou
minha atenção. Sua pele preta se destacava pela
intensidade, especialmente por contrastar com seus
dreads, terno e calça brancos. Ele retribuiu meu olhar com
um sorriso, levou a mão à cabeça e depois ao alto.
— Jô? O que foi?
Marcos me chamou por um momento, desviando
meu olhar. Quando voltei a atenção para a calçada,
esperando reconhecer o homem, ele havia sumido.
163

— Achei ter visto alguém.


— Algum conhecido?
— Não tenho certeza…
Um pontinho no fundo do meu peito pareceu
crescer. Um calor familiar, mas que eu não conseguia me
lembrar de onde.

FIM
164

Considerações finais

Quando resolvi escrever esse livro, minha primeira


ideia era mostrar alguém descobrindo o universo que
possui dentro de si mesmo, ciente de onde estava logo no
começo. Porém, como meu amigo Douglas Felipe me
ensinou, livros têm vida própria.
Animus Universum é uma grande metáfora, criada
para despertar essa vontade que muitos de nós temos de
entender o porquê das coisas e, principalmente, a razão
de sermos quem somos.
A sexualidade do Jô, além das funções de plot twist
e representatividade, é uma maneira de despertar nos
leitores um questionamento que venho tendo há alguns
anos: nós somos quem devemos ser?
Fico me perguntando o quanto temos para
descobrir sobre cada um de nós. Estamos presenciando
uma transformação no mundo onde o diferente está
finalmente sendo aceito. Pessoas estão se conhecendo e
compartilhando um pouco de seus mundos particulares,
criando um universo de personalidades repleto de
diversidade e beleza. E já que o universo é algo infinito,
podemos supor que também somos.
Espero que ao chegar aqui, você esteja mais
confiante em se descobrir, não somente sobre sua
sexualidade, mas sobre qualquer aspecto seu que esteja
enterrado debaixo do medo, e que a partir de agora a vida
se torne um pouco mais fácil e infinitamente melhor.
165

Agradecimentos

Minha esposa Karina, que aguentou ao meu lado todos os


momentos de incerteza e resgatou meu amor.
Minha mãe Eridan, meu pai Paulo, e minhas irmãs Camila
e Mariana. Sem vocês, eu não suportaria esse mundo.
Nathan Tavares e Lucca Najar, que com suas histórias de
vida trouxeram Jô a este mundo.
Douglas Felipe, que me ensinou os primeiros passos para
o mundo da escrita.
Diego Andrade, cuja mentoria foi essencial para encerrar
este livro.
Isabela Rezende, que me ajudou a desvendar todos esses
personagens perdidos no meu inconsciente.
Jady Forte, que tem sido uma salvadora no mundo
literário.
Aos muitos mestres das letras que me inspiraram com
suas histórias.
A todos aqueles que lutam todo dia por um mundo
igualitário, justo, onde cada um seja livre para ser quem é.
E um agradecimento especial ao meu pai Oxalá e à força
dos Orixás, que me guiaram durante a vida e tornaram
este trabalho possível.
166

Sobre o autor
Lucas Anelli Cunha nasceu em 25 de abril de 1990,
em São José dos Campos, no interior do estado de São
Paulo. Graças à sua mãe, Eridan, cultivou desde cedo a
paixão pela leitura. Sempre que podia estava com um livro
na mão, tendo preferência por histórias de fantasia.
Trabalhou durante 10 anos na área da hotelaria,
porém nunca se identificou como um bom profissional.
Seu primeiro livro, Animus Universum, nasceu da tentativa
de se encontrar e buscar o próprio talento.

Contatos:

Email: lucasanellicunha@gmail.com
Instagram: @anelliescritor

Este livro foi feito com muito amor e esperança. Caso


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