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Copyright

® 2019 de Isabela Delezzott


EVELINE (Trilogia LTM, livro 1)

Capa: Sarah Libna
Revisão: Victoria Gomes
Diagramação: Isabela Delezzott

Todos os direitos reservados.


Esta é uma obra de ficção. Seu intuito é entreter as pessoas. Nomes,
personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação da
autora. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera
coincidência.
Esta obra segue as regras da Nova Ortografia da Língua Portuguesa.
Todos os direitos reservados. São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução
de qualquer parte dessa obra, através de quaisquer meios — tangível ou
intangível — sem o consentimento escrito da autora.
Criado no Brasil. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei n°.
9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
AVISOS
DEDICATÓRIA
AGRADECIMENTOS
SINOPSE
PRÓLOGO
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30
CAPÍTULO 31
CAPÍTULO 32
CAPÍTULO 33
CAPÍTULO 34
CAPÍTULO 35
CAPÍTULO 36
CAPÍTULO 37
CAPÍTULO 38
CAPÍTULO 39
CAPÍTULO 40
CAPÍTULO 41
CAPÍTULO 42
CAPÍTULO 43
EPÍLOGO
LUCY – LIVRO 2 DA TRILOGIA LTM
UMA PRÉVIA DO QUE VEM POR AÍ
SOBRE A AUTORA

AVISOS
Caro leitor,
Este é o primeiro volume da Trilogia LTM e tem como protagonistas
Eveline Perry e Lucas Hayes.
O livro contém conteúdo adulto, tais quais, cenas de sexo, violência e
palavrões. Além de abordar um tema que talvez seja um gatilho para pessoas
mais sensíveis ou que já passaram por semelhante situação, a violência
doméstica.
Espero que você se apaixone por essas personagens tanto quanto eu.
Muito amor,
Isabela Delezzott.
DEDICATÓRIA

À todas as mulheres que conhecem a grandiosidade da sua força interior
e, principalmente, àquelas que ainda não se deram conta disso.
Você é importante, capaz e não merece menos do que a felicidade.
Eu acredito em você.
AGRADECIMENTOS
Sou imensamente grata Àquele que não me abandona em nenhum
momento. Eu sei, meu Deus, que a minha força vem do Senhor.
Gratidão à minha família por todo apoio e confiança. Ao meu marido
Reneson por embarcar nas minhas loucuras e acreditar em mim mais do que eu
mesma. À minha avó Helenita por sua inabalável fé e por ter me passado valores
que me transformaram em quem sou hoje. À minha mãe Carla pela torcida,
esperança e conversas durante as infindáveis madrugadas de revisão, por torcer e
acreditar sempre no meu melhor, no meu sucesso. À Carolina Alves, prima/irmã,
beta e braço direito, você é luz.
Agradeço às melhores leitoras que alguém poderia ter. Às meninas do
Wattpad, do grupo do Facebook e WhatsApp. Àquelas que viraram amigas e são
suporte e mola que me impulsionam, Vanessa Soares, Kelly Cristina, Grazi
Silva, Eveline Oliveira, Cláudia Luz, Fabiana Bairrão, Bela Luz, Taty Santos,
Fran Vieira, Neni Magnus. Se esse livro está aqui hoje, é mais por vocês do que
por mim.
Obrigada!
SINOPSE
Eveline Perry está em fuga. Para proteger a si mesma e ao filho de um
homem violento e abusivo, ela desaparece com a criança sem deixar rastros. A
cidade de Naperville, no estado de Illinois, é o lugar escolhido para reconstruir a
sua vida, e também onde os destinos de Eve e Lucas Hayes se cruzam pela
primeira vez.
Luke está de volta à cidade natal depois de anos servindo ao exército. A
bela moça de olhos tão tristes chama a sua atenção, mas ele percebe que ela
esconde profundos segredos. E quando Luke quer descobrir algo, vai até as
últimas consequências.
Seria o coração de Eveline capaz de confiar outra vez, após tanto trauma?
PRÓLOGO

O grito agudo, seguido do choro de Romeo, fez o meu corpo entrar em


alerta.
Desliguei o chuveiro com as mãos trêmulas, agarrei a toalha rapidamente
para cobrir minha nudez e saí do banheiro às pressas, deixando um rastro de
água por todo o caminho. Encontrei Bryan de pé, olhando furiosamente para a
criança, que estava no chão, aos prantos.
— O que você fez? — perguntei, sentindo a pulsação acelerar.
— Nada! — A voz arrastada de Bryan demonstrava que ele esteve
bebendo, de novo. — O moleque jogou a porra do controle remoto no chão e
partiu a merda em dois! — gritou.
Romeo chorou ainda mais alto ao me ver, estendendo os pequenos braços
em minha direção. Quando abaixei para pegá-lo no colo, percebi a marca
vermelha no antebraço direito. Foi como receber uma punhalada no coração.
— Pelo amor de Deus, Eveline! — Bryan seguiu urrando, completamente
fora de si. — Faça essa criança calar a porra da boca! Será que um homem não
tem o direito de assistir um jogo em paz na sua própria casa?
Senti os olhos molharem e me esforcei para não sucumbir às lágrimas.
Aconcheguei o corpinho ao meu, balançando-o para acalmar não apenas a ele,
mas a mim também. Meus nervos estavam em frangalhos.
Deixando Bryan e seu descontrole para trás, segui para o quarto de
Romeo, fechando e trancando a porta atrás de mim com cuidado. Sentia-me um
lixo de pessoa, um lixo de mãe. Como pude permitir que as coisas chegassem
àquele ponto?
Sentada na cadeira de balanço que usei para amamentar, passei as mãos
nas costas dele e beijei os cabelos macios e cheirosos que tanto amava. Só então
dei vazão às lágrimas. Minha vida era uma verdadeira bagunça, mas não era
justo que um inocente pagasse por minhas escolhas.
Após alguns minutos naquele vai-e-vem, Romeo se acalmou, o choro
sentido dando lugar aos soluços, a cabeça apoiada no meu peito, os braços ao
redor da minha cintura.
— Me perdoa, meu filho — sussurrei. — Me perdoa.
Acabou.
Enquanto a violência de Bryan era dirigida apenas a mim, eu podia
suportar. Mas não mais. Não com o meu filho.
Nós dois vamos desaparecer daqui.
CAPÍTULO 1
A Fuga

Quando Bryan levantou da cama, fingi estar dormindo. O nervosismo era


tamanho que tive a impressão de ouvir as batidas do meu coração.
Normalmente seguíamos o mesmo ritual: acordava com ele e, enquanto
Bryan tomava banho e se trocava, eu preparava o café da manhã. Hoje seria
diferente, no entanto. O despertador tocou duas horas mais cedo porque se
tratava de uma viagem a trabalho que o deixaria fora de casa durante todo o final
de semana.
O chuveiro foi desligado e a minha tensão se tornou quase insuportável.
Conforme ouvia os passos dele pelo quarto, pressionei os olhos com força,
rezando para que não resolvesse me despertar, pois não me sentia em condições
de agir com naturalidade. Mentir nunca foi a minha especialidade e
provavelmente o homem perceberia que havia algo errado.
E nada poderia dar errado, então, por mais que estivesse em pânico, me
mantive parada. Após alguns minutos, que mais pareceram horas, o barulho do
motor do carro cortou o silêncio da madrugada.
Permaneci na mesma posição, sem me mover um centímetro sequer pela
próxima meia hora, apenas para ter certeza que ele não voltaria por qualquer
motivo que fosse. Suando e um pouco zonza, afastei o edredom do corpo com
rapidez e levantei para pegar a muda de roupa estrategicamente separada na
primeira gaveta da cômoda. Embaixo da cama, eu tinha escondido uma pequena
mala contendo apenas pertences necessários para uns poucos dias. Prendi os
longos cabelos castanhos em um coque e levantei o capuz do moletom que
usava.
Decidida a não perder tempo, rumei para o quarto de Romeo. Ele
reclamou e chorou ao ser retirado do berço naquele horário tão atípico, mas
voltou a dormir assim que encostou o rosto no meu ombro, os braços rodeando
meu pescoço, as pernas cruzadas na minha cintura.
Desde que havia pegado Bryan gritando feito um louco com Romeo,
cinco dias atrás, preparei meticulosamente todos os meus passos. Se tudo
ocorresse conforme o planejado, quando ele voltasse no domingo à noite nós
dois estaríamos bem longe daqui. O olhar assustado no rosto do meu filho tinha
quebrado meu coração e, se dependesse de mim, jamais voltaria a vê-lo naquele
estado.
Abri a porta de casa, depois de cobrir Romeo com o pequeno cobertor
para protegê-lo, tanto do frio, quanto dos olhares de possíveis curiosos. Seria
mais fácil e cômodo pegar um táxi ou UBER, mas aquilo deixaria rastros, então
caminhei até a estação de metrô e aguardei por cerca de quinze minutos até
embarcar. Ocupei um dos assentos preferenciais, ajeitando Romeo no meu colo e
a mala no chão, próxima aos meus pés.
O corpo inteiro tremia e precisei fazer um esforço sobre-humano para o
meu estado emocional não ficar perceptível às pessoas ao redor. Tudo que eu não
precisava, àquela altura, era atrair atenção. Abracei ainda mais o garoto
adormecido, cheirando o cabelo macio, tirando forças dele para seguir firme.
Romeo era uma criança tão boazinha, sempre foi. Nunca chorou muito, a menos
que estivesse com fome, com sono ou com a fralda suja; não trocou o dia pela
noite e era muito, muito carinhoso comigo. Como Bryan pôde ter criado tanta
impaciência e indiferença pelo menino nos últimos meses era algo que fugia à
minha compreensão.
Tensa durante todo o percurso, suspirei aliviada quando avistei a estação
onde desceria, vinte minutos depois. Andei por mais vinte até chegar ao pequeno
café em que havia combinado de encontrar Miranda. Os cabelos pretos e
cortados de maneira impecável da minha melhor amiga se destacavam no
ambiente surpreendentemente cheio para o horário.
Miranda levantou assim que me viu e caminhou rapidamente na minha
direção, um sorriso no rosto e os braços abertos. Seu corpo bateu contra o meu
de maneira enérgica, presenteando-me com um familiar abraço apertado.
Permanecemos assim por longos minutos, sentindo a presença uma da outra,
comunicando-nos sem precisar de palavras. Apesar da distância que nos separou
nos últimos tempos, ela sabia o que eu passava. Era a única que sabia.
Os olhos de Miranda levantaram e encararam os meus em uma mistura
de alívio, compaixão e raiva. O alívio era a emoção predominante.
— Obrigada por ter vindo, sei que detesta acordar cedo — agradeci,
fazendo um esforço para equilibrar a mala e Romeo sem deixar nenhum dos dois
cair. Percebendo a minha dificuldade, ela pegou o afilhado no colo.
— Você sabe que não precisa agradecer. Sério, estou tããão feliz por
finalmente ter tomado a decisão de deixar aquele filho da puta.
Aquela era Miranda: franca e direta, sem papas na língua. Não respondi
ao comentário, simplesmente por não ter o que dizer.
— Vamos? — perguntou, ajeitando o cobertor em Romeo.
Assenti e voltamos à rua, caminhando para o próximo destino. O bairro
era um pouco intimidante, vários grupos estavam espalhados nas esquinas,
comportando-se de maneira esquisita. A única coisa que me tranquilizava era
saber que ninguém em seu perfeito juízo mexeria com a mulher do chefe.
O silêncio predominou conforme avançávamos, o que não era comum
quando estávamos juntas. Eu tinha a cabeça cheia, a confusão de pensamentos
reduzindo-me a uma massa nervosa e trêmula. Acredito que ela percebeu o meu
estado de espírito e respeitou.
Paramos em frente à casa de fachada normal, nada chamativa, que
enganaria qualquer pessoa à primeira vista. Três homens musculosos, mal-
encarados e visivelmente armados faziam a segurança do lugar e abriram
passagem no momento em que fomos para dentro, balançando as cabeças em um
rápido e discreto cumprimento.
O interior do imóvel era uma conversa completamente diferente.
Luxuoso em todos os ambientes, possuía os mais recentes aparelhos
tecnológicos instalados, incluindo câmeras de segurança de ponta que vigiavam
não somente a frente da casa, mas um perímetro que cobria praticamente o bairro
inteiro. A mobília era uma mistura de estilos que me deixava atordoada,
entretanto Miranda parecia gostar, então não competia a mim dar palpite na
decoração alheia.
O lugar estava estranhamente vazio e silencioso. Segui-a até a suíte do
casal — exageradamente enorme — e a observei acomodar Romeo no meio da
confortável cama king size, organizando os vários travesseiros de forma que ele
não caísse caso se movesse durante o sono. Em seguida, fez sinal para que
entrássemos no banheiro, onde poderíamos conversar sem correr o risco de
despertá-lo.
— Você conseguiu? — questionei com ansiedade assim que fechei a
porta atrás de mim.
— Claro. Conforme o planejado. O imbecil desconfiou de alguma coisa?
— Não — neguei. — Fingi que estava tudo certo, como de costume.
— Ótimo! Agora vamos começar a segunda parte. — Aproximou-se e
desfez o coque, liberando meus fios. — Tive uma ideia que pode ajudar. Assisti
recentemente àquele filme, Um Porto Seguro, já viu? — Quando neguei, ela
prosseguiu: — Então, antes de fugir do marido abusivo, a mocinha muda
radicalmente o corte e cor do cabelo para ajudar no disfarce.
— Miranda, a minha vida pode até ser uma porcaria completa, mas não é
um filme! — Os olhos brilhantes e pensativos me disseram que não estava dando
a mínima para as minhas palavras. — Você acha mesmo que uma mudança de
visual vai fazer diferença?
— Não custa tentar. Além disso, sempre quis mexer no seu cabelo. Agora
senta aqui porque temos um longo processo pela frente. — Bateu a mão em uma
cadeira acolchoada, daquelas encontradas em salões de beleza, posicionada em
frente a um espelho imenso.
Suspirando, dei de ombros. Por que não? Já que iria mudar radicalmente
a minha vida, que começasse pelo cabelo. Sentei e confiei na habilidade dela
para não me deixar careca.
Cerca de três horas e meia depois, o longo cabelo castanho deu lugar a
um platinado acima dos ombros. O resultado foi tão chocante que permaneci
paralisada, analisando o meu reflexo no espelho. Não sou eu! Não pode ser! A
mulher me encarando de volta não se parecia em nada comigo.
— Você ficou muito linda, amiga! — A voz de Miranda era animada,
admirando o seu trabalho. — Não gostou? — questionou diante do meu silêncio
atordoado.
— Hã… Não é isso. Ficou realmente bom, você não perdeu a mão. Só é
muito estranho me ver assim… — Toquei nos fios claríssimos, tentando me
acostumar a eles.
Miranda era uma talentosa cabeleireira em ascensão até começar a sair
com Dax e as coisas entre eles ficarem sérias. Então, ela se tornou a primeira
dama do bairro — não como uma esposa de prefeito, mas com uma vida
igualmente ou mais luxuosa — e parou de trabalhar.
Miranda voltou a falar, daquela vez a voz estava dotada de seriedade:
— Tem certeza disso, Eve? Por mais que esteja contente com a sua
decisão, eu preferia que você e Romeo ficassem por perto. Já falei com Dax e ele
disse que vocês dois podem ficar aqui o tempo que precisarem, e me garantiu
que o covarde não chegaria perto. Se for imbecil para tentar, Dax dá um jeito
nele, você só precisa dizer uma palavra.
Senti meu corpo estremecer com a última frase. Sabia perfeitamente o
que significava "dar um jeito" no dicionário de Dax. E, ainda que Bryan fosse
realmente um canalha, não queria ser responsável por sua morte. Pela morte de
ninguém, na verdade.
— Você sabe que te agradeço demais. — Comecei a responder, apertando
suas mãos nas minhas. — Mas eu preciso recomeçar em um lugar onde ninguém
me conheça. Meu relacionamento com Bryan foi um erro lamentável desde o
princípio, o pior erro da minha vida, uma pena que fui tão inexperiente para cair
fora enquanto era tempo. Agora é a minha chance de fazer uma nova vida para
mim e meu filho. E tudo isso graças a você.
Os olhos de Miranda se encheram de lágrimas e ela balançou a cabeça de
um lado para outro numa tentativa de espantar a emoção.
— Para com isso! — Gesticulou as mãos. — Seria um desperdício borrar
a minha maquiagem. — Olhou para o relógio de pulso. — Agora vamos, seu
ônibus sai em duas horas.
Voltando para o quarto, ela caminhou até um cofre que ficava escondido
atrás de um grande quadro — bizarro —, digitou alguns números e o objeto fez
um barulho seco ao ser destravado. De lá, retirou um grande envelope na cor
mostarda.
— Os documentos para você e Romeo. Não é um trabalho perfeito, como
já te disse antes, por conta do curto tempo que tivemos para preparar, mas vai
servir pra vocês embarcarem sem nenhum problema. — Estendeu o envelope na
minha direção.
— Nem sei como agradecer — sussurrei, a mão trêmula ao agarrar o
papel.
— Então não agradeça. Ramirez vai nos levar até a estação e ficaremos
com vocês até entrarem no ônibus.
Os próximos sessenta minutos passaram como um borrão. Miranda
colocou tudo que eu trouxe em uma grande mala preta de rodinhas e acrescentou
várias peças de roupas que pareciam novas, no tamanho adulto e infantil. Romeo
ainda se encontrava de mau humor, coçando os olhos, vez ou outra
resmungando, ameaçando chorar, certamente sem entender nada. Meu coração
apertava ao vê-lo assim, mas era por uma boa causa.
Descemos na lotada estação de ônibus com Ramirez logo atrás, a poucos
passos de distância, observando a todos, sempre atento a qualquer movimentação
estranha. Faltavam quarenta minutos para o horário de partida, mas muitos
passageiros já aguardavam sentados nas cadeiras, cada um distraído a sua
própria maneira: ouvindo música, mexendo no celular, lendo livros.
Meu coração acelerava cada vez que pensava no que estava prestes a
fazer e o pânico ameaçava me paralisar. Porém, agora que havia chegado até
aqui, iria até o fim, quaisquer que fossem as consequências.
No instante em que o embarque foi autorizado, levantamos rapidamente.
Miranda me abraçou e comentou próximo ao meu ouvido, para que apenas eu
escutasse:
— Coloquei dinheiro no bolso pequeno na mala. A quantia vai ser
suficiente para você ficar despreocupada por, pelo menos, uns três ou quatro
meses. No outro bolso tem um celular descartável, pré-pago, com dois números
salvos, o meu e o de Dax. Se precisar entrar em contato comigo, ligue para
qualquer um deles, certo?
Afirmei com a cabeça e levei o braço livre até os ombros dela, trazendo-a
para mais perto, sentindo o peito apertar.
— Prometo que, assim que tiver instalada e arranjar um trabalho, vou te
pagar — sussurrei em resposta.
— Pelo amor de Deus, Eve! Se preocupe apenas em refazer a sua vida
longe do imbecil. Dinheiro não é realmente uma preocupação para mim. —
Afastou-se para me olhar de frente, novamente a estranha comunicação entre nós
duas se instalando. — Vou morrer de saudade dos dois, mas estou muito feliz e
orgulhosa por ter tomado essa decisão. Conte comigo para o que precisar. Você é
a minha irmãzinha e eu te amo. — Com os olhos marejados, deu um beijo no
meu rosto e, em seguida, abaixou para fazer o mesmo na cabeça de Romeo, que
olhava tudo ao redor enquanto chupava o dedo. — Cuide da sua mãe, certo,
garotinho? A dinda te ama demais! — Ele deu um sorriso tímido e deitou a
cabeça no meu pescoço, seu lugar favorito no mundo.
— E nós dois te amamos. Sem você, eu não conseguiria, Mi. — Meus
olhos também estavam molhados, a garganta arranhando pela imensa vontade de
chorar.
— Eu já disse, pare com isso! — Ela respirou fundo, balançando as mãos
na frente do rosto. — Aqui está a sua passagem. Comprei a mais longa, que
passa por vários estados. Ainda que o imbecil descubra alguma coisa, o que
duvido muito, porque com certeza não existe nenhum neurônico naquela cabeça
filha da p… — Freou a língua quando dei uma olhada de lado para ela,
apontando com os olhos para Romeo. — Ok. Enfim, mesmo se ele desconfiar,
será difícil saber onde você parou.
— Está certo. Vou entrar para nos acomodar. — Após mais um abraço
apertado e uma sessão de beijos, segui para o ônibus, as pernas um pouco
descoordenadas.
Sentada na poltrona da janela, olhei para fora, em direção ao local que
estávamos minutos atrás, mas já não havia sinal de Miranda ou Ramirez.
Acomodei Romeo no colo e respirei fundo inúmeras vezes.
A verdade era que eu estava completamente apavorada.
Só consegui relaxar um pouco quando o veículo deu partida, saindo da
estação para a pista. Íamos para uma vida totalmente desconhecida. E, ao mesmo
tempo que a constatação era apavorante, trazia uma sensação de liberdade como
nunca havia sentido.
Enquanto o ônibus se afastava, levando-nos para um futuro incerto, fiz
uma promessa para mim mesma:
Jamais permitirei que um homem me coloque nesta posição novamente.
Despertei um tanto desnorteada com o balaço brusco do ônibus.
Pelas minhas contas, estávamos viajando há pouco mais de vinte e quatro
horas e, para meu completo alívio, Romeo tinha dormido a maior parte do
tempo, embalado pelo balanço do automóvel e o clima frio proporcionado pelo
ar condicionado. Mudei de posição na poltrona, tentando esticar as pernas e os
braços e alongar a coluna, mas não era tarefa fácil, porque não queria acordá-lo.
Todo o meu corpo doía e reclamava.
Afastei a cortina que cobria a janela e a forte luz do sol me obrigou a
fechar os olhos sensíveis à claridade. De longe, vi a placa que dizia "Seja bem-
vindo à Naperville". Eu não sabia exatamente onde a cidade ficava, perdi a conta
de quantos estados percorremos há horas. Além disso, como nunca saí da cidade
de Reno, no estado de Nevada, onde cresci, e nunca fui uma boa aluna em
geografia, não estava bem familiarizada com o mapa dos Estados Unidos.
Deixei escapar um sorriso ao relembrar da época em que Miranda e eu
tínhamos planos de fazer um mochilão e conhecer o mundo. Um doce sonho
adolescente que, infelizmente, não se realizou.
Eu não conhecia a minha família biológica. Fui deixada na porta de um
orfanato católico ainda com poucos dias de vida, onde permaneci pelos próximos
quinze anos. O lugar não era ruim, embora bastante rígido. Eu não gostava de
acordar cedo, antes do raiar do sol. De tomar um café da manhã que geralmente
não passava de um mingau sem gosto. De passar a maior parte do dia estudando
e, antes de dormir, rezar na companhia das freiras e colegas. Tampouco
apreciava as roupas de tecido pesado e áspero, que coçavam e pinicavam a pele,
fazendo-a ficar avermelhada e suada no clima quente de Nevada. Ou do fato de
precisar esfregar privadas, lavar o chão e tirar o pó de todos os móveis enormes e
antigos. Mas, ainda assim, toda noite eu tinha uma cama para dormir e um teto
sobre minha cabeça. E nunca passei fome.
O cenário mudou quando completei quinze anos — idade limite para
permanecer na instituição — e fiquei a cargo do governo. Fui colocada em lares
adotivos sempre abarrotados de crianças e adolescentes na mesma situação que a
minha. Os "pais" nos aturavam exclusivamente para garantir os cheques estatais.
A mudança foi brusca, não dava para negar. Éramos superprotegidas no
orfanato, vivendo em um universo paralelo, e, de repente, nos jogaram no mundo
real sem nenhum preparo. Perceber o tipo de coisa que acontecia naquelas casas
foi desesperador. Chocada e amedrontada, fiz o meu melhor para passar
despercebida. Entretanto, o meu corpo escolheu justamente aquela fase para
desenvolver. Os seios e bumbum cresceram, os quadris ficaram arredondados e
as pernas pareciam chamar atenção, mesmo dentro das roupas folgadas que eu
fazia questão de usar.
Miranda Perry entrou na minha vida em um momento que seria
traumático sem a sua intervenção. Um dos “pais”, sentindo-se “tentado” por
mim, me emboscou no meio da madrugada. Acordei com uma mão grande
tapando a minha boca e corpo pesado me esmagando na cama estreita. Tentei
lutar e gritar, mas ele era muito mais forte que eu. Não sei exatamente o que
chamou a sua atenção, mas Miranda começou a gritar, acordando a casa inteira, e
partiu para cima dele, arranhando-o a ponto de tirar sangue. Descontrolada,
ameaçou ter uma conversa com a assistente social e fazer com que ele e a esposa
nunca mais recebessem crianças e adolescentes sem família. Significava que
ficariam sem dinheiro. Depois do episódio, o desgraçado me deixou em paz, mas
o trauma permaneceu.
Então, viramos amigas, irmãs. Vivendo uma situação parecida,
encontramos compreensão uma na outra, do tipo que somente pessoas como nós
podiam compartilhar. Um pedaço daquele vazio foi preenchido e não nos
separamos mais, até o meu último ano na faculdade.
Quando concluímos o ensino médio, consegui uma bolsa integral em
uma Community College e Miranda começou a fazer um curso na área da
estética. A facilidade que sempre tive com os números me fez escolher a carreira
na contabilidade, enquanto ela foi contratada como cabeleireira por um salão
pertencente a uma rede de hotéis de luxo.
Conheci Bryan no último ano de graduação, graças a uma disciplina que
pegamos juntos — a única que o impedia de pegar o diploma. O rapaz, a
princípio, não chamou minha atenção, mas pouco a pouco foi se aproximando,
puxando um assunto aqui, outro ali.
"Posso copiar a matéria do seu caderno?"
"Você não acha que o professor está indo rápido demais?"
"Será que podemos formar dupla para o trabalho?"
"Fiquei sabendo que a sorveteria que abriu no final da rua tem um
excelente milk-shake. Você tá a fim de dar uma passada por lá, qualquer dia
desses?"
Traumatizada pelo quase estupro, havia passado os últimos anos fugindo
de qualquer envolvimento amoroso e aos poucos os rapazes desistiam. Logo,
apesar dos meus vinte e dois anos de idade, era realmente inexperiente naquele
sentido. Não acreditei que houvesse segundas intenções na sua aproximação
amistosa. Todavia, a atenção masculina educada fez bem para o meu ego
adormecido, levando-me a entrar em um relacionamento sério de forma natural.
Bryan era um homem maduro, apesar de jovem. Responsável e dedicado,
a empresa para a qual estagiava já havia demonstrado interesse em efetivá-lo.
Ele mantinha um apartamento de dois quartos nos arredores da faculdade.
Miranda e eu dividíamos uma quitinete em uma rua mais distante. Era o que
podíamos bancar com a ajuda de custo que recebíamos do governo.
Apesar de calado, sempre foi bastante gentil e educado. Certa vez,
perguntei sobre a sua família e Bryan comentou que a relação entre eles não era
boa, então não mantinham contato. Percebendo que o assunto o deixava
desconfortável, não insisti. E me sentia cada dia mais ligada a ele.
Por sua vez, em um dia comum de trabalho, Miranda tinha conhecido um
cara chamando Dax, gostoso pra caralho, segundo suas próprias palavras. Os
dois começaram a sair imediatamente. Ele ostentava uma vida de luxo e a
presenteava com joias caríssimas. Eu nutria a forte desconfiança que o homem
estava envolvido em atividades ilegais, mas mantive o pensamento para mim
mesma, com receio de magoá-la.
Infelizmente, uma não se deu bem com o namorado da outra. Eu não
tinha nada contra Dax, ele sempre foi muito educado comigo em todas as
ocasiões que nos encontramos, mas ficava apavorada com a possibilidade
daquele relacionamento colocar Miranda em perigo. A ironia na situação era
que, enquanto estava preocupada com as consequências que o namoro de
Miranda poderia trazer para ela, eu deveria estar mais atenta ao que meu
envolvimento com Bryan traria para mim.
A confirmação veio alguns meses depois, quando Miranda confessou,
parecendo envergonhada, que ele fazia muito, muito dinheiro com tráfico de
drogas e armas. Precisei usar todo o autocontrole para não explodir e exigir que
se afastassem. Ao invés disso, simplesmente questionei:
— Você tem certeza do que está fazendo, amiga?
Qual pessoa, cega de amor, no início de um relacionamento avassalador,
possuía o discernimento necessário para ter certeza de qualquer coisa?
Por outro lado, minha melhor amiga criou uma considerável antipatia por
Bryan instantaneamente. E a antipatia era totalmente recíproca. Queria muito
que as duas pessoas mais importantes para mim se dessem bem, mas não havia
nada que pudesse fazer em relação àquilo.
No início do último semestre na faculdade, quase desmaiei ao deparar-me
com o teste de gravidez marcando positivo. Apenas por via das dúvidas, Miranda
comprou quatro deles, de marcas diferentes e, ao passo que todos mostravam o
mesmo resultado, eu sentia o pânico crescer. Um bebê definitivamente não fazia
parte dos meus planos.
Conforme o desespero inicial diminuiu, a ideia de gerar uma vida, dar luz
a uma criança que seria sangue do meu sangue, me fez criar um vínculo forte e
imediato com ela. E jurei que daria a ele ou ela tudo que não tive. Amor.
Família. Um lar seguro.
Para a minha surpresa e alívio, Bryan demonstrou empolgação ao receber
a notícia que seria pai. Propôs que eu fosse morar com ele. Naquela época, já
havia sido efetivado no emprego e recebia um bom salário. Um mês depois,
apesar de não ter sido oficializado, Eveline Perry — sobrenome de Miranda que
decidi adotar assim que cheguei à maior idade — era uma mulher “casada”.
O ônibus fez a parada na estação rodoviária, trazendo-me de volta ao
presente. Precisava descer para esticar as pernas e comer alguma coisa. Romeo
acordou e me encarou com os olhinhos inchados, abrindo um sorriso. Beijei a
ponta do pequeno nariz e desci.
A parada era de uma hora. Coloquei Romeo no chão e fomos em busca
de comida. O clima estava agradável, um pouco frio para o mês de setembro,
mas definitivamente agradável. As ruas eram limpíssimas, os imóveis bem
cuidados e as pessoas não pareciam ter pressa para chegar aos seus destinos. A
alguns metros de distância da rodoviária, um pequeno restaurante de fachada
simples e convidativa chamou a minha atenção. Ocupei uma mesa no canto e
prontamente a garçonete veio me atender, trazendo o cardápio. Pedi um
cappuccino, água e duas panquecas.
Enquanto Romeo comia a sua massa, todo compenetrado e independente,
olhei através da janela de vidro para o lado de fora. Era daquilo que eu
precisava. Aquela calmaria de uma típica cidade interiorana, bem diferente de
Reno. Decidi ficar e tentar a sorte. Se não desse certo, pensaria no que fazer
depois.
Seja boa para mim, Naperville. Seja boa para nós dois.
CAPÍTULO 2
O Encontro

Aproveitei o final de semana para separar todas as vagas de emprego


disponíveis na minha área. Circulei algumas nos classificados do jornal e
caminhei pelo bairro simples do hotel que estávamos ficando — dica do taxista
—, até encontrar uma pequena lan house. O Starbucks disponibilizava wi-fi
gratuitamente, mas eu não havia trazido o notebook e o celular que Miranda pôs
na minha mala era simples e ultrapassado, sem acesso à internet.
Encontrei quatro ofertas promissoras. Não queria criar expectativas, pois
sabia perfeitamente que, embora houvesse me graduado com honras, como a
primeira da turma, a minha experiência se resumia ao estágio. Existia uma
lacuna de três anos entre a formatura e os dias atuais que qualquer potencial
patrão estranharia. Em todo caso, se fosse complicado encontrar trabalho na
contabilidade, eu estava disposta a aceitar em outras áreas.
A primeira mulher atendeu a minha ligação e, com a voz monótona,
informou que a vaga havia sido preenchida. O segundo número não respondeu às
duas tentativas consecutivas. O terceiro pediu para voltar a ligar na quinta-feira.
Na quarta chamada, com o desânimo ameaçando me abater, tive um fio de
esperança. A simpática moça disse que a vaga ainda estava em aberto e eu
poderia fazer a entrevista naquele mesmo dia, à tarde. Para tanto, deveria estar
no endereço fornecido com os documentos necessários. Desliguei o telefone
animada, torcendo para que desse tudo certo.
Tomei um banho rápido e revirei a mala até achar uma roupa mais neutra,
adequada para uma entrevista de emprego. A maior parte do que Miranda tinha
comprado era modelo casual, como jeans e camisetas. Por sorte, decidi trazer um
conjunto social que eu costumava usar no estágio. Deu um pouco de trabalho
para entrar e ficou bem mais apertado do que há três anos — herança da
gravidez —, mas o importante é que serviu. A saia preta, cinco dedos acima do
joelho, e a blusa azul marinho de mangas compridas me deixaram com um ar
profissional. As opções de calçados eram mais limitadas, ou decidia pelo par de
sapatilhas pretas ou o tênis branco, que usei para viajar. A sapatilha ganhou.
Sequei o cabelo, ajeitando-o como pude, sem haver me acostumado a
nova cor e tamanho. O único item de maquiagem que me acompanhou foi o
batom rosa coral. Eu ia assim mesmo, de cara limpa, apenas com uma corzinha
na boca.
Após terminar de arrumar Romeo, me preparei para a próxima saga:
encontrar um local para deixá-lo. A recepcionista do hotel foi muito simpática e
recomendou a creche onde seu filho ficava enquanto estava no trabalho.
Agradeci, implorando a Deus para que tudo desse certo, pois eu precisava estar
no local da entrevista em duas horas.
A diretora do pequeno estabelecimento ficou um tanto reticente, já que as
visitas precisavam ser agendadas e o período de matrícula havia passado.
Desesperada, expliquei que foi indicação de uma amiga, que era nova na cidade
e estava prestes a conseguir um trabalho, depois de muito tempo desempregada.
Praticamente implorei por ajuda. Ela ficou visivelmente incomodada, mas acho
que sentiu pena de mim, porque concordou em abrir uma exceção. Aliviada, lhe
entreguei os documentos — falsos, os mesmos que usei para fazer check-in no
hotel.
Deixei meu filho chorando, sentindo-me uma péssima mãe. Conforme
saía do estabelecimento, meus próprios olhos estavam molhados e meu coração
parecia estar sendo esmagado no peito. Sensação de impotência. O coitadinho
não fazia ideia por que, de repente, sua rotina mudou tanto.
Olhei para o relógio de pulso, tentando me recompor, e percebi que meu
tempo estava apertado. Não conhecia a cidade, não sabia como funcionava o
transporte público por aqui e, mesmo desejando economizar cada centavo, decidi
que o melhor seria pegar um táxi.
O escritório da LTM Security ficava em um imóvel comercial de dois
andares no centro da cidade. Não era grande, mas a construção de tijolinhos
alaranjados parecia sólida e antiga. Respirei fundo, desci do carro e apertei uma
espécie de interfone mais moderno. Uma câmera, bem acima da minha cabeça,
virou para focar o meu rosto, ao mesmo tempo que uma voz pedia para eu me
identificar.
— Meu nome é Eveline Perry. Sou contadora e tenho uma entrevista
marcada para as duas e meia da tarde. Falei com Amanda Diaz por telefone.
Ouvi um click, a porta destravou e fui obrigada a limpar as mãos
molhadas de suor na saia enquanto entrava. Surpreendi-me ao ver o interior da
empresa. Achei que seria como naqueles filmes de ação disponíveis na Netflix:
pessoas andando de um lado para o outro, cheias de papéis nas mãos, tentando
salvar alguém de algum perigo; um telefone tocando atrás do outro; inúmeros
aparelhos tecnológicos de última geração, que um reles mortal como eu não
saberia nem sequer ligar. Não podia estar mais equivocada. Além da mulher que
caminhava na minha direção, só havia mais duas pessoas no térreo. E os dois
homens de expressões igualmente mal-humoradas pareciam imersos demais em
uma discussão discreta para prestarem atenção em mim.
— Eveline Perry? — A mulher buscou confirmação e eu reconheci a sua
voz.
— Sim.
— Amanda, nos falamos mais cedo. — Estendeu a mão para mim,
simpática.
Minha mão continuava suada, mas não podia recusar o educado
cumprimento.
— É um prazer.
— Igualmente. — Sorriu. — Sente-se um pouco, Luke está terminando
uma reunião e já vai falar com você.
Luke? Novamente me vi surpreendida. Normalmente os funcionários se
referiam aos patrões pelo sobrenome.
— Ah, certo. Muito obrigada. — Pigarreei.
— Você trouxe os documentos?
Remexi na bolsa e daquela vez tive o cuidado de entregar os verdadeiros.
Seria burrice tentar uma vaga em uma empresa de segurança privada com
documentos falsos. E apenas Eveline Perry possuía um diploma.
Amanda sorriu mais uma vez e se afastou, subindo as escadas. Ela era
baixinha, morena, parecendo ter ascendência latina, e aparentava estar na faixa
dos quarenta. Pela sua voz, achei que fosse uma adolescente. Voltou alguns
minutos depois e se sentou, retomando seus afazeres.
O tempo parecia se arrastar. A minha perna direita balançava para cima e
para baixo freneticamente, numa velocidade irritante. Miranda odiava aquele
hábito. Você está me deixando nervosa com isso, porra!, costumava dizer. Meu
peito apertou de saudade dela.
Com muito esforço, consegui conter a vontade de roer as unhas, outra
péssima mania que eu tinha. Achava ridículo que, aos vinte e seis anos de vida e
três de formada, fosse a primeira vez que eu comparecia a uma entrevista de
emprego. Quando me formei, estava com seis meses de gravidez e Bryan sugeriu
que eu ficasse em casa por um tempo, cuidando do bebê. Achei a ideia
maravilhosa. A hipótese de deixar meu filho ser criado por babás era inaceitável.
Não tinha noção de que aquela era apenas a primeira coisa que ele
“sugeriria” que eu fizesse…
Antes que seguisse por aquele caminho, afastei os pensamentos
negativos. Não adiantava nada ficar remoendo o passado, tentando entender o
que poderia ter feito diferente, ansiando por uma possibilidade de voltar no
tempo que nunca aconteceria. Agora, eu precisava seguir em frente e construir
uma vida completamente diferente para mim e Romeo. Precisava ser forte por
nós dois.
Pensar em como deixei Bryan comandar a minha vida, destruir aquela
garota cheia de confiança, planos e sonhos apesar dos pesares, pensar em como
ele reprimiu o meu espírito e acabou com a minha autoconfiança certamente não
traria meus anos de volta. E, para não enlouquecer em uma amargura sem fim,
eu preferia focar na única coisa boa que veio daquela relação: Romeo.
— Eveline? Eveline?
Saí do transe, vendo Amanda me encarar com uma expressão divertida e
curiosa, certamente perguntando-se em que planeta eu estava.
— Desculpa — respondi, sem graça. — Estou com mil coisas na cabeça
e um pouco nervosa, para falar a verdade.
— Não há necessidade. Luke só tem jeito de durão, mas é um querido,
um amor de pessoa. Ele vai te receber agora. Me acompanhe, por favor.
Pensei que não conseguiria subir as escadas, minhas pernas trêmulas e
descoordenadas. No andar superior, seguimos por um corredor até Amanda parar
na penúltima porta à esquerda. Virou-se para me olhar, sorriu de forma
tranquilizadora e bateu duas vezes na porta, abrindo-a sem esperar resposta.
— Boa sorte — sussurrou.
— Obrigada — agradeci no mesmo tom, fazendo o meu melhor para
retribuir o sorriso.
A sala, de tamanho médio, seguia o padrão do que eu já tinha visto até o
momento: decoração simples, limpa, como se ninguém ali tivesse tempo a perder
com aquele tipo de coisa. Na mesa, alguns papéis em desordem e o notebook
aberto eram os únicos indícios que o lugar era usado. O restante estava
impecável.
Sentado atrás da mesa em questão, o homem levantou para me
cumprimentar com um aperto de mão. Ele era bem alto e parecia cansado, um
pouco impaciente.
— Eveline Perry, certo? — O timbre rouco da sua voz era bem diferente.
— Sim — confirmei, mas a minha própria voz soou estranha. Eu estava
nervosa para caramba.
— Lucas Hayes. Senta, por favor. — Indicou uma cadeira, enquanto ele
mesmo voltava a sentar. — Peço desculpas por ter feito você esperar, mas
tivemos uma reunião de última hora. Normalmente não sou eu quem faz as
entrevistas, mas passamos por alguns problemas recentemente e assumi esse
encargo, por ora.
— Não tem problema.
Merda! Estou tremendo! Sentei, alisando a saia mais uma vez, torcendo
para que Lucas Hayes não percebesse como eu suava feito uma porca.
Calada, esperando que ele desse início à entrevista, observei-o. Era um
homem bonito. Muito mais alto que eu em, pelo menos, uns vinte e cinco
centímetros — e eu nem era tão baixa assim. Parecia manter o corpo em dia;
aquela foi a impressão que tive quando o vi de pé. Percebi, graças a manga da
camisa dobrada até o cotovelo, que tinha braços fortes e cobertos por tatuagens.
Seu cabelo estava cortado bem curto, no estilo militar. O nariz era bem feito e
combinava perfeitamente com o rosto. Os olhos castanhos claros, levemente
esverdeados, me encararam brevemente e voltaram ao papel em suas mãos.
— Bem, senhorita Perry…
— Eve, por favor — interrompi o que ele ia dizer.
Por que, em nome de Deus, pedi que me chamasse pelo apelido?!
Lucas me olhou de maneira inexpressiva, sem dizer nada, deixando-me
ainda mais desconcertada pela gafe.
— Desculpa, é falta de costume. Todo mundo me chama de Eve. —
Tentei consertar, xingando-me mentalmente.
— Como quiser, Eve. Estamos precisando de um contador em caráter de
urgência. O nosso antigo funcionário teve a brilhante ideia de desviar dinheiro da
empresa. Agora ele está tendo tempo suficiente para analisar se valeu a pena. —
Notei a leve ameaça contida na frase.
Ele achava que eu podia ser uma… Ladra? Certa vez, Miranda decidiu
que seria divertido furtar um doce do Walmart. Fiquei me sentindo tão culpada
que, após poucos dias, voltei e paguei a diferença à mulher do caixa, dizendo
que ela havia me dando troco a mais. Eu abominava a ideia de pegar qualquer
coisa de outra pessoa sem o consentimento dela.
Fiquei calada, pensando no que responder, e ele continuou:
— Dei uma breve olhada no seu currículo e gostei do que vi. No entanto,
tenho algumas dúvidas.
— Claro.
Que Deus me ajude! Nunca gostei de mentir. Toda vez que uma mentira
saía da minha boca, eu tinha a sensação que todo mundo sabia o que eu estava
fazendo. Era como se ficasse estampado na minha testa: mentirosa. E não estava
animada com a perspectiva de começar naquele momento, com aqueles
perspicazes olhos encarando-me, parecendo saber cada um dos meus segredos.
— Você se formou com excelentes notas, mas há um buraco de três anos
desde então. Posso perguntar por quê?
— Veja bem, senhor Hayes…
— Sem o senhor e sem o Hayes. Lucas ou Luke, como preferir. — O
olhar dele, daquela vez, estava um tanto divertido, como se pensasse: Você me
pediu para te chamar de Eve e agora vem com essa de senhor Hayes?
— Ok. Veja bem, Luke, eu sei que as pessoas costumam esconder esse
tipo de informação por receio, e talvez seja um erro falar a verdade, mas não
acredito que seja uma fraqueja, muito pelo contrário, me faz ainda mais
responsável. — Notei curiosidade na expressão dele e prossegui: — Eu sou nova
na cidade, acabei de me mudar com o meu filho de três anos. Ele é o motivo de
não haver qualquer trabalho no meu currículo. Engravidei no último semestre do
curso e priorizei a sua criação. Agora está na hora de dar continuidade à minha
vida profissional.
A declaração foi recebida com silêncio e eu não soube como interpretá-
lo. Luke tirou as mãos da mesa e descansou as costas na confortável cadeira,
observando-me atentamente.
— Você se mudou com a família?
O coração parou por alguns segundos, mas respirei fundo e respondi o
mais tranquilamente possível:
— Apenas Romeo e eu.
— Compreendo. — Silêncio novamente.
Quase entrei em pânico ao perceber que ele estava tendo dúvidas a meu
respeito. A verdade é que uma mulher solteira e com filho pequeno perdia
facilmente a vaga para outra em situação diferente, e principalmente para
qualquer homem, que não corria o risco de engravidar. Nós precisaríamos provar
o profissionalismo a todo instante, trabalhar dez vezes mais. E nem entraria na
questão da diferença salarial que, infelizmente, ainda acontecia recorrentemente.
Mas não cheguei tão longe para desistir assim.
— Escuta, Luke, sei que você não me conhece, que não tem motivos para
acreditar em mim e que prefere alguém com o currículo cheio de experiência,
mas te garanto que posso dar conta do recado. Sou dedicada, responsável e
preciso do dinheiro. Só peço uma oportunidade para mostrar o meu trabalho.
Odiei ter praticamente implorado por uma chance. Mas de que serviria o
meu orgulho nas atuais circunstâncias? Estava em jogo muito mais do que um
simples emprego. Era o meu recomeço. A possibilidade de voltar a ser mais do
que a Eve mãe, a Eve dona de casa, a Eve mulher de alguém. Fui tudo isso e
continuaria sendo, mas era tão mais… Tinha tanto para oferecer.
— Muito bem, faremos um período de teste. Depois do que aconteceu
por aqui, sua sinceridade é uma qualidade bem-vinda. Amanda vai te dar todas
as informações necessárias e te mostrar como tudo funciona. Estarei viajando
nas próximas duas semanas, mas conversaremos quando eu voltar e decidiremos
a sua situação. Parece bom para você?
Precisei me conter para não pular a mesa e sufocá-lo em um abraço de
agradecimento. Convenhamos, não seria nada apropriado ou profissional. Por
isso, apertei as mãos, respirando aliviada pela primeira vez desde que cheguei
aqui.
— Parece ótimo. — Sorri.
Luke levantou-se novamente e deu a volta na mesa para me acompanhar
até a porta. Estendeu a mão para se despedir e disse:
— Foi um prazer.
Quando voltei à recepção, Amanda levantou me olhou em expectativa:
— E então, como foi? — perguntou.
— Consegui uma chance!
— Que bom! Vai ser maravilhoso ter mais uma mulher por aqui. Amanhã
faremos um tour completo e te apresento ao pessoal. Mas, para resumir, aqui
embaixo ficam a parte administrativa e áreas comuns. A sua sala fica ao lado da
de Lucy, a nova administradora e irmã de Luke. Temos um banheiro, um
refeitório com cafeteira, micro-ondas e geladeira, caso você queira trazer comida
de casa. A parte superior é a área dos garotos, como costumo chamar. Lá estão as
salas de Luke, Ty e Matt, a sala de reuniões, sala de monitoramento, um quarto e
um banheiro.
Assenti, fingindo estar prestando atenção às explicações. Mas só
conseguia pensar que a minha nova vida começaria mais cedo do que imaginei.
Nós vamos ser felizes, filho!


— Quem é a loira gostosa que acabou de passar por mim no corredor?
Levantei os olhos para Matt, o filho da puta que ocupava os cargos de
melhor amigo e sócio. Ele sentou na cadeira que há poucos minutos estava
ocupada por Eveline. Eve, corrigi mentalmente.
— A nova contadora, pelo menos até eu ter certeza do seu bom trabalho.
— Sem dúvidas ela é melhor aos olhos que o desgraçado do Anthony. —
Matt levantou as pernas e apoiou os tornozelos cruzados em cima da minha
mesa. — E suponho que você decidiu contratá-la única e exclusivamente por sua
inteligência e longa experiência profissional. A menina não deve ter mais de
vinte anos. — O olhar dele era zombador.
— Vinte e seis. E essa informação pode ser chocante para você, mas nem
todos os caras pensam com o pau. — Franzi a testa ao ouvir a gargalhada dele
ecoar pela sala. — Fico feliz que esteja de tão bom humor — falei, agora usando
o mesmo tom irônico do infeliz. — Lucy começou hoje.
Assisti, com uma tremenda satisfação, o sorriso presunçoso que Matt
ostentava morrer no instante que pronunciei o nome da minha irmã. Ele tirou os
pés de cima da mesa numa velocidade admirável e ajeitou-se na cadeira,
desconfortável.
Cadê a tiração de sarro agora, otário?
— Quando topei essa sociedade, achei que as minhas opiniões fossem ser
levadas em consideração — comentou, indignado.
— E são, mas você perdeu.
— Luke, cara, revê essa parada aí. Eu não acho uma boa ideia Lucy
trabalhar aqui.
— E se você me der um bom motivo, além do fato de ter transado com
ela e agora estar desesperado por precisar vê-la diariamente, eu reconsidero o
meu voto — rebati.
Não tive a intenção de soar acusatório, mas foi inevitável. Ainda não
engolia Matt ter tido aquele tipo de interação com minha irmã caçula. Lucy era
adulta, responsável, excelente profissional e dona do próprio nariz. No entanto,
para mim, ela e Laura seriam sempre as minhas irmãzinhas.
— Se fosse ao contrário, queria ver se você estaria tão tranquilo assim,
filho da puta.
— Da próxima vez pense melhor sobre transar com as irmãs dos seus
amigos.
Matt gemeu, derrotado, e passou as mãos pela nuca, nervoso. Depois me
olhou, desanimado:
— Você nunca vai me perdoar por aquilo, vai? Quebrar o meu nariz não
serviu de nada?
— Serviu. — Levantei os olhos do currículo de Eve, que ainda estava
aberto sobre a mesa, e encarei os olhos azuis, que exerciam um grande efeito nas
mulheres, fato que testemunhei durante anos. — Para que minha raiva se
aplacasse um pouco e eu não te matasse.
— Ok, ok. — Levantou ambas as mãos em sinal de rendição. — Vamos
voltar para a loira. Como é o nome dela? É casada?
— Eveline Perry. Aparentemente, se mudou para cá recentemente com o
filho pequeno. Sem marido.
— Aparentemente? — Matt estranhou o meu tom.
— Meus instintos me dizem que ela está escondendo alguma coisa.
— E ainda assim você a contratou. Depois eu sou o acusado de pensar
com o pau. — O sorrisinho irritante estava de volta à boca dele.
— Contratei para um período de experiência. Que alternativa temos?
Vamos ficar fora pelos próximos quinze dias e as coisas aqui precisam ser
regularizadas depois do que aquele pau no cu fez.
Houve uma batida na porta e, em seguida, a voz de Lucy preencheu o
ambiente:
— Mas que infelicidade a minha. Dar de cara com certos imbecis no
primeiro dia de trabalho.
O corpo de Matt enrijeceu ao ouvi-la, mas ele se recuperou rapidamente,
voltando à atitude despreocupada.
— Boa tarde para você também, doce Lucy — cumprimentou sem virar
para olhá-la.
— Você pode enfiar o "doce Lucy" no…
— Ei, ei, ei! — interrompi. — Você prometeu que conseguiria conviver
pacificamente com ele, Lucy.
— Eu sei, foi um lapso momentâneo. — Ela fechou a porta e caminhou,
rebolando um pouco demais na minha opinião. Após sentar na cadeira ao lado de
Matt, roçou a ponta do pé propositalmente na perna dele.
Puta que me pariu.
Matt engoliu em seco e Lucy continuou, a expressão inocente:
— E então, Luke, Amanda disse que você queria falar comigo antes de ir
embora.
— Só pra te dar as boas-vindas oficialmente — eu disse, abrindo um
sorriso para ela.
— Muito obrigada, já estou me sentindo à vontade por aqui.
Lucy se formou há pouco tempo em administração, na melhor
universidade do país na área, a Universidade da Pensilvânia, como uma das
melhores da turma. Porque ela quis trabalhar aqui na LTM Security, quando
poderia ir para empresas muito maiores e com melhores oportunidades, era um
mistério que eu já tinha desistido de tentar desvendar.
— E você, traste, digo, Matt, não vai me desejar boas-vindas? —
provocou, revestida de uma falsa inocência que não enganou ninguém.
— Por mim, docinho, você nem estaria aqui.
— Isso não me surpreende, imbecil. Caras como você são tirados a
machões, mas tremem na base e se mostram verdadeiros covardes ao precisarem
encarar uma mulher com quem já transou.
— Pelo que me lembro, da última vez que ficamos sozinhos, quem
tremeu bastante foi você.
— Ah, faça-me o favor, né?! Vai ficar se gabando por ter me dado um
orgasmo meia-boca?
Mas que porra…?!
— Meia-boca? Talvez você queira usar orgasmos, no plural. E seus gritos
escandalosos me disseram outra coisa.
Os dois pareciam não lembrar da minha presença.
— Gritos escandalosos? Quem estava gritando feito uma hiena foi você,
meu amigo. Se quer mesmo saber, foi constrangedor.
— Lucy… — Tentei interromper, sentindo vontade de furar meus
próprios tímpanos para não continuar ouvindo a conversa.
— Espere um minuto, Luke. — Fez sinal com a mão. — Não vou deixar
esse ridículo com o ego inflado falar inverdades. Fique sabendo, idiota, que
outros homens já me deram orgasmos muito mais arrebatadores. Você não entra
nem no top dez.
— Ah, sim? Podemos sair daqui agora mesmo e eu te mostro qual
posição vou estar ocupando quando acabar com você.
Ah, vá tomar no…
— Bem que você gostaria, né? — A discussão continuou, sem trégua. —
Pois eu prefiro ter um braço arrancado do que ir pra a cama com você
novamente. Não foi uma experiência muito agradável.
— Não foi o que eu ouvi por aí…
— Calem a porra da boca, os dois! — gritei, levantando da cadeira, puto
da vida com o rumo que a conversa tomou. — Eu não preciso ficar sabendo
sobre a vida sexual da minha irmã, principalmente quando você está diretamente
envolvido, Matt! Se os dois não conseguem ficar no mesmo ambiente por cinco
minutos sem se insultarem, isso aqui não vai dar certo.
— Eu avisei que não era uma boa ideia — resmungou Matt, olhando
atravessado para Lucy, que o encarava como se quisesse arrancar suas cabeças (a
de cima e a de baixo) fora.
Lucy respirou fundo, fechando os olhos, e falou:
— Você tem razão, Luke, peço desculpas. Me deixei levar pelo momento.
Sou uma mulher madura o suficiente para aguentar a presença desagradável do
seu amigo. Desde que ele finja que não existo, farei o mesmo.
— O prazer será todo meu, docinho.
Antes de levantar e caminhar rapidamente para fora da sala, Lucy não
resistiu ao impulso de mostrar o dedo do meio para ele.

Quando entrei em casa naquela noite, estava exausto.
Desde que havíamos descoberto o rombo na contabilidade, há alguns
meses, minhas horas de trabalho aumentaram para caralho. Anthony Carter,
antigo contador e um homem que cheguei a considerar um amigo, fez um
estrago tão grande na empresa que se mostrava cada dia mais difícil de ser
consertado. Eu esperava que Lucy e Eveline fossem capazes de reverter o
quadro.
A LTM Security estava longe de ser uma grande empresa, mas vinha em
uma ascensão promissora. Naperville era uma cidade conservadora em muitos
aspectos, inclusive no que dizia respeito à segurança privada. As pessoas que
precisavam do serviço já tinham seu time de confiança e muitos preferiam
recorrer a profissionais em Chicago. Crescemos pouco a pouco, cliente a cliente,
fidelizando cada um deles. Os contatos que fizemos durante os dez anos de
exército ajudavam, indicando nosso serviço. Matt, Ty e eu investimos tudo que
tínhamos nela, então deixar que um filho da puta qualquer a destruísse estava
fora de cogitação. Se fosse preciso, trabalharíamos vinte e quatro horas por dia
para fazê-la sair da corda bamba.
Mas se você era incompetente o suficiente para deixar alguém te roubar,
as pessoas começavam a questionar por que deviam confiar suas vidas a você.
Perdemos clientes, perdemos dinheiro e precisamos demitir metade dos
nossos funcionários. Ainda assim, não sabia como faríamos para pagar os
salários daquele mês.
Conheci Matt no ensino médio, viramos amigos depois de um começo
turbulento. Passamos por uma caralhada de situações fodas juntos. Ty se juntou
no segundo ano de exército. A amizade entre nós três se desenvolveu de forma
natural, sem forçação de barra. O ataque que quase matou o nosso pelotão
inteiro, e deixou uma sequela permanente na perna direita de Ty, foi a gota que
transbordou o copo. Pedimos a dispensa.
Sair não era tão simples quanto entrar. Tecnicamente, qualquer um pode
pedir baixa. Mas se a sua unidade estiver carecendo de efetivo, eles vão te dar
uma boa enrolada. Se quiser sair imediatamente então… Até sai, mas não recebe
porra nenhuma. Uma quantia por cada ano de serviço prestado.
Ao voltar para casa, nada era o mesmo. Sair ileso de uma experiência no
Iraque era algo que ninguém, ninguém conseguia. Com dificuldades para nos
readaptar à vida civil, resolvemos fundar uma empresa de segurança privada,
aproveitando a experiência de campo que cada um possuía. Após meses de
capacitação, inúmeras idas a bancos em busca de empréstimo e muita dor de
cabeça, a LTM foi fundada. E eu me recusava a deixá-la falir.
Lola, uma Yorkshire terrier de dois quilos, veio me receber na porta.
Presenteou os meus ouvidos com os latidos agudos, pulou em minhas pernas e
abanou o rabo em uma velocidade impressionante. Abaixei para pegá-la no colo
e recebi, de bom grado, as lambidas no rosto.
— Ei, garota, eu também estava com saudades — confessei, afagando
uma orelha.
A cadela foi herança da outra irmã, Laura. Ela ganhou o filhote de
presente do namorado, mas dois meses depois eles se separaram. O término não
foi nada amigável — rolou traição e o caralho a quatro — e Laura ficou tão mal
que decidiu fazer um intercâmbio para esquecer o relacionamento fracassado.
Lola, então, foi deixada aos meus cuidados — contra a minha vontade —, até
que ela voltasse, três meses depois. Os três meses viraram um ano e meio.
Gostou tanto da Alemanha que resolveu renovar o visto de estudante.
Ela até veio buscar Lola, que já estava muito apegada a mim e ficou
extremamente depressiva ao ser levada daqui. Não que eu fosse admitir aquilo
em voz alta, mas o animal fez uma falta da porra aqui em casa, a ponto de em
alguns momentos eu achar que iria enlouquecer com o silêncio. Não demorou
uma semana e Laura bateu na minha porta com Lola nos braços, a cama
minúscula, ração e todos os brinquedos enfiados em uma sacola.
— Ela já é sua, Luke. É uma crueldade separá-la de você.
Internamente comemorei a volta dela como se o meu time tivesse
vencido o Super Bowl. Mas para a minha irmã, eu só disse:
— Beleza. Se você acha que vai ser melhor pra ela ficar aqui, paciência.
Desde então, dividimos a casa. A cadela parecia ter algo místico que me
tornava mais atrativo para o público feminino. Quando levava Lola para passear,
por exemplo, sempre ouvia de, pelo menos, três mulheres: Ahhh, que coisinha
mais fofa! Qual é o nome dela? E no final da conversa quem sabia os nomes e os
números dos telefones delas era eu.
Apenas unindo o útil ao agradável, jovens.
Depois de tê-la alimentado e passado vários minutos brincando no chão
para que gastasse a energia acumulada de um dia inteiro dentro de casa, fui
tomar banho. O passeio ficaria para amanhã de manhã. Jantei e fui direto para a
cama, sentindo-me incapaz de manter os olhos abertos por muito tempo.
No entanto, no instante em que coloquei a cabeça no travesseiro, um par
de olhos muito tristes e desconfiados invadiu a minha cabeça por alguns
segundos. Não percebi em Eveline, à primeira vista, sinais de um caráter
duvidoso; pelo contrário, ela se mostrou bastante transparente. Mas meus
instintos se equivocaram em relação à Anthony e eu não cometeria o mesmo erro
duas vezes. Manteria os olhos abertos.
O que você está escondendo, Eveline?
CAPÍTULO 3
Desconfiança

O silêncio de Luke estava me deixando louca.


Ele havia voltado da viagem e tivemos uma extensa reunião, na qual
expliquei — com muito menos nervosismo do que imaginava, e estava orgulhosa
daquilo — as estratégias que entendia como as melhores para regularizar a
contabilidade e trazer a credibilidade da empresa de volta. Luke ouviu tudo
calado e, após meu discurso, passou a analisar as planilhas que fiz com o rosto
neutro.
Você gostou? Ou achou uma grande porcaria, um trabalho amador?
Os últimos quinze dias foram uma verdadeira montanha-russa emocional.
O mundo dos negócios era cruel; ou você se atualizava no que havia de mais
novo na sua área, ou ficava para trás. A LTM se encontrava em uma situação tão
crítica que, a princípio, acreditei não estar apta para tal desafio. Bateu o
desespero e bateu forte.
Permiti-me quinze minutos de autodepreciação. Coloquei-me para baixo,
duvidei da minha capacidade e chorei. E então levantei, lavei o rosto, prendi o
cabelo e fui para a biblioteca pública. Peguei três livros — número limite —
específicos sobre minha área, lançados no ano passado, e voltei para o hotel.
Enfiei a cara nos livros, literalmente. Tinha três anos para colocar em dia. O
trabalho, que era de um turno, se transformou em três. Só parava de estudar
quando Romeo queria atenção, entediado por permanecer muito tempo em um
pequeno quarto de hotel.
Visitei alguns imóveis durante a semana. Porém, como já desconfiava,
não consegui nada. Exigiam extrato bancário como comprovante de renda, coisa
que a minha identidade falsa não possuía. O mesmo para a carta de
recomendação. Até podia pedir para Luke, mas somente se ele decidisse me
contratar.
Desanimada, desabafei com Amanda e Lucy sobre a dificuldade de
encontrar um lugar — nós havíamos criado o hábito de almoçar sempre juntas e
me peguei apreciando verdadeiramente a companhia das duas, a conversa fluía
fácil. Amanda comentou que a tia-avó do marido, dona Gloria, dividiu a casa
enorme em quatro pequenos apartamentos e os colocou para locação. Marquei
uma visita para o próximo sábado.
Mordi o lábio com força, as mãos suando e a perna balançando para cima
e para baixo. Luke continuava calado, deixando meus nervos em frangalhos.
Fala alguma coisa, pelo amor de Deus!
Ele finalmente levantou os olhos castanhos para mim e eu prendi a
respiração.
— Gostei bastante do que vi e ouvi. Você não só apresentou uma
estratégia principal, mas vias alternativas. Isso demonstra que é uma pessoa
prevenida e pensa em planos B e C.
— Obrigada — agradeci. — Mas isso é o que todo contador deve fazer.
— De fato — concordou Luke. — É o que todo contador competente faz.
Não soube o que responder, o coração martelando no peito, esperançosa e
ao mesmo tempo com medo de me decepcionar com uma negativa.
— Se for do seu interesse, a vaga é sua.
Um grito de alívio quase escapou da minha garganta. Senti lágrimas
brotarem nos meus olhos, feliz por ter meu trabalho reconhecido, por ter a
certeza de que ainda era capaz, mesmo que Bryan tivesse tentado e conseguido
me colocar para baixo tantas vezes. Eu tinha o meu valor, só havia me esquecido
daquilo por um tempo. Um tempo longo demais.
— Estou, sim, bastante interessada. — Controlei a voz para não soar
desesperada. — Agradeço a oportunidade e vou dar o meu melhor pela sua
empresa.
Luke sorriu e seu rosto inteiro suavizou.
— Seja bem-vinda ao time. Passe para Amanda os dados da sua conta
onde o salário será depositado. Até contratarmos um novo funcionário para o
RH, ela está responsável por isso também.
Toda a minha animação foi embora instantaneamente.
— Eu não tenho uma conta.
A confissão o fez entrar em alerta. Percebi o momento que seus olhos se
estreitaram, formando um vinco na testa, desconfiadíssimo.
— Não tem?
— Não… — Eu tremia. — Como te disse, estou há três anos fora do
mercado.
— Até você criar uma nova, seus pagamentos serão feitos em cheque.
Ok?
Eu ia desmaiar. Com certeza a minha pressão estava baixa. Respirei
fundo várias vezes.
— Luke, eu gostaria de receber em espécie e não através de uma conta
bancária ou cheques, se não for um grande problema para você.
— Esse não é um pedido estranho? — O tom calmo da voz dele não
combinava com a sua expressão ameaçadora. Engoli em seco. — Você está
fugindo de alguma coisa ou de alguém, Eveline?
O destaque que deu ao meu nome não passou despercebido. Eu não era
mais Eve, e sim Eveline. Minha cabeça latejou, o medo me paralisando. Onde eu
estava com a cabeça quando achei que poderia enganá-lo? Ele era um homem
experiente, dono de uma empresa de serviço de segurança, pelo amor de Deus!
Aquele tipo de cara, no mínimo, tinha faro para mentirosos. E eu, como Miranda
cansou de dizer, era uma péssima mentirosa.
Luke voltaria atrás sobre proposta de emprego, tinha certeza. Então, em
um ímpeto de coragem que não soube de onde veio, ao invés de tentar mentir
vergonhosamente, decidi ir para o ataque:
— Eu não tenho nenhum problema com a justiça, se é isso que você está
insinuando. Pode me investigar, se quiser. Estou limpa!
Por favor, deixa essa passar! Se Bryan houvesse ido à polícia, limpa era
a última coisa que eu estaria.
— Você acha que a sua contratação seria cogitada se não estivesse? Já fiz
uma pesquisa sobre você e não apareceu nada, nem uma multa de trânsito. O que
torna seu pedido ainda mais inusitado e curioso. Se não deve nada a justiça e não
está fugindo de alguma coisa, por que não quer deixar rastros? — A forma como
Luke me encarava fazia eu me sentir como um inseto.
A vontade foi de sair daquela sala correndo sem olhar para trás. Nunca
fui uma pessoa de confrontos, não fazia parte da minha personalidade. Mas ali,
diante do acontecido, percebi que só existia um caminho possível: enfrentar
aquele homem que me deixava nervosa, mas não causava medo. Se eu falhasse
agora, não sabia se teria forças para uma nova tentativa.
Gostei de Naperville. Gostei de Lucy e Amanda. Gostei da empresa. Não
queria mudar para outra cidade.
— Os motivos são pessoais. Posso garantir que não estou envolvida em
nenhuma atividade ilegal. — Ele não precisava ficar sabendo sobre os
documentos falsos, não é mesmo? — Ou fugindo da polícia. Se for uma cláusula
inegociável para você, posso seguir em frente e procurar uma vaga em outro
lugar.
Vi-me completamente perplexa com palavras que saíram da minha boca.
Nunca blefei tanto na vida. Tudo bem que as frases escaparam sem nenhum
controle, mas era uma jogada arriscada. Se Luke não caísse nela, teria que
recomeçar uma vez mais, em um lugar diferente. Cruzei os dedos embaixo da
mesa.
Ele me encarou por minutos intermináveis, parecendo tentar ler a minha
alma. Olhe para o outro lado!, senti vontade de gritar. Não aguentaria a pressão
por muito tempo. Já sentia vontade de chorar feito criança.
— Escute bem, Eveline. Se eu descobrir que está me enganando, ou que,
de alguma maneira, está colocando a minha empresa em risco, você vai
responder por isso. E as consequências não serão agradáveis, posso garantir.


Algo estava errado.
Algo estava muito errado com aquela mulher. Os meus instintos gritaram
"problema" desde o instante em que pus os olhos nela. Eveline não era uma
mentirosa, pelo contrário, mentia mal para caralho. Bastou um pouco de pressão
para que ficasse nervosa, abalada, trêmula. Mas escondia alguma coisa.
A breve pesquisa que mandei fazer sobre ela foi reveladora. Não
conhecia os pais, abandonada recém-nascida na porta de um orfanato. Viveu por
anos em uma instituição católica e depois passou por alguns lares adotivos, até
entrar numa universidade, através de bolsa integral.
Nada anormal. Nada suspeito.
Não consegui, entretanto, informações sobre o pai do filho dela. Quem
quer que ele fosse, os dois não se casaram civilmente. Mas alguém estava
sustentando-a durante os três anos que não trabalhou. E, apesar da óbvia falta de
experiência profissional, fiquei positivamente surpreso com a visão de Eveline
sobre a situação financeira da empresa e gostei das propostas apresentadas.
Então, contanto que nada resvalasse na LTM, ela podia manter seus segredos.
Não era da minha conta.
Matt e Ty entraram na sala de reuniões, na qual eu já estava há alguns
minutos esperando por eles. Precisávamos discutir e decidir sobre um trabalho
importante. Importante a ponto de ajudar a LTM a se reerguer ou fechá-la de vez.
— Não entendo por que esse assunto ainda está em discussão — disse
Ty, antes de qualquer cumprimento. — É uma oportunidade que não estamos na
posição de recusar.
— Não tô dizendo para não pegar, só quero que vocês vejam a situação
por todos os ângulos. Se aceitarmos e for um sucesso, alça a LTM a outro
patamar. Se alguma coisa der errado, qualquer coisa, significa a falência. A
empresa de segurança que deixar algo acontecer com a filha do prefeito perde
toda credibilidade. Naperville está longe de ser uma metrópole e as notícias por
aqui se espalham como pólvora — defendi meu ponto de vista.
— A situação já está crítica, Luke — Ty contra-argumentou. — O valor
que a justiça conseguiu levantar através dos bens de Anthony chega ser ofensivo.
Não chega perto de pagar o que aquele ladrão roubou de tanta gente. Não
sabemos onde está o resto do dinheiro e nunca saberemos. Essa é a porra da
verdade. Se recusarmos o trabalho, estaremos assinando atestado de
incompetência. Desde quando a possibilidade de dar errado é motivo para deixar
de fazer algo?
— Quase não te reconheço, cara. — Matt franziu a testa, ainda de pé, os
braços cruzados na frente do peito. — O prefeito podia contratar qualquer
segurança do país, mas está nos escolhendo. Qual é o problema? Do que você
tem medo? Que a gente não dê conta?
— Ele nos escolheu porque Arthur disse que confiava em nós. — Arthur
Dane era coronel do exército, irmão do prefeito e, além de um superior, amigo
nosso. — Reduzimos nosso pessoal pela metade. Éramos dez, agora somos
cinco. E George exigiu que nós três déssemos prioridade à sua filha. Os caras são
competentes, confio neles, mas a última vez que deixamos a LTM na mão de
outras pessoas, fomos roubados. Hoje vivemos na pele as consequências do
descuido. Vocês me conhecem e sabem que eu cresço no perigo, mas aqui não é
a porra do Iraque. Esses caras vão vir com tudo para cima no instante que a
informação vazar. E acreditem, vai vazar. Não temo por mim, e sim pela minha
família.
O mais absoluto silêncio se fez após as minhas palavras. Eles sabiam que
havia razões para aquele tipo de preocupação. A filha do prefeito estava
recebendo sérias ameaças de um grupo criminoso com o qual seu pai manteve
negócios ilícitos em um passado não muito distante. A garota de quinze anos era
inocente e não fazia ideia em que tipo de atividade ele andava metido. George
Thompson foi burro o suficiente para ter a campanha financiada por um
traficante e achar que poderia esquecê-lo depois de eleito. Burro e corrupto.
— Lucy é favorável à aceitação do trabalho. Ela disse isso na reunião e
parecia saber o que estava falando — relembrou Ty.
— Lucy não faz ideia com que tipo de pessoa estamos lidando. A opinião
dela foi profissional, como administradora de uma empresa que passa por uma
forte crise — falei.
— Sua mãe é uma mulher sensata, saberá se cuidar — Ty continuou. —
Laura está segura na Alemanha. E Lucy, bem… — Olhou para Matt, abrindo um
sorriso. — Nosso amigo aqui pode ficar de olho nela, não?
Percebi, pela contração do queixo dele, que Matt queria meter um soco
em Tyler. Desejei fazer o mesmo.
— Vá se foder. Até parece que alguém consegue controlar a rebeldia
daquela garota — Matt respondeu, puto.
— E você bem que apreciou toda a rebeldia dela. — Ty continuou a
provocar.
— Seria excelente se pudéssemos voltar a falar sério. Não vejo motivos
para brincadeiras, porra! — Cortei a discussão, impaciente, irritado e
preocupado. — Essa é a decisão final de vocês?
Tyler assentiu. Matt demorou um pouco mais, mas também afirmou.
Respirei fundo e levantei da cadeira, tenso.
— Sou voto vencido. Vou conversar com dona Rebecca e Lucy. Talvez
consiga fazer aquela menina me ouvir. Dizem que há uma primeira vez pra tudo.
A gargalhada de Matt pôde ser ouvida por todo o andar:
— Boa sorte!

Lucy estava saindo da sua sala no momento que desci, pronto para ir
embora. Olhei para o relógio. Quase nove da noite. Ela sorriu ao me ver,
demonstrando cansaço. Só não mais exausta do que eu.
— O que está fazendo aqui tão tarde? — questionei.
— Tentando consertar a bagunça que vocês fizeram.
— Me desculpe se não sou um administrador fodão formado na melhor
universidade do país. — Aproximei-me, depositando um beijo no cabelo dela.
— Fazer o quê? Alguém tinha que nascer inteligente nessa família. Aliás,
mereço um aumento.
Eu ri e levantei os braços acima da cabeça, alongando os músculos
doloridos.
— Esse é o seu primeiro mês.
— E já precisei fazer várias horas extras. Se isso não é razão para
merecer um aumento, não sei o que é. — Continuou a brincar, bem-humorada.
Depois de rir novamente, ofereci:
— Quer uma carona?
— Vou aceitar, ainda estou sem carro.
— Qual é a sensação? — perguntei, a caminho do meu antigo endereço.
— Morar com a mãe depois de tantos anos de independência.
— É como voltar à adolescência. Dona Rebecca se preocupa até com a
variedade de verduras que eu como.
Aquilo me fez gargalhar.
— Não estou surpreso.
— Para completar, agora inventou de me arrumar namorado. Você
precisa ver os candidatos. O último, filho de uma amiga da igreja, parecia nunca
ter visto uma mulher na vida, quase babou no meu decote. Literalmente. — Ela
continuou o relato, sem saber se achava divertido ou irritante.
— Não pode ter sido tão ruim assim. Você deveria ter dado uma chance
ao cara — provoquei.
— Isso, Lucas! Tira uma com a minha cara mesmo. Aposto que ela
ficaria profundamente encantada em descobrir que o filho mais velho finalmente
decidiu se comprometer com uma mulher e lhe dar vários netinhos.
O carro deu uma leve engasgada.
— Você não faria isso com seu irmão favorito.
— Experimenta. — Sorriu de forma maligna. — Mas falando sério
agora, eu senti muita saudade de casa. Os meus colegas ficavam superfelizes e
animados por estarem longe da família. Eu não nego que aproveitei todas as
fases, curti muito, mas o pensamento ficou aqui, imaginando minha mãe
sozinha.
Nem todas as famílias eram como a nossa. Nem todas as mães eram
como Rebecca Buttler. Ela era a mulher mais forte, bondosa e admirável que eu
conhecia.
Perdeu os dois maridos em serviço. Michael — meu pai — foi
assassinado em uma emboscada realizada por uma quadrilha que estava
investigando. Ele era detetive de polícia. Thomas — pai das minhas irmãs —
nunca voltou para casa do último turno no exército. O pelotão foi bombardeado e
não houve sobreviventes.
Thomas foi o pai que conheci. Ele e minha mãe começaram um
relacionamento quando eu tinha oito anos, após um longo período de luto por
parte dela. Dois anos depois veio Laura. Outros dois depois, Lucy.
Nunca percebi a mínima diferença de tratamento entre nós três. Ele foi
um homem honrado, amoroso e completamente apaixonado pela esposa. E me
amou como um filho. Era militar e, cada vez que saía para um turno, eu via
minha mãe chorar no quarto, acreditando que estávamos dormindo. Eu nunca
estava. Também ficava apavorado com a possibilidade de ele morrer.
E aconteceu quando eu tinha dezesseis. Dona Rebecca ficou devastada e
se isolou por meses, trancafiada em um sofrimento que me destruía. Mas precisei
engolir o meu próprio luto porque a minha família precisava de mim. Era o que
Thomas esperava que eu fizesse.
Para o desespero da minha mãe, me alistei aos dezoito. Ela gritou,
chorou, me ameaçou e chantageou. No final, entendeu que foi a maneira que
encontrei de honrá-lo. Por mais que doesse colocá-la naquela posição
novamente, precisava provar para mim mesmo que conseguia, que era capaz.
Precisava fazer a diferença, como Thomas fez para mim. Precisava proteger meu
país, pelo qual ele deu a sua vida.
Uma coisa eu faria diferente dele, no entanto. Enquanto sentisse a
necessidade de servir, não teria relacionamentos sérios. Não me casaria. Não
haveria uma mulher esperando por mim em casa, dormindo e acordando a cada
dia sem saber se o marido estava vivo.
Eu era um homem de trinta e três anos, saudável. Gostava de sexo. Forte,
sem pudores, sem amarras, sem cobranças. Mas sempre tomei o cuidado de me
envolver com mulheres que buscavam o mesmo que eu.
— O que foi? De repente ficou todo sério e calado.
Balancei a cabeça.
— Nada, pensando em várias coisas. Você e Eveline parecem próximas.
— Sondei, mudando de assunto.
— Almoçamos juntas todos os dias. Ela é um amor de pessoa. — Diante
do meu silêncio, continuou: — Por quê? Você não costuma fazer perguntas por
fazer. O que tá rolando?
— Ela não está contando tudo.
— E quem conta? Todo mundo tem os seus segredos, isso não é nenhum
crime.
— Gostaria que me falasse se perceber alguma atitude suspeita e
estranha.
Lucy franziu o cenho, olhando-me de um jeito esquisito que me causou
desconforto imediato.
— A única coisa estranha aqui é sua atitude, Luke. Para mim, ela é
apenas uma mulher lutando para criar o filho sozinha em uma cidade nova, como
tantas outras.
— Nunca comentou nada sobre o pai do menino?
— Não. E nem toquei no assunto. Ainda não somos tão próximas para
esse tipo de pergunta.
Voltei a ficar calado, arrependido por ter comentado sobre as minhas
desconfianças.
— Relaxa, Luke. Depois do que o seu antigo contador fez, é normal
suspeitar de todo mundo.
— Pode ser. — Tentei encerrar a discussão, mas Lucy tinha outros
planos.
— E quer saber o que mais? Ela é a maior gata, inteligente, competente,
responsável e acho você está tentando desqualificá-la apenas porque quer dar
uns pegas nela.
O carro engasgou novamente, de maneira mais brusca.
— Essa afirmação não tem fundamento. Não costumo misturar negócios
e prazer. Você sabe disso.
Ela riu, jogando a cabeça para trás.
— Ah, meu irmão, você não sabe o que está perdendo…
CAPÍTULO 4
Lembranças


Reno, Nevada, 2014.

Despertei com o barulho das chaves. Sonolenta, percebi que havia
dormido no sofá, enquanto esperava por Bryan. Mais uma vez. A porta demorou
alguns segundos para ser aberta. O relógio marcava quase quatro da manhã.
Ele entrou tentando ser silencioso e falhou por motivos óbvios. Através
dos movimentos descoordenados de suas mãos e a falta de equilíbrio, ficou
nítido que esteve bebendo. Mais uma vez.
Avistou-me de imediato ao se virar e parou no meio do caminho, abrindo
um sorriso estranho:
— Que surpresa agradável encontrar a minha mulher me esperando! Com
medo que eu estivesse na farra, querida?
Mesmo àquela distância, pude sentir o bafo forte de álcool. Levantei,
chateada.
— Na verdade não, Bryan. Fiquei preocupada por ser tão tarde e você
não ter chegado ou dado notícias. Liguei no seu celular, mas caía direto na caixa
postal. Você poderia, ao menos, ter a consideração de me avisar quando não for
passar a noite em casa, assim eu não espero acordada.
— Ah, estava demorando… Vai começar com a chatice, Eveline? Eu e os
caras saímos para um happy hour. Uma cerveja levou a outra e perdemos a
noção do tempo.
— Eu não me importo que saia com os seus amigos, você sabe disso.
Mas ultimamente vocês fazem um happy hour por dia.
Ontem entrei na décima sétima semana — ou quarto mês — de gestação.
O primeiro trimestre foi um verdadeiro inferno, praticamente não conseguia
segurar nenhum alimento no estômago. Agora estava melhorando, mas eu havia
perdido peso e vivia cansada. Continuei frequentando a faculdade por pura força
de vontade.
Bryan ficou ao meu lado durante os momentos difíceis, prestando um
apoio essencial. No entanto, as coisas começaram a mudar há um mês, quando
ele passou a chegar cada vez mais tarde em casa, sempre fedendo a álcool. Não
conversávamos como antes e percebia nele uma impaciência muito grande.
Qualquer bobagem era motivo para discussão.
Talvez a realidade de uma gravidez difícil houvesse se sobrepujado à
alegria de ter um filho. Talvez os meus constantes mal-estares tenham enchido o
seu saco. Talvez existisse um arrependimento por ter me chamado para morar
com ele. Mas, ao mesmo tempo que me esforçava para compreendê-lo, entender
seus motivos, me sentia extremamente irritada com a possibilidade de Bryan se
chatear por situações que fugiam ao meu controle. Era horrível para mim
também. Muito mais do que para ele, a propósito.
— Você acha que manda em mim porque está morando na minha casa,
dormindo na minha cama? — O tom acusatório me chocou.
Após o sentimento de perplexidade, tive raiva. Eu não costumava me
alterar, era uma pessoa calma e fazia o possível para evitar brigas. Contudo, os
hormônios da gravidez bagunçaram completamente as minhas emoções e, de
repente, me senti humilhada e injustiçada.
Quem acordava todos dias vomitando até a alma era eu e ainda assim me
arrastava até a faculdade à base de remédios para conseguir o diploma. Mesmo
cansada e sonolenta durante a maior parte do tempo, cuidava da casa e cozinhava
todas as refeições para que ele encontrasse um lugar limpo e comida na mesa ao
chegar do trabalho. Não contribuía em dinheiro com as despesas porque ganhava
pouco e tudo era gasto com itens pessoais e o enxoval do bebê, mas com certeza
fazia a minha parte.
Bryan não precisava me jogar na cara que a casa era dele, como se eu
houvesse forçado a minha mudança. Então, explodi:
— Você não tem o direito de falar assim comigo! — gritei, segurando a
vontade de chorar. — A sugestão para que morássemos juntos foi sua! Nunca
tive a intenção de usar a gravidez para te encurralar e obrigar a fazer nada. Se
estou aqui, na sua casa, foi porque você pediu e me fez acreditar que queria isso!
— Você está se transformando em uma vadia ingrata!
O ruído seco do forte tapa que recebi no rosto ecoou através do
ensurdecedor silêncio que o procedeu.
Todo o meu corpo ficou congelado, sem reação. O coração disparou e eu
perdi o ar, enquanto meu cérebro processava o que havia acabado de acontecer.
Levei a mão ao local, que ardia como fogo, e não pude mais controlar o choro.
Olhei para o desconhecido diante de mim sem saber o que fazer.
Ele me bateu! Ele me bateu!, a mente urrava, ultrajada e incrédula.
Quem era aquele? Onde estava o meu namorado educado e carinhoso?
— Eveline… — Bryan tentou se aproximar e eu dei um passo para trás,
perturbada. — Não sei por que fiz isso. Deve ter sido a bebida, fiquei
descontrolado e agi sem pensar. — Passou as mãos pelos cabelos, parecendo tão
perdido quanto eu.
Àquele ponto, o meu pranto tinha evoluído para um choro desesperado.
Neguei com a cabeça, tentando me afastar dele a qualquer custo.
— Não chegue perto de mim — sussurrei, a voz trêmula, a boca amarga
pela bile.
— Não faça assim, meu amor. Por favor, me escute. Não vai acontecer
novamente, eu prometo. Me perdoe. — Continuou andando na minha direção,
causando um pânico até então desconhecido.
A última coisa que eu queria naquele momento era ter qualquer contato
físico com ele, mas, apesar da quantidade de álcool no organismo, Bryan
continuava a se mover com rapidez e o meu estado de atordoamento me deixou
mais lenta, de forma que me alcançou facilmente.
Enrijeci no momento que seus braços me rodearam sem chances de
recusa. Mantive os meus para baixo, paralisados. Minha bochecha ardia e
latejava forte, meu corpo tremia por inteiro.
Apesar da orfandade, apesar dos lares adotivos, apesar das pessoas de
merda que cruzaram a minha vida, eu nunca havia apanhado. Nunca tinha
tomado um tapa na cara.
A constatação da violência física me humilhou, destruiu o castelo de
areia que construí.
— Me perdoe. Me perdoe… — Bryan ecoou uma cantiga repetida no
meu ouvido. — Eu te amo. Por favor, me perdoe. Me perdoe…
Não conseguia raciocinar, tentar compreender, descobrir como deveria
agir dali em diante. Permaneci estática. Era como se, por nunca ter estado ou
cogitado a possibilidade de passar por uma situação minimamente semelhante,
meu sistema defensivo não soubesse como reagir.
Então, cometi o erro que me levaria ao fundo do poço naquele
relacionamento.
Acreditei nele.

Atualmente, Naperville

Limpei a lágrima solitária, sem entender o que havia desencadeado as


dolorosas lembranças. A nossa mente era traiçoeira e gostava de pregar peças,
vez ou outra. Em alguns momentos eu estava disposta a esquecer Bryan e deixar
o passado para trás, em outros, ficava emotiva ao extremo, chorando dentro do
ônibus a caminho do trabalho.
O pior sentimento, sem dúvidas, era o de vergonha. Vergonha da minha
crença na mudança dele, do meu silêncio, da fraqueza, da inércia. Desejava, com
todas as minhas forças, voltar àquela madrugada do primeiro tapa e sair de casa
sem olhar para trás, sem pensar nas consequências, sem medo. E o fato de não
existir uma máquina do tempo não impedia a profusão de e ses que rondavam
minha cabeça.
Apesar dos percalços, sempre nutri sonhos e tracei planos. Aonde foi
parar aquela garota que almejava uma vida melhor, uma família, um futuro
promissor? Em que momento me separei dela? Será que ainda habitava em mim,
profundamente adormecida, mas não morta? Eu seria capaz de sonhar como
antes? Ou apenas viveria um dia de cada vez, sempre olhando por cima do
ombro, esperando que Bryan me encontrasse?
Levantei depressa ao perceber que meu ponto era o próximo. Desci,
disposta a manter a negatividade fora do trabalho, pois queria dar o meu melhor
e trazer resultados rápidos, como havia prometido para Lucas. Aliás, o meu
chefe não era o meu maior fã e os cinco minutos de atraso não me deixaria em
uma situação melhor perante seus olhos. Não havíamos nos falado desde a
última tensa conversa, ocasião em que ele me ameaçou diretamente.
No instante que dei o primeiro passo em direção à LTM, meu corpo
entrou em alerta. Chame do que quiser, sexto sentido, intuição, pressentimento.
Mas um formigamento começou no topo da cabeça e foi descendo lentamente
por todo meu couro cabeludo. Arrepiei-me inteira, consertando a postura,
esforçando-me para continuar a respirar normalmente. Através da visão
periférica, notei que estava sendo seguida.
A primeira reação foi o pânico. Obriguei-me a respirar fundo uma, duas,
três, quatro vezes, pensando no que fazer a seguir, qual a melhor estratégia. Nos
filmes de ação que assistia na Netflix, quando uma pessoa se encontrava em uma
situação semelhante à minha, ela sempre se certificava de estar, de fato, sendo
seguida. Desviei um pouco o caminho e atravessei a rua. Todos os pelos do meu
corpo arrepiaram-se ao sentir o vulto me acompanhar.
Por que merda não tem uma viva alma nesta maldita rua?! São oito da
manhã e estamos no centro da cidade, pelo amor de Deus!
Arrisquei uma olhadela para trás e vi um homem todo trajado de preto, o
boné e óculos de sol escondiam, quase por completo, suas feições. Meus olhos
foram atraídos imediatamente para a sua cintura, onde ele mantinha uma mão
dentro da roupa, parecendo segurar algo.
O cara estava armado e ia atirar em mim! Era Bryan! Só podia ser! Como
me achou tão depressa?
O medo atingiu níveis estratosféricos. Apertei a bolsa contra o peito e
segui o instinto que pulsava em cada célula do meu corpo, comandando que eu
corresse o mais rápido possível. E foi o que fiz, rezando para chegar à LTM
antes de ser alcançada.
Inclinei o corpo para frente, pegando impulso para ir mais rápido.
Minhas pernas ardiam em brasas pelo esforço não habitual e eu me preparava
para gritar feito louca, disposta a lutar, ir às últimas consequências. Travei o
maxilar e continuei. Siga em frente! Siga em frente, Eveline!
Enxerguei a grossa porta verde musgo da empresa logo à frente.
Atravessei a rua sem olhar para os lados, em velocidade máxima, e me preparei
para a dor que viria quando meu corpo atingisse o material reforçado, pois não
daria tempo de parar antes da pancada. Torcia para que a zoada chamasse a
atenção de quem estivesse na sala de monitoramento e a pessoa viesse em meu
auxílio.
Prestes a berrar por socorro, a porta foi aberta e bati não no metal, mas
em alguém. O impacto me deixou zonza e sem fôlego, mas braços fortes me
impediram de ir ao chão. Tyler me empurrou para trás dele, fechando a porta em
um baque, protegendo-me com o próprio corpo.
— O que aconteceu? — Virou para me encarar, as mãos firmando meus
ombros.
— Alguém… estava… me per-perseguindo… — respondi com bastante
dificuldade, tentando respirar e chorando ao mesmo tempo. — E a-acho… que
tinha uma… uma arma.
Ele imediatamente entrou em alerta. Tirou o celular do bolso, levando-o
ao ouvido.
— Não saia daqui — ordenou e saiu correndo.
Minhas pernas cederam e eu escorreguei até o chão, as costas coladas à
parede.
E agora? O que faço? Como ele me encontrou?
A despeito do caos interno que enfrentava, percebi a movimentação no
lugar. Ouvi vozes masculinas e apressadas discutirem, em seguida Lucy e
Amanda chegaram correndo, ambas ostentando olhares de assombro e confusão.
— Meu Deus, Eve! O que aconteceu? — perguntou Lucy, agachando-se.
Não tive a chance de responder, porque Luke apareceu em seguida,
juntando-se a nós duas no chão. O olhar afiado percorreu todo o meu corpo, a
mão tocando o meu cotovelo. Quis me afastar dele, apavorada demais para
aceitar qualquer contato.
— Você se machucou? — questionou, a voz dura, a expressão
ameaçadora, sem permitir que eu impusesse a distância que desejava.
Neguei com a cabeça, trêmula. Nem se quisesse eu conseguiria falar.
Precisava buscar Romeo, ver o rosto do meu filho e saber que ele estava bem.
— Eu entendi direito? Alguém te perseguiu, Eve? — Lucy voltou a
perguntar, os olhos grandes me analisando.
A porta voltou a abrir e Ty entrou, mancando de forma considerável. A
expressão em seu rosto era de dar medo. Todos estavam assustados e detestei
colocá-los naquela situação.
— O filho da puta escapou. Entrou em um ônibus e não consegui
alcançá-lo. — A frustração era nítida em seu tom, enquanto apertava a perna
direita com força, massageando-a.
— Que porra está acontecendo aqui?! Alguém vai explicar? — gritou
Lucy.
— Amanda — Luke prosseguiu, ignorando-a. — Ligue para Matt e avise
que teremos uma reunião de urgência. Quanto antes ele puder chegar, melhor.
Antes que Luke se afastasse, falei:
— Meu filho está na creche. Quero buscá-lo. Por favor…
Ele ficou em silêncio durante poucos segundos, mas assentiu.
— Macey. — O mais alto dos dois funcionários se aproximou. — Leve
Eveline para buscar o menino. Alerta total — completou, sério.
— Entendido, chefe.
— Ei! Se você não me contar o que está acontecendo agora mesmo, vou
gritar até estourar seus tímpanos! Estou assustada pra caralho! — Lucy estava
histérica.
— Ainda não sei. Mas tenha certeza que vou descobrir. — Luke
respondeu, subindo os degraus da escada de dois em dois.


— Ele garantiu que somente pessoas da mais absoluta confiança do
prefeito sabem sobre a assinatura do contrato. Ficou ofendido com a nossa
desconfiança — Matt entrou na sala, desligando o celular.
— Que ele meta a sensibilidade no rabo! — falei, irritado. — É muita
coincidência que, poucos dias depois de pegarmos o trabalho, uma funcionária
nossa seja perseguida à luz do dia até a porta da nossa empresa. Eu avisei que os
caras viriam pra cima com tudo. — Massageei as têmporas, antecipando a dor de
cabeça que já dava sinais.
— Ainda não temos certeza de nada — Ty resmungou, sentado numa
poltrona afastada, fechado dentro de si mesmo, certamente remoendo não ter
conseguido alcançar o perseguidor.
Ele quase perdeu parte da perna na explosão e, às vezes, sentia fortes
dores. As frustrações por conta das limitações eram compreensíveis, mas, no
momento, eu estava cem por cento focado na merda que quase aconteceu hoje e
o que aquilo poderia significar para a minha família.
— Eu acredito em coincidências tanto quanto no Papai Noel — ironizei.

— Suponhamos que o assessor esteja certo e não exista X9 no lado deles.
Isso iria querer dizer que alguém daqui traiu a nossa confiança. — Matt manteve
a expressão séria enquanto externava o pensamento que perpassou por nós três.
Traição. Mais uma vez. A boca amargou com a hipótese.
Macey e Diego estavam conosco desde a abertura da LTM. Por que
vazariam a informação, colocando-nos em perigo antes da hora? Dinheiro,
talvez?
Lucy entrou sem bater, feito um furacão. Cabelos bagunçados, olhos
arregalados e bochechas vermelhas. No meio da sala, parou e descansou as mãos
na cintura, dividindo o olhar furioso entre Matt, Ty e eu.
— Quem vai ser o primeiro a abrir a boca e me contar o que está
acontecendo por aqui?
Girei na cadeira e levantei para ficar frente a frente com ela.
— Onde está Eveline? — perguntei.
— Lá embaixo, coitada, assustada pra cacete! Nós estamos, na realidade.
Eu não gosto que omitam informações importantes de mim, Luke. Então
desembucha.
Respirei fundo, sentindo as primeiras pontadas da dor de cabeça.
— Vou falar quando todos estiverem aqui.
Eveline e Amanda foram as últimas a entrar. A primeira segurava o filho
nos braços, aparentando estar em estado de choque. A criança mantinha a
bochecha encostada na clavícula dela, um dedo na boca, os olhos grandes
analisando tudo ao redor. Uma mão segurava uma mecha do cabelo de Eveline
distraidamente, como se fosse um hábito. Quando ele me encarou, percebi como
se parecia com a mãe. A semelhança era assombrosa.
Depois de todos se acomodarem, comecei a falar:
— Recentemente fechamos um trabalho com George Thompson, prefeito
de Naperville. Ele solicitou segurança para ele próprio e a filha, que vem
recebendo sérias ameaças há algum tempo. As pessoas em questão são
perigosas, mexem com todo tipo de tráfico.
— Desconfiamos que o ataque que Eveline quase sofreu hoje pode ter
ligação com o caso. A informação que a nossa empresa aceitou o trabalho vazou
e eles prometeram retaliação para quem atravessasse o caminho — completou
Matt.
Eveline levantou o rosto e nos encarou, parecendo surpresa e atordoada
pela revelação.
— Mas… Eu não entendo — balbuciou, a testa franzida.
— Até termos certeza, é essencial que todos tomem cuidado. — Voltei a
falar, alternando o olhar entre as três, buscando a confirmação que entendiam a
seriedade da situação. — Principalmente vocês.
Lucy voltou a andar de um lado para o outro, as mãos em punho, sem
poder disfarçar a preocupação.
— Com que tipo de gente vocês, idiotas, foram se meter? — Alisou o
tecido do vestido, depois ajeitou o cabelo. — Eu não sabia a gravidade das
consequências quando aconselhei que fechassem o contrato. Seria muito bacana
da parte de vocês terem me colocado a par.
Ela tinha razão. Se acontecesse alguma coisa com qualquer uma delas a
culpa seria nossa.
— Trocar acusações agora não vai levar a lugar nenhum. — Matt
aproximou-se dela. — Ao menos uma vez na sua vida, escute alguém. Há um
risco aqui, um risco sério. Não seja idiota.
Tática errada, meu amigo.
Os olhos de Lucy crisparam e ela inclinou o corpo para frente,
praticamente colando seu rosto ao dele.
— E você não fale assim comigo — rebateu entredentes. — Não me
chame de idiota ou me dê ordens, papai.
Matt recuou uns centímetros, abrindo um sorriso estranho, enquanto eu
soltava minha coleção de palavrões, esgotado. Eles nunca parariam de brigar, foi
ingenuidade da minha parte acreditar no contrário.
— Para a sua sorte, não sou seu pai. Caso contrário, colocaria essa bunda
arrebitada no meu colo e te daria uns tapas até enfiar um pouco de juízo na sua
cabeça.
— Isso foi… — Ela começou a gritar, vermelha de ódio, mas parou
abruptamente, respirou fundo e levantou as mãos, empurrando-o pelo peito. —
Quer saber? Hoje não vou perder o meu tempo discutindo com você. Eve, você e
Romeo vão pra casa comigo.
Eveline piscou, finalmente saindo do transe e encarando Lucy como se
ela houvesse sugerido um assalto a banco. Estranhei o comportamento apático
durante toda a conversa, mas o atribuí ao susto que levou hoje.
— Agradeço o convite, Lucy, mas me mudo na sexta. Já acertei com
dona Gloria.
Tive vontade de rir. Não era bem um convite.
— Então vocês ficam com a gente até lá. Serão apenas três dias e não
vou me tranquilizar sabendo que estarão em um quarto de hotel qualquer,
desprotegidos. — Desviou o olhar para mim. — Tenho certeza de que Luke
concorda comigo.
Ai de mim se não concordasse.
— A ideia é boa — opinei. — A casa possui o sistema de segurança mais
avançado do mercado. E eu também me sentiria melhor se você e seu filho
estivessem seguros. O que aconteceu hoje, aconteceu porque trabalha aqui e isso
nos torna responsáveis. Fique na minha mãe até se mudar.
Sem dar tempo para uma tréplica, Lucy bateu as mãos.
— Ótimo! Está decidido então. Vamos. Vou ligar para dona Rebecca e
avisar que estamos a caminho.

O percurso até o condomínio militar, onde ficava a casa de minha mãe,


foi tenso e silencioso. Fiz o itinerário mais longo, desviando em ruas alternativas
para me certificar que não estávamos sendo seguidos.
Ela nos aguardava do lado de fora, o semblante preocupado. Dona
Rebecca tendia a ser, quase sempre, superprotetora e um pouco exagerada.
— Graças a Deus! Que agonia! — sussurrou, puxando Lucy e eu para um
abraço sufocante. Depois de atestar nosso bem-estar, esqueceu da nossa
existência com rapidez, caminhando até uma Eveline visivelmente constrangida.
— Querida! — Sem esperar permissão, cercou-a em seus braços. — Lucy me
disse o susto que passou hoje. Que coisa horrível! Você está bem?
— Eu… Hã. — Pigarreou. — Foi realmente assustador, mas estou
melhor agora.
— Isso é ótimo. — Desviou o olhar para o menino, encantada. — E esse
rapazinho adorável, quem é?
— Romeo — respondeu Eveline, enquanto minha mãe acariciava o
cabelo dele, ganhando um sorriso tímido de volta. — Obrigada por nos deixar
ficar, espero que não seja incômodo. Sexta-feira vamos para a casa que aluguei.
— Não é incômodo algum. Vocês são bem-vindos durante o tempo que
for necessário. Vamos entrar, estou terminando o almoço.
— Mãe, não posso demorar — avisei. — Preciso voltar à LTM, os caras
estão me esperando.
— Pelo menos almoça, meu filho. Você emagreceu. — Analisou-me de
cima a baixo.
— Estou com o mesmo peso de sempre. — Sorri. — Não dá pra ficar,
mas levo uma marmita.
— Não discuta comigo. Carreguei você nove meses na minha barriga e
consigo ver quando perde peso ou não. Agora sente-se e espere que vou mandar
comida para os meninos também. Aposto que nenhum está se alimentando como
deveria.
Sabia reconhecer uma batalha perdida, então sentei sem questionar.
— Mãe, vou subir com Eve, mostrar a ela o quarto. — Lucy ainda sorria,
divertindo-se com o fato de Rebecca Buttler me reduzir a um garoto de cinco
anos.
— Está bem, querida. Já deixei tudo preparado, se precisar de alguma
coisa é só me avisar.
Sozinhos na sala, minha mãe aproximou-se alguns minutos depois,
segurando uma enorme sacola. Desconfiei que ali teria comida suficiente para
alimentar uma família por uma semana, mas não comentei nada.
— Bonita ela, não é? Eveline, quero dizer — sondou.
— Sim.
Como quem não quer nada, sentou ao meu lado.
— E está solteira?
Sutil como um tiro de bazuca.
— Acho que sim, mãe.
— Hum… Interessante. — Abrindo um sorriso que me causou um
estremecimento, me passou as sacolas. — Venha jantar amanhã.
— Não sei se será possível. Como eu disse, estamos tentando entender a
origem do que aconteceu hoje e…
— Sim, sim, eu sei… — Gesticulou as mãos, interrompendo minha
explicação. — Trabalho, trabalho e mais trabalho. Uma hora você vai precisar
comer, não vai? Coincidentemente, será amanhã, às oito horas, aqui em casa.
Respirei fundo, encurralado.
— Vou tentar.
Saí de lá tendo certeza que a mente maquiavélica de minha mãe já
planejava o meu casamento com Eveline. Eu precisava tomar cuidado para não
fazer ou falar nada que alimentasse aquela ideia sem propósito.
Porque, como já falei, não me envolvia com funcionárias.
Mesmo que a funcionária em questão fosse bastante atraente.
CAPÍTULO 5
Esgueirando-se


Após o almoço tardio, mesmo sabendo que seria falta de educação, pedi
licença e passei o restante do dia no quarto em busca de um tempo para
reorganizar as ideias. Minha cabeça estava uma bagunça e ainda tinha
dificuldades para acreditar no desenrolar dos últimos acontecimentos.
Abracei Romeo, adormecido ao meu lado, fresco e limpo do banho
recém-tomado, e olhei para o teto do quarto estranho. Era loucura estarmos
passando a noite na casa da mãe de Luke, a quem eu desconhecia até algumas
horas atrás. Rebecca foi bastante receptiva e simpática, fazendo-me sentir à
vontade e bem-vinda. Entretanto, era desconcertante ocupar um quarto dela.
Lucy decidiu tudo tão depressa que não tive tempo de pensar em motivos
plausíveis para uma recusa. E, apesar de estar tocada pela preocupação dela,
sabia que não era prudente ficar aqui. Não queria criar laços fortes com aquelas
pessoas, pois as chances de precisar ir embora a qualquer momento e sofrer pelo
afastamento abrupto eram enormes.
Passei a mão carinhosamente nos cabelos macios do meu filho enquanto
pensamentos sombrios me assolavam. Durante os minutos de pesadelo vividos
naquela manhã, não temi por mim, por minha própria vida, mas pelo futuro de
Romeo. Se houvesse acontecido alguma coisa comigo, o que seria dele?
Miranda o criaria com todo amor e carinho do mundo, sem dúvidas. O
meio que escolheu viver, no entanto, não era seguro ou honesto. Se um dia a
“sorte” de Dax chegasse ao fim, não cairia sozinho, mas levaria todos que
estivessem perto com ele, inclusive a minha melhor amiga. E imaginar Romeo
no meio de tanta sujeira fazia meu coração doer.
A outra opção era Bryan e eu não sabia o que me deixava mais
desesperada. O que um homem violento, que bebia vodca como água e achava
prazeroso espancar a mulher teria de bom para ensinar ao menino? Pedi a Deus
que essa escolha nunca precisasse ser feita. Queria viver o suficiente para vê-lo
crescer em um lar cheio de amor, transformar-se em um bom homem, honesto,
estudioso, com tantos sonhos quanto eu tive um dia.
Quando o sono me venceu, já passava das três da manhã.
No dia seguinte, entrei na cozinha um tanto envergonhada. Lucy e
Rebecca já tomavam o desjejum, conversando animadamente.
— Bom dia — cumprimentei.
— Bom dia, querida. Bom dia, príncipe Romeo. — Rebecca mandou
vários beijos para ele, que sorriu, escondendo o rosto no meu pescoço.
— Bom dia, dorminhoca — Lucy provocou.
— Eu apaguei — concordei. — Não lembro a última vez que dormi por
tantas horas consecutivas. E se não fosse este mocinho aqui, ainda estaria lá,
desmaiada.
— Isso é sinal de que você precisava descansar. — Rebecca apontou uma
cadeira vazia. — Agora sentem-se e comam.
— Com licença. — Acomodei Romeo no meu colo e cortei um pedaço
de bolo para ele. — Achei que nem ia te encontrar aqui, Lucy. Estamos
superatrasadas e somente agora me ocorreu que não tenho uma roupa adequada
para trabalhar.
— Não vamos à LTM hoje — respondeu.
Parei o movimento de cortar outro pedaço de bolo na metade. Desviei os
olhos da mesa para os dela.
— Não?
— Luke acha melhor trabalharmos em casa — esclareceu.
— Mas… Eu tenho tanta coisa para colocar em dia. E nunca consigo me
concentrar o suficiente com Romeo por perto.
— Eu fico com ele — ofereceu Rebecca. — Será um prazer ter a
companhia dele, há muito tempo não tenho crianças na minha casa. Culpa dos
três filhos ingratos que tive, parecem empenhados em não me dar netos!
— Me jogando praga a essa hora, mãe? Só tenho vinte e três anos, pelo
amor de Deus! — Lucy fez o sinal da cruz.
— Imagina! — interrompi, rindo. — Já estamos incomodando demais.
— Pare com isso, menina! Já falei que não é nenhum incômodo. —
Finalizando o seu suco de laranja, levantou-se e veio na nossa direção. — Você
quer vir no colo da vovó, lindinho?
Romeo abriu um sorriso enorme para ela, mas não fez menção de sair de
onde estava. Aquele comportamento não me surpreendeu. Éramos nós dois
desde sempre, não estava acostumado a outras companhias.
Rebecca, no entanto, não se deu por vencida.
— Sabe o que eu tenho ali na cozinha? Vários doces. Balas, pirulitos e
alguns bombons. Você gosta de chocolate? — Inclinou-se até seus rostos estarem
no mesmo nível.
A informação atraiu a atenção imediata do meu filho formiguinha.
Romeo jogou o tronco para frente, mas parou bruscamente, voltando a me
encarar, como se passasse por um doloroso dilema: Mamãe ou os doces?
Chocada, observei os doces vencerem a batalha enquanto ele estendia os
braços para uma Rebecca sorridente e orgulhosa.
— Carregamos durante nove meses para sermos trocadas por doces na
primeira oportunidade — comentei, brincando.
— Diz à mamãe que contra chocolate ninguém tem chance. — Rebecca
beijou a bochecha dele, arrancando uma risada gostosa. — Vamos pegar um
bombom?
— Vamos! — o pequeno traidor respondeu, animado.
Quando ambos desapareceram na cozinha, falei:
— Eu sei que ontem foi assustador, mas não é um pouco extremo não
irmos trabalhar?
— Concordo, só que é do Luke que estamos falando. Você não o
conhece, mas o meu irmão se torna paranoico com questões de segurança.
Acredito que faz parte da personalidade dele. Nem adianta reclamar porque não
vai deixar nenhuma de nós sair daqui hoje. — Revirando os olhos, como se
achasse a atitude extremamente irritante, voltou a comer suas torradas.
Não foi a intencional, mas as palavras de Lucy me deixaram bastante
irritada, especialmente a parte do “não vai deixar”. Eu não precisava da
autorização de Lucas para fazer ou deixar de fazer absolutamente nada. Estava
farta de sempre ficar submetida a alguém. Primeiro às freiras, em seguida ao
estado e os pais adotivos de merda e finalmente à Bryan, que gostava de impor a
sua vontade com os punhos.
Mordi a boca para evitar externar meu descontentamento, principalmente
porque ela e Rebecca haviam me recebido de braços abertos, então eu jamais
faria qualquer desfeita às duas. Só precisava aguentar hoje e amanhã e teria,
finalmente, a minha própria casa. Mal podia esperar para vivenciar aquela
experiência.
Passei o dia trabalhando com o notebook emprestado de Lucy. Vez ou
outra parava o que estava fazendo para dar uma espiada em Romeo, que parecia
completamente à vontade com Rebecca. Peguei os dois assistindo desenhos
animados, rabiscando com giz de cera — que eu, honestamente, não fazia ideia
de onde surgiu —, e surrupiando doces na cozinha. Achei divertido vê-lo tão
confortável com alguém além de mim.
À noite, jantamos uma macarronada deliciosa, que me fez repetir o prato.
Rebecca, contudo, estava um pouco irritada com o filho. Enquanto falavam ao
telefone, no andar superior, pudemos ouvir a bronca que passava nele. Não deu
para escutar qual era o assunto e nem me interessava, mas definitivamente ouvi a
palavra “ingrato” algumas vezes. Depois de conversarmos durante um bom
tempo, a senhora pediu licença para ir deitar. Romeo também já havia capotado
no meu colo, mas Lucy e eu seguíamos falando sem parar.
Há quanto tempo não fazia algo do tipo? Simplesmente sentar e trocar
informações com alguém de forma tranquila, sem medo de falar ou fazer alguma
coisa que irritasse Bryan e despertasse o ciúme doentio. Como uma pessoa
normal. Momentos simples da vida que faziam toda a diferença.
Lucy me lembrava Miranda. Elas falavam o que passava na cabeça, sem
se preocuparem com retaliações ou se as opiniões desagradariam alguém. Acho
que justamente por conta daquilo era tão fácil manter um diálogo com ela,
parecia que nos conhecíamos há anos e não há um mês.
Lucy voltou a sentar depois de me entregar uma taça com vinho. Tomei
coragem para indagar:
— Posso te fazer uma pergunta? Se estiver me intrometendo demais, me
ponha em meu lugar.
Cruzou as pernas e descansou as costas no sofá.
— Manda.
— Por que você e Matthew discutem tanto? Sei lá, pode ser apenas
impressão, mas parece sempre haver uma tensão no ar quando estão juntos, os
dois sempre se bicando.
Ela respirou fundo, tomou um longo gole da bebida e me olhou.
— Porque ele é um idiota.
— Bastante esclarecedor. — Sorri, experimentando o vinho. Delicioso.
— Durante a minha adolescência, período que eu provavelmente fui
acometida por uma espécie de loucura, me apaixonei por ele. Fiz de tudo para
chamar atenção do sujeito, mas Matt sempre me afastava usando a desculpa da
nossa diferença de idade, de ser o melhor amigo do meu irmão, blá-blá-blá. —
Interrompeu a narrativa por breves segundos, girando o líquido na taça de cristal,
imersa nas próprias lembranças. — Na madrugada do meu aniversário de dezoito
anos, ele cedeu. Transamos e foi uma noite maravilhosa. Ele é um imbecil, mas
fode como um maldito profissional. Tive três orgasmos na minha primeira vez.
Sabe como isso é raro?
Sei perfeitamente.
Quando perdi a virgindade, só senti dor e desconforto. Tive o primeiro
orgasmo somente vários dias depois.
Passando a língua pelo lábio inferior, ela continuou:
— E então o idiota estragou tudo. Acordei com ele fugindo como o diabo
foge da cruz, usando aquela velha desculpa que homem usa para dispensar uma
mulher: “isso nunca deveria ter acontecido”, coisa e tal.
— Que horrível! Sinto muito, Lucy.
— O que posso dizer? Não é o sonho de ninguém ver o cara pedindo
desculpas e arrependido por ter te fodido. Acho que as discussões foram uma
maneira que encontramos de conviver. Matt é o melhor amigo de Luke há quase
vinte anos, ele é família.
— Que situação complicada. — Ajeitei Romeo melhor no meu colo,
sorvendo mais um pouco do vinho. — Qual é a diferença de idade entre vocês?
— Dez anos.
— Ah, nem é tão absurdo assim — comentei.
— Hoje não, mas quando nos conhecemos eu tinha quatro e ele quase
quinze.
A história deles me deixava cada vez mais curiosa. Tinha lido em alguns
livros e assistido filmes que abordavam o tema. Todavia, era a primeira vez que
conhecia alguém que o vivenciou.
— Se você o conheceu ainda tão nova, presumo que conviveram bastante
tempo. O que te fez ficar apaixonada por alguém que conhecia desde criança?
— Essa é a parte engraçada…
Lucy foi interrompida pela chegada abrupta de Luke. A aparição
repentina me assustou, fazendo-me endireitar a postura. Olhei para ele, notando
como as roupas pretas o camuflavam na parte escura da sala.
— Tudo bem por aqui? — Com as mãos nos bolsos da calça, intercalou o
olhar entre a irmã e eu.
— Com a gente sim, mas dona Rebecca está puta contigo. Preparou sua
comida favorita, arrumou a mesa toda bonitinha e o senhor não apareceu. Foi
dormir te chamando de ingrato — respondeu Lucy, divertindo-se.
— Puta que pariu. — Ele passou as mãos pelo rosto. — Desde ontem
avisei que não tinha certeza se viria.
— Amanhã você amansa a fera.
— Que jeito. — Respirou fundo. — Sobrou alguma coisa? Estou
faminto.
— Para a sua sorte, guardei um pouco. Se não sou a melhor irmã do
mundo, não sei quem é. — Ela levantou e foi para a cozinha, deixando-nos a sós.
Um constrangedor silêncio se instalou entre nós. Abaixei o rosto,
concentrando-me em alisar o cabelo de Romeo. Luke permaneceu de pé, sem
demonstrar qualquer interesse em iniciar uma conversa. Mas eu precisava falar
com ele, então pigarrei para limpar a garganta e disse:
— Vou chegar um pouco atrasada amanhã, mas compenso no almoço. —
Como continuou quieto, emendei: — Preciso passar no hotel para pegar umas
roupas e deixar Romeo na creche.
— Com tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo, não me atentei a esse
detalhe. Vou pedir a Macey para buscar suas coisas.
— Não! — A negativa veemente o pôs em alerta.
Merda! Tentei disfarçar o nervosismo que a simples frase provocou em
mim. Se alguém fosse lá, descobriria que não existia nenhuma Eveline Perry
hospedada no local.
— Minhas coisas estão espalhadas pelo quarto. É constrangedor permitir
que um desconhecido mexa em itens pessoais. Gostaria de ir pessoalmente.
Lucy voltou com a marmita na mão, cortando nossa conversa.
— Que foi? — Ela notou o clima estranho, intercalando a atenção entre
nós dois.
Sem desviar o olhar duro e desconfiado do meu, ele falou:
— Qualquer coisa você me liga, Lucy.
— Ok.
Engoli em seco, nervosa e irritada. As íris castanho-esverdeadas me
avisavam para tomar cuidado, pois ele não confiava em mim. E senti raiva por,
de certo modo, Luke interferir nas minhas escolhas. As intenções eram boas,
mas eu precisava estar no controle da minha vida novamente. Não sairia de um
relacionamento de merda para suportar qualquer relação — ainda que não fosse
amorosa — de sujeição.
Lucas não possuía o direito de tomar decisões por mim.
Então, mesmo amedrontada, sustentei seu olhar em um mudo desafio.
Ele desistiu primeiro, afastando-se em seguida para sumir tão rapidamente
quanto havia aparecido. E, finalmente, respirei fundo, deixando os ombros
caírem.
Estava mais desconfiado e gostava menos de mim a cada dia.


— Eve, você está envolvida com alguém? Namorado, noivo talvez?
Aquela pergunta, feita de maneira tão despretensiosa por Lucy, quase me
fez cuspir o suco. Pigarreando, levei o guardanapo à boca para ganhar tempo, me
recompor.
Nas nossas conversas, quando o assunto tomava um rumo pessoal, eu
escutava e pouco falava. Dei uma informação aqui, outra ali, apenas porque seria
estranho não compartilhar nada com elas, mas tomava cuidado para não deixar
escapar algo comprometedor. Nunca mencionei Bryan ou homem algum e Lucy
e Amanda não tinham perguntado sobe meu passado diretamente. Não até agora.
— Por quê? — questionei, a voz saindo arrastada, rouca.
— Ah, não é nada. Só acho que meu irmão está a fim de você.
Amanda riu e eu fiquei chocada.
— Você está louca, Lucy! Ele nem mesmo gosta de mim.
— Por que você acha isso? — questionou Amanda, divertindo-se.
— Ele sempre tem uma carranca quando estou por perto. Não demonstra
paciência ao ouvir as minhas propostas para a empresa, parece o tempo inteiro
desconfiado que vou dar um golpe, como o antigo funcionário — enumerei sem,
no entanto, mencionar as outras razões que o meu chefe tinha para ter o pé atrás
comigo.
— Vou precisar defendê-lo — continuou Amanda. — Trabalho aqui
desde o início, quando os meninos tinham pouquíssimos clientes. Vi a batalha
dos três para fazer a LTM dar certo. Anthony Carter foi um mau-caráter sem
escrúpulos que se aproveitou da confiança que depositaram nele para roubá-los.
No lugar de Luke, eu também estaria com os dois pés atrás e os olhos
abertíssimos.
— Eu entendo, mas parece ser mais do que isso. E é horrível trabalhar
sob pressão, com a sensação de que serei demitida no primeiro deslize.
— Você não respondeu a minha pergunta, Eve. — Lucy voltou para a
conversa que iniciara. — Você tem ou não alguém?
Analisando as minhas opções, cheguei à conclusão de que, se fugisse do
assunto, levantaria suspeitas. Porém, tampouco poderia contar toda a verdade.
Por fim, decidi que uma meia-verdade era o ideal para sair bem dessa situação.
— Não tenho ninguém, Lucy. Não deu certo com o pai de Romeo. Somos
meu filho e eu.
Ela assentiu, parecendo acreditar na história. Graças a Deus! Pensando
que o assunto estava encerrado, voltei a atenção para meu almoço, apenas para
ser interrompida outra vez:
— E sobre essa história de mau-humor, falta de paciência, etc., é tudo
para esconder a atração. Meu irmão é liberal para a maioria das coisas, mas em
outras consegue ser bem careta. Ele é totalmente contra misturar vida pessoal e
profissional, mesmo que esteja desejando foder a nova funcionária.
— Lucy! — quase gritei, desnorteada com sua honestidade crua.
— O quê? Estou falando a verdade! Já o peguei secando a sua bunda
várias vezes. Tão concentrado que nem se deu conta que percebi.
Mas o que…? Como ela jogava essa informação assim?
— Só falei porque existe a possibilidade de você também estar
interessada nele. Você solteira, ele solteiro… Nada impede — finalizou, dando
de ombros. Amanda ria sem parar do meu constrangimento.
Um bolo se formou na garganta e, de repente, estava difícil respirar.
Senti-me extremamente incomodada, o fato despertou lembranças bastante
desagradáveis. A última vez que chamei esse tipo de atenção de um homem
acordei com um corpo forte me prendendo à cama enquanto tentava tirar as
minhas roupas antes que eu despertasse. Arrepiava-me inteira só de imaginar o
que teria acontecido se Miranda não houvesse chegado a tempo de pará-lo.
Ainda que gostasse da atenção masculina — e não gostava —, não me
sentia pronta para entrar em qualquer tipo de relacionamento. Talvez nunca
estivesse. Então, era melhor o senhor Lucas Hayes tirar os olhos do meu traseiro.


Após o expediente, enquanto Luke nos levava para a casa de dona
Rebecca, apenas porque Lucy e Matt não conseguiam ficar no mesmo ambiente
por um minuto sem se ofenderem, olhei as ruas de Naperville através da janela
do carro, ouvindo a constante conversa entre os irmãos. Eles debatiam sobre a
discussão que acontecera essa manhã.
Observar a interação entre os dois era interessante. Qualquer um percebia
que, a despeito das discordâncias, havia carinho e amor naquela relação. Meus
pensamentos voltaram à Miranda, fato que vinha acontecendo recorrentemente
nos últimos dias. Há algum tempo estávamos afastadas e aquela distância me
machucou demais. Sabia que grande parte da culpa era minha, por ter cedido às
vontades de Bryan e deixado a nossa amizade de lado, inventando desculpa atrás
de desculpa para não a ver.
Vez ou outra me perguntava se tinha irmãos biológicos. E, se tivesse, será
que a nossa relação seria parecida com a que eu presenciava no momento?
Conforme o carro se aproximava do condomínio, a ansiedade para ver
Romeo aumentou. Ele não havia ido à creche, ficando aos cuidados de Rebecca,
por insistência dela, e não me recordava de outra ocasião em que meu filho e eu
ficamos tanto tempo separados. Trabalhei os dois turnos hoje, porque fiquei sem
jeito de pedir para alguém interromper o trabalho e me dar uma carona; também
não queria esbanjar dinheiro pegando um táxi. Então, esperei até o final do dia e
aproveitei para adiantar o serviço.
— Ele me chamou de filha do satã! Filha do satã! — A voz alterada de
Lucy me trouxe de volta à realidade.
— Você também não facilita as coisas, Lucy — comentou Luke.
— Agora vai ficar do lado do idiota? — acusou ela, indignada.
— Não vou escolher um lado nessa história. Mas é insuportável
presenciar as discussões infantis e ofensas sem fundamento entre vocês.
Principalmente em um ambiente de trabalho, com a LTM na corda bamba,
precisando de cem por cento do nosso foco. Parecem duas crianças birrentas do
caralho.
— Também não é para tanto. Só temos opiniões diferentes sobre a
maioria dos assuntos — ela se defendeu.
— Se Matt disser que está frio, pode nevar, a temperatura cair para
abaixo de zero, que a senhorita colocará uma regata, saia curta, sandálias de
dedo e irá desfilar no gelo, somente para contrariar o homem. Confiei quando
disse “serei razoável, Luke, prometo. As pessoas nem irão perceber que seu
amigo e eu nos conhecemos. Sou profissional”.
Quase deixei escapar uma risada ao ouvir o tom agudo que ele empregou
na voz para tentar imitá-la. No entanto, a expressão furiosa de Lucy mostrava
que ela não compartilhava do meu divertimento. E Deus me livre de atrair a
irritação da mulher para mim.
— Está questionando o meu profissionalismo, Lucas?
Proferir o nome completo de alguém no meio de uma discussão era sinal
que as coisas estavam ficando seriamente feias. Mesmo com o carro em
movimento, cogitei a possibilidade de abrir a porta e, sorrateiramente, me atirar
para fora, fugindo da situação embaraçosa. Àquela velocidade, o máximo que
me aconteceria seriam uns arranhões feios pelo corpo, talvez uma torção nos pés
durante a aterrissagem, mas valeria a pena. Os dois pareciam ter esquecido da
minha presença no veículo.
— É por admirar tanto a profissional que você é que estou chamando a
sua atenção. Já passou da hora de vocês dois deixarem essa tensão toda ir
embora.
— Talvez no dia que der uma joelhada nas bolas do idiota eu consiga
deixar a tensão para lá. — O automóvel mal tinha parado quando ela abriu a
porta e saiu. — Agradeço os elogios, mas vá se ferrar por tentar defender o
energúmeno! — A porta foi batida com tanta violência que senti meu corpo
estremecer pelo barulho.
O súbito silêncio que procedeu as vozes alteradas foi absolutamente
constrangedor. Luke respirou fundo e bateu a mão no volante com força,
praguejando. Será que eu conseguiria sair sem ser vista? Sabia que devia ter me
jogado do carro enquanto era tempo!
— Peço desculpas por você ter presenciado essa cena, Eveline. — Ele
olhou para mim através do espelho retrovisor.
— Hã… — Pigarreei. — Sem problemas. Essas coisas acontecem.
— Lucy normalmente é uma mulher sensata, exceto quando o assunto é
Matt.
Não sabia o que responder, então permaneci calada. Estava sem graça por
ter testemunhado um momento íntimo deles, mas não havia nada que pudesse
fazer para evitar.
Após um novo período de silêncio, aproveitei para agradecer e sumir
dali.
— Obrigada pela carona — falei, alcançando a maçaneta.
Luke também saiu do carro e foi até a parte traseira, tirando a minha
mala preta de rodinhas. Sem falar nada, subiu os degraus da casa da mãe
carregando-a como se não pesasse nada. Depois de abrir a porta com a própria
chave, depositou-a no chão.
Com um aceno rápido de cabeça, despediu-se. Senti a estranha sensação
de estar sendo observada e, antes de fechar a porta, virei o rosto para a rua e o
flagrei olhando diretamente a minha bunda.
O safado!
CAPÍTULO 6
Quebrando o Gelo

Enquanto ajudava Rebecca a finalizar o almoço de domingo, minha


mente estava a quilômetros de distância dali, mais especificamente na minha
infância, quando ainda vivia no orfanato. Nós costumávamos brincar de criar a
nossa própria família. Decidíamos se teríamos irmãos, em que cidade
moraríamos, qual seria o nosso sobrenome e todas aquelas coisas que a maioria
das crianças possuía. Se fechasse os olhos e deixasse a imaginação correr solta,
esse momento se enquadrava perfeitamente nos meus sonhos infantis. Uma mãe,
uma irmã, conversas e risadas em uma cozinha repleta de afeto e felicidade, meu
filho brincando na sala de estar a poucos metros, com os carrinhos que a “vovó”
havia comprado para ele. Uma realidade que mudaria a vida de milhares de
crianças órfãs ou abandonadas pelos pais.
Poucas meninas tiveram a sorte de ganhar uma família, pois éramos
“velhas demais” para atrair o interesse dos casais. Noventa e nove por cento
buscava por bebês, de preferência recém-nascidos com características físicas
semelhantes às deles. De qualquer jeito, torcia para que elas fossem felizes,
assim como pedia a Deus para aquelas que ficaram a cargo do sistema estatal
como eu houvessem vencido tantos obstáculos, descaso e violência.
Rebecca preparava uma quantidade absurda de panquecas, eu finalizava
o risoto de camarão e Lucy batia a massa do biscoito que, segundo ela, era um
pedaço do paraíso na Terra. Acontecia, também, de ser a única coisa que sabia
fazer na cozinha, segundo sua mãe. Elas não paravam de conversar um segundo
sequer e sempre davam um jeito de me incluir nos assuntos. O dia que começara
mal — com um telefonema de dona Gloria informando que, por conta de um
vazamento no banheiro, só poderia me mudar em uma semana — ganhava
melhores contornos.
— Falei com Laura hoje — comentou Rebecca.
— Como ela está? Não conversamos há um tempão, aquela vadia está
muito ocupada para perder tempo com a irmã.
— Seu linguajar sofrível nem merece comentários. Enfim, não
demoramos, pois lá era meia noite e ela precisava acordar cedo para assistir uma
palestra de um psicólogo famoso cujo nome não me recordo. E estou
desconfiada que arranjou um namorado, já que começou a gaguejar e deu logo
um jeito de desligar quando toquei no assunto.
Lucy gargalhou e Rebecca também riu.
— Laura sempre foi uma péssima mentirosa, mãe. A senhora descobria
que estávamos aprontando somente ao olhar para ela. A garota não conseguia
mentir com naturalidade nem se sua vida dependesse disso.
Simpatizei imediatamente com Laura. Eu chegava a suar frio quando
precisava contar uma inverdade, era como se estivesse escrito “mentirosa” no
meio da minha testa.
— Ela vem para o Natal? — Lucy perguntou.
— Prometeu que sim. Fiz chantagem emocional, dizendo que esse pode
ser o meu último e que ela ficaria sentindo-se terrivelmente culpada se não o
passasse comigo — esclareceu Rebecca, sem demonstrar o menor resquício de
remorso.
Dessa vez, quando Lucy jogou a cabeça para trás e riu, juntei-me a ela.
Pobre Laura.
— Uma mãe, vez ou outra, precisa usar as armas que possui para
manipular os filhos, senão somos esquecidas, relegadas a ligações anuais de
aniversários e feriados, no máximo.
Revirando os olhos, Lucy ironizou:
— Não exagera, dona Rebecca. Estamos longe de te abandonar.
O barulho de um motor se aproximando sobrepôs-se à nossa conversa.
Limpando as mãos no avental, Rebecca caminhou para a sala, especulando:
— Luke deve ter chegado mais cedo.
— É bem típico dele aparecer antes da hora e ficar enchendo o saco,
perguntando quando a comida vai ficar pronta. Se eu tiver que ouvir uma
gracinha hoje, chuto a bunda do infeliz.
Lucy ainda estava brava com o irmão pela discussão no carro. Apesar de
conhecê-la há pouco tempo, seu talento para guardar rancor era notório.
— Teremos três belas companhias para o almoço, meninas. — Rebecca
voltou a aparecer ao lado de Lucas, Matthew e Tyler. O rosto da mulher estava
corado de alegria.
— É como dizem, os idiotas andam em bando. — Mantendo a vasilha
apoiada entre a curva do braço e a cintura, Lucy entrou na sala. — Você, por
enquanto, está fora, Ty.
— Sinto-me sinceramente honrado por isso — ele respondeu em um tom
que deixava clara sua diversão.
Luke permaneceu sério, as mãos nos bolsos da calça jeans escura,
enquanto Matt abriu um sorriso irônico. De repente, comecei a acreditar que
aquele almoço não era uma boa ideia.
— Comporte-se, Lucy! — repreendeu Rebecca.
— Tudo bem, Rebecca — Matt interrompeu. Em seguida, voltou a
encarar Lucy. — Não precisa ficar irritada com a minha presença, doce Lucy.
Estou aqui porque seria um sacrilégio recusar a comida da sua mãe. Uma pena
que não posso dizer o mesmo da sua. — Ao final da frase, seu sorriso tinha
triplicado de tamanho.
Oh-oh!
— Cínico! Meta o “doce Lucy” no meio do…
— Sem palavrões durante o almoço, mocinha! — Antes relaxada e
satisfeita, agora Rebecca parecia tensa.
Por cima do balcão que separava a sala de estar e jantar da cozinha,
peguei os pratos depositados na tampa de madeira e, de forma propositalmente
barulhenta, passei a organizá-los na mesa. Talvez o ruído chamasse atenção para
o verdadeiro propósito que nos levou até ali: compartilhar uma refeição
tranquila.
— Em uma coisa você tem razão, Matt: não tenho habilidades culinárias.
— Alertada pelo tom de voz excessivamente melodioso, endireitei a coluna e
olhei Lucy caminhar até o loiro. — Mas o meu biscoito é elogiado por todas as
pessoas que o experimentam. Talvez você queira fazer a gentileza de provar.
Abandonando a colher que usava para mexer a massa, Lucy enfiou a mão
no recipiente, pegou uma generosa quantidade e atirou o creme amarelado no
meio do rosto dele.
Houve um momento de completo e assombroso silêncio no recinto.
Prendi a respiração, sem acreditar no que meus olhos viam.
— Lucy! — murmurou Rebecca, horrorizada.
Matt tirou a massa que cobria os olhos e levou um dedo à boca, provando
a mistura. Daquela vez, o sorriso dele foi diabólico.
— Está uma delícia, querida. — Dando dois passos para frente,
continuou: — Não sabia que você fazia tão gostoso. — O duplo sentido nas suas
palavras foi tão gritante que me surpreendi com a coragem em falar aquilo na
presença de Rebecca. — Comprove a veracidade da minha afirmação você
mesma.
Em um movimento rápido e ágil, a vasilha saiu das mãos de Lucy para as
dele, que as encheu de massa e esfregou do queixo até o cabelo dela.
— Oh, Deus! — gemi, levando uma mão à boca.
Lucy soltou um grito estridente, pulando para trás. Tyler gargalhava,
Luke os observava como se tivessem ficado loucos e Rebecca, coitada, parecia
completamente sem reação e perdida.
— Imbecil! Não acredito que você fez isso! Eu acabei de lavar o cabelo!
— Falhando em livrar os fios castanhos da mistura grudenta, Lucy empertigou-
se, roubou o recipiente de volta e o virou diretamente na cabeça de Matt.
— Puta que pariu! — exclamou Luke, passando os dedos pelos cabelos
curtos.
No instante em que Matthew livrou-se do utensílio, a massa escorreu por
seu pescoço, atingindo a blusa, uma parte da calça e o carpete de Rebecca.
Direcionando a Lucy um olhar assassino, que prometia vingança, avançou na
direção dela, fechando os braços ao redor de sua cintura.
— Solte-me, brutamontes!
— Ah, de jeito nenhum! Você vai ficar tão melada quanto eu. —
Agachando-se alguns centímetros, esfregou a cabeça nela, em todo pedaço de
pele e roupa que alcançava, cumprindo a promessa de sujá-la. Lucy gritava,
tentando se soltar.
Aproveitando-se de um momento de distração, conseguiu escapar do
aperto firme e correu de volta à cozinha, sendo seguida por seu oponente. Lucy
pegou um punhado de farinha de trigo e empunhou na direção dele, em uma
clara ameaça.
— Fique aí, paradinho, ou jogo isso em você.
— Tente.
— Não duvide de mim, Matthew Baker! Vai ser um inferno para tirar a
massa e a farinha do seu cabelo.
— Desde quando o meu cabelo é uma preocupação? Não me confunda
com você. — Ao dar o primeiro passo para ela, Lucy cumpriu o prometido e
atirou o pó branco em seu rosto.
Empregou tamanha força no arremesso, que o encontro entre a farinha e
a pele dele produziu um seco barulho. Através da fumaça branca, Matt cuspiu,
tentando expulsar o que havia entrado na boca e, novamente, limpou os olhos
com os dedos.
— Vai se arrepender tanto por isso.
— Pare, Matt! — Lucy estendeu a mão aberta. — Já estamos quites!
— E, se não se importar em me esclarecer, por que acha isso? — Outra
vez usando sua impressionante agilidade, ele agarrou o saco de farinha, que foi
parar exatamente na cabeça de Lucy.
Todo o conteúdo.
A partir de então, as coisas saíram do controle de forma irremediável. Os
dois se embolaram em uma confusão de braços, pernas, gritos e xingamentos. Eu
tinha a sensação de estar sonhando, porque nada daquilo parecia real. Dois
adultos comportando-se feito crianças travessas.
Além deles, a única pessoa que demonstrava a mínima reação era Tyler, o
corpo dobrado, as mãos apoiadas nos joelhos conforme sofria uma crise de riso
atrás da outra.
Aparentemente saindo do estado de torpor, Luke adiantou-se, chegando
por trás da irmã, separando-a do amigo.
— Se controlem, caralho! — esbravejou, caminhando para trás,
arrastando Lucy consigo. — Vocês estão na casa da minha mãe! Mostrem
respeito!
Lucy ofegava, os olhos cravados em Matt, e não aparentava dar a mínima
importância para o que Luke gritou. Quando fez menção de voltar à confusão e
foi impedida por ele, esticou o braço, pegou o molho que Rebecca havia
preparado para pôr nas panquecas e despejou nele. A blusa imaculadamente
branca ganhou uma gigante mancha vermelha.
Estupefato, Luke a largou bruscamente, olhando para o estrago na
própria camisa.
— Que porra é essa, Lucy?! Você ficou maluca?!
Antes que toda a ridícula situação ficasse pior, decidi intervir. Caminhei
devagar até a confusão em que a cozinha foi transformada; Matt de costas para
mim, Luke e Lucy de frente.
— Lucy… — comecei, apaziguadora. — Vamos subir para o seu quarto.
Você toma um banho e depois arrumamos essa bagunça.
Ela nem sequer me olhou, mais interessada em continuar trocando farpas
visuais com Matt. O rosto de Lucy adquiriu uma expressão furiosa e o que
restava do molho voou pelo ar. O alvo era outro, mas o reflexo de Matt foi, sem
nenhuma surpresa, rápido, de maneira que abaixou o corpo. Mal tive tempo de
vislumbrar o líquido que vinha diretamente para mim antes de recebê-lo no
pescoço.
Mas que merda…?
— Eve, me desculpe! — Parecendo verdadeiramente arrependida, os
olhos grandes vieram para mim. — Não era para te atingir.
Abaixei a cabeça lentamente, observando o molho entrar pelo decote da
minha blusa, descer para a barriga, umbigo, até alcançar o cós dos shorts. Era
isso que ganhávamos ao tentar ajudar. Frustrada, voltei a olhar para cima e a
imagem de Luke chamou a minha atenção. Ele estava… sorrindo. Na realidade,
parecia fazer esforço para não gargalhar.
O desgraçado!
— Você acha isso engraçado? — indaguei, irritada. — Tudo bem então.
Não saberia responder de onde surgiu o atrevimento necessário para as
minhas mãos se fecharem ao redor de um punhado de farinha de trigo,
sobrevivente àquela estranha guerra de comida, e atirar em sua direção. Fiquei
satisfeita por uma parte acertar Lucy.
O sorriso dele diminuiu drasticamente, mas não despareceu. Luke me
encarou de um jeito diferente, como se me visse pela primeira vez.
— Até você, Eveline?
— Você quem começou! Rindo às minhas custas! — defendi-me.
— Eu só dei risada, não joguei nenhum alimento em você, mulher!
Atenta, notei o momento preciso em que os olhos castanho-esverdeados
do homem se fixaram no meu risoto.
Ah, não, ele não teria essa coragem…
Tanto trabalho para preparar o prato! No primeiro impulso do seu corpo
para frente, decidi que não iria ficar para ver quão corajoso era. Dei um giro de
cento e oitenta graus e corri. Entretanto, não prestei a devida atenção ao chão
melado e escorregadio. Não havia nada que eu pudesse fazer para impedir a
queda. Só tive tempo de proteger o rosto com os braços.
A próxima coisa que senti foi um par de pés baterem nos meus
calcanhares e uma tonelada cair por cima de mim. Faltou-me o ar, achei que
morreria esmagada no chão da cozinha da casa de Rebecca após ter demonstrado
um comportamento altamente mal-educado para com a anfitriã tão generosa.
Arfei, absorvendo a dor nas costelas por receber um impacto tão forte.
Talvez houvesse quebrado um osso ou dois.
— Está machucada, Eveline? Desculpe-me, não consegui desviar a
tempo. — A pressão aliviou quando Luke foi para o lado. Depois, as mãos dele
tatearam meus ombros, costas e pernas.
Tentei falar, garantir que, apesar de o pensamento ter me ocorrido por
alguns segundos, eu não morreria. Mas a voz não saía.
De repente, o ridículo dos últimos minutos me atingiu com força. Eu,
uma mãe de vinte e seis anos de idade, estava imunda de tempero, estirada no
chão de uma cozinha que não era minha, sem condições para falar ou respirar
normalmente porque ao menos cem quilos em forma de homem despencaram em
cima de mim como consequência de uma perseguição que terminou antes
mesmo de começar. A despeito das costas extremamente sensíveis e doloridas,
não fui capaz de segurar o riso.
Começou leve, baixo, contido, porém logo virou um chacoalhar
descontrolado de gargalhadas desconcertantes.
Percebendo que eu estava bem, no final das contas, Luke deixou-se cair
ao meu lado e riu comigo. Era a primeira vez que o via tão descontraído. Em
determinado momento, nós quatro ríamos sem parar, feito um quarteto de
idiotas.
Rebecca apareceu na entrada da cozinha, um braço sustentava Romeo e o
outro foi usado para apontar o dedo indicador entre um e outro.
— Já se divertiram o suficiente? — perguntou, dura. — Suponho que
sim. Recuso-me a tecer qualquer tipo de comentário sobre a cena lamentável que
presenciei aqui. Então me limito a avisar que vou subir com Romeo e descerei
em uma hora. Não quero saber como farão isso, mas exijo encontrar a minha
casa limpa, do jeito que estava, a mesa posta e o almoço preparado. E é bom que
a comida seja tão excelente quanto a minha.
Senti-me envergonhada pela reprimenda merecida. Ela tinha toda razão
para estar chateada, agimos como lunáticos, irracionais. Levantei o rosto para
pedir desculpas, mas parei ao ouvir um som estrangulado. Lucy, uma mistura
irreconhecível de massa, farinha de trigo e respingos de molho vermelho, jogou
a cabeça para trás e soltou a própria gargalhada. A pior coisa para alguém que
tentava ficar sério era ouvir o descontrole alheio. Então, mesmo sabendo que
aquela atitude seria equivocada em todos os níveis, a acompanhei.
— Duas malucas — resmungou Matt, de braços cruzados.
Dividimo-nos entre os três banheiros da casa e, depois de limpos, demos
um jeito na casa. O carpete, após um significativo esforço, foi retirado por Luke
e Matt, a cozinha foi devidamente limpa por Lucy e eu e o almoço foi
encomendado no melhor restaurante da cidade. Tudo para agradar Rebecca, que
desceu pontualmente no horário avisado e não se mostrou impressionada com a
nossa eficiência e trabalho em equipe. Ty recuou-se a mover um dedo para
ajudar na limpeza, limitando-se a comer um saco inteiro de Doritos,
confortavelmente acomodado no sofá macio enquanto assistia a uma partida de
baseball.
A refeição foi feita em silêncio, cada um perdido nos próprios
pensamentos. Mantive o olhar no prato o tempo todo para não correr o risco de
começar outra crise de riso. E, nas duas vezes que ousei levantar a cabeça,
flagrei Luke encarando-me, uma insinuação de sorriso tomando conta de sua
boca.
Ele ficava mais bonito e menos ameaçador relaxado, deveria sorrir mais
vezes.
E, por mais que me esforçasse para recordar, não encontrei nenhuma
manhã tão divertida quanto aquela.



— Já vai? — perguntou Michelle, virando-se na cama para me olhar. O
movimento fez o lençol deslizar por seu corpo, deixando um seio parcialmente à
mostra.
— Meu turno começa meia-noite — informei, terminando de vestir a
camisa.
Ela ajeitou a cabeça no travesseiro, puxando os cabelos pretos para o
lado.
— Nós dois trabalhamos demais, Luke. Precisamos sair dessa vida. — A
frase não era uma crítica, apenas a constatação da realidade.
Michelle era uma detetive de polícia morena, gostosa, independente e, o
mais importante, queria a mesma coisa que eu: fodas ocasionais sempre que as
nossas agendas permitissem. Conheci-a após trocar tiros para proteger um
cliente e o caso cair nas mãos dela. Ao final dos depoimentos, com tudo
esclarecido, ela enfiou um pedaço de papel com seu número no meu bolso
traseiro, ao mesmo tempo que sussurrou um “me ligue” em meu ouvido.
Liguei, fodemos e seguíamos fodendo há três meses regularmente. O
sexo era excelente, ela tão participativa quanto eu, e a falta de cobranças — de
qualquer tipo —, tornava nosso arranjo perfeito. Michelle beirava os quarenta,
não pretendia se casar ou ter filhos, concentrando-se com exclusividade na
carreira. Estava prestes a ser promovida.
— Quantos vezes já tivemos essa conversa? — brinquei, pegando a
carteira e as chaves do carro.
— Perdi as contas.
— Um dia chegamos lá. — Inclinei-me para lhe dar um rápido selinho e
caminhei até a porta. — Vou deixar a conta paga.
— A próxima vez é minha.
Assenti e saí.
Enquanto dirigia para a casa de George Thompson, o prefeito, pensei em
Eveline. O encontro com Michelle não poderia ter acontecido em melhor hora,
porque, desde o almoço de hoje, ocasião em que caí por cima dela e senti aquela
bunda de proporções maravilhosas contra meu pau, não fui capaz de ignorar o
que estava diante do meu nariz.
Eu estava atraído por ela.
Uma funcionária. Uma mulher que escondia segredos ainda não
descobertos por mim. Uma loira cuja risada pareceu preencher a casa da minha
mãe e despertou o desejo de rir com ela.
Poderia enumerar as razões pelas quais ceder à tentação seria uma grande
tragédia. Então descarregar a tensão sexual me ajudaria a manter o controle e a
cabeça no lugar.
Cheguei à mansão, abaixei o vidro para que os seguranças atestassem
minha identidade e atravessei o enorme portão de ferro. O carro de Matt estava
estacionado em uma das inúmeras vagas da garagem e o encontrei na sala
designada para ficarmos quando nossos serviços não eram ativamente
solicitados, com um copo de café na mão.
— Quase dez minutos atrasado, puto — comentou, usando um dedo para
bater no relógio de pulso. — Espera. Está com aquela expressão satisfeita de
quem acabou de foder.
Não respondi, limitando-me a tirar a jaqueta e jogá-la em cima da
cadeira.
— Ainda é detetive gostosa? Ela usa as algemas para te prender na
cabeceira da cama e dar voz de prisão? — continuou.
— Sua vida sexual anda tão frustrante a ponto de desejar informações
sobre a minha? — inquiri, erguendo uma sobrancelha, despejando um pouco de
café em uma xícara.
— Poderia mentir, mas a realidade é que nunca passei por um período tão
grande de seca.
— O quê? Não me diga que o galã loiro está perdendo o jeito —
provoquei.
Matt, carinhosamente, me mostrou o dedo do meio. Sorri, tomando um
gole do líquido quente.
— Sem tempo para nada. Com a redução de funcionários, é saindo de um
turno para entrar em outro. Quando tenho algumas horas livres, só quero dormir.
Ele tinha razão, estávamos trabalhando feito condenados para reerguer a
empresa. O cansaço e desânimo cobravam seu preço, mas precisávamos
acreditar que o esforço valeria a pena ou tudo desandaria.
A madrugada foi tranquila, sem contratempos. Às oito, troquei de lugar
com Macey e passei na LTM para resolver questões burocráticas. Quase
entrando na sala de reuniões, um borrão rosa na visão periférica chamou minha
atenção. Eveline caminhava diretamente para mim em um vestido que, embora
não fosse colado, caía em seu corpo como uma luva.
— Bom dia — cumprimentou ao passar por mim.
— Bom dia, Eveline — respondi, virando a cabeça para olhar suas
costas.
Porra, a bunda em formato de coração tornou-se ainda mais provocante
dentro daquela peça de roupa. Involuntariamente, senti o pau inchar.
Puta que pariu. As transas com Michelle não adiantaram porra nenhuma.
CAPÍTULO 7
Brincando Com Fogo



Eu consegui!
Mantive a boca fechada e não estraguei o aniversário surpresa de
Rebecca. Quando Lucy compartilhara comigo sua intenção em organizar a festa
em segredo, entrei em pânico, prevendo a tragédia. Eu era a última pessoa no
mundo indicada para participar de uma trama parecida. Toda vez que a mulher se
aproximava de mim, eu murmurava qualquer coisa e impunha o máximo de
distância entre nós duas, tarefa supercomplicada, a propósito, uma vez que ela e
meu filho desenvolveram uma relação bastante próxima nos últimos dias.
Por isso, ter sido capaz de guardar aquele segredo era motivo de orgulho.
Olhei a sala de estar quase irreconhecível, sentindo-me satisfeita com
resultado do nosso esforço para decorá-la. Dourado e branco, as cores favoritas
de Rebecca, mesclavam-se em perfeita harmonia.
— Qué, mamãe. — Em meu colo, Romeo estendeu os braços para os
balões de ar presos ao teto. Sorri, beijando-o no rosto macio.
— Depois pego um para você. Agora não pode, é da vovó Rebecca.
A casa estava cheia. Amigos próximos e alguns familiares aguardavam o
momento de surpreender a aniversariante. E seria uma surpresa e tanto.
A campainha tocou e Lucy apressou-se em atender. Amanda entrou
animada, usando um vestido preto alça única, sem dar indícios de cansaço por
haver passado o dia carregando objetos pesados de um lado para o outro,
subindo e descendo escadas. Talvez somente eu estivesse tão fora de forma.
— Você trouxe? — Ouvi Lucy sussurrar enquanto me aproximava delas.
— Tchã-rã! — Tirando uma garrafa da bolsa, Amanda a ergueu e sacudiu
o líquido marrom. — Garota, você está tão em dívida comigo!
— Ah, meu Deus! Obrigada, amiga! — Lucy agarrou a bebida como se
fosse sagrada.
— O que é isso? — perguntei, curiosa.
Antes de qualquer uma das duas sanar minha dúvida, o celular de Lucy
apitou, indicando a chegada de uma mensagem. Os olhos dela aumentaram de
tamanho ao ler o conteúdo.
— Atenção, pessoal! — Elevou o tom de voz, cessando as conversas
paralelas. — Luke acabou de avisar que estão na entrada do condomínio. Por
favor, todos em silêncio e nas posições combinadas, vou desligar a luz. Vocês já
sabem o que fazer, né? Toda aquela história de "surpresa!", coisa e tal.
Meu coração disparou por conta da adrenalina. Romeo me encarou e
soltou um riso divertido, certamente sem compreender a súbita escuridão e
silêncio. Colocando o dedo indicador na boca, fiz um shhh para calá-lo, mas eu
também sorria, animada e ansiosa.
Agucei a audição e prendi o fôlego ao perceber a aproximação do
automóvel. Portas foram abertas e fechadas. Passos nos três degraus de entrada.
A chave foi encaixada na fechadura, a maçaneta girada e, finalmente, a voz dela:
— Por que a casa está fechada e escura desse jeito? Será que as meninas
saíram?
Quase deixei uma risadinha escapar, mas me contive a tempo. Rebecca
entrou, levou a mão ao interruptor e iluminou a todos, ao mesmo tempo que
gritávamos, em alto coro: Surpresa!
Ela ficou visivelmente aturdida, como se estivesse diante de uma
miragem. Em seguida, escrutinou o cômodo da própria casa com os olhos
esbugalhados e a boca aberta em um perfeito O de espanto.
— Mas… O que… Como… Quando… — balbuciou, atordoada.
Risos sucederam suas frustradas tentativas de formar uma frase coerente.
— Feliz aniversário, mãe! — Lucy foi a primeira a se aproximar,
abraçando-a carinhosamente.
— Eu sabia que estavam escondendo alguma coisa! — confessou
Rebecca, retribuindo o gesto. — Percebi certo mistério no ar, só não consegui
decifrar do que se tratava.
Um a um, os convidados foram até ela, desejando felicidades, trocando
cumprimentos, beijos, abraços e sorrisos. Rebecca Buttler era uma pessoa
extremamente querida por quem a conhecia. E não poderia ser diferente.
Esperei a aglomeração diminuir para felicitá-la. Ela colocou as duas
mãos na cintura ao me encarar, fingindo-se de brava.
— Sua danada! Era por isso que você não me olhava nos olhos e fugia
cada vez que eu me aproximava, não era?
Sorri, esmagada entre seus braços.
— Não imagina o sufoco que passei! Sou uma péssima mentirosa. Morria
de medo de deixar escapar alguma coisa. — Após me afastar, desejei: — Feliz
aniversário, querida Rebecca.
Associando minhas palavras ao que acontecia, Romeo bateu palmas e
jogou os braços para ela, que o segurou prontamente.
— Vovó! — disse ele, passando os pequenos braços ao redor do pescoço
dela, colando a bochecha rechonchuda à sua.
A simples palavra de duas sílabas esmagou meu coração. Era a primeira
vez que o menino a usava.
— Isso mesmo, neném. Sou a vovó Rebecca — confirmou, levando-o
consigo para conversar com os amigos.
Cerca de três horas depois, Amanda e eu batíamos um papo no sofá,
beliscando uns salgados. A maioria das pessoas já havia ido embora. Romeo
capotara de cansaço, após gastar até a última gota de energia correndo e
brincando.
Lucy seguia conversando com um primo, firme no propósito de ignorar
Matt. Até o momento, os dois não tinham brigado nenhuma vez, um milagroso
acontecimento.
Sentindo a garganta ressecada, notei o copo vazio em minha mão.
— Vou pegar mais refrigerante, quer? — ofereci a Amanda.
— Não, obrigada. Já ultrapassei minha cota de líquidos por hoje, estou
indo ao banheiro a cada dez minutos.
Assentindo, me dirigi à cozinha. Ao abrir a geladeira, constatei que os
refrigerantes, assim como os sucos, água mineral e a maior parte da comida,
tinham acabado. Agachei, na esperança de achar uma latinha perdida, mas estava
sem sorte. Prestes a desistir e beber água da torneira mesmo, meus olhos
focaram na garrafa de Lucy, escondida atrás de uns potes. Toquei no vidro,
notando como o líquido estava frio. Minha boca encheu de água. Certamente ela
não se importaria se eu bebesse um pouquinho.
Retirei a tampa da garrafa, levando-a ao nariz. O cheiro era forte, mas
não ruim. Enchi metade de um copo e a coloquei de volta no lugar. Sorvi uma
pequena quantidade, provando a bebida. Diferente, mas, novamente, não podia
defini-la como ruim. Excêntrico, talvez. Ingeri o líquido em longos goles e voltei
para a sala.
Em algum momento durante a próxima meia hora, comecei a sentir umas
sensações estranhas. A temperatura pareceu subir alguns graus, fato que não
fazia o menor sentido, pois estávamos no início de novembro. Levantei o cabelo,
segurando-o em um coque improvisado, enquanto me abanava com a mão livre.
Virei para Amanda, na intenção de perguntar se ela também estava percebendo o
súbito calor, mas ela falava ao celular.
— Preciso ir, amiga. Meu marido foi escalado para o turno da noite e
entra em meia hora no serviço — avisou, fechando a bolsa e levantando-se.
— Ok — respondi, agoniada.
— Você está bem, Eve? — Encarou-me com o cenho franzido.
— Eu… Acho que sim. Vou tomar banho e deitar. O dia foi agitado e o
cansaço me pegou.
Despedimo-nos com um abraço e, observando as poucas pessoas
espalhadas no ambiente, minha atenção parou em Luke. Ele estava de pé, uma
mão no bolso frontal da calça, a outra sustentando um copo. Conversava com
Matt e Ty em um canto. A posição me permitia vê-lo de perfil.
Que traseiro!
Era afrontoso um homem ser dono de um bumbum tão bonito, enquanto
nós, mulheres, precisávamos nos matar na academia para alcançar um resultado
minimamente decente.
Meu olhar subiu para as costas fortes, marcadas pela camisa preta. As
tatuagens tomavam todo o braço direito, interrompidas pela manga curta da
blusa. Imaginei como seria vê-las completamente, após contemplá-lo tirando a
peça devagar, desnudando o tronco que, com certeza, seria definido.
Minha nossa! Por que a casa está tão abafada?
Luke tomou um grande gole da bebida e eu, encantada, notei como o
braço flexionou com o movimento, desenhando os músculos torneados. O pomo-
de-adão ficou mais visível, subindo e descendo para engolir o líquido.
O calor aumentou, dessa vez não no ambiente, mas em mim. Os mamilos
pesaram, pontudos contra o sutiã, assim como a vagina latejou. Confusa, apertei
as coxas, sentindo como estava molhada. Imagens indecentes pipocaram na
minha cabeça, sem controle. Desejei despi-lo e beijar cada pedaço do corpo
bonito.
Que merda estou pensando?!
Perdi-me na batalha entre o corpo e a mente. Em algum nível, meu
inconsciente protestava pelo rumo dos pensamentos, mas as sensações físicas
eram fortes demais e, de alguma maneira, sobrepujava a razão.
Mordi o lábio, deixando um fraco gemido escapar quando ele jogou a
cabeça para trás e riu de algo dito por Tyler. Eu precisava sair dali imediatamente
e tomar um banho gelado para voltar a raciocinar com clareza. O intenso desejo
ameaçava destruir o resquício de controle que habitava em mim.
Entretanto, antes que eu pudesse dar o primeiro passo e escapar dali,
Luke se afastou dos amigos, sumindo no corredor. A adrenalina me invadiu,
acelerando meu coração, bombeando o sangue mais rápido, esquentando-me
completamente. Atordoada, segui-o sem a menor ideia do que faria ao alcançá-
lo.
Luke abriu a porta do banheiro e, acelerando os passos, impedi que a
fechasse. Visivelmente surpreso com a minha aparição repentina, soltou a
maçaneta e deu um passo para trás. Aproveitei para entrar e nos trancafiar no
espaço escuro. Movida por um tesão que nunca havia experimentado, empurrei-o
até a parede e o beijei.
Na boca.
O homem não reagiu ao contato imediatamente, estático. Então, mordi
seu lábio inferior e passei a língua lentamente pela região. Colei nossos corpos,
gemendo ao ter os seios extremamente sensíveis pressionados no peitoral amplo.
De repente, em um rápido movimento, Luke trocou as nossas posições e
as minhas costas foram coladas à parede. Uma mão grande deslizou para baixo,
estacionando na bunda, que ganhou um firme apertão, enquanto gemia na minha
boca. Em seguida, chupou minha língua ao mesmo tempo que esfregava o
membro duro na minha barriga, os dedos livres subindo para puxar meus cabelos
para trás.
O beijo foi desesperado, molhado, uma mistura de lábios, línguas e
dentes, botando fogo no meu corpo que já incinerava. Sentia-me ultrassensível
em todos os lugares.
Em um impulso, Luke agarrou minhas duas coxas, elevando-me até
passar as pernas ao redor dos seus quadris, tornando o momento ainda mais
carnal, porque agora nossos sexos se tocavam por cima das roupas. Gemi alto,
altamente sensibilizada. E, quando ele passou a se movimentar em círculos,
impondo a pressão exata, foi a minha perdição.
Eu ia gozar apenas com aquilo!
Espantada pela minha resposta às carícias dele, preparei-me para um
orgasmo potente. Mas ele nunca chegou. Luke afastou-se alguns centímetros, a
respiração ofegante brincando no meu rosto. Confusa, abri os olhos e encarei
seus olhos fixos em mim, a expressão faminta, a ereção parada no lugar ideal.
— Por que parou? — perguntei sem fôlego, tentando mover meus
próprios quadris para voltar a sentir tamanho prazer.
— Fique quieta, Eveline. — A voz grossa me atingiu em cheio. As mãos
dele voaram para minha cintura, firmando-me no lugar, como a garantir que eu
obedeceria ao comando. — Alguma coisa aqui não bate — afirmou.
Frustração e derrota me abateram. Enquanto Luke acendia a luz,
possibilitando que nos víssemos mais nitidamente, eu só pensava naquela boca
cobrindo a minha outra vez, depois indo de encontro a outras partes do meu
corpo que também imploravam por atenção.
Tentei puxá-lo pela camisa, obrigando-o a realizar todas as indecências
que rondavam minha cabeça, mas ele não cedeu.
— Você está sob o efeito de algo? Sente-se mal?
— A única coisa que estou sentindo neste momento é muito tesão e uma
frustração absurda porque você quer conversar ao invés de aplacá-lo.
O aperto doloroso em minha cintura foi o único sinal que minhas
palavras provocaram uma reação dele.
— Puta que pariu! — xingou, fechando os olhos rapidamente. — Você
não está no seu estado normal e vai se arrepender disso amanhã.
Eu quis chorar. A frustração virou raiva e ergui o dedo indicador até seu
peito.
— Você é um estraga-prazeres! — acusei, furiosa. — Se não vai resolver
o meu problema, saia para que eu mesma dê um jeito.
Novamente, fui pressionada de forma gostosa pelo corpo dele. Gemi,
satisfeita. Era exatamente o que eu queria.
— Não pode dizer a um cara que vai se masturbar assim que ele sair pela
porta — grunhiu, a boca quase na minha.
— Mas é o que vou fazer! Já que, claramente, não está interessado em
continuar.
— Não estou interessado? — Riu, debochado. — Tudo que eu quero
agora é levantar o seu vestido até a cintura, afastar a sua calcinha para o lado e
meter a noite inteira na sua boceta gostosa.
Arrepiei-me toda, sentindo a parte citada por ele se contrair por causa das
palavras descaradas.
— E o que te impede? — desafiei.
— A certeza de que você não está no seu estado normal. E quando fodo
uma mulher, a quero consciente do que irá acontecer, sabendo exatamente o que
farei com ela.
Meu corpo protestou, pegando fogo, tremendo, insatisfeito com o quase
orgasmo. Luke desenroscou minhas pernas dele, abaixando-me até os pés
tocarem o chão. Em seguida, me soltou completamente. Lançando-me um último
olhar intenso, abriu e fechou a porta em um baque.
— Covarde! — gritei, desejando que me ouvisse.
Quando a porta voltou a abrir, levantei o rosto ansiosa, torcendo para que
tivesse voltado atrás, mas foi Lucy quem apareceu, aparentando preocupação.
— Eve? — sussurrou, cautelosa. — O que houve?
— Eu queria transar e o idiota do seu irmão saiu correndo como se o
próprio demônio o estivesse perseguindo! — esclareci, as terminações nervosas
abaladas.
Os olhos, de proporções grandiosas, cresceram ainda mais.
— Deus do céu! — Aproximando-se, analisou-me de cima a baixo. —
Você tomou a bebida que Amanda trouxe para mim, não tomou?
Não neguei, apenas abaixei a cabeça, envergonhada por ser descoberta.
— Desculpa por pegar sem avisar. Estava morrendo de sede e sem
vontade de beber água. Achei que não teria problema.
— É uma bebida caseira altamente afrodisíaca. — Tocou meu ombro. —
Quanto você tomou?
— Quase um copo. Mas não estava cheio, prometo.
— Jesus Cristo, Eve! O indicado é um gole por vez!
As palavras de Lucy não faziam o menor sentido para mim. As partes do
meu corpo tocadas por Luke pareciam formigar e tudo que eu queria era que o
infeliz voltasse para finalizar o trabalho.
— Vem. — Puxou-me até o box, auxiliando-me na complicada tarefa de
tirar o vestido. — Vou te ajudar a tomar banho e ir para a cama.
Meu protesto foi calado com água fria caindo na cabeça.

Acordei com dor de cabeça, enjoada e sem ter ideia de onde estava.
Diferente do quarto onde dormi nas últimas noites, aquele possuía as paredes na
cor cinza. A janela era localizada em um ângulo diferente e as cortinas eram
amareladas, ao invés de brancas. O corpo encostado ao meu tampouco pertencia
a Romeo.
Girei para o lado e contemplei os cabelos castanhos de Lucy espalhados
pelo travesseiro. Confusa, tentei lembrar como fui parar ali, mas nenhuma
recordação veio à tona.
— Lucy — sussurrei com a voz rouca, tocando-a levemente no ombro.
Após se espreguiçar e bocejar algumas vezes, desejou:
— Bom dia.
Devagar, sentei na cama, piscando ligeiramente os olhos a fim de
eliminar as pontadas na testa. Massageei as têmporas com a sensação de que
uma banda de rock tocava diretamente em meu ouvido.
— Se não se importar, pode me explicar por que estou na sua cama? —
pedi.
Sentando-se ao meu lado, Lucy fez um coque no cabelo e apoiou os
braços nos joelhos dobrados.
— Você não se lembra de nada?
Uma coisa era certa, nada de bom vinha depois daquela pergunta. Ela,
normalmente, antecedia uma merda das grandes.
— Lembro de estar conversando com Amanda, depois o marido ligou e
ela precisou ir embora. A partir daí não recordo com clareza. É como se eu
estivesse de ressaca sem ter ingerido bebida alcoólica.
A forma condescendente que Lucy me encarou fez meu coração acelerar.
O cérebro passou a trabalhar a toda velocidade, tentando recuperar os fatos
temporariamente esquecidos.
— Foi algo com Romeo? — questionei apreensiva.
— Não! Ele está bem, dormindo com dona Rebecca.
— Graças a Deus! — Suspirei aliviada. — Estou ficando nervosa, Lucy.
Me diz de uma vez o que houve.
— Ok, só tente não surtar. — Notando meu olhar amedrontado,
prosseguiu: — Você tomou a bebida que ganhei de Amanda ontem. É um
afrodisíaco caseiro feito pela sogra dela, no México. Dizem que é proibido em
alguns países.
— Então aquela porcaria é a responsável pelo meu mal-estar?
— Sinto te informar, mas o desconforto físico é o menor dos seus
problemas. — Enfiando o polegar na boca, Lucy começou a roer a unha, fazendo
uma pausa dramática completamente desnecessária.
— Desembucha! — Aumentei a voz, perdendo a paciência.
Ela respirou fundo, parecendo tomar coragem para finalizar o relato.
— Está bem! Dizem que é melhor arrancar o band-aid de vez, então lá
vai. Aparentemente, após tomar uma dose muito maior do que o indicado, você
seguiu Luke até o banheiro, entrou sem ser convidada, agarrou o homem e
implorou para ele te foder.
O quê?!
Pisquei, chocada. Abri e fechei a boca algumas vezes, falhando em
formar qualquer frase coerente.
— Lucy, essa brincadeira não tem a menor graça! — rebati, nervosa.
— Não é brincadeira, Eveline — garantiu, séria. — Ele me puxou para
um canto, visivelmente alterado, os cabelos bagunçados, a boca vermelha e
inchada, tentando disfarçar o volume na frente da calça. Disse que você estava
precisando da minha ajuda no banheiro. Quando cheguei lá, te encontrei
desgrenhada, nervosa, beirando às lágrimas porque não transaram.
Não, não, não, não, não, não, não, não, não, não, não, não!
Preparei-me para outra negativa veemente, garantir que ela falava de
outra pessoa, não de mim. Contudo, antes que as palavras deixassem minha
boca, o primeiro flash apareceu. A forma como a casa de Rebecca tinha
esquentado, causando um calor suspeito. Depois, outros vieram em rápidas
sucessões. Meus olhos varrendo o corpo de Luke com desejo, admirando-o nos
mínimos detalhes. Minhas pernas se movendo por vontade própria para irem
atrás dele, trancando-nos no banheiro sem iluminação. O beijo selvagem,
dominador, transbordando desejo sexual. O membro duro roçando em partes
sensíveis do meu corpo.
Eu quero morrer!
— Merda, merda, merda! — gemi, escondendo o rosto nas mãos. —
Estou começando a lembrar. É verdade, Lucy! E agora? Como vou encará-lo?
Como posso voltar ao trabalho sabendo que assediei meu chefe?
— Você está pálida, mulher. Acalme-se antes que caia dura no chão.
— Me acalmar? — gritei, fora de mim. — Impossível! E que diabos
tinha naquela bebida para me transformar, de uma hora para outra, em uma
oferecida? — Lancei-a um olhar atravessado.
— Já te disse, é um afrodisíaco. E não estava a mostra, ao alcance de
qualquer um, mas escondido no fundo da geladeira. Você bebeu sem permissão.
— Eu não sabia que estava consumindo uma droga!
— Não é droga! Apenas uma bebida… Potente.
Levantei da cama, agoniada demais para permanecer parada, e andei de
um lado a outro.
— Posso perguntar para que merda você quer aquele negócio?
Seu olhar desviou do meu e, se eu não estivesse equivocada, as
bochechas tinham adquirido um tom rosado.
— Nada demais — desconversou, dando de ombros. — Se tomado na
dose correta, não causa os efeitos que você teve.
— O que vou fazer agora? — Passei as mãos nos cabelos, retornando à
questão primordial de como encararia Luke no dia seguinte.
— Nada. Meu irmão conhece a bebida, vai entender que seus atos foram
consequências dela.
— Você não tem noção das coisas que falei para ele, Lucy. Nem tenho
coragem de repeti-las.
— Pare de se torturar. Você bebeu o caralho do afrodisíaco sem saber do
que se tratava, ficou atacada, agarrou o cidadão, os dois deram uns amassos no
banheiro, mas não foram até o final e pronto. Fim de papo. Problema resolvido.
Deus!
Lucy parecia não compreender a gravidade da situação. Ainda que Luke
fosse um perfeito cavalheiro compreensivo, mudava absolutamente tudo.
Ninguém, em sã consciência, conseguiria agir como se nada tivesse acontecido.
Em meio à confusão que se encontrava na minha mente, as lembranças
das sensações que ele me fez sentir com a boca e mãos eram espantosas. Esperei
o medo e apreensão que normalmente apareciam em ocasiões como aquela, mas
apenas o leve formigamento onde me tocou estava presente.
Um calor subiu pelo meu corpo, tanto de embaraço quanto de excitação.
Balancei a cabeça, tentando deixar todos os pensamentos para lá, pelo
menos até amanhã, quando eu precisasse encará-lo pessoalmente, e voltei meus
olhos para Lucy.
— Por favor, me diz que a sua mãe não ficou sabendo desse vexame —
implorei.
— Fique tranquila, Eve. Inventei que você passou mal com a comida e
vomitou até a alma.
— Menos mal. — Suspirei aliviada. — Está aí uma lição aprendida com
sucesso. Nunca comer ou beber nada até ter certeza que aquilo não vai te
transformar em uma… Maníaca sexual.
— A questão vai muito além disso, Eveline — ela disse, após parar de rir
do meu comentário. — O afrodisíaco não transforma ninguém em um tarado,
somente ajuda a pessoa a ficar desinibida e ir atrás do que deseja. O que não
consegui entender é o curioso fato de, apesar de haver, pelo menos, três homens
atraentes no recinto, você ter ido diretamente para Luke. Não é engraçado? Por
que não Matt ou Ty?
Senti as bochechas arderem e desviei o rosto do seu, tentando esconder
dos olhos perspicazes a minha reação. Eu não sabia a resposta, nem queria
raciocinar sobre aquele questionamento. Então, como vinha aprendendo nos
últimos tempos, a melhor defesa era o ataque.
— Isso é culpa sua — acusei, cruzando os braços.
— Minha?!
— Exatamente. Ficou colocando merda na minha cabeça, falando que
seu irmão estava a fim de mim, encarando a minha bunda, fazendo perguntas
sobre a minha vida pessoal. Com certeza as suas sandices ficaram no meu
inconsciente e tudo potencializou por causa da sua droga. E o resultado foi esse
desastre estratosférico.
— Está bem, lindinha. Continue repetindo isso, quem sabe consegue
convencer a si mesma. — Sorrindo, concluiu: — Você está tão a fim dele quanto
ele de você.
— Não me sinto preparada para continuar essa conversa agora. —
Recuei, como a bela covarde que eu era. — Vou tomar um remédio para dor de
cabeça, depois pegar Romeo. E então me esconder o resto do domingo no
quarto, remoendo como vai ser humilhante encarar o seu irmão amanhã.
Caminhei rapidamente para fora do quarto, ouvindo a risada debochada
por todo o corredor.
CAPÍTULO 8
Chamuscado

Eveline me fodeu. E não foi da maneira como eu desejava.


Passei a noite em claro, rolando de um lado para o outro, de pau duro e
relembrando cada instante de loucura no banheiro. A imagem dela preenchia
meus pensamentos. Os olhos azuis brilhantes e selvagens, me pedindo, sem
palavras, para fodê-la. Os cabelos loiros bagunçados, cobrindo parte do rosto,
implorando para que eu os puxasse com força. Os seios macios, de tamanho
perfeito, colados ao meu peito. A bunda gostosa, dura e empinada, que encheu
minhas mãos em um encaixe ideal. E, por fim, a boceta quente esfregando no
meu pau e que, mesmo por cima da calcinha, pude sentir molhada.
Quase gozei na cueca, como um maldito adolescente quando descobria as
revistas de mulheres peladas.
A mulher me pegou de surpresa, entrando no banheiro atrás de mim feito
um furacão. Nos poucos segundos que tive para observá-la, notei a expressão
diferente. Ela transpirava, o rosto estava avermelhado, os olhos vidrados. A
minha análise foi interrompida bruscamente quando me beijou como se a vida
dependesse disso. E então o tesão que eu vinha há alguns dias fingindo que não
existia explodiu de vez, fazendo-me responder à altura.
E a realidade de beijar Eveline, sentir todas as curvas do corpo dela, o
calor em cada parte que me tocava foi muito melhor do que na minha
imaginação.
Ou pior, dependendo do ponto de vista.
Porque agora, depois de tê-la provado, me vi querendo mais. Querendo
terminar o que começamos no banheiro. Péssima ideia.
Afastar-me foi difícil para um caralho, mas eu não era nenhum filho da
puta aproveitador. Era evidente que ela não se encontrava em seu estado normal
e recusava-me a ter qualquer envolvimento íntimo com alguém naquela situação.
E, como se não estivesse sendo torturado o suficiente, tive que ouvi-la me acusar
de não estar interessado e informar que se masturbaria.
Porra.
Tive uma ereção desgraçada, que me acompanhou da casa de dona
Rebecca até a minha, enquanto fugia como um covarde. Embaixo do chuveiro,
quem se masturbou, três vezes, fui eu, imaginando-a deitada na minha cama, o
vestido embolado na cintura, as pernas abertas, a calcinha afastada para o lado e
os dedos delicados dando prazer a si mesma.
— O gato comeu a sua língua, garoto?
Elle, a garçonete, barista e mais dona do que o proprietário do bar que
frequentávamos, encarava-me com as mãos na cintura, um pano pendurado no
ombro e a cabeça levemente tombada para o lado. Pigarreei, movendo-me no
banco para esconder o princípio de ereção, sem ter noção sobre o que falava.
— Desculpe?
— Estou há meia hora perguntando se quer outra cerveja, mas parece no
mundo da lua. Viu um passarinho verde?
— Quero sim — respondi a primeira pergunta, ignorando
propositalmente a segunda.
— Que bicho te mordeu, puto? — questionou Matt, sentado à minha
direita, Tyler à direita dele.
— Nada. Só estou cansado.
— Sei. — Ty riu, tomando um gole da água com gás que pedira. — Não
sabia que estava tão fora de forma assim.
Virei para ele, estreitando os olhos ao notar a ironia na frase.
— O que está sugerindo? — perguntei.
— Vi Eveline te seguir quando foi ao banheiro. Minutos depois, você
saiu de lá amarrotado, vermelho e tentando esconder o pau nas calças.
Matt gargalhou, subitamente mais interessado na conversa.
— O quê? Onde eu estava? Por que perdi isso?
— Se comportando como uma águia, vigiando Lucy conversar com
aquele cara — esclareceu Ty.
— Vá se foder. Nem reparei que ela estava no mesmo ambiente.
— Continue se enganando, loira gostosa. — Brincando, deu um tapa na
cabeça dele. — Mas agora o assunto em questão é o senhor eu-não-pego-
funcionárias aqui se atracando com a nova contadora.
Agradeci a Elle e bebi uma grande quantidade de cerveja diretamente da
garrafa. Não era surpresa Tyler ter percebido toda a movimentação do dia
anterior. Fomos treinados para estar atentos a tudo, o tempo todo. Mas eu não
queria conversar sobre o assunto, não enquanto estivesse tão perturbado e
confuso.
Percebendo meu silêncio, ele insistiu:
— Espero que saiba o que está fazendo. Ela vem se mostrando uma
excelente profissional e perdê-la neste momento só complicaria a situação da
LTM.
— Nada aconteceu. — Depositei a garrafa no balcão de madeira, mais
irritado do que gostaria. — Foi um mal-entendido e já foi resolvido.
— Que espécie de mal-entendido acaba em pegação no banheiro? —
Matt arqueou uma sobrancelha, cético.
Os dois não me deixariam em paz. Respirei fundo e resumi:
— Eveline tomou uma alta dose do afrodisíaco que Amanda levou para
Lucy por engano, os efeitos foram fortes, me seguiu até o banheiro e me beijou.
Depois de me dar conta que algo estava errado, parei, saí de lá e fui embora. Fim
da história.
A explicação foi recebida com silêncio. Em seguida, os filhos da puta
gargalharam como imbecis descontrolados. Impaciente e calado, esperei a crise
de riso passar.
— Porra, não dá pra acreditar! — Matt limpou as lágrimas dos olhos. —
Então Eveline, com aquele rosto de anjo e jeito tímido te pegou de jeito.
Recusei-me a responder.
— Como você descobriu o que aconteceu? — indagou Ty, mais
controlado.
— Lucy enviou uma mensagem — esclareci mal-humorado.
Foi frustrante descobrir que o ímpeto com o qual me agarrou foi
produzido por uma substância e não por tesão. Estava atraído por ela e gostaria
que fosse recíproco, embora não tivesse a intenção de fazer nenhum movimento
naquele sentido.
— O que a peste está tramando agora? Pra que ela quer aquele
afrodisíaco potente?
Não saberia responder à dúvida de Matt. A cabeça estava ocupada com
outras questões, que não incluíam as intenções duvidosas da minha irmã.
— Se eu fosse você, puto, evitaria beber líquidos na casa de Rebecca. Só
por garantia. — Ty provocou, dando um tapinha condescendente no ombro dele.
Matthew empertigou-se, de repente muito sério, o cenho franzido,
alterado pela insinuação de Tyler.
— Por falar em Eveline. — Ty voltou a falar. — Estamos na porra de um
beco sem saída. Até o momento, nada sustenta a suspeita que alguém do prefeito
vazou a informação. Não há nada que ligue a perseguição sofrida por ela ao
grupo que vem ameaçando George Thompson e a filha.
A confirmação das minhas próprias suspeitas me deixou tenso. O que
houve naquela manhã parecia um trabalho amador, feito para dar um susto. Não
combinava com o modus operandi da gangue impressionantemente organizada.
— Poderia ser aleatório? Uma tentativa de roubo fracassada? — inquiriu
Matt.
Neguei com a cabeça.
— Não acredito em coincidências. — Deslizei o dedo pela garrafa
gelada, pensando. — Estamos deixando passar alguma coisa. Os fios estão soltos
e ainda não conseguimos amarrá-los. Mas estou de mãos atadas quanto à
mudança dela. Não posso mantê-la na casa da minha mãe por tempo
indeterminado sem uma boa justificativa para isso.
— Vamos dar uma olhada no local, instalar o melhor sistema de
segurança na casa dela e garantir que tenha carona para ir e voltar do trabalho.
Ao menos por enquanto será suficiente — Matt sugeriu.
A contragosto, assenti.

Na segunda-feira, durante o horário de almoço, bateram na porta da


minha sala. A dona dos meus recentes pensamentos apareceu vestida em uma
calça jeans clara, blusa branca e suéter azul-marinho. O cabelo preso em um alto
rabo-de-cavalo destacava os olhos muito azuis e o rosto de traços delicados.
Uma boneca. Bonita pra caralho.
O pau — maldito traidor — se animou todo com a presença dela. Fiquei
grato porque a mesa me cobria da cintura para baixo.
— Podemos conversar? — pediu.
— Claro. Senta. — Indiquei a cadeira, mantendo o tom de voz neutro.
Constrangida, as bochechas levemente tingidas de vermelho, sentou-se
em frente a mim, encarando as mãos entrelaçadas no colo. Não era fácil para ela
estar ali.
— Já finalizei meu turno, mas não podia ir embora sem falar com você.
— Levantou a cabeça e voltou a abaixá-la com rapidez, aparentando ser incapaz
de me olhar nos olhos. — Para falar a verdade, fiquei o domingo inteiro
pensando no que falar, ensaiando como dizer, pedir desculpas… sobre… —
Respirou fundo, trêmula.
O embaraço dela me atingiu. A vergonha estampada em seu rosto era a
prova de que Eveline não costumava tomar iniciativa, dar o primeiro passo, o
primeiro beijo. Normalmente eu preferia as mulheres que o faziam. Poucas
coisas eram tão sensuais quanto uma mulher que sabia o que queria e corria atrás
daquilo. Entretanto, de alguma maneira, a timidez dela era atrativa.
Estar tentando começar aquela conversa significava que tinha um forte
caráter e muita coragem. Admirei aquelas qualidades. Para ajudá-la, incentivei:
— Você deseja falar sobre o que aconteceu no sábado.
— Sim — concordou depressa. — Lucy disse que você sabe sobre o…
sobre a… tal bebida. Estava morrendo de sede e não achei que teria problemas
tomar um copo. Não sabia o que era ou os efeitos colaterais que causava, juro!
Estou sinceramente mortificada. Nunca, jamais, em hipótese alguma eu te
agarraria daquele jeito, desrespeitando a casa da sua mãe, que não tem sido nada
além de gentil comigo, se estivesse no meu estado normal. Por favor, me
desculpe. Vou entender se quiser me despedir.
Descansei as costas na cadeira, observando o rosto oval de maçãs altas, a
boca bonita, o nariz bem feito.
Linda.
E era a primeira vez que uma mulher se desculpava por me beijar.
Desejei pegá-la no colo, colocá-la em cima da minha mesa e tirar as
sandálias de salto, calça e calcinha. Depois, a viraria de costas para mim,
apoiaria o peito na madeira, deixando a bunda empinada ao meu alcance. Em
seguida, me ajoelharia atrás dela, abriria sua carne e a chuparia até gozar na
minha boca, gritando feito uma filha da puta. Para finalizar, deslizaria o pau na
boceta melada, comendo-a até nossos corpos ficarem exaustos.
Fiquei totalmente ereto, pronto e louco para realizar a fantasia. Se a
tímida Eveline desconfiasse as coisas que gostaria de fazer com ela, correria sem
olhar para trás.
Estranhando meu silêncio, os olhos azuis finalmente encararam os meus,
suplicantes, nervosos.
— Não há necessidade de chegarmos a esse ponto — garanti. — Lucy
me explicou tudo, conheço a bebida e sei os efeitos dela. Vamos apenas seguir
em frente.
— Obrigada — disse aliviada. — Prometo que não voltará a acontecer.
Por algum motivo, a afirmação me incomodou.
Antes que fizesse qualquer movimento para sair da sala, falei:
— Gostaria de conversar sobre outro assunto. — Séria, concordou, um
pouco mais relaxada. — De acordo com as informações que levantamos, não há
nada que ligue o evento daquela manhã ao caso do prefeito. No entanto, vamos
continuar procurando.
— Isso significa que posso me mudar em segurança?
— Faremos o possível para garantir que sim. Um moderno sistema de
segurança será instalado na sua casa. E seria bom que você e Lucy continuassem
a pegar carona, só por mais alguns dias.
— Não quero que tenham gastos desnecessários comigo.
— Cuidamos dos nossos funcionários, Eveline. Se existe a menor
possibilidade de aquela perseguição ser consequência do seu trabalho aqui na
empresa, é nossa obrigação zelar por sua segurança.
— Está bem — concordou, ainda relutante. — Dona Gloria disse que
posso me mudar em uma semana.
— Me avise quando tiver a data definitiva.
— Ok. — Levantou, retirando uma pasta da enorme bolsa. — Esses
documentos precisam da sua assinatura. Eu os pego amanhã, não tenha pressa.
Inclinou-se sobre a mesa para me entregar os papéis. O cheiro dela me
invadiu. Doce e meio ácido ao mesmo tempo. Fazia-me recordar de uma torta de
limão.
Irritado com o inconveniente daquela atração forte e absurda, parei de
respirar e fiquei imóvel, a fim de controlar meus instintos que gritavam por outra
sessão de amassos. Dessa vez no meu banheiro, até o fim.
— Novamente, obrigada por ser tão compreensivo. — Mordeu o lábio
inferior, atraindo meu olhar para a carne pintada com um batom rosa claro.
Afirmei com a cabeça, negando-me a continuar o diálogo. Despedindo-se
de maneira definitiva, Eveline caminhou até a porta. Olhei o balanço do quadril,
a bunda apertada e desenhada no jeans até a porta fechar.
Que porra era aquela?
Eveline Perry era uma mulher bonita, sem dúvidas. Mas estava
acostumado a ver, conversar e ir para a cama com algumas mais bonitas do que
ela que nunca despertaram tamanho interesse em mim. Seria por ela estar em
uma zona proibida, que eu mesmo fiz questão de criar para evitar problemas no
trabalho?
Após várias tentativas frustradas de me concentrar na leitura, deixei os
documentos de lado, guardando-os na gaveta, peguei as chaves do carro e saí do
prédio. Um pouco de exercício físico viria a calhar. Dar alguns socos nos filhos
da puta na aula de boxe era o que eu precisava para voltar a pensar com a cabeça
de cima.
CAPÍTULO 9
Uma Palavra


— Sabe uma coisa que nunca entendi? — questionou Lucy, alternando o
olhar entre mim e Amanda, enquanto lanchávamos no shopping. — Por que os
homens insistem em usar a expressão "comer uma mulher", se o que acontece na
prática é o contrário? Já pensaram nisso?
Amanda riu alto, esforçando-se para não engasgar com o refrigerante, e
eu tentei entender de onde a mulher tirava aquelas ideias absolutamente
aleatórias.
As duas me ajudaram a escolher os móveis da casa. Lucy tinha um bom
gosto admirável e um igual talento para encontrar itens em promoção, o que era
excelente para meus recursos limitados. O lugar não era nada impressionante,
mas estava conservado, limpo, a rua parecia tranquila, e o melhor: a cozinha já
mobiliada me economizaria um bom dinheiro.
Eram quatro cômodos: a sala e cozinha, separadas por um balcão, no
melhor estilo americano; dois quartos, o maior com a suíte; e uma pequena área
de serviço com uma máquina lava-e-seca instalada. Com um pouco de cuidado e
a decoração certa, ficaria bem bonitinho.
A emoção quase me dominou quando recebi as chaves. Finalmente, meu
filho e eu teríamos um lugar só nosso. Finalmente, começava a me sentir livre,
independente, dona de mim, a sensação de recomeço aflorando.
— Se é o nosso equipamento que engole o deles, não seria mais
adequado falar que é a mulher quem come o homem? — Lucy prosseguiu com
sua linha de raciocínio.
Ela mantinha uma expressão séria, como se o assunto discutido fosse
algo de extrema relevância, como a política atual ou o aquecimento global. Sorri,
balançando a cabeça de um lado para o outro.
— De onde você tira essas coisas, Lucy? — indaguei, tomando um gole
do meu suco.
— Toda noite, antes de dormir, minha cabeça fica trabalhando por horas,
analisando os mais variados assuntos. Em uma dessas, essa questão me chamou
atenção — explicou, ainda séria. — Mas enfim, deixando isso de lado, estive
analisando a minha vida desde que voltei à cidade e cheguei à conclusão de que
preciso sair um pouco, dançar, me divertir, beber, ver uns homens gostosos. Que
tal?
Às vezes eu sentia dificuldade em acompanhar a velocidade com a qual
ela mudava de um tópico para outro em milésimos de segundos.
— Acho excelente — opinou Amanda. — Você é jovem, solteira, linda e
precisa aproveitar a vida.
— Quero que vocês duas venham comigo. Seria uma espécie de noite das
garotas, numa versão muito mais animada.
Nem pensar. A ideia de ir em uma balada, ao invés de animar, causou o
efeito contrário em mim. Miranda vivia implicando comigo, acusando-me de ser
uma alma idosa presa em um corpo jovem.
— Contem comigo! Ando mesmo sonhando com uma distração.
Trabalhar fora, cuidar de quatro filhos e uma casa é enlouquecedor. Amo minha
família, mas todo mundo precisa de um tempo para si mesmo. Me avisem com
uns dias de antecedência para Juan e eu combinarmos nossos horários. Eu saio e
ele fica com as crianças, para variar.
Após a concordância de Amanda, toda a atenção se voltou para mim. Dei
a primeira desculpa que me ocorreu:
— Não vou ter tempo, preciso organizar a mudança.
— Mais um motivo para comemorar — rebateu Lucy. — Vamos te
ajudar e, assim que estiver tudo pronto, dançaremos a noite inteira. Preciso
conhecer novas pessoas, de preferência um homem alto, bonito, solteiro, com
pegada e se tiver com o físico em dia, não vou reclamar.
— Você quer sair para se divertir? Dou o maior apoio, mas a última coisa
que desejo, neste momento é uma noitada. Além disso, tem Romeo…
— Ele fica com minha mãe, Eve — interrompeu, encontrando soluções
para cada empecilho que eu inventava. — Cadê o apoio feminino? Amanda e eu
precisamos nos divertir e aposto que seria ótimo para você também. Sair uma
vez na vida não vai arrancar pedaço.
— Seria maravilhoso passar um tempo com vocês duas fora da LTM —
emendou Amanda.
Elas me olhavam em expectativa, com expressões igualmente
esperançosas. De repente, me dei conta que estava sendo ingrata e um pouco
egoísta. Recebi o apoio e a amizade daquelas duas mulheres desde o primeiro dia
na empresa. Ambas gastavam parte do sábado escolhendo móveis e objetos
decorativos para o meu apartamento, quando podiam se concentrar em outras
atividades com suas respectivas famílias, por exemplo. Então não custava nada
sair para nos divertirmos juntas.
— Está bem, eu vou. — Ao ameaçarem uma comemoração, ponderei: —
Mas não a noite inteira. Estou enferrujada nesse negócio de ir para baladas e não
quero ficar a madrugada inteira fora de casa.
— Ótimo! — Lucy bateu palmas, satisfeita. — E já sei qual será nosso
destino. Depois de acertar os detalhes, aviso a vocês.


No domingo à tarde, dei uma olhada na minha futura casa, incrédula com
a drástica mudança que os móveis e a decoração promoveram no ambiente.
Acordamos cedo, deixei Romeo aos cuidados de Rebecca e iniciamos a
faxina. Quis cuidar daquilo sozinha, constrangida por submeter Lucy a esfregar
o chão comigo, mas ela se recusou a ouvir não. Por ter sofrido uma recente
reforma, o piso e algumas partes da parede estavam imundos. Finalizamos o
trabalho pesado no meio da manhã, suadas, exaustas e famintas.
Após tomarmos banho, estreei os utensílios de cozinha preparando uma
macarronada e assei dois filés de frango. Comemos em meio a uma conversa
agradável e descontraída. Lucy era uma pessoa divertida, expansiva e falante.
Era fácil manter um diálogo com ela, especialmente porque eu mais ouvia do
que falava. Conforme me confidenciava situações inusitadas e hilárias pelas
quais passara, eu percebia as drásticas diferenças entre as nossas vidas. Será que
ela se dava conta do quão sortuda era por ter nascido em uma família tão
especial, rodeada de carinho, amor e proteção?
Às duas da tarde, Luke e Tyler chegaram para ajudar na montagem dos
móveis e instalar o tal sistema de segurança. Passados oito dias do aniversário de
Rebecca, ainda era complicado e constrangedor estar no mesmo ambiente que
ele. Por mais que Luke houvesse sido compreensivo e cumprido a proposta para
seguirmos em frente, ficava aquele clima meio estranho, não sabíamos como
agir na presença um do outro.
A intensidade do que aconteceu no banheiro parecia forte para ser
ignorada. Vez ou outra, as imagens se repetiam em minha cabeça feito um disco
arranhado. As coisas que disse, as que escutei… Deus!
A única experiência sexual que tive foi com Bryan e, apesar de haver
sido relativamente prazeroso nos primeiros meses de relacionamento, ele nunca
me disse frases tão cruas e sexuais, enquanto Luke não poupou no palavreado,
beirava o pornográfico. E, ao invés de ficar chocada e amedrontada, as palavras
tiveram o poder de me acender, excitar. Talvez aquela reação tão forte e atípica
tenha ocorrido por conta do afrodisíaco.
Disfarçadamente, espiei sobre o ombro, admirando-o na camisa regata,
os braços musculosos trabalhando, movimentando-se de maneira bonita para
prender alguns nichos na parede. Boa parte das tatuagens ficavam à mostra,
outra era escondida pelo tecido preto. Gostaria de ver todos os desenhos e saber
os significados deles. Outra vez, da mesma forma que ocorrera na casa de
Rebecca, senti a temperatura subir.
Precisava perguntar à Lucy por quanto tempo o efeito daquela porcaria
permaneceria no meu sistema.
Dona Gloria, que havia dado um jeito de se enfiar na minha sala ao ver
os dois chegarem, sorria como uma adolescente apaixonada, enquanto servia
limonada e biscoitos para eles. A senhora chegou ao ponto de se abanar com as
mãos no instante em que viraram de costas para ela.
— Se eu fosse trinta anos mais jovem, prenderia qualquer um na minha
cama e o manteria lá por uma semana, no mínimo — sussurrou em meu ouvido
ao passar por mim, um tanto ofegante e vermelha.
Primeiro fiquei chocada, realmente abismada, porque ela parecia uma
daquelas vovós boazinhas dos filmes infantis, que faziam biscoitos para todo
mundo e dava sábios conselhos para quem quer que aparecesse. Depois, me senti
aliviada, porque se nem mesmo uma senhora da idade dela estava imune à
criatura, eu tinha o direito de ficar… Curiosa.
— E então, o que acha? — Lucy perguntou, olhando para os quadrinhos
organizados de maneira aleatória no chão, formando um quadro maior. — Se
você não gostar desse padrão, posso testar outros, antes de passar para a parede.
— Ficou muito bonito, Lucy. Não precisa mudar — garanti com
sinceridade. Eu tinha amado todas as ideias que ela deu para a decoração.
Queria que esse fosse um lar alegre, aconchegante, com pontos de cores
vivas espalhadas por todos os cômodos. Tudo que a casa de Bryan não era. Os
tons cinza, azul turquesa e amarelo se misturavam em harmonia. Juntos, eles
ficavam lindos.
— Onde está a fita dupla-face?
— Na minha bolsa, no quarto. Vou pegar.
Prestes a entrar no cômodo, um braço entrou no meu campo de visão,
apoiado na parede, impedindo a passagem. Não precisei desviar o olhar para
saber a quem pertencia, as tatuagens denunciavam.
— Escute, Eveline — ele disse, muito próximo a mim. — Estou tentando
ser um cara legal, respeitar seu espaço e interpretar o que houve naquele
banheiro como um mero efeito colateral da maldita bebida. Então facilite a porra
do meu trabalho e pare de me olhar desse jeito.
Não virei para encará-lo, mantendo os olhos para frente. Meu corpo
tremeu e a barriga contorceu de ansiedade.
— Hã… — Pigarreei. — Não estou fazendo nada. Nem te olhando de
nenhum jeito.
A risada baixa e sarcástica mostrou que não engoliu uma palavra que eu
disse.
— Está e sabe disso. Seus olhos me buscam com frequência,
principalmente quando estou de costas.
— Como você pode saber? Se está de costas?
— Eu fui um soldado por muitos anos, Eveline. Estar atento a qualquer
movimento, ser capaz de perceber se me observavam ou não foi o que me
manteve vivo durante todos os anos no Iraque — explicou, tão perto que eu
sentia perfeitamente o cheiro de suor e perfume misturados, assim como o calor
que emanava do corpo forte, atordoando minha cabeça.
Nervosa e encurralada, me restavam duas opções: inventar uma mentira
que soaria vergonhosa ou confessar parcialmente a verdade. Escolhi a segunda.
— Eu só estava curiosa sobre as suas tatuagens — expliquei
pateticamente.
— Você gosta delas? — A boca dele encostou na minha orelha, o hálito
morno arrepiando todos os pelos do corpo. — Posso te mostrar cada uma, se
quiser — murmurou a sugestão explicitamente sexual.
Algo em mim se contorceu. Respirei fundo, fechando os olhos em busca
de controle. Só a boca dele tocava a minha pele, mas eu sentia como se
estivéssemos colados, cada músculo rijo e bem trabalhando me marcando outra
vez.
— Não é… Bem… Hã… Sempre quis fazer uma, mas a coragem nunca
apareceu, e você tem tantas. Fiquei imaginando quanto deve ter doído. —
Esforcei-me para soar minimamente coerente.
— Já passei por dores piores.
Silêncio.
O coração estava tão acelerado, desgovernado, desejando escapar do
peito. Precisava sair dali, da presença dele, me recompor. As reações que Luke
provocava em mim eram estranhas e atordoantes. Engoli em seco.
— Preciso pegar algo no meu quarto.
Luke continuou em silêncio, o braço estendido, os lábios resvalando na
minha orelha. Ele se moveu poucos centímetros, esfregando o nariz por meu
cabelo, inalando profundamente, como se desejasse sentir meu cheiro. Como se
o apreciasse. As duas pernas, de repente, viraram gelatina.
— Preste atenção, Eveline. — Voltou a falar, a voz rouca, grossa,
carregada de algo que eu não saberia definir. — Não sou um canalha e jamais
forçaria uma situação com você. Mas se eu perceber que é recíproco, que
também sente todo esse tesão, que me deseja, vou querer continuar o que
começamos naquele banheiro. — Oh, Deus! Vou desmaiar! — Me dê os sinais
certos. Me dê uma palavra. Apenas uma.
Cada partezinha de mim tremia e formigava, as mãos suavam. O que ele
estava fazendo comigo?
— Luke, por favor… — implorei, sem saber exatamente o pelo que.
— Eve, por que está demorando tan… — A voz de Lucy penetrou a
névoa de irrealidade que nos encobria, tirando-me daquele torpor. Luke se
afastou com rapidez, virando de costas para ela, as duas mãos enfiadas nos
bolsos da calça.
Contudo, não foi rápido o suficiente para que ela não percebesse o clima
pesado, a tensão que parecia tomar conta do corredor inteiro. Estreitou os olhos,
a boca entortando em um sorrisinho malicioso, e eu soube que nunca mais teria
paz. Na primeira oportunidade, Lucy me interrogaria feito uma agente do FBI
até arrancar cada informação.
Quando Luke caminhou para longe, passando ao meu lado com o maxilar
cerrado, a expressão séria, sem sequer dirigir um último olhar em minha direção,
tentei compreender o que havia lhe pedido.
Luke, por favor, afaste-se.
Luke, por favor, continue de onde paramos.
CAPÍTULO 10
Castelo de Areia


Reno, Nevada, 2014.

A porta atrás de mim bateu com violência e todo o meu corpo tremeu.
Agarrei a pequena bolsa com as duas mãos, empregando uma força além da
necessária, e aguardei. A voz de Bryan não tardou a me alcançar.
— Gostaria de entender o que significaram todos os olhares e sorrisinhos
dirigidos ao garçom.
Fechei os olhos. De novo não.
Tínhamos ido jantar fora para comemorarmos a promoção de Bryan na
empresa. Ele se mostrou muito animado com o reconhecimento e, de alguma
maneira, aquela felicidade acabou me contagiando e influenciando o meu
comportamento. Contudo, o que eu via como educação e simpatia acordou nele o
monstro há dois meses adormecido.
No instante em que devolvi o cardápio ao garçom, sorrindo e
agradecendo pelo bom atendimento, Bryan fechara a expressão e passara a me
encarar com nítido descontentamento. Até a recente acusação, não compreendia
o que fiz para deixá-lo tão fechado e sombrio, mas um medo atroz quase me
paralisou por completo. Dali em diante, pus-me em alerta e expectativa,
amedrontada e incapaz de me concentrar na refeição.
O caminho de volta foi verdadeira tortura. Ele calado e eu sem condições
de tentar iniciar qualquer diálogo.
— O quê? — sussurrei, intensificando o aperto na bolsa.
— Não se faça de desentendida, Eveline! — Encolhi com o grito, os
olhos ardendo de vontade de chorar. — Você ficou a noite inteira dando mole
para o cara!
— Isso não é verdade, Bryan — neguei veementemente.
— Não tente me enganar. Não me faça de idiota, vagabunda!
O pânico venceu a cautela. Virei para ele, chorando e magoada.
— Pare! — gritei. — Pare de me chamar assim! Pare de agir desse
modo! Não lembra o que aconteceu a última vez que ficou tão alterado? Você
prometeu que não se repetiria.
Minhas palavras pareceram deixá-lo ainda mais transtornado. Pisando
fundo, Bryan fechou a distância entre nós em poucas passadas.
— Estou tentando, mas não é possível quando convivo com uma vadia.
— Eu não sou nenhuma vadia! — defendi-me. — Nunca te dei motivos
para me tratar assim. Não entendo o que está acontecendo com você. — Solucei,
dando dois passos para trás.
— O que está acontecendo comigo? — Aproximou-se outra vez,
agarrando meu cabelo dolorosamente, puxando-o para trás. — Você é o que está
acontecendo comigo!
Gemi, sentindo a dor se espalhar por todo o couro cabeludo. Soltando a
bolsa, levantei as mãos para as dele, tentando afastá-las de mim.
— Me solte! Está me machucando! — implorei aos prantos.
— Você tem que aprender a me respeitar, porra. Mulher minha não fica
dando moral pra outro cara, principalmente na minha frente. Quando vai
aprender isso, Eveline?!
— Eu não fiz nada! Me larga! — Finquei as unhas nos seus dedos, a
cabeça posicionada em um ângulo esquisito para amenizar a dor.
O alívio foi imediato quando fez o que pedi, mas a sensação durou pouco
tempo. O dorso da mão dele atingiu meu rosto em um baque. Senti o impacto, a
dor e o gosto metálico do sangue que começou a escorrer do canto da boca.
— Vê o que me obriga a fazer? — gritou outra vez, voltando a agarrar
meus cabelos, o rosto descontrolado a centímetros do meu. — Por que não se
comporta? Não quero te bater, Eveline, mas você me provoca o tempo inteiro.
— Vo-você está doente. — Solucei. — Não jogue a culpa em mim.
— E ela é de quem, se não for sua? Está me desafiando, porra? — Um
novo tapa, exatamente onde o anterior atingira, mostrou-me que argumentar com
alguém desequilibrado e fora de si não era o melhor caminho.
Permaneci parada, sem fazer menção de escapar. Chorando, o rosto em
chamas e amedrontada, simplesmente aguardei. Ainda mais irritado com a falta
de reação, Bryan me atirou no sofá. Caí desajeitada, batendo a barriga
avantajada de seis meses no braço do móvel. Arfei, levando a mão aberta ao
local com desespero. A possibilidade de acontecer algo de ruim com o bebê
levou meu chão e resquício de racionalidade para longe.
— Você prometeu. — Cerrei o maxilar, encarando-o com ódio. —
Prometeu que não ia acontecer de novo. Vou embora daqui, está ouvindo?! Vou
te deixar e você não vai colocar as mãos em mim nunca mais!
Bryan inclinou-se em minha direção e encolhi quase até murchar,
aguardando o próximo golpe de olhos fechados, protegendo o ventre como
podia. Porém, daquela vez não foi o punho dele que me atingiu, mas as palavras
dotadas de crueldade:
— E para onde vai, estúpida? Não seja burra, analise as suas chances e
não me ameace. Recém-formada, quase parindo, sem experiência profissional.
Quem é o imbecil que vai empregar uma mulher nessas condições? Entenda, de
uma vez por todas, que só tem a mim. Fui a única pessoa a te querer, te dar valor.
Nem sua mãe quis manter você. Então está na hora de começar a se mostrar
grata.
Aquelas palavras doeram bem mais que as agressões físicas. Eu devia ser
mesmo burra para ter confiado nele a ponto de contar a minha história, apenas
para que tudo fosse atirado contra mim com requintes de crueldade. Negando-me
a deixá-lo saber quão profundamente me feriu, rebati:
— Não tenho família biológica, mas ganhei uma irmã que se importa
comigo.
— A puta que abre as pernas para o traficantezinho de merda? Esse é o
seu grande plano? Ser a prostituta de um deles também? — Enquanto apertava a
parte de trás do meu pescoço, o olhar de Bryan era apavorante. — Se quiser ir,
vá sozinha, mas o meu filho não vai ser bandido. Experimente afastá-lo de mim
e sofrerá as consequências. Sumo com o moleque e quem não voltará a colocar
os olhos em nenhum dos dois é você.
Gelei por dentro, petrificada. Aquela criança era tudo que tinha, toda a
minha esperança, a única razão para não desistir. A primeira pessoa a ter meu
sangue correndo nas veias. Ficar sem o meu pequeno Romeo me destruiria
completamente e Bryan sabia disso.
Pensei em fugir antes que ele cumprisse a ameaça, mas não possuía
dinheiro guardado, previsão de conseguir um emprego ou condições de pagar
uma babá, caso milagrosamente arranjasse algo.
Foi o momento em que mais me senti impotente na vida. E doeu como o
inferno.
A contragosto, os soluços aumentaram. Bryan me soltou, passou as mãos
pelos cabelos em um claro sinal de descontrole e sentou-se ao meu lado. Por
mais que ser tocada por ele fosse uma ideia repugnante, não encontrei forças
para me afastar. De que adiantaria? O homem me alcançaria de um jeito ou de
outro no final das contas.
— Não gosto de fazer ou dizer essas coisas para você, mas seu
comportamento continua a me desagradar, por mais que eu a tenha alertado. Eu
te amo, por isso sinto tanto ciúmes, por medo de te perder. Ciúmes é a prova do
meu amor. — Repousou a mão na minha perna e eu estremeci de repulsa. —
Não volte a falar em me deixar, porque isso me tira do sério. Em três meses o
nosso menino nasce e seremos uma família completa. — Alisou minha barriga.
— Faremos um trato, sim? Prometo manter meu temperamento forte sob
controle e você passa a se comportar como uma mulher de respeito,
comprometida e futura mãe. Posso contar com a sua colaboração?
Meu medo nunca foi tão intenso quanto naquele instante. Só um
psicopata bateria em alguém até tirar sangue para, minutos depois, fazer
declarações de amor. Como pude ser enganada por tanto tempo? Por que não
percebi a verdadeira face dele nos primeiros meses de namoro? Será que, de
alguma maneira, fui a responsável por despertar o lado agressivo de Bryan?
Todas as outras pessoas que faziam parte da vida dele recebiam um tratamento
cordial, respeitoso e extremamente amigável. Ninguém acreditaria que o mesmo
homem que era capaz de divertir um grupo com histórias engraçadas, dentro de
quatro paredes usava o punho na companheira grávida.
Talvez, involuntariamente, eu o provocasse. Se fosse cuidadosa nas
próximas vezes que saíssemos de casa, as crises de ciúmes não voltariam a
acontecer.
— Posso ou não contar com seu apoio, Eveline? — insistiu após meu
silêncio.
Emocional, psicológica e fisicamente destruída para lutar contra ele,
limitei-me a assentir.
Acariciei o ventre.
É por você, meu amor. É por você.


Atualmente, Naperville

Despertei molhada de suor, o corpo trêmulo e a respiração acelerada.
Momentaneamente desorientada, demoraram alguns segundos para que me desse
conta que estava na minha casa, deitada na minha cama, dormindo com meu
filho ao lado. Era a nossa terceira noite ali e Romeo se encontrava manhoso,
confuso com tantas mudanças em pouco tempo.
Levantei com cuidado para não o acordar e fui até a cozinha. A água
gelada aplacou a sensação de secura na garganta e segui até o banheiro.
Enquanto o jato morno caía na minha cabeça, esforcei-me para relaxar, entender
que havia sido somente um pesadelo e repetir para mim mesma que estávamos a
quilômetros de distância dele.
No dia seguinte à segunda vez que Bryan levantou a mão para mim,
liguei para Miranda e marcamos um encontro. Contar a verdade à minha melhor
amiga foi difícil e humilhante. Senti-me absolutamente envergonhada,
fracassada, derrotada.
Vi o choque e pavor nos olhos castanhos, seguidos pela incredulidade e
ódio. Ela me abraçou, choramos juntas e, ao final, mandou que eu arrumasse as
malas e fosse viver em sua casa. Recusei, apavorada demais com as ameaças de
Bryan.
Miranda, então, ofereceu dinheiro, uma quantia suficiente para eu
desaparecer. Desejei, com todo o coração, ter sido forte o suficiente para ter
aceitado aquela proposta. Mas, para ser honesta, àquele ponto Bryan tinha
conseguido entrar na minha mente, fazendo-me duvidar de mim, do meu valor,
força de vontade e capacidade. Apesar de tudo, causava-me pânico a
possibilidade de entrar em trabalho de parto sozinha, longe de todos. Se
acontecesse algo comigo, meu bebê seria enviado aos cuidados do estado, do
mesmo modo que eu fui. E compreendia perfeitamente as implicações de crescer
órfã, desprovida de família, amor e proteção.
Hoje eu sabia que havia desabafado com Miranda não para ela me
apontar saídas, mas em busca de um ombro amigo, de uma confirmação que
alguém se importava. Entretanto, como a maioria das pessoas que não conhecia
um relacionamento abusivo e suas consequências na pele, ela não recebeu bem a
minha recusa e proferiu palavras que machucaram:
— Estou te dando opções aqui, caralho! Que merda você está fazendo
com a sua vida, Eveline? Por acaso gosta de apanhar? Por isso quer continuar
nesse relacionamento doentio?
Incapaz de aguentar mais aquele golpe, quis feri-la igualmente, descontar
a minha raiva em alguém.
— Pelo menos eu não sou a mulher de um traficante, vivendo de
dinheiro sujo de sangue, que precisa de um guarda-costas cada vez que coloca
os pés na rua!
E tudo só piorou. Trocamos ofensas, dissemos coisas horríveis uma para
a outra e saímos chorando, magoadas e jurando um rompimento definitivo da
amizade.
Hoje eu não a culpava, até conseguia compreendê-la. Miranda não podia
saber como eu estava destruída por dentro, o quão profundamente Bryan afetara
meu psicológico. Eu continuava respirando, o cérebro funcionava, o coração
bombeava sangue, meus órgãos trabalhavam em perfeita harmonia, carregava
uma vida no meu ventre, mas, por dentro, estava morta.
Bryan me matou.
E apenas meu filho conseguiu me trazer de volta à vida.
Enrolada em uma toalha, voltei à cozinha e comecei a preparar o
desjejum. Eram cinco e quarenta da manhã, mas não conseguiria voltar a dormir.
Durante as duas horas seguintes, trabalhei um pouco, comi, vesti-me e apliquei
uma leve camada de maquiagem para disfarçar as olheiras. Em seguida, acordei
Romeo e o arrumei para ir à creche.
Lucy digitou o código de segurança e aguardou o portão abrir para
estacionar o carro na garagem da LTM. Íamos juntas ao trabalho a pedido de
Luke e, embora eu acreditasse ser uma medida exagerada uma vez que nada de
suspeito havia acontecido nos últimos dias, não podia negar que a carona era
bem mais confortável do que utilizar o transporte público.
— Se programe, a nossa noite das garotas acontecerá na sexta —
anunciou Lucy, manobrando o carro na vaga. Diante do meu silêncio, fui
analisada minuciosamente pelos olhos perspicazes. — Posso ver, pela sua
expressão, que está pensando em dar para trás, mas não ouse! Amanda e eu
contamos com você.
— Tenho escolha? — resmunguei, ajeitando a bolsa no ombro, e saí do
veículo.
Perdi a linha de raciocínio com a repentina aparição de Luke. Ele
caminhava rapidamente, as chaves do carro em uma mão, a outra segurando o
celular no ouvido, concentrado em uma conversa aparentemente desagradável.
As mãos ficaram ligeiramente úmidas e as batidas do coração aceleraram. Eu
odiava as minhas reações a ele.
Ao perceber nossa presença, cumprimentou-nos com um breve aceno de
cabeça e seguiu até a picape prata, dando partida logo em seguida.
A lembrança da última vez que conversamos a sós, no corredor de casa,
permanecia viva e pulsante. Desde então, Luke não voltou a se aproximar de
mim, principalmente na empresa, limitando-se a me cumprimentar
educadamente e comportando-se de maneira adequada na reunião de ontem.
“Mas se eu perceber que é recíproco, que também sente todo esse tesão,
que me deseja, vou querer continuar o que começamos naquele banheiro. Me dê
os sinais certos. Me dê uma palavra. Apenas uma.”
Eu sentia? Eu o desejava?
Razão e emoção duelavam sem descanso. Apesar de nunca ter me sentido
mais excitada do que quando nos beijamos, racionalmente eu sabia que não
estava preparada para arriscar, o pesadelo daquela madrugada evidenciou a
questão. Por outro lado, Lucas Hayes despertou em mim uma curiosidade
genuína, uma vontade de me certificar se tudo não passou do efeito do
afrodisíaco. E, por mais que eu tentasse reprimir tais desejos, eles rondavam o
tempo inteiro, atiçando, pondo lenha na fogueira.
Ele deixou o seu posicionamento claro e recuou, esperando a minha
reação. E eu sabia que se não tocasse no assunto novamente, Luke também não o
traria à tona. Não duvidei, nem por um segundo, que ele dizia a verdade ao
garantir que jamais forçaria uma aproximação. Então, o que aconteceria — ou
não aconteceria — dependia exclusivamente de mim.
Caso alguma coisa, de fato, ocorresse entre nós, hipoteticamente falando,
eu estaria preparada para o sexo casual? Transar com um homem sem envolver
sentimento, intimidade, uma ligação mais forte?
Além disso, havia outros problemas a serem analisados e o principal
deles era Romeo. Eu era mulher, mas também era mãe e precisava pensar no que
seria melhor para o meu filho, já que todas as minhas decisões o afetavam
diretamente. Colocar um homem praticamente desconhecido no convívio dele
não estava nos meus planos. Romeo tinha sofrido demais, presenciando
inúmeras brigas e demonstrações de violência em seus curtos três anos de vida.
E, a despeito da minha crença de que Luke era diferente de Bryan, levando em
consideração sua relação com a mãe, irmã, amigos e funcionários, quando um
filho entrava na equação, eu não colocaria minha mão no fogo uma segunda vez.
Por fim, havia a relação profissional. Luke era um dos meus chefes e isso
o colocava, automaticamente, em uma posição superior na empresa. Aprendi na
universidade que não era uma boa ideia relacionar-se amorosamente com
pessoas que estavam hierarquicamente acima de nós, pois se desse merda, a
corda quebraria para o lado mais fraco. Naquele caso em especial, para o meu
lado. E eu estava gostando muito do meu trabalho, da independência financeira,
de ter condições de pagar o meu próprio aluguel para arriscar tudo por um
homem que poderia tirar todas essas conquistas de mim em um estalar de dedos.
— Acho que você precisa dessa noite tanto quanto eu. — A voz de Lucy
me trouxe à realidade.
— Posso perguntar por quê? — Arqueei uma sobrancelha.
— Um e oitenta de altura, musculoso, tatuado, um pouco mal-humorado.
Quatro letras. Luke.
— Vai continuar insistindo nisso? — Desviei o olhar, sentindo as
bochechas esquentarem.
— Não posso ficar calada quando vejo duas pessoas claramente atraídas
perdendo um tempo precioso. Está na cara que vocês se desejam. Falta o que
para fazerem acontecer?
— Pare com isso, Lucy! — pedi, ainda mais envergonhada. — Sua
imaginação é muito fértil.
— Você finge que fala a verdade e eu finjo que acredito, Eve. Esqueceu
que peguei os dois em uma posição bastante comprometedora no corredor da sua
casa? Se eu demorasse mais um minuto, tenho certeza de que vocês teriam se
atracado lá mesmo.
— Estávamos apenas conversando, já te disse isso.
Apressei o passo, louca para entrar no prédio e me livrar do
interrogatório.
— Tudo bem então. Já que não há nada rolando entre vocês, quem sabe a
senhorita encontra seu príncipe encantando na nossa noite? — brincou.
— Oh, querida, há muito tempo eu parei de acreditar em conto de fadas.
CAPÍTULO 11
Quem é Ele?


Durante a minha vida, aprendi a confiar nos meus instintos. E, desde o
início, eles alertaram para não aceitarmos o trabalho com George Thompson,
prefeito de Naperville.
Mas como em uma sociedade não se pode tomar decisões sozinho, fui
voto vencido e agora me encontrava em uma tensão do caralho porque a
patricinha mimada do filho da puta resolveu ser uma adolescente de merda e
fugir de um funcionário nosso. Macey era um bom profissional, bem treinado,
bem recomendado e eu não entendia como pôde ter sido enganado por uma
garota de quinze anos e o seu namorado imbecil.
Mesmo confiando que Ashley Thompson não seria tola o suficiente para
se colocar em uma posição de risco sabendo quem ameaçava sua vida,
mandamos instalar um rastreador que ela levava no pescoço todos os dias sem
saber, na forma de um colar, herança da mãe falecida.
Aparentemente, subestimei o nível de imbecilidade que alguém de quinze
anos pode atingir.
O programa de rastreamento indicava que os dois haviam parado há
pouco tempo em um bairro periférico da cidade, marcado por pequenos
apartamentos descuidados e pontos de vendas de drogas. O que os idiotas foram
fazer lá estava além da minha capacidade de compreensão. Pisei fundo no
acelerador, esperando fazer o caminho na metade do tempo, na tentativa de que
aquela fuga não chegasse aos ouvidos do pai dela antes que os encontrássemos,
ou teríamos que ouvir uma lição de moral interminável do prefeito e eu não
estava com humor para aquilo.
Os últimos dias foram estressantes, trabalhosos e desgastantes. Só
frequentava a minha casa para dormir e, ocasionalmente, tomar banho. Além
disso, estava sendo difícil não tomar nenhuma atitude em relação à Eveline.
Se eu não fosse tão cético, acreditaria que a mulher me jogou uma praga,
um feitiço, ou qualquer merda parecida, pois não saía da minha cabeça. Depois
daquele maldito sábado, Eveline parecia ter se instalado sob a minha pele e nada
que eu fizesse conseguia tirá-la de lá. As lembranças dos minutos que ficamos
tão colados, o sabor do seu beijo, o cheiro da pele, a temperatura da boceta se
esfregando no meu pau eram torturantes.
Mas eu reconhecia uma mulher fechada quando via uma. E Eveline
estava além de fechada. Alguém a tinha magoado, colocado a tristeza e
desconfiança nos belos olhos azuis, algum filho da puta estava impedindo-a de
tentar qualquer coisa. Por mais que a quisesse, por mais que a desejasse como
nunca desejei outra mulher, não iria forçar a barra e colocá-la em uma situação
difícil no trabalho, porque era nítido como voltar à ativa, profissionalmente,
havia feito bem a ela.
Então, fiz a única coisa ao meu alcance e abri o jogo, coloquei as cartas
na mesa, confessei como me sentia e uma parte do que gostaria de fazer com ela.
Agora a decisão cabia inteiramente a Eveline. Continuava não sendo atraente a
ideia de transar com uma funcionária por todas as possíveis implicações que uma
relação do tipo poderia trazer. Tinha certeza que ouviria um monte de merda,
especialmente de Matt, que aproveitaria a situação e encheria a porra do meu
saco para o resto da vida. Mas eu estava disposto a ouvir quantas gozações
fossem necessárias, desde que a minha gozação tivesse endereço certo.
Nela.
Estacionei, brecando os pneus, e desci do carro usando todo meu
autocontrole, porque se ouvisse qualquer gracinha do namorado imbecil seria
difícil impedir o meu punho de encontrar o nariz do moleque. Eles estavam em
um conjunto de apartamentos baratos que há muito não via uma pintura ou
reparos na estrutura. Conforme adentrava o local, recebi uns olhares de
estranhamento dos habitantes, contudo, minha expressão de poucos amigos
devia tê-los alertados para manter a porra da distância, motivo pelo qual fiz o
caminho sem nenhuma interrupção.
Os quatro apartamentos do primeiro andar estavam vazios, então subi
para o segundo. A raiva crescia à medida que eu checava um por um. Tinha me
transformado na porra de uma babá. Travei o maxilar, puto e alimentando o
desejo de socar meus dois sócios. Da próxima vez, eles que se resolvessem com
a princesinha de Naperville.
No último apartamento do andar ouvi vozes baixas, sussurros e risinhos.
Quem naquele bairro, além dos dois imbecis, estaria às nove da manhã perdendo
tempo com aquele tipo de coisa? A porta velha cedeu ao primeiro empurrão e fui
recebido pelo grito histérico de Ashley, que aproveitou a oportunidade para
cobrir os seios com os braços.
Encarando diretamente o garoto, a paciência por um triz, acusei:
— Foi por isso que colocou a vida dela em risco, idiota de merda? Por
uma foda matinal?
— O que você está fazendo aqui? — questionou ela, virando-se de costas
para vestir a blusa às pressas. — Eu já disse que não preciso de babá! E não
culpe o Jimmy, eu vim porque quis e não porque alguém me influenciou!
— Vocês têm um minuto para se vestir. Caso contrário, vou arrastar cada
um do jeito que estiverem até meu carro — avisei, sem desviar os olhos dos
dele.
— Não vou voltar com você! Nós vamos fugir e começar uma vida longe
de toda essa palhaçada!
Mentalmente, contei até dez e a encarei pela primeira vez.
— Escute, garota, você não vai querer testar a minha paciência. Não
hoje.
Ashley abriu a boca para discutir, mas o tal Jimmy tocou em seu braço,
chamando a atenção dela.
— Vamos, Ash. Depois nós conversamos.
— Mas…
— Faça o que estou pedindo, gatinha.
Senti-me um pouco menos irritado com o idiota. Parecia que sabia o
quão perto meu punho estava do seu nariz. Os dois me acompanharam até o
carro, ambos calados. O caminho até a LTM foi feito em um tenso silêncio,
quebrado somente quando liguei para avisar que a situação estava sob controle.
Sentada atrás da sua mesa, Amanda entregava alguns papéis para
Eveline. Ficaram caladas ao perceberem nossa entrada. Ashley, parecendo criar
coragem ao avistar duas figuras femininas, estufou o peito e me encarou,
questionando em desafio:
— Como nos achou?
— Para a sua sorte, tenho os meus métodos. Se você for a garota esperta
que pensa ser, fique grata por isso e não repita tamanha estupidez — respondi,
preparando-me para subir as escadas e permanecer isolado na minha sala por
alguns minutos.
— Toda essa situação é uma estupidez! — Alterou o tom de voz. —
Tenho quase dezesseis anos, há muito tempo deixei de precisar de uma babá
atrás de mim, para cima e para baixo. Você faz ideia do quanto isso é
embaraçoso? As pessoas me olham, riem e cochicham como se eu fosse uma
aberração! Tenho vontade de morrer todos os dias quando chego na escola com
um troglodita atrás de mim!
Sentindo a impaciência chacoalhar cada osso do meu corpo, subi as
escadas e caminhei até o cofre. Após digitar a senha, peguei o envelope e desci
outra vez, calando as conversas iniciadas pela minha saída. Todos me olhavam
em expectativa.
Tirando três fotos do papel, parei ao lado da mesa de Amanda, onde o
casal imbecil se encontrava.
— Lindsay Moore, estuprada e morta por asfixia, única e exclusivamente
por estar saindo com o chefe da gangue rival. — Joguei a imagem da mulher
morta na superfície de madeira. — Peter Bosh, espancado até a morte e
esquartejado, tornando impossível juntar os pedaços. — A foto foi jogada ao
lado da primeira. — Christopher Malory, torturado, espancado, teve as unhas e
dentes arrancados. E, para dar um recado sobre o que aconteceria a um xis-nove,
eles arrancaram a sua língua. Tudo isso enquanto estava vivo. — Atirei a última
imagem.
Ashley olhava as fotografias em estado de choque. As mãos cobriram a
boca no instante em que o primeiro soluço horrorizado escapava da sua boca.
Jimmy havia empalidecido a ponto de poder se passar por um boneco de cera, os
olhos praticamente saindo de órbita. Ótimo, era para estarem assustados mesmo.
— São essas pessoas que vocês estão subestimando. São desses bandidos
que os trogloditas estão tentando te manter afastada. Foi para isso que o seu pai
nos contratou. — Apoiei as duas mãos na mesa, alternando o olhar sério entre os
dois adolescentes para que compreendessem que não se tratava de uma
brincadeira. — Então, antes de pensar em fugir para qualquer lugar de merda
achando que vai viver a porra de um conto de fadas, desça do pedestal que te
colocaram e encare a realidade, menina. Você não quer uma babá na mesma
intensidade que nós não temos interesse em ser uma. Por isso, vou avisar pela
última vez, ou você leva esse caralho a sério e segue à risca o plano que
montamos, facilitando o nosso trabalho de te mandar a salvo, ou vamos largar o
caso sem qualquer remorso, porque ninguém aqui vai perder tempo tentando
proteger uma garota mimada que não quer ser protegida.
Antes de me afastar definitivamente, vi Ashley inclinar o corpo para a
frente e vomitar.
CAPÍTULO 12
Tragédia Anunciada

No momento em que descemos do UBER, tive a sensação de que aquela


era uma péssima ideia. O estacionamento do lugar estava lotado de carros, fato
que achei um pouco preocupante, porque significava que grande parte das
pessoas pretendiam voltar dirigindo para casa depois de encherem a cara na
balada. As luzes neon da fachada, piscando o nome “Saddle's”
ininterruptamente, me deixou meio zonza.
— Prontas, meninas? — perguntou Lucy, toda animada.
— Pronta, animada e ansiosa — Amanda respondeu, ajeitando o
generoso decote do vestido vermelho.
Decidi ficar calada, pois o que gostaria de falar não seria bem recebido
por nenhuma das duas e, francamente, não estava a fim de ser a amiga chata,
estraga-prazer. Já que fui arrastada até ali, tentaria aproveitar da melhor maneira
possível.
Miranda era baladeira e conseguiu me levar a algumas festas, porém,
para ser honesta, elas nunca me impressionaram muito. Eu até me divertia,
dançava, vez ou outra conhecia pessoas bacanas, mas em uma hora já sentia os
pés doerem. O gosto do álcool nunca me agradou — com exceção de uma taça
de vinho esporádica durante o jantar —, tampouco a sensação de perder o
controle sobre o corpo provocada por ele. Não me envergonhava em dizer que
era do tipo de pessoa que já chegava nas baladas procurando um lugar para
sentar. Podia ouvir perfeitamente a acusação indignada da minha melhor amiga,
“Você é a maior chata! Corpinho de dezoito e animação de oitenta!”.
Apesar do tamanho considerável, a fila diminuía rapidamente, de
maneira que não gastamos muito tempo de pé esperando para entrar. O interior
do local era abafado, a iluminação típica de boate. Estreitei os olhos, as luzes
dançando na minha frente, a alta batida da música eletrônica parecendo ecoar
nos meus ouvidos e coração.
Era um tuntz, tuntz, tuntz constante.
Havia poucas pessoas na pista de dança, a maioria estava nas mesas
espalhadas e no balcão do bar, conversando e bebendo.
Lucy, caminhando entre Amanda e eu, nos puxou para perto e gritou para
ser ouvida:
— Vamos dar uma volta e pegar alguma coisa para beber!
Meia hora depois, as duas com drinques coloridos nas mãos e eu com a
minha garrafinha de água com gás, estávamos sentadas em uma das mesas
conversando — ou tentando conversar —, enquanto a pista de dança começava a
ficar abarrotada de gente. Eu já não ouvia direito por conta da música
excessivamente alta e pelas ocasionais vozes de Amanda e Lucy na minha
orelha.
Percebi que a maior parte dos presentes devia estar entre os dezoito e
vinte e um anos. Com vinte e seis, me senti velha. Sorrindo daquilo, notei três
homens virem na nossa direção. Discretamente, dei uma cotovelada em Lucy e
apontei com a cabeça para eles.
— Boa noite — o que estava no meio cumprimentou, aumentando a voz
para que ouvíssemos. — Eu e os meus amigos aqui gostaríamos de nos juntar a
vocês, se não houver problemas.
Amanda sorriu, encantada, e Lucy me olhou rapidamente, como a pedir
permissão para dizer sim. Dei de ombros, deixando a decisão para ela, a mais
interessada naquela noite. Abrindo um sorriso cheio de promessas para o
moreno, assentiu e deu espaço para eles. Alternaram nos assentos, de maneira
que ficasse um homem, uma mulher.
Fiquei um tanto incomodada quando o loiro se aproximou para iniciar
uma conversa, mas me forcei a relaxar, dizendo a mim mesma que estava em um
lugar cheio de pessoas, onde havia seguranças circulando e nada de ruim
aconteceria.
A conversa não fluía, era difícil manter um diálogo com a música
querendo estourar os tímpanos. Não entrava na minha cabeça como alguém
podia acreditar que aquele ambiente era adequado para bater um papo e conhecer
pessoas interessantes. De acordo com o que entendi, seu nome era Marcus,
morava em Chicago, engenheiro recém-formado. Ele parecia ser um cara legal,
mas não despertou o menor interesse em mim. Como avisei às meninas, não
procurava pegação ou relacionamentos.
As duas garrafas de água fizeram efeito, então pedi licença para ir ao
banheiro. Percebi, dando risada, que Amanda e Lucy estavam muito entretidas
para me acompanhar. O caminho até lá pareceu demorar uma eternidade, uma
vez que precisei parar de cinco em cinco segundos e pedir licença a alguém. O
local estava lotado, uma verdadeira loucura. A multidão causou uma sensação de
sufocamento. Esperei uns bons minutos na fila e, assim que fiz o caminho de
volta para a mesa, era como se eu tivesse corrido uma maratona.
O vestido preto, antes soltinho no corpo, agora se colava a mim por causa
do suor, o cabelo parecia ter recebido um litro de óleo. Antes de voltar a sentar,
encostei no balcão e pedi mais uma água, dando-me conta de que, se não
tomasse cuidado, iria ficar naquele ciclo vicioso durante toda a noite: beber
água, atravessar toda a multidão para ir até o banheiro, fazer xixi e, quando
retornasse, já estaria com sede outra vez.
— Onde está Lucy? — perguntei a Amanda, acomodando-me ao seu
lado.
— Foi dançar com o bonitão — gritou de volta, sorrindo.
Marcus, ao notar o meu retorno, veio até a nossa mesa e me convidou
para dançar. Recusei educadamente. Percebendo que não conseguiria nada
comigo, beijou a minha mão, disse que foi um prazer me conhecer e pediu
licença para conversar com outras mulheres. Suspirei extremamente aliviada.
Miranda estava correta, eu tinha mesmo a disposição de uma senhora de
oitenta anos debilitada. Chegamos há uma hora e já queria ir para casa, exausta e
entediada. E, sendo honesta, a minha cabeça começava a doer por conta do
barulho infernal.
Naquele momento, cheguei à conclusão de que, aos vinte e seis anos de
idade, eu tinha me aposentado oficialmente das baladas.
Distraída, passei os olhos na pista de dança e vi Lucy com o moreno,
dançando com os corpos juntos, ele por trás enquanto ela balançava a cintura de
um lado para o outro. Os cabelos castanhos cobriam parcialmente o rosto bonito,
mas não foram capazes de esconder o sorriso dela. Senti-me incomodada pela
forma como o homem passava as mãos nela.
— Quanto Lucy bebeu? — indaguei, sem tirar os olhos dos dois.
— Não muito, mas foi em um curto espaço de tempo. Um atrás do outro.
— Sei que ela queria se divertir, mas você não acha que o cara está se
aproveitando?
Amanda analisou o que eu disse em silêncio e sua boca desceu em uma
expressão de desgosto. Em seguida, me puxou pelo braço e começamos a abrir
caminho até os dois, tarefa dificílima. Recebi uns empurrões, cotoveladas e
pisões nos pés.
— Com licença — falou, entrando no meio deles e puxando Lucy para
que falássemos em privacidade. — Está tudo bem, garota? Você parece um
pouco alterada.
— Estou bem! — Lucy respondeu alvoroçada, sem parar de dançar. —
Vocês viram só que homem gostoso? Meu Deus! — Gargalhou, abanando-se de
forma exagerada.
— Lucy, o cara está quase tirando o seu vestido em público. Talvez seja
bom dar um tempo, beber água, se recompor — opinei.
Ela me encarou irritada, o cenho franzido.
— Nossa, como vocês duas são chatas! Eu vim aqui para me divertir e é
isso que estou fazendo! Deveriam seguir meu exemplo, faz bem, sabe? —
Afastou-se, indo novamente para os braços do moreno, que não parava de olhá-
la de forma indecente.
Amanda e eu fomos até o balcão, mais próximo à pista de dança, e um
clima de tensão tomou conta de nós duas. Vinte minutos depois, meu desespero
já atingia um nível alarmante. Lucy ingeriu uma bebida atrás da outra e a dança,
antes já inadequada, agora era praticamente um pornô. Os dois eram a atração
principal.
Incentivada pela pequena plateia que aumentava de tamanho com
rapidez, ela subiu em um mini palco que decorava o centro do local.
— Isso não vai dar certo — falei apreensiva, tendo um prelúdio da
tragédia.
— Ligue para Luke — Amanda sugeriu.
— Não tenho celular, nem o número dele.
— Aqui, use o meu. — Entregou-me o aparelho. — Vá para um lugar
menos barulhento e fale com ele, explique o que está acontecendo. Eu vou ficar
aqui, me sinto mais preparada para intervir de forma direta se for preciso.
Em silêncio, agarrei o aparelho e novamente fiz o caminho até o
banheiro. Fechei a porta, o ouvido zunindo no ambiente fechado, e desbloqueei a
tela. Procurei o contato de Luke e liguei. Chamou até cair na caixa de
mensagem. Tentei outras três vezes, sem sucesso. Frustrada, finalizei a chamada.
Minha segunda opção foi Tyler. Certamente ele saberia entrar em contato com o
amigo e, caso não conseguisse, poderia vir pessoalmente. Daquela vez, nem
sequer chamou, estava desligado.
Fechei os olhos, massageando as têmporas, a dor de cabeça aumentando
ao me dar conta de que precisaria ligar para a última pessoa indicada, Matthew.
Lucy iria me matar e talvez até não falasse mais comigo, mas eu não tinha
alternativa. A situação lá fora estava se encaminhando para um verdadeiro
desastre.
Matt atendeu no quarto toque, a voz baixa e rouca de sono.
— Matt, é Eveline. Temos uma situação aqui, preciso que venha nos
ajudar.
— Por que você está gritando?
Estou?
— Provavelmente meu ouvido está no ritmo da música e não tenho ideia
se estou gritando ou não. Mas é sério! — Expliquei a situação.
Após um momento de silêncio, ele praguejou:
— Caralho, essa mulher vai acabar com a minha vida!
— Você vem ou não? — pressionei.
— Onde vocês estão?
Passei o nome e endereço. Ele disse que chegaria em trinta minutos.
Chegou em vinte.
Esperei-o na entrada da boate e andamos em silêncio até a pista de dança.
Amanda estava no mesmo lugar, encostada ao balcão, os braços cruzados,
vigiando Lucy.
Nervosa e impotente, observei o rosto de Matt adquirir uma coloração
avermelhada ao se deparar com Lucy dançando em cima do palco, o moreno —
que até agora eu não sabia o nome —, agarrando-a e beijando-a, parecendo que
transariam bem ali, diante de todos. O loiro caminhou a passos largos até o casal
e puxou-a pelo braço, separando-a dele.
Observei os olhos de Lucy aumentarem de tamanho ao se dar conta de
quem estava na frente dela. Os dois conversaram, em seguida iniciaram uma
discussão acalorada. Tudo foi para o inferno quando o moreno entrou no meio e
empurrou o peito de Matt.
Matt o empurrou de volta. Lucy gritou, tentando separá-los. Matt gritou
também. O moreno deu um soco no queixo dele. Matt o derrubou no chão e
devolveu o murro com juros. Lucy começou a chorar. As pessoas abriram uma
roda, isolando-os em uma área da boate, facilitando para os seguranças
chegarem até eles e separarem a briga.
Fomos expulsos do lugar e avisados para não voltarmos lá.
Os quarenta minutos até Naperville foram uma prova de resistência
emocional. Lucy chorava, a cabeça apoiada em meu ombro, enquanto eu tentava
acalmá-la, abraçando-a de lado. Amanda, por sua vez, foi no banco de frente,
fazendo suas próprias tentativas de abrandar um Matt enfurecido.
A sensação de culpa por ter ligado para ele me engolfou. Tive vontade de
chorar. Mas fiquei amedrontada que algo pior acontecesse, algo do qual uma
Lucy sóbria se arrependeria para o resto da vida.
Amanda foi a primeira a ficar em casa. Sem a presença apaziguadora
dela, tudo piorou.
— Você é um idiota, Matt — disse Lucy entre soluços.
— Agora não, Lucy — ele alertou, as mãos fechadas no volante com
força.
— Agora não o caralho! Você não tinha o direito de destruir a minha
noite daquele jeito… Me humilhar!
— Shh, tranquila, querida. — Apertei a mão dela, desejando que se
calasse até chegarmos na minha casa.
— Eu te humilhei? Você não precisou de mim para isso, fez um excelente
trabalho sozinha.
— Matt, por favor — intercedi, sabendo que não era o melhor momento
para aquela conversa. Todo mundo tinha os nervos à flor da pele.
— Eu estou na minha, Eveline. Faça a sua amiga se calar, não vou aturar
provocações hoje.
Alisei os cabelos dela, fazendo uma prece silenciosa para chegarmos em
casa logo.
— Por que você faz essas coisas? Por que sempre tem que estragar a
minha vida? Eu só estava me divertindo.
— O cara estava quase transando com você na frente de quem quisesse
ver, Lucy! Essa é a sua definição de diversão? — Matt alterou a voz.
— Pelo menos ele me queria!
Jesus!
O carro parou e eu quase me ajoelhei, aliviada. Lucy estava muito
bêbada, quase não tinha controle das pernas, de maneira que encontrei
dificuldades para ajudá-la a descer do veículo. Percebendo a situação, Matt
caminhou até nós e a pegou no colo sem nenhum esforço, seguindo em direção à
casa, enquanto eu, com as mãos trêmulas, procurava as chaves na bolsa.
— Não precisava ter batido nele — ela afirmou, apoiando a cabeça no
ombro dele.
— Ele deu o primeiro soco, Lucy. Eu não ia apanhar de nenhum filho da
puta. Se você tivesse vindo comigo quando chamei, nada daquilo teria
acontecido.
— Eu não tenho obrigação de ir com você a lugar nenhum. — A voz dela
estava embolada.
Apressei-me em abrir a porta. Quanto antes entrássemos, mais rápido a
noite desastrosa findaria.
Contrariando toda a irritação que demonstrou desde o meu telefonema,
Matt a depositou no sofá com cuidado, ajoelhando-se em frente a ela.
Encarando-a de perto, disse:
— Se você estivesse sóbria e desejando aquilo conscientemente, eu não
me meteria, teria dado as costas e ido embora. Mas o cara estava te tratando
como uma qualquer, sem nenhum respeito, mesmo estando claro seu estado de
embriaguez. E você permitiu.
— Você também me tratou como uma qualquer.
— As coisas não são assim, você sabe. — Desviando os olhos para o
lado, Matt parecia constrangido.
— Você fez pior do que ele, sabe? Tenho vinte e três anos, sou adulta e
dona do meu próprio nariz. O corpo é meu e eu faço o que quiser com ele! Posso
transar onde quiser, com quem quiser!
Matt levantou-se, assumindo outra vez a expressão de descontentamento.
— Anunciar aos quatro ventos que é adulta e o caralho a quatro não faz
de você uma mulher madura. Não quando entra em contradição e, em seguida,
age feito uma adolescente mimada que não consegue o que quer. Talvez tenha
sido melhor as coisas entre nós terem terminado antes de começar. Se em algum
momento eu decidir sossegar, assumir um relacionamento sério, preciso de uma
mulher de verdade ao meu lado, não uma menina brincando de ser gente grande.
Meu estômago contorceu em agonia ao ver como as palavras dele
atingiram Lucy. Ela ficou pálida, olhando-o como se Matt tivesse acabado de
enfiar uma estaca diretamente em seu coração.
Desejei dizer uns desaforos para ele ou colocá-lo para fora de casa, mas o
homem não me deu tempo, dirigindo-se para a porta da rua em rápidas passadas.
Lucy voltou a chorar, dobrando os joelhos até alcançarem o peito.
E eu fiquei em pé no meio da sala, desnorteada, a bolsa em uma mão, as
chaves na outra, perguntando-me como uma noite que era para ser divertida
tinha se transformado naquela tragédia.
CAPÍTULO 13
Fogo e Gasolina

Saí do banheiro enxugando o excesso de água do cabelo com a toalha,


sentindo-me dez anos mais jovem. A noite havia sido um verdadeiro desastre,
pior do que qualquer cenário hipotético formado pela minha mente precavida e
levemente paranoica.
Lucy chorou até a exaustão, depois vomitou. Somente uma hora mais
tarde, após dar banho nela e enfiar um remédio para enjoo goela abaixo,
consegui deitá-la em minha cama. O coração doía ao lembrar a dor estampada no
seu rosto no instante em que Matt proferiu aquelas palavras, enfiando o dedo em
uma ferida aberta, ainda que Lucy não admitisse.
Compreendia o nervosismo dele, de verdade. Afinal, o homem foi tirado
da sua casa no meio da madrugada, despencou-se para outra cidade, entrou em
uma briga e precisou ouvir as reclamações de Lucy durante o caminho de volta
para casa. Entretanto, nenhum desconforto no mundo justificava magoar alguém
daquele jeito. Principalmente se a pessoa em questão nutrisse sentimentos mal
resolvidos por você.
Parei o processo de encher o copo com água ao ouvir o toque de um
celular. Fui até a sala, guiando-me pelo barulho agudo, percorrendo todo o
cômodo com olhos atentos. O aparelho de Lucy estava quase escondido pelo
carpete, próximo ao sofá. Devia ter caído em algum momento e, diante da
confusão, não nos demos conta. Atendi imediatamente, após ver o nome "Luke"
no visor.
— Oi.
— Eveline, estou na porta da sua casa, você pode me deixar entrar?
A crua preocupação na voz dele tornou insignificante a minha
preocupação com a curta camisola que vestia. Eu sabia como a família era
importante para Luke e a agonia que ele deveria estar vivendo por conta da irmã.
— Estou indo. — Finalizei a chamada, tentando fazer meu coração voltar
ao ritmo normal.
Destranquei a porta e digitei o código de segurança quando ela foi aberta.
Luke estava, de fato, desorientado, os olhos inchados e as roupas amassadas
denunciando que despertara e saíra da cama às pressas. Com o maxilar tenso,
inspecionou rapidamente da sala e, finalmente, os olhos pousaram em mim.
— Cadê ela? Vocês estão bem? — perguntou.
— Dormindo no meu quarto. — Levemente constrangida, dei espaço e
ele entrou, as mãos enfiadas no bolso da calça jeans.
— Eu apaguei, não ouvi o celular tocar. Não tenho tido muitas horas de
sono ultimamente. Peguei as chamadas perdidas de Amanda e Matt ao levantar
para usar o banheiro. O cara estava tão transtornado no telefone que não
consegui entender o que aconteceu.
Depois de fechar a porta, sentei no sofá, exausta física e emocionalmente.
Relatei a ele de maneira coerente o que houve, omitindo propositalmente a
última discussão entre Lucy e Matt.
— Caralho! — Passou a mão pelos cabelos curtos. — Lucy não é
resistente a álcool e sabe disso. Não entendo por que se deixou levar desse jeito.
— Foi a maior confusão. Eu sabia que não era uma boa ideia ligar para
Matt, mas como você e o Tyler não atendiam, fiquei desesperada. Estou me
sentindo mal, culpada — confessei, olhando minhas próprias mãos entrelaçadas
em meu colo.
— Você não tem culpa, Eveline. Fez o que deveria fazer.
A sala caiu em silêncio. Ele me encarou e eu o encarei de volta, sem
graça. Luke pareceu prestes a dizer alguma coisa, porém balançou a cabeça e
desviou os olhos para o outro lado. Em seguida, disse:
— Obrigado por cuidar daquela cabeça-dura. Amanhã passo aqui para
levá-la em casa. Vou te deixar dormir, só quis ter a certeza de que estava tudo
bem.
Assenti, levantando para acompanhá-lo até a porta. Na metade do
caminho, uma inesperada ansiedade me deixou nervosa, inquieta. De repente,
todos aqueles sentimentos confusos e indefinidos me alcançaram,
desequilibrando-me. Sem pensar nas consequências das minhas palavras,
ofereci:
— Você aceita alguma coisa antes de ir? Água, café?
Luke estacou no lugar e, lentamente, virou-se outra vez. A intensidade do
olhar dele me fez ofegar.
— Quero muito ficar, Eveline, mas não para tomar qualquer coisa. Estou
fazendo um esforço do caralho para não olhar suas pernas expostas nessa
camisola curta. Se eu ficar, será para continuar o que começamos naquele dia no
banheiro. — Senti-me completamente despida, vulnerável. — É isso que você
quer?
Engoli em seco, a garganta ressecada, sem saber o que responder. O
homem me confundia como o inferno, fazendo-me sentir coisas que nunca senti,
desejar coisas que há tempos aceitei que não aconteceriam comigo. E aquelas
dúvidas espezinhavam, inquietavam, incomodavam demais. Tudo foi efeito do
afrodisíaco? Eu seria capaz se senti-las estando sóbria?
Contra a minha vontade e desafiando todas os meus planos, Luke me
atraía como um imã. O jeito sério e compenetrado, os olhos castanhos
ligeiramente esverdeados, as tatuagens, o corpo bem feito, a boca… Ah, como
gostaria de beijá-la novamente.
— Eu… — Limpei a garganta. — Eu não sei.
— Não sabe? — Arqueou a sobrancelha. — Aqui não há espaço para
incertezas, Eveline.
— Então serei honesta, está bem? Desde aquele sábado, tenho ficado
inquieta, um pouco perturbada até. Como te disse, no meu estado normal jamais
agarraria você como fiz. Mas ao mesmo tempo, quando fica perto de mim, acabo
sentindo umas coisas… Estranhas, novas. E às vezes fico pensando que se me
beijasse, eu descobriria se tudo não passou de um efeito colateral do afrodisíaco
ou… — Mordi o lábio inferior, transpirando de nervoso. — Ou, de repente,
esteja mesmo um pouco atraída por você. E essa última possibilidade é bem
ruim, considerando a nossa relação profissional, mas é terrível viver na dúvida.
O rosto de Luke permaneceu impassível, sem sinais do que passava por
sua cabeça. Então, mantendo o meu olhar preso no seu, caminhou em minha
direção.
— Quando eu chego perto? — Passou um braço na minha cintura,
puxando-me para si em um baque. — Assim?
— Bem… Sim.
— E você quer outro beijo?
— Se não for nenhum incômodo.
Assim, de perto, ele era ainda mais bonito. A barba, de dois ou três dias
por fazer, o deixava extremamente atraente, mexendo com meus hormônios.
Nossos narizes se tocaram, sua respiração mesclando-se à minha. Os dedos
emaranharam-se nos cabelos da minha nuca, segurando-me firme e, sem
delongas, mordiscou meu lábio e me beijou.
Luke tinha gosto de hortelã e toda a minha linha de raciocínio
desapareceu.
Subi as mãos pelos braços tatuados, os músculos se contraíram ao meu
toque. Parei nos ombros fortes, sentindo a temperatura da sua pele, apertando-os.
Ele intensificou o beijo, tomando a minha boca com uma ânsia que me deixou
zonza, mole. Fui levada para ainda mais perto, o membro duro encostando na
minha barriga. Meu cabelo foi puxado para trás e o beijo acabou bruscamente.
Abri os olhos confusa, dando de cara com seu olhar penetrante exalando
sensualidade.
— E então? — sussurrou. — Você quer mais?
Eu quero, Luke, quero muito mais.
— Quer que eu te beije novamente? — questionou outra vez, o polegar
no meu rosto, deslizando de cima a baixo.
— Sim — respondi, trêmula.
— Onde você quer, desta vez?
Onde?
Perdi a linha de pensamento novamente quando a língua quente e
molhada começou a traçar um caminho do lóbulo da orelha até o meu pescoço.
Arrepios percorreram o meu corpo inteiro e tornei a fechar os olhos, soltando um
baixo gemido, incapaz de esconder as reações que ele arrancava de mim com
uma desconcertante facilidade.
— Onde você quer agora? — Luke indagou e mordeu um ponto no meu
pescoço, quase me fazendo gritar. — Eu quero ouvir você dizer.
Como ele queria que eu falasse alguma coisa coerente quando a língua
habilidosa trabalhava de maneira implacável, afastando todos os meus
pensamentos racionais?
— Onde você quiser — murmurei, sensível pela quantidade de arrepios
que me assolava.
— Tem certeza de que quer me dar esse poder, Eveline? — A mão
desceu até a minha bunda, apertando-a firmemente. — Porque não há um só
lugar em você que eu não deseje colocar a boca.
Gemi novamente, sua voz elevando minha excitação a outro nível. Bryan
não era um cara falante durante o sexo, então eu nunca soube que gostava de ter
um homem sussurrando aquele tipo de coisa no meu ouvido. Era surpreendente e
gostoso.
A mão desceu um pouco mais, levantando a barra da camisola. Pensei
que a exploração pararia por ali, mas o tecido continuou a deslizar pela cintura,
busto, cabeça e saiu de vez, deixando-me apenas de calcinha.
Por um instante, toda a realidade do que estava acontecendo caiu em
mim. Meus seios não eram grandes e, depois de amamentar, tampouco eram tão
firmes quanto já foram um dia. Eu também estava longe de ser um modelo
padrão de corpo feminino, a barriga não tinha os tão desejados gominhos, nem
era lisinha como uma tábua, a marca da cesariana bem evidente. Perto dele, um
homem de físico invejável, me senti bastante insegura.
Tensa, cobri os seios com os braços. Luke levantou o meu queixo e, com
cuidado, tirou os meus braços da frente, expondo-me ao seu olhar abrasador.
Abriu a boca, respirando fundo, em busca de ar, parecendo gostar da vista.
Delicadamente, me empurrou para trás, de maneira que a parte posterior dos
joelhos encontrou o sofá. Sentei e ele abaixou na minha frente, de joelhos.
Abrindo minhas pernas, pôs-se no meio delas e voltou a me beijar, chupando
minha língua com firmeza, como havia feito no banheiro, provocando aquelas
sensações loucas. Perdi a noção do tempo e espaço durante o beijo, inebriada e
encantada com o que um simples encontro de lábios podia causar.
Perdi sua boca, que foi torturar meu pescoço outra vez, alternando
chupões e leves mordidas. Descendo um pouco mais, alcançou o início do seio
direito. Luke o pegou com uma mão, levantando-o até ficar na altura perfeita
para abocanhá-lo, e o sugou sem delicadeza. Gritei, totalmente despreparada
para o tesão que me dominou. Descontrolada, tentei aproximar ainda mais meu
seio da boca ávida e ele entendeu o recado, chupando mais forte.
— Você é mais gostosa do que eu imaginava. — Luke usou ambas as
mãos para os apertar com a força necessária para causar prazer e não dor. —
Onde você quer agora, Eveline? Aqui? — O leve roçar das pontas dos dedos na
minha calcinha foi suficiente para quase me tirar o ar.
O que aquele homem estava fazendo comigo, com o meu corpo? Sentia-
me acesa e pegando fogo em todos os lugares, prestes a implorar para ele acabar
a agonia que me consumia.
— Vai me deixar beijar essa boceta? — indagou, safado, sem cansar de
me surpreender.
O palavreado cru atrelado à voz rouca e sexy me deixou mais molhada.
Não sabia se torcia para Luke continuar me provocando com as frases
pornográficas ou se para ele calar a boca de uma vez e cumprir tudo que
prometia.
A mão áspera entrou na calcinha, tocando levemente a carne pulsante.
Abriu-me com cuidado, espalhando meu líquido até o clitóris, onde fez uma
pressão gostosa em movimentos circulares. Gemi alto, sem acreditar que aquela
mulher escandalosa era eu.
— Está molhadinha assim para mim? Quer tanto o meu pau, Eveline?
Queria gritar que ele era um filho da mãe, sem vergonha, desbocado e
torturador, mas só fui capaz de emitir outra série de gemidos.
O tecido foi colocado para o lado e Luke abaixou a cabeça. Um aviso
piscava no fundo da mente, avisando-me que sexo oral era algo bastante íntimo
para ser praticado na primeira transa, mas ele não parecia compartilhar da minha
opinião, porque depois de me abrir totalmente e soltar sons de apreciação, me
chupou diretamente onde eu necessitava.
A impressão de haver levado um choque foi tão real que levantei os
quadris. Segurando-me firme, Luke me prendeu ao sofá e passou a língua por
toda a extensão, de baixo para cima, de maneira lenta e constante. Depois,
concentrou-se no clitóris, dando especial atenção a ele, chupando-o quase
dolorosamente. Aproximei-me perigosamente do orgasmo.
— Shhh! — Afastou a boca para me repreender. — Geme baixo, porra.
Quer acordar todo mundo?
Sem tempo para formular uma resposta à altura, Luke afastou ainda mais
minhas pernas e voltou a trabalhar implacavelmente com a língua. Devagar,
enfiou dois dedos dentro de mim, alcançando um ponto ultrassensível. Trêmula,
observei a língua torturadora me levar diretamente ao orgasmo, aceitando que
seria impossível prolongá-lo.
— Goza gostoso na minha boca, safada. — Com essas palavras, Luke
acabou comigo.
Impossível manter o controle quando ele falava coisas daquele tipo,
principalmente quando a língua experiente e dedos habilidosos trabalhavam em
conjunto.
A sensação começou na ponta do pé e se espalhou por todo corpo. Meu
grito histérico foi abafado pela sua boca com um beijo gostoso, explorando cada
recanto, embora eu estivesse muito letárgica para retribuir devidamente.
Luke se despiu em uma velocidade impressionante, retirando um
preservativo da carteira. Fiquei embasbacada com seu corpo. As tatuagens
iniciavam no pulso, subiam por todo o braço e espalhavam-se pelo peito.
Eram lindas.
Ele era lindo.
Desci o olhar em lenta apreciação, tomando cuidado para não babar feito
uma imbecil. O pau ereto, apontando diretamente para mim, era impressionante.
Com genuína admiração, o vi rasgar a camisinha com os dentes e deslizá-la por
todo o comprimento.
Era estranho achar um pênis bonito? Pois foi precisamente aquela
impressão que tive sobre o de Luke.
Ostentando um sorrisinho satisfeito, ele aproximou-se novamente.
Ajudou-me a levantar e espalmou a mão aberta na parte de trás do meu pescoço,
puxando-me para um novo beijo recheado de língua, chupões e mordidas nos
lábios. Era espantoso o talento que possuía para destruir meu controle e abalar
minhas convicções. Jamais cogitei a possibilidade de compartilhar o corpo com
alguém em tão pouco tempo, muito menos deixar a pessoa fazer o que Luke
fizera comigo.
Afastando nossos lábios, sussurrou em meu ouvido:
— Fica de quatro pra mim. Desde que vi sua bunda pela primeira vez,
sonho em te comer assim.
Oh, meu Deus!
As pernas recusaram-se a funcionar, por mais que o meu desejo fosse
realizar o pedido dele. Luke abriu outro sorriso, certamente se divertindo com a
minha falta de experiência, e me virou, empurrando minhas costas para frente.
No automático, ajeitei os joelhos no sofá, apoiando as mãos no encosto, e
empinei a bunda.
— Puta que pariu! — grunhiu, apertando o meu traseiro. — Você é
gostosa demais.
Abaixou a calcinha até as coxas e os dedos voltaram a me tocar, como a
se certificar que eu estava pronta. E, sim, encontrava-me completamente
encharcada.
Centímetro a centímetro, todo o comprimento entrou devagar, alargando-
me. Ardia um pouco. Joguei a cabeça para frente, gemendo ao sentir como
parecia certo ser preenchida daquele jeito. Por ele. Luke amassou minha bunda,
soltando o próprio gemido torturado, iniciando um vai-e-vem mais rápido.
Arrepiei-me inteira, bastante sensibilizada pelo recente orgasmo, ao mesmo
tempo em que ele metia com mais força.
A mão Luke acariciou minha pele, subindo até o cabelo. Fechando-a
sobre os fios curtos, puxou-os para trás, enquanto inclinava o tronco para frente,
colando o peitoral às minhas costas, mordendo meu ombro.
— Está gostoso receber meu pau inteiro nessa boceta apertada? —
questionou e gemi em resposta. — Geme, mas geme baixinho. — Soltou os
cabelos, deslizando a mão até um seio, apertando-o com firmeza.
Quanto mais eu gemia, totalmente entregue àquele momento e sensações,
mais rápido Luke penetrava, influenciado pelo meu prazer absoluto. Nossos
corpos batiam um no outro, o suor dele passando para mim, os dentes me
mordendo em qualquer pedaço de pele alcançado. Outro orgasmo, mais potente
que o primeiro, já se formava no baixo ventre.
— Vou gozar — informei torturada, sentindo minha carne queimar,
conforme ele entrava e saía com brutalidade.
— Goza no meu pau, safada. — Seu dedo encontrou meu clitóris,
adicionando a masturbação à equação, como se eu já não estivesse recebendo
estímulos suficiente.
Foi o que bastou para meu corpo se partir em um milhão de pedaços.
Ofeguei atordoada, o mundo ao redor virando um borrão diante dos meus olhos
nebulosos.
Luke aumentou a intensidade das estocadas, segurando firme a minha
cintura, permitindo que os sons roucos escapassem de sua garganta. E ele gozou
exatamente no momento em que os últimos tremores atingiam o meu corpo
exausto e satisfeito.
Acordei com beijos no pescoço, toda arrepiada. Abri os olhos devagar,
demorando alguns segundos para perceber que havia pegado no sono no sofá da
sala, pelada e com Luke atrás de mim. O homem devia estar dolorido por dividir
o diminuto espaço comigo durante horas.
— Preciso ir — falou, a voz rouca indicando que também tinha
despertado há pouco. — Avisa a Lucy que venho buscá-la mais tarde.
Lucy! Meu Deus!
Tão envolvida com Luke, esqueci completamente da existência dela,
inclusive que estava na minha cama, há pouquíssimos metros de onde transei
escandalosamente com seu irmão.
Luke me transformou em uma devassa. E eu apreciei cada instante.
Seria desastroso se ela nos pegasse no flagra. Como pude ser tão
imprudente e irresponsável?
Levantando o rosto para me encarar, ele provavelmente adivinhou o
rumo dos meus pensamentos, pois, antes que eu entrasse em pânico, puxou
minha cabeça e me deu um beijo de língua demorado, molhado e gostoso.
— Relaxe, Eveline.
Quando assenti, Luke calçou o par de tênis, levantou e, antes de
caminhar para a porta, abaixou para selar nossos lábios em um rápido beijo. Em
seguida, saiu de casa deixando a minha mente em uma confusão inexplicável e o
meu corpo inacreditavelmente saciado.
CAPÍTULO 14
Um passo para frente, dois para trás

Lucy saiu do quarto quase meio dia. Os longos cabelos castanhos


bagunçados apontando para várias direções, as bochechas com marcas vermelhas
do travesseiro, olhos inchados e maquiagem borrada formavam a própria
imagem de uma ressaca pesada.
— Anote as minhas palavras, Eveline. Nunca mais coloco uma gota de
álcool na boca.
— Palavras anotadas e superapoiadas — garanti, embora soubesse que
uma promessa feita sob os efeitos da ressaca não podia ser levada a sério.
— Como você pode estar tão bem, parecendo corada e disposta,
enquanto me sinto um lixo? — Sentou-se na banqueta da cozinha, apoiando os
cotovelos no balcão, o rosto escondido entre as mãos.
— Ah, não sei. Talvez porque não enchi a cara ontem, nem passei boa
parte da madrugada vomitando. — Despejei uma generosa quantidade de café
numa xícara e entreguei a ela. Lucy bebeu mais da metade de uma só vez.
Estranhando seu comportamento tranquilo, perguntei-me se Lucy era o
tipo de pessoa que sofria de amnésia alcoólica. Seria desagradável fazê-la
relembrar o ocorrido, mas era importante mantê-la minimamente inteirada sobre
o assunto.
Como quem não quer nada, voltei a mexer o macarrão quase cozido e
sondei:
— Lembra qualquer detalhe sobre essa madrugada?
Gemendo, passou as mãos pelos cabelos, prendendo-os em um coque
desajeitado.
— De tudo, infelizmente. E é a última coisa sobre a qual desejo falar, por
favor, Eve. Estou me sentindo humilhada o suficiente.
— Sem problemas, não falaremos. — Estiquei o braço, apertando sua
mão, e voltei a atenção ao almoço. — Sabe, pelo menos agora estamos quites —
brinquei, sorrindo.
— Criatura, estou com dor de cabeça e enjoada, sem condições de
decifrar enigmas. Esclareça, por gentileza.
— Você cuidou de mim quando eu estava sob o efeito da sua droga e
agora limpei o seu vômito. Na verdade, parando para analisar a situação, a minha
tarefa foi muito mais nojenta. — Apontando o garfo para ela, sentenciei: — Está
me devendo uma, mocinha.
— Acredito que não, meu amor. Posso até ter vomitado, mas não tentei te
agarrar quando dormia.
Girei o tronco para encará-la.
— E eu por acaso tentei? — Arqueei uma sobrancelha.
— Na mesma noite que agarrou Luke. Precisei me proteger e ficar atenta.
Aparentemente, "eu servia para resolver a situação". — Ela fez aspas com as
mãos.
Abri e fechei a boca algumas vezes, indignada.
— Mentirosa! — acusei.
— É verdade, não tenho por que mentir. — Deu de ombros, tomando
outro gole do café. — Não te julgo, amiga, sou mesmo uma mulher irresistível.
— Idiota! — Joguei o pano nela, rindo.
A possibilidade de ter tentado agarrar uma amiga era mortificante,
principalmente porque havia grandes chances de ser verdade, levando em
consideração o estado em que a bebida me deixou. Entretanto, era maravilhoso
ver Lucy brincalhona e sorridente no final das contas.
Pigarreando, abaixei a cabeça para a panela novamente, na intenção que
os olhos perspicazes não vissem meu rosto quando a informasse sobre a visita do
irmão.
— Luke passou aqui enquanto você dormia. Pediu para avisar que vem te
buscar mais tarde.
— Ok.
Caímos em um confortável silêncio, ela lidando com os pensamentos, eu
concentrada no preparo da comida, com os meus próprios para resolver. Era
surreal que houvesse deixado Luke fazer tudo aquilo comigo. Mais inacreditável
ainda era ter apreciado bastante cada instante. Meu corpo, satisfatoriamente
dolorido em partes surpreendentes, gravou cada toque das mãos, lábios e língua
dele. E, diante da mera recordação, parecia reagir desejando mais.
Quando Luke foi embora, não pude voltar a dormir. Passei o restante da
madrugada e toda a manhã tentando compreender o que me levou a transar com
ele. É claro que era um homem extremamente atraente, mas aquilo nunca fora
motivo suficiente para ir para a cama com alguém. Talvez as contradições de
Lucas Hayes me atraíssem. Ex-militar, alto, forte, tatuado, de poucos sorrisos e
palavras. Então, se você observasse com cuidado, dando ênfase aos pequenos
detalhes, descobriria o filho amoroso que entrara em uma conspiração para
surpreender a mãe com uma festa de aniversário, o irmão dedicado, sempre
preocupado com o bem-estar de Lucy e Laura, o patrão atencioso e justo, que
mantinha uma relação de parceria com os funcionários, o amigo leal. Descobriria
que era um homem que, embora a mulher o agarrasse e implorasse para fazer
sexo com ele, a impediria e recuaria ao perceber que ela não se encontrava em
seu estado normal.
Todos aqueles detalhes faziam cair por terra a pose de durão que
ostentava para o mundo.
Após analisar todas as variáveis, cheguei à conclusão de que cedi tão
facilmente a Luke porque ele não despertava o menor resquício de medo em
mim. Pelo contrário, eu o admirava.
É verdade que me apavorei com a ideia de ele descobrir os meus
segredos e me mandar para a cadeia. Contudo, era medo das consequências de
minhas omissões, não precisamente dele.
E, a despeito de nunca haver acreditado que fosse o tipo de pessoa que
conseguiria lidar com sexo sem compromisso, desejei ardentemente repetir a
experiência. Foi a melhor transa da minha vida e seria difícil superá-la.
Almocei sozinha, pois Lucy não conseguia nem sequer sentir o cheiro da
comida sem sentir ânsia de vômito. Enquanto ela tomava banho, eu olhava para
o relógio de pulso de cinco em cinco minutos, a perna direita subindo e descendo
sem parar, a mente criando mil e um cenários hipotéticos de como seria quando
Luke e eu ficássemos cara a cara.
Era inevitável, teria que vê-lo em algum momento. E aquele momento
seria em minutos, pouco tempo depois de ter passado a madrugada praticando
indecências com ele. Disse a mim mesma que era uma mulher de vinte e seis
anos perfeitamente razoável e capaz de lidar com a situação. Precisava somente
sorrir e soltar um "como vai?", fingindo que a boca dele nunca esteve entre as
minhas pernas. Tudo daria certo.
No entanto, no instante em que o homem apareceu na minha porta de
calça jeans, blusa branca e tênis, meu rosto pegou fogo, relembrando em
detalhes perturbadores o que as roupas escondiam. Luke retribuiu o olhar, a boca
repuxando nos cantos em um breve sorriso. Certamente pensando como foi fácil
me levar para a cama. Ou melhor, para o sofá.
Miranda ficaria orgulhosa. A madre me passaria o maior sermão e me
mandaria rezar algumas centenas de Pais-Nossos e Ave-Marias.
Não notei que estávamos nos encarando há mais tempo que o
recomendado, até Lucy interromper a troca de olhares abruptamente:
— Espera aí! Não acredito nisso! Vocês transaram, não transaram?
— Claro que não! — neguei rápido demais.
— Não é da sua conta — Luke disse ao mesmo tempo.
As respostas desencontradas e a ausência de negativa dele deu a Lucy a
resposta que procurava.
Como diabos a mulher descobriu? Acaso estava estampado na minha
cara as atividades libidinosas que andei praticando?
— Puta que pariu, Eveline! — Encarando-me horrorizada, levou a mão
ao peito. — Eu estava no mesmo ambiente! Praticamente em coma alcoólico?
Sim, mas poderia ter despertado, ido até a sala e… Foi na sala, não foi? —
Arregalou os olhos ainda mais, como se, de repente, uma terrível possibilidade
houvesse passado por sua cabeça. — Não respondam, não quero saber! Mas…
Porra! Se eu tivesse tido o menor vislumbre da cena, os dois teriam que arcar
com a minha terapia vitalícia!
Sem saber como reagir, limitei-me a ficar estática, torcendo para que o
chão sob meus pés se abrisse e me engolisse.
— Eu sabia que estavam atraídos um pelo outro, minha intuição nunca
falha! Só peço que, da próxima vez, façam em um lugar que eu não esteja.
— Para alguém que encheu a cara e passou metade da madrugada
vomitando, você parece bem-disposta — observou Luke, cruzando os braços na
frente do peito.
— Não estou a fim de ouvir sermão, Luke. Minha cabeça está
estourando.
— Então sugiro, educadamente, que cale a boca e pare de criar uma
situação desconfortável. Caso contrário, dona Rebecca vai descobrir o que a
caçula andou aprontando. Se você não gosta dos meus sermões… — Parou a
frase na metade, deixando o resto subentendido.
O rosto de Lucy adquiriu um tom vermelho de indignação, inconformada
com a chantagem, mas ficou calada. Fuzilando o irmão com os olhos graúdos,
marchou até o meu quarto para buscar a sacola com o vestido sujo de ontem,
parecendo ridícula na roupa folgada que a emprestei.
Negando-me a permitir que a ocasião se tornasse mais constrangedora
por conta do súbito silêncio, perguntei:
— Posso pegar uma carona até a casa de Rebecca? Preciso buscar
Romeo.
— Claro que sim. — Foi a única resposta.
Acomodada no banco traseiro da picape, passei a maior parte do percurso
observando as ruas tranquilas, típicas de um domingo em Naperville. Quando
sucumbi ao desejo de olhá-lo disfarçadamente, flagrei Luke observando-me pelo
espelho retrovisor de maneira intensa, desconcertando-me.
Em que ele estaria pensando? Na madrugada de hoje? Relembrava as
mesmas coisas que não saíam da minha cabeça?
Senti-me tola, impressionável e inexperiente. Luke era um homem
vivido, dono de uma habilidade sexual impressionante, certamente oriunda de
muita prática. Enquanto eu me comportava feito uma idiota, repassando a transa
sensacional a cada segundo, era bem provável que para ele não tivesse passado
de uma madrugada normal, como tantas outras.
Recriminei-me internamente, sabendo que entrava em um caminho
perigoso. Mas era complicado não permitir que a experiência me transformasse
de algum jeito. Não só havia descoberto que podia ser uma mulher altamente
sexual, devassa e participativa, mas também que, além de canalha, covarde e
mau caráter, Bryan era péssimo de cama. Como pude acreditar que nossos
encontros íntimos eram satisfatórios? Não chegavam nem perto de serem
aceitáveis.
Dei graças a Deus ao chegarmos no condomínio militar, pois finalmente
poderia me afastar de Luke e sua presença opressora e tentar colocar as ideias
em ordem, me recompor. Após sairmos, ele desceu o vidro do automóvel e
informou, encarando-me:
— Volto em duas horas para levá-los de volta. Preciso passar em casa e
resolver uns assuntos na LTM.
Fiquei surpresa com a declaração.
— Não precisa, posso pegar um UBER.
— Faço questão, Eveline. — E, dizendo aquilo, deu partida no carro e
saiu.
— Mamãe! — A animação contida no grito agudo do meu pequeno
aqueceu meu coração.
Ele desceu os três degraus correndo, os braços abertos e um enorme
sorriso no rosto. Abaixei-me a tempo de levantá-lo no colo, as perninhas
rodeando meu quadril, a cabeça encaixada na curva do meu pescoço.
— Oi, amor! — Beijei o cabelo macio, afundando o nariz nos fios
cheirosos. — Sentiu saudades?
— Sentiu — afirmou, abraçando-me apertado.
Fechei os olhos e aproveitei os preciosos segundos, percebendo como
aquele conhecido amor absurdo tomava conta de mim. Eu poderia estar
emocionalmente abalada, cheia de dúvidas e medos, mas quando segurava meu
menino nos braços e sentia a confiança absoluta que ele depositava em mim, era
impulsionada para frente, criava forças e me obrigava a lutar dia após dia.
— Fui trocada — Rebecca brincou, risonha, vindo atrás dele.
— Ele deu muito trabalho? — inquiri, sorrindo.
— Trabalho nenhum. Romeo é uma criança tranquila e fácil de lidar.
Ficou um pouquinho manhoso na hora de dormir, então assistimos desenho
animado até pegar no sono, não foi, querido?
Enquanto Rebecca contava sobre a noite que tiveram, observei as
mudanças em Romeo. Ele estava mais sorridente, confiante e todos os dias
aprendia uma nova palavra. Quando completou dois anos de idade, fiquei
preocupada porque não falava quase nada além de “mamãe”, “água” e “quer”.
Convenci Bryan a levá-lo no médico e a simpática pediatra fez uma série de
testes com ele, garantindo-nos que não havia nada que o impedisse de falar.
Segundo ela, cada criança possuía o próprio tempo e algumas se desenvolviam
mais tardiamente.
Desde que entrara para a creche e passara a conviver com crianças da sua
idade, o vocabulário de Romeo aumentou de maneira impressionante.
Lucy subiu direto para o quarto, ainda sofrendo os efeitos da bebedeira.
Rebecca e eu conversamos um pouco, enquanto comíamos o bolo quentinho,
recém-saído do forno. Estava delicioso, como tudo que ela cozinhava.
Luke buzinou no horário combinado, duas horas após ter nos deixado lá.
Levantei, segurando a vasilha com um enorme pedaço de bolo que Rebecca fez
questão de me dar, e seguimos para a porta.
Abraçando-a, agradeci:
— Obrigada novamente, Rebecca. E desculpa qualquer trabalho.
Ela descartou meu agradecimento com um aceno de mão.
— É um verdadeiro prazer para mim. Amo crianças e, se pudesse
escolher, já teria um monte de netos correndo pela minha casa. Mas os meus
filhos ingratos se recusam a fazer minha vontade.
Sorri, sabendo de cor e salteado os esforços dela para virar avó e a
insatisfação por nenhum filho ter produzido herdeiros.
Luke cumprimentou a mãe com um beijo no rosto, pegou a cadeirinha da
mão dela e a instalou no banco do carro. Um latido fino me assustou e, logo em
seguida, uma bola de pelos preta e caramelo deixou o focinho a vista. Romeo
agarrou meu ombro com força, mirando o cachorro em um misto de medo e
encantamento.
— Essa é Lola — apresentou Luke. — Ela fica nervosa depois de um
longo período sozinha em casa e gosta de demonstrar a insatisfação fazendo xixi
nos móveis.
— É sua? — investiguei, contendo a vontade de rir. Era muito engraçado
um homem daquele tamanho ter uma cadela tão pequenina e delicada.
— Era da minha irmã. Laura a deixou uns meses comigo quando foi para
Alemanha e, quando voltou, Lola se recusou a sair do meu lado — explicou,
parecendo bem satisfeito e convencido pelo ocorrido.
Luke fixou os olhos em Romeo e aproximou-se de nós dois.
— Quer conquistar a amizade de Lola? — sugeriu, enfiando a mão no
bolso da calça, de onde tirou um biscoito no formato de um osso. — Ela ama
qualquer tipo de petisco. — Estendeu a mão aberta para ele.
Meu filho o encarou desconfiado, em dúvida sobre o que fazer. Estava
nitidamente tentado a aceitar a sugestão, mas havia certo receio no rosto infantil.
— Ele nunca teve contato com cães antes — justifiquei. — Tem certeza
que ela não morde?
— Tenho. A não ser que você pretenda chegar muito perto de mim. Lola
é ciumenta.
Ignorando o tom sugestivo, sobretudo porque estávamos na porta da casa
da mãe dele, peguei o biscoito. A cadela abanou o rabo de um lado para outro
quando o aproximei dela e, sem maiores rodeios, o abocanhou. Romeo
gargalhou.
— Ela é boazinha, amor. Você quer tentar agora? — perguntei.
— Qué.
— Por acaso você não teria outro biscoito por aí? — indaguei, olhando
rapidamente para Luke.
Sorrindo, ele tirou mais um ossinho do bolso, entregando-o diretamente a
Romeo, que repetiu o meu gesto. Assim que Lola praticamente o roubou da
pequena mão, o olhar do meu filho mudou. Ele já estava completamente
apaixonado pela pequena Yorkshire terrier.
Fui capaz de conter o riso até a metade do caminho para casa, mas toda
vez que associava a imagem de Lucas Hayes à cadela, sentia vontade de
gargalhar.
— Você está louca para fazer algum comentário. Vá em frente, Eveline.
— Observei as mãos fortes segurando o volante com firmeza, recordando que há
algumas horas elas faziam o mesmo em certas partes do meu corpo.
— O quê? — disfarcei.
— Só fale. — Olhou-me de canto.
— É besteira. — Mordi o lábio. — Só achei engraçado você ter uma
cadelinha tão delicada. Ela é muito fofa, mas, se precisasse chutar, eu iria de
pastor alemão ou labrador — confessei um pouco envergonhada.
— Sempre gostei de animais, cachorros em especial. Nunca os tive por
causa da vida corrida, não fico muito tempo em casa e é crueldade deixá-los
sozinhos, mas não tive escolha com Lola, ela me escolheu. E não tenho do que
reclamar, já consegui vários números durante os nossos passeios.
Luke não podia ter escolhido palavras melhores para me colocar em meu
lugar. O sorriso divertido morreu imediatamente e virei o rosto para o outro lado,
a fim de evitar que ele visse as bochechas avermelhadas. Talvez ele achasse que
cruzei alguma linha ao entrar em um assunto minimamente pessoal.
Os metros finais foram percorridos em silêncio, quebrado apenas pela
baixa música que tocava no rádio e a interação entre Romeo e Lola no banco
traseiro.
— Tchau, Lola — Romeo se despediu enquanto eu o retirava da
cadeirinha. Ela respondeu com dois latidos e várias abanadas de rabo, presa pela
coleira ao banco do automóvel.
Luke carregou a cadeirinha e a pequena mochila de Romeo para dentro
de casa. O clima estava um pouco estranho, tenso. Eu não fazia ideia do que
dizer para quebrar o gelo, então optei pela saída mais fácil.
— Obrigada pela carona.
— Não foi nada. — Ele se aproximou, depositou um rápido beijo em
minha testa, bagunçou o cabelo de Romeo e saiu, deixando-me confusa.
Um beijo na testa?
O que aquele gesto significava?
CAPÍTULO 15
Não Fuja

Estacionei a caminhonete na garagem do prédio, agarrei o grande copo


térmico cheio de café preto e desci, os olhos ardendo miseravelmente, a cabeça
parecendo pesar uma tonelada. Há quatro dias não dormia mais que duas horas
consecutivas, revezando com Matt a segurança de Ashley Thompson. Pelo bem
de minha sanidade, a garota não voltou a aprontar depois da fuga fracassada. A
realidade em forma de violência que esfreguei em seu nariz pareceu surtir o
efeito desejado.
Tyler estava concentrado em verificar a veracidade de um boato que
surgira há alguns dias sobre um possível ataque a um político de Naperville. Até
agora, não havia conseguido confirmar ou descartar nada.
— Bom dia — cumprimentei Amanda ao passar por ela.
— Que cara é essa? — inquiriu, horrorizada. — Você está péssimo! Nem
eu, com quatro filhos e um marido que parecem competir para me enlouquecer,
tenho olheiras tão profundas.
— Sinto-me lisonjeado com tamanho elogio — brinquei. — Esse é
resultado de várias noites sem dormir. Algum recado importante?
— Nada que não possa esperar. Vá descansar, garoto.
— Sim, senhora.
Subi as escadas rapidamente, na expetativa de trabalhar um pouco e ir
para casa hibernar. Eu estava quase atingindo o limite e não era idiota para
ignorar o fato. No entanto, a visão de Eveline caminhando em minha direção
com um vestido azul escuro de mangas longas e comprimento recatado renovou
meu ânimo e espantou a exaustão.
— Luke, que alívio finalmente encontrá-lo. Há alguns dias tento entrar
em contato com você, Tyler ou Matthew, mas todos resolveram desaparecer ao
mesmo tempo. Preciso que assine alguns documentos. — Apesar do tom
urgente, notei certa cautela em seu comportamento.
— Tem sido uma semana conturbada, mas posso fazer isso agora.
— Certo, já levo na sua sala.
Sentei na cadeira confortável e tomei um longo gole da bebida quente,
tentando decifrar o comportamento polido dela. Oito dias atrás estava de quatro,
gemendo escandalosamente, empinando aquela bunda maravilhosa para mim,
enquanto eu metia firme, forte e fundo no calor abrasante da sua boceta. Meu
pau respondeu às lembranças, endurecendo apesar do cansaço.
Ela voltou com uma pilha de papéis nas mãos, parou do outro lado da
mesa e a colocou na minha frente.
— Preciso que dê um visto em todas as páginas e assine a última, no
local marcado — explicou, mantendo o tom excessivamente educado e distante.
Assentindo, fiz o que pediu. Enquanto passava de uma folha para outra,
levantei os olhos para ela e questionei:
— Tudo bem?
Eveline pareceu surpresa com a pergunta, encarando-me de volta, a testa
franzida.
— Sim, por quê?
— Você parece preocupada.
— Estou bem, obrigada por perguntar.
Assinei a última página e, ao invés de esticar os documentos para ela,
levantei e dei a volta na mesa.
— Quando vamos nos ver? — indaguei, sem preâmbulos.
— Estamos nos vendo agora.
— Sabe perfeitamente do que estou falando — rebati.
Pareceu ficar envergonhada, abaixando ligeiramente o rosto. Quando
voltou a me olhar, as bochechas já possuíam uma coloração rosada. Antes de
Eveline, nunca conheci alguém que corava com tamanha facilidade.
— Não sei, Luke.
Coloquei os papéis de volta à mesa e me aproximei. Segurei as suas mãos
e subi os dedos lentamente pelos pulsos, braços, ombros, parando na parte de
trás do pescoço. O corpo dela logo respondeu ao meu toque.
— Me deixe ir em sua casa hoje à noite — pedi.
— Não.
— Por que não? — Puxei-a para mais perto, sendo invadido pelo cheiro
gostoso de torta de limão.
— Romeo.
— Ele dorme no seu quarto?
— Não, mas…
— Então qual é o problema?
— Não acho certo, ele é pequeno.
— Podemos ir para outro lugar. — Desci uma mão, espalmando-a na
cintura, colando nossos corpos. Fiquei louco ao sentir os seios macios no meu
peito.
— Luke, não tenho com quem deixá-lo.
Eveline estava inventando desculpas, criando barreiras para cada
sugestão minha. Apertando o pescoço fino para mantê-la no lugar, beijei-a na
boca. Eveline arfou, surpresa, e aproveitei a oportunidade para invadir os lábios
deliciosos com a língua, imediatamente reconhecendo seu sabor e o efeito que
causava em mim. Meu pau chegou a doer de tão ereto, desejando o que lhe era
negado há dias.
Escorreguei a mão para o rosto, apertando as bochechas, levantando um
pouco a cabeça dela para morder o queixo, pescoço e lóbulo da orelha, enquanto
a outra mão desceu até a bunda, colando-a à evidente ereção.
Eveline derreteu em meus braços, tão receptiva e responsiva, devolvendo
cada carícia com ansiedade. Afastando-nos poucos centímetros, sussurrei:
— Quer isso tanto quanto eu, então por que não para de tentar fugir?
Os olhos bonitos se acenderam com o que parecia ser irritação.
— Não estou tentando fugir — rebateu. — Estive no mesmo lugar
durante os últimos oito dias. Se alguém aqui esteve fugindo, certamente não fui
eu.
De repente, tudo fez sentido. Amaldiçoei-me por não haver antecipado
aquela reação. Tão acostumado a me envolver com mulheres familiarizadas ao
sexo casual, não me dei conta de que o breve afastamento poderia causar uma
impressão diferente em Eveline. Ela certamente interpretou tudo de forma
equivocada.
— Não há ninguém fugindo. — Tentei apaziguar. — Como expliquei, a
semana foi complicada, mal dormi. Mas o que aconteceu entre nós dois foi
intenso demais para permanecer adormecido por muito tempo.
— Fale por você. — Levantou o queixo, orgulhosa. — Para mim foi
normal.
Dei risada.
— Não se dê ao trabalho de tentar diminuir o que houve. — Mordisquei
o seu lábio inferior. — Você queria me dar tanto quanto eu queria te comer.
— Não sei como tem coragem de falar esse tipo de coisa.
— Falo porque sei que gosta, que fica acessa ao ouvir minhas palavras.
— Negou com a cabeça, engolindo em seco. — Posso apostar que se descer um
pouco a mão, vou encontrar a sua boceta toda molhada.
Eveline gemeu, cerrando os olhos com força para tentar escapar do
magnetismo que nos envolvia. O corpo esguio estremeceu, os lábios
entreabertos, expirando cada vez mais forte. Puxei os cabelos loiros para trás e
comi sua boca novamente em um beijo exigente. Mas, assim que minha mão
levantou a barra do vestido, ela segurou meu pulso, escapando do beijo.
— Aqui não, estamos no trabalho, alguém pode entrar — ofegou,
encontrando dificuldades para falar.
Impulsionando seu corpo para cima, incentivei Eveline a passar as pernas
nos meus quadris, caminhando em seguida para o banheiro. Arregalou os olhos
ao dar-se conta da minha intenção.
— Luke, isso é uma loucura! — exclamou ao me ver trancar a porta.
— Então vamos enlouquecer juntos.
Coloquei-a em cima da bancada da pia e agachei lentamente, sem desviar
os olhos do rosto bonito que me encarava com um misto de prazer e receio.
Afastei seus joelhos e abaixei a calcinha, deslizando-a pelas pernas, tornozelos,
até retirá-la por completo.
— Você tem um gosto delicioso, Eveline. — Passei a ponta da língua por
toda a carne macia e úmida, inspirando o cheiro de mulher. — E é tão sensível,
responde ao menor dos estímulos.
Ouvi o gemido longo e torturado quando abocanhei a boceta inteira,
chupando-a toda.
— Você é um boca suja — acusou, trêmula.
— E você adora. — Afastando-me completamente, levantei para abrir a
calça e descê-la com a cueca. Depois, voltei a ajoelhar com um pouco de
dificuldade. Ela prestou atenção em cada movimento meu, parecendo
hipnotizada.
Voltei a chupá-la, sorvendo cada gota de excitação que liberava, usando
minha própria língua para encharcá-la outra vez. Desci uma mão para o pau,
masturbando-me ao mesmo tempo que tentava enlouquecê-la de prazer. Eveline
gemeu alto, jogando a cabeça para trás, a expressão de deleite estampada no
rosto, os dentes mordendo a carne dos lábios para tentar abafar os barulhos.
Abri-a com os dedos, deixando o clitóris à mostra e, assim que concentrei
a atenção nele, colocando-o dentro da boca e sugando-o com força, ela quebrou.
Gritou, tremendo inteira. Outra vez de pé, arrastei o corpo para a borda da pia,
tomando a boca inchada em mais um beijo molhado, repetindo os movimentos
que há pouco fiz na boceta.
Com os primeiros sinais do gozo se aproximando, afastei-me depressa,
levantando o vestido dela um pouco mais, e esporrei em sua coxa e parte da
barriga. Eveline aparentava estar arrebatada, o corpo lânguido e relaxado, os
olhos semicerrados, implorando para ser fodida.
— Não repus a camisinha que usamos no domingo — esclareci,
utilizando um grande pedaço do papel higiênico para limpá-la. — Você vai jantar
comigo? — insisti.
Sem emitir qualquer palavra, Eveline assentiu.

Na sexta-feira, eu estava uma pilha de nervos. Roí todas as unhas e dei


milhares de voltas na pequena sala de casa. Não sabia como fui convencida a
aceitar aquele encontro.
Bem, na verdade, sabia sim. O safado usara a boca pecaminosa para me
envolver e arrancar uma concordância. Depois de um orgasmo tão potente, de
onde tiraria forças para negar qualquer pedido?
A sensação de estar percorrendo um caminho sem volta me apavorava.
Quando deixei tudo para trás, desejei criar uma nova vida para mim e meu filho.
Queria me redescobrir, entender quem eu era fora de uma relação. Precisava
reencontrar a Eveline que fui um dia, fazer as pazes com ela e seguir adiante.
Durante os quatro anos que vivi com Bryan, até a minha identidade ele
havia conseguido arrancar. Não existia sensação pior do que a de não me
reconhecer. E o melhor jeito de reverter aquilo não era entrando em outro
relacionamento. Ou o que quer que Luke e eu estivéssemos fazendo. Por outro
lado, sentia vontade de conhecê-lo melhor, desvendar o misterioso Lucas Hayes,
aproveitar o frisson que o homem causava em mim.
No entanto, quando um filho entrava na história, as coisas mudavam de
figura. Eu não tinha absolutamente nada contra o sexo casual, sem compromisso;
inclusive, recentemente havia descoberto que poderia ser bem prazeroso. Mas
não parecia certo trazer um homem para a vida de Romeo sem a perspectiva de
um relacionamento sério. E Luke nunca deu indícios que me levassem a
acreditar que poderíamos, eventualmente, nos encaminhar para um. E, ainda que
ele se mostrasse interessado, eu não sabia se era o que queria.
Que confusão!
As coisas aconteceram muito rápido, escapando ao meu controle. Não
queria ser aquela que entrava em algo de cabeça sozinha, mas também não
queria ser a covarde que fugia sem tentar.
A única solução seria levar as coisas com calma, dando um passo de cada
vez. Romeo já dormia em seu quarto e eu jantaria com Luke na pequena mesa de
dois lugares, na minha casa, torcendo para ele não acordar. Eu o conheceria
melhor, veria se tínhamos algo em comum, evitando o contato entre os dois e
mantendo a fé que tudo daria certo no final.
Olhei meu reflexo no espelho do quarto, satisfeita com a imagem
refletida. Escolhi um vestido rosa queimado, marcado na cintura e mais soltinho
embaixo e sapatos pretos básicos de salto médio. Não fiz nada especial com o
cabelo, apenas lavei e o sequei com o secador. A raiz castanha me incomodou.
Sentia falta da minha cor natural e, quando as coisas se resolvessem, voltaria a
ser morena. Para completar, apliquei uma leve camada de maquiagem e pus um
par de brincos prateados, redondos e simples.
A campainha tocou e meu corpo travou. Respirei fundo até me acalmar e,
obrigando minhas pernas a obedecerem aos meus comandos, caminhei até a
porta repetindo para mim mesma que as pessoas marcavam encontros todos dias
e eles ocorriam sem maiores problemas. Não seria diferente comigo.
Luke, como sempre, estava muito bonito, todo de preto. Analisou-me
sem disfarçar, os olhos escurecidos pela baixa iluminação enquanto apreciava
cada parte do meu corpo.
— Você está linda. — O elogio sincero fez maravilhas ao meu ego. Valeu
a pena cada minuto gasto cuidando da aparência.
Sorri, de repente sentindo-me menos nervosa.
— Obrigada. Entra.
Luke se aproximou e inclinou o rosto até o meu, depositando,
propositalmente, um beijo demorado no canto da minha boca. Desejei que se
movesse um pouquinho, iniciando um daqueles beijos avassaladores que me
tirava o ar.
— Trouxe vinho. — Afastando-se, entregou-me a garrafa. — É o meu
favorito, espero que seja do seu agrado.
— Tenho certeza que será. — Fechei a porta e caminhei para a cozinha.
— Também espero que você goste do que preparei. Fiz mexilhões e batata frita.
— Sou alérgico a frutos do mar.
O braço parou antes de alcançar o armário e virei para encará-lo,
boquiaberta.
— Ah, não acredito! Deveria ter te perguntado. Mas não se preocupe,
vou ligar e pedir algo em um restaurante da sua preferência. Tudo por minha
conta! Não imaginei que… Por que está rindo? — Estreitei os olhos,
desconfiada.
— Estou me perguntando se este é o momento para confessar que não
passou de uma brincadeira e que adoro frutos do mar — confessou, tentando
parecer arrependido, mas claramente se divertindo às minhas custas.
— Não teve graça nenhuma! — Bati a porta do armário, apontando o
dedo para ele. — Por causa disso, não vai ganhar a sobremesa que fiz. E sei que
adorou a minha torta alemã.
— Tudo bem, aceito o castigo. — Levantou as duas mãos em sinal de
rendição e me puxou pela cintura. — Estou mesmo interessado em um doce
totalmente diferente — sussurrou a última parte no meu ouvido.
— Hã… Essa sobremesa também está suspensa por conta da brincadeira
sem graça. — Tive a presença de espírito de responder, perdida entre o gostoso
perfume masculino e os arrepios que a voz rouca provocava.
Luke riu no meu pescoço, dando vários beijos até alcançar outra vez o
ouvido.
— Aposto que conheço um ou dois truques para te fazer mudar de ideia.
E eu apostava que ele conhecia bem mais do que um ou dois. Era uma
coleção completa.
Luke contornou o desenho da minha boca com a ponta da língua e
emaranhou os dedos nos meus cabelos. Acariciei o peitoral com as mãos,
arrastando-as até os ombros, e fiquei na ponta dos pés para dar início a um novo
beijo, completamente viciada nas sensações arrebatadoras que somente ele foi
capaz de despertar em mim.
Pela primeira vez na vida, acreditei na tal química que Miranda tanto
dizia sentir com Dax. Achei que a história de incendiar com um toque, derreter
com um beijo e não conseguir pensar em outra coisa que não no próximo
encontro eram subterfúgios que ela usava para justificar o relacionamento com
alguém tão perigoso e de caráter duvidoso.
— Acho melhor jantarmos ou a sua comida não vai ser devidamente
apreciada — disse ele, após parar o beijo.
Acomodamo-nos na mesa simples, mas bem arrumada.
— Fique à vontade para se servir — falei, enchendo duas taças de vinho
até a metade.
Depois de dar a primeira garfada, Luke sentenciou:
— Você cozinha muito bem, Eveline. Está uma delícia.
— Obrigada. Fico feliz que tenha gostado.
A maioria de nós não se dava conta de que os pequenos detalhes eram o
que importava. Há quanto tempo não elogiavam a minha aparência ou comida?
Eu não fazia ideia do quanto queria receber as gentilezas até elas serem dirigidas
a mim. O ser humano tinha a feia mania de contentar-se com pouco, acostumar-
se ao que não fazia bem, aceitar migalhas.
Comemos em um silêncio amigável. O vinho era deleitável, o sabor
suave fez maravilhas ao meu paladar. Luke repetiu a refeição duas vezes, sinal
de que havia realmente apreciado a receita. Aparentemente satisfeito, recostou
no respaldar da cadeira e balançou a taça, girando o líquido escuro em
consequência.
— Então, Eveline, me conte os seus segredos.
Engasguei com a bebida, levando o guardanapo com rapidez até a boca.
— Segredos?
— Sim, todo mundo tem os seus — explicou calmamente, como se a
simples pergunta não houvesse me feito quase ter uma síncope.
— Tenho certeza que descobriu tudo sobre mim na investigação que fez
antes de me contratar. — Ganhei tempo.
Demandava um esforço gigantesco manter o controle, uma vez que meu
coração batia descompassadamente.
— Apenas as coisas que qualquer um pode descobrir. É diferente quando
escutamos da própria pessoa. Qual é a sua história?
— Nada extraordinário ou feliz, posso garantir. Não conheci meus pais,
fui deixada bem novinha em um orfanato católico, onde vivi por muitos anos.
Não era o melhor lugar do mundo, mas estava longe de ser o pior. Ao atingir a
idade máxima, passei por alguns lares adotivos, a maioria bem disfuncional. As
coisas melhoraram quando consegui uma bolsa em uma faculdade. Engravidei
no último semestre, me formei e aqui estou.
— Nunca sentiu vontade de procurá-los? Seus pais biológicos.
— Quando era criança, sim, muitas vezes. Todos os dias antes de dormir
ficava imaginando o que poderia ter levado minha mãe a abrir mão da filha, mas
nunca tive uma pista. Ao contrário da ficção, não recebemos um medalhão ou
objeto exclusivo capaz de nos levar até à nossa família. — Molhei os lábios,
notando como era mais fácil falar sobre meu passado desde a chegada de
Romeo. Depois dele, não cultivava mais o sentimento sufocante de abandono e
solidão. — Cheguei à instituição com a roupa do corpo e um cobertor velho.
— Amigos?
— Nunca fui uma pessoa muito social, mas tenho uma grande amiga,
sim, uma irmã de alma. Nos conhecemos em um dos lares. Ela é a madrinha de
Romeo.
— Deve ser difícil ficar longe dela.
— É sim — confirmei, passando o dedo displicentemente pela borda da
taça. — Mas algumas ocasiões exigem mudanças e sacrifícios.
— Namorados?
O rumo da conversa começava a me incomodar. Consertei a postura,
pigarreando.
— Só tive um homem. Não deu certo, então segui em frente com meu
filho.
— Dois homens.
— O quê?
— Você teve dois homens, Eveline.
— Sim, é verdade — concordei, tomando um grande gole do vinho, sem
querer analisar o que aquela afirmação causou no meu sistema nervoso. —
Agora chega de falar sobre a minha vida. E você? Qual é a sua história?
— Não tenho do que reclamar. Perdi o meu pai muito cedo, não tenho
muitas recordações dele, apenas o que a minha mãe fala. Após alguns anos, ela
se casou com o pai das minhas irmãs, por quem nutri verdadeira admiração.
Thomas desempenhou o papel de pai e teve influência direta em quem sou hoje.
Infelizmente ele também morreu em serviço. Foi um período sombrio e
doloroso, mas tivemos a sorte de poder nos apoiar uns nos outros.
— Foi por isso que se alistou? Pelo seu padrasto?
Ele assentiu.
— Foi a maneira que encontrei para homenageá-lo. Mas dona Rebecca
não ficou feliz com a ideia. — Sorriu ao falar na mãe.
— Posso imaginar. Eu ficaria apavorada no lugar dela.
— Era algo que eu precisava fazer. Ele mereceu.
Era precisamente aquele tipo de comportamento que eu esperava do
homem que quisesse se relacionar comigo. Não seria suficiente me amar, porque,
se aquele amor não se estendesse ao meu filho, significaria que não era digno de
compartilhar a vida com ele. Ou comigo.
— Vou ter o direito de comer um pedaço da sua torta ou ainda estou de
castigo? — indagou, parecendo uma criança.
Dei risada, levantando-me em seguida para pegar a sobremesa. Pus o
pirex na mesa e entreguei uma colher e o pequeno recipiente para Luke.
— Da próxima vez, você fica sem — ameacei.
Ele me encarou de um jeito estranho.
— Que foi? — perguntei.
— Você acabou de admitir que haverá uma próxima vez.
Abaixei a cabeça, pensando que precisava tomar muito cuidado com o
que falava perto de Luke. Ele não deixava nenhum detalhe passar em branco.
Admirada, observei-o repetir o doce três vezes.
— Delicioso — disse, passando a língua nos lábios.
A minha mente, que andava bastante poluída nos últimos dias, enxergou
maldade no gesto. Precisei reprimir a vontade de me inclinar sobre a mesa e
lamber a boca carnuda para sentir o gosto do doce diretamente dela.
— Vai me levar para conhecer o seu quarto? — sugeriu, aparentando ter
lido meus pensamentos. — Eu gostaria de comer a minha sobremesa favorita
agora.
Levantando-me pelos ombros, beijou-me profundamente. A mistura de
vinho e doce na boca dele era inebriante, de modo que me perdi pela centésima
vez na chama que crepitava cada vez que nossos corpos se tocavam. Engoli um
gemido profundo, enquanto Luke apertava a minha bunda com força.
— Na porta à direita — informei entre um beijo e outro.
Luke praticamente me arrastou até lá sem desgrudar nossos lábios e, sem
perder tempo, me empurrou com delicadeza na cama, repousando o corpo
musculoso em cima do meu, a ereção potente esfregando minha barriga. Prestes
a levantar a blusa dele, uma conhecida voz infantil chamou “mamãe”.
Soltando um gemido frustrado, Luke saiu de cima de mim e eu levantei
rápido, ajeitando o vestido.
— Ele ainda está se adaptando ao quarto novo. Já volto.
— Leve o tempo que precisar.
Romeo estava sentado na cama, os pequenos olhos apreensivos enquanto
abraçava o velho urso surrado. Relaxou visivelmente com a minha chegada.
Deitei ao lado dele e foi preciso duas histórias de super-heróis para fazê-lo voltar
a dormir.
Ajeitei o cobertor, deixei o abajur ligado e voltei para o meu quarto.
Não esperava me deparar com Luke igualmente adormecido, um braço
cobrindo os olhos, a outra mão espalmada na barriga. Meu lado racional gritava
para acordá-lo e mandá-lo embora, afinal, ele tinha a própria casa, mas o coração
mole venceu a batalha. O pobre coitado passara a última semana se matando de
trabalhar. Não fazia ideia de como ainda conseguia se manter de pé.
Troquei o vestido por uma camisola, retirei a maquiagem e escovei os
dentes. Com cuidado, aproximei-me da cama e me acomodei ao lado dele.
Pensei que o fato de haver outra pessoa na minha cama fosse me fazer
demorar para pegar no sono. Porém, estranhamente, adormeci assim que
encostei a cabeça no travesseiro.
CAPÍTULO 16
Afeição

O dia vinte e quatro de dezembro amanheceu gélido, a rua parcialmente


encoberta pela neve que caíra na madrugada. Ajustei a temperatura do aquecedor
no quarto de Romeo, que ainda dormia, e fui preparar café, desejando que o
líquido quente diminuísse o meu frio. De folga, aproveitaria o dia para limpar a
casa e lavar roupas. À noite, jantaria na casa de Rebecca a convite dela e Lucy.
Nunca achei que aquela época do ano fosse motivo para comemorações.
A decoração era linda e encantadora, as cidades iluminadas pareciam ser
envolvidas por uma espécie de magia, mas o período era responsável por
lembrar-me a minha condição de órfã. Chorei muitas vezes, triste por não ter
família para partilhar o verdadeiro sentido do Natal. Por isso, tendia a me sentir
um pouco desanimada durante o feriado. Preferia ficar quieta, assistindo algum
filme com um grande copo de chocolate quente como companhia. Mas não pude
recusar o pedido gentil de Rebecca depois de tudo que a mulher fez e ainda fazia
por mim.
Dois dias atrás, Lucy tinha me arrastado até o shopping para fazer as
compras natalinas. Foi a primeira vez na vida que participei do ritual e, embora
um pouco da animação dela houvesse passado para mim, achei a atividade
extremamente cansativa e irritante. As lojas estavam lotadas, as pessoas
pareciam dispostas a sair no tapa pelas últimas peças em promoção.
Uma parte do meu guarda-roupa se encontrava abarrotada de sacolas de
presentes comprados com um dinheiro que eu não deveria estar gastando. Mas
fazer o quê? Seria falta de educação aparecer de mãos vazias.
Não sabia qual era a opinião de Luke sobre passarmos a data na casa de
sua mãe. Nos nossos últimos três encontros pessoais, ele não tocara no assunto,
então eu também não quis levantar a questão e arriscar criar uma situação
desconfortável. Se ele tivesse algo contra a minha presença, certamente me
deixaria saber.
No final da tarde, a casa estava limpa e as roupas devidamente lavadas,
dobradas e guardadas. Dei banho em Romeo e o agasalhei bem com as roupas
novas apropriadas para o inverno rigoroso da cidade. Em seguida, deixei-o
assistindo desenho animado na tevê para tomar meu próprio banho. Prestes a
fechar a porta do banheiro, o toque do celular me assustou.
Era a primeira vez que ouvia o som desde que cheguei em Naperville.
Com o coração ameaçando sair pela boca, praticamente corri até o quarto e abri
a gaveta de lingeries, remexendo-a até encontrar o pequeno aparelho enrolado
em uma calcinha velha. Algo devia ter acontecido para Miranda me ligar.
— O que foi?
— Uau! Olá para você também, querida amiga. Eu vou bem, obrigada
— respondeu de maneira sarcástica.
— Desculpe-me por não me atentar à etiqueta, mas imaginei que somente
alguma coisa séria faria você quebrar a própria regra e entrar em contato.
— Achei que a ocasião permitia. É Natal, fiquei com saudades e vontade
de falar com a minha melhor amiga. É algum pecado, por acaso?
Suspirei aliviada, sentando-me na borda da cama com um sorriso no
rosto.
— Também estou com muita saudade. Queria que estivesse aqui com a
gente — confessei, abatida.
— Quem sabe no ano que vem? Como está o meu afilhado?
— Parece outra criança, Mi. Agora que frequenta a creche, está mais
solto e falante. Todos os dias aprende uma palavra nova. — Como a mãe coruja
que era, meu peito encheu de orgulho ao falar do meu pequeno.
— Que bom ouvir isso, Eve! De verdade. Por favor, dê um abraço
apertado e muitos beijos naquelas bochechas gordinhas por mim. Diz a ele que
a dinda pensa nele todos os dias.
— Pode deixar. — Engoli em seco, esforçando-me para não chorar. — E
por aí, tudo bem?
— Do mesmo jeito. Você sabe que detesto o Natal, então estou ficando
mais em casa para evitar a alegria forçada das pessoas.
A mãe de Miranda havia morrido no dia vinte e cinco de dezembro,
tornando o feriado traumático para ela.
— E Bryan? Tem notícias dele? — inquiri, roendo as unhas.
Por mais que não quisesse ouvir aquele nome nunca mais, o desejo de
estar a par das novidades era inevitável. Uma questão de autopreservação.
Os instantes de silêncio me deixaram em alerta.
— Miranda? Você sabe alguma coisa e não quer me contar?
— O imbecil teve a audácia de aparecer por aqui. Os homens de Dax
quase deram cabo dele.
— O que ele fez?
— A mesma palhaçada de sempre. Gritou aos quatro ventos que te
amava, não sabia viver sem você e Romeo. Me acusou de saber seu paradeiro,
mas fingi que soube por ele sobre a fuga. Quando percebeu que não conseguiria
nenhuma informação, pediu desculpas, como o bom covarde que é, e foi embora.
— E depois? — insisti, a bile subindo pela garganta.
— Depois nada, foi só isso. Mas não liguei para falarmos sobre o
embuste. Quero saber da sua vida, seu trabalho, a nova rotina. — Mudou de
assunto.
Conversamos cerca de quinze minutos. Resumi para ela os últimos
acontecimentos, ocultando a parte do envolvimento com Luke. Não por falta de
confiança, mas para evitar as milhares de perguntas que Miranda faria. Perguntas
que eu não saberia responder e, sendo curiosa por natureza e atenta aos mínimos
detalhes, logo perceberia a confusão amorosa em que me meti.
Quando desligamos, apesar da saudade, sentia-me feliz por ter ouvido a
voz dela.
Sorri ao toque da campainha. Só uma pessoa apareceria na véspera de
Natal sem avisar: dona Gloria. A mulher, vez ou outra, aparecia para conversar,
sempre disposta a me fazer experimentar uma receita mexicana.
No entanto, não foi o rosto franzido de traços latinos que vi ao abrir a
porta, mas um moreno alto, forte, bonito, de olhos castanhos e todo agasalhado,
assoprando as mãos para espantar o frio.
— Luke? O que está fazendo aqui?
— Buscando vocês. — Arqueou uma sobrancelha, como se a resposta
fosse óbvia.
Talvez fosse mesmo, se ele tivesse me avisado que viria.
— Eu estava quase chamando um táxi.
Ele inclinou o rosto para me beijar, porém, empurrei-o levemente no
peito, apontando com a cabeça para o lado. Após seguir meu gesto com o olhar e
notar que Romeo nos encarava do sofá, sorriu e desviou os lábios até a
bochecha.
— Me ajuda com os presentes? — pedi, indo até Romeo para pegá-lo no
colo.
Luke observou a quantidade de sacolas espalhadas pela sala e estreitou os
olhos.
— Você e Lucy compraram o shopping inteiro?
— Não exagera — desconversei.
Tranquei a casa, caminhei rapidamente até o carro, ajeitando Romeo na
cadeirinha, e me acomodei no banco da frente. Estava muito frio.
— Mamãe, caiu.
— O que caiu? — Virei para trás, encarando Romeo.
— Caiu. — Apontou para o chão do carro.
Luke abriu a porta traseira e abaixou para recuperar um dos bonecos que
devia ter escapado das mãos pequenas.
— Que Homem-Aranha legal — comentou, devolvendo o super-herói a
ele.
— Muito égal — concordou, animado.
Luke sorriu e bagunçou o cabelo dele. Olhei para frente, decidida a não
permitir que a breve interação mexesse comigo.
A caminho da casa de Rebecca, Luke apertou o meu joelho e disse
baixinho:
— Você está linda.
— Obrigada, você também.
— Mesmo parecendo um boneco de neve com todas essas camadas de
roupa? — brincou.
— Mesmo assim — garanti, rindo.
A mão coberta pela luva não saiu da minha perna. E, durante o resto do
percurso, meu coração parecia estar correndo uma maratona.
Rebecca Buttler veio nos recepcionar com um enorme sorriso no rosto.
Tanto a frente quanto o interior da casa tinham recebido uma linda decoração de
Natal, tornando o ambiente quase irreconhecível.
— Que bom que vieram! — disse, abraçando-me e abaixando-se para dar
um beijo em Romeo.
— Obrigada por nos convidar — agradeci.
— Venha, quero que conheça Laura. — Arrastando-me pelo braço,
aproximamo-nos de uma morena idêntica à Lucy. — Laura, querida, essa é
Eveline.
As únicas diferenças perceptíveis, à primeira vista, eram o comprimento
do cabelo — o de Laura estava acima dos ombros, enquanto os de Lucy
alcançavam a cintura —, o físico — a mais velha era maior e um pouco mais
magra —, e os olhos — os da primeira eram castanhos como os do irmão, não
verdes como os da caçula.
Ela se levantou para me cumprimentar.
— É um prazer conhecê-la, Eveline. Minha mãe e Lucy falaram bastante
sobre você.
— Meu Deus! Você e Lucy poderiam se passar por gêmeas — falei,
incapaz de segurar a língua diante da absurda semelhança.
— Nunca canso de ver os rostos chocados das pessoas quando
descobrem que sou dois anos mais velha. — Sorriu, virando para o homem ao
seu lado. — Meu namorado, Anton, ficou quase tão surpreso quanto você.
— É assustador, não podem nos culpar — acrescentou Anton,
estendendo a mão para mim.
Iniciamos um diálogo descontraído, enquanto meus olhos procuravam
Romeo, que brincava com Lola no carpete da sala, em frente à televisão.

Deixei o pequeno grupo e entrei na cozinha à procura de uma bebida


quente. A temperatura caíra consideravelmente nos últimos dias. Tirei as luvas,
colocando-as em cima da mesa, e enchi um copo com chocolate quente. Preferia
algo alcoólico, mas ainda dirigiria naquela noite e meu turno começaria cedo no
dia seguinte. Aturar George e Ashley Thompson com ressaca era mais do que
um homem poderia aguentar.
— Chocolate quente? O que está acontecendo com o mundo?
Sorri para Lucy que, ao contrário dos demais, optou por permanecer
confortável no pijama grosso e pantufas de cachorros espalhafatosas. Alguns
anos atrás, ao ter o comportamento questionado por dona Rebecca, respondera
que não fazia o menor sentido se produzir para jantar em casa.
— Pego cedo no batente amanhã — respondi. — Quer?
— Não, obrigada. — Cruzando os braços, recostou no balcão de madeira.
— Você não acha o nome do namorado de Laura estranho? Parece que os pais
ficaram com preguiça e pararam na metade. Tenho certeza que queriam batizá-lo
de Antony, por exemplo, não Anton, o homem do nome cortado.
Dei risada, balançando a cabeça. A mente dela merecia ser estudada.
— Mais estranho que o nome, é Laura não ter contado a ninguém que
estava namorando e pretendia trazer o homem para casa. Um pouco precipitado
para o tempo de namoro.
— Não a julgo por isso. Até parece que você não conhece Rebecca
Buttler, Luke. Se Laura contasse a ela sobre o namoro, não teria um minuto de
paz na vida até a viagem. Além disso, os dois parecem apaixonados. Gostei dele.
— Preciso de mais tempo e algumas trocas de palavras para tirar minha
própria conclusão — afirmei, tomando um gole do chocolate.
— Ah, por favor, né? Não vá bancar o irmão superprotetor e envergonhá-
la. Laura é adulta.
— Quando foi que as envergonhei? — questionei, confuso.
Lucy revirou os olhos, sorrindo.
— Posso fazer uma lista. Quer por ordem alfabética ou cronológica?
A campainha tocou.
— Deve ser Matt — comentei.
A diversão desapareceu do semblante dela. Lucy enrijeceu e travou o
maxilar. Aquela reação era, no mínimo, inusitada. Os dois sempre discutiam,
mas nunca tinha presenciado uma reação parecida à simples menção do nome
dele.
— Que foi?
— Nada. — Desviou o olhar. — Acho que vou subir para o meu quarto.
Me chame quando chegar a hora de trocar os presentes.
Segurei seu pulso, impedindo-a de se afastar.
— Quer que eu o despache?
Ela nem fingiu não saber do que eu falava. Respirou fundo e me encarou.
— Não precisa. Sei que ele não tem família e não quero que passe o
Natal sozinho.
— Matt é meu melhor amigo, mas você e Laura sempre serão
prioridades.
— Eu sei, Luke. Não precisa se preocupar com isso, está bem? Já passou
da hora de seguir em frente e deixar toda essa história patética para trás.
— Que porra aconteceu entre vocês dois naquela boate? — questionei,
achando a situação estranha pra caralho.
— Nada — desconversou. — Ele só disse algumas coisas que eu
precisava ouvir. — Abri a boca para insistir, mas Lucy emendou: — Deixa esse
assunto para lá, por favor. Se for te deixar mais tranquilo, fico aqui, nada de
quarto.
Voltamos para a sala juntos. Lucy se juntou à minha mãe, Eveline, Laura
e o namorado, enquanto Matt sentou-se ao meu lado no sofá. Conversamos sobre
trabalho, esportes e carros até a anfitriã animada nos chamar para trocar
presentes.
Tudo ia bem, mas, em certo momento, Lucy e Eveline entraram em uma
discussão.
— Você está louca! Não vou aceitar um celular! — Eveline negou,
estendendo a caixa para Lucy.
— Pelo amor de Deus, deixe de ser teimosa! Eu preciso conseguir falar
com você sempre que quiser.
— Eu ia comprar um nos próximos dias.
— Que bom, agora não precisa mais.
— Combinamos que os presentes não seriam caros, Lucy. Não quero que
fique gastando o seu dinheiro comigo.
— O dinheiro é meu e faço o que quiser com ele. Se nunca te
informaram, quando recebemos um presente, simplesmente agradecemos, não
brigamos com quem nos presenteou.
Divertido, observei o embate de longe. Apostaria minha casa e carro em
Lucy. E estava correto. Eveline foi derrotada pelo cansaço.
— Alguma pessoa já ganhou uma discussão com a sua irmã? — Ela quis
saber, sorrindo ao se aproximar depois da confusão.
— Não que eu saiba.
— Você acredita que ela me deu mesmo um celular?
— É de Lucy que estamos falando. — Dei de ombros.
Sorriu outra vez. Aproveitando a oportunidade, estendi o pequeno
embrulho para ela.
— Se eu soubesse que o nível da competição estava tão alto, teria
caprichado mais.
Timidamente surpresa, abriu o conteúdo.
— Como você sabia o meu perfume?
— Sou um homem atento aos detalhes, Eveline. Principalmente daquilo
que me interessa — respondi, empregando duplo sentido à frase de propósito.
— Obrigada, foi muito atencioso. — Abaixou a cabeça, mordendo o
lábio. — Também tenho algo para você. Não conheço seu gosto, mas lembrei de
você quando vi na vitrine.
Era um relógio de pulso masculino elegante. Um modelo que eu mesmo
compraria para usar.
Agradeci rapidamente, no intuito de mudar o assunto. Sentia-me
desconfortável ao receber presentes.
— Ei, campeão. — Segurei Romeo pelo ombro. — Esse aqui é seu.
Os olhos do menino duplicaram de tamanho. Encarou o embrulho com
fascinação, parecendo ter dúvidas se acreditava ou não que era dele. Depois,
desviou o olhar para mãe, como a pedir a permissão dela para se aproximar.
Olhou-me, depois observou Eveline e de novo o presente. Ela assentiu, sorrindo.
Era uma rampa de obstáculos com vários carrinhos que se encaixavam na
mesma.
Notando a animação e total inexperiência sobre o próximo passo, sentei
ao lado dele.
— Posso te ajudar a montar? — sugeri.
— Pode! — aceitou, mais à vontade na minha presença.
E, durante a meia hora seguinte, eu “o ajudei”.
Foi um típico jantar da família Buttler, barulhento, desorganizado e cheio
de provocações. Dona Rebecca parecia nas nuvens por ter finalmente os três
filhos reunidos e por um deles estar namorando. Perguntava-me se ela percebia
que, se o relacionamento fosse adiante, reuniões como aquela se tornariam mais
raras. Anton era um empresário de trinta anos com a vida bem estruturada na
Alemanha, eu achava difícil que estivesse disposto a mudar para os Estados
Unidos. Era provável que Laura, enquanto estudante de psicologia, criasse raízes
na Europa.
Eveline se encaixava bem no meio deles. Mais ouvia que falava,
talentosamente direcionando o assunto para longe de si mesma. Talvez fizesse
involuntariamente ou talvez houvesse percebido que a maioria das pessoas é
arrogante o suficiente para se sentir lisonjeado em falar sobre a própria vida por
horas a fio, sem se dar conta que a outra parte não tinha soltado nenhuma
informação relevante.
Ela seguia sendo um enigma. Um que eu estava disposto a decifrar.
Observei-a sair da sala rumo ao banheiro, após pedir licença.
Disfarçadamente, segui-a até lá, empurrando-a para nos trancar no cômodo que
evocava boas recordações. Ali tudo tinha começado.
— Você me assustou! Quase gritei, seu maluco. — Deu um tapa em meu
braço, ofegante.
— De repente, os banheiros ganharam um novo significado pra mim.
Prendendo-a entre o meu corpo e a bancada da pia, murmurei a
centímetros da sua boca:
— Rápidos encontros nos banheiros não são mais suficientes para mim.
Preciso passar uma noite inteira com você em uma cama, te fodendo em várias
posições.
Eveline apertou meu braço, o olhar cheio de desejo.
Segurei sua nuca, mantendo-a no lugar, quietinha, e a beijei na boca,
explorando todos os recantos com a língua.
— Era um beijo assim que tinha em mente hoje mais cedo — falei,
lambendo-a atrás da orelha. — Quero passar a noite com você.
— Eu também.
Mordendo o pescoço delicado, afastei o rosto para encará-la.
— Vamos sair daqui. Você vai descer e agir normalmente enquanto se
despede de cada um naquela sala, mas o tempo todo vai pensar na minha boca e
meus dedos em você, em tudo que vou fazer com o seu corpo gostoso em alguns
minutos.
CAPÍTULO 17
Criando Laços

Era impressionante a forma que o clima mudou de uma hora para outra.
Passar a véspera de Natal na casa de Rebecca foi, sem dúvidas, uma
experiência inesquecível. A conversa girou entre os mais variados assuntos, mas
a anfitriã divertiu a todos revelando segredos e situações constrangedoras vividas
pelos três rebentos. Há muito tempo eu não ria tanto, relaxada e feliz, quase
sentindo como se fosse parte de algo maior, uma família amorosa e unida.
Descobri que as semelhanças entre Lucy e Laura eram meramente
físicas. Enquanto a primeira exalava energia, parecendo incapaz de ficar quieta
mais que alguns minutos, no limite da civilidade ao emitir opiniões sobre o que
quer que fosse, a segunda era calma, com voz macia, sorriso delicado e
reconfortante. Pensei que seria uma excelente psicóloga, pois possuía a
habilidade de passar confiança com um simples olhar. Simpatizei com ela
imediatamente.
O namorado se mostrou mais retraído, calado, às vezes meio perdido em
meio às vozes animadas, uma se sobrepondo às outras para ser ouvida. Talvez
fosse sua veia europeia. O fato era que os dois demonstravam uma cumplicidade
invejável apesar das diferenças.
Lucy interagiu como de costume, mas notei tensão entre ela e Matt. E
para quem os via sempre dispostos a irritar um ao outro, era estranho presenciar
o afastamento silencioso, calculadamente civilizado. Pensei que era natural,
depois da boate.
A alegria do meu filho, no entanto, foi o que teve o poder de aquecer meu
coração. Ele brincou com Lola a maior parte do tempo, como se só existisse a
pequena cadela no mundo. E, enquanto recebia um brinquedo atrás do outro,
parecia não acreditar que eram, de fato, dele. O ápice da minha noite se deu no
instante em que Luke sentou-se ao lado dele e o ajudou a montar a pista de
carrinhos com obstáculos. Romeo mostrava uma felicidade tão mal contida,
concentrado e absorto na atividade, que precisei usar cada gota de autocontrole
para não chorar feito uma idiota na frente de todos.
Aos três anos de idade, era a primeira vez que meu filho recebia a
atenção absoluta de um homem. Bryan não tinha tempo, paciência ou interesse
em ser pai. Gostava de atuar na frente dos amigos, para sair bem na fita. No dia-
a-dia era bem diferente, a máscara caía.
E então, fui jogada da extrema emoção materna diretamente para um
frenesi sexual intenso, que só Lucas Hayes conseguia despertar. Um beijo na
boca e algumas palavras sussurradas ao pé do ouvido foram suficientes para me
pôr de pernas bambas, ansiosa para chegarmos em casa e permitir que ele
cumprisse promessa por promessa. Eu não era uma mulher que chegava ao
orgasmo com facilidade, pelo contrário, a maioria das vezes não atingia aquele
pico delicioso de prazer. Entretanto, desde a nossa primeira transa, alcançava a
borda com rapidez. Luke sabia onde, como e com que intensidade tocar para me
proporcionar sensações inenarráveis. Era um amante atencioso e nada egoísta.
Fazia questão de dar prazer na mesma intensidade que recebia. Às vezes
inclusive mais.
Enquanto o carro cortava a cidade, Romeo adormecido na cadeirinha,
Lola deitada ao seu lado, descansando o rosto entre as pequenas patas, me dei
conta de que estava quebrando as regras novamente. Jurei não o deixar dormir na
minha casa e, no entanto, estávamos indo diretamente para lá, onde passaríamos
a noite acordados, perdidos nos prazeres da carne. Depois, prometi não permitir
Romeo criar um vínculo com ele, mas vi, de mãos atadas, os dois interagirem
como se fizessem aquilo há anos, na maior naturalidade.
Eu precisava tomar muito cuidado para não me apaixonar perdidamente
por Luke.
Entrei na casa parcialmente escura e fui até o quarto de Romeo. Estava
tão cansado que não acordou quando o coloquei na cama e troquei as roupas
grossas por um pijama confortável e quentinho. Lola nos seguiu até lá, abanou o
rabo para mim e, em um pulo impressionante para uma criatura tão diminuta,
subiu na cama. Cheirou o colchão, deu várias voltas em si mesma e deitou com
as costas coladas às dele. Segundo Luke, a cadela tinha ido ao petshop mais
cedo, de modo que o lacinho vermelho a deixava engraçadinha.
Sorrindo, liguei o abajur e encostei a porta, retornando para sala. Sentado
no sofá, Luke perguntou:
— Lola?
— Perfeitamente à vontade na cama de Romeo.
— Tenho a leve sensação de estar sendo trocado — brincou, levantando-
se para caminhar até mim.
— Não posso negar. Parece que sua cadela não resistiu ao charme do
meu filho — respondi, querendo fazer graça também. — Se servir de consolo,
tenho certeza que ele foi igualmente fisgado pelo charme canino.
Passou um braço na minha cintura, puxando-me para perto.
— Enfim, sós. Vai deixar eu me aproveitar de você pelo resto da noite?
— indagou, abrindo um sorriso safado.
— Só se você fizer o mesmo. — Passei as mãos nos ombros fortes.
— Sou todo seu. — Abriu os braços. — Faça o que quiser comigo.
Soltei uma risada nervosa, sentindo-me excitada e envergonhada na
mesma medida. Sempre foi ele quem tomou a iniciativa e conduziu o ato. Luke
era um homem dominante na cama e aquilo não me incomodava. Não tinha
como incomodar quando o resultado era tão inebriante e satisfatório. Mas era
igualmente atraente tê-lo à minha mercê para fazer o que desejasse.
Na ponta dos pés, aproximei o rosto do seu pescoço, inalando o aroma
gostoso da sua pele. Em seguida, timidamente, passei a língua na região,
imitando o gesto que ele fizera comigo tantas vezes. A respiração de Luke
acelerou, as mãos grandes apertaram minha cintura com força, reagindo com
intensidade às minhas carícias.
Gostei daquilo. Subi as mãos para a nuca, arranhando o couro cabeludo
com as unhas e elevei ainda mais o corpo, alcançando a orelha. Mordi o lóbulo,
beijei, passei a língua e voltei a morder. Fui agraciada com o gemido rouco, a
ereção firme na minha barriga. Deslizei a boca para o queixo, o canto da boca e
mordisquei o lábio macio. Beijei-o com vontade, demonstrando que ele me
deixava louca, que eu o desejava da mesma forma que ele a mim.
Luke soltou um ruído bruto, chupando minha língua como gostava de
fazer, sem nenhuma delicadeza. O meio das pernas latejava, os seios estavam
tesos, os mamilos eretos e pontudos esmagados no peitoral quente. Mesmo por
cima das camadas de roupas, conseguia sentir a alta temperatura do corpo dele.
Sem desgrudar nossos lábios, Luke se impulsionou para frente, obrigando-me a
ir automaticamente para trás. Como chegamos ao meu quarto sem atingir um
móvel ou parede era um mistério.
A porta foi fechada em um baque. Luke girou nossos corpos, invertendo
as posições, e me pressionou contra a madeira branca. Enfiei as mãos por baixo
da sua blusa, arranhando os músculos das costas bem definidos, que se
contraíram involuntariamente. Levantei a barra do tecido, pausando o beijo para
retirá-la por completo. Maravilhada com a visão, espalmei a mão no peitoral,
abaixando a cabeça para distribuir beijinhos por toda a extensão. Ele arfou,
pressionando meu rosto na pele incandescente.
Enrosquei o dedo no cós da calça jeans, tornei a alterar nossas posições e
puxei Luke até a cama. Sentei na beirada, mirando o rosto tenso, maxilar
travado, os olhos escurecidos pelo desejo reprimido. Com as mãos trêmulas, abri
o botão da calça e desci o zíper. Em seguida, abaixei a cueca. O membro duro
despontou na minha direção em toda sua glória. Ansiosa, permiti-me tocá-lo pela
primeira vez.
Ele gemeu alto, agoniado. Fechei a mão ao redor do comprimento,
sentindo-o grosso, grande, quente, muito duro e macio ao mesmo tempo.
Acariciei a carne para cima e para baixo. O corpo inteiro de Luke se retesou,
enrijecendo.
— Caralho, Eveline, você está acabando comigo — grunhiu.
Sorri, sentindo-me poderosa como nunca. De repente, a necessidade de
tirar cada resquício de controle dele era vital. Não gostava de fazer sexo oral,
mas ali, segurando a dureza de Luke nas mãos, observando-o cerrar os olhos e
jogar ligeiramente a cabeça para trás, desejei fazer.
Ele me passava confiança necessária para fazer qualquer coisa e ter a
certeza de que não seria julgada por aquilo. O sentimento de liberdade era
indescritível.
Iniciei beijando a cabeça, pincelando-a com a língua em curtas lambidas.
Incentivada pelos sons de deleite, abri a boca e movi os lábios para frente e para
trás, tomando-o até onde conseguia. O gemido de Luke saiu grosso, torturado.
As mãos ásperas ergueram meus cabelos em um alto rabo-de-cavalo, os
quadris se movendo à procura de profundidade. Minha boca produziu um
barulho seco quando seu pau saiu de forma inesperada. Confusa, busquei seu
rosto, mas, antes de formular qualquer questionamento, a cabeça grossa voltou a
penetrar, esticando meus lábios. Repetiu o gesto inúmeras vezes, sempre
retornando mais fundo, mais rápido.
Eu não era experiente naquela atividade, mas a expressão embriagada no
rosto másculo me disse que estava no caminho certo. Relaxei a garganta quando
enfiou até o limite, esforçando-me para não engasgar. Daquela vez, ao se afastar,
Luke me puxou para cima, agarrou um punhado de cabelo e saqueou minha boca
com fúria.
O inesperado empurrão me derrubou de costas na cama. Arfei, contendo
um gritinho no último segundo, surpresa e excitada. Prendendo-me com o olhar
em chamas, tirou a roupa em rápidos movimentos. Em seguida, ergueu minha
perna para retirar a bota de salto médio, aproveitando para me despir também da
meia. Fez o mesmo com o outro pé. Tão rápido quanto se desnudara, desfez-se
das minhas roupas com falsa calma. A veia da testa protuberante e pulsante
entregava seu verdadeiro estado emocional.
O corpo grande cobriu o meu e, sem aviso, sugou meu mamilo para
dentro da boca, dando início a uma constante sucção, quase dolorosa. Como se
houvesse uma conexão direta entre as duas partes, o estímulo no seio umedeceu
a vagina, que já latejava, antecipando o que viria a seguir. Gemi, acariciando os
cabelos curtos, intimamente desejando que fossem um pouquinho maiores para
os puxar.
Enquanto a língua revezava entre os dois montículos inchados, as mãos
de Luke tocavam todos os lugares, os dedos habilidosos parecendo não se
decidir onde queriam ficar.
— Qual era a sua intenção? Me enlouquecer? — perguntou, mordendo o
mamilo com delicadeza.
— Sim — admiti, ofegante.
A calcinha foi colocada para o lado e seus dedos encontraram a carne
molhada, satisfeito ao encontrá-la preparada. Desceu o pano com impaciência e
arrastou-se pelo colchão, inclinando o tronco para fora da cama até alcançar a
calça jogada no chão de qualquer jeito e, consequentemente, a carteira e
camisinha. Protegeu-se em segundos e voltou à posição anterior.
Afastou minhas pernas, levantando uma coxa até seu quadril, e penetrou-
me completamente em uma estocada firme. Gritei, surpreendida. Não doeu, mas
houve uma pressão grande, a invasão brusca alargando minha carne ao extremo.
Luke calou meus protestos com a boca, aumentando a velocidade das
estocadas, entrando e saindo sem descanso. Entrelacei as pernas ao redor dele,
levantando um pouco os quadris, permitindo uma penetração mais profunda.
Nossos corpos se chocavam, o barulho do encontro mesclando-se aos gemidos
entrecortados.
— Você não faz ideia, Eveline — arfou, encostando o nariz ao meu. —
Não faz ideia como sua boceta é gostosa, quente e apertada. Parece estrangular
meu pau.
Lá estava o palavreado chulo, cru, vulgar, responsável por criar faíscas
internas. Movendo-me para encontrar as arremetidas, arranhei suas costas com
violência, suspendendo o pescoço para plantar uma mordida no ombro.
Precisava fazer alguma coisa para aplacar o fogo que me consumia.
Tentei sair de debaixo dele, contudo, Luke me prendeu com sua força. Na
segunda tentativa, diminuiu a velocidade da penetração, sem pará-la
completamente, e me encarou em confusão.
— Quero ficar por cima — esclareci, repentinamente corajosa.
Os olhos brilhantes adquiriram contornos selvagens. Ele deu espaço,
deitando-se de barriga para cima, e segurou na base do pau para mantê-lo
erguido. Movida pelo tesão, passei uma perna por cima dele, encaixando os
joelhos na cama, um em cada lado do seu corpo. Desci devagar, abrigando cada
centímetro da carne dura dentro de mim. Luke fechou os olhos e jogou a cabeça
para trás, deixando o pomo-de-adão visível enquanto engolia a saliva em busca
de controle. Apoiei as mãos no largo peitoral, acostumando-se com rapidez à
nova posição, subindo e descendo com mais segurança.
— Isso — incentivou, amassando minhas coxas. — Engole o meu pau
inteiro.
Arfei, alucinada com a fricção no clítoris, e desci o tronco, alcançando a
sua boca em um beijo molhado. Luke espalmou minha bunda e, sem que eu
esperasse, deu um tapa firme em uma nádega. Paralisei por uns instantes,
acreditando que a ação traria recordações traumáticas, mas, conforme o pau
continuava a invadir minha boceta e a língua a minha boca, relaxei, suspirando
de alívio. As pernas foram ficando fracas, os tremores intensificando, e gritei ao
receber outra palmada, exatamente no mesmo lugar da anterior. Ardeu e elevou
minha libido à um patamar até então desconhecido.
Percebendo minha dificuldade para me mover, Luke me empurrou para o
lado, empilhou dois travesseiros no meio da cama e disse:
— Agora empina essa bunda pra mim, safada.
Arrastando-me, posicionei-me de bruços como ele pediu, o rosto
repousado no colchão macio, o quadril elevado pelos travesseiros.
— Nunca vou me acostumar à essa visão — confessou, dando um
terceiro tapa ardido na minha bunda.
Quando voltou a estocar, indo torturantemente mais fundo daquele jeito,
gritei, tremendo inteira. Afastou as nádegas, penetrando a carne em brasas sem
dó. Subitamente saiu, dando-me a impressão de vazio. Em seguida, voltou com
tudo, somente para sair outra vez. Ficou nessa brincadeira de tirar e colocar,
esticando-me com a cabeça grossa, frustrando minha busca pelo orgasmo que já
dava sinais.
Apertei o lençol, empinando um pouco mais a bunda, recebendo cada
arremetida com agonia. E então, no instante em que Luke resolveu para de
brincar e retornar às estocadas ritmadas, o formigamento conhecido começou
nas extremidades do meu corpo, evoluindo rapidamente para um orgasmo
arrebatador.
Afundei o rosto na cama, abafando os gritos, enquanto Luke atingia a
própria libertação, todo enterrado em mim, as mãos marcando a pele da minha
cintura.
Ele se retirou, caindo ao meu lado e, gentilmente, retirou os travesseiros
para que eu ficasse mais confortável. Sentia-me incapaz de mexer até os dedos
dos pés, relaxada e lânguida. A mão quente percorreu minhas costas até a
protuberância do traseiro em uma carícia suave.
— Tudo bem?
— Tudo ótimo. Só estou exausta — falei, embolando as palavras.
Luke sorriu, parecendo divertido. Admirei a fileira de dentes brancos
perfeitos.
— Coitadinha. Estamos longe de acabar.
Não tive forças para protestar, avisar que provavelmente dormiria por, no
mínimo, dez horas seguidas. Algum tempo mais tarde, no entanto, Luke me
provou que falava sério e demonstrou que o meu cansaço ficava em segundo
plano quando a perspectiva era o prazer embriagador de estar nos seus braços.
CAPÍTULO 18
Eles Vão Pagar

Passei a virada do ano em casa, na companhia do filme Casablanca. Não


me cansava de assistir ao clássico, já tinha perdido as contas de quantas vezes
testemunhei a história de Rick Blaine e Ilsa Lund. Lucy, Laura e o namorado
foram para uma festa na casa de um amigo em comum. Fui convidada a me
juntar aos três, mas não estava com vontade de me arriscar em um evento festivo
tão cedo depois da última experiência. Rebecca passou na igreja e Luke
trabalhando. Pouco depois da meia-noite, ele me ligou e conversamos
rapidamente, mas o suficiente para me fazer ir à cama com um sorriso no rosto.
Naquela manhã de três de janeiro, Lucy havia passado na minha casa.
Deixamos Romeo com Rebecca, pois as aulas na creche voltariam somente na
próxima semana, e seguimos para a LTM, cumprindo a rotina estabelecida há
algumas semanas. Sonolenta, eu olhava as ruas da cidade de maneira distraída,
repassando mentalmente todas as atividades do dia, quando a voz apreensiva
irrompeu meus pensamentos:
— Eve, não quero que entre em pânico, mas acho que estamos sendo
seguidas.
As palavras demoraram a penetrar minha mente, principalmente porque
não era o tipo de frase que costumávamos ouvir no dia-a-dia.
— Por que você acha isso?
— A van branca, atrás do carro vermelho, está fazendo o mesmo trajeto
que eu há pelo menos quatro quadras — explicou, olhando através do espelho
retrovisor.
Segui o olhar dela, localizando o veículo. E não percebi nada anormal.
— Não pode ser apenas coincidência? — ponderei, sem desviar os olhos
do automóvel.
— Acho que não. Saí da minha rota habitual duas vezes e o motorista me
seguiu, mantendo-se há uma distância segura, mas sem perder o meu carro de
vista.
Pisquei, atordoada. Estava tão distraída que nem havia percebido a
mudança de caminho. Encarei Lucy, vendo o seu maxilar cerrado, o olhar
alternando entre a estrada à nossa frente e o retrovisor. Meu coração acelerou.
— Como você sabe essas coisas? Digo, ter noção de quanto é uma
distância segura ou perceber quando está sendo seguida? — indaguei, tentando
me acalmar.
— Tenho um irmão que é obcecado por segurança e me ensinou o básico.
— Balançou a cabeça de um lado para o outro. — Isso não importa agora, Eve!
Ligue para Luke, diga a nossa localização, conte rapidamente o que está
acontecendo. E segure firme.
Antes que eu pudesse perguntar o que a última parte significava, ela fez
uma curva fechada. Os pneus cantaram ao serem virados em alta velocidade.
Meu corpo foi atirado para o lado com violência e por pouco não deixei um grito
histérico escapar. Atordoada, notei que tínhamos entrado em uma estrada mais
deserta.
Tentei me recuperar, a respiração alterada ecoando pelo espaço fechado.
Tirei o celular da bolsa, as mãos trêmulas dificultando a atividade normalmente
simples, ao mesmo tempo que a van fazia a mesma curva, aumentando a
velocidade.
— Eu sabia! — Lucy exclamou indignada, dando um murro no volante.
— Rápido, Eveline! Ligue para o meu irmão, tem alguém nos seguindo!
Eu não funcionava sob pressão. Errei minha senha de desbloqueio,
sentindo as pernas dormentes, a cabeça latejando. Lucy pisou fundo no
acelerador e o aparelho voou para o chão do carro. Abaixei para recuperá-lo,
rezando para que tudo não passasse de um pesadelo.
— Filho da puta! — Lucy gritou simultaneamente ao primeiro impacto.
Levantei, assustada, demorando a compreender que batiam de propósito
no nosso carro. Digitei a senha novamente, os olhos embaçados pelas lágrimas
não derramadas e finalmente consegui desbloquear o maldito celular.
O segundo impacto foi muito mais violento. Bati a cabeça na janela,
momentaneamente desorientada pela pontada aguda de dor. E Lucy perdeu o
controle do carro, uma tragédia anunciada se levássemos em consideração a pista
escorregadia por causa da neve.
O veículo deslizou lateralmente, saindo da estrada em alta velocidade.
Como em câmera lenta, notei meu corpo flutuar, apenas o cinto de segurança
prendendo-me ao banco. Em seguida, estávamos capotando.
Uma.
Duas.
Três vezes.
E tudo escureceu.

Despertei irritado, o toque do celular reverberando pelo cômodo


silencioso. Eu tinha acabado de deitar depois de uma madrugada trabalhando e
desejei mandar quem quer que estivesse me incomodando para a puta que pariu.
Peguei o aparelho na mesa lateral, estreitando os olhos para enxergar as letras, a
visão embaçada de cansaço. Era da LTM, então atendi imediatamente.
— Fala. — Pigarreei para clarear a voz grossa.
— Luke, peço desculpa por ligar no seu dia de folga, mas estou
preocupada e não consegui falar com os meninos. — A voz de Amanda estava
tensa.
— Do que se trata? — Sentei na cama, em alerta.
— Lucy e Eve não apareceram para trabalhar. As duas nunca faltam e
não atendem o celular. Já são quase onze da manhã e nenhuma notícia. Liguei
para a casa de sua mãe, como quem não quer nada, para não a preocupar, e
inventei qualquer desculpa para conversarmos. Rebecca comentou que estava
cuidando de Romeo hoje até Eveline sair da empresa.
A boca ressecou e uma sensação ruim se formou no estômago, deixando-
me enjoado.
Pense com clareza, caralho! Não deixe o pânico vencer você.
— Ok, estou a caminho. Tente contato outra vez com Matt e Tyler e peça
para eles me encontrarem aí. Quero ser avisado imediatamente de qualquer
novidade, Amanda.
Desliguei, o coração martelando no peito. Vesti a primeira roupa que
encontrei e cheguei à LTM em tempo recorde, adrenalina pura pulsando nas
minhas veias. Amanda veio me encontrar na entrada, o rosto contorcido em
preocupação.
— Alguma notícia? — perguntei.
— Nada. Continuo tentando os celulares delas, mas a ligação nem
completa. Consegui falar com Matt, ele está vindo para cá.
Assenti, tenso. Macey entrou na sala e caminhou diretamente até mim.
— Chefe, a sua irmã quer te ver — avisou.
Por um momento, pensei que se referia à Lucy e o pânico cedeu.
— Lucy?
Sem graça, negou com a cabeça.
— É a outra irmã. Ela está no estacionamento e parece prestes a ter um
ataque de pânico.
Sem aguardar maiores esclarecimentos, percorri o trajeto até o
estacionamento correndo. Laura estava sentada no banco de motorista, a porta do
carro aberta e, mesmo àquela distância, notei o rosto pálido e os olhos vermelhos
e inchados de chorar.
Mas que porra tinha acontecido?
— Luke, graças a Deus! — exclamou, jogando-se em meus braços, e
começou a soluçar.
Retribuí o abraço por reflexo, as pernas querendo falhar, preparado para
o pior. Uma horrível sensação gelada percorreu a minha coluna, de modo que
enrijeci. Segurando-a pelos ombros, afastei-a para poder enxergar o rosto dela.
— Laura, preciso que se respire fundo, se acalme e me diga o que está
acontecendo. Só assim vou saber que atitude tomar. — Limpei suas lágrimas,
mirando os olhos castanhos inundados de desespero.
Ela respirou fundo várias vezes, tomando fôlego, e disse, entre soluços:
— A polícia ligou lá para casa. Perguntaram se eu era familiar de Lucy
Buttler e, quando eu disse que sim, me mandaram ir até a delegacia para
conversarmos sobre um assunto importante. Fiquei bons minutos sem reação,
paralisada e com o telefone na mão. Antes que minha mãe visse meu estado,
peguei o carro e dirigi até aqui. Alguma coisa aconteceu com ela, Luke! A
polícia não faria todo esse mistério se não tivesse acontecido, não é? E não estou
preparada para ouvir nada que eles tenham a dizer! Não estou!
Usei todo o autocontrole adquirido nos anos de exército para não reagir.
Se eu desabasse, tudo iria junto comigo. Novamente a minha família precisava
que eu fosse fortaleza, um ponto de apoio. Então ignorei meus próprios
sentimentos e ativei o modo profissional.
— Venha, vamos entrar.
Apoiei a mão nas costas dela e entramos no prédio. Sentei Laura em uma
cadeira e pedi que Amanda trouxesse um copo com água. Depois que ela ingeriu
metade da bebida, ajoelhei à sua frente, segurei suas mãos geladas e falei:
— Sei que a sua cabeça está uma bagunça do caralho e que vou te pedir
uma coisa muito, muito difícil. Mas preciso da sua ajuda, precisa haver um
trabalho em equipe, porque sozinho eu não consigo — expliquei pausadamente,
para garantir que ela entendesse todas as minhas palavras. — Lucy e Eveline não
chegaram e não temos notícias delas até o momento. Não temos certeza do que
houve, então não vamos sofrer por antecedência. Preciso que tente se acalmar,
lave o rosto e volte para casa como se nada tivesse acontecido, antes que dona
Rebecca perceba alguma coisa. Não falaremos nada a ela por enquanto. Você a
conhece e sabe que ela pararia no hospital com a pressão arterial nas alturas.
Meio-dia, Amanda irá até lá, com a desculpa de que combinou com Eveline de
levar Romeo em um parque para brincar com o filho mais novo dela. Minha mãe
conhece e confia em Amanda e sabe que ela e Eveline são próximas, logo, a
mudança de planos não levantará suspeitas. Em seguida, quero que fique em
casa e dê um jeito de mantê-la com você, em segurança. Enquanto não
descartarmos as possibilidades, não quero arriscar a segurança de vocês. — Fiz
uma pausa, apertando os dedos finos. — Pode fazer isso?
A expressão de Laura refletia angústias e incertezas.
— Eu vou tentar, prometo. Mas sou péssima para mentir, talvez ela
descubra tudo de qualquer jeito.
— Confio em você — garanti, sem desviar os olhos dos dela. — Vai dar
tudo certo. Preciso daquele menino ao meu alcance, onde eu possa vigiá-lo
pessoalmente até descobrirmos o que houve com a mãe dele, e preciso de vocês
duas em segurança enquanto faço isso. Agora acalme-se, leve o tempo
necessário para se sentir segura e vá. Vou pedir a Macey para te acompanhar até
em casa. — Assentiu, um pouco menos descontrolada. — Vou à delegacia e ligo
para você assim que houver novidades.

— Está dizendo que houve um acidente com o carro em que elas


estavam, mas não há nenhum corpo e a polícia não faz ideia de que porra
aconteceu? — Matt se exaltou, levantando da cadeira.
Ele e Tyler me encontraram na delegacia, onde conversávamos com o
detetive responsável pelo caso. Eu encarava o homem sentado à minha frente
desejando quebrar todos os dentes do infeliz com um murro.
— O que estou dizendo é que ainda tentamos entender a situação. E
posso garantir aos senhores que todo meu pessoal está se empenhando para
descobrir o paradeiro das moças — o detetive rebateu, insatisfeito com o tom
usado para se dirigir a ele.
Matt se comportava de maneira atípica, impaciente e alterado como
poucas vezes o havia visto. Os punhos cerrados e o olhar afiado que direcionava
ao policial me alertou que o descontrole dele poderia levar tudo para o inferno.
Aumentei a voz, pronunciando-me pela primeira vez desde que o homem
começara a contar sobre o acidente:
— Sei que não são autorizados a dar informações sobre investigações em
andamento, mas gostaria muito de saber o que conseguiram coletar até o
momento. Somos ex-militares, temos uma empresa de segurança privada e talvez
possamos prestar qualquer auxílio.
Ele me analisou atentamente, ponderando se me concederia o favor ou
não, mas acabou acenando com a cabeça em concordância.
— Infelizmente não muita coisa. Encontramos o carro em uma estrada
secundária deserta. A única testemunha que se apresentou disse ter estado atrás
do veículo da sua irmã e viu quando ela fez uma curva fechada em alta
velocidade. A pessoa se recorda com clareza porque precisou desviar o próprio
carro para não bater no dela. Depois disso, supostamente uma van branca fez o
mesmo trajeto, também em alta velocidade. É tudo que temos.
A certeza de que uma grande merda tinha acontecido aumentava a cada
minuto. A raiva ameaçou me dominar outra vez, mas a obriguei a recuar a fim de
manter a cabeça fria, o lado racional sobreposto ao emocional. As vidas de Lucy
e Eveline dependiam da nossa capacidade de ação.
— Alguma chance de uma câmera de segurança ter pego a placa da van?
— Ty inquiriu, mais contido do que Matt e eu.
— Estamos verificando.
Ele não diria mais nada. Eu conhecia o funcionamento interno da polícia.
Ficar ali seria perda de tempo, precisávamos agir, criar planos e estratégias
eficazes para localizá-las o mais rápido possível.
— Tudo leva a crer que se trata de um caso de sequestro. — O detetive
voltou a falar. — Vamos acreditar que em breve entrarão em contato para exigir
o resgate.
Se os responsáveis fossem as pessoas que ameaçavam George
Thompson, eles não iriam querer resgate algum. Era mais provável que
enviassem partes dos corpos delas como um aviso para quem cogitasse se meter
no caminho deles. É claro que não compartilhei aquela opinião com o oficial.
Pensei em Lucy, no pequeno embrulho cor de rosa que chegara em casa
muitos anos atrás. Parecia uma boneca, as bochechas rosadas, toda miúda.
Transformou-se em uma criança esperta, alegre, falante, muito sincera ao ponto
de desconcertar as pessoas. Foi uma adolescente tranquila e estudiosa. E tinha
virado uma mulher incrível, inteligente, dona de um coração bondoso. Como
irmão mais velho, a amava, daria a vida por ela. Ainda tinha muita coisa para
viver e eu não me perdoaria se fosse ferida por minha causa.
Da mesma maneira que me culparia por ter envolvido Eveline naquela
situação. O amor pelo filho estava impregnado em cada célula do corpo dela.
Morreria antes de permitir que Romeo ficasse órfão e passasse pelas mesmas
angústias que a mãe enfrentara ainda muito nova. A mulher desabrochava diante
dos meus olhos, dia após dia. Tampouco aceitaria menos do que uma vida longa
e feliz para ela, sem espaço para tristezas e desconfianças.
Estejam bem, porra! Estejam vivas e bem!
Quando colocasse as mãos no filho da puta por trás daquela palhaçada, o
faria pagar com juros, sofrimento e sangue. Ninguém tocava nos meus e saía
impune para contar a história. Eles mexeram com a pessoa errada. E se
arrependeriam amargamente.
Levantei e parei ao lado de Matthew, apertando o ombro dele com força
suficiente para atrair seu olhar. Meneei a cabeça de um lado para o outro,
avisando sem palavras para ele se calar e recuar. O cara estava a um passo de ser
preso por desacato e não precisávamos de mais aquele problema.
Virei outra vez para o detetive, tirei um cartão da carteira e o estendi para
o homem negro.
— Meu número pessoal. Estarei disponível em qualquer horário.
Ele assentiu e nos despedimos com um aperto de mão formal.
Enquanto caminhávamos para fora da delegacia, o sangue bombeava
rápido, a mente criando mil e uma possibilidades.
— Está na cara que o filho da puta sabe mais do que disse! — esbravejou
Matt
— Não há nada que possamos fazer nada em relação a isso. Não
podemos torturá-lo para conseguir informações — respondi, quase alcançando a
picape.
— E a gente vai fazer o que, caralho? Ficar de braços cruzados? Esperar
que um bando de incompetentes cheios de má vontade solucione o caso?
Em um ágil movimento, empurrei-o no carro, prensando suas costas na
lataria de metal, um braço atravessado no peito dele. Matt precisava sair daquele
comportamento histérico e usar a porra da cabeça. Ter ataques de raiva não
resolveria nada.
— Claro que não, porra! Você está maluco? Vamos voltar à LTM, sentar
e traçar o caralho de uma estratégia! Para que ela funcione, preciso que pare de
agir como um fodido amador desesperado. Somos um time ou não?
Encarou-me por tanto tempo que cheguei a cogitar a hipótese de que
levaria um soco no nariz. Ao final de alguns segundos, respirou fundo e
concordou.
— O que você tem em mente? — questionou Tyler, sem se meter na
nossa discussão.
Abri a porta de motorista e encarei os dois antes de entrar.
— Pretendo começar ligando para a única pessoa com livre acesso à
polícia e que, talvez, esteja disposta a nos ajudar.
Michelle.
CAPÍTULO 19
Devaneio

Abri os olhos com dificuldade, atordoada com o latejar insuportável na


cabeça. Tentei tocar a lateral da testa, onde mais doía, mas não pude completar o
movimento. O coração gelou. Olhei para baixo, dando-me conta de que tinha os
pulsos amarrados às costas e as pernas presas à uma cadeira. Entrei em pânico e
gritei, notando que os sons abafados não foram nada mais que patéticos
grunhidos. A minha boca, assim como o corpo inteiro, estava imobilizada, o
pano em volta dos lábios tão apertado que machucava.
Um baixo gemido de dor me fez olhar para o lado. Estreitei os olhos para
enxergar a pessoa sentada a cerca de dois metros, na mesma posição que eu.
Alguém estava de pé, em frente a ela, uma mão puxando seus cabelos com
violência. Reconheci os longos fios castanhos imediatamente.
Lucy!
De repente, as peças começaram a se encaixar. A perseguição, o
desespero de tentar falar com Luke, o carro virando e a inconsciência.
Mexi-me freneticamente, de modo que a cadeira deslizou alguns
centímetros para trás, enquanto agulhadas de dor se espalhavam pela maior parte
dos meus membros. Ofeguei, respirando com dificuldade, desejando entender o
que havia acontecido, quem tinha batido no carro de Lucy de propósito e nos
prendido feito animais em cativeiro.
O barulho chamou atenção da pessoa, que soltou Lucy e se aproximou de
mim. A parca iluminação não me permitia ver seu rosto com nitidez, mas a
silhueta parecia pertencer a um homem.
— A bela adormecida resolveu acordar.
Não reconheci a voz. Se algum dia a escutei, foi rápido o bastante para
não a armazenar na memória. O desconhecido afastou-se um pouco mais e
acendeu um abajur. A luz amarelada machucou meus olhos sensíveis e aumentou
a insuportável dor de cabeça. Tentei engolir a saliva, amenizar o enjoo que
revirava o estômago, mas o nó firme impedia qualquer movimento da boca.
Depois de me acostumar à iluminação, abri os olhos e gelei, choque absoluto
percorrendo cada célula do meu corpo. Lucy estava toda machucada, o rosto
coberto de cortes, sangue fresco escorria pelo canto da boca e um olho não abria
de tão inchado. Ela chorava sem parar.
Que porra estava acontecendo? Quem era aquele homem e por que fazia
tudo aquilo?
O rapaz arrastou uma terceira cadeira de um canto empoeirado,
posicionou-a de maneira que pudesse sentar-se ao contrário, as pernas abertas, os
braços apoiados no respaldar, e baixou o capuz. Analisei suas feições, tentando
encontrar qualquer pontada de reconhecimento. Nada. Eu não conhecia o jovem
de cabelos bem curtos, nariz proeminente de, no máximo, vinte anos.
— Você é uma azarada do caralho — disse ele, coçando o queixo. —
Segunda vez que estava na hora e lugar errados.
Franzi a testa, mais confusa do que nunca. A cabeça latejava sem parar,
dificultando o raciocínio, e a umidade na testa me desconcentrava. Recordava de
haver batido a cabeça na janela com força antes do carro capotar.
— Você não faz ideia de quem sou eu, não é? — perguntou com um
sorriso de escárnio na boca.
Balancei lentamente a cabeça, negando. E ofeguei com a dor que o
movimento provocou.
— Imaginei que não. Não tinha como dar uma boa olhada enquanto
corria daquele jeito. Preciso admitir que sua velocidade me surpreendeu. Você é
rápida.
Arregalei os olhos quando a ficha caiu. Ele era o cara que havia me
perseguido do ponto de ônibus até a LTM!
Se Luke estivesse certo, ele fazia parte do grupo que ameaçava o
prefeito. Estremeci inteira ao analisar as implicações daquilo. Naquele instante,
compreendi que as chances de sairmos dali vivas eram ínfimas. Lágrimas se
amontoaram nos meus olhos magoados. Revolta e impotência me assolaram na
mesma medida.
— Noto que as princesas ainda estão bastante confusas, talvez tenha
chegado a hora de contar uma história para vocês. Infelizmente ela não tem um
final feliz. — Após uma pausa dramática em que alternou o olhar entre nós duas,
prosseguiu: — Anthony Carter. O nome diz algo para vocês?
Eu já o havia escutado com certeza, só não lembrava de onde.
— Ele é o homem que teve a família destruída pelo o irmão da vadia. —
Indicou Lucy com a cabeça. — Meu pai começou a trabalhar para os filhos da
puta quando não eram nada além de uma agência de segurança meia boca, sem
clientes. Trabalhou feito um condenado e, quando decidiram que o velho não
tinha mais serventia, resolveram acusá-lo para lucrar com a indenização. Ele foi
colocado na cadeia como um maldito ladrão.
Então Anthony Carter era o antigo contador da LTM, que quase tinha
levado a empresa à falência. Aquele rapaz fora muito enganado para acreditar na
inocência do pai. Eu mesma analisei os balanços financeiros dos últimos anos e
as discrepâncias eram alarmantes. Até um amador perceberia os claros desvios.
— Conseguimos tirá-lo daquele lugar imundo, mas, àquele ponto, outros
clientes influenciados pela mentira dos canalhas resolveram revisar as suas
contabilidades e decidiram acusá-lo também. A reputação dele caiu em
descrédito, perdeu todos os clientes e prestígio social que demorou anos para
alcançar. O coroa não aguentou a vergonha e se matou.
A informação me surpreendeu. Eu não sabia que Anthony havia
cometido suicídio. Embora sentisse por ele, era inegável que o rapaz estava
distorcendo os acontecimentos para tornar o pai na vítima da história.
Agitado, ele passou a tamborilar os dedos na madeira velha, os olhos
vidrados.
— Ele esperou minha mãe sair, foi até a garagem, amarrou uma corda na
parede e se enforcou. Quando ela retornou, horas mais tarde, o encontrou
pendurado e morto. Quem consegue sair ileso de uma porra dessa? — gritou, a
boca tremendo, a perna balançando sem parar. — A mulher pirou, precisou ser
internada em uma clínica, vive sedada e mal me reconhece quando vou visitá-la.
O que a família dele passou foi difícil, mas o único responsável era
Anthony Carter. Será que o menino não conseguia entender? Era tão alienado a
ponto de aceitar tudo sem questionar?
Ele levantou, empurrando a cadeira, e caminhou até Lucy. Inclinando o
tronco para baixo, aproximou o rosto ao dela. Ela se encolheu, amedrontada, e
meu coração voltou a acelerar. Fiz outra tentativa para me movimentar, falar,
pedir que ele se acalmasse, mas as cordas me limitavam demais.
— A minha vida acabou por causa do filho da puta do seu irmão! —
Agarrando um considerável punhado de cabelo, puxou-os para trás com
violência. Lucy gemeu, o rosto pálido e maltratado. — Eu tinha tudo. Tudo! E,
do nada, bum! Desapareceu num passe de mágica. Perdi pai, mãe, casa. Precisei
abandonar a universidade porque não tive dinheiro para pagar as mensalidades.
Você é a minha vingança.
Desferiu um forte tapa no rosto dela, seguido de outro, outro e mais
outro. Chacoalhei o corpo, ignorando meus próprios ferimentos, e gritei. Minha
garanta parecia em brasas e nenhum som audível foi produzido. Sentindo-me
impotente e desesperada, chorei. Ele a mataria diante de mim e eu não poderia
fazer nada para impedir.
— Pensei em te deixar no carro — confidenciou me encarando, depois de
cansar de bater em Lucy. — Mas não podia arriscar deixando pontas soltas.
Estou trabalhando nesse plano há meses. Sua morte será rápida, indolor. Por
outro lado, a dela vai servir para Lucas Hayes se remoer em agonia e culpa. Só
então a promessa que fiz diante do túmulo do pai terá sido cumprida.
Meu estômago se contorceu de repulsa, a desesperança entorpecendo-me,
gelando por dentro.
O meu pior pesadelo aconteceria, Romeo ficaria sozinho no mundo. Ele
ia crescer sem a minha presença, amor, carinho e apoio. Eu não o veria se
desenvolver, entrar na adolescência, terminar a escola, começar a universidade,
ter a primeira namorada. Não estaria em seu casamento e não conheceria seus
futuros filhos. Tudo que eu mais desejava era que dentro do seu coração inocente
ele soubesse o tamanho do meu amor, que eu seria capaz de dar a minha própria
vida por ele.
Pedi a Deus que confortasse Luke, que atenuasse a culpa que o partiria
em dois. Ele era um homem bom, o mais especial que cruzou o meu caminho, e
gostava de assumir a responsabilidade pelas pessoas. Amava a família com uma
devoção emocionante e não merecia carregar um fardo tão pesado por ter ido
atrás do seu direito. Pedi, também, por Rebecca, uma mulher do coração de ouro,
que já havia passado por perdas mais na vida. Que Ele lhe desse forças para
superar a pior dor para uma mãe, a dor de perder um filho.
Pensei em Miranda, minha irmã do coração, que esteve ao meu lado
desde o primeiro momento. A que me amou, protegeu e sempre quis o meu bem,
mesmo quando estávamos magoadas uma com a outra. Que me estendeu a mão
quando mais precisei. Que amava meu filho como se fosse seu.
Chorei em desalento, sem poder aceitar aquela realidade. Estava
resignada e esperançosa ao mesmo tempo, torcendo para alguém tivesse visto o
que nos aconteceu e pudesse fornecer qualquer informação que ajudasse no
nosso resgate.
Rezei para que aquele homem perturbado, cujo nome eu desconhecia,
não tivesse pressa para cumprir a promessa de vingança.
Porém, enquanto ouvia o pranto de Lucy se misturar ao meu, uma voz
aguda gritava na minha cabeça que morreríamos bem ali, pelas mãos do filho de
Anthony Carter.

O choro agudo atravessou as paredes, chegando à sala de reuniões com
perfeição. Abandonei a cadeira, descendo os degraus de dois em dois, e os
encontrei na metade do caminho. Romeo chorava a plenos pulmões, o rosto
contorcido, as bochechas banhadas em lágrimas. Amanda parecia não saber
como agir, tentando mantê-lo no colo.
— Ele chorou o caminho inteiro até aqui, Luke — informou apreensiva.
— Nada do que eu fiz ou disse serviu para acalmá-lo.
— Será que está sentindo alguma dor? — arrisquei, olhando-o com
atenção.
— Não acho que seja o caso, senão Rebecca teria comentado. Tudo
começou quando o coloquei no carro.
— Minha mãe ficou desconfiada?
Ela negou, balançando o garoto enquanto passava as mãos nas costas
dele como consolo.
— Fiz exatamente como combinamos — garantiu.
Havia mais perguntas que gostaria de fazer a ela, mas não conseguia me
concentrar na conversa com os gritos cada vez mais altos. Aproximei-me,
passando as mãos pelos cabelos castanhos do menino. Por que ele estava
chorando daquele jeito?
— Ei, rapaz. — Os olhos azuis, idênticos aos de Eveline, me fitaram com
relutância. — Por que está chorando? Quer alguma coisa?
Minhas palavras só serviram para provocar mais choro. O pequeno corpo
enrijeceu, contorcendo-se nos braços de Amanda, tentando descer. Se ela, mãe
de quatro, não parecia saber lidar com a situação, o que eu poderia fazer? De
qualquer forma o segurei no colo.
— Me diga o que quer e vou dar um jeito de trazer para você —
incentivei, concentrando-me para não o derrubar, uma vez que continuava
tentando escapar.
— Ma-mamãe… — disse, soluçando.
Diante de tantas opções, ele pediu justamente o que eu não podia dar.
Não tinha sensação pior que a impotência.
Procurei ajuda em Amanda que, com expressão abatida, negou com a
cabeça. Então lembrei de todas as vezes que ele esteve na presença de Lola,
parecendo encantado por ela. Era um tiro no escuro, mas talvez funcionasse por
ora.
— E Lola? Gostaria de vê-la? — ofereci.
Recebi um olhar de leve interesse. O choro prosseguiu mais ameno.
Romeo colocou o dedo na boca, os olhos tão inchados e vermelhos de dar pena.
— Macey — esbravejei e, em poucos segundos, o homem apareceu.
Joguei as chaves para ele. — Vá até minha casa e traga Lola.

— A polícia realmente não sabe de nada, Luke — afirmou Michelle,


deixando um rastro de silêncio na sala. — Conseguiram imagens da placa de
uma van que bate com a descrição feita pela testemunha, mas foi obviamente
adulterada.
Fechei os punhos para não socar a mesa. As horas passavam e o meu
controle ia para a casa do caralho. Steven assumiu sozinho a segurança dos
Thompson e Macey vigiava discretamente a casa de minha mãe. Os dois
receberam ordens para nos contatar sobre qualquer anormalidade. Eu já havia
saído para conversar com meus contatos. Usei todos os canais a que tinha
acesso, lícitos e ilícitos.
Nada.
Nenhuma notícia.
Nenhum contato.
Nenhuma pista.
O silêncio torturava.
Entre nós três, Ty era o que possuía a maior rede de contatos, que
normalmente conseguia levantar informações com rapidez, e nem mesmo ele
obteve êxito.
Estávamos esperando retorno de amigos que tinham olhos e ouvidos na
cidade inteira. Eu sabia que me encontrava de mãos atadas, mas esperar nunca
foi o meu forte.
— Está claro para mim que se trata de um sequestro — Michelle falou
novamente, quebrando o tenso silêncio. — Apesar de o depoimento da
testemunha ser carente de detalhes, nos diz muitas coisas. Sua irmã estava ciente
da perseguição. Provavelmente percebeu que estava sendo seguida e tentou
despistar. Nada foi roubado, ao contrário, todos os pertences dela e da sua
funcionária ficaram no local do acidente. — Apertou minha mão por cima da
mesa. — Eles entrarão em contato. Confie nisso. E assim que fizerem, estaremos
preparados para reagir.
Por mais que fosse mais fácil acreditar nela, Michelle não sabia todos os
detalhes. Ela era útil porque tinha acesso a informações internas. Não tive cabeça
para uma reflexão moral por estar usando-a, porque toda a concentração estava
sendo usada para não sucumbir ao desespero e botar tudo a perder. Quando se
tratava da segurança de pessoas importantes para mim, os escrúpulos não
ocupavam o topo da minha lista de prioridades.
Matt caminhava de um lado para o outro, o vinco constante na testa
denunciando sua preocupação. Tyler observava a rua através da janela, as mãos
nos bolsos da calça, parecendo estar há quilômetros de distância.
— Vou voltar ao local do acidente — informei, levantando e afastando a
cadeira uns bons metros para trás. — Algum desgraçado deve saber alguma
coisa.
Michelle se aproximou, empurrando o meu ombro para baixo, forçando-
me a voltar a sentar. Em seguida, deu a volta e começou a massagear os nódulos
do meu pescoço.
— Você já foi lá inúmeras vezes. Sei que é difícil manter a frieza em uma
situação dessas, mas você é mais útil aqui, onde podemos falar com você a
qualquer instante.
— Eu vou — anunciou Ty, entrando no meu campo de visão. — Vou
refazer o trajeto delas e conferir se há algum retorno dos contatos. Você fica
aqui, cara.
Assenti, agradecido. Tyler sabia que não encontraria nenhuma novidade
naquilo, mas percebia a minha necessidade de estarmos agindo, fazendo
qualquer coisa, mesmo que não levasse a porra nenhuma. Depois que ele saiu,
Amanda bateu e entrou.
— Luke, infelizmente não posso ficar. O turno do meu marido começa
em breve e não tenho com quem deixar as crianças.
— Tudo bem, Amanda, você já fez demais, vá para casa descansar.
— Você me avisa se tiverem qualquer notícia? — pediu apreensiva,
aparentando ter envelhecido dez anos, como cada um de nós.
Assenti, passando as mãos pelos cabelos.
— Romeo está dormindo no quarto de descanso na companhia de Lola.
Tem certeza de que não prefere que o leve para a minha casa?
— Não, é melhor que ele fique onde eu possa vê-lo. Me sentirei mais
tranquilo assim.
— Tudo bem. — Antes de fechar a porta, avisou: — Fiz mais café e pedi
comida para vocês. Sei que comer não é a prioridade por aqui, mas saco vazio
não para em pé.
A sala voltou a cair no silêncio, cada um perdido nos próprios
pensamentos.
O dia virou noite.
Os celulares em cima da mesa zombavam da nossa vã esperança de
qualquer contato. O estômago protestava pela ingestão exagerada de cafeína, a
cabeça doía como o inferno e os músculos das costas ameaçavam travar. Ignorei
todos os sinais de fatiga física e mental, a imagem das duas e os horrores aos
quais deviam estar sendo submetidas não davam trégua.
O notebook apitou em aviso ao e-mail recebido. O suave barulho
estrondou através do cômodo silencioso como uma bomba. Houve uma troca de
olhares antes que eu agarrasse o aparelho, maximizando a página do meu
endereço eletrônico. Não reconheci o remetente, mas foi o assunto que me
chamou atenção.
— “Anthony Carter manda lembranças” — li em voz alta.
— Carter? — indagou Ty ao meu lado. — O filho da puta ladrão não se
matou?
Meus músculos se retesaram, recusando-se a obedecerem aos meus
comandos mais básicos. Tive um pressentimento terrível.
— Abre logo esse caralho! — Matt grunhiu, impaciente.
Eu abri. Em seguida, cliquei no link que nos redirecionou a um vídeo. A
filmagem começava embaçada e trêmula, como se alguém ajeitasse a câmera.
Quando a pessoa se afastou, o rosto de um rapaz apareceu na tela. Não lembrava
de tê-lo visto antes, embora os traços fossem levemente familiares. Olhando
diretamente para a lente, disse:
— Meu nome é Gabriel Carter. Anthony, o homem que os três colocaram
atrás das grades, era meu pai. O meu recado hoje é para você, Lucas Hayes. Você
não desistiu até destruir a vida de um homem honesto e trabalhador. Armou para
ele, o fez ser preso injustamente, forjou provas incriminadoras e, para completar,
incentivou outras pessoas a fazerem o mesmo. Bando de desgraçados! Porcos
imundos que estão se fodendo para as consequências dos seus atos! Eu perdi
tudo. Você me tirou tudo, destruiu a minha família, Lucas. E agora vai pagar um
preço alto por isso. Quero que preste bastante atenção nas próximas imagens,
porque será a última vez que vai ver sua irmã com vida. Eu até diria “passar
bem”, mas meu real desejo é que termine exatamente como o meu pai.
A câmera ficou embaçada outra vez, deu um giro e voltou a focar. E eu
quase vomitei.
Tinha visto coisas verdadeiramente perturbadoras como soldado, porém
nada no mundo me preparou para ver minha irmã sentada em uma cadeira,
amarrada e toda machucada. A cabeça dela pendia para baixo, inerte,
desacordada ou fraca demais para sustentá-la. O filho da puta deu um chute na
perna da cadeira, que caiu em um baque. Ele se aproximou, filmou de cima para
baixo e distribuiu chutes na barriga dela. Lucy não reagia. Fiquei cego de ódio,
todos os músculos tremendo furiosamente, imaginando inúmeras maneiras de
matar o infeliz de forma cruel.
No canto da imagem, Eveline, igualmente amarrada, tentava se mover
com ímpeto, balançando a cabeça de um lado para o outro. Parecia tentar parar a
cena que se desenrolava diante dos próprios olhos.
E, tão de repente como começara, a tela ficou preta.
A sala caiu em um silêncio ensurdecedor. Meus punhos estavam tão
cerrados que as unhas machucaram as palmas das mãos, meus olhos
encharcaram e nunca tinha sentido o coração tão acelerado.
Eu ia matar o filho da puta. Nem que fosse a última coisa que fizesse na
vida, ia matá-lo.
O notebook desapareceu da minha frente e foi jogado na parede,
estraçalhando-se em vários pedaços. A mesa foi virada, espalhando todos os
objetos que estavam apoiados nela. Michelle reagiu com rapidez, dando dois
passos para trás, evitando de ser atingida pela fúria de Matthew. Ele gritou, um
som gutural assustador, e os olhos furiosos começaram a buscar mais coisas para
quebrar.
Antecipando a intenção dele, Ty o segurou por trás, imobilizando-o de
maneira rápida e eficaz. Matt proferiu gritos e xingamentos, esforçando-se para
escapar.
— Me solta, porra! Tira as mãos de mim, filho da puta! Vou caçar aquele
moleque desgraçado até o inferno e arrancar os membros dele com minhas
mãos!
Tyler cerrou o maxilar, encontrando dificuldades para segurá-lo.
Sabíamos que uma pessoa furiosa conseguia aumentar de forma considerável sua
força.
— Calma, caralho! — gritei na cara dele, aproximando-me dos dois. —
Descontrolado desse jeito você não vai conseguir porra nenhuma! No máximo
vai foder tudo! — Olhando-o seriamente, questionei: — Olha para mim, porra! É
a minha irmã naquele vídeo. Quero matar o infeliz como nunca quis nada na
vida. Mas se quisermos resgatá-las vivas, precisamos manter a cabeça fria!
Minhas palavras não fizeram a menor diferença. Ele tentou me socar,
desviei no último segundo.
— Ela precisa de você, cara — disse Ty mais controlado. — Lucy precisa
que sua mente trabalhe para encontrá-la. Lucy precisa de você.
Matt diminuiu a força que fazia na tentativa de escapar, embora o corpo
prosseguisse rígido.
— As coisas que eu disse a ela… — sussurrou. — Não podem ter sido as
últimas. Preciso encontrá-la.
— Nós vamos fazer isso — garanti.
Minha mente já trabalhava nos próximos passos. Quando me preparava
para mandar chamar Jacob Takahashi, fiquei paralisado ao testemunhar Matthew
fazer uma coisa que nunca tinha visto em todos os anos de amizade.
Ele abaixou a cabeça e chorou feito uma criança.
CAPÍTULO 20
A Última Esperança

Lutei para manter os olhos abertos e não ser levada pela inconsciência.
Eu tinha perdido a noção de tempo, não saberia dizer se estávamos ali há
um dia ou dez. Minha garganta queimava feito fogo, a língua parecia ter
triplicado de tamanho dentro da boca ressecada e machucada. Eu mataria por um
gole de água.
Cada músculo do meu corpo estava dormente. As cordas levemente mais
frouxas nas pernas permitiam que eu as movesse sempre que ele não estivesse
por perto. A cabeça agora doía mais forte que antes, consequência da quantidade
de lágrimas derramadas nas últimas horas.
Tentei manter a esperança e segurar o último resquício de positividade.
Vítima de violência doméstica, não achei que presenciar um terceiro apanhando
fosse me alterar com tamanha intensidade. No entanto, observar Lucy ser
golpeada foi ainda pior, porque além da revolta, a impotência fazia eu me sentir
um lixo de pessoa. Aquele tipo de situação fazia qualquer um ter ciência da
própria insignificância.
A mente humana era algo extraordinariamente imprevisível. Enquanto
observava Lucy ao meu lado, machucada e inconsciente, lembrei de um
documentário que havia visto há muito tempo, intitulado O poder da mente.
Durante os noventa minutos de duração, um dos assuntos abordados foi a forma
como o cérebro reagia a situações traumáticas, tanto físicas quanto emocionais.
Em alguns casos ocorria uma espécie de apagão, uma maneira de nos poupar de
grandes sofrimentos. Até aquele momento, nem lembrava de tê-lo assistido, mas
agora só desejava que a mente de Lucy houvesse agido em prol de diminuir o
sofrimento dela, mantendo-a desacordada.
Gabriel Carter estava doente. Sua mente funcionava em uma frequência
alternativa; ele tinha perdido todo o senso de realidade e não adiantava tentar
argumentar, fazê-lo enxergar que estava cometendo um grande erro que mudaria
o rumo de muitas vidas, inclusive a dele. A partir do instante que mostrou o rosto
em vídeo, demonstrou estar disposto a ir até o final, quaisquer que fossem as
consequências.
Ele não tinha mais nada a perder.
Um brilho prateado no chão, a alguns centímetros de Lucy, despertou
meu interesse. Estreitando os olhos para enxergar o objeto, reconheci
imediatamente o pingente de âncora, que evocou a lembrança recente de uma
conversa que nós duas tivemos quando eu ainda estava hospedada na casa de
Rebecca.
— Que colar lindo — comentara, observando a joia que escapava da
blusa folgada. — Tem algum significado ou só comprou por achar bonito? —
Cruzara as pernas, sentada no confortável sofá de Rebecca.
Ela abaixara o rosto, o queixo quase tocando a pele acima dos seios e
sorrira, segurando o pingente entre os dedos.
— Se eu te contar a história por trás dele você vai achar que Luke é um
psicopata.
— Agora fiquei curiosa.
Lucy tomara um gole de vinho e apoiara a taça na coxa.
— Uns anos atrás ele apareceu com dois colares idênticos, um para mim
e outro para Laura. E, como se fosse a coisa mais normal do mundo, avisou
para usarmos sempre porque eles tinham um dispositivo de rastreamento.
Quando me dei conta do que aquilo significava, fiz um escândalo. Aos dezenove
e morando fora de casa há onze meses, estava me sentindo independente demais
para me submeter ao controle paranoico de um irmão mais velho. Luke ficou
possesso, a veia da testa quase saltou, e Laura, aflita entre nós dois, tentava
apaziguar.
Rira, imersa nas antigas recordações. Eu pude visualizar a cena com
perfeição.
— Depois dona Rebecca explicou que três amigos dele caíram em uma
emboscada, foram feitos reféns, torturados cruelmente e assassinados. Os
corpos mutilados foram deixados na estrada, próximo à brigada militar deles.
Luke voltou para casa com o emocional todo fodido, por isso insistiu nos
rastreadores. Como se eu estivesse vivendo em guerra, sob ameaça de ser
sequestrada a qualquer momento. — Revirara os olhos, soltando o pingente que
repousou no vale entre seus seios.
— Que horrível. Posso entender porque ele ficou tão mexido. Não temos
ideia do que aqueles homens passam durante guerra. — Ela concordara,
sorvendo mais vinho. — Mas se detestou tanto o presente, o que ele está fazendo
pendurado no seu pescoço?
— Não é que eu tenha detestado. Achei a âncora bonita, delicada e
significativa. Odiei a sensação de poder ser rastreada, como se alguém estivesse
controlando os meus passos. Então resolvi o problema pedindo para um colega
da universidade desativar o rastreador.
Sorrindo, levara a mão à âncora para vê-la melhor. Era muito linda,
definitivamente um artefato que compraria para mim mesma. A ideia de
permanência e amparo que ela representava era algo que busquei durante toda a
vida.
— Com exceção da triste história que deu origem ao presente, é
realmente lindo — eu havia elogiado. — Espero que você nunca precise mesmo
ser rastreada — comentara, brincando.
— Estou contando com isso.
Bingo!
A nossa última esperança, o milagre que tanto pedi a Deus estava naquele
colar caído, esquecido no chão imundo.
A despeito de Lucy ter garantido que mandara desativar o rastreador,
talvez houvesse um modo remoto de reativá-lo. Pelo menos aquele tipo de coisa
acontecia o tempo todo nas séries de ações policiais que eu assistia, bastava que
um gênio da tecnologia entrasse em ação. E a LTM contava com Jacob
Takahashi, um menino de dezesseis anos que podia até não ser um gênio, mas
fazia milagres com um computador em mãos.
O problema era bolar um plano para entrar em contato com Luke, enviar
pistas nas entrelinhas e torcer para que ele as desvendasse. Provavelmente era
um tiro no pé, mas eu tinha que tentar, porque as nossas vidas dependiam disso.
A oportunidade surgiu horas depois, quando Gabriel retornou Deus sabe
de onde. Movimentei-me de forma estabanada na cadeira, cerrando os dentes
para suportar as pontadas de dor. Tudo doía. Gesticulei com a cabeça para cima e
para baixo, depois para os dois lados, enquanto tentava falar. Ele me encarou
com a expressão indecifrável antes de caminhar em minha direção. Foi difícil
conter o pavor que a sua aproximação causava em mim.
— O que é? Quer falar alguma coisa? — perguntou impaciente.
Afirmei efusivamente, a adrenalina crescendo, dando-me coragem. Eu
era uma péssima mentirosa, todas as pessoas próximas a mim sabiam disso, e o
que estava prestes a fazer me colocaria em um risco altíssimo. Porém,
considerando que ele já decretara a minha morte, não restava alternativa.
O alívio de ter aquele pano retirado da boca foi inenarrável. Passei a
língua nos lábios, que, de tão ressecados, quase a mantiveram grudada neles.
Gemi com a ardência, sentindo rachaduras em toda extensão da pele. Tentei falar
e, evidentemente, nada saiu. Tentei outra vez. Nada. Comecei a ficar
desesperada, sem acreditar que justamente quando havia conseguido uma
oportunidade, as cordas vocais se recusavam a funcionar.
Notando minha dificuldade, Gabriel Carter afastou-se, tirou uma garrafa
de água de algum lugar e voltou para onde eu estava. Após abrir a tampa,
despejou um pouco na minha boca. Quase chorei de alívio. A quantidade nem
chegou perto de saciar a sede atormentadora, mas serviu para aliviar a
queimação insuportável na garganta.
— Tenho um pedido a fazer — rumorejei com a voz grossa, rouca e
distorcida. As palavras pronunciadas pareciam facas me cortando de dentro para
fora.
— E o que a leva a pensar que eu atenderia a qualquer pedido seu? —
Estreitou os olhos, cruzando os braços.
— Nada, mas vou arriscar mesmo assim. Gostaria muito de falar com
Lucas uma última vez. — A desconfiança que tomou seu rosto me deixou
apreensiva, de modo que me apressei em continuar: — Sei que você o odeia,
mas Luke me ajudou e esteve ao meu lado no momento mais difícil da minha
vida e minha alma não ficaria em paz se não o agradecesse de forma apropriada.
— Não foi preciso forçar as lágrimas, elas vieram com facilidade, levando em
conta a fragilidade emocional e física.
— O que está sugerindo, moça? Que você e o filho da puta têm uma
relação além da profissional? — inquiriu com deboche.
Abaixei a cabeça para evitar a resposta, deixando subentendido que ele
estava correto.
Gabriel Carter inclinou o corpo, olhando-me de perto.
— Você está mentindo — afirmou, os olhos crepitando de irritação.
— Juro que não estou! — Apressei-me em negar. — Por que eu mentiria
sobre o assunto, sabendo como você se sente em relação a ele e correndo o risco
de atrair sua fúria para mim?
Enrijeceu o tronco, voltando a ficar de pé e passou a me analisar com
renovado interesse.
— Isso é bastante curioso. Eu investiguei cada detalhe da vida de Lucas
Hayes e sei que ele sai com uma morena gostosa chamada Michelle. Ela não está
aqui porque é uma maldita policial e, correndo o risco de me tornar repetitivo,
não podia arriscar meu plano. Então, senhorita Eveline Perry, está dizendo que
seu querido Luke fode as duas ao mesmo tempo?
Michelle? Quem era Michelle?
Engoli em seco, morrendo de medo dele achar que o estava enganando.
— Não sei quem é Michelle, não sei se é alguém com quem ele se
envolveu antes de mim, mas posso garantir a você que estamos juntos há pouco
mais de um mês — reiterei, tremendo inteira.
O rapaz manteve a seriedade por alguns segundos e, de repente, começou
a gargalhar. De todas as reações, aquela era a que eu nunca esperei partir dele.
Confusa, permaneci quieta, olhando-o enquanto os ombros franzinos sacudiam
pelo ataque de riso.
— Não posso acreditar! — exclamou, levantando os braços para o teto.
— Quer dizer que coincidentemente peguei a namorada do filho da puta
mentiroso também! Que reviravolta sensacional! — Bateu palmas, curvando o
tronco para rir novamente.
Segui calada, aliviada por ele ter acreditado em mim no final das contas.
Quando por fim se controlou, Gabriel limpou as lágrimas, puxou uma
cadeira e sentou-se na minha frente.
— Digamos que, hipoteticamente, eu permita que você tenha a última
conversa com o amado. O que eu ganharia com isso?
Ele era um homem recém-saído da adolescência, mentalmente abalado e
achando-se o poderoso por levar seu plano de vingança à cabo. Gabriel Carter,
como a maioria das pessoas, era vaidoso, então fui diretamente no ego inflado.
— Não sei… — Desviei o rosto, fingindo confusão. — Talvez o prazer
de o presentear com uma triste mensagem de despedida? Ah, meu Deus! O que
estou falando? Luke ficaria arrasado ao receber uma mensagem minha, a culpa
vai corroer o homem por dentro. Esqueça o que eu disse, foi somente um
momento de fraqueza e extremo egoísmo. Prefiro que as coisas permaneçam
como estão.
A diversão abandonou o rosto pálido e ele derrubou a cadeira ao levantar-
se.
— Você o quê? — gritou. — Você prefere? Não dou a mínima para as
suas preferências! Pensei que fosse óbvio quem está no comando aqui. Eu
decido o que fazer. Entendeu?
Era exatamente a reação que eu esperava.
— Desculpe, eu…
— Cale a boca! Estou pensando em uma maneira de fazer isso acontecer
— esbravejou, andando de um lado a outro.
— Mas… Então você vai deixar que eu fale com ele ao telefone? —
arrisquei.
— Que porra de telefone! Um telefonema pode ser rastreado.
Murchei, angustiada com o rumo da conversa. Cheguei tão perto,
acreditei que poderia criar uma oportunidade de Lucy e eu sermos salvas.
Pisquei os olhos úmidos, tentando reprimir as lágrimas.
— Mas um vídeo não. — Voltou a dizer, estalando os dedos. Sumiu para
um canto escuro do cômodo e voltou instantes depois segurando uma câmera, a
mesma usada para gravar seu recado para Luke. — Pense bem em cada palavra
que vai dizer. Se eu perceber que é um truque, que está tentando enviar alguma
dica a ele, você vai receber o tratamento VIP que a irmãzinha está recebendo. —
A ameaça pairou no ar, gelando todos os meus ossos. — Está pronta? Sorria,
você está prestes a ser filmada.
Seria a atuação da minha vida.

— Ela está desconfiada, Luke! — disse Laura com a voz cheia de


pânico. — Não sei mais o que inventar para justificar a ausência de Lucy pelo
segundo dia consecutivo. Ela fez um monte de perguntas hoje disfarçadamente,
como quem não quer nada. Consegui escapar, mas é questão de tempo para
dona Rebecca aparecer aí.
Porra.
Eu não precisava de outra preocupação no momento. Takahashi
trabalhava sem descanso para localizar o IP de onde o vídeo fora enviado,
enquanto levantávamos em tempo recorde tudo sobre a vida de Gabriel Carter. O
que fazia, os locais que frequentava, as pessoas com quem conversava. Qualquer
detalhe poderia ser crucial, principalmente aqueles que pareciam, à primeira
vista, sem importância.
— Preciso de mais algumas horas, Laura. Estamos focados em encontrá-
las e não posso me distrair neste momento.
— Eu compreendo e vou fazer o possível para ajudar. Só estou avisando
que talvez não funcione e ela decida fazer uma visita e investigar por conta
própria. Você sabe que a mãe tem o faro apurado.
— Sei — respondi mal-humorado.
— Como está Romeo?
— Dormindo.
— Graças a Deus, é melhor assim — sussurrou.
O menino tinha acordado chorando na madrugada e deu trabalho para
acalmá-lo e fazê-lo voltar a dormir. Se eu acreditasse nesse tipo de coisa, diria
que ele pressentia que a mãe estava em perigo.
— Luke, chegou outro e-mail do mesmo endereço — Ty avisou.
Entrei em alerta. Aproximei-me da mesa, onde ele mexia em um novo
notebook, e olhei para a tela com um medo do caralho. Matt e Michelle também
se posicionaram para ver o que filho da puta havia mandado dessa vez.
— Laura, preciso desligar. — Sem esperar resposta, finalizei a chamada.
No espaço do assunto estava escrito “Um presente de despedida”.
O rosto de Eveline tomou a tela, as mãos e pernas amarradas por cordas,
um ferimento na testa, olheiras profundas e lábios machucados. O estado físico
dela não se comparava ao de Lucy, mas o ódio me cegou. Aquele rapaz que
fugisse para o inferno, pois só lá escaparia de mim.
— Luke, espero que essa mensagem chegue até você, só assim vou ficar
tranquila. — A sua voz estava diferente, quase irreconhecível. — Não sei
porque a gente tem a mania de não falar as coisas que sente, sempre
acreditando que pode fazer isso depois. No meu caso, deixei de compartilhar
contigo vários sentimentos e sensações. Quero que saiba que o Natal que passei
na casa da sua mãe foi o melhor da minha vida. Amei o colar que me deu, mas
demorei uma eternidade para entender o significado do pingente. Embora
estejamos juntos há pouco tempo, saiba que você também é a minha âncora. Eu
acredito muito no significado simbólico da palavra âncora, proteger e amparar.
Obrigada por isso e, por favor, não se sinta culpado por nada disso. — Fez uma
pausa para respirar, os olhos molhados de lágrimas. — Ninguém deve carregar
um fardo dessa magnitude. Sempre vou lembrar desse presente com carinho e
espero que você também pense nele com desvelo.
Eveline desviou os olhos para cima e assentiu com a cabeça,
provavelmente se comunicando com o desgraçado. Em seguida, o vídeo parou e
a tela ficou preta.
Silêncio.
— Que porra de vídeo sem sentido foi esse? — exclamou Matt. — Achei
que você tivesse dado um perfume a ela.
— E dei — confirmei.
— E por que ela falou sobre um colar? — prosseguiu com o
interrogatório.
— Talvez tenha sido uma espécie de metáfora, Luke — opinou Michelle.
— O que ela poderia querer te dizer por trás dessa mentira?
— Calem a boca um segundo, por favor. Eu preciso pensar.
Como Matt pontuou, comprei um perfume para Eveline. Não havia a
possibilidade de ela confundir um frasco de perfume com um colar. Ela fez
questão de frisar a palavra “âncora”, entoando-a de forma levemente diferente
das demais. O que aquilo significava? Qual dica tentou me passar através da
mensagem sem sentido?
Uma breve desconfiança brotou no fundo da mente, acelerando os
batimentos cardíacos.
— Quando estava no exército, depois da morte de Byrd, Denis e Dixon,
voltei para casa paranoico. Mandei colocar um rastreador em dois colares com
pingentes de âncora e os entreguei às minhas irmãs. Lucy se recusou a usá-lo
depois de saber da existência do dispositivo. — Passei as mãos pelos cabelos. —
A primeira coisa que fiz foi checar se ele estava funcionando. E não está.
Continuo sem entender por que Eveline falaria sobre o colar.
— Chame o japa — falou Ty, levantando-se da cadeira em um pulo. —
Aquele moleque consegue hackear até os sites do governo e das agências de
segurança nacional. Se Lucy estiver com o colar, ele é o cara capaz de reativar
aquela porra.
Matt abriu a porta, gritando o nome do garoto feito um maluco. Michelle
apertou meu ombro, sorrindo de maneira tranquilizadora. Tentei reprimir a onda
de esperança que ameaçou me dominar.
Agora era a hora de manter a cabeça fria e agir racionalmente.
Se houvesse a menor possibilidade de encontrá-las, eu entregaria a alma
ao diabo para fazê-lo.
CAPÍTULO 21
O Resgate

A falta de água estava acabando comigo e me enfraquecendo rápido


demais. Já não conseguia ter quase nenhum controle sobre meu corpo. Perdi e
recobrei a consciência diversas vezes e, no derradeiro retorno, notei que não
aguentaria muito tempo.
A inércia de Lucy me deixou extremamente angustiada. Desde que
recebera os chutes na barriga, caída no chão enquanto Gabriel Carter filmava a
cena de horror, ela não acordou. O lento subir e descer do seu peito era o meu
único consolo. Estava viva.
Movimentei o pescoço dolorido, esforçando-me para não ceder ao enjoo
e vomitar. Primeiro porque não tinha nada no estômago e segundo que o pano
amarrado na boca faria o vômito sair pelo nariz, uma perspectiva nada
animadora.
Assustei-me com o barulho repentino que antecedia à chegada dele.
Entrei em alerta, o enjoo aumentando, uma sensação ruim no peito. Os olhos
vermelhos e vidrados, rosto pálido estampando grandes e profundas olheiras,
olhar vago e, principalmente, as mãos trêmulas sustentando um revólver
indicavam que a hora havia chegado.
Existia um mito popular de que no momento da morte passava um filme
na cabeça do futuro defunto, com flashes dos momentos mais importantes da
vida dele. A minha ficou completamente em branco. Nenhum pensamento ou
recordação. Só senti medo e alívio, consciente de que tinha feito tudo que estava
ao meu alcance para sairmos dali. Se era da vontade de Deus que minha
existência se findasse dessa forma, que assim fosse.
— Eu até que gostei de você, apesar de tudo — revelou ele, encarando-
me de um jeito esquisito. — Pena ter decidido se envolver com aquele cara. Uma
mulher tão jovem e bonita fazendo escolhas tão equivocadas. — O revólver
balançava sem parar, denunciando a falta de controle dele. — Agora chegou o
momento de cumprir a promessa feita no túmulo do meu pai. Vou vingar a morte
dele e a destruição da nossa família. — Por algum motivo, eu não conseguia
parar de olhá-lo. — Sinto muito. Eu sinto muito.
Fiquei paralisada ao perceber grossas lágrimas caírem pelo rosto
desfigurado.
Levantou o braço com dificuldade a apontou a arma para Lucy. Era nítida
na expressão enfurecida a intenção de matar. Eu não sabia se minha perna
responderia ao comando, mas era a única parte do corpo capaz de fazer um
movimento mais amplo. Nossas cadeiras estavam mais próximas agora devido
ao meu esforço para arrastar a minha, tentando inutilmente me soltar.
Eu morreria, mas morreria lutando até o último segundo.
Simultaneamente ao disparo, usei toda a força que restava para
impulsionar o corpo para o lado e chutar a cadeira de Lucy, derrubando-a em um
baque. Eu caí em seguida, o ombro esquerdo pegando fogo.
Antes de ser puxada para a inconsciência, pensei ter ouvido um estrondo
seguido de outros tiros. No entanto, não pude ficar acordada para ter certeza.
A dor na cabeça venceu.

Alguns minutos antes…

— Luke — sussurrou Michelle, esgueirando-se junto a mim, Matt e Ty


pela lateral do depósito abandonado. — Ainda dá tempo. Me deixe fazer uma
ligação, preparar uma ação policial capaz de resgatar as meninas em segurança.
Takahashi demorara duas horas para obter os primeiros resultados. O IP
usado para enviar os vídeos era de um computador localizado em uma rua
periférica, quase na saída da cidade. No endereço funcionava uma lan house. O
rastreador levou mais tempo. Eu só tinha entendido a parte que ele colocou o
número do dispositivo em um programa. Depois o menino pareceu uma
metralhadora de palavras indecifráveis, narrando um procedimento atrás do
outro. Pelo que me constava, poderia ser em árabe, porque não compreendi porra
nenhuma.
Em seguida, cruzamos as duas informações e reduzimos o perímetro para
três quilômetros. O fato de o local ser deserto foi decisivo. Nos arredores havia
três construções: a primeira era um bar na beira da estrada frequentado por
bêbados e prostitutas, a segunda era uma fábrica de pneus, e nos
encaminhávamos para a terceira e última, um galpão abandonado parecendo cair
aos pedaços. Meus instintos se aguçaram e tive a certeza que era ali. Tínhamos
deixado o carro a alguns metros para que o motor não o alertasse.
— Eu sei que está se arriscando aqui, Michelle — rebati no mesmo tom.
— E vou entender se quiser ir embora ou ligar para quem quer que seja. Mas
nada, absolutamente nada neste mundo vai me impedir de entrar ali.
— Porra, Luke! Seja razoável, use a cabeça — contrapôs, ainda
murmurando. — A equipe policial está melhor preparada para lidar com casos
desse tipo.
— Ah, sim? A mesma equipe que sentou e não moveu um dedo sequer
para localizá-las? Que me mandou esperar os sequestradores entrarem em
contato? Se tivéssemos esperado por eles, elas não teriam a menor chance. Duas
pessoas importantes para mim estão lá dentro, à mercê de um desequilibrado. A
única forma de me impedir é prendendo ou matando.
Ela me analisou por longos segundos e, quando percebeu que a minha
decisão era final, se calou.
— É aqui — informou Matt, esticando o pescoço para ver a parte traseira
do galpão. — A van branca está estacionada no fundo.
Entrei em posição de alerta, esquecendo a discussão, a atenção voltada
exclusivamente para a desgastada construção. Poucos metros me distanciavam
de Lucy e Eveline.
— Se vocês já acabaram de tricotar, está na hor… — Um disparo cortou
a frase de Tyler.
Matt e eu agimos ao mesmo tempo. Corremos para a porta de entrada e a
chutamos em sincronia, abrindo um buraco no material vagabundo. O segundo
chute permitiu uma abertura suficiente para uma pessoa entrar por vez. Fui o
primeiro, a arma pesando na mão, a cabeça zunindo de adrenalina.
Tive milésimos de segundos para reagir. O cano do revólver foi apontado
na minha direção e, sem um segundo pensamento, disparei duas vezes, acertando
o peito do homem. Gabriel Carter foi jogado para trás com o impacto. Os olhos
se arregalaram e ele levou a mão ao peito, dando-se conta de que havia sido
alvejado. Depois, a arma deslizou de sua mão e ele caiu para trás como um peso
morto.
Matt correu até Lucy, abaixando-se ao lado dela. Usou dois dedos para
sentir a pulsação no pescoço.
— Chamem uma ambulância! — gritou. — Há pulsação, mas está fraca.
Aliviado por Lucy estar viva, fui até Eveline. A quantidade de sangue me
assustou pra porra, de modo que ajoelhei ao lado do seu corpo desacordado e
passei as mãos por toda a extensão em busca de alguma perfuração, tomando o
cuidado de não a movimentar, mas não encontrei nada. O tiro passou de raspão
no ombro esquerdo. Tirei a jaqueta e a blusa, utilizando a última peça para
pressionar o ferimento.
Desamarrei seus braços e pernas e alisei os cabelos sujos. A pele, apesar
de assustadoramente pálida e machucada, estava morna.
— Puta merda, Luke! Você vai me dever pelas próximas dez vidas —
avisou Michelle, disparando duas vezes para o alto.
Sentado entre Lucy e Eveline, tendo a certeza de que estavam vivas e
ouvindo o distante barulho das sirenes, finalmente retirei a máscara da
racionalidade e me permiti sentir.
Foi a minha vez de chorar.

Fui criado na religião católica. Quando criança, minha mãe me arrumava


para acompanhá-la até a igreja todos os domingos para assistir à missa. Não
gostava muito, ficava impaciente enquanto o padre falava, falava e falava sem
parar. O fato de todas elas serem muito semelhantes me entediava pra caralho.
Nunca gostei de rotina, mas ia sem reclamar. Quem era louco de contrariar
Rebecca Buttler?
Conforme fui crescendo, aquilo fazia cada vez menos sentido para mim.
Primeiro reduzi a ida para de quinze em quinze dias, depois uma vez ao mês, até
que parei completamente. Minha mãe ficou decepcionada, mas se mostrou
compreensiva e respeitosa sobre a minha falta de interesse pela sua religião.
Desde que casara com Thomas, um homem que acreditava em Deus, embora não
fosse religioso, a margem de tolerância dela aumentara.
No entanto, Thomas Buttler sempre respeitara e admirara a fé
incondicional da esposa. No momento em que as dúvidas sobre a existência de
Deus chegaram e eu comecei a rebater tudo que ela falava, foi ele quem me
chamou em um canto e disse:
— Filho, eu entendo as suas dúvidas e respeito as suas escolhas. Já
passei por essa fase. Mas a igreja e a fé são coisas importantes para a sua mãe,
são bases que regem a vida dela. Não estou pedindo para você voltar a assistir
às missas ou acreditar em Deus, mas demonstre respeito pelas crenças dela.
Duvide, se for a sua vontade, só não vá com sete pedras na mão a cada vez que
ela tentar conversar com você. Lembre-se que o respeito é uma via de mão
dupla.
À princípio, tive vontade de responder com um sonoro e imaturo "foda-
se", achando-me o senhor da verdade, o sabe-tudo. Porém, Thomas tinha um
jeito particular de conseguir me fazer ouvir. E eu ouvi e me senti envergonhado.
A minha mãe sempre me respeitou, apesar de não concordar com as minhas
escolhas, então o mínimo que eu podia fazer era retribuir.
As minhas dúvidas sobre Deus persistiram até os dias atuais. Deus não
salvou o meu pai. Deus não salvou Thomas. Deus não salvou todos os amigos
que perdi no exército. E, conforme eu ia conhecendo o mundo, a maldade e
sadismo das pessoas, menos propenso ficava a dar crédito Àquela figura divina.
Talvez porque fosse um homem prático e tivesse dificuldade de acreditar
em algo que não podia ver. Talvez não tivesse estudado sobre o assunto o
suficiente para ser convencido. Talvez porque o menino rebelde que duvidava de
tudo ainda existisse dentro de mim.
Entretanto, ao sustentar minha mãe e Laura, uma em cada lado, ouvindo
seus prantos sofridos, as abundantes lágrimas molhando a minha blusa suja de
sangue enquanto esperávamos o médico sair para dar notícias sobre o estado
delas, fechei os olhos e conversei com Deus pela primeira vez em muitos anos.
Pedi que protegesse Lucy e Eveline.
Pedi que salvasse as duas.
Pedi que me salvasse.
A reação da minha mãe foi a esperada. Intercalou momentos de choros,
gritos, orações e acusações pelo fato de termos escondido o sequestro dela. Em
seguida, me abraçou forte e agradeceu por havermos resgatado Lucy e Eveline
com vida. Então, o mesmo ciclo voltava a se repetir, choros, gritos, acusações e
agradecimentos.
Saindo do corredor, Michelle fez um discreto sinal para que eu a
seguisse. Separando-me com cuidado das duas mulheres, nos afastamos da sala
de espera, até que pudéssemos conversar a sós.
— Acabei de ficar sabendo que Gabriel Carter não resistiu — informou
com o rosto tenso de preocupação.
Nenhuma célula do meu corpo se compadeceu da morte dele. Ele
escapou muito fácil, sem o sofrimento que merecia.
— Não espere ouvir de mim que sinto muito. Se existir um inferno,
desejo que ele e o pai estejam queimando juntos.
— A questão vai muito além disso, Luke. Estou fazendo o possível para
retardar os nossos depoimentos, mas, eventualmente, teremos que fazê-los e
precisamos nos reunir para combinar o que dizer. Essa situação pode complicar
se não fizermos tudo bem pensado.
— Não se preocupe, Michelle. Não vou deixar que ninguém responda
por meus atos. Vou assumir o que fiz e arcar com as consequências.
— Pare de bancar o durão por alguns minutos. Sua arma é o mesmo
modelo da minha, eu dei dois disparos com ela, só estávamos os quatro no lugar,
as meninas não viram nada. O processo será longo, chato, cheio de detalhes e
burocracias, mas vai facilitar se os tiros tiverem partido de mim.
Eu não estava em condições de raciocinar. Tinha passado por um estresse
filho da puta, há tempos não dormia ou comia decentemente e a cabeça explodia
de dor. Enquanto não houvesse notícias de Lucy e Eveline, não seria capaz de
me concentrar em nada.
Michelle percebeu o meu estado e sorriu compreensiva, dando um breve
apertão no meu ombro.
— Vamos conversar sobre isso depois, certo? Só achei que devia te
avisar pessoalmente e pedir que você não fale com ninguém sobre o assunto
antes que tenhamos a oportunidade de conversar e uniformizar os nossos
depoimentos.
— Fico te devendo uma para o resto da vida, Michelle — agradeci.
— Para o resto das próximas dez vidas, meu caro. — Sorriu outra vez.
O médico apareceu horas mais tarde. Minha mãe foi a primeira a
levantar, o terço embolado na mão. Seguia chorando e rezando na mesma
intensidade.
— Familiares de Lucy Buttler e Eveline Perry? — Passou os olhos pela
sala cheia.
— Somos nós — respondi, de pé, estendendo a mão para ele. — Como
elas estão?
— Sou Alex Gordon, plantonista que recebeu as pacientes. Conseguimos
estabilizar o quadro da senhorita Buttler. Neste momento, ela está em coma
induzido.
— Coma? É tão grave assim? Meu Deus, a minha menina, em coma!
— Coma induzido é o termo popularmente conhecido, por isso o
utilizamos, para facilitar a compreensão, embora seja, tecnicamente, equivocado.
A sua filha está em sedação profunda. Fazemos isso quando o paciente sofreu
algum trauma que pode atrapalhar no tratamento ou para amenizar dores, por
exemplo. Realizamos todos os exames necessários, ela está com o pulso direito
quebrado e duas costelas fraturadas. Fora isso, os ferimentos são meramente
externos e não danificaram nenhum órgão interno, o que é uma excelente notícia.
A tomografia craniana também voltou com resultados satisfatórios. Com o
tratamento adequado, não vejo empecilhos para uma recuperação completa.
— Ainda bem — Matt sussurrou, ecoando os nossos pensamentos.
Respirei aliviado, as pernas levemente trêmulas.
— E Eveline? — questionei.
— O caso da senhorita Perry é mais simples. O tiro pegou de raspão no
ombro esquerdo, ela perdeu um pouco de sangue, nada que seja preocupante. Os
ferimentos foram tratados e agora está descansando. As duas apresentaram um
leve grau de desidratação que já foi solucionado.
Minha mãe fungou e se jogou nos braços do médico, abraçando-o com
vigor. Ele retribuiu pacientemente, como se já fosse acostumado a esse tipo de
demonstração de afeto por parte das famílias que recebiam boas notícias.
— Deus te abençoe, doutor! Deus te abençoe!
— Quando poderemos vê-las? — indagou Laura, fazendo esforço para
conter o choro.
— Como prefiro ser cauteloso, vamos esperar um pouco mais para
permitir visitas a Lucy Buttler. Não se preocupem, é apenas o procedimento
comum. Em breve vocês estarão com ela. — Mesmo a contragosto, ela assentiu.
— Eveline Perry, no entanto, está liberada para uma visita, desde que seja rápida.
— Eu vou, mãe — avisei, virando-me para ela.
— Tudo bem, querido. — Apertou a minha mão. — Dê um beijo nela por
mim.
Enquanto eu caminhava por um extenso corredor branco, pensei que
talvez Deus existisse, no final das contas.
CAPÍTULO 22
Nervos à Flor da Pele

Abri os olhos lentamente, piscando algumas vezes para enxergar


qualquer coisa além do borrão. Vi o teto branco, percebi o ambiente gelado e
tentei levantar, mas tive dificuldade para movimentar o corpo dolorido, que
estava mais lento que o normal. A garganta ainda ardia e arranhava, embora bem
menos que antes.
Recebi uma fisgada no braço ao tentar movê-lo. Confusa, abaixei o olhar
para encontrar uma agulha perfurando minha veia, ligada ao soro. Aos poucos as
recordações foram voltando, sinistramente vívidas, deixando-me nervosa e
angustiada. Mesmo com as persianas das janelas fechadas, mergulhando o quarto
em uma considerável escuridão, reconheci a figura jogada no sofá, a cabeça
apoiada na parede, as mãos cruzadas na frente da barriga, parecendo cochilar.
Luke!
— Luke… — chamei, a voz ainda grossa e diferente. Doía falar.
Ele abaixou a cabeça, olhando diretamente para mim. Ver o rosto
conhecido, a cor castanha esverdeada da íris tão bonita, a expressão
compenetrada, quando achei que a morte era certa, foi o bastante para quebrar o
resquício de controle. Comecei a chorar. Não um pranto leve que evolui aos
poucos. Abri o berreiro vergonhosamente.
Braços fortes me rodearam com delicadeza, as mãos acariciando meu
cabelo e costas. Abracei-o de volta, sem me importar com a agulha perfurando o
braço na nova posição. Afundei o rosto no pescoço e inspirei o cheiro conhecido,
o perfume masculino tão característico. Senti-me, enfim, segura. O pesadelo
tinha acabado.
Obrigada, meu Deus!
— Vo-você conseguiu… — murmurei em meio a soluços.
Ele afastou-se para avaliar meu rosto, os dedos ásperos limpando a
torrente de lágrimas.
— Não, minha linda. Você conseguiu. — Encostou a testa na minha,
misturando nossas respirações; a minha, ofegante; a dele, ligeiramente mais
calma. — Não chore.
Obviamente o pedido teve o efeito contrário, aumentando meu pranto de
forma considerável. Por que as pessoas não entendiam que falar “não chore”
para alguém emocionalmente fragilizado fazia esse alguém perder o controle de
forma instantânea?
Luke me abraçou outra vez, apoiando o queixo na minha cabeça com
cuidado para não tocar a testa ferida.
— Como está Lucy? — perguntei de olhos fechados, enquanto
descansava a bochecha no peito largo.
— Sedada desde que vocês chegaram aqui, mas o médico garantiu que
ela está estável e se recuperando.
— Graças a Deus! — Suspirei. — Quanto tempo faz? Que estamos aqui,
quero dizer.
— Há pouco mais de vinte horas.
— Romeo? — Levantei o rosto para olhá-lo.
Luke abriu um sorriso tranquilizador, sem cessar o deslizar das mãos.
— Está bem, na companhia de Amanda e Lola.
— Quero vê-lo, preciso de um abraço dele. — A voz embargou apenas
em falar no pequeno.
— O doutor Gordon vai te dar alta amanhã. Você não acha que é melhor
esperar mais algumas horas do que trazê-lo para o hospital? Crianças geralmente
não gostam do ambiente.
Concordei, sabendo que ele tinha razão. Mas era difícil ser racional
quando a saudade esmagava o peito.
— Também quero ver Lucy — avisei.
— E verá. Agora se concentre em ficar cem por cento recuperada, precisa
cuidar desse ombro.
Olhei a parte mencionada sem entender o que havia de errado com ele. O
ombro esquerdo estava parcialmente tapado com um curativo. Enruguei o nariz.
Agora que fora mencionado, comecei a sentir certa ardência nele.
— Não lembro de como o machuquei. Foi no acidente ou na queda?
Os olhos expressivos ficaram tempestuosos, perturbados por relembrar a
situação. A mão deslizou até o meu pulso, acariciando-o com o polegar em
movimentos circulares.
— Você levou um tiro de raspão. Felizmente não perdeu muito sangue e
recebeu tratamento imediato.
Um tiro? Só recordava de ter empurrado a cadeira de Lucy, tirando-a da
mira assassina de Gabriel Carter. Depois disso, apenas escuridão. Rememorar o
quão perto estivemos de morrer trouxe de volta as lágrimas.
— Tive tanto medo — confessei, desviando o olhar. — Medo de que
você não entendesse o meu recado, de morrer e deixar Romeo desamparado. Foi
horrível.
Pela terceira vez fui envolvida pelo calor do corpo dele. Precisar tanto do
amparo de um terceiro me deixava receosa e desconfortável. Mas depois de todo
o sufoco que passamos, só desejava ficar quieta, permitindo que outra pessoa
cuidasse de tudo por alguns dias. Só até recuperar um pouco a força e voltar a
liderar minha nova vida. Todos os sentimentos que reprimi durante o cativeiro
vieram à tona ao mesmo tempo.
— Eu sei — ele disse, beijando meu cabelo. — E jamais vou me perdoar
por tê-las feito passar por aquela merda.
Lá estava a culpa. Lucas Hayes tinha a estranha mania de carregar o peso
do mundo nas costas. Perguntava-me se era uma característica sua ou se as
circunstâncias da vida o moldaram daquele jeito. Ele precisava entender que dor
compartilhada era dor aliviada.
— Você não pode ficar se martirizando, Luke. Qualquer pessoa que
estivesse sendo roubada denunciaria às autoridades. Anthony Carter quase faliu
a sua empresa, você não fez nada além de correr atrás do seu direito. Quem
poderia adivinhar que as coisas fossem terminar assim? Somos responsáveis por
nossas atitudes, não pela maneira que os outros vão lidar com as consequências
delas.
— Não acho que…
— Gabriel é um rapaz perdido, que endeusa a figura paterna a ponto de
não admitir que o pai tenha sido qualquer coisa que não um poço de honestidade.
Ele tem certeza de que tudo que aconteceu à família foi culpa sua, quando o
único responsável é o próprio pai, primeiro ao desviar dinheiro das empresas e
depois ao cometer suicídio dentro de casa, sabendo que a esposa o encontraria
naquelas condições. — Seu rosto endureceu de incredulidade, interpretando
minhas palavras erroneamente. Apressei-me em esclarecer: — Não estou
defendendo-o ou suas atitudes. Não sou psicóloga e estou longe de me
considerar apta para avaliar o estado mental de alguém, mas, na minha opinião,
ele precisa de ajuda profissional com urgência.
— Nada muda o fato de que se não fosse por terem relação comigo, você
e Lucy não teriam ficado à mercê de um sádico filho da puta.
— Estou vendo que não adianta tentar argumentar com você, porque não
está disposto a ouvir ou cogitar a hipótese de que talvez eu esteja certa. Mas
saiba que não te culpo.
O quarto caiu em um silêncio carregado de emoções. Luke parecia querer
me dizer alguma coisa, mas desistiu, limitando-se a respirar fundo e depositar
um beijo carinhoso em minha testa.
— O que aconteceu com ele? — questionei.
— Provavelmente está no inferno, reencontrando o santo pai.
O tom de voz sombrio me arrepiou. A maneira como a tonalidade das íris
escureceu, o maxilar cerrou e a boca retorceu em raiva me provocaram um frio
na espinha.
— Como?
— Podemos falar sobre isso depois? Não é hora e nem lugar.
Eu tinha milhares de perguntas, mas entendi que aquela não era a hora e
nem o lugar para ele. E respeitei seu tempo.
— Tudo bem — concordei.
— Está com fome? — inquiriu, mudando de assunto.
— Não. Estou um pouco grogue e enjoada.
— Efeito dos remédios. De qualquer jeito, você precisa ser examinada.
Encostei a cabeça no travesseiro macio, as pálpebras pesadas de sono. A
perspectiva de passar pelo procedimento não era animadora, embora fosse
necessário. Luke apertou o botão ao lado da cama e poucos minutos depois a
enfermeira entrou.
Simpática, trocou o soro, reposicionando a agulha, refez o curativo e
aferiu minha pressão. Perguntou se eu estava sentindo algum desconforto e,
depois que falei sobre o enjoo, ela acrescentou alguma medicação ao líquido
transparente, tornando-o amarelado, e orientou para que a chamasse se
precisasse de qualquer coisa.
Quando a mulher se retirou, minhas pálpebras pareciam uma tonelada
mais pesada.
— Está bom assim ou quer que eu abaixe um pouco? — Luke se referiu à
posição da cama.
— Pode deixar assim.
Ajeitou o lençol na minha cintura e fez menção de se afastar. Antes que
pudesse ir, segurei sua mão.
— Deita um pouco comigo?
— A cama é pequena, você vai ficar desconfortável.
— Tem espaço para nós dois. — Para provar meu argumento, cheguei
para o lado com cautela, liberando uma parte do colchão. — Só alguns minutos,
prometo.
Luke apagou a luz, tirou o par de tênis e se acomodou ao meu lado com
dificuldade. O corpo dele era grande demais para a cama estreita e
provavelmente ficaria extremamente desconfortável. Não dei a mínima para isso.
Desculpa, querido, mas preciso de aconchego. Só hoje.
Ele passou o braço por baixo do meu pescoço e eu recostei o rosto em
sua clavícula. O cheiro da loção pós barba, o calor da sua pele e o cafuné gostoso
me fizeram adormecer imediatamente.

Eveline certamente estava dolorida e precisava descansar de forma


apropriada, sem um ogro ocupando quase todo o colchão ridiculamente pequeno.
Foi irresponsabilidade acatar o pedido dela, mas que filho da puta resistiria
àqueles lindos olhos azuis que exalavam uma fragilidade capaz de derreter até
mesmo um coração de pedra? A sensação de segurá-la nos braços, sentir a
respiração ritmada em meu pescoço e o cheiro da pele foi foda. Pela primeira
vez em vários dias tive um sono pesado, sem interrupções, reparador.
Quem não ficou satisfeita ao nos flagrar compartilhando a cama foi a
enfermeira mal-humorada — não era a mesma que a examinara na noite anterior.
A mulher me dirigiu um olhar tão indignado que me senti um inseto. Depois, me
enxotou do quarto enquanto resmungava qualquer coisa sobre homens imbecis.
Prestes a desaparecer da presença do sargento, Eveline sorriu para mim, a
expressão travessa, olhar satisfeito. E eu pensei que por aquele sorriso eu
arriscaria minha integridade física.
Passei em casa, tomei banho, comi de forma decente, respondi alguns e-
mails e, antes de pegar Romeo e Lola em Amanda, para de lá buscarmos Eveline
que receberia alta meio-dia, parei na LTM. As vozes de Matthew e Tyler vinham
da sala de reuniões e fui diretamente até lá.
— E aí, puto, como Eveline está? — Ty perguntou quando entrei.
— Felizmente se recuperando bem. — Fechei a porta, cruzando os
braços. — Que bom que os dois estão aqui. Quero levar um papo sério.
— Fala — incentivou Ty, subitamente preocupado.
— Quero pedir para a LTM deixar o trabalho com George Thompson.
Eles foram pegos de surpresa. Matt arqueou a sobrancelha e Ty caminhou
para perto, a testa franzida.
— Por quê?
Permiti que um sorriso incrédulo e sarcástico escapasse.
— O que você acha, Tyler? Não vou passar por outra situação fodida
daquela.
— Entendo que esteja nervoso, de cabeça quente. Mas não acho sensato
tomar uma decisão dessa importância no calor do momento. A multa em caso de
quebra de contato terminaria de afundar a empresa.
— Eu não estou no calor do momento, porra. Tenho plena consciência
das minhas palavras. Se o problema é o caralho do dinheiro, eu me viro. Faço
empréstimo, vendo a casa se for preciso. Peço como sócio, mas principalmente
como amigo, que reconsiderem.
Matt continuou no canto da sala, calado. Tyler passou a mão na cabeça.
— Porra, Lucas. Vamos esperar alguns dias, deixar a poeira abaixar.
Travei o maxilar, cerrando os punhos para conter a raiva.
— O único a arriscar os seus aqui sou eu.
A frase cheia de significados foi recebida com silêncio absoluto. Tyler
colocou uma mão no bolso da calça, a outra massageando a perna machucada.
Matt levantou da cadeira, vindo em minha direção.
— Não sei se compreendi corretamente a implicação do que você acabou
de dizer, Lucas.
Ergui o maxilar, encarando-o de frente.
— Não sabe? — rebati com escárnio. — O único infeliz a ter a família
ameaçada, a irmã quase morta e a ver Eveline escapar de um tiro por pouco fui
eu. Então metam essa história de manter a calma e pensar melhor no rabo!
— Você é um verdadeiro filho da puta! — acusou enfurecido. — Quer
dizer que é isso que pensa sobre mim? Que não me importo com a sua família?
Que não me importo com sua mãe? Com Laura? Com Lucy?
Sustentei seu olhar furioso, sabendo que nós dois nos aproximávamos de
uma estrada perigosa e sem volta.
Foda-se!
— Estou dizendo, Matthew, que quem sentaria em frente à minha mãe e
irmã para contar sobre o assassinato de Lucy seria eu. Eu precisaria lidar com a
dor estampada nos rostos delas. Eu recebia olhares acusatórios, ciente de que
elas me culpariam com razão, embora não dissessem em voz alta. Eu veria um
garoto de três anos se tornar órfão porque sua mãe tinha cometido o maldito erro
de trabalhar para mim. Qual foi o nome que saiu da boca daquele filho da puta,
hein? A quem Gabriel Carter direcionou o vídeo? Para quem foi o recado dele?
Contra quem ele queria vingança? Não foi nenhum de vocês. Então pegue a sua
sensibilidade ferida e vá se foder!
Ele partiu para cima de mim. Desviei do soco certeiro no último segundo
e me preparei para revidar na mesma moeda. Ele queria resolver na porrada?
Então que viesse! Eu estava louco para quebrar a cara de alguém.
Interrompendo a quase pancadaria, Tyler entrou pelo meio, empurrando-
nos pelo peito em direções opostas. Cambaleei um pouco com a força do
empurrão.
— Isso é totalmente desnecessário. Vamos acabar a conversa por aqui.
Nenhum dos dois está em condições de usar o lado racional agora.
Meu peito subia e descia rapidamente, as narinas abriam e fechavam.
Matthew e eu continuávamos a nos encarar com ódio. Sem desviar o olhar dele,
falei:
— Da minha parte não há mais nada a considerar. Não vou arriscar mais
ninguém. Se um moleque que mal tinha saído das fraldas fez um estrago filho da
puta desses agindo sozinho, tenho pesadelos só de imaginar o que uma quadrilha
organizada faria. Vocês sabem disso tão bem quanto eu. Se decidirem continuar
no trabalho, a minha parte da empresa estará à disposição para que qualquer um
dos dois compre.
CAPÍTULO 23
A Minha Cama

Acordei assustada e levemente desorientada. Não reconheci o quarto de


tons sóbrios e pouca mobília. A minha última lembrança era de estar no carro de
Luke, com Romeo e Lola no banco traseiro, indo para casa.
Mas aquela certamente não era a minha casa.
Calcei os sapatos, ajeitei o suéter preto e saí, entrando em um corredor.
Guiando-me pelo barulho da tevê, cheguei à sala de estar. Em frente à enorme
tela que exibia um desenho animado, Romeo estava sentado no carpete. A
mãozinha arrastava um carro em miniatura para frente e para trás, enquanto
imitava a zoada do motor com a boca. Brum, brum, brum.
Lola o observava com um preguiçoso desinteresse, acomodada
confortavelmente no sofá. Do outro lado do cômodo, com os cotovelos apoiados
na mesa coberta de papéis, Luke lia alguma coisa, completamente concentrado.
— Olá — falei alto, chamando a atenção dos dois.
Luke tinha um bonito sorriso no rosto ao desviar os olhos dos
documentos para mim.
— A Bela Adormecida finalmente acordou. Está com fome?
— Um pouco. Mas estou muito mais confusa. Quanto tempo eu dormi e
onde estamos?
Ele olhou para o relógio de pulso.
— Quase três horas. Você apagou pesado no carro, não consegui te
acordar. Estamos na minha casa.
A informação me pegou desprevenida.
— Por quê? — Franzi a testa.
— Talvez seja melhor ficarem aqui por uns dias, até você se recuperar.
— Eu estou bem — afirmei.
— Não consegue movimentar bem o braço esquerdo e está cheia de dores
musculares. Será difícil dar conta de uma casa e criança nessas condições.
— Não quero dar mais trabalho do que já dei até agora.
Ele descartou meu argumento com um despreocupado movimento de
cabeça.
— Pare de ficar pensando demais sobre o assunto e sente-se para comer.
Dona Rebecca mandou comida para uma semana, no mínimo.
Luke se levantou, depois de organizar os papéis para abrir espaço na
mesa, e caminhou até mim. Colocou a mão nas minhas costas e fez uma leve
pressão para que eu o acompanhasse. Sentei na cadeira disfarçando a fisgada no
quadril provocada pelo simples movimento.
— Quando ela arranjou tempo para cozinhar? — perguntei.
— Eveline, entenda uma coisa sobre Rebecca Buttler: ela cozinha
quando está nervosa, e os últimos dias foram bem estressantes. Então, se não
estiver no hospital com Lucy, estará cozinhando.
Romeo levantou em um pulo e correu até mim, balançando o carrinho no
ar.
— Mamãe! Olha meu cainho — exclamou todo animado.
— É lindo, amor. — Sorri para ele, tirando uma mecha de cabelo que
quase cobria um dos olhos, fazendo uma nota mental para lembrar de cortá-lo.
Cheio de energia, ele escalou para o meu colo. Mordi a língua, prendendo
um gemido de dor, ajeitando-o em uma posição que não incomodasse tanto.
Luke tinha razão sobre eu ainda não estar em condições de voltar à minha rotina,
por ora. No entanto, reconhecer aquela limitação temporária não tornava mais
fácil aceitar a ideia de permanecer na casa dele. Não queria que ele se sentisse na
obrigação de assumir a responsabilidade baseado na culpa que insistia em
carregar. Principalmente porque qualquer criança, por mais tranquila que fosse,
transformava o ambiente e alterava o funcionamento de uma casa.
— Quem te deu? — perguntei, notando que nunca havia visto aquele
brinquedo.
— Úki.
Demorei uns segundos para entender que foi uma tentativa de falar
"Luke". Da cozinha, ele riu alto.
— Foi bem melhor do que a primeira tentativa, garoto — comentou,
reaparecendo com um prato e talheres nas mãos.
Romeo retribuiu o sorriso, mostrando os dentes pequenininhos, e eu
fiquei perdida, sentindo uma fisgada no peito. Meu filho não costumava sorrir
para as pessoas. Muito menos para um homem. Impotente, percebi, sem nada
poder fazer para impedir, a cena penetrar meu coração em um lugar bem
profundo.
Eu não podia me apaixonar por ele. Era muito cedo e eu não estava
preparada.
— Que é ichu? — indagou Romeo, apontando para o curativo no meu
ombro. — Mamãe fez dodói?
— Sim, querido, mas já vai sarar.
Olhando-me com compaixão, ele levou a boca até o meu "dodói" e beijou
carinhosamente, como eu sempre fazia quando ele ganhava um machucado.
— Com um beijo maravilhoso desse, a mamãe vai melhorar rapidinho!
— Beijei o cabelo macio e cheiroso, agradecendo a Deus pela milésima vez por
ter saído viva daquele lugar, pela oportunidade de continuar sendo a mãe de um
serzinho tão especial e cheio de luz.
Luke colocou o prato com duas panquecas na minha frente ao mesmo
tempo que Romeo descia do meu colo, voltando a brincar, dando nosso curto
diálogo por encerrado.
— A aparência está convidativa e o cheiro delicioso, mas não vou
conseguir comer tudo — avisei.
— Só vai saber depois de tentar.
A massa estava macia, desmanchando conforme eu enfiava o garfo, o que
facilitou bastante a refeição, uma vez que não precisei usar o braço esquerdo
para cortar. Comi uma inteira sob o olhar atento de Luke.
— Laura ligou enquanto você dormia. Os médicos retiraram os sedativos
e Lucy acordou — contou, sentando-se ao meu lado.
— Que notícia boa! Como ela está?
— Confusa. Segundo Laura, as lembranças dela são incompletas.
— Não sei se isso é bom ou ruim. Talvez o cérebro dela tenha apagado
para poupá-la.
Ele se calou, cruzando as mãos e movendo os dedos distraidamente.
Depositei o garfo no prato, usando o braço bom para apertar seu joelho.
— Ela vai superar. Lucy é uma mulher forte. E tenho certeza que não
culpa você.
— Você não sabe disso. — Virou o rosto, os ombros rígidos de tensão.
— Sei, sim. Aquela garota veste uma casca de durona para o mundo, mas
tem o coração mole. E ela ama e admira muito o irmão mais velho.
Os olhos de Luke ficaram nublados. Afastei a cadeira para trás,
levantando com cuidado, e fui até ele, afundando os dedos no cabelo escuro.
— Você sabe que é verdade, Luke.
Seu braço atravessou a minha cintura e me puxou para perto, abraçando-
me de lado, o rosto enterrado na minha barriga. Deslizei as unhas lentamente
pelo couro cabeludo, fazendo um cafuné carinhoso. Permanecemos naquela
posição, calados, por um bom tempo.
Passei o resto da tarde deitada no enorme sofá com Lola dormindo aos
meus pés, assistindo filmes na Netflix, enquanto Romeo se distraía com a
impressionante coleção de carrinhos de Luke. Ele havia se enfurnado no cômodo
que usava como escritório por horas e continuava por lá, fazendo sabe-se lá o
que. Tive a sensação de que outro assunto o afligia, além do sequestro e da
possível reação de Lucy ao vê-lo.
Às sete da noite, dei banho em Romeo, tarefa que se mostrou complicada
por causa dos incômodos musculares, embora ele ajudasse bastante, esfregando-
se sozinho. Depois de jantar, escovou os dentes sob minha supervisão e
seguimos para o quarto de hóspedes. Luke tinha enchido um colchão de ar e
posto no chão, já que, diferentemente da cama de Romeo, a de casal não possuía
as grades de proteção. Inquieto durante o sono, ele corria o sério risco de levar a
maior queda. Lola, cada vez mais apegada a ele, se aconchegou ao seu lado e me
encarou, desafiando-me a tirá-la do lugar. Eu jamais ousaria.
Acabei cochilando e acordei com o rangido da porta. O rosto de Luke
apareceu no pequeno espaço.
— Você vem que horas?
— Para onde? — questionei, confusa.
— Para o mesmo lugar em que acordou. A minha cama.
Meu estômago revirou. Mesmo dolorida e consciente que ele não havia
empregado segundas intenções à frase, pensei besteira. Obviamente eu estava me
tornando uma pervertida por pensar em sexo em um momento daquele, mas ficar
cara a cara com a morte fazia você dar mais valor a tudo. Tudo mesmo.
Gemi de dor ao dobrar o tronco para sentar. Fechei os olhos por breves
segundos, respirando fundo para uma nova tentativa, mas braços fortes me
levantaram com admirável facilidade.
— Eu posso andar — avisei, apoiando-me no seu ombro.
— E eu posso te carregar.
Aproveitei o breve passeio em silêncio, o coração acelerado, borboletas
no estômago. Luke me colocou na cama e caminhou até o interruptor, desligando
a luz. O outro lado do colchão afundou e, antes de se esticar para apagar também
o abajur, virou para perguntar:
— Já tomou os remédios?
— Sim, antes de dar banho em Ro… O que está fazendo? — indaguei
quando ele começou a tirar as roupas. — Vai dormir assim?
— Assim como? De cueca? — Sorriu, sacana. — É mais roupa do que eu
gostaria, Eveline. Prefiro dormir pelado.
Eu sabia perfeitamente daquele fato. Várias vezes dormimos nus, os
corpos entrelaçados. No entanto, acontecia depois de uma transa, então era mais
natural e menos constrangedor.
— Você fica incomodada?
— Não. Mas está frio.
Era uma mentira ridícula. A temperatura estava realmente baixa lá fora,
mas dentro de casa o aquecedor tornava o clima confortável.
Ele riu novamente, divertindo-se às minhas custas. Colou o peitoral às
minhas costas com cuidado para não tocar em uma parte sensível.
— Tenho certeza que você vai me esquentar — sussurrou no meu ouvido,
beijando meu pescoço. — Boa noite, Eveline.
— Boa noite — desejei com a inquietante certeza de que demoraria a
pegar no sono.

— Você vai primeiro — declarou Luke, acomodando-se na cadeira da


recepção.
— Tem certeza?
Ele assentiu. Eu sabia que era uma artimanha para adiar o inevitável
momento de ficar cara a cara com a irmã, mas não comentei nada. Luke
precisava superar a questão sozinho, no seu tempo, não adiantava insistir.
Lucy estava acordada quando entrei. A cama levemente inclinada
permitia que tivesse uma visão completa do aposento. O rosto muito machucado,
um olho totalmente fechado por conta do inchaço e a mão direita imobilizada
davam a dimensão da violência a que foi submetida. Um arrepio de pavor
estremeceu meu corpo ao relembrar os momentos de desespero.
O queixo dela tremeu e o olho visível umedeceu no instante em que me
viu. Esforcei-me para controlar minhas próprias emoções e não acrescentar ainda
mais drama àquele momento. Pigarreei, espantando o ardor na garganta, e
brinquei:
— Graças a Deus! Estava começando a achar que só despertaria com um
beijo do príncipe encantado.
O sorriso que me direcionou foi fraco, quase inexistente, mas fiquei feliz
por ele.
Laura levantou da poltrona, trocamos um abraço apertado e disse:
— Vou aproveitar para comer alguma coisa. — Fechou a porta
discretamente depois de sair.
Coloquei a bolsa na poltrona recém-desocupada e sentei com cuidado na
beirada da cama. Peguei a sua mão sadia, entrelacei nossos dedos e me inclinei
um pouco para abraçá-la. Não houve como evitar, nós duas choramos. As
pessoas demonstravam solidariedade, tentavam entender, mas só eu e ela
vivenciamos o evento traumático. A estranha ligação nos uniria para o resto da
vida de forma única.
— Vamos parar de chorar. — Tentei me recompor, abanando o rosto. —
Ninguém fica apresentável com o nariz vermelho e escorrendo.
— Por favor, né, Eveline? Eu estou muito pior do que você. Quase
quebrei um espelho mais cedo. A noiva cadáver é uma diva perto de mim.
Soltei uma gargalhada em meio aos resquícios de choro. Lucy me
acompanhou, parando logo em seguida, exclamando uma série de "ai, ai, ai".
— Não posso rir que as minhas costelas reclamam — lamentou.
— Está doendo muito?
— Agora não, o médico aplicou uma injeção para aliviar a dor.
— Menos mal. Meu ombro também tem incomodado um pouco.
— O que aconteceu com seu ombro?
Quase esqueci que ela estava inconsciente no momento do disparo.
Pensei em mentir, dizer que o havia machucado no acidente, mas parecia errado
enganá-la. Principalmente porque, mesmo deitada em uma cama de hospital com
apenas um olho funcionando, Lucy parecia perfeitamente capaz de detectar
qualquer inverdade que saísse da minha boca.
— Levei um tiro de raspão.
Ela ficou abalada com a informação, ameaçou recomeçar a chorar.
Recriminei-me por ter dito, deveria ter tentado a mentira primeiro.
— Por favor, Eve, me conte o que houve. Eu imploro! Estão todos
pisando em ovos comigo, evitando o assunto. E por mais que me esforce, não
consigo lembrar de nada. Às vezes tenho uns flashes, sabe? Mas não consigo
saber se foi real ou um pesadelo. Está tudo tão confuso.
— Não se cobre tanto, Lucy. Talvez haja um motivo para a sua falta de
memória. Provavelmente é melhor esperar um pouco.
— Não — negou enfaticamente, utilizando a mão esquerda para secar as
lágrimas. — Odeio a sensação de ter um buraco nas lembranças. Prefiro sempre
a verdade, por pior que seja.
Desejei contra-argumentar, ouvir uma opinião profissional sobre como
prosseguir. Por outro lado, sendo bem honesta, se estivesse no lugar dela
também escolheria saber.
Narrei de forma suscinta tudo que lembrava. Lucy voltou a chorar, eu
também chorei, mas no final, depois de alguns minutos de silêncio, pensei que
foi a decisão correta. Ela estava longe de voltar ao normal, mas já não
demonstrava a angústia de estar sendo traída pela própria mente, incapaz de
diferenciar realidade e imaginação.
— Você se arriscou pra caralho. Quase tomou um tiro por minha causa.
— Amigas são para essas coisas, sabe? E a minha vida também estava na
corda bamba. Mesmo que tudo desse errado, eu gostaria de estar com a
consciência tranquila, sabendo que fiz tudo que estava ao meu alcance. —
Percebendo o clima melancólico, troquei o tema da conversa. — E a mamãe
urso, vulgo Rebecca Buttler, onde está? Achei que a encontraria algemada à
cabeceira da sua cama.
— Quase isso. — Sorriu. — Eu a obriguei a ir para casa descansar um
pouco. Ela estava deixando as enfermeiras malucas, ensinando às pobres
coitadas como cuidar de mim.
Ri alto, visualizando a cena com perfeição. Aquilo era a cara de Rebecca.
— Tem um irmão lá fora, dividido entre a vontade e o medo de te ver.
Ela enrugou o nariz.
— E por que Luke estaria com medo?
— Porque tem certeza que você o responsabiliza por tudo. Como se ele
precisasse de outra pessoa para isso. Na minha opinião, está fazendo um
excelente trabalho sozinho — resmunguei.
— Pede para o idiota entrar. É o que eu sempre digo, Eveline, toda
inteligência da família veio para mim.
CAPÍTULO 24
Bônus – Vida Nova, Lucy

Quando eventos transformadores aconteciam nas nossas vidas, sentíamos


a necessidade de reavaliá-las, aproveitar o máximo possível, viver cada dia como
se fosse o último. Era como se, só então, nos déssemos conta da nossa
mortalidade. E a urgência de excluir aquilo que não nos fazia bem se tornava
imprescindível.
Veja bem, por mais que algumas pessoas tivessem essa visão sobre mim,
eu estava longe de ser uma idiota sem senso de realidade. Era evidente que eu
sabia que vivíamos em um mundo violento e cada vez mais egoísta. Minha
melhor amiga da época de escola, Corine, fora assaltada à mão armada em uma
viagem de férias a Nova York. Certa vez, eu havia presenciado dois carros
colidirem em um acidente terrível que deixou três mortos, dois da mesma
família. Tyler quase perdera a perna em uma explosão no exército. Michael, o
pai de Luke, fora assassinado em uma emboscada armada pelos caras que estava
prestes a prender. E o meu próprio pai fora morto lutando pelo que acreditava, o
nosso país.
Tudo isso porque os homens não conseguiam conviver pacificamente e
em harmonia, como seres humanos dotados de inteligência e sentimentos
deveriam fazer.
A violência já havia batido à minha porta várias vezes, mas outra pessoa
sempre atendeu.
Eu tinha consciência de que coisas ruins aconteciam o tempo inteiro, no
mundo inteiro. Mas por uma espécie de falsa sensação de superioridade e
vaidade, nunca acreditei que elas me alcançariam. A última coisa — última
mesmo — que passou pela minha cabeça naquela manhã gelada, quando saí de
casa para mais um dia de trabalho com Eveline, foi que um maluco nos
perseguiria, jogaria o meu carro para fora da pista, fazendo-o capotar, e, em
seguida, nos sequestraria. Tudo em prol de se vingar de uma injustiça que só
existia em sua mente doentia.
Gabriel Carter não vivia mais, conforme Laura me dissera, mas a minha
vida nunca voltaria a ser a mesma depois dele.
Eu havia despertado do coma induzido atordoada para a porra, a cabeça
zonza e pesada, sentindo fortes dores, com muito medo e rasas lembranças.
Minha mente, por alguma razão, bloqueara a maior parte dos acontecimentos.
Por isso, quando Eveline sentou junto a mim e encaixou as peças do quebra-
cabeça que faltavam, fiquei confiante de que superaria aquela merda, como
superei tantas outras coisas, como milhares de pessoas superavam coisas bem
piores diariamente.
Ao ver Luke entrar no quarto, entretanto, minha convicção fraquejou e
desabei a chorar. Antes que o paranoico começasse a interpretar minhas lágrimas
da pior maneira possível, estendi os braços para ele, um sinal universal para ser
abraçada.
Ele me rodeou com delicadeza e eu cheguei à conclusão que era, sim, por
causa dele. Mas não pelos motivos que o idiota estava pensando. Meu irmão
mais velho tinha o poder de destruir o meu controle emocional quando eu estava
tentando ser forte, porque, por mais que estivesse bravo comigo, sempre seria
apoio, proteção e amparo. Como uma âncora.
— Sinto muito, pestinha. Sinto muito — sussurrou o apelido de infância
que há tempos não ouvia, beijando o meu cabelo.
E eu fazia jus ao apelido. Como a minha família me aguentou por tanto
tempo era um mistério. Luke afastou-se um pouco, segurando os dois lados do
meu rosto para me avaliar de perto.
— Como você está? Não quero uma resposta socialmente pronta, mas a
verdade.
— Confusa. Com raiva. Triste. Grata por estar viva. Sei lá, é uma mistura
de sentimentos tão intensos e distintos que não consigo encontrar uma palavra ou
frase que defina com fidelidade.
— Se eu pudesse voltar no tempo…
— Pare com isso! — cortei-o. — Como sempre, você está se
responsabilizando por tudo que acontece com a gente. Já passou da hora de parar
com isso, Luke.
— Não seja condescendente comigo. Não preciso que aplaque a minha
culpa.
— Pelo amor de Deus! Estou com um pulso quebrado e não quero
machucar o outro te dando um soco. Quando você vai aprender que eu sempre
tenho razão?
Ele riu tanto que os ombros tremeram.
— Eu nunca imaginei que ficaria feliz por testemunhar uma
demonstração sua de insolência e completa falta de humildade — comentou,
rindo.
— Quem está sendo condescendente agora? — rebati, arqueando uma
sobrancelha.
De repente, os olhos de Luke ficaram molhados de lágrimas. Ele até
tentou limpá-las rapidamente, mas eu vi. E fiquei chocada. Só naquele momento
me dei conta de que, em vinte e três anos de existência, nunca o tinha visto
chorar. Eu não saberia dizer quem estava com o emocional mais desgraçado, ele
ou eu.
Puxando-o para outro abraço, prometi a mim mesma que dali em diante
faria as coisas diferentes. Luke precisou amadurecer muito cedo e, desde então,
carregava minha mãe, Laura e eu nas costas. Eu tinha seis anos quando meu pai
morreu. Na época, chorei muito, não por entender a extensão do significado da
morte, mas o clima de luto e tristeza me atingiu em cheio. Uma criança não
compreendia alguns sentimentos, mas não deixava de senti-los por isso.
A imagem da minha mãe sofrendo, trancafiada no quarto entre lágrimas
era uma recordação forte que me marcou. Laura ficara mais retraída do que
nunca, guardando os sentimentos para si mesma, como de costume. E Luke…
Fora o único a tentar manter minimamente o ar de normalidade. Acordava-nos,
colocava para tomar banho, preparava o café da manhã e nos levava para a
escola.
Não havia recordações dele chorando, sofrendo ou extravasando o
sofrimento que certamente o corroía por dentro pela morte que homem que
fizera o papel de pai na vida dele. Naquela época eu não tinha noção do peso que
recaiu nos ombros dele. Quando cresci, no entanto, eu tive. E mesmo assim
permiti.
Deixei Luke assumir o papel de pai porque era mais fácil do que crescer
sem um.
E a compreensão do fato bateu na minha cara com força. Eu era uma
egoísta do caralho. Nós três éramos. Talvez fosse por isso que ele partira para o
exército. Para ficar longe de uma família que o sugava como sanguessugas. E
talvez eu tivesse recebido uma segunda chance para consertar todos os meus
erros e me transformar em uma pessoa melhor.
Meu irmão e eu, no geral, éramos bem diferentes. Entretanto, no que se
referia a demonstrar sentimentos, éramos idênticos. Demonstrávamos com
gestos e não através de palavras quanto uma pessoa era querida. Como naquele
momento, por exemplo, em que mostrávamos mediante um demorado e
significativo abraço o quanto nos amávamos.
Desculpa. Eu te amo. Te amo muito! Obrigada por tudo.
— Nem sempre deixo claro, mas me sinto uma sortuda filha da puta por
nascer na nossa família. Se existirem reencarnações e outras vidas, desejo de
coração reencontrá-los e tê-los sempre ao meu lado — falei, encarando-o com
seriedade. — Já somos grandes, Luke. Não precisa mais ser o inatingível para
nos proporcionar conforto. A vida é feita de altos e baixos e todo mundo acaba
eventualmente sendo machucado, é impossível fugir dos momentos difíceis. E
você tem uma família para te apoiar quando o fardo pesar para você. Por favor,
pare de se reprimir achando que precisa ser forte o tempo inteiro. Você é de
carne e osso, homem! Se colocarmos numa balança todo que me aconteceu por
ser a sua irmã, o lado positivo ia pender com uma superioridade ridícula. — Ele
aparentava estar com a língua presa, o maxilar travado de emoção. — E agora
vou parar de encher a sua bola, antes que comece a se achar demais.
Luke riu, aproximando-se para outro beijo na testa. Enquanto seus lábios
tocavam a minha pele, eu sabia que ele estava respondendo: Eu também te amo,
pestinha.
De repente, a conversa me deixou exausta e sonolenta. Os medicamentos
estavam provocando a maior bagunça no meu organismo. Bocejei duas vezes
seguidas.
— Vou te deixar descansar.
— Estou feliz por você ter vindo — falei, bocejando a terceira.
— Matthew está lá fora esperando para te ver. Se quiser, digo para voltar
depois.
Matthew?
Honestamente, a minha vontade de vê-lo alcançava a escala negativa.
Mas pensei que se fosse para começar uma nova página e fazer as pazes com o
passado, que começasse logo. Não tinha porque adiar.
— Não, tudo bem. Eu falo com ele.
Luke parou com a mão na maçaneta da porta e fez um último pedido:
— Pega leve com o imbecil dessa vez. Ele também ficou desesperado.
— Imagino que sim. Remorso costuma provocar isso nas pessoas.
Matt apareceu meio desconsertado, parecendo não saber o que fazer
consigo mesmo quando entrou no quarto. Cruzou os braços na frente do peito e
parou a uma distância razoável.
— Está se sentindo melhor? — perguntou.
— Na medida do possível. Com certeza dolorida, mas as injeções
ajudam, embora causem sono.
Ele ficou em silêncio, fitando o chão como se fosse a invenção mais
fascinante. Esperei pacientemente que desse início ao diálogo.
— Lucy, precisamos esclarecer algumas coisas.
— Certo.
— O que eu disse a você naquela noite…
— Era verdade — interrompi.
— Não era o que eu ia falar.
— Você não precisa, Matt, eu sei. Toda essa história de sequestro, quase
morte e hospital, ainda que seja assustador pra caralho, me deu uma nova
perspectiva sobre o mundo. Estou reavaliando as minhas atitudes.
— Fico contente em saber disso. Mesmo assim quero me desculpar,
estava de cabeça quente, você tinha bebido, eu deveria ter…
— Eu também tenho razões para pedir desculpas.
Ele franziu o cenho, confuso.
— Se importaria de esclarecer quais seriam elas?
— Por ter forçado a barra para chamar a sua atenção durante anos, por
todas as brigas infantis que comecei, por ter guardado mágoa durante tanto
tempo. Você foi o primeiro cara por quem acreditei estar apaixonada e, na minha
inexperiência, confundi inconveniência com determinação. Sinto vergonha de
algumas atitudes impensadas, de ter te colocado em posições constrangedoras.
Você foi absurdamente paciente comigo, levou tudo na esportiva e se esforçou
para me dispensar de um jeito delicado e não ferir meus sentimentos.
“Sei que tenho mais responsabilidade do que você por aquela noite. Juro
que sei. Não deveria ter feito o que fiz, te provocado daquele jeito. Mas quer
saber a verdade? Eu não me arrependo. Foi especial, com alguém que eu
confiava e muito melhor do que imaginei. Continuo achando a forma como você
agiu no dia seguinte profundamente lamentável, para dizer o mínimo. Uma
conversa simples teria poupado muito sofrimento e confusão. Porém, como diz a
minha mãe, a vida sempre continua. Estou disposta a enterrar de vez essa
história.”
Ele parecia embasbacado com o rumo da conversa. Eu estava orgulhosa
por ter dito tudo que queria sem gaguejar, quase não me reconhecia. Se dona
Rebecca estivesse presenciando esse momento, provavelmente acharia que um
alienígena tinha roubado meu corpo.
Não, mãe. Estou enxergando as coisas como elas são pela primeira vez,
depois de anos.
— Lucy… — Pigarreou, enfiando as mãos no bolso.
— Tudo bem, Matt — garanti quando ele ficou em silêncio. — Eu te
desculpo, você me desculpa e ficamos quites. Que tal?
Deitei a cabeça no travesseiro, incapaz de me manter acordada por muito
tempo. Antes de me entregar aos efeitos dos remédios, completei:
— Eu desejo que encontre aquela mulher madura que mencionou, que ela
seja boa para você e te faça muito feliz. Obrigada por ter vindo. Por favor,
apague a luz quando sair, a minha cabeça está começando a doer. — Fechei os
olhos e ajeitei as costas, sentindo uma pontada de dor aguda.
Demoraram alguns minutos para eu ouvir os passos dele se afastando. A
luz foi desligada e, enquanto forçava as pálpebras para vê-lo caminhar para fora
do quarto, não senti nada.
Quando eventos transformadores aconteciam nas nossas vidas, sentíamos
a necessidade de reavaliá-las, aproveitar o máximo possível, viver cada dia como
se fosse o último. Era como se, só então, nos déssemos conta da nossa
mortalidade. E a urgência de excluir aquilo que não nos fazia bem se tornava
imprescindível.
O primeiro a ser excluído seria Matthew Baker.
Vida nova, Lucy.
CAPÍTULO 25
Ciúmes

Fui acordada com uma lambida na bochecha. A língua quente e áspera


fazia cócegas, arrancando-me um sorriso. Os redondos olhos escuros de Lola
foram a primeira coisa que vi ao abrir as pálpebras. Ela estava sentada na cama e
começou a balançar o rabo peludo de um lado para o outro, satisfeita por ter me
acordado.
— Ei, Lolinha. Como veio parar aqui, menina?
Perdendo o interesse na nossa breve interação, virou de costas e deitou
entre Romeo e eu. Confusa, me perguntei como dormira na cama de Luke para
despertar na companhia de Lola e Romeo. Cinco dias depois de sair do hospital,
já não sentia dores pelo corpo. Além disso, as feridas na testa e ombro estavam
quase saradas; em poucos dias não haveria sinais delas.
Escovei os dentes e saí à procura de do dono da casa. Encontrei-o na
cozinha, de pé ao lado do balcão, segurando uma xícara fumegante de café numa
mão e o celular na outra. Vestia somente uma calça folgada de moletom, nu da
cintura para cima. Levei um tempo admirando-o. Era lindo. Todo ele. O peitoral
forte, braços definidos, abdômen trabalhado. As tatuagens lhe conferiam um ar
selvagem, rebelde, indomável. E eu o queria para mim.
Sorriu ao meu ver, de modo que as duas covinhas nas bochechas
apareceram e pequenas rugas deram sinais nos cantos dos olhos.
— Bom dia. Tinha formiga na cama? — perguntou, divertido.
— Formiga não, mas um garotinho e uma cadela folgada. — O sorriso
dele aumentou. Parecia estar de bom humor. — Como eles foram parar lá?
— Romeo acordou chorando, achei melhor levá-lo para ficar com você.
Como eu não havia despertado com toda a movimentação? Quando ele
tinha pesadelos de madrugada, estava acostumado a me ter acalmando-o.
— Pare de ficar se julgando, Eveline — repreendeu, lendo os meus
pensamentos. — Seu organismo está bagunçado por causa dos remédios, é
normal ficar uns dias com o sono alterado. Ele chorou, eu fui até o quarto, o
levei para você e só. Você tem tendência a dar uma importância maior a
determinadas situações do que elas realmente possuem.
— Você tem razão. Vou tentar relaxar mais — prometi.
— Agora venha cá me dar um beijo de bom dia.
O estômago contorceu. O efeito que o homem exercia sobre mim era
surreal. Um simples pedido de beijo era suficiente para despertar meu corpo.
Estava ficando cada dia mais difícil estar com ele, dormir e acordar juntos sem
aprofundar o contato físico. Sempre que os beijos ficavam mais intensos, Luke
recuava. Aquilo já estava me dando nos nervos.
Fui até ele, passei os braços sobre seus ombros e lhe dei um demorado
selinho. Quando me afastei, recebi um olhar divertido.
— Chama isso de beijo? Tenha piedade, Eveline, estou na seca.
Dei risada, levantando a sobrancelha em confusão.
— Porque quer — falei. — Passou a semana toda atiçando e me
deixando na vontade.
— Você estava se recuperando e com dores, mulher. — Puxou-me,
espalmando as duas mãos na bunda. — E eu gosto de foder forte, te apertar
todinha, estapear a sua bunda gostosa. — Apalpou a parte mencionada com
firmeza, arrancando-me um pequeno suspiro de prazer.
Ah, aquela boca suja acabava comigo!
Arrastando uma mão até a nuca, segurou meu pescoço por trás e me
beijou. Senti gosto de café e de Luke, uma combinação perfeita. Gemi,
entregando-me ao beijo, a língua quente e macia percorrendo todos os recantos
da minha boca, despertando o intenso frenesi. Apertei as coxas, excitada, o pau
ereto se esfregando na minha barriga.
Dando uma última mordida dolorosa no meu lábio inferior, Luke findou
o beijo rápido demais para o meu gosto. Os olhos expressivos me escrutinaram,
escurecidos e pesados de desejo.
— Hoje à noite — prometeu com a voz rouca e sugestiva. — Preciso
tomar um banho frio e ir trabalhar, tenho assuntos inadiáveis para resolver hoje.
— Afastou-se um pouco, brincando com a alça da minha camisola. — Ty vai
ficar aqui até eu voltar.
— É realmente necessário incomodá-lo? Romeo e eu vamos ficar em
casa, em segurança.
— Não quero que fique apreensiva, mas há alguns dias saiu um boato
que líder do grupo que ameaça o prefeito ordenou um ataque. Macey está no
condomínio de minha mãe e eu vou me sentir melhor se tiver alguém aqui com
vocês. Só até quebrarmos o contrato e garantir a segurança de todos.
— Vocês vão largar o trabalho? Por quê?
Ele suspirou, coçando nervosamente o antebraço.
— Os caras são barra pesada, Eveline. Depois do que houve, me recuso a
colocar quem quer que seja em risco por causa de um maldito contrato. Estamos
negociando as questões burocráticas e repassando o trabalho para uma empresa
de um colega competente.
— Aquele lugar deve estar de pernas para o ar sem Lucy e eu. Quero
voltar a trabalhar.
— Segunda-feira — garantiu, puxando-me para outro beijo, bagunçando
minha linha de raciocínio. — Eu estava pensando que você e Lucy poderiam
tomar umas aulas de defesa pessoal — contou, passando levemente a ponta do
dedo no meu queixo. — O que acha?
— Mesmo a minha coordenação motora não sendo a melhor, estou
disposta a tentar.
Depois que Luke seguiu para o banheiro, fui até a cafeteira quase cheia e
despejei uma quantidade considerável de café preto em uma xícara. Enquanto
assoprava o líquido, espalhando o cheiroso vapor ao meu redor, o celular dele
vibrou alto na madeira do balcão. Segundos depois, outra vibração.
Olhei automaticamente, mais em um gesto mecânico do que por
curiosidade, mas petrifiquei ao ver o nome "Michelle" na tela. O início da
mensagem aparecia no quadro de notificações.
"Oi, Luke. Claro que o nosso…".
Nosso? Nosso o quê?
Encarei o aparelho por torturantes segundos, travando uma batalha
interna. Eu tinha absoluta convicção de que ler conversa alheia sem o
consentimento da pessoa era ridículo. Abominava invasão de privacidade e
tentativas para controlar a vida do outro. Vivi anos daquela maneira e conhecia
as consequências devastadoras.
No entanto, depositei a xícara no balcão e, com as mãos trêmulas, segurei
o celular. Torci para haver uma senha de bloqueio que me impedisse que
prosseguir com aquela loucura. Hoje em dia todo mundo usava uma, certo? Para
meu horror, o celular desbloqueou com um simples deslizar do polegar.
Naquele momento eu atravessei a linha da sensatez sem chances de
retorno.
“Oi, Luke. Claro que o nosso almoço está de pé. Fico feliz que tenha
arranjado um tempo para isso. Nos vemos no mesmo lugar de sempre? Beijos.”
“Será que você poder me buscar aqui na delegacia? Ainda estou sem
carro.”
Como é que é?
Paralisada, a boca amargando como fel e tremendo como vara verde, reli
as curtas orações mais de dez vezes, apenas para ter a certeza de que não era
alucinação. Tive vontade de atirar o celular na cara do safado. Se quebrasse um
dente ou dois, me deixaria ainda mais contente.
O coração pesou, uma dor aguda se espalhou por cada célula. Então, as
palavras de Gabriel Carter vieram na cabeça.
“Eu investiguei cada detalhe da vida de Lucas Hayes e sei que ele sai
com uma morena gostosa chamada Michelle. Ela não está aqui porque é uma
maldita policial e, correndo o risco de me tornar repetitivo, não podia arriscar
meu plano. Então, senhorita Eveline Perry, está dizendo que seu querido Luke
fode as duas ao mesmo tempo?”
Ele dissera a verdade. Provavelmente Luke estava fazendo um jogo
duplo de sedução. Um bolo se formou na minha garganta, um misto de raiva e
decepção me sufocando. Muito mais decepção que raiva. Confiei nele, abri o
coração e decidi arriscar, embora morrendo de medo. No final das contas, Lucas
Hayes era igual aos outros, só disfarçava melhor que a maioria.
Despejei todo o café na pia, incapaz de ingerir qualquer alimento, líquido
ou sólido. Sentei na cadeira da cozinha e respirei fundo. Não podia permitir me
afogar na confusão. Precisava clarear a mente, pensar e tentar entender o que
estava me consumindo e o que eu faria com aquilo.
Queria chorar, gritar com ele, exigir explicações e arrancar cada fio de
cabelo da tal Michelle. Um sentimento ridículo, levando em consideração o
princípio da presunção da inocência. Até que se provasse o contrário, a detetive
não poderia ser culpada por nada.
Odiei-a mesmo assim.
Ele saiu do quarto minutos depois, de banho tomado, cabelo molhado e
cheiroso. Não vi motivos de se perfumar tanto para resolver assuntos meramente
profissionais.
— Estou indo.
— Você vem almoçar em casa? — perguntei, decidindo dar uma chance
para ele falar alguma coisa.
— Não, tenho um compromisso marcado.
Sei bem qual é esse "compromisso", seu ordinário!
— Mas o nosso jantar está de pé. Descanse durante o dia, porque a noite
você é toda minha — o cara de pau teve a coragem de sussurrar no meu ouvido
antes de beijar meu cabelo e se afastar.
Observei Luke caminhar para fora de casa pensando em duas ou três
maneiras de arrancar as bolas dele.
Inventei mil e uma coisa para fazer durante o resto da manhã. Quanto
mais ocupada ficasse, menos remoeria os pensamentos angustiantes sobre Luke
e Michelle. Arrumei cada canto da casa, lavei roupa e cheguei a dar banho em
Lola, que terminou limpinha e me odiando. A cadela tinha pavor à água.
Em minha defesa, não derramei uma lágrima. Quando fui embora de
Reno, prometi a mim mesma não deixar outro homem me fazer sofrer. E era uma
questão de honra cumprir aquela promessa.
Ty chegara após a saída de Luke e se trancara no escritório com o
notebook na mão.
Depois de dar comida à Romeo, não sobrou nada para fazer. Sentada no
sofá, minha perna balançava freneticamente para cima e para baixo. Passei por
mais de cem canais na tevê sem parar em nenhum e, perto das duas da tarde,
resolvi ligar para LTM e fazer uma sondagem. Como esperado, Amanda
atendeu:
— Como está se sentindo? Recuperada?
Você não faz ideia.
— Pronta para voltar ao trabalho — respondi, disfarçando a ansiedade.
— Fico feliz de ouvir isso, Eve. Me diga, em que posso te ajudar?
— Estou tentando falar com Luke, mas não consigo — menti.
— Ele saiu no horário do almoço e disse que não volta hoje. Imagino que
já tenha tentado o celular.
— Tentei sim — prossegui o teatro, murchando com a informação da
saída dele. — Vou ligar outra vez. Obrigada, Amanda.
Nervosa, respirei fundo e disquei o número do celular. Caiu direto na
caixa postal. Ele passaria a tarde inteira na companhia dela, Deus sabe onde.
Eu não vou chorar por você, Lucas.
Quase sete da noite, após dar banho em Romeo e colocá-lo na cama,
decidi parar de me torturar. Fui até a cozinha e peguei o vinho que ele comprara
para a nossa “noite especial". Se o bonito tinha o direito de transar com outra, eu
tinha de tomar a garrafa inteira sozinha se assim desejasse.
— Vou beber um pouco. Você quer, Ty? — Levantei a garrafa ao passar
por ele que, depois de muita insistência, havia se sentado para jantar.
— Não. Estou satisfeito, obrigado.
Enchi uma taça e retornei — com a garrafa na mão, porque, como eu
disse, tomaria até o último gole! — para o sofá. Fingindo prestar atenção ao
programa que passava na televisão, comecei a beber. As imagens passavam uma
atrás da outra, mas eu nem prestava atenção, concentrada demais em conter as
lágrimas. O nariz queimava pelo esforço. Sorvi outro gole generoso.
Depois de acabar com a metade do conteúdo, sentia-me meio zonza. Não
podia acreditar que Luke fizera aquilo comigo, me enganar de forma tão vil.
Diferentemente de mim, que o considerava importante, eu não passava de mais
uma na sua vida. Uma que nem sequer merecia a consideração de ser exclusiva
enquanto durasse. Não havíamos definido o status do nosso “relacionamento”,
mas era uma questão de respeito, está bem?
Eu estava hospedada na casa dele, pelo amor de Deus!
Merda!
Levantei bruscamente, precisando me apoiar no encosto do sofá para não
cair de cara no chão e me aproximei da mesa, sentando-me ao lado de Ty. Eu
precisava conversar com alguém ou me afundaria na autocomiseração. Ele
levantou os olhos do celular, ligeiramente surpreso com a minha repentina
aparição. Bloqueou o aparelho, descansando-o na mesa, e voltou a me olhar.
— Ty, há algum problema comigo? — inquiri de vez.
Se a situação não fosse trágica, eu teria achado a careta de confusão dele
hilária.
— Como assim?
— Por que os homens com quem me envolvo são sempre uns sacanas?
Não sou boa o suficiente para atrair a atenção de uma pessoa séria?
Ele levou as duas mãos atrás do pescoço, bem desconfortável com
minhas autorreflexões em voz alta.
— Quanto do vinho você tomou? — interrogou, procurando a garrafa
jogada no sofá com os olhos.
— Não o suficiente para esquecer. Responda, por favor.
— Eveline, não nos conhecemos há muito tempo, mas as suas qualidades
são evidentes para qualquer pessoa. É uma profissional excelente, principal
responsável por reorganizar a contabilidade da LTM de maneira impressionante.
É uma mãe dedicada e carinhosa, boa amiga. Não sei o que provocou esses
questionamentos e eu não tenho uma resposta satisfatória para eles. Existe muita
gente sacana no mundo, como você mencionou. Infelizmente pessoas boas
passam por situações ruins.
Absorvi as palavras dele em concordância e desabafei:
— Eu não sou o tipo que vive se lamentando, sabe? Tenho noção que
existem pessoas passando por problemas bem maiores que os meus. Mas às
vezes é foda. É uma porrada atrás da outra. — Ri com ironia, imaginando qual
seria a reação dele se soubesse a literalidade da minha frase. — Cresci em um
orfanato e não tenho lembranças dos meus pais. Provavelmente nunca vou
descobrir porque não quiseram ficar comigo e, embora faça esforço para afastar
esses pensamentos, às vezes acho que se não fui suficiente para eles, não serei
para mais ninguém.
Tomei o último gole na taça, limpando os lábios com a língua.
— Lares adotivos são um inferno. A única coisa boa que eles trouxeram
foi Miranda, minha melhor amiga. O pai de Romeo, em quem confiei
cegamente, se revelou desprezível. E quando decido dar uma chance a outra
pessoa, descubro que também estou sendo enganada. Não sei por que atraio tanta
coisa negativa.
— Sinto muito que você tenha passado por isso. Os lares são mesmo uma
merda.
— Você é adotado? — perguntei curiosa.
— Não, mas fiquei à mercê do governo quando meus pais morreram, até
localizarem uma tia. Sei toda a sujeira que acontece naqueles lugares. — A sala
girava ao meu redor e meu raciocínio não estava dos melhores, entretanto,
acreditei ter visto uma breve nuance de tristeza nos olhos azuis. — Quanto aos
homens, não há muito que eu possa dizer para nos defender. A maioria é um
bando de imbecil que não saiu da pré-adolescência. Você vai encontrar alguém
que valha a pena e se apaixonará novamente.
Apaixonar-me? Não queria vivenciar aquela experiência pela segunda
vez.
Gostava de Luke, mas com certeza absoluta não estava apaixonada por
Luke.
Sentia-me tão não-apaixonada que conseguiria fazer a mesma coisa que
ele. Talvez beijar outra pessoa.
A primeira que aparecesse na minha frente.
Estreitei os olhos, analisando Ty de perto. Ele era bonito.
Eu o beijaria sem nenhum problema.
Levantei da cadeira em um pulo e inclinei o corpo em sua direção. Foi
tudo tão repentino que ele ficou sem reação quando colei os lábios aos dele. Não
tinham a textura, temperatura ou sabor dos de Luke, mas não era desagradável.
Ty me afastou delicadamente pelos ombros, mais recuperado do susto.
— Você está fazendo isso pelos motivos errados, Eveline — avisou com
seriedade.
Entrei em desespero. As lágrimas começavam a minar meu controle. Eu
precisava que alguém me fizesse sentir alguma coisa. Qualquer coisa. Caso
contrário, a hipótese de estar apaixonada por Luke se tornaria assustadoramente
mais real.
E eu não poderia estar apaixonada por ele.
— Por favor — implorei pateticamente. — Preciso saber que ainda
pertenço a mim. — Aflita, beijei-o novamente.
— Que porra é essa?
A pergunta estrondou no cômodo na forma do meu pior pesadelo.
Estremeci, torcendo para não ser real.
A maneira como Luke nos olhava, entretanto, não poderia ser mais
fidedigna.
E, pela profundidade de tristeza e angústia que o olhar de decepção
dirigido a mim me provocou, já não era possível negar a realidade diante do meu
nariz.
Eu tinha me apaixonado por Lucas Hayes.

Eu me considerava um cara calmo.


Costumava analisar a mesma situação sob diversos ângulos antes de
tomar uma atitude. Ganhei destaque na estratégia militar por isso. Nas ocasiões
em que a maioria das pessoas tendia a explodir, eu era capaz de controlar as
emoções e traçar a melhor saída resolver o problema.
Eu era um homem de planejar.
Quando saí de casa naquela manhã, por exemplo, tinha o dia inteiro
preconcebido. Depois de fazer o desjejum, trabalharia na LTM até o meio dia.
De lá, encontraria Michelle para um almoço importante. Em seguida, passaria no
banco para assinar os papéis do empréstimo pré-aprovado. Por último, compraria
comida japonesa no restaurante favorito de Eveline e finalmente iria para casa.
Então começaria a parte boa, pela qual eu ansiava há dias. Após uma ducha,
jantaria em sua agradável companhia, a seduziria com palavras e carícias e
terminaríamos a noite na cama, acordados pela maior parte da madrugada,
fodendo à exaustão.
Ficar sem sexo era uma merda, principalmente se você estivesse
acordando todas as manhãs com uma bunda colada ao seu pau duro. Os últimos
dias se resumiram em banhos frios e punhetas. Eveline passara por um trauma
filho da puta, estava física e emocionalmente mexida e desejei dar um tempo a
ela, respeitar a sua recuperação. Nunca se sabe o que é capaz de desencadear
uma crise.
Nunca fui um cara romântico e sempre soube que relacionamentos não
eram o meu forte. Gostava dos casuais, sem amarras, sentimentos profundos nem
necessidade de prestar conta dos meus passos para uma mulher. Jamais me vi
como um homem tradicional, que desejava seguir os passos que a sociedade
parecia impor a todos os adultos. Casar e formar uma família.
Não podia negar, todavia, que aprendi a gostar de chegar em casa e
encontrar vida nela. Vozes e latidos, tevê ligada no volume alto, panelas batendo
na cozinha enquanto o jantar era preparado, brinquedos espalhados pelos
cômodos. Aprendi a apreciar brincar alguns minutos com Romeo e Lola, a
conversar com Eveline enquanto comíamos e eu lhe contava como fora meu dia.
Em um curto período, havíamos criado uma rotina bacana. E eu, que não
simpatizava com o habitual, me pegava ansioso para chegar em casa e vivenciá-
lo.
Por isso, abrir a porta e encontrar Eveline inclinada sobre Tyler,
beijando-o na boca, destruiu minhas estribeiras e capacidade lógica de
raciocínio. Quando deveria respirar fundo, clarear as ideias e ativar o modo
soldado estrategista, joguei as sacolas no chão, caminhei até eles e desferi um
soco no filho da puta.
Tyler cambaleou para trás, levando a mão ao local atingido.
— Vou perguntar de novo — grunhi entredentes. — Que porra está
acontecendo aqui?
— Não vou revidar esse murro porque faria o mesmo no seu lugar. —
Limpou o filete de sangue que escorreu no canto da boca. — Mas não serei tão
compreensível se houver um segundo.
— Meta a compreensão no rabo, Tyler, eu não preciso dela!
— Se tivesse chegado dois segundos depois, veria que eu a estava
afastando.
— Que caralho está sugerindo? Que Eveline agarrou você? — inquiri
furioso, o gosto amargo na boca.
O silêncio dos dois me enfureceu ainda mais. Analisei as diferentes
expressões de constrangimento e perdi o controle outra vez.
— Filho da puta desgraçado!
Fui impedido de iniciar a briga quando Eveline entrou no meio, as mãos
apoiadas no meu peito, os olhos vermelhos e lacrimosos nos meus.
— Por favor, não — murmurou de forma quase inaudível.
Mesmo tudo em mim gritando por um alívio temporário que uma briga
proporcionaria, atendi ao pedido dela e permaneci onde estava, os punhos
cerrados, o peito subindo e descendo rapidamente.
— Por favor, Ty, nos deixe sozinhos — pediu sem tirar os olhos do meu
rosto, embora eu não retribuísse.
— Tem certeza?
— Sim.
Ele assentiu, pegou notebook, celular e chaves do carro e saiu.
— Ele te agarrou? — questionei, fitando o rosto úmido pela primeira vez.
— Não! — negou veementemente. — Foi meio que ao contrário.
— De que diabos está falando, Eveline?
Mordeu a boca, nervosa. Tomou algumas respirações profundas,
esfregando as mãos no pano grosso da blusa, e disse:
— Foi eu que beijei Tyler.
— Que porra de brincadeira sem graça é essa, Eveline? Se está dizendo
isso para defendê-lo, eu…
— Estou falando a verdade! — Aumentou a voz, interrompendo-me.
Ver a franqueza estampada nos olhos azuis tão transparentes foi como
receber um soco no estômago. Passei a mão cabeça, desejando que aquela merda
toda fosse um maldito pesadelo.
— Você gostaria de me explicar os motivos? — pedi com escárnio.
— Existem vários. — Cruzou os braços, fugindo do meu olhar mais uma
vez. — O principal é a raiva que estou sentindo de você.
Eu ficava ainda mais perdido com o desenrolar dos fatos. Puta que pariu!
— E o que eu fiz para merecer tamanho ressentimento? Qual pecado
posso ter cometido para te levar a beijar um dos meus amigos mais próximos
dentro da minha própria casa? — Endureci o tom de voz, desapontado para um
caralho com ela.
Minhas palavras parecerem abalá-la. Engoliu em seco, molhando os
lábios com a língua.
— Não aja como se não soubesse — acusou.
— Que porra, Eveline! — explodi, sentindo o punho e a cabeça
latejarem. — Pareço ser um homem que tem qualquer ideia de que merda
aconteceu? Fale de uma vez!
— Não grite comigo! — Colocou-se na defensiva. — Não devia estar tão
irritado por causa de um simples beijo, quando esteve fazendo coisa muito pior
com a sua… Michelle! A tarde inteira!
Ouvir o nome de Michelle tão aleatoriamente, quando eu nem
desconfiava que Eveline sabia sobre ela, me exasperou.
— Onde Michelle se encaixa nessa palhaçada toda?
Ela gargalhou, sarcástica e nervosa, a risada completamente desprovida
de diversão.
— Não sei se você é um ótimo ator ou só me acha burra mesmo.
Era suficiente. Cheguei ao limite.
— Essa conversa não está indo a lugar algum. Se prefere brincar de
adivinhação, faça isso sozinha. Não vou perder o meu tempo aqui. — Virei para
sair, precisando ficar sozinho.
— Isso! Vá mesmo! E não se preocupe, vou desocupar a sua casa para
você usá-la da maneira que deseja, sem a idiota aqui atrapalhando os seus planos
sexuais!
Suas palavras fizeram o meu sangue ferver. Para quem fora pega
beijando outro homem, Eveline não poupava acusações sem fundamento.
— Você continua evasiva. Fale claramente, sem rodeios, porra! Não
gosto de ser acusado de algo que sequer tenho conhecimento.
Eveline caminhou até mim, o rosto vermelho de irritação e choro, e
apontou o indicador para o meu peito.
— Eu sei muito bem que passou a tarde transando com a tal detetive
gostosa!
A afirmação era tão absurda que gargalhei, incrédulo. Seus olhos se
estreitaram à minha reação.
— Realmente você não tem o menor respeito por mim. É divertido rir da
minha cara de palhaça, Lucas? — A expressão magoada e o queixo trêmulo
fizeram minha risada cessar.
— De onde tirou essa ideia absurda?
— Não tente me enganar, vi as mensagens que ela enviou para você.
Talvez eu pareça, mas não sou burra. E jurei nunca mais deixar um homem pisar
em mim, me colocar para baixo.
Embasbacado, percebi que Eveline realmente acreditava nas próprias
palavras. Fiquei ofendido pela generalização e por haver sido rebaixado à
categoria de algum canalha do seu passado.
— Desde o dia que nos conhecemos, quando te dei a impressão de ser
um cara mal caráter? — Ficou calada, fitando o carpete de sala. — Fale, Eveline.
Qual atitude minha fez você duvidar da minha índole? O que te fez me condenar
como traidor sem um julgamento?
Fungou, limpando as lágrimas rapidamente. Eu odiava ver uma mulher
chorando. Mas hoje ela não merecia ser consolada. Passar a mão na cabeça de
alguém que estava errado não fazia a pessoa amadurecer e aprender com o
equívoco.
— Você é boa em cuspir acusações, mas escolhe o silêncio na hora de
fundamentá-las.
— Vi as mensagens no seu celular. Ela confirmou o almoço, pediu para
você buscá-la, perguntou se seria no mesmo lugar de sempre. Tudo com muita
intimidade. Vai negar que vocês costumavam sair juntos?
— Não, não vou negar.
Eveline recuou para trás, a pele branca como neve. A minha confirmação
pareceu magoá-la.
— Quando perguntei se viria almoçar em casa, você respondeu que tinha
um compromisso profissional. Eu nunca soube que sair para encontrar mulheres
com as quais transa se encaixava nessa categoria. Além disso, não esteve na
LTM no período da tarde, seu celular caía diretamente na caixa postal e voltou
para casa depois das sete. É tudo paranoia da minha cabeça, Luke? Eu estou
louca?
Aproximei-me, ficando a centímetros do rosto dela. Nunca me senti tão
irritado como agora.
— Louca não. Infantil pra caralho.
— Estou longe de ser infantil, Lucas — retrucou ofendida.
— Ah, sim? Se aproveitou de um momento em que deixei o celular na
cozinha e leu mensagens que não eram direcionadas a você. E então, ao invés de
conversar comigo e perguntar diretamente o que queria saber, preferiu tirar
conclusões precipitadas. Achou que eu estava transando com outra mulher e
beijou Tyler para se vingar. Que outra palavra pode ser usada para definir essa
sucessão de atitudes precipitadas?
— Eu não…
— Quer saber cada passo que dei depois que saí de casa? — interrompi,
puto.
— Não é necessário.
— Mas vai ouvir mesmo assim, porque se estou sendo acusado, tenho
direito à defesa. Passei a manhã em reunião com o advogado, discutindo sobre a
quebra do contrato com George Thompson. Almocei com Michelle e, ao
contrário do que passou pela sua cabeça, foi um encontro que de sexual não teve
porra nenhuma. Discutíamos a possibilidade de eu ir para a cadeia.
“Se tivesse perguntado, Eveline, eu teria dito que Michelle estava
presente quando resgatamos vocês do cativeiro. Teria contado o apoio que ela
deu, fosse trazendo informações de dentro da polícia, conversando com seus
informantes para tentar conseguir uma pista ou nos acompanhando até o galpão
que aquele filho da puta as enfiou. Teria confessado que, quando entrei no local,
Gabriel Carter apontou uma arma diretamente para mim e eu o alvejei duas
vezes.
“A arma que tirou a vida dele foi a minha. O dedo que apertou o gatilho
foi o meu. Michelle se ofereceu para assumir os disparos porque é mais simples
para um policial em serviço escapar desse tipo de complicação, principalmente
se tiver salvado duas vidas inocentes no processo. Nosso encontro foi meramente
para repassar os detalhes dos depoimentos que prestaremos em três dias e não
durou mais de uma hora e meia.
“Em seguida, fiquei horas no banco resolvendo todas as burocracias do
empréstimo que tomei para pagar o valor da quebra contratual. E se demorei a
chegar em casa, foi por ter passado no restaurante para comprar a porcaria da
comida que você tanto gosta. Da próxima vez, antes de agir feito uma criança
mimada, experimente dialogar com sinceridade. Odeio esse joguinho, estou
velho e calejado demais para dramas adolescentes.”
Eveline parecia prestes a desmaiar quando finalizei o relato. O rosto,
antes pálido, agora estava tingido de vermelho vivo. Ela abriu e fechou a boca
sem saber o que falar.
— Por que não me disse nada? Eu não fazia ideia…
— Você não perguntou. E eu não queria tocar em um assunto que
pudesse te causar sofrimento.
Silêncio.
Voltei a caminhar para a porta. Precisava sair dali e esfriar a cabeça,
digerir o que tinha visto e ouvido.
— Espera, Luke! Vamos conversar. — A voz esganiçada tentou me frear.
— Agora não. — E, sem virar para encará-la, finalizei: — Só para
esclarecer qualquer dúvida remanescente, não fiquei com outra mulher desde
você. Não sei que tipo de cafajestes há em seu passado, mas não me confunda
com um deles.
Ignorei os chamados, desejando ar fresco — ainda que fosse gelado — e
distância.
Distância dela.
Enquanto acelerava o carro, recriminei-me por tanto descontrole. Nunca
fui ciumento ou possessivo. Achava babaquice tentar controlar a vida do outro.
Mas quando vi a boca dela na de Tyler, meu corpo e mente protestaram, como se
Eveline fosse minha e nenhum outro homem tivesse o direito de tocá-la daquele
jeito.
A cena constrangedora tinha o lado positivo, no final das contas. Servira
para me fazer enxergar que estava muito envolvido, a ponto de começar a
duvidar das minhas convicções e desejos de toda uma vida. Agora eu voltaria
para o lado da linha que nunca deveria ter cruzado.
Quando dei por mim, estava parado em frente à um lugar que conhecia
como a palma da minha mão.
E fiz o que qualquer homem feito de otário faria.
Fui beber.
CAPÍTULO 26
Desnudando a Alma

Passei os primeiros minutos da manhã seguinte com uma dor de cabeça


filha da mãe e um enjoo quase insuportável. Tinha receio de me mover um
centímetro que fosse e vomitar. Certa vez Miranda comentara que ressaca de
vinho era a pior e estava absolutamente correta.
Sentei-me com cautela, esperando algum tempo para me acostumar à
posição vertical, e fechei os olhos, respirando fundo. Eu tinha chorado no sofá
até pegar no sono, exausta física e emocionalmente. Estava tão arrependida,
envergonhada de mim mesma, dos julgamentos e conclusões precipitadas, de ter
envolvido Tyler na minha bagunça, fazendo que o pobre coitado levasse um
soco. Relembrar os olhos de Luke cheios de decepção e tristeza me acabava por
dentro. A última coisa que eu queria era magoá-lo.
Avistei as sacolas com a logomarca do restaurante japonês espalhadas
pelo chão e o remorso cresceu vertiginosamente. Saber que ele planejara uma
noite especial, fizera questão de comprar minha comida favorita e que eu
estragara tudo de maneira tão cruel fazia-me sentir menor que um inseto. Não
havia justificativas para ter agido feito uma maníaca-paranoica-ciumenta. Sentia
aversão ao ciúme doentio. Viver durante anos subjugada e controlada por ele me
fez entender que jamais me transformaria naquele tipo de pessoa.
No início do namoro, eu me apaixonei por Bryan, pelo homem que fingiu
ser para me conquistar, mas aquele sentimento não podia ser comparado ao que
Luke despertava em mim. O pavor provocado pela possibilidade de perdê-lo me
fizera enfiar os pés pelas mãos. Precisava procurá-lo, pedir desculpas, dizer o
quanto estava arrependida.
Foi doloroso ouvir suas palavras, entretanto, não era possível negar
nenhuma delas. Dei um show de imaturidade, provoquei uma briga entre dois
amigos, acusei um homem que se mostrou verdadeiro desde o princípio e, no
fim, envergonhei a mim mesma. Talvez fosse mais fácil culpar a bebida e minha
completa falta de resistência ao álcool, mas como explicar a pachorra de ter
violado a intimidade dele ao fuçar seu celular sem permissão? Naquele momento
não havia uma só gota de álcool percorrendo meu corpo.
Odiei Bryan por ter abalado a minha autoconfiança de tal maneira que,
na primeira oportunidade, me senti indigna da afeição de um homem. Fui tão
depreciada e diminuída que necessitava lutar todos os dias para expulsar os
pensamentos pejorativos a meu respeito.
E me odiei mais ainda por permitir que ele alcançasse esse feito.
A voz infantil retirou-me dos devaneios. Apurei a audição para localizar
de onde ela vinha e estremeci ao perceber que era do banheiro.
Meu Deus!
Esquecendo milagrosamente o enjoo e a dor de cabeça, corri até lá. O
local estava completamente encharcado. Romeo usava o balde pequeno, em que
eu costumava guardar seus brinquedos menores, para encher com água da
torneira da banheira e jogar em uma impotente Lola sentada no vaso sanitário.
Metade do corpo da cadela estava coberto de espuma e a outra não dispunha de
uma gota d’água.
— Jesus! — ofeguei, levando as mãos à cabeça ao mesmo tempo que
rezava para estar alucinando. — O que você pensa que está fazendo, criatura?
— Dando banho em Lola, igual mamãe — respondeu, todo orgulhoso do
feito.
Quando o deixei me ajudar naquela mesma tarefa ontem, não podia
imaginar que o menino tentaria repeti-la sozinho.
— Eu dei banho nela ontem! — Tomando cuidado para não escorregar
no piso molhado, entrei e o peguei no colo. — E você é pequeno, não pode fazer
esse tipo de coisa sem a presença de um adulto, entendeu?
Lola latiu, implorando por socorro com o olhar. “Salve-me, humana!
Tire-me daqui!”.
— Romeo gandi — protestou.
— Não é, não — discordei, preparando-me psicologicamente para
começar a limpar aquela bagunça.
Enquanto enxaguava o pobre animal que tremia de frio, fiz algo
completamente inesperado.
Gargalhei de desespero.

Luke não deu notícias naquele dia — e eu não esperava mesmo que
desse, dada a maneira como havia saído de casa. Espiando através da persiana,
observei o carro de Macey parado do outro lado da rua, provavelmente a pedido
do patrão. Mesmo bravo, ele se preocupava com a nossa segurança.
Decidi dar esse tempo a ele. Amanhã, no entanto, eu pediria perdão às
duas pessoas mais afetadas por meu descontrole.
Comecei por Tyler. Amanda me dera o endereço dele e segui de UBER
até lá. Ajeitando Romeo no colo, toquei a campainha, nervosismo e ansiedade
acelerando as batidas do coração. Ele não demorou a abrir, o rosto demonstrando
surpresa ao me ver.
— Bom dia. Desculpa por aparecer sem avisar, mas precisava falar com
você.
— Entre. — Chegou para o lado, abrindo espaço. — Está tudo bem? —
Quis saber, preocupado.
— Sim… Quer dizer, acho que sim. Não sei — falei, toda atrapalhada. —
Não há uma maneira fácil de fazer isso, então vou dizer tudo de vez, está bem?
Ele assentiu, cruzando os braços na frente do peito, a atenção toda
voltada a mim.
— Quero que me perdoe, Ty. Estou muito envergonhada e não vou tentar
me justificar. Mexi em algo que não devia, tirei conclusões precipitadas e depois
resolvi afogar as mágoas no vinho, mesmo sabendo que sou fraca para bebidas.
Você não é capaz de entender como eu sinto muito por ter te envolvido nisso, ter
feito você tomar um soco e brigar com Luke. Eu contei a ele que não foi culpa
sua e sinceramente torço para a minha irresponsabilidade não estremecer a
amizade de vocês.
Ele assentiu, passando a mão no queixo, que ainda estava inchado e
levemente arroxeado.
— Levar um murro não é a minha atividade preferida. Mas entendo o
cara, ele chegou no pior momento e a cena falou por si só.
— Violência nunca é a resposta. Nunca — enfatizei.
— Não é. E Lucas normalmente não é violento, apenas reagiu ao sentir-
se enganado. Eu nunca o vi tão descontrolado antes.
Mirei o chão, sem reposta para a óbvia declaração dele.
— As coisas que contei… Sobre o meu passado. Ficaria muito
agradecida se ficassem entre nós.
— Ninguém vai saber por mim, Eve — garantiu.
Respirei fundo, aliviada.
— Obrigada. — Após curtos segundos de silêncio, me despedi: — O
UBER está me esperando.
— Torço para vocês dois se acertarem — confessou ele, acompanhando-
me até a saída.
— Eu também.
A parte mais simples havia passado. Agora viria o desafio de fazer Luke
ouvir minhas explicações.
Amanda abriu um enorme sorriso ao nos avistar, empurrou a cadeira para
trás e caminhou na nossa direção de braços abertos.
— Eve! Que surpresa maravilhosa a ver aqui. — Trocamos um abraço
apertado. — Esse mocinho parece ter esticado desde a última que te visitei. —
Passou a mão carinhosamente nos cabelos de Romeo.
— Nem me fale. — Sorri, tirando uma mecha do cabelo do olho dele,
que encarava Amanda com timidez. — Às vezes tenho a sensação que vou
acordar e perceber que ele já saiu de casa para morar sozinho.
— Entendo completamente. A minha mais velha vai fazer doze e parece
que foi ontem que descobri a primeira gravidez.
— É verdade. Amanda — chamei, pigarreando para ganhar coragem. —
Luke está ocupado? Queria conversar com ele.
— Está lá em cima, na sala dele.
— Você pode dar uma olhada rápida em Romeo? Eu não vou demorar —
pedi.
— Claro — aceitou, pegando-o no colo. — Vai tranquila.
Se ela percebeu o meu desconforto e nervosismo, teve o discernimento
de não comentar nada, atitude pela qual me senti imensamente grata. Subi as
escadas com as pernas trêmulas. Cheguei em frente à porta verde-musgo
hiperventilando, parecia ter dificuldades para exercer uma atividade tão simples
quanto a de respirar. Alisei a blusa quatro vezes, mexi no cabelo três e pensei em
desistir umas mil. A covardia, contudo, não poderia mais ter lugar na minha
vida.
Bati.
— Entra — a voz grossa respondeu.
Luke mantinha as costas apoiadas na cadeira confortável, alguns papéis
estendidos à sua frente cobriam parcialmente o rosto bonito enquanto ele os lia.
Estranhando o silêncio, abaixou os documentos para me olhar. A expressão
neutra e absolutamente controlada não dava qualquer dica sobre seus
sentimentos.
Momentaneamente paralisada, perdi-me ao encará-lo, absorvendo a força
reconfortante que os olhos castanhos emanavam. Um dia inteiro sem vê-lo,
depois de vários tendo-o a minha disposição por horas a fio, foi suficiente para
despertar uma estranha saudade.
— É bem provável que não queira me ver ou conversar comigo e eu
honestamente entendo. Mas você disse que todos merecem a oportunidade de se
defender, então peço que seja uma pessoa melhor do que eu e me deixe
esclarecer algumas questões antes de bater o martelo. Por favor.
Precisei morder o lábio com força para reprimir o choro. A última coisa
que desejava era passar a impressão de que estava me fazendo de coitada para
despertar a piedade dele. Errei e estava aqui para pedir perdão, isso tinha que
valer alguma coisa.
Assumi seu silêncio como indicação para prosseguir. Cautelosamente,
fechei a porta e dei uns passos para dentro, parando em frente a ele, a mesa de
madeira, alguns metros e a frieza de Luke nos separando.
— Não vou enumerar todos os meus erros, você fez isso com perfeição
na nossa última conversa. Talvez você não leve a sério, mas eu não sou assim,
não costumo agir daquele jeito, não começo brigas e muito menos magoo quem
quer que seja, especialmente se a pessoa for importante para mim. — Segurei
meus olhos nos seus, esforçando-me para fazê-lo perceber a verdade em cada
palavra. — Nós dois estivemos escondendo coisas um do outro nos últimos dias,
provavelmente por razões diferentes. Quando tentava convencê-lo a me deixar
gravar aquele vídeo, Gabriel Carter quase não acreditou no nosso envolvimento.
Ele me contou que havia investigado a sua vida e sabia que você saía com uma
policial chamada Michelle.
O único indício de que estava me ouvindo foi uma leve ruga formada na
testa. Fora isso, Luke continuava quieto, as mãos sustentando os papéis,
olhando-me.
— Depois que escapamos, a informação desapareceu da minha memória
— prossegui. — Foram tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo… — Fiz
uma pausa, secando as mãos molhadas de suor na blusa. — Isso até ler as
malditas mensagens e me deixar levar pelo ciúme. E eu sei que não tinha o
direito de me sentir assim, afinal você nunca prometeu exclusividade.
Como o silêncio dele persistiu, girei o corpo até ficar de lado para ele e
olhei para o teto, respirando fundo, recusando-me a chorar naquele momento.
Iria até o final e caberia a Luke decidir se eu merecia uma segunda chance ou
não.
Abaixei outra vez a cabeça e voltei a fitar o rosto esculpido em controle.
— Desculpe-me por tudo. Não quero que pense que sou uma mulher
leviana e traidora.
— Não acho que você seja — falou pela primeira vez, o tom de voz
baixo. Eu assenti, um pouco mais aliviada. — Mas toda vez que fecho a porra
dos olhos, vejo você e Tyler se beijando.
— Não foi culpa dele. — Apressei-me em assegurar. — Eu…
— Eu sei — interrompeu. — E não faz diferença saber. — Ele levantou-
se em um impulso e ameaçou sair da sala, perturbado. — Não posso me
concentrar nisso agora.
Concluí que, por mais que se esforçasse para compreender minhas
atitudes, Luke teria sérias dificuldades para alcançar o objetivo. Para que
entendesse verdadeiramente as inseguranças e motivações que me levaram a
quase entrar em uma estrada sombria, ele precisaria me conhecer.
Eu tinha consciência que eventualmente meu passado viria à tona, pois
certos fantasmas, se não fossem espantados, retornavam para te assombrar. Só
não esperava que seria tão cedo. O coração martelou no peito.
Havia duas escolhas muito claras. Deixava as coisas como estavam e
assumia o risco de acabar aquele relacionamento antes mesmo que começasse ou
contava a ele a parte da minha vida da qual mais me envergonhava.
Era sempre muito difícil expressar em voz alta os anos de humilhações e
fraqueza. Enquanto mantivesse as recordações aprisionadas dentro de mim,
poderia fingir que nunca existiram. Mas precisava tentar. Porque cada partícula
do meu corpo gritava que Lucas Hayes valia a pena.
— Vivi durante anos em um relacionamento abusivo — soltei, antes que
perdesse a coragem.
Ele estacou onde estava, a mão encobrindo a maçaneta da porta.

Ouvir uma das minhas teorias sobre o passado dela ser confirmada me
paralisou.
Os segredos que os olhos azuis escondiam, o buraco de três anos no
currículo desde a formatura até a entrevista de emprego, aqui, nessa exata sala, o
estranho pedido para receber o salário em espécie e a escassez de informações
pessoais, quando a maioria das pessoas adorava falar sobre si mesmas, me
alertaram e eu criei inúmeras hipóteses que justificassem aquele comportamento
evasivo.
Soltei a maçaneta e virei para encará-la. Eveline estava visivelmente
fragilizada, embora tentasse manter uma pose de confiança, queixo erguido e
coluna ereta. De braços cruzados, esperei que prosseguisse com o relato.
Era a hora de ouvir.
— Eu conheci o pai de Romeo no último ano de faculdade. Fui criada em
um orfanato católico cheio de regras religiosas, depois não tive boas
experiências nos lares adotivos para onde me enviaram, então eu era
naturalmente uma mulher inexperiente para a idade. Ele foi se aproximando aos
poucos, usando a única matéria que pegávamos juntos para puxar papo, até que
me chamou para sair. Fiquei indecisa, com receio de aceitar e passar vergonha
por não saber como me comportar em um encontro, afinal nunca tinha ido em
um, mas, ao mesmo tempo, me senti lisonjeada por um cara mais velho e
aparentemente responsável se interessar por mim. Acabei aceitando.
“Depois de seis meses de namoro, ele se formou e eu engravidei. Bryan
se mostrou empolgado e feliz com a ideia de ser pai a ponto de me convidar para
morar com ele. Não me lembro de quando os abusos começaram, mas sei que
foram sutis, algumas respostas atravessadas e grosseiras. Em seguida vieram os
ciúmes, as opiniões sobre minhas roupas, com quem eu deveria ou não sair e
manter amizade. Me convenceu a ficar a gravidez e o primeiro ano da criança
em casa, me dedicando exclusivamente ao bebê. Algumas agressões psicológicas
e não demorou para o primeiro tapa chegar.
“Àquele ponto, ele havia me afastado de todo mundo, me colocado em
uma bolha onde só havia nós dois e mais ninguém. Me isolou para que eu não
tivesse a quem pedir ajuda. E, de alguma maneira, me convenceu de que a culpa
das agressões era minha. Eu sempre o provocava, olhava tempo demais para
algum homem na rua, falava o que não devia, emitia algumas opiniões na frente
dos seus amigos. Tudo que eu fazia era motivo para irritá-lo. Minha confiança e
autoestima foram tão abaladas que comecei a acreditar que ele tinha razão.
“Mudei o comportamento e jeito de ser para agradá-lo, anulei a minha
personalidade e, aos poucos, deixei de ser eu mesma. Olhava o reflexo no
espelho e não reconhecia a mulher triste, abatida, submissa e sem perspectiva
alguma. Vivia única e exclusivamente para o meu filho, só ficava feliz ao lado
dele, o amor de Romeo refletia luz em meio ao breu absoluto. E gostaria muito
de dizer a você que, de repente, cansei daquela merda e decidi dar um basta.
Acabei me acostumando.
“Mas um dia Bryan gritou com Romeo. No outro, apertou o braço do
menino tão forte que os cinco dedos dele ficaram marcados na pele. Foi só ali
que realmente acordei e me dei conta do que acontecia ao meu redor. Entendi
que não havia chances de sujeitar meu menino ao comportamento violento do
pai. E então o deixei.”
Ela finalizou o relato aos prantos. Incapaz de continuar mantendo
distância, alcancei-a em poucas passadas e a abracei. Eveline retribuiu e me
agarrou como um bote salva-vidas, retorcendo minha blusa entre os dedos,
enquanto escondia o rosto no meu peito.
Paradoxalmente, uma fúria gelada me percorreu por inteiro. Ansiava por
fazer o filho da puta sofrer da forma mais cruel possível. Eu abominava uma
caralhada de coisas na vida, mas poucas me tiravam do eixo como os covardes
que se aproveitavam dos vulneráveis.
— Não contei para te fazer sentir pena de mim. Mas talvez agora você
compreenda porque fiquei tão insegura com aquelas mensagens. O único
relacionamento que tive foi desastroso, Luke, e ainda luto todos os dias para
combater as sequelas que restaram. Desculpe por ter te comparado a ele, saiba
que os dois não podiam ser mais diferentes.
— Eu sei. — Afastei sua cabeça de mim, ergui o queixo delicado e passei
os dedos no seu rosto, limpando as lágrimas. — Agradeço por ter confiado em
mim para contar sua história.
Eu estava consciente de que faltavam várias peças para o quebra-cabeça
estar completo. Eveline não revelara tudo e eu tinha várias perguntas rondando a
cabeça, mas não era a hora certa.
Durante o sequestro, enquanto ainda não fora possível descartar nenhum
suspeito e Gabriel Carter não assumira o crime, eu havia solicitado uma
investigação mais aprofundada sobre o pai de Romeo.
Enquanto voltava a abraçá-la, alisando as costas delgadas com as mãos,
pensei que Eveline me dera o gás necessário para retornar a atenção àquele
ponto.
Havia chegado o momento de descobrir quem diabos era Bryan Allen.
CAPÍTULO 27
Resiliência

Minha esperança de que tudo voltaria a ser como antes foi dissipada
quando Luke não voltou para casa na noite de ontem. Sequer telefonou. Havia
dois dias que não pisava os pés aqui e certamente a minha presença era a razão
para o afastamento.
O depoimento deles aconteceria hoje e eu queria estar presente para
prestar apoio e gratidão, mas não havia sido convidada.
As horas pareciam se arrastar, zombando da minha ingenuidade. Estava
claro que ele não conseguira me perdoar. E, se por um lado aquela constatação
me deixava triste, por outro tinha a consciência limpa por ter me desculpado.
Definitivamente não iria me humilhar. Doeria, mas eventualmente superaria.
A mente traidora ameaçou fazer suposições sobre o lugar em que ele
passara as duas noites, mas afastei os pensamentos venenosos sem dar chance
para a semente do ciúme criar raízes outra vez. Tinha cometido um erro e
aprenderia com ele; eu o usaria para amadurecer.
Permanecer na casa dele já não era uma opção. Se Luke estava evitando a
própria residência para ficar longe de mim, nada mais justo do que devolver sua
privacidade. Fisicamente recuperada, já era capaz de voltar à minha rotina sem
maiores problemas.
Enquanto Romeo assistia a um desenho animado na tevê, arrumei nossas
coisas e no final da tarde estávamos prontos para ir embora. Meu coração pesava
no peito, a velha sensação de haver um bolo na garganta impedindo-me de
respirar normalmente. Sentia-me machucada, culpada e alquebrada. No entanto,
colaria todos os cacos novamente, como sempre fiz, como sempre faria dali em
diante.
Eu me faria inteira novamente.
Enquanto esperava o transporte chegar, aproveitei para reabastecer os
potes de Lola com água e ração. A pequena cadela andava ao meu redor, ansiosa
e desinquieta, parecendo pressentir nossa partida. Desejei levá-la conosco, mas
não podia simplesmente fazer isso sem o consentimento do seu dono. Bastava ter
lido as mensagens sem a permissão dele.
Com um pouco de dificuldade, consegui apoiar uma mochila em cada
ombro e segurar Romeo com o braço direito. Lola soltou dois latidos quando
alcançamos a porta e aquilo foi o alerta para meu filho perceber que iríamos
embora sem a cadela a quem ele se afeiçoara com tamanha intensidade nos
derradeiros dias.
— Lola — Romeo chamou, apontando o indicador para ela. — Não.
Não! — Contorceu-se no meu colo com o intuito de escapar. — Não, mamãe!
Lola! — gritou, começando a chorar.
Àquela altura, as minhas próprias lágrimas escorriam. Fechar a porta e
deixá-la sentada aos pés do sofá, encarando-nos fixamente em desolação, foi
uma das piores coisas que já fiz em vinte e seis anos de vida. Romeo gritava e se
debatia tanto que quase não pude entrar no carro. Não dei importância à
expressão de confusão no rosto do motorista. Não precisava e nem queria lhe dar
explicações.
O caminho foi turbulento em todos os níveis. Consolei meu filho, que
não parou de chorar um segundo sequer; os olhos avermelhados me encaravam
com explícita acusação. Chorei junto, bastante abalada. Deus! Eu só pedia por
um período de paz. Sem preocupações, medos e dores.
A casa parecia diferente. Estava tudo no mesmo lugar que deixei, embora
parecesse que eu não entrava ali há meses e não há pouco mais de uma semana.
Organizei as roupas nos seus devidos lugares, dando tempo para Romeu e eu nos
recuperarmos da dramática separação.
Antes de dormir, enviei uma mensagem para Lucy informando-a que
estava de volta à minha casa e pedindo para alertar o irmão sobre os cuidados
com Lola. Ela me ligou minutos depois, mas não atendi. Não queria conversar
com ninguém, precisava ficar quieta no meu canto para lamber as feridas com
dignidade.
Passei a noite em claro.

Estacionei em frente à academia, precisando extravasar o estresse


acumulado de vários dias, sob pena de explodir a qualquer instante.
O depoimento terminara há meia hora e tudo ocorrera mais ou menos
como o esperado. Os filhos da puta fizeram a mesma pergunta diversas vezes, de
diversas maneiras para tentar encontrar qualquer incompatibilidade entre as
nossas declarações. Eu não estava convencido sobre Michelle assumir os
disparos, assim como não era confortável fazer Matthew e Tyler mentirem para
acobertar a farsa. Ela, no entanto, garantiu que cobrara alguns favores de figuras
hierarquicamente superiores e o caso seria arquivado. Fui vencido pelo cansaço e
minha atual incapacidade de concentrar a atenção em qualquer coisa além de
Eveline.
O corpo protestava pela noite em claro, onde alternei entre dirigir e
ingerir sucessivos copos de café na estrada. Retornei a Naperville em cima da
hora do prestar o depoimento. Minha mente não se encontrava em melhor
estado, entretanto o ódio me deixava transtornado, necessitando de movimento,
de socar alguma coisa. Seria excelente se fosse o nariz do infeliz, mas o saco de
pancada da academia já provocaria grande alívio.
Encaminhei-me diretamente ao vestiário, troquei a roupa, coloquei as
luvas, capacete, protetor bucal e fui para o tatame. Não fiquei surpreso ao
encontrar Matthew e Tyler lá, parecendo tão ansiosos quanto eu para gastarem
energia. Todo mundo estava tenso para caralho. Enquanto o primeiro me
direcionou um olhar enviesado, o segundo se manteve neutro como sempre. O
clima estava estranho, consequência dos últimos eventos.
Tyler me chamara alguns dias depois da declaração sobre vender minha
parte na sociedade e dissera que os dois acordaram em abandonar o trabalho com
George Thompson. O empréstimo para pagar a multa de rescisão deixaria a
grana curta por um tempo, mas eu daria um jeito. Nada valia mais que a paz de
espírito e consciência limpa.
Disposto a resolver quaisquer rusgas e deixar toda aquela merda para
trás, fiz sinal para Ty me seguir. Quando chegamos em um canto afastado, fui
direto ao ponto:
— Foi mal pelo soco.
Ele me analisou, os braços cruzados na frente do peito.
— O que me surpreende é você cogitar a hipótese de que eu beijaria a
sua mulher.
— Ela não é minha. Eveline e eu somos livres para fazer o que
quisermos.
Arqueou uma sobrancelha ironicamente, a sombra do sorriso cínico
aparecendo no rosto.
— E foi justamente por isso que eu ganhei um murro no queixo. É por
isso também que ela e o filho estão ficando na sua casa.
— Tenho os meus motivos.
— Sim. Está apaixonado.
Olhei para o filho da puta, calculando a distância e força necessárias para
quebrar o nariz arrebitado e intrometido com um só golpe. Aquilo
definitivamente me acalmaria.
— E você parece ter apreciado meu punho, tendo em vista que continua
me provocando — ameacei, irritado.
O imbecil riu. Em seguida, o rosto adquiriu uma surpreendente seriedade.
— Vocês conversaram? — inquiriu.
— Sim.
— E?
Aquela conversa ganhava contornos esquisitos, desconfortáveis. Estreitei
os olhos, desconfiado.
— Por que está tão interessado em saber? Esse assunto é entre Eveline e
eu.
A música agitada tocava em um volume alto enquanto eu recebia um
olhar irritante dele.
— Você é um dos caras mais inteligentes que conheço, Luke. Então me
permita expressar como estou surpreso com a maneira imbecil que está
conduzindo essa situação.
— Que porra, Tyler — reclamei. — Está querendo briga? Não me
oponho em trocar o saco de pancadas por você.
Ele me ignorou e continuou opinando sobre a minha vida — sem
solicitação alguma da minha parte.
— Eu não sei o que houve entre vocês e nem tenho interesse em saber. O
que posso afirmar, no entanto, é que Eveline parecia consideravelmente
perturbada com alguma coisa. E atire a primeira pedra aquele que nunca bebeu,
fez merda e acordou arrependido. Se você for esperto, vai superar o orgulho
ferido, passar por cima de um beijo sem a menor importância e acertar as coisas
com ela.
— É irônico o cara que nunca teve um relacionamento na vida querer me
dar lição de moral sobre o assunto.
— Eu nunca disse que não tive. — O olhar dele adquiriu contornos
obscuros. — Só não pretendo entrar em um novamente.
— Se tem tanta aversão a eles, por que está se esforçando para Eveline e
eu nos entendermos?
— Porque ela é uma das boas e isso é raro. Seria muita estupidez deixá-la
escapar.
Sem outra palavra, afastou-se. Voltei para o tatame, precisando mais do
que nunca usar os punhos. Não queria pensar nas palavras de Tyler e nem
analisar se estava ou não… apaixonado. Não compreendia por que as pessoas
necessitavam rotular e categorizar as coisas. Às vezes, parecia que nomear algo
era mais importante do que vivenciá-lo.
Matthew estava aquecendo, desferindo socos e chutes no ar. Fui para o
outro lado e iniciei o meu próprio aquecimento. Descarreguei um golpe atrás do
outro, o suor molhando minha blusa com rapidez. Em minutos, já estava
ofegante, a adrenalina correndo nas veias.
Girei o corpo, limpando a testa com o antebraço. Encontrei Matt
encarando-me, a sobrancelha arqueada. Está afim?
Dei de ombros. Cai pra dentro!
Montamos as bases, frente a frente, os pés movendo-se rapidamente de
um lado a outro, para frente e para trás, buscando espaço para atacar. O filho da
puta estava com os olhos brilhando, doido para me acertar. Ele era um oponente
à altura, mas eu me garantia.
Desviei de um direto de direita um milésimo de segundo antes que me
atingisse em cheio e imediatamente reagi, acertando um soco parcial na barriga
dele. Matt arfou, pego de surpresa, e deu um passo para trás. E enquanto eu
sorria de satisfação, ele chutou a minha canela.
Filho da puta!
Quase xinguei e pulei de uma perna só, mas não dei a ele o gosto de
perceber como o golpe fora certeiro.
Voltamos a posição inicial, começando uma nova rodada.
— Nunca tive a intenção de insinuar que você não se importa com a
minha família — — falei do nada, abaixando o tronco para desviar de um murro.
— Você é parte dela e sabe disso, porra.
Sem ter tempo de reação, vi a luva azul se aproximar perigosamente e
esmurrar meu queixo com precisão. A cabeça foi jogada para trás, a dor
irradiando por todo o rosto.
Filho da puta desgraçado!
Movimentei os lábios e maxilar, certificando-me de que não tinha
quebrado nada. Era o que eu ganhava por ser um imbecil sentimental que tirara o
dia de hoje para bancar o bom samaritano e pedir desculpas aos dois babacas.
— Eu sei — disse com a voz alterada pelo protetor bucal. — Depois de
quase dois dias desgraçados nenhum de nós tinha condições de pensar com
clareza. Talvez Tyler, mas não conta porque ele é um robô.
Fingi prestar atenção exclusivamente ao que dizia para pegá-lo distraído.
Aproveitei a primeira oportunidade para devolver a gentileza. Foi sua vez de
xingar, a mão no nariz, os olhos fulminando-me. Dei um sorriso irônico. Que é?
Vai ficar putinho?
— É a segunda vez que acerta o meu nariz e dessa vez não toquei na sua
irmã.
— Se tivesse tocado, teria recebido um chute no saco.
A partir dali não houve mais conversas. Praticamos por uma hora, a
mente livre de pensamentos perturbadores pelo menos durante os sessenta
minutos. Finalizei acabado, dolorido e machucado, mas muito relaxado. Valeu a
pena cada golpe recebido.
— Estou na merda — Matt confessou, tirando as luvas, o protetor bucal e
o capacete. — Estou a fim de sair para beber um pouco. Se anima?
Matthew Baker era um cara de poucas palavras e quase nenhuma
demonstração de sentimento. Devia mesmo estar na merda para ter deixado
transparecer o estado de espírito. E eu também não estava no meu melhor
momento.
Então, por que não?
— Vamos.

Percebi que havia algo errado assim que entrei em casa, após passar
metade da madrugada bebendo com Matt.
Deitada no sofá, Lola levantou a cabeça em reação à minha chegada,
olhou-me e voltou a apoiar o queixo sobre as patas dianteiras. Sem latidos, rabo
abanando e lambidas no rosto. Que porra estava acontecendo?
A sala impecável, como nunca esteve antes de Eveline, passava a
impressão de um lugar desabitado. Joguei as chaves e carteira no aparador e fui
até o quarto. A cômoda respaldava somente minhas próprias coisas, sem o
exagerado número de cremes e perfumes femininos. Na suíte não havia mais
shampoos e hidratações no balcão, nem a toalha pendurada no gancho próximo
ao box ou a escova de dente junto a minha.
Não avistei nenhum brinquedo infantil durante a breve inspeção na
residência.
Eles foram embora.
Voltei à sala e me acomodei ao lado de Lola no sofá depois de conectar o
carregador ao celular. A apatia da cadela agora estava explicada. Ela também se
adaptara ao ambiente mais cheio, tanto de barulho quanto de vida. Afaguei a
orelha peluda e ganhei uma breve lambida na palma da mão.
Eu sei, garota. A casa não era a mesma sem eles.
Há anos morava sozinho e me sentia absolutamente satisfeito com a
minha própria companhia. Então, em uma semana, duas pessoas se apropriaram
de cada cômodo do meu lar com uma intensidade tão alarmante que não existia
um só canto do lugar que não evocasse lembranças deles.
Meu celular começou a tocar no instante que foi religado. Meio zonzo e
bêbado, levantei desanimado para atender.
— Até que enfim! Onde estava? — A voz de Lucy, vários tons mais altos
do que meus ouvidos sensíveis suportariam, exclamou.
— Estava com o celular descarregado desde ontem — esclareci. — Boa
madrugada para você também, querida irmã — completei com ironia.
— Boa madrugada o caralho. O que está acontecendo, Luke? Por que
Eveline pediu para eu te avisar que voltou pra casa?
— Não sei. Como você deve desconfiar, ela não deixou nenhum bilhete
de despedida. — Talvez houvesse um pouco de amargura na frase.
— Seja lá o que tenha feito de errado, conserte!
— Como tem tanta certeza que fui eu?
— Você é homem — elucidou, como se aquilo explicasse tudo.
— Vou resolver — garanti.
— Acho bom mesmo. Ela é uma amiga muito querida e eu ficaria muito
puta se nos afastássemos por alguma babaquice sua. Tenha um bom dia. — Sem
me dar tempo de devolver o cumprimento mal-educado, desligou.
Deitei no sofá, sem vontade de encarar o quarto vazio. Certamente os
lençóis exalariam o cheiro gostoso e cítrico do shampoo e o arome suave do
perfume floral. Seria torturante ficar envolto de lembranças sem o corpo macio e
delicado aconchegando-se a mim.
Eveline tinha escapado hoje, mas em breve teríamos uma conversa
definitiva. Porque eu odiei a sensação de ser um estranho na minha própria casa.
CAPÍTULO 28
Se conselho fosse bom não se dava, se vendia

— Puta que pariu, Eveline! Você é burra? — exclamou Lucy com a voz
bastante alterada.
Não era a frase que eu esperava ouvir ao terminar de contar a ela os
últimos acontecimentos. Pensei que se revoltaria com o irmão, não comigo.
— Eu?! Por quê?
— Você não devia ter ido embora desse jeito, criatura.
— E o que você queria que eu fizesse, Lucy? Ficasse na casa de um
homem que aparentemente não consegue dividir o ambiente comigo?
— Pelo amor de Deus, mulher! Meu irmão está apaixonado por você.
Minha cabeça começou a girar com aquela informação. Tentei obrigar o
coração a não se empolgar com as palavras incertas, mas o traidor não me deu
ouvidos e começou a sambar no meu peito.
— Acho que não escutou a mesma história que contei — rebati. —
Entendeu que fui até a LTM, abri uma parte do meu passado para ele, pedi
desculpas e Luke dormiu fora na mesma noite? Que ele não apareceu para me
falar como foram os depoimentos? Que sequer ligou?
— Homens são seres idiotas que não sabem lidar com o ego ferido, Eve.
Luke pode até ser mais evoluído que a maioria, mas continua tendo o
cromossomo Y no seu DNA.
Provavelmente eu havia nascido com algum problema também, pois me
tornava a maior tapada quando o tema era relacionamento amoroso. Enquanto
Lucy afirmava com uma certeza perturbadora os sentimentos de Luke por mim,
eu nem desconfiei que ele pudesse sentir-se daquele jeito. Sabia que não era
indiferente a mim, mas estar apaixonado era outra história.
— Como vo… — Pigarreei, limpando a garganta subitamente ressecada.
— Como você chegou a essa conclusão?
— São tantos sinais, amiga. Ele se envolveu com você, mesmo sendo
veementemente contra manter relação pessoal com funcionários. Depois levou
você e o seu filho para casa. Sabe quantas vezes uma mulher ficou hospedada lá?
Segundo dona Rebecca, fonte confiável e diretamente interessada na nossa
procriação, um total de zero. Então o homem, que normalmente é calmo, frio e
calculista perde as estribeiras e soca um dos melhores amigos porque pegou
vocês dois se beijando. A propósito, o Ty beija bem? Sempre tive essa
curiosidade. Com aquele jeito caladão, todo misterioso… Deve ser uma loucura!
Não sei a razão, mas sempre achei que ele faz o tipo Christian Grey, só que em
uma versão melhorada, sem aquela loucura psicótica do bilionário, é claro. Será
que usa uns chicotes e algemas nas mulheres?
— Foco! Foco, pelo amor de Deus! — implorei, quase sem poder
acompanhar as bruscas mudanças de assunto.
— Já que fez a merda, o que custa matar a minha curiosidade?
— Nem foi um beijo de verdade! — confessei exasperada. — Não teve
língua, foi praticamente um selinho demorado. Não faço ideia se ele é um tarado
que gosta de praticar BDSM. Podemos voltar ao que interessa, por favor?
— Você é inacreditável. — Negou com a cabeça, decepcionada. — Se
era para ter causado toda essa confusão, beijasse direito pelo menos.
Lucy estava sentada na cama, as costas apoiadas em dois travesseiros.
Um dos olhos seguia inchado, a coloração da pele ao redor esverdeada, mas já
não ficava fechado como antes. A mão permanecia imobilizada, recuperando-se
da fratura, e não aparentava sentir tanta dor nas costelas. Mesmo feliz pela
evolução física dela, tive vontade de sacudi-la até que parasse com as divagações
desnecessárias.
— Bela amiga, você — acusei, cruzando os braços. — Gosta de ver o
circo pegar fogo.
— Sempre tive tendência à piromania, não me culpe. — Quando estreitei
os olhos com irritação, ela riu. — Ok, ok, estressadinha. Concluindo o raciocínio
sobre Luke, um homem não faz coisas do tipo se não estiver levando a mulher a
sério. O que mais ele poderia ter feito para te mostrar isso?
— Não sei. Falado, talvez? — questionei irônica.
Lucy riu outra vez, gesticulando a cabeça. Não gostei do olhar
condescendente que me dirigiu.
— Algumas pessoas simplesmente não são boas com as palavras. Nós
dois, na verdade nós três, porque Laura também é um pouco fechada, e olha que
fomos criados por uma mãe expressiva até demais, não costumamos demonstrar
sentimento com palavras. Dificilmente você irá me ver fazendo declarações de
amor por aí. Por outro lado, faço o possível e impossível para ajudar aqueles que
amo. O segredo está nas atitudes, amiga. Concentre-se nelas e verá o que estou
falando.
As palavras dela causaram reflexão em mim. Cheguei à conclusão de que
preferia receber demonstrações de afeto através de gestos, pois as palavras nem
sempre traduziam a realidade. Às vezes as pessoas diziam as coisas por dizer,
enquanto as ações dificilmente eram motivadas por questões escusas. Quem tem
boca vai à Roma.
— Você tem razão. Sempre vemos em filmes e livros as pessoas
demonstrando amor através de grandiosos gestos, acabei internalizando esse
padrão. Na sua opinião, o que eu devo fazer agora?
— Colocá-lo contra a parede até ele se declarar.
— E como vou fazer isso?
— Seduzindo-o, é claro.
O brilho diabólico que tomou os olhos verdes me causou arrepios.
— Sinto muito te desapontar, mas não levo o menor jeito para esse tipo
de coisa. De verdade, sou péssima. Pior que péssima.
— Meu bem, toda mulher tem uma veia sedutora dentro de si. Algumas
apenas não se deram conta disso. Estou entediada pra caralho, louca para voltar a
trabalhar, minha mãe não me deixa nem levantar da cama, então vou esquecer
que é do meu irmão que estamos falando e te ajudar.
Que Deus me ajude!
Um plano de Lucy…
Salve-se quem puder!

Enquanto o homem me entregava o troco e eu o guardava na bolsa,


pensei que gostaria de comprar um carro. Se poupasse um pouco de dinheiro,
conseguiria bancar um modelo modesto, antigo e usado. Não me importava com
a aparência dele, contanto que o motor funcionasse e não me deixasse na mão.
Não dava mais para depender da carona de outras pessoas e pagar UBER ou táxi
cada vez que precisasse sair estava totalmente aquém das minhas condições.
O que ganhava na LTM era bom e pagava as contas, mas não sobrava
quase nada para guardar. Felizmente contabilidade era um trabalho flexível e,
como só precisava ir à empresa por um turno, tentaria conseguir uns extras para
fazer em casa e aumentar a renda.
Fiz um jantar rápido, dei banho em Romeo e o coloquei sentado para
comer. No meio da refeição ele me surpreendeu com uma pergunta:
— Mamãe, quando Lola vem?
O meu coração de manteiga derretida sangrou. Ele havia mesmo se
apegado a ela e sofria com a separação, ainda que só fizesse quarenta e oito
horas que não a via. Alisei o cabelo lisinho com carinho.
— Eu não sei, meu amor. Vamos torcer para que seja logo, não é?
— Vamos na casa do Úki — pediu esperançoso.
Deus, que situação!
— Luke está muito ocupado agora. Assim que ele terminar de fazer o que
precisa, eu falo com ele, está bem?
Assentiu com os olhos repletos de uma tristeza que me feriu. Eu podia
aguentar muita dor sem quebrar, mas não suportava ver meu filho sofrer. Era
como ter um punhal cravado no peito. Quando ele voltou a comer, analisei
aquele comportamento com mais profundidade. A ideia de forçar a Luke a
assumir o que quer que fosse não era atrativa, mas se Romeo se angustiava tanto
com a ausência de Lola, como ficaria se se apegasse ao homem e nós dois não
déssemos certo? Mesmo que nenhuma relação tivesse garantia vitalícia, eu
precisava saber que posição ocupava na vida dele.
Após ajudá-lo a escovar os dentes, li uma história até Romeo pegar no
sono. Deixei seu quarto e fui até o meu, realizando a rotina noturna. Deitada na
cama, enrolada no edredom e girando de um lado para o outro, senti vontade de
conversar com Miranda. Ela era a única pessoa para quem eu não precisava
esconder nada, porque sabia cada um dos meus segredos.
Peguei o celular dentro da meia e chamei o número salvo no aparelho.
Ela atendeu no quarto toque:
— O que aconteceu? — A voz saiu preocupada, meio distorcida.
Déjà-vu.
— Estamos bem — garanti.
— Porra, que susto!
Eu podia visualizar o rosto irritado, as mãos no coração enquanto tentava
normalizar as batidas.
— Desculpa te assustar, eu precisava conversar.
Após uns segundos em silêncio, Miranda voltou a falar:
— Que voz estranha é essa?
Desabafei, daquela vez sem omitir nenhum detalhe dela.
— Puta que pariu! — gritou com a voz completamente histérica ao final
do relato. — Você está mesmo vivendo tudo que não viveu até então, garota!
Não sei se fico feliz ou te mato por ter escondido isso de mim. Um ex-militar,
hein? Peguei um quando era solteira. Jesus, o homem era um furacão na cama,
gostava de sexo selvagem. O seu Luke é assim também?
Como se ela pudesse ver, balancei a cabeça de um lado para o outro de
maneira repreensiva.
— É claro que, depois de tudo que contei, você ia focar na parte do sexo!
— repreendi, mas sentia vontade de rir.
— Ok, desculpa. — Riu sem parecer nada arrependida. — É claro que
fiquei horrorizada com a história do sequestro. Quer dizer, você entrar em uma
dessas sem ter nada a ver com o problema é foda. Graças a Deus deu tudo
certo. Mas é difícil acreditar que é com a mesma amiga que estou falando. A
Eveline que conheço sempre foi meio retraída, tímida e quieta, então estou tendo
dificuldades para acreditar que está transando com um militar gostosão e beijou
o amigo do cara depois de ter lido as mensagens de uma ex-namorada no
celular dele. Perdão se acabei me distraindo com esses detalhes bombásticos.
— Eu não disse que ele era gostosão.
— Não é? — Novamente visualizei Miranda arqueando a sobrancelha,
desafiando-me a desmenti-la.
Derrotada, suspirei:
— É o cara mais gostoso que já conheci.
Outros segundos de silêncio.
— Puta que pariu! — gritou, de modo que precisei afastar o celular do
ouvido para não acabar surda. — Manda nudes, amiga! Preciso saber como é o
pacote completo.
— Está maluca? Você não ouviu o que eu disse? Talvez Luke nem queira
mais saber disso, menos ainda posar nu para aplacar a curiosidade de uma amiga
devassa.
— Sou devassa sim, não nego. E agora pare de paranoia e encare os
fatos. Pela primeira, e espero que última vez, vou concordar com essa tal Lucy.
Esse homem sente alguma coisa por você. Ouça a voz da experiência: um
homem jamais leva uma mulher e filho para sua casa se não estiver interessado.
É como se fosse um território proibido.
— Você tem essa implicância com Lucy, dizendo que ela quer me roubar,
mas tenho certeza de que as duas se dariam tão bem que, no final, eu que
terminaria sem as amigas. Vocês falaram exatamente a mesma coisa com
palavras diferentes.
— Hum… — resmungou.
Perto de desligar, resolvi entrar no pior assunto.
— Alguma novidade sobre Bryan?
— Nada. Depois que o embuste esteve aqui em casa, não ouvi mais nada
a respeito dele. Está preocupada?
— Sei lá, Mi. Estou achando tudo tão calmo, sabe? Faz mais de quatro
meses que fui embora e nem sinal dele. Simplesmente não combina com Bryan
desistir assim tão fácil. Pensei que me acusaria de sequestro como forma de me
intimidar a voltar, mas até agora… nada. Tenho medo do que esse silêncio pode
significar.
— Entendo. Vou pedir a Dax para dar uma investigada no assunto e te
dou um retorno, ok? Eu devia ter pensado nisso antes, mas aquele verme é tão
imprestável que, às vezes, até esqueço da sua patética existência.
— Eu agradeço muito. Desculpa incomodar vocês outra vez, só não
quero envolver Luke nisso. Já causei problemas demais a ele.
— Não é incômodo nenhum, meu amor. Você sabe que te amo.
Mais calma depois da conversa, fui até a cozinha pegar um copo com
água. O celular novo vibrou no balcão, acusando uma mensagem. O coração
acelerou quando vi o nome dele na tela.
“Estou com o dia de amanhã livre. Ainda está interessada nas aulas de
autodefesa?”
Depois de dias sem contato, não estava esperando receber aquele convite.
Lembrava quando ele comentara sobre e Lucy e eu fazer as tais aulas, mas
parecia ter sido há anos. Mordendo o lábio, resolvi encarar a situação de frente e
resolver os nossos problemas de uma vez.
Não demorou muito para chegar outra mensagem contendo um endereço
em resposta à minha afirmativa. De volta à cama, a cabeça dava mil voltas,
relembrando as dicas de Lucy.
1) Coloque roupas que valorizem o que você tem de melhor.
2) Toque nele como se fosse a coisa mais natural do mundo. Pegue no
braço, encoste a perna na sua. Mas seja discreta.
3) Se a ocasião permitir, fique em algumas posições que vai deixá-lo
louco para te foder.
4) Use e abuse de expressões sensuais.
A última dica me preocupou. Uma vez, na adolescência, em uma das
raras ocasiões que saí com um garoto, tentei parecer sexy imitando a
protagonista de um filme romântico que havia assistido. O menino me olhou
todo preocupado. “Eveline, por que seu rosto está assim? Não está tendo um
AVC, né?”
Fiquei com vontade de chorar, sem saber onde enfiar a cara.
Nada de expressões sensuais para mim. Nã-nã-ni-nã-não.
Mas estava decidido.
Quaisquer que fossem as consequências, eu tentaria seduzir um homem
pela primeira vez na vida.
CAPÍTULO 29
Eu não sei mais o que fazer

Quando Eveline entrou na sala de treinamento, senti todo o sangue ir


para a cabeça — a de baixo.
Ela usava roupas de ginástica pretas, coladas para caralho, que
contornavam as coxas e a bunda como uma segunda pele. Virou de costas para
tirar o tênis, pois treinaríamos no tatame, e abaixou um pouco mais do que o
necessário, dando-me uma visão privilegiada da forma arredondada e empinada.
Meu pau deu sinais de vida.
— Desculpa pelo atraso — disse ela. — Hoje foi a primeira vez que
deixei Romeo com uma babá, então quis me certificar que ela tinha mesmo
experiência com crianças.
— Sem problema, acabei de chegar — menti.
Tinha chegado antes do horário marcado, aqueci e fiz algumas flexões
enquanto a esperava. Ela se aproximou com cutela, os cabelos presos em um
rabo-de-cavalo destacavam os olhos azuis e o rosto bonito de feições delicadas.
Meu olhar foi atraído para seu lábio inferior quando o prendeu entre os dentes,
aparentando ansiedade.
— Nunca fiz nada do tipo, provavelmente serei uma péssima aluna.
— Não vamos pegar pesado hoje, não há necessidade. Vou te mostrar três
movimentos simples de autodefesa, baseados no krav maga. Já ouviu falar? —
Movimentei-me desconfortavelmente, tentando disfarçar o pau duro na calça
meio folgada.
— Não é aquele negócio violento que tem dedo no olho, chute no saco e
tal?
Dei risada.
— Por aí. Primeiro vamos aquecer.
Mostrei alguns exercícios de alongamento para preparar o corpo dela
para o treino. Conforme Eveline os repetia, meu olhar era recorrentemente
atraído para o rabo tentador na roupa apertada. Eu tinha decorado cada parte
dela; se fechasse os olhos, conseguiria imaginá-la de quatro com perfeição.
Ao término do alongamento, ela estava ofegante.
— Meu Deus, como estou fora de forma! — Erguendo a barra da blusa
de manga comprida, puxou e retirou-a completamente, restando o top e a calça.
Puta que pariu.
Engoli em seco, sem poder disfarçar que encarava os peitos dela. O
tecido apertado os juntava, formando uma visão sexy do caralho. Tive vontade
de abaixá-lo e liberar os dois montes para serem chupados. Que merda Eveline
estava tentando fazer? Causar-me um infarto? Já sentia a pressão arterial subir,
então estava conseguindo.
Tentando recuperar a compostura, afastei os olhos da imagem tentadora,
limpei a garganta e entoei em tom profissional:
— A primeira coisa que você precisa aprender é a cerrar o punho da
maneira correta, para o soco causar o efeito desejado — expliquei, iniciando os
movimentos com a mão. — A maioria das pessoas tem a errônea ideia de que é
só fechar a mão de qualquer jeito e sair esmurrando. Mas existe o jeito certo e
eficiente de socar alguém. Primeiro, dobre os dedos na altura da segunda
articulação. — Demonstrei conforme falava. — Depois, dobre novamente, de
forma que a ponta de cada um fique protegida no meio da palma da mão, assim
você não corre o risco de quebrá-los com o impacto. Por último, posicione e
mantenha o polegar sobre os dedos indicador e médio. E lembre-se de manter o
pulso reto. Conseguiu entender?
Eveline assentiu, mas parecia meio perdida. Repeti o passo a passo e a
explicação outra vez, incentivando-a a tentar replicar o que eu fazia.
— O pulso sempre reto. — Para corrigi-la, fechei a mão ao redor do seu
pulso. O simples encontro de peles me acendeu. — Você vai melhorar com a
repetição. — Afastei-me antes que meus pensamentos seguissem por um
caminho sem volta e continuei as instruções: — O mais comum em ataques,
principalmente contra mulheres, é que o agressor venha por trás, então é crucial
que você saiba lidar com situações assim.
Parecendo interessada nas explicações, assentiu e mordeu o lábio
novamente.
Eu terminaria a aula com dor nas bolas.
— A forma mais eficiente de se livrar de um ataque por trás é agachar
com rapidez, porque isso baixa o seu centro de gravidade e torna muito mais
difícil conseguirem te erguer ou derrubar. — Exibi as etapas que falava, para que
ela associasse a teoria à prática. — Tente manter as pernas afastadas em um
ângulo maior do que a largura da cintura, gire o quadril para o lado e você terá
livre acesso à genitália do agressor. Por favor, em um caso desses, ataque com o
máximo de força que puder.
— Entendi.
— Para que compreenda melhor, vamos fazer uma simulação. Venha por
trás e tente fechar os braços ao redor do meu corpo com a intenção de me
imobilizar.
Virei de costas, posicionando-me corretamente. Os braços de Eveline me
rodearam, as mãos se encontrando no meu peito. Puxei ar para dentro da boca,
sentindo os seios macios esmagados contra as costas. Eu não ia sobreviver ao
final daquela merda.
Respirei fundo e fiz os movimentos com menos eficiência do que
normalmente fazia, mostrando como escapar daquele ataque. Repetimos três
vezes e invertemos as posições. Cheguei por trás, passando um braço pela
cintura, a mão estendida na pele da barriga nua, e o outro no pescoço, fingindo
um enforcamento.
O cheiro de torta de limão que invadiu minhas vias respiratórias, o calor
da pele dela na minha, a maciez e o encaixe perfeito dos nossos corpos quase
minaram meu controle. Ela inclinou-se para trás, encostando a bunda no meu
pau. Tudo tinha um limite, caralho!
Empurrei o quadril para frente, esfregando-me nela, arrancando um
suspiro trêmulo. De repente, a aula e todos os assuntos que precisávamos discutir
perderam a importância. Com o braço fechado na sua cintura delgada, trouxe-a
para mais perto, sussurrando em seu ouvido:
— Que porra você está fazendo?
— O que você mandou — respondeu num tom baixo, ofegante.
— Eu não te mandei esfregar a bunda no meu pau.
— Não fiz de propósito — Contrariando as próprias palavras, empinou
ainda mais.
Soltei um gemido torturado, apertando sua cintura com força, a mão que
estava ao redor do pescoço deslizando para o seio direito.
— Também não vestiu essas roupas de propósito, somente para me
atormentar, me deixar louco? — Mordi o lóbulo da orelha, arrancando-lhe um
gemido mais alto.
— Estou perfeitamente vestida.
Senti mais uma rebolada no pau. Desci a língua pelo pescoço,
depositando uma mordida dolorida.
— Se continuar se esfregando em mim desse jeito, vou te comer gostoso
bem aqui, sua safada.
— Quem disse… Que eu estou… — Gemido. — Interessada?
Dei uma risada sacana no seu ouvido ao mesmo tempo que apertava o
peito, notando que, mesmo por cima do top, o mamilo reagiu, ficando duro.
— É precisamente o que seu corpo está me dizendo.
Para a minha surpresa, Eveline levou uma mão até a frente do meu short
e apertou meu pau com a pressão perfeita. Cresci mais na mão macia. Virei seu
corpo bruscamente, deixando-a de frente para mim, e abaixei a boca para beijá-
la. Eveline, entretanto, virou o rosto e meus lábios resvalaram na lateral da
bochecha. Desci então os beijos pelo pescoço, deslizando a ponta da língua na
extensão da pele, os braços apertando-a forte, a mão apalpando a bunda que me
causava tanto tesão. Enfiei os dedos por dentro da calça colada, mas ela escolheu
aquele momento para se afastar. Segurou meu rosto, apertando as bochechas
com uma só mão, até que eu subisse os olhos para encontrar os seus.
— O quê? — murmurei.
— Você ainda está bravo comigo?
— Pelo quê? — Acariciei um peito, apertando o mamilo entre os dedos.
Eveline intensificou a pressão no meu rosto.
— Você sabe.
— Porra, você quer que eu broxe, trazendo esse assunto à tona?
— Transar é bom, mas não vai resolver nada. Precisamos conversar,
Luke.
— Agora? Então por que ficou me provocando? Estou sem sexo desde o
Natal. Vem cá, a conversa fica para depois.
Tentei beijá-la de novo, somente para ser repelido outra vez.
— Você ainda está bravo, Luke? — insistiu, repetindo a pergunta.
Respirei fundo, notando a decisão em cada traço dela. Distanciei-me um
pouco, ajeitando o pau — infeliz e insatisfeito — que já doía e passei as mãos no
rosto.
— Relembrar a cena me deixa puto, mas não estou com raiva.
— Então por que não voltou para casa no dia que fui ao seu escritório?
— Passei aquela noite viajando, tinha um assunto para resolver —
respondi de forma evasiva.
— Poxa, e não poderia ter avisado? Uma ligação teria sido suficiente
para diminuir minha paranoia.
— Meu celular descarregou no meio do caminho, Eveline. Fiz um bate e
volta, não parei para comer ou dormir. Precisava estar aqui cedo para depor.
Ela abaixou o rosto, absorvendo minhas palavras, parecendo analisar se
acreditava nelas ou não.
— Por isso você foi embora sem avisar? — questionei.
— O que você esperava? Depois da nossa discussão, ficou duas noites
fora de casa. Achei que quisesse me ver longe de lá.
— E você continua presumindo coisas a meu respeito ao invés de
perguntar. — Soltei uma risada irônica, começando a ficar irritado.
— Porque você não conversa comigo! — Abriu os braços
exageradamente e voltou a abaixá-los em seguida. — Me disseram que você é o
tipo de pessoa que age, mas é meio óbvio que não sou muito boa em interpretar
os sinais, então preciso de palavras, certo? Você reclama que eu não dialogo e
sempre me deixa no escuro também.
— Então vamos conversar agora. — Cruzei os braços.
— Ótimo! E eu vou fazer todas as perguntas que desejo — rebateu,
imitando meu gesto.
— Ótimo! — repeti sua fala.
— Onde você passou as duas noites?
— No quarto de descanso da LTM.
— Sozinho?
— Que porra de pergunta é essa?
— Eu posso perguntar o que quiser, lembra? — Arqueou uma
sobrancelha, os peitos saltando para fora do top por causa da posição dos braços.
— Sozinho, Eveline — respondi impaciente.
— Você transou com alguém desde então?
— Puta que pariu! — Passei a mão na cabeça, exasperado. — Você não
me ouviu dizer que estou sem sexo desde o Natal?
— Por quê?
Aquela pergunta me pegou desprevenido. O importante era que não havia
transado e a mulher queria arrancar confissões que eu talvez não estivesse
preparado para fazer.
— Porque eu não quis.
— Isso não é uma resposta satisfatória. Você saía com Michelle quando
nos conhecemos, por que parou?
— Porque comecei a transar com você. Não é óbvio?
— Não! — berrou. — Nada para mim é óbvio! Eu quero saber com todas
as letras. Chega de ficar deduzindo. Chega de causar confusões com palavras
desencontradas. Você é o segundo cara com quem eu transo na vida e não tive
ninguém desde então. Agora eu quero saber por que parou de se relacionar com
a detetive.
Senti-me encurralado por uma Eveline decidida e irritada como nunca
havia visto. Para o meu desespero, achei-a profundamente atraente e voltei a
ficar duro. Para a minha infelicidade, ela percebeu a protuberância na frente da
calça e voltou os olhos para mim depois de encarar meu pau, chocada:
— Você ficou duro? Por que, hein, Lucas? Por acaso está relembrando o
seu tempo de pegador?
— Caralho! Nunca me arrependi tanto de umas fodas casuais! —
Respirei fundo em busca de calma. — Eu fiquei de pau duro porque estou
excitado em te ver irritada e com ciúmes. Enquanto você fala sem parar, só
consigo pensar em te colocar de quatro no tatame e te comer por trás até não sair
mais nenhuma besteira dessa sua boca!
Eveline arregalou os olhos e engoliu em seco, as bochechas adquirindo o
tom de vermelho tão característico de quando ficava envergonhada ou excitada.
— Isso só vai acontecer depois que eu estiver satisfeita com as suas
respostas. — Empinou o queixo, trêmula de tesão com as minhas palavras, mas
esforçando-se para permanecer séria.
A conversa com Tyler veio à mente, o filho da puta provocando,
afirmando que eu estava apaixonado por ela. Era evidente que aquela mulher
provocava um sentimento forte em mim. Eu queria proteger, cuidar, dormir e
acordar todos os dias com o corpo gostoso entrelaçado ao meu. O sentimento
protetor se estendia ao filho dela, porque o garoto era uma extensão de Eveline.
E era um moleque engraçado, educado e fácil de agradar. Havia ficado feliz
quando permiti que brincasse com a minha coleção de carros em miniatura.
Aqueles eram sintomas de paixão?
Eram. Não tinha como negar.
Eu estava fodido.
Ela continuava a me escrutinar, esperando meu próximo passo.
Lentamente, aproximei-me, parando a poucos centímetros dela.
— Você está preparada para ouvir?
Engoliu em seco de novo, mas assentiu.
— Eu preciso saber, Luke — sussurrou, demonstrando aquela fragilidade
que ferrava comigo.
— Não transei com nenhuma outra mulher porque não sinto vontade.
Desde que trocamos o primeiro beijo não penso ou sinto tesão por ninguém.
Gosto de conversar com você, ficar ao seu lado e tentar conhecer a mulher que
há escondida debaixo de tantas camadas. Admiro a profissional competente, a
mulher inteligente e a mãe foda que sempre coloca o filho em primeiro lugar. Sei
que não sou bom com as palavras, mas te mostrei de todas as formas que
conheço como te considero importante, Eveline.
Fiz uma pausa, consciente de que iria até o final. Não tinha motivos para
esconder. Eu não tinha vergonha dos meus sentimentos. A despeito de não
entender por que as pessoas precisavam das palavras, compreendia as razões que
as faziam cruciais para Eveline.
Ela necessitava ouvir.
Talvez eu também precisasse dizer.
— Eu não sei mais o que fazer para te mostrar que estou apaixonado por
você.
Eveline ofegou, os olhos molhados, um lindo sorriso suavizando o rosto
tenso. E no instante seguinte estava se jogando em meu colo, os braços ao redor
do pescoço, as pernas rodeando minha cintura. Consegui me equilibrar a tempo
de evitar a queda.
Finalmente a boca quente e macia encontrou a minha. Gemi ao degustar
o sabor da língua morna enroscando-se à minha, explorando-me com a mesma
intensidade que eu fazia com ela. Mordi o lábio inferior, esticando a carne até o
limite antes de soltá-la e mergulhar no recando molhado outra vez.
As duas mãos espalmadas na bunda esmagaram os globos com firmeza,
esfregando a boceta no meu pau por cima da roupa. Caminhei, por puro instinto,
até encontrar uma parede onde pudesse pressioná-la. Eveline respondeu, as
unhas arranhando minhas costas por dentro da blusa, arrancando arrepios do meu
corpo excitado. Desci a boca para o pescoço e chupei a pele macia, levemente
salgada do suor, aproveitando para deixar mordidas em partes estratégicas. Ela
gemia e rebolava cada vez mais gostoso.
Abaixei o tecido do top em um puxão, rasgando acidentalmente o pano,
de modo que os dois peitos foram liberados ao mesmo tempo. Eles saltaram na
minha frente, lindos, cheios, embora pequenos, os mamilos claros eriçados,
durinhos de tesão. Sem aguentar esperar, coloquei a maior parte na boca e chupei
forte, sem delicadeza. Eveline gritou, empinando o busto ainda mais, facilitando
para a minha boca trabalhar livremente. Arrastei os lábios por toda a pele que
separava os dois e, depois de passar a ponta da língua no outro mamilo, mamei
forte, mantendo-a imprensado entre a parede e meu corpo.
— Luke… — gemeu, contorcendo-se. — Alguém pode entrar.
Fui despertado da névoa de tesão pelo alerta na voz trêmula. Com
cuidado, deslizei-a até os pés tocarem o tatame e pedi:
— Espera aqui, bem quietinha.
Alcancei a porta rapidamente e girei a chave, trancando-a. Eveline
permaneceu na posição que a deixei, apoiada na parede, o tronco subindo e
descendo por causa da respiração sôfrega, os peitos molhados da minha língua à
mostra, balançando conforme puxava o ar para dentro dos pulmões. Minhas
bolas estavam pesadas, doendo de tanto tesão.
Voltei para ela, aproximei o rosto do seu e, sem tocá-la, desci até ficar de
joelhos na sua frente. Olhando os olhos azuis nublados de desejo, enganchei os
dedos no cós da calça e fui deslizando o tecido lentamente, controlando a
vontade de rasgá-lo da mesma maneira que fiz com o top. A calcinha branca,
pequena e de renda me enlouqueceu, arrancando um gutural gemido de
antecipação. Afastando o tecido para o lado, soltei um palavrão ao dar de cara
com a boceta carnuda, rosada e completamente depilada. Aproximei o nariz,
sentindo o cheiro feminino delicioso e em seguida dei um demorado selinho no
centro. Eveline gemeu, jogando o quadril para frente, pedindo sem palavras o
que queria. Mas eu gostava de ouvir.
— O que você quer? — perguntei encarando-a de baixo.
— Você sabe.
— Peça que eu dou — provoquei, depositando outro selinho em cima do
clitóris.
— Quero que me chupe.
Eu dei risada, satisfeito e louco para atender ao pedido.
— Será um prazer. — Abrindo os lábios da boceta, abocanhei-a.
O gemido foi mais alto, a cabeça pendendo com violência para trás, as
mãos encontrando meus cabelos, correndo as pontas das unhas no couro
cabeludo. Suspendi uma perna, apoiando-a no meu ombro para ter um melhor
acesso com ela arreganhada. Forcei a língua por toda a extensão, desde a entrada
melada ao conjunto de nervos inchado mais acima. Finquei os dedos nas coxas
macias, suguei todo o clitóris para dentro da boca e chupei.
O corpo de Eveline entrou no estado de tremor que antecedia o orgasmo.
Afastei-me para olhá-la.
— Já, porra?
— Não tira a boca! — Empurrou o quadril para frente ao mesmo tempo
que puxava a minha cabeça de volta à boceta.
Não precisou mais que algumas sugadas para ela quebrar, gritando e
gozando na minha boca. Segurei os quadris quando tentou fugir de mim,
limpando a lubrificação que escorria da sua abertura. Eveline fazia barulho para
caralho e eu estava pouco me fodendo para a possibilidade de alguém escutar, a
mente concentrada em cada som de prazer que arrancava dela.
Levantei, passando as mãos por suas curvas, até alcançar a boca mais
uma vez com a minha. Chupei sua língua, mordi o lábio inferior com força,
fazendo-a provar o próprio sabor, o beijo mais carnal que qualquer outro.
— Você chupa muito gostoso — sussurrou no meu ouvido enquanto
beijava meu pescoço, surpreendendo-me.
— Fico feliz em agradar, gostosa. — Estapeei a bunda, apreciando tê-la
mais solta durante o sexo.
— Minha vez — avisou e escorregou para ficar de joelhos.
— Estou com tesão acumulado, não vou durar nada se você me chupar
— alertei, tendo certeza que gozaria em cinco segundos no instante que a boca
dela cobrisse meu pau pela primeira vez.
Sem dar a mínima para meu alerta, Eveline abaixou calça e cueca ao
mesmo tempo. Alisou o comprimento do meu pau cautelosamente e cobriu a
cabeça com os lábios. Apoiei uma mão na parede a minha frente, a outra indo de
encontro aos cabelos dela enquanto sentia centímetro por centímetro sumir no
calor abrasador. Mantive os olhos fechados, caso contrário, o cenário altamente
erótico seria o meu fim.
Eveline levou uma mão até as bolas, apertando-as, forçando a cabeça
para frente, engolindo meu pau quase completamente.
— Você gosta de me chupar, safada? — perguntei, abrindo os olhos e
puxando o rabo de cavalo para trás. Ela aumentou a sucção em resposta. —
Então engole, cachorra.
A vontade de estocar veio forte. Desloquei a mão do cabelo para a parte
de trás da cabeça, protegendo-a de bater na parede, e comecei a meter. Meu pau
entrou na boca apertada até o limite da garganta e eu já sentia o arrepio dominar
a coluna e se espalhar para o restante do corpo.
— Vou gozar. — Fiz menção de sair da boca macia.
Eveline, no entanto, puxou-me pela bunda para continuar o melhor
boquete da minha vida. Ao perceber sua intenção, estoquei firme, gemendo,
esporrando dentro da boquinha gulosa. Ela engoliu tudo, limpando meu pau.
Minhas pernas pareciam incapazes de me sustentar.
Usando a parede como apoio, suspendi-a pelos braços e beijei-a com
sofreguidão, daquela vez nossos gostos se misturavam. Mordi o queixo e o
pescoço, alcançando os peitos tesos e arrepiados. Juntei-os e abaixei a cabeça
para lambê-los e chupá-los em alternância. Ela voltou a gemer, acariciando meus
braços, ombros e pescoço, acordando meu corpo recém-saciado.
Tirei a blusa, desfiz-me da calça e cueca emboladas no tornozelo e virei-a
de frente para a parede. Meu pau já estava semiereto, louco de saudade daquela
bocetinha que o sugava como nenhuma outra fez. Colei o rosto dela a parede,
puxando o quadril para trás.
— Porra, você quase me matou — admiti, mordendo-lhe o lóbulo e
abaixando-me para livrá-la da calcinha. — Empina para mim.
Ela fez o que pedi. Perdi o ar com a visão da bunda nua inclinada em
minha direção. Amassei a carne, abrindo-a, cada vez mais excitado. Segurei o
pau e o levei até a entrada úmida, esfregando-o pela carne quente.
— Merda!
— O que foi? — Ela virou o pescoço para trás.
— Estou sem camisinha aqui — comentei, passando por um nível
desconhecido de estresse e frustração. Apoiei a testa no ombro dela, respirando
fundo para aceitar a triste realidade.
— Eu tomo anticoncepcional, Luke.
A esperança cresceu vertiginosamente, deixando-me tonto. A
possibilidade de comer Eveline sem nada entre nós era tentadora.
— Nunca transei sem camisinha — anunciei. — Você tem certeza?
— Sim, a não ser que você não…
A frase dela morreu na metade quando deslizei na boceta escorregadia.
Porra! O calor era mais potente, a carne me sugava dolorosamente, as paredes
macias fervendo ao meu redor. Puxei o rabo-de-cavalo para trás, dei um tapa
estalado na bunda e passei a estocar com força, indo até o fundo, minhas bolas
batendo nos globos empinados. Gememos juntos, o encontro sucessivo dos
corpos produzindo barulho constante, suor escorrendo de mim para ela e dela
para mim.
— Que delícia sentir meu pau fodendo essa boceta nua — murmurei,
desferindo vários tapas na bunda lisa, deixando a pele avermelhada.
Eveline estremeceu, as palmas das mãos apoiadas na parede, assim como
o rosto, afogueado de tesão. Forçava o quadril para trás, encontrando minhas
estocadas. Subi as mãos para brincar com os mamilos durinhos, enquanto lambia
e mordia seu pescoço.
Afastei-me, saindo dela antes que gozasse outra vez. Virei-a de frente
para mim, enfiando a língua em sua boca, cheio de tesão paixão.
— Fica de quatro. Quero gozar na minha posição favorita.
Devagar, ela caminhou até o meio do tatame e se abaixou, ficando de
joelhos. Depois deslizou o corpo até apoiar os dois braços no chão e ergueu o
quadril.
— Caralho! — ofeguei, masturbando-me.
Aproximei-me sem desviar os olhos dela, aproveitando cada instante para
apreciar o rabo empinado, a boceta exposta, brilhando de lubrificação, inchada
dos meus chupões e arremetidas brutas. Posicionei-me atrás dela, abri a bunda e
passei a língua pelo buraco apertado. Eveline se retraiu, assustada por ter um
homem chupando seu cu, mas antes que a tensão aumentasse, levei os dedos à
boceta, espalhando seu líquido até o clitóris em movimentos circulares. Aquela
bunda receberia meu pau em breve.
Prestes a explodir, mordi a carne farta e posicionei o pau na entrada
escorregadia. Meti de uma vez.
— Ai! — gritou quando voltei a estapear o traseiro.
— Gosta de ser fodida de quatro enquanto toma uns tapas na bunda? —
Outro tapa.
— Gosto. Mete mais, Luke.
O pedido desintegrou qualquer controle. Firmei as mãos na cintura fina e
estoquei forte, empurrando o corpo dela para frente. Aquela posição sem
camisinha era covardia.
— Rebola no meu pau.
Enquanto Eveline seguia meu comando, levei a mão até o meio da bunda
e circulei o buraco com delicadeza. Entre uma estocada e outra, enfiei o polegar.
Ela parou de rebolar e olhou sobre o ombro para trás.
— Luke, o que…?
— Relaxe — incitei, deslizando a mão desocupada pelas costas a fim de
acalmá-la. — Se não estiver gostando é só pedir que paro imediatamente. Só
quero te dar prazer de todos os jeitos que conheço.
Pareceu indecisa, refletindo sobre minhas palavras, então voltei a forçar o
quadril para frente. O dedo deslizou com facilidade, o buraco bem lubrificado
com minha saliva. Não o movi a princípio, concentrando a atenção em balançar
o quadril para frente e para trás. Quando notei seu corpo relaxado, enfiei e tirei o
polegar sincronicamente às penetrações. Eveline gemeu alto, empurrando contra
meu dedo e pau, parecendo gostar de ter os dois lugares estimulados ao mesmo
tempo.
— Que cuzinho apertado. Vai me deixar fodê-lo, Eveline?
— Ai, Luke — gemeu descontrolada.
— Isso, geme o meu nome, porra!
Aumentei a velocidade e a boceta passou me apertar em espasmos
sucessivos e involuntários quando começou a gozar. Deslizei o dedo para fora,
voltei a segurar sua cintura com força, perseguindo meu próprio orgasmo, que
veio potente.
Segurei Eveline para ela não cair no tatame, invertendo as posições,
colocando-a deitada sobre mim.
— O tatame está sujo, deita aqui.
Ela não respondeu, mergulhando a cabeça no meu pescoço.
Respirávamos com dificuldade. Alisei as costas, beijei sua testa e fechei os
olhos, exausto demais para fazer qualquer movimento.
— Foi a melhor foda da minha vida. Obrigado por me apresentar às
maravilhas de uma boceta sem camisinha.
Eveline riu próximo ao meu ouvido, o som de felicidade penetrando o
torpor causado pela transa mais intensa que experimentei. Dei-me conta de que
fazê-la rir era tão bom quanto fazê-la gozar. Em meio a diversão, ela levantou o
rosto para me olhar. Depois, aproximou a boca, depositando beijos no meu rosto,
testa, nariz, até chegar na boca.
— Também estou completamente apaixonada por você. E muito
apaixonada pela pessoa que me transformo quando estou ao seu lado.
Meu peito inchou de orgulho e contentamento. Enquanto pressionava o
rosto dela em meu peito, abraçando-a, cheguei à conclusão de que, se morresse
agora, morreria feliz.
CAPÍTULO 30
Nuvem em Dias Nublados

Eu ainda estava com o coração acelerado e as pernas bambas quando


entrei em casa com Luke atrás de mim. Não foi a nossa chegada, no entanto, que
despertou a atenção de Romeo, até então distraído, simulando uma luta entre
dois super-heróis em miniatura. Foi um latido de Lola que fez o menino perder
todo o interesse pelos brinquedos e correr em nossa direção, os olhos fixos e
alegres na diminuta cadela acomodada no colo do dono.
— Lola! Lola! Lola! — gritou e pulou, estendendo os braços para que
Luke a entregasse.
Ele a abraçou forte, recebendo lambidas animadas e saudosas por todo o
rosto. Eu não saberia dizer quem estava mais feliz com o reencontro. Feliz por
ver o rosto do meu filho cheio de alegria outra vez, avistei Mônica organizando
os livros e cadernos espalhados sobre a mesa. A garota tinha quinze anos,
morava no final da rua e ficava de babá para várias famílias do bairro,
principalmente aos finais de semana. Segundo dona Gloria, era uma menina
responsável, estudiosa e usava o dinheiro para ajudar a mãe desempregada.
— Ele deu trabalho? — perguntei, percebendo que ela olhava para Luke
como se estivesse hipnotizada.
— Hein? Ah… Imagina, dona Eveline. Romeo é muito bonzinho. É uma
das crianças mais tranquilas que cuidei até hoje. — Apesar de, em tese, estar
falando comigo, os olhos escuros pareciam incapazes de se afastar da figura
masculina parada na minha sala.
Era o efeito arrasador que Lucas Hayes provocava. Rindo, tirei o
dinheiro da carteira e entreguei a ela.
— Obrigada. — Pigarreei para chamar sua atenção.
— Eu quem agradeço. — Sem graça por ter sido pega no flagra,
pendurou a mochila no ombro e se preparou para sair. — Quando a senhora
precisar de mim novamente, é só ligar para o meu celular. Tchau, Romeo. Até
logo, pessoal.
Luke sorriu, acenando com a cabeça em sua direção. A menina saiu
corada, tentando esconder o risinho frouxo. Quando fechou a porta da frente, eu
ri alto. O mais novo ídolo teen de Mônica me olhou sem entender nada.
— O que foi?
— Você acabou de ganhar uma fã.
— O quê?
— Os olhos da coitada quase saíram de órbita quando você apareceu.
Saiu feliz da vida por ter ganhado um sorriso do bonitão.
— Está falando da criança que acabou de sair daqui?
— Criança? — Ergui a sobrancelha. — Por favor, Luke. Ela tem quinze
anos.
Ele veio para perto de mim, abrindo um sorriso presunçoso no rosto
bonito.
— Não tenho culpa de ter nascido tão gostoso.
— E humilde também — rebati com ironia, mas a cena toda era
engraçada.
— E quanto a você? — Abraçou-me pela cintura. — Também é minha
fã? Eu acho que é a presidente do fã-clube.
— Eu não! — neguei enfaticamente, mesmo que estivesse rindo. — Nem
te acho isso tudo.
— Ah, sim? — Encostou os lábios no meu ouvido para sussurrar: — Sua
boca gulosa mamando o meu pau e engolindo minha porra me contaram uma
história bem diferente.
Arrepiei-me inteira.
— Pare de ser safado! — Dei um tapa no braço forte, afastando-me em
seguida, antes que a conversa se tornasse altamente inapropriada. Romeo e Lola
permaneciam no mesmo cômodo.
— Você vai tomar banho agora? — perguntou, afastando a camisa do
corpo. — Preciso tirar o suor.
— Pode ir primeiro. Vou preparar o jantar enquanto espero.
Luke sumiu no quarto e eu fui até a cozinha à procura de ingredientes
para preparar uma refeição simples, rápida e saborosa. Optei pelo macarrão com
molho branco e, enquanto a massa cozinhava, coloquei alguns pedaços de filé de
frango já temperados para assar e fiz uma salada colorida. Já arrumava a mesa de
dois lugares quando Luke retornou, o cabelo molhado, moletom folgado e
parecendo bem à vontade no bate-papo com Romeo. Dei uma boa olhada nele,
impressionada em como as tatuagens ficavam tão lindas e sensuais no corpo em
forma. Era ainda melhor quando estava sem roupa.
Fui tomar o meu próprio banho, dando-me ao luxo de lavar e hidratar os
cabelos com calma, uma vez que Romeo tinha companhia. A tinta havia
ressecado bastante os fios e dava o maior trabalho mantê-los uniformes. Sentia
saudade do castanho brilhante e comprimento antigo.
Jantamos pouco depois, a casa estranhamente barulhenta devido aos
latidos e conversas infantis animadas. Luke elogiou bastante a comida, repetiu
três vezes e pediu sobremesa. Para seu azar, tudo que tinha era uma barrinha de
chocolate.
— Eu lavo — anunciou, assim que comecei a retirar os pratos.
— Não precisa.
— Faço questão — insistiu. — Você cozinhou sozinha, nada mais justo
do que eu lavar a louça.
De mãos atadas, assenti, vivenciando aquele tipo de camaradagem pela
primeira vez. Bryan nunca havia se oferecido para ajudar em absolutamente nada
na casa. Ele agia como se fosse obrigação minha dar conta de todo o trabalho
doméstico, inclusive os que ele mesmo poderia fazer, como lavar as próprias
cuecas.
Deixei Luke organizando a cozinha e fui colocar Romeo para dormir. A
princípio não quis ir, bastante eufórico com a presença de Lola, mas se acalmou
quando informei que a cadela poderia dormir na cama com ele. Duas histórias
depois e ele já tinha apagado. Ajeitei o edredom, ajustei o aquecedor e saí do
quarto sem fazer barulho.
Luke me esperava na cama, todo esparramado, um braço atrás da cabeça
e os dedos da outra mão tamborilando na barriga plana. Semicerrou os olhos ao
me ver, analisando-me dos pés à cabeça. Pegando-me de surpresa, puxou-me
para cima do seu corpo, arrancando um gritinho fino. Inverteu a posição,
prensando-me na cama e, entre beijos intensos, mãos habilidosas e palavras
sussurradas, fizemos amor de forma mais lenta, aproveitando o encaixe perfeito.
O orgasmo foi crescendo aos poucos e me abalou tanto quanto os anteriores.
Três em um único dia. Eu poderia me acostumar fácil àquilo.
Apoiei o rosto no peitoral definido, um braço atravessado em seu
abdômen, uma perna sobre a sua, enquanto Luke alisava meu braço com as
pontas dos dedos em uma carícia suave. Eu já estava quase dormindo quando
falou:
— Amanhã vou almoçar na minha mãe e depois levar Laura no
aeroporto. Venha comigo.
— Não ser vai estranho? Aparecer sem convite para o almoço de vocês?
— Acredito que a minha fala anterior se enquadra como um.
— Sua família vai estranhar se chegarmos juntos.
— E qual o problema de nos verem juntos?
— Para mim, nenhum. — Suspirei, levantei a cabeça e apoiei o queixo
em seu ombro, olhando o rosto bonito. — Como combinamos de não deixar
mais nada pela metade, serei sincera. Mesmo depois do que aconteceu, da nossa
conversa e do que dissemos um para o outro, ainda me sinto um tanto… perdida.
O que nós dois estamos fazendo? Ficando? Namorando? Em um relacionamento
aberto? Não sei como agir, o que esperar.
— Você quer um relacionamento aberto? — Luke questionou, o corpo
levemente rígido. — Eu não gosto de dividir nada. Principalmente você.
— Eu não quero! — Apressei-me em dizer. — Nem sei como funciona
um. Só perguntei para garantir que estamos na mesma página. Tenho um filho de
três anos que se apega fácil a tudo. Ele teve febre no dia que voltamos para casa
e ficou sem Lola. Você tem frequentado a minha casa, estado bastante na vida de
Romeo, feito parte da rotina dele e, mais cedo ou mais tarde, ele vai criar um
laço afetivo com você também. Se nós dois quisermos coisas diferentes, é
melhor esclarecer agora, porque seria insuportável vê-lo triste e perdido por
conta de uma separação inesperada.
Luke me apertou, puxando-me para dar um rápido beijo na boca. Em
seguida, a voz rouca murmurou:
— Estamos em um relacionamento sério e exclusivo, Eveline Perry.
Abri um sorriso involuntário de felicidade.
— Ok, Lucas Hayes.
— Devo alertá-la que não tenho experiência no ramo, então vai precisar
ser paciente comigo.
— Vamos aprender juntos e vai dar tudo certo — garanti, voltando a
apoiar a cabeça no peito dele, ouvindo as batidas ritmadas do coração.
Meu corpo estava saciado, a alma leve, o coração cheio de amor. O
sorriso idiota era incapaz de desaparecer do meu rosto. Apaixonar-se de verdade
e ser correspondida era uma das melhores sensações que já experimentei.
Ouvi a respiração regular e profunda, que indicava que Luke havia
dormido, e aproximei o nariz do pescoço dele, inspirando o cheiro de sabonete,
de perfume e de homem.
E deixei o sono me levar.

Lucy arregalou os grandes olhos verdes quando abriu a porta e percebeu


a mão de Luke segurando a minha.
— Meu casal! Esse momento é meu!
Ela me puxou para um abraço. Tomei cuidado para não a apertar demais
e machucar as costelas ou o pulso quebrado.
— As minhas dicas funcionaram! — O que era para ser um sussurro
certamente tinha sido ouvido por todo o bairro.
— Que dicas? — Luke perguntou desconfiado.
— Coisas de mulher. Ensinei a Eve uns truques de maquiagem para
valorizar os traços dela.
Parecendo perder o interesse na conversa, ele sumiu na cozinha. Lucy
piscou para mim com o olho bom. Rebecca e Laura apareceram em seguida e
sorriram ao nos ver. Lola intercalou pulos nas pernas das duas e só sossegou
quando ganhou afagos na orelha e barriga. Depois foi a vez de Romeo abraçar a
vovó.
— Que surpresa maravilhosa! Se soubesse que viriam, teria comprado
aquele sorvete de chocolate que Romeo adora.
— Imagina, Rebecca. Não tem problema nenhum — assegurei.
— Se ela já mimava o menino, imagina agora que é oficial. — A fala de
Lucy provocou um breve silêncio no ambiente.
— Como assim? — indagou Rebecca, levando uma mão ao peito.
— Finalmente ela e Luke resolveram admitir aquilo que qualquer um
enxergava e assumiram que estão se pegando.
Luke voltou para sala naquele instante e direcionou um olhar enviesado à
irmã.
— Fico feliz de perceber sua rápida recuperação, pestinha.
— Minha língua não foi machucada, meu amor. Está funcionando
perfeitamente — retrucou, empinando o rosto.
— Está acontecendo, Laura? — Rebecca segurou na mão da filha do
meio, apertando-a. — Terei mais netos em breve?
— Mãe… — Luke repreendeu.
— Deus ouviu as minhas preces! — Ela levantou os braços para cima em
um gesto dramático. — Finalmente esse menino tomou juízo e fez o que deveria
ter feito há tempos!
— Vocês duas me devem cem dólares cada — Laura anunciou,
novamente cessando momentaneamente a conversa.
— Pago feliz!
— Então aproveita e quita a minha parte também, mãe — Lucy pediu.
— Do que vocês estão falando? — questionei, confusa com o rumo da
conversa.
— Eu já desconfio — Luke resmungou, cruzando os braços. — E não
posso acreditar que a minha própria mãe faria algo assim.
— O que foi, Lucas Hayes? Se você está achando que eu e minhas filhas
esperamos vocês dois irem embora no Natal para fazermos uma aposta sobre
quanto tempo demoraria até assumirem a forte atração, está absolutamente
correto.
— E eu, é claro, ganhei — Laura se gabou.
Fiquei horrorizada. Elas fizeram mesmo uma… aposta? Estávamos sendo
tão óbvios?
— Porra, Eveline, você poderia ter esperado um pouco mais. Tipo um
mês. E os duzentos seriam meus.
— Pare de falar bobagem, Lucy! — Rebecca repreendeu. — Eu dei três
meses e estou felicíssima com a derrota. — Rindo, veio até a mim com os braços
abertos. — Seja bem-vinda à família, querida! Eu estava ansiosa por isso.
— Obrigada. — Foi tudo que respondi, bastante surpresa.
— Felicidades, Eveline — desejou Laura, abraçando-me depois da mãe.
— Tem certeza de que quer fazer parte dessa família cheia de malucos? —
sussurrou em meu ouvido, fazendo uma careta hilária ao se afastar.
Você não faz ideia do quanto.
— Espero que já estejam pensando em encomendar meu próximo neto.
Quero acompanhar a gravidez e bordar as roupinhas. Ai, vai ser tão lindo!
— A senhora vai assustar Eveline, mãe. — Luke colocou-se ao meu lado,
a mão repousando nas minhas costas.
— Até parece. — Descartou aquele argumento com um aceno
despreocupado de mão. — Ela é uma moça esperta. Meu bebê é um homem de
ouro! — Apertou as bochechas dele.
— Porra, mãe! — Luke reclamou sem graça, enquanto as irmãs
explodiam em gargalhadas escandalosas. — Esse almoço sai ou não? — inquiriu
mal-humorado, obviamente desejando deixar de ser o assunto.
— Estou tão feliz que nem vou comentar sobre seu vocabulário
desnecessário.
Mordi o lábio para não rir. Era engraçado ver como Luke se comportava
diferente na presença da família.
O almoço transcorreu sem maiores constrangimentos. Vez ou outra
pegava Rebecca me observando do outro lado da mesa com um largo sorriso no
rosto. Eu quase podia enxergar vários bebezinhos passando pela cabeça
esperançosa da mulher. Engoli em seco, sentindo o estômago embrulhar com a
possibilidade. Desde que havia engravidado acidentalmente, fiquei neurótica e
não esquecia de tomar a pílula um dia sequer. Nunca. De qualquer forma,
nenhum método contraceptivo era cem por cento confiável e eu conversaria com
Luke sobre voltarmos a usar camisinha.
Conforme a hora do voo de Laura se aproximava, o clima alegre e
descontraído desapareceu. Rebecca já esboçava lágrimas e até mesmo Lucy
murchou um pouco, parando as piadinhas que estava fazendo sobre o preço das
fraldas e do leite.
Seguimos em dois carros, Romeu, Luke e eu no dele e Laura, Lucy e
Rebecca no da matriarca. Deixamos Lola na casa da avó humana e passaríamos
para buscá-la na volta. O aeroporto Midway ficava a trinta e três quilômetros, em
Chicago, e a curta viagem até lá foi tranquila. A voz maravilhosa de Bruno Mars
nos acompanhou o caminho inteiro.
Rebecca começou a chorar quando anunciaram o voo da filha. Algumas
pessoas que passavam ao nosso lado diminuíam o ritmo da caminhada para se
certificar que estava tudo bem enquanto Laura tentava acalmá-la.
Depois de esperar a família se despedir dela, aproximei-me.
— Foi um prazer conhecê-la — falei assim que nos afastamos do abraço.
— Espero que da próxima vez a gente possa sair, conversar ou fazer qualquer
coisa que você goste.
— O prazer foi meu, Eve. — Apertou minhas mãos. — Com certeza
haverá outras oportunidades. Talvez você e Luke possam ir me visitar na
Alemanha qualquer dia desses. É um país fascinante, tenho certeza que
gostariam de lá.
— Eu adoraria — respondi com sinceridade.
Cheguei à conclusão de que odiava despedidas.
O silêncio no automóvel era absoluto na volta. Luke estava sério,
segurando o volante com força, a expressão fechada. Sabia que ele estava,
também, preocupado com a irmã viajando sozinha, já que o namorado precisou
retornar para a Alemanha mais cedo por conta do trabalho. Alisei sua perna,
dando um leve apertão no joelho para ele saber que era normal ficar triste.
— Hoje foi um dia… Diferente — comentou, quase chegando à rua da
minha casa.
— Foi mesmo. Aconteceu de tudo. — Sorri.
— Quero me desculpar pela indiscrição da minha mãe. Ela não faz
segredo para ninguém sobre o desejo de ter netos, mas jamais imaginei que
surtaria daquele jeito.
Era a minha deixa para falar sobre a camisinha. Olhei para trás, vendo
que Romeo cochilava na cadeirinha, embalado pelo movimento do carro.
— Não precisa pedir desculpa, não me chateei com nada que ela disse.
Mas, por outro lado, fiquei assustada com a possibilidade. Acho que devemos
voltar a usar camisinha. A academia foi uma exceção, não tínhamos nenhuma à
disposição, mas ontem a noite não usamos novamente e foi imprudente.
Luke me encarou horrorizado.
— Você tem uma pedra no lugar do coração, Eveline? É cruel mostrar o
paraíso a uma pessoa apenas para tirá-lo algumas horas depois.
Foi impossível conter a gargalhada. Aparentemente o drama era
intrínseco à família Buttler.
— E ainda ri do meu sofrimento.
— Estou falando sério! — Limpei as lágrimas provocadas pelo riso.
— Foi uma delícia sentir você sem nada, pele contra a pele. Mas essa
decisão é sua. Se acha melhor assim, voltaremos a usar.
Mordi o lábio, indecisa.
— É melhor prevenir, sabe? Se um método falhar, há o outro para
garantir que nenhum acidente aconteça.
Luke manteve a atenção na estrada e, quando estacionou em frente ao
casarão que dona Gloria transformara em vários pequenos apartamentos, ele se
virou para mim.
— Eu sei os riscos que corro ao transar sem camisinha, Eveline. A partir
do momento que os ignoro e sigo em frente, estou preparado para assumir as
possíveis consequências. Mas sei que a mulher é a maior afetada, por isso estou
deixando a decisão em suas mãos e vou respeitá-la, seja qual for.
Às vezes eu duvidava que Lucas Hayes era real. O homem parecia saber
dizer as coisas certas em momentos importantes. Para mim também tinha sido
extraordinário senti-lo sem a barreira da camisinha, mas a minha vida ainda
estava repleta de incertezas. A ameaça de Bryan pairava na minha cabeça como
uma nuvem em dias nublados. Assumir o risco de gerar outro bebê enquanto
aquele assunto não fosse resolvido seria irresponsabilidade minha. Eu tinha
vários defeitos e não sentia orgulho de inúmeras decisões equivocadas, mas me
orgulhava de ser uma boa mãe.
— Obrigada por entender.
— Não há o que agradecer, linda. — Inclinando-se para frente, depositou
um beijo em minha testa.
Luke me ajudou a transportar tudo para dentro de casa e, depois de
colocar Romeo na cama, avisou:
— Preciso ir. Meu turno começa em vinte minutos.
— Tudo bem.
— Prometa que vai tomar cuidado, ligar o alarme e ficar atenta a
qualquer movimentação estranha. — Segurou meu rosto, olhando-me com
intensidade.
— Você está me deixando assustada — confessei.
— Só quero que se cuide.
— Eu vou me cuidar, não fique tão preocupado. — Juntei as mãos no
peito dele, desamassando a gola do casaco.
Luke me deu um beijo longo e demorado de despedida e o acompanhei
até a porta. Ativei o alarme e sentei no sofá ao lado de Lola, alisando as
orelhinhas peludas levantadas. Nós havíamos decidido que seria melhor para ela
ficar aqui em casa. Ele estava trabalhando demais e a cadela passava muito
tempo sozinha. Comigo ela ficaria só apenas durante manhã, quando eu estivesse
na LTM e Romeo na creche.
Coloquei um filme para passar na Netflix e deitei, aproveitando o silêncio
para descansar um pouco. Não consegui prestar atenção, no entanto, porque
havia outro silêncio que me causava verdadeiro pavor.
O silêncio de Bryan.
CAPÍTULO 31
Perfeitas Imperfeições


O prelúdio para que não saíssemos aquela noite ocorreu quando torci o
pé descendo as escadas de casa. Soltei um palavrão, mordendo a boca por conta
da dor aguda. Luke sustentou o maior peso do meu corpo e perguntou se estava
tudo bem. Como não queria estragar nosso jantar, respondi que sim e caminhei
mancando até a picape.
Eu havia passado a tarde inteira em um SPA, recebendo um tratamento
de rainha. Fiz sauna, as unhas dos pés e das mãos, hidratação no cabelo, recebi
uma massagem relaxante e experimentei, pela primeira e última vez, uma
depilação à brasileira. Luke ficava maluco quando eu me depilava, de modo que
me empolguei com a possibilidade de surpreendê-lo. A técnica era conhecida
mundialmente e muito procurada, por isso a escolhi sem pensar duas vezes.
Maldita ignorância!
Mas quando a mulher passou uma camada da cera quente nos meus pelos
pubianos e deu o primeiro puxão, pensei que fosse morrer. Quase gritei
histericamente. Respirei fundo, com a vã esperança de que somente a primeira
vez seria tão dolorosa. A segunda se mostrou igualmente torturante. Em
determinado momento, pensei que minha vagina fora arrancada. Por puro
orgulho e com lágrimas nos olhos, aguentei até o final, mordendo tanto o lábio
que arranquei sangue.
Então, a torturadora que se autointitulava esteticista pediu que eu ficasse
de bruços. Entrei em pânico quando minha bunda foi aberta e o creme pegajoso
espalhado pela região. Passei os minutos seguintes xingando o maldito que
inventara aquela porcaria, xingando Lucas por gostar de boceta depilada e me
xingando por haver me submetido ao tormento de forma espontânea.
Foi a primeira vez que gastei dinheiro com algo que queria, mas não
precisava. Era bom se presentear de vez em quando, se permitir realizar
pequenos desejos, mesmo que aos olhos de outras pessoas eles parecessem
idiotas. Fiz principalmente por mim, mas também queria estar linda para o
primeiro jantar fora como casal.
Luke me convidara na quarta-feira, depois de fazermos amor. Ele
comentara que se dera conta que nunca saíamos e precisávamos mudar aquilo.
Deixei Romeo e Lola com Rebecca, que se mostrou entusiasmada com a
possibilidade daquela noite lhe render um neto. Se a mulher usasse a fé para
pedir um bebê, o filho dela precisaria colocar três preservativos para garantir que
a prece não seria atendida.
O segundo sinal de mau agouro fora a forte chuva que nos pegou no meio
do caminho. Foi estranho porque o céu estava limpo, embora fizesse muito frio,
e subitamente a água começou a cair de forma torrencial, dificultando a
condução do veículo. Luke murmurara um palavrão enquanto ligava o limpador
do para-brisa. Meu tornozelo ainda latejava um pouco, mas fiquei calada.
O terceiro aviso fora o barulho seco; o carro pendera para um lado e
Luke descarregara outra série de palavrões, jogando o veículo para o
acostamento.
E aqui estávamos, no meio de uma tempestade, no acostamento de uma
estrada deserta, com o pneu do carro furado.
— Vou descer para trocar — avisou, abrindo a porta do automóvel.
— Nessa chuva? Não é melhor esperarmos aqui dentro até diminuir?
— Não é uma boa ideia ficar aqui. O clima está dificultando a
visualização da pista e, mesmo no acostamento, algum desatento pode não nos
enxergar e bater.
Travei o maxilar, tensa e amedrontada. Outro acidente automobilístico
seria demais para a minha mente superar.
— Tome cuidado. — Passei a mão no cabelo curto, antes que ele saísse.
— Fique tranquila, vai ser rápido. — Deu-me um selinho, pegou uma
lanterna do compartimento em frente ao meu banco e sumiu no breu da noite.
Quando a porta foi ligeiramente aberta, o vento gélido e uns respingos da
chuva abaixaram a temperatura do interior do carro. Abracei meu próprio corpo,
sentindo frio mesmo com o aquecedor ligado. Estiquei o pescoço para trás,
tentando vê-lo, mas os vidros embaçados não permitiram. Alguns minutos
depois, percebi luzes vermelhas e azuis piscando à frente.
Graças a Deus!
A polícia certamente ajudaria Luke a trocar o maldito pneu e as luzes
fortes alertariam os outros motoristas sobre a nossa presença, evitando qualquer
batida. Sentia o pé inchado dentro da bota e só queria ir para casa, colocar uma
bolsa de gelo no tornozelo, tomar uma enorme xícara de chocolate quente e
dormir com o corpo de Luke abraçando o meu.
A viatura se aproximou e foi parando até emparelhar com a picape.
Depois ouvi vozes, mas o barulho da chuva não me permitia compreendê-las
perfeitamente. Desci o vidro alguns centímetros para escutar melhor.
— … Não é incômodo algum. Meu parceiro e eu fazemos questão de
ajudar — uma voz feminina e rouca falou.
— Está escorregadio demais, não consigo firmar a mão para girar essa
porra — Luke respondeu.
Portas foram abertas, fechadas e então eu ouvi a seguinte frase sair da
boca do meu namorado:
— Valeu, Michelle. Você sempre chega na hora certa.
Michelle?
Michelle?!
Aquela Michelle?
E eu, ingênua, achando que a noite não podia piorar.
Mesmo sem ter noção de como trocar um pneu, levei a mão até a trava e
abri a porta, sem me importar com o vento congelante, nem as gotas geladas da
chuva.
Finalmente eu conheceria a detetive gostosa.
Até meus ossos congelaram ao deixar o abrigo protegido e quentinho do
carro. Os pingos da chuva chegavam a incomodar quando batiam na pele. Meu
queixo começou a tremer e segurei um gemido pela dor chata que percorreu meu
tornozelo ao apoiar o peso nele. Luke, ouvindo a movimentação, parou o que
fazia e levantou. Seus olhos se estreitaram e me encarou irritado.
— O que está fazendo aqui fora?
— Quis saber como está indo — menti, apertando os dentes para proibi-
los de trincarem. Que frio!
— Volta para o carro. Vai acabar ficando doente — disse, aumentando a
voz para ser ouvido por cima dos ruídos ao nosso redor.
Ignorando o comando, aproximei-me dos três. A mulher próxima à
viatura tinha um guarda-chuva sobre a cabeça e me olhava fixamente. Seu
colega ajudava Luke a trocar o pneu furado. A primeira coisa que notei sobre ela
foi a indiscutível beleza. Mesmo no escuro, vi o cabelo preto, longo e volumoso.
Vestia roupas de trabalho essencialmente masculinas, mas que de uma maneira
estranha, caíam muito bem nela.
A filha da mãe parecia a Penélope Cruz! Não era justo!
— Eveline. — A voz de Luke penetrou o meu nevoeiro de pensamentos.
— Vou pedir mais uma vez, volta para o carro.
Estava prestes a concordar e me isolar no conforto do veículo para
remoer a insegurança que ameaçava tomar conta quando ela se aproximou
rapidamente.
— Aqui. Cabemos nós duas. — Sem esperar consentimento, encaixou-
me embaixo do enorme guarda-chuva junto a ela.
A repentina proximidade me deixou bastante desconfortável, mas não
havia nada que eu pudesse fazer sem que parecesse falta de educação, então dei
um sorriso amarelo e forçado em sua direção. Ela sorriu de volta, parecendo bem
mais confortável com a situação do que eu. Talvez não soubesse da minha
recente relação com Luke.
— Michelle — ela se apresentou, estendendo a mão para me
cumprimentar.
— Eveline. — Retribuí o gesto, achando estranho fazer isso com alguém
que estava com o corpo colado ao meu. Literalmente.
— É um prazer vê-la em melhores condições, Eveline. — Olhou para
baixo. — Notei que está mancando, algum problema com o pé?
Minha cabeça estava rodando, confusa e desestabilizada pelo rumo dos
acontecimentos. Se alguém me dissesse, há uma hora, que eu estaria de pé no
meio de uma estrada deserta, debaixo do maior temporal, conversando
amigavelmente com a mulher que Luke costumava transar antes de me conhecer,
teria gargalhado na cara da pessoa.
Era perturbador a mulher em questão estar sendo tão simpática comigo.
Desci do carro preparada para odiá-la, por mais ridículo que isso soasse, e não
queria que a criatura destruísse os meus planos com sorrisos perfeitos e sessões
de amabilidade. Só podia ser fingimento. Ninguém ficaria tão à vontade na
presença da atual do ex… Ficaria?
Luke repetira enfaticamente que foram apenas transas casuais sem
compromisso. Eu tinha lá minhas dúvidas se aquilo realmente existia. Em minha
opinião, um lado sempre acabava se envolvendo mais que o outro e, no final,
tudo virava uma grande confusão. Quando fui para a cama com ele pela primeira
vez, acreditei que pudesse levar as coisas sem compromisso, mas acabei me
apaixonando em pouquíssimo tempo.
Luke era maravilhoso. Que mulher não se encantaria com ele?
Para afastar a confusão de pensamentos nada saudáveis, concentrei-me
em manter uma conversa aceitável.
— Ah, isso aqui? — Apontei o pé e o movimentei rapidamente para
provar que estava em perfeitas condições, mas precisei fazer um tremendo
esforço para não gritar com a fisgada que senti. — Não foi nada demais, apenas
uma torção besta.
— Quando chegar em casa, coloque gelo para ajudar no inchaço.
— Com certeza farei isso. — Tentei sorrir novamente. — Hã… Não tive
a oportunidade de te agradecer por ter ajudado a nos resgatar. Soube que o seu
apoio foi muito importante.
— Não há de quê. Luke é um amigo querido e de onde eu venho amigos
são para essas coisas.
— Terminamos. — O objeto da nossa conversa se aproximou,
completamente encharcado, livrando-me de continuar aquela conversa esquisita.
— Sem a ajuda do seu parceiro eu teria demorado o dobro do tempo.
— É dever de todo policial prestar auxílio a qualquer cidadão em
necessidade. E tenho certeza que o novato Harris não vai se incomodar com o
uniforme molhado, não é? — Olhou para o homem mais novo que, assim como
eu, fazia esforço para não bater os dentes.
Pobre Harris.
— Não, senhora — ele respondeu de imediato, segurando a lanterna com
as mãos trêmulas.
— Ótimo. Espero que nos encontremos em melhores circunstâncias,
Luke. E novamente, foi um prazer vê-la, Eveline.
— Obrigado, Michelle. Fico te devendo mais uma.
Encontrar em melhores circunstâncias…
— Vamos, linda? — Luke segurou o meu ombro, olhando-me
atentamente.
Concordei, nos despedimos e andamos rapidamente até o automóvel
debaixo da chuva que, apesar de haver amenizado, ainda caía com vigor. O calor
proporcionado pelo aquecedor foi bem-vindo, aliviando a sensação de
congelamento. Luke retirou o casaco molhado, jogando-o no banco traseiro, e
pegou o cobertor que sempre levava para emergências. Depois de esfregá-lo em
mim, retirando o excesso de umidade, usou-o em si mesmo. Os lábios dele
estavam azulados. Eu também tremia muito. Havia sido imprudência minha sair.
Colocou o carro em atividade assim que recuperou os movimentos dos
dedos das mãos. Os primeiros metros foram percorridos em silêncio.
— No que essa cabecinha tanto pensa? — Foi o primeiro a falar.
— Em como tudo deu errado — confessei, optando por uma meia
verdade.
— Essas coisas acontecem.
— Eu sei, mas estava tão animada para essa noite… Nosso primeiro
jantar fora.
— Teremos outros, não fique chateada por isso. — A mão grande, fria e
sem luva apertou minha perna.
Percebi que me direcionava olhares ocasionais, mas forcei meus olhos a
focarem no movimento do limpador de para-brisa.
— Ela é bonita.
Quis retirar as palavras assim que saíram, recriminando-me mentalmente
por expressar aquele pensamento.
— É alguma pegadinha?
— Foi só um comentário, Luke.
— Tudo bem. — Silêncio. — Você quer conversar sobre isso, Eveline?
— Não. Quero. Não sei… Na verdade, nem sei por que eu disse isso em
voz alta, não era um comentário que pretendia externar, principalmente para
você. Só saiu.
— Ok.
Silêncio.
— Só fiquei pensando se aquela comissão de frente é de verdade ou
silicone, porque sinceramente, é meio impressionante. Estava escuro, ela tinha
dois quilos de casaco por cima do corpo e ainda assim consegui vê-los. Parecem
dois melões. Aliás, não responda. — Eu não tinha mais controle sobre minha
boca.
Silêncio.
Luke ligou a seta e parou o carro no acostamento. Tomando cuidado com
meu pé torcido, puxou-me de forma que fiquei sentada de frente para ele, as
costas batendo no volante, um joelho em cada lado do seu quadril. Enfiando a
mão nos meus cabelos, ele me fez olhá-lo.
— Eu não costumo falar as coisas da boca para fora. Cada palavra que
disse a você na academia e na sua casa foi verdade. Michelle e eu tivemos um
rápido envolvimento, ela é uma boa pessoa, passamos momentos agradáveis
juntos, mas não passou disso. Não houve envolvimento sentimental da minha
parte e acredito que nem da dela. Desde que parei de procurá-la, em nenhum
momento tentou entrar em contato comigo ou forçar a barra. Ainda que houvesse
feito, não sou esse tipo de cara. Sou um homem de trinta e três anos, estou longe
de ser virgem e já transei com várias mulheres, gostei de algumas delas. Não
posso apagar o passado, ninguém pode. Mas é com você que estou. É com você
que quero ficar. Confia em mim. Confia em nós dois.
Engoli em seco, sentindo cada palavra atingir o meu coração. Aquele era
Luke, brutalmente honesto e certeiro com as palavras.
— Me desculpa por toda essa insegurança idiota. Estou trabalhando
nisso, tenha só mais um pouquinho de paciência comigo — pedi, a voz trêmula
do choro contido.
— Estamos juntos nessa. Completamente. — Puxou minha cabeça,
encostando as nossas testas.
— Completamente — sussurrei antes de as nossas bocas se encontrarem
em um beijo maravilhoso.
Chegamos em casa pouco depois. Fomos direto para o banheiro e
ficamos por longos minutos embaixo da água quente. Senti alívio imediato
conforme a temperatura do meu corpo alcançava um equilíbrio, o calor levando
embora o frio absurdo e a sensação de congelamento.
Luke nem tentou disfarçar o tesão ao ver o resultado da tortura passada
no SPA. Ele abaixou, apoiou meu pé torcido no ombro e me chupou, arrancando
um orgasmo alucinante em minutos. Depois de estarmos devidamente secos, fez
questão de colocar gelo no tornozelo inchado até diminuir a dor, levou-me para a
cama e me apresentou a várias posições que alguém com o pé torcido poderia
transar sem sentir dor.
Exausta e saciada, antes de pegar no sono pensei que tudo tinha dado
errado naquela noite, mas, de alguma maneira, ela não poderia ter sido mais
perfeita.
CAPÍTULO 32
As Consequências

Quase morri de susto ao encontrar Luke em pé no meio da minha sala.


Eu tinha dado a ele uma cópia da chave de casa, já que ultimamente ficava mais
aqui do que na dele. No entanto, ele geralmente avisava quando estava a
caminho.
— Você me deu o maior susto! — ofeguei, a mão espalmada no peito
enquanto tentava regularizar a respiração.
— Precisamos conversar. — A seriedade na voz dele me pôs em alerta.
— O que houve?
— Eu mandei investigar o seu ex.
A frase foi como um tiro direto no meu coração. Cheguei a sentir falta de
ar.
— O quê? Por quê? — Desconfiando da firmeza das minhas pernas,
sentei no sofá.
— Quando descobrimos sobre o acidente de carro e desaparecimento de
vocês, precisamos expandir as possibilidades. Não dava para eliminar ninguém,
mesmo que a nossa maior suspeita recaísse na gangue que ameaçava George
Thompson. Eu desconfiei que tinha algo errado com seu antigo relacionamento
desde o início. Você nunca mencionou o cara, nem mesmo o nome dele, se
colocava na defensiva quando eu tentava entender o seu passado e o estranho
pedido para receber o salário em espécie não fazia sentido. Por isso, Bryan Allen
se tornou um dos nossos suspeitos.
Fiquei momentaneamente muda, ouvindo a explicação como se estivesse
a quilômetros de distância, vendo tudo como mera espectadora. Notando meu
estado de torpor, ele prosseguiu:
— Deixei o assunto de lado quando Gabriel Carter mandou aquele vídeo
assumindo o sequestro. Então alguns dias depois você confirmou minhas
suspeitas sobre o filho da puta. Passei a noite anterior ao depoimento dirigindo
para encontrar um velho amigo, um dos melhores na área, e pedi pessoalmente
que ele assumisse essa investigação para mim. Estou aguardando notícias, mas
foi o relatório do meu primeiro contato que me preocupou.
Luke também se sentou, apoiou os cotovelos nas coxas e passou as mãos
pelo cabelo, frustrado. Notei as olheiras fundas e a expressão abatida de cansaço.
— Vocês… — Pigarreei, clareando a garganta. — Vocês descobriram
alguma coisa?
— O cara simplesmente desapareceu, ninguém tem notícias dele há
meses. Pediu licença no trabalho, fechou a casa, disse a amigos próximos que
iria fazer uma longa viagem e, depois disso, nada.
— E você acha que não é um bom sinal. — Procurei a confirmação de
algo que já rondava minha cabeça há semanas.
— Tenho certeza que não é. Ninguém para a vida de uma hora para outra
e desaparece sem deixar rastros se não houver um motivo forte o suficiente. Eu
sei que ele está perto, mais perto do que imaginamos.
Aquela frase me matou por dentro. O pavor foi tão grande que eu não
conseguia nem mesmo chorar. Estava paralisada. Luke chegou mais perto,
segurou minha mão, entrelaçando nossos dedos.
— Sempre respeitei seu tempo e espaço. Nunca forcei a barra para que
me contasse os seus segredos. Mas agora a história mudou, Eveline. Você e
Romeo podem estar vulneráveis e eu detesto essa situação. Para montar um
plano de defesa e arquitetar os próximos passos, teremos que trabalhar juntos,
como uma equipe. E para que dê certo, vou precisar saber de todos os detalhes.
Então, minha linda, vou fazer o que nunca fiz e pedir para confiar em mim e me
contar absolutamente tudo que você fez. Nada do que me confidenciar aqui será
usado contra você.
Eu seguia sentindo-me morta por dentro, transportada para outra
dimensão. A quentura da mão de Luke na minha era o único fato que me
conectava à realidade, me mantinha parcialmente consciente. Uma âncora.
O rosto de Romeo apareceu na minha mente, proporcionando a força que
faltava para retornar ao presente. Meu filho tirava seu habitual cochilo da tarde,
descansando inocentemente em sua cama, sem ter a mínima ideia do que
acontecia ao seu redor. A mera possibilidade de ele cair nas mãos monstruosas
de Bryan outra vez afastou todos os receios de contar o pedaço da história que
faltava para Luke.
Limpei os olhos e respirei fundo.
Uma.
Duas.
Três vezes.
E comecei a falar.
— Acomodem-se — a voz com um acentuado sotaque sulista orientou.
Luke afastou a cadeira para mim e, quando me sentei com um Romeo
adormecido no colo, sentou-se ao meu lado. Kalel Parker aparentava estar na
casa dos cinquenta. O cabelo bastante calvo e a barriga avantajada tornavam a
sua aparência mais simpática, mas os olhos experientes e perspicazes
corroboravam a fama de um dos melhores advogados da região.
Depois que eu despejara cada detalhe sórdido da fuga e sobre os atos
ilícitos que cometi ao longo do caminho, Luke ficara calado, olhando para o
nada como se houvesse perdido a voz. Quando o pânico já ameaçava me sufocar
pela falta de reação dele, o homem parecera sair do transe e pedira para que eu
trocasse de roupa, pois veríamos um advogado imediatamente. Eu não sabia
como ele havia conseguido marcar uma consulta com um profissional que
possuía a agenda tão concorrida, mas não planejava questionar.
Pouco antes de entrarmos no carro, Luke tinha sugerido que deixássemos
Romeo na casa de Rebecca, hipótese que refutei sem pensar duas vezes. No
estado emocional que me encontrava, não havia a menor chance de me separar
dele. O caminho até o bonito e moderno prédio onde ficava o escritório do
advogado foi feito em completo e tenso silêncio.
— Kalel, agradeço mais uma vez por aceitar nos receber sem hora
marcada. Sei que a sua agenda é sempre lotada — disse Luke.
— Eu não esqueço de quem já fez muito por mim — o outro respondeu e
os dois homens trocaram um olhar significativo.
— Queremos saber com o que estamos lidando aqui. Sem rodeios.
— Tentarei ser objetivo e me fazer entender de forma clara. Desde que
conversamos ao telefone, mandei fazer uma rápida pesquisa e realmente não foi
emitido nenhum Amber Alert, nem uma denúncia contra a senhorita Perry.
Infelizmente, as boas notícias acabam por aí. A senhorita cometeu uma série de
erros que podem comprometer significativamente a sua situação. O menor foi
retirado de maneira abrupta e sem o consentimento de um dos genitores do seu
lar habitual, transportado em face de documento falso para local distante do de
origem e, desde então, mantido sem nenhum contato com o pai. Até aqui, a
senhorita Perry pode ser acusada de falsidade ideológica, subtração e alienação
parental.
— Fiz isso apenas para proteger o meu filho. Na hora não pensei em
nada mais do que afastá-lo da violência daquele crápula.
O homem me olhou e suavizou a expressão.
— Eu não estou a julgando, mas é o meu dever apontar os fatos da forma
como serão apresentados ao tribunal. Para todos os efeitos, Bryan Allen é um
homem com emprego e residência fixa, sem antecedentes criminais e tem
salvaguardados os seus direitos de pai, independentemente da situação com a
mãe da criança. Lucas me disse que você e Allen não são casados oficialmente,
contudo, isso não muda o fato de que tem tantos direitos sobre a criança quanto a
senhorita.
No fundo eu sabia que a minha condição não era nada boa, mas ouvir a
confirmação de um profissional tornou tudo pior. Fiz o que fiz tão somente para
poupá-lo de mais trauma e sofrimento, para tentar proporcionar a ele uma vida
digna e saudável em um ambiente onde só houvesse amor. Apertei o corpo do
meu filho, um medo atemorizante me corroendo inteira por dentro.
— O que você nos aconselha a fazer? — indagou Luke.
— O ideal seria entrar em contato com Allen, informar a localização do
menor e sugerir uma conversa informal amigável.
Minha cabeça já balançava de um lado a outro em negação antes de Kalel
Parker terminar a frase. Eu sabia que Bryan não estava interessado em acordo
algum. Certamente tinha motivos para não ter feito uma denúncia e eles não
podiam ser bons. Nunca eram.
— De jeito nenhum! Ele vai destruir a minha vida! — bradei
amedrontada, as lágrimas escorrendo pelo rosto.
— Acalme-se, Eveline. — Luke aproximou a cadeira da minha e passou
o braço pelas minhas costas, acariciando-me lentamente.
— Eu posso imaginar como isso parece traumático para a senhorita —
prosseguiu o advogado. — Mas devo alertá-la que alienação parental, nos
últimos anos, tem sido um dos principais motivos da perda de guarda.
— O senhor está dizendo que posso perder a guarda do meu filho? —
sussurrei.
— Sim, senhorita Perry, é precisamente isso que estou dizendo, se
querem a minha mais absoluta honestidade. Se o seu ex-companheiro tiver
provas das suas ações, inclusive provas testemunhais sobre o abandono de lar e
fuga, há uma grande possibilidade de que o juiz lhe conceda a guarda provisória
da criança ou, no mínimo, a guarda compartilhada.
— Meu Deus, Luke! Isso não é justo! — Meu corpo tremia sem controle
e Romeo se remexeu, despertando com o barulho.
— Shh, fique tranquila. — Ele beijou meu cabelo, mantendo-me perto de
si. — Kalel, não há nada que possamos fazer sobre as agressões? Sobre os anos
que Eveline sofreu abusos físicos e psicológicos nas mãos daquele canalha?
— Alguém testemunhou? — Os olhos azuis, atrás das lentes dos óculos
de grau, se voltaram para mim. Neguei com a cabeça. — Alguém tomou
conhecimento do acontecido?
— A minha melhor amiga, Miranda. Ela sabia de tudo. Chegou a ver
alguns hematomas.
— Uma denúncia a essa altura, tendo como principal testemunha a sua
melhor amiga pode, facilmente, ser desacreditada e rebatida como uma tentativa
de defesa em face das futuras possíveis acusações. Vocês conseguem
compreender? Não estou dizendo que não deva fazê-la, ao contrário, acredito
que toda agressão precisa ser denunciada. No entanto, esteja preparada para as
prováveis interpretações e desdobramentos. Por toda a minha experiência
profissional, posso garantir que a melhor alternativa é tentar um acordo fora dos
tribunais. Seria a nossa melhor chance.

Encostei o nariz nos fios sedosos, depositei um beijo demorado na testa


dela e saí da cama com cuidado. Eveline estava abraçada a Romeo, ambos
profundamente adormecidos após um dia complicado do caralho.
Havia demorado para ela parar de chorar e recuperar a compostura. O
menino, vendo a mãe naquele estado, seguiu o exemplo e abriu o berreiro. A
tensão perdurou durante as horas seguintes, pois sabíamos que as chances dela
não eram boas. Fugir com documentos falsos, usá-los para matricular Romeo na
creche e afastá-lo do pai sem ter provas para justificar tais ações colocariam
qualquer juiz a favor do filho da puta, ao menos a princípio. Eu conhecia bem o
judiciário para saber que algumas decisões estavam longe de ser justas.
Pouco importava se o desgraçado usava os punhos para machucá-la, se
tinha tido a coragem de levantar a mão para uma criança de três anos de idade,
se fosse um bêbado, violento e agressor que se achava o proprietário dos dois.
Tudo que importava era a porcaria de um emprego formal, o caralho de uma
residência fixa e uma ficha que só estava limpa pelo medo das vítimas.
O lugar do infeliz era atrás das grades, onde ele provaria das próprias
atitudes covardes. A maioria dos presos não admitia violência contra mulheres e
principalmente contra crianças.
Um acordo, como sugerira Kalel, não aconteceria. Eu tinha consciência
do que Bryan Allen pediria para esquecer as acusações e precisaria me matar
para tirar a minha mulher e Romeo do meu lado.
Tomei banho e fui até a cozinha para comer alguma coisa. No meio da
refeição, Romeo apareceu esfregando os olhos sonolentos.
— Quero água — pediu.
Peguei o copo estampado com um personagem de desenho aninado,
despejei uma pequena quantidade de água natural e entreguei a ele. O garoto
bebeu quase todo o conteúdo e me devolveu. As pequenas pernas caminharam
para a sala; ele arrastou uma grande caixa do Homem Aranha de um canto e
começou a remexer dentro dela, retirando vários brinquedos. Segurou os
carrinhos que eu o havia dado no Natal e os levantou na minha direção, dizendo:
— Brincar de cainho!
— Isso é um convite?
— Sim, Úki.
— Agora?
Ele afirmou com a cabeça.
— Antes vou terminar de comer — avisei.
Finalizei as quatro panquecas e, em seguida, abri os armários atrás de um
doce. Achei as barrinhas de chocolate de Eveline na segunda porta e peguei três.
Ao ouvir o barulho do plástico, Romeo levantou e veio imediatamente para
perto.
— Romeo qué.
— Claro que quer. Quem não gosta de chocolate? — Dividi a barra ao
meio e entreguei metade a ele. — Mas é um segredo. Sua mãe disse que você
não pode comer doce à noite, então não podemos contar a ela, certo?
— Certo — concordou, a boca toda melada de marrom.
Gastamos exaustivos minutos entre simulações de corridas, lutas dos
super-heróis bonecos e na montagem de um quebra cabeça. No final, eu estava
exausto. Estava ficando velho para aquelas coisas. Enquanto ligava a tevê e
colocava em um desenho animado entediante, mas, aparentemente com o poder
de hipnotizar crianças, ajeitei-me no sofá pequeno demais para um homem do
meu tamanho. Em determinado momento, a cabeça de Romeo recostou no meu
braço. Olhei para o lado, observando a expressão concentrada com a qual ele
mirava a tela, confiando na minha presença a ponto de relaxar próximo a mim.
Senti um aperto no peito, uma forte sensação de proteção, um sentimento
profundo que até então era desconhecido. Só de imaginar alguma coisa
acontecendo com o menino ou com a mãe dele, a respiração falhava.
O laço do qual Eveline falara já havia sido criado. De ambas as partes.
Levantei, caminhando de volta à cozinha, e peguei o celular em cima do
balcão. Disquei um número e fui atendido no segundo toque.
— Sou eu. Aprofunde a busca pelo sujeito. Faça o que tiver que ser feito,
vá até o inferno se for preciso, mas quero todos os podres do tal Bryan Allen nas
minhas mãos. Faça isso e considere a sua dívida comigo paga.
CAPÍTULO 33
O Passado

As últimas semanas foram um desafio aos meus nervos em frangalhos.


Ouvir do advogado que havia chances de perder a guarda do meu filho ou ser
obrigada a entregá-lo a Bryan por alguns dias da semana quase me destruiu. Eu
não me considerava uma pessoa orgulhosa ou arrogante, reconhecia os meus
erros e tentava consertá-los sempre que possível. Entretanto, em nenhum
momento senti arrependimento por ter fugido.
O que eu lamentava profundamente era não ter denunciado Bryan pelos
anos de agressões. Se tivesse feito, haveria provas para fortalecer a minha
defesa. Não adiantava, no entanto, perder tempo me lamentando por algo que
não podia ser mudado. O que não tem remédio, remediado está, já dizia o ditado.
Eu conhecia Bryan o suficiente para saber que ele usaria as armas
possíveis para me encurralar até que não restasse alternativa além de ceder às
suas exigências. A arma mais poderosa era Romeo e ele sabia disso. Sabia que
eu faria qualquer coisa para não ficar longe do meu filho. O que Bryan talvez
não soubesse era que agora eu não lutava mais sozinha, graças a Deus havia
pessoas ao meu redor que se importavam comigo.
No dia seguinte àquele que tinha contado todos os pormenores a Luke,
ele me acompanhara até a creche de Romeo e cancelamos a matrícula dele sob a
desculpa de uma iminente mudança de cidade. Quando saímos da sala da
diretora, ele me informara que Jacob Takahashi invadiria o sistema da instituição
para apagar os sinais das identidades falsas e imagens das câmeras de segurança.
Eu nem gostava de imaginar como eles precisavam praticar atos ilegais para me
ajudar. A culpa corroía, mas não era maior que o medo para me fazer recusar.
Enquanto procurávamos por outra creche — usando os documentos
legítimos dessa vez, ele me acompanhou ao trabalho todas as manhãs. Ficou
quietinho na pequena poltrona no canto da minha sala vendo desenhos infantis
no YouTube através do meu smartphone.
Luke praticamente se mudara lá para casa que, graças a ele, Matt e Ty,
possuía um sistema de segurança de ponta. Íamos juntos ao trabalho e ele me
levava para casa quando meu turno acabava. Se não pudesse fazê-lo,
encarregava um dos seus sócios ou funcionários para a tarefa. Eu evitava sair
sozinha, principalmente com Romeo. Quando me aventurava, estava
constantemente olhando sobre o ombro, esperando que Bryan fosse saltar na
minha frente a qualquer instante como um mau agouro.
Miranda, para o meu desânimo, conseguira exatamente as mesmas
informações que Luke, ou seja, quase nada. Bryan desaparecera misteriosamente
e ninguém tinha informações sobre o paradeiro dele. Preocupada, prometeu
continuar investigando.
No início da segunda semana, tivemos uma conversa séria na cama,
depois de fazermos amor. Luke sondara sobre a possibilidade de relevar a
história para a sua família, Ty e Matt, para que todos ficassem atentos. Após
passar a madrugada em claro analisando os prós e contras, eu chegara à
conclusão de que, se eles estavam se colocando em risco por minha causa, nada
mais justo que conhecerem o cenário completo e com quem estávamos lidando.
Então, em uma manhã fria de terça-feira, sentei no sofá de Rebecca e,
com Luke ao meu lado, contei a elas. Rebecca me abraçara com lágrimas nos
olhos enquanto repetia sem parar que sentia muito. Lucy fora mais contida,
segurara a minha mão, entrelaçando os nossos dedos, dizendo sem palavras que
estava comigo. Meu namorado ficara responsável por repassar os detalhes aos
amigos. No final das contas, senti-me imensamente aliviada de não precisar
esconder mais nada das pessoas que estavam se tornando tão especiais para mim.
A verdade me libertou.
Quando a terceira semana se iniciou, decidi continuar a minha vida.
Bryan já havia me privado de muitas coisas, não permitiria que continuasse me
controlando à distância através do medo. Romeo ingressou em uma nova creche,
Lucy — completamente recuperada dos ferimentos físicos — e eu começamos a
fazer aulas de defesa pessoal três vezes por semana e Luke, de alguma maneira,
tinha me convencido a tomar aulas de tiro.
Suei frio e tremi constrangedoramente ao segurar o objeto gelado pela
primeira vez. Demorei para dar o primeiro disparo porque, sempre que estava
prestes a apertar o gatilho conforme o instrutor orientava, imaginava que a bala
mudaria a trajetória e me atingiria em algum órgão vital. As leis da física não
permitiam tal façanha, mas a voz da Madre na minha cabeça repetia que seria
um castigo pelos meus pecados. Em determinado momento, comecei a duvidar
da minha própria sanidade.
Luke me acompanhava de perto, incentivando meu péssimo progresso
com elogios mentirosos. Era mais provável que eu acertasse um avião do que o
alvo a alguns metros de distância. Ele, ao contrário, acertava o centro do círculo
em uma rápida sucessão realmente impressionante. O homem sabia como usar
um revólver. E, para o meu horror, achei-o sexy com os óculos transparentes e
protetores de ouvidos, os braços esticados para frente e o rosto concentrado nos
bonecos que subiam e desciam rapidamente.
De repente, um pensamento terrível me ocorrera. Se eu realmente
precisasse atirar em uma pessoa, conseguiria ir até o final? E se fosse, como me
sentiria depois? Afastei aqueles questionamentos com um balançar de cabeça,
despreparada para analisá-los mais a fundo.
Com as atividades atípicas e fisicamente cansativas, eu estava quase
sempre exausta. Como naquele instante, esparramada na cadeira da lanchonete
da luxuosa academia após uma aula de autodefesa. Só lembrar o valor da
mensalidade me dava uma fisgada no peito — e no bolso.
— Jane pegou pesado hoje — comentei, ofegante.
— Realmente, a mulher parecia estar possuída — Lucy concordou,
limpando o suor da testa com uma toalhinha. — Com certeza brigou com o
marido.
Jane Foster era a nossa instrutora, uma mulher na casa dos quarenta que
vinha de uma família de atletas internacionalmente conhecidos. A criatura mais
parecia um general, bradando ordens a torto e a direito e gritando na nossa cara
para promover motivação. Eu tinha medo dela? Claro. Mas não podia negar que
estava aprendendo bastante em um curto espaço de tempo.
E, para o meu desespero, ela não demonstrava constrangimento algum
em contar sobre a vida íntima com o marido para quem quisesse ouvir — e quem
não quisesse também —, inclusive as brigas e reconciliações calorosas na cama.
A mulher era viciada em sexo e ficava transtornada quando ficava poucos dias
sem praticá-lo. Não que eu fosse a melhor pessoa para julgá-la, pois cada vez
que Luke me tocava ou olhava diferente, eu sentia vontade de transar.
Inclusive, aquele fora o fator decisivo para decidirmos que não era uma
ideia inteligente ele continuar a treinar comigo.
— A gente vai acabar sempre fodendo e você não vai aprender nada,
Eveline — ele dissera com propriedade na segunda vez que quase nos atracamos
na academia.
Lucy tamborilava os dedos na mesa de madeira e olhava para um ponto
distante atrás de mim.
— Por que você está fazendo essa cara esquisita? — perguntei, franzindo
a testa.
— Esquisita? — Pareceu indignada. — Estou flertando com o personal
gostoso.
Virei para trás e observei o musculoso moreno que sorria para ela de
maneira sugestiva.
— Ah, é o tal Denis?
— Derek.
— Hum… E você resolveu se vai finalmente sair com ele?
— Vou. Conversamos algumas vezes e ele é bom de papo, divertido,
inteligente, não ficou falando sobre si mesmo o tempo inteiro. Pareceu ser uma
boa companhia. Trocamos algumas mensagens bem interessantes outro dia…
Engasguei com a água e tossi. Lucy bateu nas minhas costas — mais
forte do que o necessário.
— Vocês fizeram sexo por mensagem de texto? — Antes de questioná-la,
olhei para os dois lados, certificando-me que ninguém ouviria a nossa conversa.
— Não chegou a tanto. Só alguns SMS's mais picantes. — Sorriu.
Olhei novamente para o homem, achando curioso o fato de ela só se
interessar por morenos, o oposto daquele que fora o seu primeiro amor.
— Então Matthew Baker é mesmo página virada?
— Não só virada, como rasgada e queimada, meu amor.
— Sei. — Não acreditei em uma palavra.
Não havia coisa pior do que história mal resolvida. O tal Derek levantou
o celular e apontou para o dela. Lucy leu alguma coisa no próprio aparelho e
abriu um sorriso sedutor.
— Aparentemente a nossa saída acabou de ser antecipada para agora. —
Mexeu dentro da bolsa e estendeu as chaves do carro para mim. — Fique com
meu carro. Pego na sua casa depois.
— Não precisa, posso chamar um UBER.
— Nada disso. Eu prefiro ir de carona com o bonitão ali.
— E se ele for um psicopata assassino? Ou pior, se o encontro for um
desastre e você não puder ir embora porque está sem transporte? — rebati.
— Pelo amor de Deus, criatura! Estamos no século vinte e um, é só clicar
em um aplicativo e milagrosamente um carro aparece para nos buscar em poucos
minutos. — Levantou-se. — Vou tomar uma ducha antes de sairmos. Me deseje
boa foda.
— Credo, não preciso de detalhes. Mas use camisinha.
— Sempre, mamãe. — Despedindo-se com um piscar de olhos,
caminhou rebolando até o moreno bonito.
Antes de descer até o estacionamento, mandei uma mensagem para
Mônica perguntando se estava tudo bem e avisando que estaria em casa em
breve. Ela respondeu que sim, estavam brincando e Romeo tinha acabado de
lanchar. Mais tranquila, informei a Luke que estava com o carro de Lucy e parei
no supermercado próximo de casa para reabastecer a despensa vazia. Enquanto
guardava as sacolas no banco de passageiro, imaginava o que faria para o jantar.
— Finalmente nos reencontramos.
Todo o meu corpo paralisou, o coração bombeou forte, as pernas ficaram
flácidas e a cabeça começou a latejar. Fechei os olhos e balancei o pescoço,
rezando para que fosse alucinação de uma mente amedrontada.
A última sacola deslizou da minha mão, espalhando batatas por todo o
chão do estacionamento. Girei o corpo para ficar frente a frente com o meu pior
pesadelo, parado a pouquíssimos metros, sorrindo para mim.
E ele era exatamente como eu me lembrava.
— Bryan.
CAPÍTULO 34
O Primeiro Embate

— Olá, meu amor. Sentiu saudades?


Apoiei-me no carro como pude para não cair e me juntar às batatas que
ainda rolavam pelo asfalto. Quis gritar e sair correndo sem olhar para trás, mas
minhas pernas não responderam. Eu estava paralisada, congelada, sem controle
algum do meu corpo.
— Não vai dizer nada, Eveline? — ele indagou, provocando um
embrulho em meu estômago. — Depois de tanto esforço para encontrá-la, é
assim que você reage? Como se eu fosse um maldito fantasma?
Era exatamente como eu o enxergava. E teria preferido mil vezes estar de
frente com o próprio diabo do que na companhia do homem com o qual tive o
desprazer de dividir alguns anos da minha vida. Estremeci quando ele ameaçou
caminhar para mais perto.
— Não se aproxime — sussurrei, quase sem reconhecer minha própria
voz, enquanto posicionava o punho da maneira que Luke ensinara na primeira
aula de autodefesa. — Há pessoas ao redor, se você der mais um passo na minha
direção, vou gritar com todas as forças. E alguém vai aparecer antes que consiga
fazer qualquer coisa.
Bryan franziu a testa, a expressão adquirindo tons de irritação. Tive medo
de desmaiar, o coração batia tão forte que eu podia senti-lo em cada órgão.
Inferno, podia inclusive escutá-lo.
— Não estou gostando da sua atitude. Essa não é a forma de falar com o
marido.
— Você não é meu marido.
— Mera burocracia, querida, que pode ser resolvida com facilidade e
rapidez. — Gesticulou a mão, tirando a importância da minha fala. — O que
importa é a vida que construímos juntos. Vida esta que você abandonou sem
mais nem menos, carregando o meu filho junto. Como está o garoto?
Eu precisei fazer um esforço sobre-humano para evitar que meu corpo
denunciasse a ele o quanto realmente estava apavorada. Apertei as mãos,
fincando as unhas nas palmas, machucando-as. Meus dentes doíam pela força
exercida para manter o maxilar travado.
— Não finja que se importa com ele. Ou comigo. Você sabe por que fui
embora, não há necessidade de encenações.
— Achei que estávamos tentando passar por cima de todos aqueles mal-
entendidos para manter a nossa família unida, mas talvez eu tenha errado em
levar a consideração a sua vontade ferrenha de ter a própria família.
O riso que me escapou foi recheado de escárnio, ironia e incredulidade.
— Você chama usar os punhos para distribuir socos de mal-entendidos?
Sério, Bryan?
— Já avisei que o seu tom não me agrada. — Os lábios finos se
retorceram em uma careta depreciativa.
— Eu estou pouco me lixando para o que você gosta ou deixa de gostar!
— rebati antes de pensar melhor sobre as minhas palavras.
Desejei retirá-las imediatamente e pedir desculpas, usando o modus
operandi de anos, mas não o fiz. Ele precisava saber que eu já não era a mesma
mulher que se deixou ser dominada por sua doentia possessividade, embora
ainda houvesse resquícios dela em mim. No fundo, achava que sempre haveria, a
diferença era que eu não a deixaria vencer a guerra novamente. Nem mesmo
uma batalha.
— Sabe o que eu acho, querida? — ele perguntou, o tom de voz amistoso
soando mais falso que nota de três dólares. — Você está nervosa e emocionada
com o nosso reencontro, é natural depois de meses de separação. Mas aconselho
que coloque a cabeça no lugar e pense em tudo que tem a perder se continuar
agindo desse modo.
Ele deu um sorriso macabro e fez menção de aproximar-se outra vez.
— Eu disse para não se aproximar! Vou gritar! — exclamei quase
perdendo o controle.
Bryan me analisou minuciosamente por torturantes segundos. Seja lá o
que tenha visto em meu rosto, foi suficiente para fazê-lo recuar. Observei
enquanto levantava as duas mãos para cima em sinal de rendição.
— Tudo bem, não precisa se exaltar. Só quero conversar e acertar as
coisas entre nós. Quero a minha família de volta na nossa casa, de onde vocês
nunca deveriam ter saído.
— Nem morta!
O queixo dele tremeu de raiva. Vacilante, posicionei a chave do carro
entre os dedos, a mão seguia em posição de combate. Se Bryan tentasse alguma
coisa, eu faria questão de enfiar a ponta afiada de metal em seu olho.
— Vou te dar mais um tempo, querida. Tenho certeza que irá repensar,
pesar os prós e contras e finalmente compreender que o seu lugar é ao meu lado.
Senti o gosto da bile na língua. Se não encerrasse aquele encontro nos
próximos minutos, não conseguiria segurar o vômito. Engolindo em seco, forcei-
me a falar:
— Por favor, vá embora e me deixe em paz. Viva a sua e me deixe viver
a minha.
Seus olhos brilharam e ele cerrou os punhos. Institivamente, me encolhi.
— Aquele sujeito fez a sua cabeça contra mim. Você está agindo por
influência do tal Lucas Hayes.
Ouvir o nome de Luke sair daquela boca imunda fez o meu enjoo
aumentar de maneira significativa. Nossas suspeitas estavam corretas, o
desgraçado estivera rondando muito antes de nos darmos conta. Perceber que
Bryan provavelmente chegara perto de mim e Romeo me colocava em pânico.
Quantas vezes saí de casa sem saber que ele me vigiava? Deus!
— Ele não tem nada a ver com isso — assegurei.
— Não minta! — elevou a voz. — Sei que tem dormido com o cara e
estou disposto a perdoar esse lapso lamentável porque a amo e desejo ter a
minha família de volta. Mas não teste a minha paciência, ela tem um curto
limite.
A conversa estava tomando um caminho perigoso e sem volta. Eu
precisava ir embora imediatamente.
— Essa discussão não vai nos levar a lugar nenhum. Vou entrar no carro
e ir embora. Se eu perceber que está me seguindo, ligo para a polícia. Acredite
em mim, porque nunca falei tão sério em toda a vida — ameacei, rezando
silenciosamente para Deus me manter firme só mais um pouquinho.
— Eu não acho que você vai querer envolver a polícia no meio, querida.
Com todas as besteiras que andou fazendo nos últimos meses, quem vai parar
atrás das grades é você. E não é isso que queremos, certo? — Quando me
encarou, satisfação e pura maldade transbordou em seus olhos.
Para Bryan era impossível manter a máscara de bom moço mais que
poucos minutos quando estávamos sozinhos. Ele nunca me perdoaria por ter
dado a outro homem algo que considerava seu. Ainda que eu cometesse a
loucura de retomar o relacionamento, a minha vida seria muito pior que antes.
Eu preferia a morte.
— Faço o que for preciso para ficar longe de você. Se o único lugar para
isso acontecer for atrás das grades, que seja — blefei.
— E vai ficar longe do menino? — Arqueou uma sobrancelha,
claramente debochando de mim.
— Antes vou me certificar que ele não fique com você — segui
mentindo.
— E como pretende fazer isso, Eveline? — Cruzou os braços.
— Você vivia jogando em minha cara que a minha melhor amiga era uma
puta que abria as pernas para um traficante. Acontece que esse traficante é
apaixonado por ela e basta um pedido de Miranda para você estar com os dias
contados. Posso até ir para o inferno, Bryan, mas te levo comigo.
Dei um passo para o lado, desencostando-me do carro, e fechei a porta do
carona, que seguia aberta, sem tirar os olhos dele nem por um milésimo de
segundo. Obriguei os pés a se movimentarem e contornei o veículo até chegar na
porta do motorista. Ao sentar no banco, meu corpo inteiro era sacudido por
espasmos.
— Você sabe que isso não acabou. Se não quer resolver amigavelmente,
também sei ameaçar, não se esqueça disso, Eveline. — Jogou um pedaço de
papel pela fresta do vidro. — Nos encontraremos nos tribunais, onde você será
massacrada e perderá a guarda do garoto. Se voltar ao juízo antes que
cheguemos a esse ponto, me ligue. E não faça mais nenhuma besteira. No final
das contas, eu sempre vou te encontrar.
Foram necessárias quatro tentativas para a minha mão trêmula encaixar a
chave e dar partida no carro. Eu enxergava tudo embaçado, as ruas passavam por
mim como um borrão e eu não saberia dizer como cheguei em casa. Estacionei
de qualquer jeito e fiquei sentada até sentir firmeza nas pernas. Abri a porta e saí
correndo para casa.
Entrei de vez, fechando a porta atrás de mim com um baque. Em seguida,
digitei o código de segurança e deixei o corpo deslizar pela porta até o chão.
Mônica se assustou ao ver meu estado, levantou-se da cadeira onde lia um livro
e caminhou até mim.
— Dona Eveline, o que aconteceu? A senhora está passando mal?
— Preciso ficar sozinha. Por favor — implorei, passando as mãos pelos
cabelos.
— Mas… Ficar só desse jeito? Posso ajudar, pegar um pouco de água, de
repente ligar para alguém.
— Não. Só vá para casa. Mais tarde mando o seu dinheiro.
— Não é com isso que estou preocupada. Clarament…
— Porra, Mônica! — gritei. — Saia agora e me deixe sozinha!
A menina recuou e ficou pálida, o queixo tremendo e os olhos castanhos
cheios de lágrimas. Arrependi-me imediatamente, sentindo-me uma pessoa
horrível por descontar em um inocente as minhas frustrações.
— Desculpe-me, Mônica — sussurrei, limpando o rosto molhado. —
Hoje não é um bom dia e eu preciso ficar sozinha para colocar a cabeça no lugar.
Por favor, vá para a sua casa e não se preocupe comigo.
Ela assentiu, juntou suas coisas e saiu rapidamente. Após alguns minutos,
levantei e fui até o quarto de Romeo, que esfregava os olhos como se tivesse
acabado de acordar. Ele sorriu ao me ver e sentei na cama, puxando-o para o
meu colo, distribuindo beijos pelo rosto rechonchudo. Nada nem ninguém tiraria
o meu filho de mim.
Nada nem ninguém!
Deixando-o na companhia de Lola, marchei até meu próprio quarto e
arrastei a mala preta de debaixo da cama. Joguei-a aberta no colchão e comecei a
enchê-la de roupas, entulhando uma peça atrás da outra sem qualquer
organização.
Eu precisava fugir. Precisava pegar a estrada imediatamente e colocar o
máximo de distância entre Bryan e nós dois. Voltar para a prisão daquele
relacionamento doentio estava fora de cogitação. Minha vida, dali em diante, se
resumiria em me deslocar de uma cidade à outra antes de ser rastreada.
Pensei em ligar para Miranda e aceitar a oferta dela para que Dax desse
um jeito no crápula. O problema era que encomendar a morte de alguém me
roubaria a alma e, honestamente, não sabia se conseguiria viver em paz depois
de cometer algo daquela magnitude. Luke tirara uma vida para me defender
antes e eu não desejava colocá-lo naquela posição outra vez.
Partir seria doloroso, especialmente sem uma despedida, mas precisava
ser assim. Se qualquer um deles soubesse a minha intenção, tentaria me impedir
e eu não teria forças para lutar contra. E ficar seria assinar a sentença de
sofrimento, tanto para mim quanto para todos ao meu redor.
Para onde quer que fôssemos, eu tomaria o cuidado de não criar laços
afetivos.
As lágrimas regressaram e não tentei impedir. Deixei que a dor, angústia,
raiva, tristeza e impotência fossem colocadas para fora ou explodiria. O coração
parecia estar sendo destroçado dentro do peito, de modo que a dor ameaçava
cortar minha respiração. Precisei de uma pequena pausa e sentei-me sobre os
lençóis amassados.
Meus olhos escrutinaram ao redor enquanto eu me dava conta de como
sentiria falta de tudo que conquistei em Naperville. Minha nova vida, rotina,
trabalho, independência, amigos queridos. Meu amor. Deixaria tudo e todos para
trás outra vez por causa da maldade de um homem que parecia disposto a me
destruir completamente.
Não!
Descontrolada, agarrei a mala e a atirei no chão com violência,
espalhando peças de roupa para todos os lados. Eu não permitiria que ele me
tirasse tudo! Não mais!
Entrar em pânico, chorar e fugir feito uma covarde era uma atitude típica
da Eveline de seis meses atrás. E ela não tomava mais decisões por mim. A
despeito de ter um longo caminho à minha frente antes de destruir todas as
sequelas deixadas pelo desgraçado, eu era consciente de que havia dado passos
largos e significativos para a cura. Naquela cidade charmosa e fria de Illinois,
encontrei forças para me reerguer.
Luke era o homem da minha vida. Com ele eu havia entendido o que era
ser amada, cuidada e respeitada. Havia aprendido como era uma relação
saudável de companheirismo e cumplicidade, onde ninguém tentava subjugar e
anular ninguém. Havia descoberto o que era tesão, paixão e amor. E o mais
importante, eu havia compreendido como meu filho merecia ser tratado por um
pai.
Fechei os olhos e tentei imaginar a minha vida em alguns anos. A visão
que tive não contemplava lugares temporários e fugas desesperadas, sempre
olhando sobre o ombro à espera de uma ameaça eterna. Aquilo nem sequer seria
vida.
Se eu insistisse em fugir, é claro que me adaptaria. Sofreria muito, mas
ninguém morria por amor. A questão, no entanto, era que agora eu simplesmente
não queria ou precisava passar pela situação sozinha.
Decidida a dar um basta no assunto, voltei à sala, peguei o celular na
bolsa da academia atirada no chão e disquei o número dele. Atendeu no terceiro
toque.
— Oi, minha linda. Já chegou em casa?
A voz rouca foi a gota que faltava para transbordar o copo.
— Luke — murmurei e tive uma crise de choro compulsiva.

Afundei o pé no acelerador, ultrapassando o sinal vermelho, o choro de


Eveline ecoando pelo carro através do celular no viva-voz.
Ela ainda não havia conseguido me dizer que caralho estava
acontecendo, mas era uma merda das grandes para deixá-la naquele estado.
Adrenalina pura corria nas minhas veias quando me aproximei da casa dela.
Estacionei uma quadra antes, peguei a arma, conferindo se estava tudo certo e
coloquei-a na parte de trás da calça. Saí do carro com o celular na mão.
— Estou na sua rua, chegando agora em casa. Tudo bem?
— T-tudo… — ela respondeu entre soluços.
Aquilo estava me matando. Eu odiava ver Eveline chorar e piorava se
estivesse longe, sem poder consolá-la.
A fachada estava aparentemente tranquila. Subi os degraus com cautela, a
mão no cabo do revólver, olhando para os lados, permitindo que meu instinto
aguçado trabalhasse livremente.
— Vou entrar agora, linda. Não se assuste, sou eu. Você está sozinha?
— Eu e R-Romeo.
Havia a possibilidade de ela estar falando aquilo com uma arma apontada
para cabeça, então não relaxei ou abaixei a guarda. Abri a porta, consciente de
que se não digitasse o código de segurança em até quinze segundos, o alarme
dispararia e alertaria tanto o pessoal da LTM quanto a polícia.
Com o revólver na mão, percorri o local rapidamente. A sala e cozinha
estavam limpas e Romeo brincava no próprio quarto na companhia de Lola, que
latiu ao me ver. Caminhei para o último cômodo em alerta total. A porta estava
entreaberta e vi Eveline sentada no chão, as costas apoiadas na cama e o celular
no ouvido. Ela levantou os olhos para mim, mostrando-me como estavam
vermelhos e inchados. Sem demora, conferi a suíte. De fato, não havia ninguém
aqui além dos dois.
Voltei para a sala a passos largos e digitei o código dois segundos antes
do tempo esgotar. Em seguida, retornei ao quarto dela, guardei a arma e agachei
até ficarmos frente a frente.
— O que aconteceu?
Eveline não me respondeu de imediato, apenas jogou os braços ao redor
do meu pescoço e me agarrou com força. Por pouco não me desequilibrei e caí
para trás. Segurei o corpo trêmulo, abraçando-a forte, respirando aliviado pela
primeira vez desde a sua ligação.
— Não faz isso comigo. Me diz por que está chorando tanto. — Alisei as
costas com uma mão, o cabelo com a outra e beijei o rosto vermelho e banhado
em lágrimas.
— Esp-pera só u-um p-ouco — sussurrou, enfiando o rosto no meu
pescoço.
Passei as pernas de Eveline ao redor da minha cintura, fiquei de joelhos e
impulsionei o corpo para cima, levantando-nos. Sentei na cama e dei o tempo
necessário para ela se recuperar. Quando os tremores diminuíram, limpou o
rosto, me encarou e começou a contar.
Fiquei tenso, um nó na garganta e uma raiva que ameaçava me consumir
inteiro. Apenas o fato de o filho da puta ter chegado até ela, perto o suficiente
para ter feito alguma coisa, me embrulhava o estômago e eu sentia gana de matá-
lo.
— Se aquele cara tivesse feito alguma coisa com você… — Não terminei
a frase, apertando-a em meu colo.
Eveline respirou fundo, colando a testa à minha. A respiração quente em
minha pele me acalmou um pouco. Subi a mão para a sua nuca, fazendo com que
me olhasse.
— Você não está sozinha. Sei que está nervosa e apavorada, mas não vou
permitir que o filho da puta encoste em você ou no seu filho.
— Você ouviu o que o Kalel Parker disse, Luke. E Bryan afirmou que vai
brigar pela guarda de Romeo se eu não voltar para ele. — Sua voz falhou ao
final da frase.
— Isso não vai acontecer, está me ouvindo? — Firmei a mão no seu
cabelo. — O seu lugar é aqui, comigo. Vamos dar um jeito nisso. Juntos, como
uma equipe.
Puxei-a para mim e colei nossas bocas. O beijo começou lento, apenas
um leve roçar de lábios. Então coloquei a língua para sentir seu sabor tão meu.
Eveline correspondeu ofegante, agarrando-se a mim com força, devolvendo cada
sentimento que eu empregava nos movimentos. O sabor salgado das lágrimas
servia apenas para aumentar meu desejo de tirar cada gota de sofrimento dela.
Afastando-me, passei o polegar na bochecha. Não cansava de admirar os
traços delicados do rosto bonito.
— Eu amo você. — As palavras simplesmente saíram.
Eveline estremeceu inteira. Olhou-me parecendo absolutamente
espantada e meio maravilhada. E foi a sua vez de me beijar com intensidade,
inebriando-me com o calor do seu corpo e o sabor da sua língua.
— Sabe quando seu mundo está desmoronando, mas existe uma pessoa
que faz tudo ficar melhor apenas com sua presença? A minha pessoa é você,
Luke. Não achei que algum dia fosse viver o sentimento de que tanto ouvi falar.
Essa paixão arrebatadora, esse amor que parece tomar conta de mim. — Segurou
o meu rosto com as duas mãos. — Eu também te amo. Muito, muito.
Durante trinta e três anos de vida, eu tinha ouvido aquelas mesmas
palavras de algumas mulheres. A maior parte no começo da prática sexual,
quando eu era muito moleque para deixar as minhas intenções claras antes de
iniciar uma transa. Depois de adulto, voltou a acontecer duas vezes. E a curta
frase sempre me incomodara para caralho.
Ouvi-la sendo proferida por Eveline, contudo, me deixou absolutamente
satisfeito e feliz, queimando por dentro. Beijei-a novamente, saboreando os
lábios inchados de forma intensa e apaixonada. Já estava de pau duro, morrendo
de vontade de tirar as roupas dela e me enterrar no corpo que estaria preparado
para me receber, como sempre, até acalmar a nós dois. Mas não era a hora e nem
o lugar. A porta do quarto estava aberta, Romeo poderia entrar a qualquer
momento. Além disso, eu precisava tomar algumas providências.
— Arrume suas coisas, você e Romeo vão para a casa de minha mãe. O
condomínio fechado dificulta a entrada de estranhos e vou deixar alguém de
confiança vigiando o local vinte e quatro horas por dia. Por enquanto é o lugar
mais seguro.
— Quero ficar com você — confessou, apertando meus ombros.
Coloquei uma mecha do cabelo loiro atrás da orelha e lhe dei um selinho.
— Vai ficar — garanti.
Eveline assentiu e desceu do meu colo. No instante em que saiu da minha
frente, enxerguei as roupas espalhadas pelo chão do quarto ao redor da enorme
mala no canto. Ela estava se preparando para ir embora? Diria alguma coisa ou
simplesmente fugiria outra vez, deixando tudo para trás, inclusive a mim?
Sentindo a boca amargar com as dúvidas atormentadores, engoli o
orgulho e as perguntas porque sabia que ela não aguentaria outra situação de
estresse. Não naquele momento.
E comecei a me movimentar.
CAPÍTULO 35
O Segundo Embate

Apesar de estar na cama há mais de uma hora, eu não conseguia pregar


os olhos. De volta ao quarto que havia ocupado na casa de Rebecca poucos dias
depois de chegar a Naperville, tive a sensação que a ocasião ocorrera há anos e
não meses.
Mirava o teto acima de mim, perguntando-me se dormiria mais rápido se
Romeo estivesse comigo. Rebecca o levara para passar a noite com ela e o
danado fora todo entusiasmado por saber que ganharia doces “escondidos”.
Invejava a inocência que o permitia seguir a vida normalmente, sem ideia da
ameaça que pairava sobre nós.
As leves batidas na porta me arrancaram das divagações. Apoiei as costas
na cabeceira e permiti a entrada. Lucy sentou na beirada do colchão, a forte luz
do abajur iluminando o cômodo quase completamente.
— Também está sem sono? — questionou, tirando as pantufas de panda
para cruzar as pernas.
— Às vezes acho que nunca mais vou dormir em paz — confessei,
sentindo uma pontada na cabeça. Já havia tomado um analgésico, mas a dor
ainda não tinha melhorado.
— Se eu soubesse, não teria aceitado sair com Derek…
— Pare, Lucy — interrompi-a. — Você não sabia, ninguém sabia. Ele
estava me seguindo há sabe-se lá quanto tempo. Se não fosse hoje, seria amanhã,
depois ou na próxima semana.
— Mas ao menos eu teria dado um chute no saco do infeliz.
— Estou morrendo de medo dele conseguir a guarda de Romeo —
confessei, dobrando as pernas e apoiando o queixo em um joelho.
— Nem pense nisso. Nenhum juiz em sã consciência deixaria um
psicopata como ele ficar com uma criança. Vamos dar um jeito de deixá-lo bem
longe do príncipe. E, se o idiota não tiver amor a vida e tentar alguma gracinha,
eu arranco as bolas dele com minhas próprias mãos e enfio no rabo do filhote de
cruz-credo!
A frase me pegou tão despreparada que gargalhei, jogando a cabeça para
trás.
— Só você para me arrancar uma risada em um momento assim. —
Limpei os olhos.
— Não entendi o motivo da graça, a minha ameaça é muito séria. Sou a
melhor aluna de Jane e estou ansiosa para testar os golpes em um macho escroto.
— Então é melhor ele manter as bolas e o rabo longe de você —
comentei, voltando a rir.
Em um acordo mútuo e silencioso, mudamos de assunto. Passamos os
próximos minutos conversando sobre a transa muito orgástica que ela tivera com
o personal gostosão do abdômen trincado. Apesar de bastante detalhado, o
relato serviu para distrair minha cabeça por alguns instantes.
A conversa foi interrompida com a chegada de Luke. Ele vestia sua
habitual calça de moletom folgada e tinha os cabelos molhados do banho
recente. Quando ficamos sozinhos, ele deitou ao meu lado, cobrindo-nos com o
edredom, e virou meu corpo para que ficássemos de frente a frente.
Ainda parecia um sonho o “eu amo você” dito por ele. Achei que meu
coração fosse sair do peito. Eu já sabia daquilo, mas tive ainda mais certeza de
que Lucas Hayes era um homem diferente. Ao contrário da maior parte da
população masculina — segundo relatos de noventa e nove por cento das
mulheres —, ele não parecia ter medo de relacionamento sério ou externar os
sentimentos. Nas duas ocasiões em que nos declaramos, fora por iniciativa dele.
E eu sabia que precisava de um homem assim ao meu lado, sincero, direto e
seguro do que queria. De incertezas já bastavam as minhas.
— Kalel entrou em contato com o número. Ele se mostrou disposto a ter
um encontro informal amanhã.
Enrijeci com a ideia de ver Bryan outra vez em tão pouco tempo.
— É claro que você não estaria sozinha. Kalel e eu a acompanharíamos,
bem como o advogado dele. A última coisa que eu queria era te colocar nessa
situação, faria qualquer coisa para evitar essa merda, mas Parker é um advogado
experiente e acha o encontro uma boa ideia. Seria uma oportunidade para sondar,
saber de quais informações ele dispõe e o que pretende.
Permaneci quieta, tomada pela inquietude e confusão. Racionalmente
Kalel estava certo, mas só eu sabia o que outro encontro com ele faria ao meu
psicológico.
— A decisão é sua, Eveline. Lembre-se que não é obrigada a fazer nada
contra a vontade. Se decidir que não quer ir a esse encontro, vamos procurar
outro jeito de lidar com a situação — assegurou Luke, percebendo meu conflito
interno.
Refleti sobre as palavras dele e respirei fundo. Se eu queria eliminar a
covardia da minha vida, aquela era uma excelente chance para começar.
— Eu vou.
Luke assentiu, deu-me um beijo e me fez virar de costas para ele. Senti o
peitoral nu e quente se encaixar em mim, assim como uma perna entrar no meio
das minhas e um braço rodear minha cintura. Era gostoso ficar assim.
Enquanto sentia a respiração constante em minha nuca, tentei dormir e
descansar, com a certeza de que amanhã enfrentaria uma nova provação.
Pedi forças a Deus para me manter forte e de cabeça erguida.

A mão de Luke repousava nas minhas costas, impulsionando-me a


continuar andando, quando meu instinto de autopreservação gritava para eu fugir
dali. Ao chegarmos na porta da sala onde aconteceria o encontro, Kalel virou
para mim, fixou os olhos castanhos levemente escondidos sob os óculos de grau
e avisou:
— Lembre-se do que conversamos, senhorita Perry. Talvez ele tente lhe
provocar para fazê-la perder as estribeiras, não caia no jogo dele. Mantenha em
mente que o objetivo dessa reunião é tentar arrancar o máximo de informações
possível sobre os planos de Allen e o material que ele tem nas mãos que possa
prejudicá-la em um futuro processo. Entendido?
Engoli em seco, procurando a minha voz para responder, mas não a
encontrei. Limitei-me a assentir e olhar Luke, que me encarava atentamente, a
mão subindo para a minha nuca, massageando-a de leve, a fim de me relaxar. Ele
não precisava dizer as palavras para que eu as escutasse. Estou aqui, minha
linda.
Kalel argumentara que seria melhor eu entrar apenas na companhia dele,
pois Bryan poderia entender a presença de Luke como uma afronta e não reagir
bem. Mas aquela possibilidade era algo que não existia para nenhum de nós dois
e foi logo descartada. Relutante, ele aceitou a recusa.
A porta foi aberta e entramos. Sentado ao lado de um homem ruivo
trajando um terno, estava Bryan, os olhos fixos em mim. Seu olhar recaiu para a
mão de Luke na minha cintura e, ao me encarar novamente, ele ostentava uma
sobrancelha erguida, a expressão em um claro sinal de reprovação. Meu primeiro
instinto foi me afastar para eliminar o que o estava incomodando e evitar
conflitos, brigas e agressões. Contudo, respirei fundo e me mantive exatamente
onde devia estar.
— Bom dia. — A voz marcante de Kalel ressoou pelo ambiente.
Apenas o advogado de Bryan respondeu, levantando-se para um breve
aperto de mão. A tensão no ambiente poderia ser cortada em cubos. No piloto
automático, sentei na cadeira de frente os dois homens. Luke foi para a minha
esquerda e Kalel para a direita, de maneira que fiquei no meio de ambos. Os
olhos de Bryan não saíam de mim e aquilo estava me abalando mais do que eu
gostaria de admitir.
Os dedos de Luke procuraram a minha mão por baixo da mesa e, assim
que a encontrou, apertou-a carinhosamente. Apertei de volta.
— Bem — Kalel voltou a falar, após o silêncio constrangedor —, como
expliquei ao senhor Allen pelo telefone, este é um encontro informal para que
tentemos chegar a um denominador comum e evitar o tribunal, sempre
desgastante para todas as partes.
— Devo informá-los que o meu cliente está um tanto surpreso com a
presença de uma quinta pessoa. A questão aqui é entre Bryan Allen e a sua
companheira, Eveline Perry — o ruivo anunciou e eu não pude deixar de
perceber que ele nem sequer tinha se apresentado.
— Ora, Mitchell, somos todos adultos aqui. E estamos cientes de que a
senhorita Perry e o senhor Allen já não mantém relações de casal. A minha
cliente se sente mais confortável com a companhia do senhor Hayes e esta
questão não é negociável.
O homem abriu a boca para retrucar, mas Bryan o tocou levemente no
braço e disse:
— Tudo bem, Mitchell, vamos ouvir o que eles têm a dizer.
Após outro tenso minuto de silêncio, Kalel pigarreou e dei início à
conversa:
— A senhorita Perry não possui interesse em retomar a relação de
convivência com o senhor Allen, visto todo o histórico de agressões físicas e
psicológicas que tanto ela quanto o seu filho sofreram. E quer a guarda integral
da criança, garantindo ao pai visitas quinzenais e supervisionadas.
Bryan não se abalou com o pedido, mas o seu advogado deu um sorriso
ácido e sem humor.
— Isso é alguma piada, Kalel? Essa proposta é um insulto. Meu cliente
foi o único a sair prejudicado com a fuga da companheira, tendo sido pego de
surpresa e privado da convivência com o filho de três anos por mais de seis
meses, sem ao menos saber o motivo do afastamento. Viajou a trabalho e quando
retornou à casa não havia sinal algum da sua família. Em relação às agressões
citadas, não há nada que comprove a veracidade das mesmas, logo, o assunto
não deve nem ser posto em discussão.
Eu tremi e as minhas mãos suaram. Minha perna direita balançava para
cima e para baixo sem parar, no tique nervoso que me acompanhava desde a
infância. Eu queria pular a mesa e arranhar a cara inteira do ruivo cretino, mal
caráter e escroto que se propôs a defender um agressor de mulheres e crianças.
A mão de Luke intensificou o aperto na minha. Precisei respirar fundo
várias vezes para conter a violência que crescia de dentro para fora.
— Qual a sua contraproposta? — Kalel quis saber.
— Bryan quer única e exclusivamente a sua família de volta. Deseja que
Eveline Perry e o seu filho retornem para o seu lar habitual, em Reno, e está
disposto a esquecer todos os contratempos e atos ilícitos cometidos pela sua
cliente.
— De quais atos ilícitos está falando?
O tal Mitchell abriu a sua pasta de couro preta e tirou um envelope de
dentro. Rapidamente, os papéis foram saindo e sendo dispostos na mesa,
enquanto ele explicava calmamente:
— Temos fotografias e filmagens da senhorita Perry embarcando com o
menino em um terminal rodoviário em Reno. No registro de ônibus não há
nenhuma Eveline Perry ou Romeo Allen. A única criança presente no veículo
ingressou com o nome de Jordan Young, acompanhado de sua mãe e
responsável, Jessica Young. Há também outras imagens, momentos antes do
embarque, onde os dois são vistos na companhia de Miranda Perry e um homem
desconhecido. Miranda, como é de conhecimento geral de pessoas próximas ao
casal, é a melhor amiga de Eveline Perry.
As imagens estavam um pouco embaçadas, mas eu me reconheci
imediatamente. Nas primeiras, eu andava de cabeça baixa, o capuz do moletom
cobrindo parcialmente o rosto, segurando Romeo no colo. Dava para ver
claramente o número do ônibus no letreiro. As outras eram uma sequência de
fotos minha com Miranda, conversando, caminhando e nos abraçando. Eu não
lembrava o nome do homem de Dax que havia nos acompanhado naquele dia,
mas também o reconheci, sempre por perto, em posição de alerta.
— Também conseguimos imagens e gravações do hotel em que Jessica e
Jordan Young ficaram hospedados nos primeiros dias em Naperville — o
advogado continuou.
Aquela série de fotografias estava nítida. Eu aparecia em diversos
ângulos, com várias roupas diferentes e sempre com Romeo no colo. Nossos
rostos eram facilmente reconhecidos. Eu me tremia inteira, sem conseguir
disfarçar. Luke levou a mão para as minhas costas, subindo e descendo, mas nem
aquilo conseguiu me acalmar. Como Bryan teve acesso a todas aquelas fotos,
filmagens e informações? Se ele apresentasse todas as provas em um tribunal, eu
não teria a menor chance. E é claro que o desgraçado faria exatamente isso.
Kalel franziu a testa e pegou as evidências nas mãos para analisar de
perto, uma manobra para ganhar tempo, porque ele já sabia da veracidade dos
fatos. Abaixei o rosto, olhando as minhas mãos cruzadas no colo. Meus olhos
ardiam de vontade de chorar e foi preciso um esforço desgastante para não as
deixar caírem livremente.
— Como eu já disse, o meu cliente não quer prejudicar a senhorita Perry
de forma alguma. Tudo isso desaparecerá assim que ela retornar à casa do casal.
— Se ele estava tão preocupado com o paradeiro dos dois, por que não
registrou o desaparecimento? Por que não comunicou à polícia? — interrogou
Kakel, depositando as fotografias de volta na mesa.
— O desejo de preservar a companheira. Bryan sabia que a atitude de
Eveline poderia ser oriunda de um ato impulsivo, tomada em um momento de
fortes emoções, e não queria a polícia atrás dela ou complicá-la perante a justiça.
No entanto, temos provas testemunhais do quão desesperado ele ficou ao se dar
conta do sumiço. Amigos próximos presenciaram todo o sofrimento e desalento
do meu cliente. Há, também, recibos dos pagamentos que fez para um detetive
particular localizá-los. Ele fez o possível para que o problema fosse resolvido de
forma amigável e pacífica e as autoridades responsáveis não precisassem ser
acionadas.
— Como eu disse no início da conversa, a senhorita Perry não tem
interesse em retomar o relacionamento.
— Então a nossa conversa está acabada. — Ouvi o barulho da pasta se
fechando e levantei o rosto. Bryan ainda me olhava, um sorriso presunçoso
desenhado na boca.
— Por que está fazendo isso? — meu sussurro teve o poder de silenciar a
todos.
— Senhorita Perry… — Kalel tentou me impedir, mas eu já estava além
de qualquer controle.
— Você nunca se importou com ele, nunca se interessou por Romeo. Sua
interação com o menino se limitava em segurá-lo no colo por alguns minutos
quando recebia visitas em casa, só para passar uma imagem de bom pai. Você
também nunca se importou comigo, porque quem ama de verdade não soca e
espanca a pessoa amada.
— Senhorita Perry — foi a vez do advogado ruivo me interromper. —
Cuidado com as acusações sem fundamento.
Desviei o olhar para ele, deixando transparecer todo o nojo e asco que
sentia pelos dois.
— Eu não sei como consegue dormir à noite. Você sabe que estou
falando a verdade. Você sabe que nenhuma mulher faria o que eu fiz se não
temesse pela segurança do filho. Não é necessário que haja uma denúncia, um
exame de corpo de delito ou uma condenação, porque eu tenho a mais absoluta
certeza de que, quando olha para mim, bem dentro dos meus olhos, você sente a
verdade em cada palavra que sai da minha boca. Eu espero, senhor Mitchell, que
sua mãe, irmã, filha ou qualquer mulher importante na sua vida nunca passe pelo
que eu passei. Espero que um filho seu não passe pelo que o meu passou. Porque
só então você saberia o que estou sentindo neste momento, olhando para a
pessoa que está defendendo alguém que me fez tão mal, que teve a coragem de
bater em um ser indefeso de três anos. E pior, ainda está lutando para que ele
fique com a guarda da criança. Sinto ânsia de vômito só de olhar para a sua cara.
Luke estava tenso ao meu lado, a mão firme na minha perna, mas não
tentou me impedir de falar. Continuei:
— Quanto a você, Bryan. — Voltei a encará-lo. — Saiba que eu faria
tudo novamente. O dia mais feliz da minha vida foi quando fui embora daquela
casa, quando não precisei mais olhar na sua cara, dormir na sua cama,
compartilhar o mesmo ar que a sua pessoa imunda respira. Você costumava me
despertar medo, um medo muito profundo, mas depois de hoje, depois de
presenciar essa palhaçada que aconteceu aqui, só consigo sentir nojo, asco e
pena. Grande homem você é! Precisando recorrer a uma chantagem tão baixa
para prender uma mulher ao seu lado. Deve ser triste se olhar no espelho
diariamente e se dar conta do fracassado que é, de como precisa humilhar,
subjugar e maltratar as pessoas para se sentir bem consigo mesmo. Não pense
que suas atitudes ficarão impunes. Pode não ser agora, mas eventualmente você
vai pagar por todo o mal que fez.
Percebi que consegui chocá-lo quando perdeu o seu ar superior de
deboche e empalideceu um pouco. Mas, logo em seguida, recuperou a
compostura e teve a coragem de dizer:
— Não faço a menor ideia do que está falando. Eu nunca levantaria a
mão para você ou para o meu filho. Está se comportando como uma louca,
Eveline.
— Ah, é? — Ri, todo o torpor que vinha sentindo se transformou no mais
absoluto ódio em questão de milésimos de segundos. — Então vou fazer jus a
minha loucura e te matar com as minhas próprias mãos, seu desgraçado!
Levantei em um pulo ágil e parti para cima dele. Naquele momento não
pensei nos conselhos de Kalel sobre as possíveis provocações que sofreria, não
pensei que aquela atitude poderia piorar a situação, não pensei em nada, na
realidade. Só queria arrebentar a cara dele e descontar tudo de ruim que já fez
comigo e Romeo.
Antes que pudesse dar o segundo passo, braços fortes me seguraram e fui
puxada para trás, batendo as costas no peito firme de Luke.
— Me solta! — gritei descontrolada, as lágrimas já escorrendo pelas
bochechas. — Me solta, por favor, Luke!
Ele me segurou ainda mais forte, quase me tirando o ar. Bryan me olhava
com os olhos arregalados, chocado.
— Tire-a daqui imediatamente — Kalel orientou, levantando-se também.
Contra a minha vontade, Luke me arrastou até a saída sem desgrudar de
mim por um só instante. Na metade do caminho eu já havia perdido o ímpeto da
violência e apenas chorava, derrotada. Quando a porta bateu, separando-nos dos
homens que ainda me encaravam espantados, fui virada de frente para Luke e os
braços reconfortantes e acolhedores do homem que eu amava me enlaçaram com
carinho. Segurei sua camisa com as duas mãos, afundando o rosto no pescoço e
deixando a angústia tomar conta de mim.
— Calma, amor — murmurou no meu ouvido, parecendo tão ferido
quanto eu.
Vozes nos cercarem de repente, todos falando ao mesmo tempo. Rebecca,
Lucy, Ty e Matt nos acompanharam até o escritório e ficaram esperando do lado
de fora.
— O que o demônio fez? — a voz de Lucy se sobressaiu, mas não houve
resposta. — Ninguém vai falar? Ótimo! Vou entrar e perguntar eu mesma,
enquanto atolo o meu salto agulha no rabo do filho da puta!
A ameaça me fez levantar o rosto a tempo de vê-la avançar em direção a
porta com uma fúria assassina e ser impedida por Matt.
— Calma, porra! — ele repreendeu, segurando-a. — Quer piorar as
coisas para Eveline?
— Você não me agarre assim! — Lucy se debateu, tentando escapar. — E
eu tenho toda a intenção de arrancar a minhoca que ele chama de pau e enfiar
goela a baixo até o infeliz engasgar! Não me impeça, já sei lutar, sou a melhor
aluna de Jane e vou acabar com o filhote de cruz-credo em dois segundos!
— Caralho, Lucy. Vem cá. — Matt a arrastou pela mão para longe sob
fortes palavrões. Até onde eu havia escutado, até a terceira geração da família
dele foi xingada.
O rosto de Rebecca, contorcido em preocupação, apareceu na minha
linha de visão. Ela afastou Luke sem muita delicadeza, limpou minhas lágrimas
e me olhou de maneira firme.
— O que aconteceu, filha?
— Oh, Rebeca… Acho que vou perder o meu filho. — Dizer aquilo em
voz alta me acabou.
— Claro que não! — ela rebateu, puxando-me para seus braços. — Meu
Deus é misericordioso e não vai permitir que algo assim aconteça. Confia e
tenha fé, meu bem!
Permiti-me ser abraçada, gostando da sensação de ser cuidada e
acalentada. Após alguns segundos, nos separamos e voltei para perto de Luke.
Seus lábios tocaram a minha testa em um beijo delicado. Ele estava calado
demais, a expressão tão fechada que eu não conseguia interpretar o que sentia.
— Podemos ir agora, por favor? — pedi. — Quero ver Romeo.
— Vamos.
Ele havia ficado na LTM com Amanda. Sabia que estava seguro, mas a
necessidade de tê-lo em meus braços era urgente. Caminhamos para fora do
escritório, Ty apertou o meu ombro em sinal de apoio e tentei sorrir para ele em
agradecimento. Lucy e Matt estavam encostados no carro dele. Ele falava
alguma coisa gesticulando com as mãos e ela o ignorava, fingindo analisar as
unhas.
Quando nos viu, deixou-o conversando sozinho e veio em nossa direção.
Durante todo o percurso, sentada no meio de Rebecca e Lucy, eu só conseguia
pensar que não suportaria perder a guarda de Romeo. De todas as merdas que
havia passado na vida, aquela era uma da qual não iria me recuperar nunca.
Deus, por que me abandonou?
CAPÍTULO 36
Acerto de Contas

Bati na porta e esperei pacientemente. Os olhos de Bryan Allen ficaram


desconfiados ao me ver. Tentou fechar a porta na minha cara, mas enfiei o pé no
canto a tempo de impedi-lo. Esmurrei a madeira fajuta e forcei a entrada. Ele deu
três passos para trás enquanto olhava ao redor com veemência.
— Você não pode ser tão burro para vir ao meu hotel e fazer algo
comigo. Seria o suspeito número um — o verme disse, tentando aparentar uma
calma que não sentia.
— Não me dê ideias… Infelizmente não estou aqui para quebrar a sua
cara. Nós vamos bater um papo sério e é bom prestar atenção em cada palavra
que eu disser.
— Não tenho nada para conversar com você, cara.
— Permita-me discordar, Bryan Allen. Ou prefere que te chame de
Calvin Campbell?
O filho da puta empalideceu, engoliu em seco e tentou se recompor
rapidamente. Aproveitei o momento de silêncio para fechar a porta do quarto
com uma calma calculada.
— Não sei do que você está falando.
— Porra, não estou com a menor paciência para esse jogo. Não tente me
fazer de otário ou posso mudar de ideia sobre afundar o seu nariz. — Ficou em
silêncio, encarando-me com ódio explícito. — Quando fiquei sabendo sobre o
passado de Eveline, entendi logo qual era o seu tipo. Aparentemente acima de
qualquer suspeita, boa pinta, inteligente, educado, responsável, simpático pra
caralho com todos ao seu redor. Tenho certeza que a escolheu a dedo, não? —
Troquei o peso de uma perna para outra, cruzando os braços. — A vítima
perfeita. Órfã, sem perspectiva de encontrar a família biológica, pouquíssimos
amigos, carente, inexperiente, virgem. Foi como tirar doce da boca de criança.
Bastou se fazer de bom moço, namorado perfeito, responsável, financeiramente
estável e sério, tudo que ela sempre almejou na vida. Estabilidade e afeto.
Ele teve a lucidez de permanecer calado. Era um escroto covarde. Usava
os punhos em mulheres e crianças e tremia na base quando precisava enfrentar
alguém do tamanho dele.
— Então mandei fazer uma pesquisa sobre você — prossegui. — O meu
contato teve um trabalho do caralho, principalmente porque todas as
informações a respeito de Bryan Allen começam há apenas treze anos. Mas e os
outros dezesseis? — Descruzei os braços e abri a pasta que guardava todos os
documentos. — Você me surpreendeu, Bryan. Digo… Calvin.
O idiota continuava a me encarar sem reação e eu percebia a compostura
de dono do mundo que ele mantinha se desintegrar diante dos meus olhos.
— Veja, o problema de pessoas como você é que, eventualmente, elas
acabam caindo no mesmo erro: a arrogância. Conforme o tempo passa e as
coisas continuam a dar certo, passam a ser menos cuidadosas, a não encobrir tão
bem os rastros. Começam a pensar que são inatingíveis. E basta alguém mais
atento procurar nos lugares certos para encontrar os podres. — Peguei as
primeiras folhas. — Calvin Campbell, quem diria. Filho de Christopher e Joana
Campbell, prefeito e primeira dama de Nova Iorque entre os anos de 2002 e
2005.
— Você está equivocado, não conheço essas pessoas.
— Não? — Ergui a sobrancelha. — Então vamos reavivar sua fraca
memória. Calvin Campbell sempre foi um garoto violento, costumava entrar em
brigas na escola e só não foi expulso porque a família possuía muita grana e uma
posição social privilegiada. O comportamento altamente destrutivo foi
parcialmente controlado até os dezesseis, quando ele espancou e estuprou a irmã
mais nova. Catherine Campbell tinha apenas treze anos quando chegou ao
hospital ferida, coberta de hematomas, com fissuras severas na vagina e no ânus.
— Cale a boca! — ele gritou, mostrando os primeiros sinais de
descontrole.
Olhei-o como se não passasse de um verme asqueroso.
— O pai dele havia acabado de ser eleito e sabia que um escândalo
daquela magnitude acabaria com a sua carreira política antes que ela sequer
deslanchasse, então molhou a mão de muita gente para enterrar o caso. E, de
fato, foi muito bem enterrado. Calvin saiu ileso, não pagou pelos crimes, mas a
família não conseguiu perdoá-lo. Christopher ofereceu uma quantia irrecusável
de dinheiro para que sumisse e não voltasse a procurá-los. A notícia que chegou
a público dizia que ele havia ido estudar fora do país. Ninguém questionou, filho
de rico costuma mesmo fazer intercâmbios. Foi o primeiro e único mandato de
um Campbell na cidade. A família inteira se mudou para uma casa de campo e
passou a viver mais discretamente. Até agora estou correto?
— Como você conseguiu desenterrar essas informações, desgraçado? —
esbravejou, empalidecendo feito um fantasma.
— Como falei, procurando nos lugares certos, Calvin. — Tirei o segundo
grupo de documentos. — Já como Bryan Allen, conseguiu ser mais discreto.
Ainda assim, existem três denúncias de agressão contra você, registradas por três
mulheres diferentes.
— Nada ficou provado!
— Sim, você tem razão. De maneira misteriosa, as moças decidiram,
repentinamente, retirar as queixas. Me pergunto o que as levou a essa decisão. E
se eu, que não me considero um cara curioso, questionei os motivos, qualquer
jornalista ficaria sedento por um furo desse. Quanto você acha que pagariam por
uma matéria que mostrasse ao mundo o que o ex-herdeiro Campbell realmente
andou fazendo nos últimos anos? — Deixei a ameaça pairar no ar por uns
instantes.
— Você não faz ideia com quem está brincando! A família Campbell é
poderosa, rica e Christopher vai te esmagar como um inseto se desconfiar que
representa uma ameaça ao segredo que ele guarda debaixo de sete chaves.
— Mais uma vez você está correto, Calvin-Bryan. Seu pai me causaria
sérios problemas, embora isso não fosse me impedir de ir até as últimas
consequências para proteger Eveline. Felizmente, você me deu bastante munição
e não vou precisar me indispor com sua majestade. — Peguei os últimos papeis.
— Track, o chefe da gangue para a qual você lava dinheiro, sabe que vem
desviando quantias consideráveis dele todos os meses, há dois anos?
Calvin-Bryan cambaleou para trás, desnorteado. Percebi que aquele era o
seu calcanhar de Aquiles; ele sabia muito bem o que traficantes faziam com
traidores. Os olhos violentos lançavam faíscas em minha direção, provavelmente
desejando me matar de uma forma lenta e dolorosa, inconformado com a derrota.
Se o filho da puta soubesse como aquele sentimento era recíproco…
No entanto, ele era inteligente para saber a hora de recuar.
— O que quer? — perguntou entredentes.
— Meu competente advogado preparou alguns documentos, basta que
você os assine. Estará desistindo de forma definitiva da guarda de Romeo,
passando-a integralmente para Eveline. Também dará permissão para que o
menino seja adotado. Dentro de alguns dias, vai ser chamado para dizer se
concorda com a perda do poder familiar. Tenho certeza de que comparecerá no
dia e hora marcada e fará tudo que for necessário para colaborar. — Estendi os
papéis e uma caneta em sua direção.
— Se eu assinar?
— Você segue a sua vida, nós seguimos a nossa e essas informações
serão enterradas no mesmo lugar de antes.
Blefe.
Dentro de pouco tempo, Track tomaria ciência de que estava sendo
roubado bem debaixo do seu nariz. O homem não era conhecido por sua
misericórdia.
— Quem garante que está falando a verdade? Posso assinar e você me
ferrar do mesmo jeito. Não tenho nenhum motivo para confiar na sua palavra.
— Qual a sua alternativa? — inquiri ironicamente.
Satisfeito, vi-o arrancar os papéis e caneta da minha mão e assinar as
folhas. Depois de guardá-las no envelope, encarei-o uma última vez, sentindo a
repulsa revirar meu estômago. A vida miserável não faria nenhuma falta para a
humanidade, seria um alívio quando fosse exterminado. Todo meu sangue gelava
ao pensar quanto tempo Eveline e Romeo ficaram reféns do filho da puta,
correndo riscos dentro e fora de casa.
— Deve ser difícil, não é? — A pergunta me fez estacar na eminência de
abrir a porta para ir embora. — Saber que eu fui o primeiro homem dela. Isso
ninguém tira de mim.
As mãos tremiam quando girei para encará-lo. Ele ostentava um sorriso
nojento no rosto.
— Infelizmente, não há uma fórmula para voltar no tempo. Entretanto,
mais importante do que ser o primeiro homem de uma mulher, é ser o último. E
eu pretendo ser o único daqui para frente. Mas não espero realmente que você
entenda, porque para isso precisaria ter o mínimo de hombridade.
— Fale o que quiser, diga frases bonitas, finja que está tranquilo, mas eu
sei que por dentro está incomodado pra caralho. E vou confessar, meu amigo, eu
adorava meter com tudo naquela boceta apertada, sempre e quando eu quisesse,
mesmo que Eveline não estivesse preparada para me receber. Há uma beleza
inenarrável nos gemidos de dor saindo da boca de uma mulher.
Eu havia ido até ali com a intenção de sair sem sujar as mãos com o
sujeito. Ter aquelas palavras cruéis cuspidas na minha cara, no entanto, me
transformaram em um animal furioso, irracional. Joguei o envelope no chão,
cortei a distância entre nós dois e dei o primeiro soco diretamente em seu nariz
antes que Calvin-Bryan pudesse sequer entender o que acontecia.
Ele caiu para trás com o impacto e eu fui para cima. Prendendo-o com
meu corpo, desferi soco atrás de soco.
Um.
Dois.
Três.
Quatro.
Cinco.
Seis.
Sete.
Oito.
Nove.
Minha visão estava turva e eu flexionava os braços para uma mesma
direção, o rosto do desgraçado. Parei somente quando percebi que ele havia
parado de lutar. O corpo estava inerte, a cabeça pendendo para o lado. Conforme
a adrenalina diminuía, minha respiração foi retornando ao normal e ouvi os
baixos gemidos de dor e agonia que saíam dos lábios partidos.
A cara de Calvin-Bryan era uma bagunça sangrenta e disforme. O nariz
estava torto, provavelmente quebrado, os olhos inchados não abriam
completamente e as feições não podiam ser distinguidas por conta da quantidade
de sangue. Tive a impressão de ter visto um ou dois dentes no chão, ao lado da
sua cabeça.
Afastei-me, ainda ofegante, e o olhei de cima. Não senti remorso ao vê-lo
daquele jeito, meu desejo era terminar o serviço e mandá-lo para o inferno, mas
não daria chances de o verme me prejudicar depois de morto. Eu me certificaria
que outras pessoas fizessem o trabalho por mim.
Caminhei até o banheiro e coloquei as mãos embaixo da água corrente,
observando o sangue escorrer pela pia que algum dia tinha sido branca. Fechei a
torneira, enxuguei as mãos na blusa e voltei ao quarto. Recuperei o envelope do
chão, encaixei-o na frente da calça, cobrindo-o com o casaco, e me aproximei
para dizer as últimas palavras a ele:
— Tenho certeza que você vai deixar esse mal-entendido para lá, meu
amigo.
Enfiei as mãos nos bolsos do casaco e caminhei para fora daquele lugar
maldito. Ao passar pela recepção, parei em frente ao homem atrás do balcão e
deslizei, discretamente, o bolo com dez notas de cem dólares para ele.
— As câmeras de segurança do hotel já podem ser religadas. E lembre-se
que nunca me viu aqui.

Os olhos atentos de Eveline recaíram nas minhas mãos esfoladas assim


que cheguei em casa.
— O que aconteceu? — questionou preocupada.
Eu não mentiria para ela. Era um direito seu saber a verdade. Cansado,
me atirei no sofá e bati a mão na perna.
— Vem aqui — convidei.
Desconfiada, caminhou até mim e sentou no meu colo. Estava linda e
perfumada, fresca do banho. Cheirei o pescoço, inalando profundamente o
aroma gostoso que só ela tinha. Respirei fundo, puxei o corpo delicado para o
meu e comecei a contar, ocultando somente as nojentas palavras que o imbecil
dissera sobre ela.
Eveline parecia prestes a desmaiar ao final do relato. O rosto pálido,
olhos arregalados e boca entreaberta. Apertou meus braços com força.
— Meu Deus, Luke! Ele é um monstro! Como pude conviver tanto
tempo com aquela pessoa? Bryan… Quero dizer, Calvin, não sei como me referir
a ele, sempre disse que não se dava bem com os pais, que eles eram pessoas
controladoras e arcaicas, que queriam mandar em sua vida e eu, idiota, acreditei.
Fui tão burra!
Ouvi-la falar daquele jeito sobre si mesma me incomodou. Segurei o seu
rosto e o virei em minha direção.
— Não diga isso. O cara sabe jogar com os sentimentos das pessoas,
manipulá-las. Eles sempre sabem. E você era uma menina inexperiente que se
deixou levar pela conversa bonita.
— Ainda assim. Estou chocada, de verdade. Quer dizer, eu sabia que ele
não prestava, mas jamais imaginei que chegasse a esse ponto. Estuprar a própria
irmã, uma criança… — Engoliu em seco. — E pensar que deixei meu filho ter
contato com alguém tão vil.
— Você não sabia, amor. — Passei o polegar na bochecha macia.
— Como se não bastasse, lavar dinheiro para uma gangue enquanto
desviava deles? Você sabe muito bem como esse pessoal cobra as dívidas, Luke,
descontando na família. Eu não fazia ideia do risco que corríamos apenas por
estar na casa dele.
Eveline estava ficando angustiada, agitada, então me aproximei para
calar sua boca com um selinho demorado.
— Eu sei que é foda descobrir todas essas informações assim, mas tente
focar nas coisas boas que aconteceram no meio de tanta merda — ponderei.
Ela se calou, analisando a minha frase, e soltou um suspiro de alívio.
— Você conseguiu mesmo que ele assinasse a concessão da guarda total?
— Os olhos brilharam de esperança.
— Sim, minha linda.
Deixei para comentar sobre os documentos da adoção depois que
esclarecêssemos algumas questões, como o fato de ela ter pensado em fugir
sozinha quando Calvin-Bryan reaparecera.
— Obrigada, meu amor — Eveline falou baixinho, tocando a boca na
minha.
Beijamo-nos devagar, curtindo o sabor um do outro em uma leve e
gostosa carícia. Cedo demais para o meu gosto, seus lábios abandonaram os
meus e o olhar focou nas minhas mãos.
— Agora vamos cuidar desses machucados, devem estar doendo
bastante.
— Estão sim. Vai cuidar de mim? — Usei meu charme para ganhar
atenção extra.
— Sempre.
Eveline lavou, limpou e colocou gelo nos meus punhos. Depois que saí
do banho, espalhou uma pomada fedorenta nos machucados e foi esquentar o
jantar, ordenando que eu ficasse quieto. Sentado no sofá da pequena sala, a via
perfeitamente mexendo nos armários, abrindo a geladeira e micro-ondas.
Aquela era uma vida boa. Chegar em casa e ter alguém te esperando,
interessado em saber como foi seu dia, desejando cuidar de você com carinho.
Eu queria aquilo para sempre.
Queria a vida com Eveline todos os dias.
Amava aquela mulher e a rotina que construíamos juntos.
Ela me fez companhia enquanto comi e conversamos sobre assuntos sem
importância, a fim de amenizar o clima pesado das recentes revelações. Fui
proibido de lavar os pratos por causa das mãos e deitamos cedo. Abracei-a como
sempre fazia, puxando seu corpo para encaixá-lo ao meu. Estava quase
adormecendo quando ela perguntou:
— Será que os avós de Romeo sabem da existência dele?
— Não sei, linda. Isso te preocupa?
— Sei lá. Só é estranho, sabe? E se um dia eles resolverem procurá-lo?
Não quero aquelas pessoas perto do meu filho, não depois de saber o que foram
capazes de fazer.
Apertei a cintura dela, deslizando a mão sobre a pele quente.
— Não pense nisso agora. Se não mostraram interesse até o momento, é
provável que não o façam. E se fizerem, estaremos preparados.
Silêncio.
— Luke?
— Oi.
— Quem te deu as informações sobre o passado de Bryan?
Abri os olhos, vendo a parte de trás dos cabelos claros mesmo no escuro
do quarto, analisando o que responderia. Precisava ser evasivo.
— Um antigo amigo que me devia um favor.
Se Eveline ficou insatisfeita com a explicação, guardou para si mesma.
Mesmo que eu quisesse, não poderia compartilhar a identidade de um ex-
companheiro do exército. Um cara tão bom e competente no que fazia, que havia
sido recrutado pelo FBI no instante em que pedira dispensa.
Não poderia compartilhar o meu susto ao saber que aquele amigo estava
trabalhando há anos disfarçado em um caso gigante. E, principalmente, não
poderia compartilhar o meu completo choque ao perceber que Miranda Perry era
a sua mulher.
E o imbecil estava ferrado por haver feito algo que um agente infiltrado
nunca deveria fazer: se apaixonar em serviço.
Dax — como era conhecido atualmente — estava fodido.
CAPÍTULO 37
Até à Última Consequência

— Acho que o meu marido está me traindo.


Esse não era o tipo de frase que eu esperava ouvir de Amanda durante o
nosso almoço de segunda-feira. Quase cuspi a água, procurando Lucy, que
espelhava o mesmo olhar espantado que provavelmente estava no meu rosto.
— Por quê? — perguntou ela, recuperando-se primeiro que eu.
— Juan tem trabalho cada vez mais, quase não fica em casa e, quando
está lá, parece a quilômetros de distância, distraído. — Passou a língua nos
lábios e brincou com o guardanapo, sem graça. — Há muito tempo não toma
iniciativa na cama. As poucas vezes que transamos nos últimos meses fui eu
quem iniciei. E ele não pareceu muito empolgado, sabe? Tive a impressão que
fez por obrigação.
— Talvez o trabalho excessivo seja o responsável por essa… Passividade
— falei, refletindo em seguida que Luke também andava assoberbado e nunca
negava sexo, pelo contrário, transávamos praticamente todos os dias.
— Essa história está esquisita — Lucy opinou. — Homem não costuma
recusar sexo, mesmo cansado. Não por tanto tempo. Por que você não conversa
com ele, amiga? Abre o jogo e conta sobre suas desconfianças.
— Tudo tem sido tão difícil desde o começo. — A voz de Amanda estava
trêmula, como se quisesse chorar. — Engravidei nova, casamos sem estar
preparados, só Juan trabalhava. O anticoncepcional me fazia mal, ele não
gostava de usar camisinha e fui engravidando. Nós dois simplesmente deixamos
acontecer sem nenhum planejamento, sem pensar nas consequências e
dificuldades. Depois que o caçula nasceu, fiz a laqueadura. Quando completou
dois anos, eu comecei a fazer o curso de secretariado e os meninos me
contrataram. Às vezes eu acho que ele nos vê como um peso, tendo que se matar
de trabalhar para pagar as contas do mês.
— Não vá por esse caminho — discordei. — Você também se mata para
dar conta de tudo. Trabalha dois turnos, cuida da casa e dos filhos praticamente
sozinha. Várias vezes já te ouvi reclamando da falta de ajuda dele com as
crianças, então em nenhum momento se sinta inferior. Você deve ter orgulho da
mulher maravilhosa que é.
Ela usou o guardanapo para enxugar as lágrimas e olhou para o próprio
prato, tentando conter a emoção.
— Mandy, nós, mulheres, sempre recebemos uma pressão social maior.
O negócio é tão estrutural que somos as primeiras a nos cobrar uma perfeição
que é impossível alcançar. Você não fez filho com o dedo, ele é tão responsável
pelas quatro gravidezes quanto você. — Lucy apertou a mão dela por cima da
mesa. — Se assumir muitas responsabilidades fosse motivo para trair, toda
mulher sairia por aí distribuindo chifres. Cada dia uma rola diferente, que
delícia.
Daquela vez não consegui evitar. Cuspi um gole de água na tentativa de
segurar uma risada e nem Amanda conseguiu se manter séria diante da última
frase. De repente, estávamos as três rindo.
Era bom voltar ao trabalho, à rotina. Hoje era o sexto dia pós Bryan-
Calvin e ainda era difícil acreditar em tudo que Luke dissera. Eu tinha calafrios e
náuseas ao relembrar a sordidez do que ele havia feito com a própria irmã e, pior
ainda, a maneira como os pais dele lidaram com a questão, escondendo um
crime tão horrível para não manchar a imagem da família. Que Christopher e
Joana não ousassem tentar uma aproximação com Romeo. E onde quer que
Catherine Campbell estivesse, eu esperava de todo o coração que estivesse bem.
A despeito de como tudo ocorrera, de Kalel ter tomado as providências
para que a guarda de Romeo fosse exclusivamente minha, ainda não estava
tranquila. Enquanto ele vivesse, eu temeria a sua loucura. Em alguns momentos,
desejei que o traficante que ele roubava descobrisse tudo e se vingasse. E nem
conseguia me sentir mal por querer algo tão macabro.
Enquanto Lucy e Amanda continuavam a conversa, vi Luke subir as
escadas tão rápido que nem notou a nossa presença na copa. Pedi licença a elas e
subi atrás dele. Desde que a LTM fechara dois novos trabalhos, eu praticamente
não o via e sentia saudade.
Ao barulho da porta, Luke olhou para trás e sorriu ao me ver. Abriu os
braços fortes para me receber no quentinho do abraço gostoso de urso que só ele
tinha. Encostei o nariz no pescoço perfumado e dei um beijinho no local.
— Parece que não te vejo há séculos — reclamei, a voz soando meio
abafada pela pele dele. Ele riu, aumentando o aperto dos braços ao meu redor.
— Saudades?
— Muita — admiti.
Ele arrastou a barba por fazer na minha testa, beijando o topo da minha
cabeça.
— Sei que tenho andado ocupado. Com o quadro de funcionários
reduzido, a gente precisa se virar para dar conta de tudo.
— Eu sei. Não pense que estou cobrando atenção, só sinto sua falta. —
Subi as mãos por dentro do casaco, alisando as costas musculosas.
Luke se afastou uns centímetros, passou o polegar na minha boca,
provocando um formigamento gostoso na região, e direcionou olhar para onde o
dedo acariciava. Os olhos castanhos escureceram.
— Hoje vou dormir em casa e te mostrar a saudade que eu estou de você
nua, toda gostosa, gemendo meu nome.
Arrepiei-me inteira e a barriga se contraiu. Não transávamos há dois dias
e eu sentia falta das mãos, boca e língua que me levavam à loucura.
— Vou te esperar — respondi baixinho.
Sem aguentar a tensão sexual, fiquei nas pontas dos pés e o beijei. Sua
boca recebeu a minha como sempre fazia, com anseio e urgência. Depois de
Luke, beijar havia ganhado um novo significado. Não era mais um simples
encontro de lábios e línguas. Era como fazer amor com a boca, uma experiência
magnífica.
— Detesto interromper, mas só passei para pegar uns documentos e levá-
los ao banco — disse, a respiração ligeiramente acelerada. — Matt está
segurando as pontas para mim, não posso demorar. — Ele parecia bastante
frustrado, com tanta saudade quanto eu.
Sorri e passei os dedos pelos cabelos um pouco mais compridos que o
normal, adorando a sensação que os fios macios provocavam na minha pele.
— Tudo bem, teremos a noite toda para aproveitar. — Os olhos dele
brilharam em expectativa. — Hoje vou ficar por aqui a tarde e colocar o trabalho
em dia. Com tudo que houve, algumas coisas ainda estão atrasadas. Combinei
com Rebecca que ela pegaria Romeo na creche para mim.
— Você quer ficar com meu carro? — ofereceu.
— Não precisa, vou com Lucy.
— Quando chegarem em casa, manda uma mensagem avisando.
— Pode deixar.
Aquele foi um costume que adquirimos em decorrência da ameaça
provocada por Bryan. Sempre mantínhamos o outro informado sobre o nosso
paradeiro e segurança.
Luke me puxou para mais um beijo demorado, recheado de promessas e,
quando foi embora, comecei a contar os minutos para o nosso encontro.
Estacionei o carro de Lucy em frente à creche e saí apressada do veículo,
preocupada. A professora havia me ligado para avisar que Romeo estava febril e
vomitando. Subi os três baixos degraus até alcançar a porta da casa típica
americana. Os únicos indícios que ali funcionava uma creche eram os bonecos
pintados na parede e a grande quantidade de brinquedos na lateral do imóvel,
onde ficava o parquinho.
A porta entreaberta e a falta de movimentação no local me puseram em
alerta. Pensei em pegar o celular e ligar imediatamente para Luke, mas na pressa
acabei esquecendo a bolsa no carro. Ponderei retornar e alcançar aparelho, mas
Bryan apareceu no longo corredor, a arma em uma mão e Romeo no outro braço.
Paralisada pelo pavor, eu estava diante do meu pior pesadelo.
Quando me viu, Romeo inclinou o corpo em minha direção, abriu os
braços e começou a chorar. Ainda em Reno, ele tinha desenvolvido medo de
Bryan. Devia estar aterrorizado. Respirando fundo para obrigar meu corpo a não
se movimentar e arrancar meu filho dele, desviei o olhar para o homem.
O rosto dele estava muito machucado. O nariz torto, os dois olhos
rodeados por uma intensa coloração arroxeada e arranhões espalhados pela pele.
Luke tinha feito um estrago e tanto. E, naquele momento, só desejei que tivesse
ido até o final.
— Está sozinha? — perguntou, olhando para trás de mim.
— Sim — murmurei em resposta.
— Cadê seu namoradinho? Não está correndo atrás de você feito um
cachorro no cio? — provocou, abrindo um sorriso de escárnio.
O movimento mostrou que a extensão dos ferimentos chegara à boca,
pois faltavam alguns dentes. Nem parecia a mesma pessoa.
— Estou sozinha, Bryan — reafirmei, tentando não vacilar e demonstrar
os meus nervos em frangalhos.
— Que pena. Eu teria adorado meter uma bala no meio da testa do filho
da puta na sua frente.
A ameaça pairou no ar por alguns segundos, enquanto apenas o choro
cada vez mais alto de Romeo preenchia a sala.
— Onde está todo mundo? As professoras e as crianças? — Tentei
ganhar tempo, torcendo para algum milagre acontecer nos próximos minutos.
— Presos em uma sala sem nenhum contato com o mundo externo.
— O que você pretende com isso? — minha voz soou quebrada.
— Recuperar a minha família. Nenhum desgraçado vai chegar achando
que pode roubar o que é meu! Está entendendo, Eveline? — gritou.
Arfei, engolindo em seco. Diferentemente das outras vezes em que vi
uma maldade controlada em sua íris, Bryan parecia um completo desequilibrado.
Ele se assemelhava à Gabriel Carter. Sem nada a perder.
Percebi que precisava dominar o medo e agir com racionalidade, como
havia feito com Gabriel. Na força física eu não venceria, então que fosse na
inteligência.
Romeo se assustou com o grito e balançou o pequeno corpo de maneira
violenta.
— Mamãe!
Vai dar tudo certo. Vai dar tudo certo. Você vai conseguir. Tenha calma e
respire fundo, Eveline. Só respire fundo.
— Posso pegá-lo? — pedi.
— Assim que estivermos no carro, você pode.
Olhei ao redor, sem saída. Sem opções.
— Mamãe! Mamãe! — ele chamou novamente, esgoelando-se.
— Me deixe segurá-lo, Bryan. Sair daqui com uma criança gritando
dessa forma vai chamar uma atenção que você não quer. — Apelei para a razão,
torcendo para haver restado algum resquício dela na mente doentia.
Ele analisou minhas palavras e entortou o pescoço, desconfiado.
— Eu não vou fazer nada que coloque a vida do meu filho em risco e
você sabe disso — reforcei, agoniada com o choro estridente e os chamados por
“mamãe”.
Após um breve aceno de cabeça, passou Romeo para mim. Os braços se
fecharam ao redor do meu pescoço com força, enquanto deitava a cabeça no meu
ombro. Os soluços não pararam imediatamente, mas foram diminuindo ao meu
contato. Fechei os olhos, respirei fundo e beijei os fios castanhos e macios.
Aqui é o seu lugar, meu amor. Mamãe vai fazer tudo dar certo.
— Lembre-se de que estou com uma arma nas suas costas. E vou dar um
jeito de a bala atingir dois corpos se fizer merda — Bryan sussurrou no meu
ouvido, descendo os degraus da casa atrás de mim.
Eu estava rígida, a coluna ereta e as pernas bambas. O mais triste foi não
me surpreender ao vê-lo ameaçar o próprio filho. Bryan chegara ao ponto de
fazer qualquer coisa para conseguir o que queria.
E justamente por isso eu precisava entrar no jogo dele e fazê-lo acreditar
que estava vencendo. No instante em que baixasse a guarda, contudo, eu daria
um jeito de virar o placar.
Quando o visor do celular mostrou o nome de Macey, fiquei esperançoso
de receber uma boa notícia, finalmente.
— Fala, Macey.
— Eu o perdi — anunciou sem preâmbulos.
Não era o que eu esperava ouvir, absolutamente. Coloquei-me em
posição de alerta.
— De que porra você está falando?
— Não sei como aconteceu, chefe. Não tiramos os olhos do sujeito em
momento algum. Mas hoje, ao segui-lo até a farmácia, percebi algo diferente
sobre o seu andar e fingi esbarrar nele para dar uma conferida. Não era Bryan
Allen. O desgraçado conseguiu, de algum jeito, trocar de lugar com alguém.
— Puta que pariu! Como um cara experiente feito você pôde ser
enganado por aquele pau no cu? — Matt apoiou o copo de café na mesa e passou
a prestar atenção na conversa. — Há quanto tempo essa troca foi feita?
— Ele ficou os dois últimos dias em casa, sem sair. Então, há cerca de
quarenta e oito horas, talvez mais.
Dois malditos dias de vantagem.
— Filho da puta! — rosnei e desliguei.
Esperava a notícia da morte do desgraçado. A informação sobre os
desvios de dinheiro já tinha chegado até Track há dias. Por que caralho ele não
tomara uma atitude em relação àquilo?
— Que foi? — Matt perguntou.
— Segura as pontas aqui. Deu merda. Macey perdeu o cara.
O rosto dele endureceu ao compreender o significado daquelas palavras.
— Me dê notícias — pediu, apertando meu ombro.
Enquanto dava partida no carro, disquei o número de Eveline. Chamou
até cair na caixa postal. As outras duas tentativas tiveram o mesmo destino.
Frustrado, liguei para Lucy, colocando a chamada no viva-voz.
— A que devo a honra? — Ela atendeu no quarto toque.
— Eveline está com você?
— Não. Por quê?
— Para onde ela foi? — questionei exasperado.
— Para casa, Luke.
— Casa? Ela me disse que trabalharia os dois turnos hoje. — Pisei no
acelerador.
Lucy pegou algo em minha voz e ficou em silêncio por alguns segundos.
— E ia mesmo, mas a professora ligou e avisou que Romeo estava
passando mal. Ela pediu para eu avisar a minha mãe que não precisaria mais
buscá-lo na creche, emprestei meu carro e saiu apressada.
— Há quanto tempo foi isso?
— Uns quinze minutos depois que você saiu daqui.
Olhei para o relógio de pulso. Há quatro fodidas horas.
— Porra! — Bati a mão no volante com violência, desviando o caminho
para a creche de Romeo. — Depois nos falamos, Lucy. — Encerrei a ligação.
Duas viaturas estavam paradas em frente ao local, bem como vários
automóveis de onde saíam pais com expressões igualmente apreensivas. Aquela
foi a certeza que uma merda das grandes havia acontecido.
Reconheci o carro de Lucy entre os veículos, mas não vi sinais de
Eveline e Romeo. Estacionei e praticamente corri até a confusão.
O filho da puta tinha aprontado alguma coisa. E agora, quaisquer que
fossem as consequências, eu não terceirizaria o serviço. Eu o mataria com as
minhas próprias mãos.
CAPÍTULO 38
O Terceiro Embate

As primeiras três horas de viagem foram feitas em completo silêncio.


Romeo, exausto de tanto chorar, havia adormecido na cadeirinha no banco
traseiro. Eu seguia no carona, ao lado de Bryan, que mantivera a arma apoiada
na perna, o cano virado para mim durante todo o percurso, em uma ameaça
explícita do que faria caso eu não cooperasse.
Eu estava vivendo um complexo conflito interno. Estava de saco cheio de
ser sequestrada. O sentimento de ser levada contra a minha vontade, como se
fosse uma boneca de pano sem vida ou escolhas, me envenenava. A ideia de
voltar a ser privada de tomar minhas próprias decisões não era minimamente
tolerável.
A irritação era tamanha que por pouco não sobrepujava o medo. Uma
estranha letargia tomou conta de mim como se, de repente, eu estivesse
visualizando toda a situação de fora do meu corpo. O que, de certo modo, era
positivo naquele momento, uma vez que me dava oportunidade para pensar
melhor e analisar as possibilidades.
Por ora, eu precisava manter a estratégia colaborativa e ganhar tempo.
A placa de boas-vindas nos recepcionou ao entrarmos em Springfield,
capital do estado de Illinois. Bryan dirigiu até um posto de gasolina deserto e
estacionou próximo à última bomba. Desligou o carro e virou para me olhar,
depois de pegar a sacola que estava aos seus pés.
— Tire a roupa — ordenou.
— O quê?!
— Se me fizer repetir cada frase será exaustivo, Eveline. Tire a porra da
roupa e troque por estas. — Jogou o plástico no meu colo.
Agarrei-o no automático, totalmente chocada.
— Quer que eu faça isso aqui? E se alguém aparecer? — Olhei para os
lados.
— Você está vendo viva alma nos arredores, mulher? — rebateu
impaciente. — Quanto a mim, não precisa se preocupar, nada aí é novidade. —
Soltou um sorriso nojento.
Relembrando a estratégia de colaborar, engoli em seco e, com as mãos
trêmulas, abri a sacola, retirando as peças de dentro dela. Havia um suéter
branco e simples, uma jaqueta caramelo e calças leggings pretas, além do tênis
escuro.
Primeiro tirei as botas de salto baixo. Depois, com dificuldade pela
restrição de espaço e pavor contido pelos olhos irônicos e satisfeitos de Bryan no
meu corpo, consegui trocar a roupa, sentindo-me extremamente humilhada.
— Agora faça o mesmo com o garoto — ele ordenou quando terminei,
jogando uma segunda sacola para mim.
Tirei o cinto e virei para trás, liberando Romeo da cadeirinha e trazendo-
o para meu colo. Ele acordou, esfregou os olhos e começou a chorar baixinho,
como eu já esperava que fizesse ao ser despertado. Mantive o tom de voz calmo
e conversei com ele sobre besteiras enquanto trocava a sua roupa. Assim que
ajeitei a última peça, deitou a cabeça no meu peito, me abraçou e voltou a
dormir.
— Você sempre o mimou demais.
Eu não respondi ou levantei a cabeça, concentrando-me no ser indefeso
que repousava nos meus braços e dependia totalmente de mim para sair ileso
daquilo.
— Guarde as roupas usadas na sacola e coloque o menino de volta no
lugar. — Voltou a falar após o meu silêncio.
À contragosto, obedeci novamente.
— Colar, brincos, relógio, pulseira, anel e as botas também.
Virei o rosto para ele.
— Como?
— Você está surda, porra? Tire tudo que estiver no seu corpo. Rápido,
caralho! — gritou.
Estremeci, torcendo para Romeo não recomeçar a chorar e despertar a ira
daquele homem descontrolado. Mais trêmula do que nunca, senti as esperanças
murcharem drasticamente ao colocar os cabelos para um lado e levar as mãos até
o fecho do colar.
O pingente de âncora brilhou diante dos meus olhos, zombando da minha
esperança de ser salva por ele uma segunda vez.
Lucy havia me entregado o apetrecho após o retorno devastador de Bryan
à minha vida.
— Nos ajudou uma vez, Eve. Vai que dois raios realmente caiam no
mesmo lugar.
Puxei ar para dentro dos pulmões, depositando a peça dentro da sacola
branca e me desfiz de tudo, pulseira, anel, relógio e brincos. Coloquei também as
botas depois de as trocar pelo par de tênis.
Mantendo os olhos úmidos para baixo, entreguei a Bryan.
— Agora continue a ser uma boa menina e coloque isso.
Na terceira sacola jogada em meu colo tinha uma peruca ruiva e uma
caixinha com lentes de contato. Alisei o objeto rapidamente, percebendo que os
fios não pareciam sintéticos. Devia ter custado caro.
— Bryan…
— Coloca essa merda logo, caralho! — interrompeu-me. — Não quero
ficar aqui mais do que o necessário.
Engoli a resposta atravessada e usei o espelho retrovisor para prender
meu cabelo com dois grampos e encaixar a peruca. O tremor nas mãos
dificultava e atrasava a tarefa.
— As lentes de contato agora.
Não tentei questionar, somente as coloquei, observando Bryan também
modificar a cor dos próprios olhos. Depois, voltou a colocar os óculos escuros, o
boné e finalizou colando um pequeno bigode.
Quase não reconheci meu reflexo. O cabelo ruivo e os olhos castanhos
realmente fizeram a diferença. O medo voltou a crescer e abriu larga vantagem
sobre a raiva que ameaçava alcançá-lo.
— Você ficou bem assim. Gostei mais que do loiro.
Eu estou pouco me importando com o que você gosta ou deixa de gostar,
desgraçado!, pensei.
— Obrigada. — Foi o que escolhi responder.
Bryan ligou o carro e deu partida. Parou diante de um grande vaso de
lixo, próximo à saída do estacionamento, e jogou todos os meus pertences fora.
Junto com eles, expulsou a minha esperança de ser rastreada.
— Para onde estamos indo? — questionei, de volta à estrada.
A pergunta foi ignorada por vários minutos e, quando pensei que não
seria respondida, ele anunciou:
— Não deveria contar, mas vou lhe dar um voto de confiança por estar se
comportando bem. Vamos em direção ao México, atravessaremos a fronteira.
Meu coração deu uma cambalhota ao escutar aquilo. Ele queria nos tirar
do país! Fora dos Estados Unidos seria muito mais difícil que alguém nos
encontrasse. Fiquei apavorada.
— Bryan, isso é loucura.
— Não é, não. Tenho tudo planejado, querida, não se preocupe. Um
homem de confiança está nos aguardando na fronteira.
— Se já não fizeram, vão emitir um Amber Alert em breve e a situação se
complicará para o seu lado, Bryan. Por que não vai sozinho? As suas chances
seriam bem maiores. Eu prometo não falar a ninguém para qual direção você
fugiu.
Bryan soltou a arma e colocou a mão na minha, apertando-a. O primeiro
instinto foi me afastar, tamanha repulsa, mas não me mexi, rezando para ele
raciocinar acerca das minhas palavras.
— Quando você vai entender que seu lugar é ao meu lado? Fomos feitos
um para o outro, Eveline. Sei que tivemos contratempos e não me orgulho de
algumas atitudes. Vou mudar, prometo.
Aquela promessa já fora feita inúmeras vezes. E eu havia cometido o erro
de acreditar na primeira delas. Nada o mudaria. Bryan intercalaria fases mais ou
menos violentas, mas sempre seria um homem abusivo.
— Vamos ser felizes. Eu, você e o garoto — anunciou. Os dentes
faltando tornaram o sorriso macabro e pavoroso.
Fechei os olhos e respirei fundo, buscando a única imagem que me daria
forças para seguir em frente sem esmorecer. Romeu, Lola, Luke e eu. Juntos.
A nossa família.

Não saberia dizer há quanto tempo estávamos viajando. Bryan parara


duas vezes para usarmos o banheiro, ambas em postos de gasolina no meio da
estrada. Havia ordenado que colocasse um boné em Romeo e cobrisse o rosto
dele. Antes de me deixar entrar, vasculhara o local para se certificar que estava
vazio e esperara do lado de fora como uma sentinela, a arma escondida no bolso
do grande casaco.
No banco de trás tinha bolacha recheada, salgadinhos, achocolatado e
água. Romeo comeu, mas fui incapaz de ingerir qualquer alimento sólido, o
enorme bolo na garganta não permitia. Limitei-me a tomar água.
Tentei, com todas as minhas forças, permanecer acordada o tempo todo.
Todo o cansaço físico e emocional, porém, cobrou seu preço e dei algumas
cochiladas. Recordava de termos passado por Jefferson City, Missouri.
Mas aquilo ocorrera há horas.
Meu corpo inteiro doía. O pescoço estava me matando, provavelmente
por ter dormido de mau jeito. Era início da madrugada e eu chutava que
estivéssemos indo para dez horas na estrada praticamente sem parar. Cada
quilômetro percorrido aumentava o desespero.
Romeo acordou chorando. Olhei para ele, que coçava os olhos com as
duas mãos, o corpo se movimentando de um lado a outro, agoniado por ficar na
mesma posição por muito tempo. Se eu me sentia acabada, o coitadinho deveria
estar muito pior.
— Ele vai começar a chorar agora? — a voz impaciente de Bryan
perguntou, depois de tomar sua quarta ou quinta latinha de energético.
— Ele só tem três anos. Está cansado e com o corpo dolorido por ficar
tanto tempo parado.
— Dê um jeito de fazê-lo calar a boca!
— Não posso fazer milagres! — rebati, irritada. — Eu também estou
exausta, toda dolorida! Não podemos parar um pouco?
— Fora de cogitação.
— Mamãe. — Romeo chorou mais alto.
Virei para trás no exato momento em que ele vomitou, sujando roupa,
cadeirinha e o banco do carro.
— Porra! — Bryan reclamou.
— Eu avisei! — Perdi as estribeiras e alterei o tom de voz, pouco me
importando se aquilo o irritaria. — Ele é uma criança! Nas últimas horas só
comeu porcaria e ficou enclausurado nesse carro abafado! Pare essa merda em
algum lugar, Bryan. Já estou cansada de falar que não vou fazer nada que
coloque a vida dele em risco!
Surpreendentemente, Bryan ouviu meu desabafo em silêncio. Olhou-me
por alguns segundos e, depois de conferir o horário no relógio de pulso, assentiu.
— Muito bem. Estamos com tempo para uma pausa rápida. Não vou
conseguir dirigir com esse cheiro de vômito. Mas é bom cumprir com a sua
palavra e não tentar nenhuma besteira, Eveline.
Minutos depois, descemos em um hotel na beira da estrada de Oklahoma,
conforme a placa indicava, o Confort Inn. O estado descuidado da fachada e o
letreiro quase despencando não combinava em nada com o nome. Mas conforto
não estava na minha lista de prioridades, talvez fosse a minha única chance de
reverter a situação.
O homem idoso, fumando atrás do balcão da recepção, todavia, mal tirou
os olhos da pequena tevê à sua frente quando disse o preço do quarto com a voz
monótona, frustrando meu plano de tentar passar alguma mensagem a ele
disfarçadamente. O cômodo era simples e malcuidado como o resto do lugar.
Uma cama de solteiro e outra de casal ocupavam cantos opostos, uma cômoda
simples e com algumas lascas na madeira davam suporte a uma televisão antiga
e uma porta abrigava o pequeno banheiro.
Bryan trancou a porta da frente e colocou a chave no bolso da calça.
Depositou as sacolas em cima da cômoda, tirou um pequeno embrulho de uma
delas e estendeu para mim.
— Remédio para enjoo. Pode ser tomado por crianças, então dê ao garoto
e se certifique que ele não vomite mais na porra do carro. Vou usar o banheiro,
mas estarei atento — ameaçou.
Segurando o remédio, coloquei Romeo na cama de solteiro e passei a
tirar as roupas sujas e malcheirosas. Bryan havia deixado a porta do banheiro
entreaberta, de modo que eu pude ouvir a zoada da urina atingindo o vaso.
Uma ideia perpassou a minha cabeça, acelerando os batimentos
cardíacos.
Olhei para Romeo e pus o dedo indicador na frente da boca, pedindo
silêncio. Ele obedeceu. Virei de costas para o banheiro, de maneira que se ele
olhasse, pareceria que eu estava pegando alguma coisa dentro das sacolas. Em
seguida, retirei dois comprimidos, os depositei na superfície de madeira e usei a
unha para esfarelá-los. Não peguei o terceiro para não levantar suspeita, caso
Bryan decidisse conferir a cartela. Joguei o pó dentro da garrafa do energético
dele, que estava ao lado da tevê, e chacoalhei para que se misturasse ao líquido.
Aquele remédio para enjoo costumava causar sono em algumas pessoas
— eu era uma delas —, e talvez fizesse o mesmo efeito em Bryan. Se ele
dormisse, eu teria a chance de escapar e pedir ajuda.
Com o coração martelando no peito, voltei à atenção ao meu filho. Ouvi
o barulho da descarga e, quando o banheiro foi desocupado, avisei que daria um
banho em Romeo. Aproveitei para lavar meu próprio corpo, rezando para o
plano improvisado funcionar.
Encontrei Bryan na cama, uma mão atrás da cabeça e a outra segurando o
energético, enquanto assistia tevê. Quase gritei de euforia ao vê-lo ingerir vários
goles da bebida. Deitei com Romeo até fazê-lo pegar no sono.
— O garoto já dormiu, você pode se deitar aqui comigo.
Senti o gosto da bile na boca, tudo em mim gritando para não ir. Mas
contestar Bryan, especialmente naquelas circunstâncias, não era uma escolha
inteligente. Não quando havia uma real possibilidade de fuga. Rígida, levantei e
caminhei até a cama de casal, deitando na borda do colchão para colocar o
máximo de distância entre nós dois.
Ouvi sua risada sarcástica e a ignorei. Permaneci deitada de costas para
ele, os olhos fechados, fingindo que tentava dormir.
Os primeiros minutos foram tranquilos, o silêncio cortado apenas pelo
barulho das vozes na tevê e as batidas do meu coração. Eu jurava que podia
ouvi-las. E, por mais que estivesse exausta, a mente em alerta total e a forte
adrenalina que me percorria me mantiveram muito desperta.
Quando a respiração de Bryan ficou mais pesada, girei o tronco
sutilmente e o vi cochilando. A lata apoiada na barriga pendia para um lado e a
arma estava envolta por uma mão frouxa.
Romeo dormia tranquilamente à direita, o rosto virado para a parede.
Lentamente, sentei. Esperei uns segundos para ver se haveria alguma
reação, mas só o casal do filme discutia fervorosamente. Tensa e rígida, levantei
e dei a volta na cama, ficando de frente para a arma. Precisava pegá-la. Seria
mais fácil tomá-la da mão relaxada sem o acordar do que enfiar minha mão no
bolso da calça jeans apertada em busca da chave do quarto.
Acerquei-me, prendendo a respiração, e estiquei a mão trêmula até o
revólver. Puxei alguns centímetros e Bryan se movimentou. Estaquei no lugar,
estática. Ele resmungou alguma coisa e voltou a dormir.
Dei continuidade à tarefa, afastando a pistola dele milímetro a milímetro,
suando de nervoso. Prestes a alcançar o objetivo, dois olhos abriram-se
repentinamente.
— Que porra você está faze…?
Antes que Bryan completasse a frase, segurei o cabo com firmeza e
puxei-o na minha direção. Ele recuperou-se da surpresa e fechou a mão grande
no meu pulso, esmagando-o no processo. Contive um grito de dor e usei todas as
minhas forças para não deixar que ele a recuperasse. Consideravelmente mais
lento por causa dos remédios, não conseguiu me conter por muito tempo. Meu
pulso foi solto e a arma voou, caindo aos pés da cama que Romeo ocupava.
Movida pelo desespero, lancei o corpo na direção dela. Dois braços
rodearam a minha cintura por trás e eu reagi.
Afastei as pernas, agachei e girei o quadril com agilidade até ficar de
frente para Bryan. Sem lhe dar tempo de reação, a minha canela atingiu o meio
das suas pernas com brutalidade. Ele levou as mãos ao local, gemendo
ruidosamente. Depois, caiu.
Segurei o revólver e o apontei diretamente para o peito dele enquanto
levantava do chão.
— Não se mexa — avisei, dando dois passos para trás.
Romeo acordara com o barulho.
— Fique em pé na cama e caminhe até a mamãe com cuidado, Romeo —
orientei, sem tirar os olhos do crápula se contorcendo no chão.
Romeo fez o que pedi. Passei o braço em sua cintura e o ergui, apoiando-
o na lateral do meu corpo, uma perna em cada lado.
— Sua vadia! — Bryan gritou.
— Pegue o seu celular.
— O… quê?
— Pegue a porra do celular! — Aumentei a voz.
— Largue essa arma, Eveline. Nós dois sabemos que você não vai atirar.
O revólver fez um click ao ser destravado. Os olhos dele se arregalaram
um pouco, analisando-me com desconfiança.
— Pegue. O. Caralho. Do. Celular. Agora!
De má vontade, ficou de joelhos, tirou o aparelho de dentro do bolso da
calça e o estendeu na minha direção. Neguei com a cabeça.
— Disque 911 e coloque no viva-voz.
— Que porra é essa, Eveline? — Aparentemente recuperado, levantou e
deu um passo para frente.
Desviei a arma alguns centímetros e atirei. O estrondo machucou meus
ouvidos e a bala passou raspando o lado direito da sua cabeça. Romeo gritou,
escondendo o rosto no meu pescoço. Os olhos de Bryan ameaçaram sair de
órbita.
— 911 — repeti.
— Sua vadia! — vociferou novamente a ofensa, vermelho de ódio.
— Isso! Eu sou a vadia que vai meter uma bala no meio da sua testa se
não fizer o que estou mandando!
— É mesmo? — debochou, os olhos me fulminando. — E depois? Como
a santa Eveline irá conviver com a culpa de ter tirado uma vida?
— Talvez não tenha se dado conta disso, Bryan, mas eu não sou a mesma
mulher que você conheceu. Se acredita, por um momento, que eu não atiraria em
você depois de saber o que fez com a própria a irmã e de ter ameaçado atirar no
meu filho, vai ter uma bela surpresa. A sua morte seria um favor ao mundo e
remorso seria meu último sentimento — declarei com frieza, apesar de estar com
a mão trêmula.
Ele parecia me investigar, inseguro sobre aceitar ou não a minha
declaração. Bryan ainda confiava demais nele próprio e duvidava de mais de
mim.
Quando não fez menção de fazer a ligação, abaixei a pistola e o próximo
tiro pegou na perna dele, à altura da coxa. O grito esganiçado se juntou ao de
Romeo, que não parava de chorar, assustado. O sangue escorreu de forma
instantânea e Bryan levou a mão até o local, caindo de joelhos uma vez mais.
— Agora você acredita em mim?! — gritei. — A terceira bala que sair
desta arma vai acertar a sua cabeça! Disque 911!
Chorando e me xingando dos piores nomes existentes, ele finalmente
obedeceu. A voz do atendente preencheu o ambiente.
— Aqui é Eveline Perry. Estou com meu filho de três anos, Romeo
Allen, em um hotel no estado de Oklahoma. Não sei o endereço, mas o nome do
hotel é Confort Inn. Meu ex-companheiro, Bryan Allen, nos sequestrou em
Naperville, Illinois, pouco depois do meio dia. Estou com uma arma de fogo na
mão e precisei dar um tiro em sua perna para contê-lo.
Calmamente, a voz respondeu:
— Fique calma, senhorita Perry. Uma unidade está a caminho.
CAPÍTULO 39
Casa

Avistei-os assim que cheguei à delegacia. O vidro transparente me


permitia ver o cabelo loiro de Eveline, sentada de perfil para onde eu estava,
conversando com uma policial. Em seu colo, envolto em um grosso cobertor,
Romeo estava quieto, a cabeça apoiada no peito dela.
Respirei aliviado pela primeira vez nas últimas quinze horas infernais.
Bati na porta e entrei sem esperar resposta, agoniado para tocá-los. Ela se
levantou, encurtando a distância entre nós. Antes que pudesse me aproximar da
minha mulher, porém Romeo estendeu os braços na minha direção.
— Úki.
Peguei-o no colo, os pequenos braços rodeando meu pescoço. Fechei os
olhos, trêmulo de uma emoção até então nunca sentida. Ele apoiou a cabeça no
meu ombro e eu levei uma mão aos cabelos castanhos, apertando o rosto infantil
contra mim. Quase chorei.
Eveline, por outro lado, não conteve a emoção. Puxei-a para mim, de
modo que tive os dois em um abraço triplo. Só então fiquei em paz.
— Vocês estão bem? — sussurrei no seu ouvido, a voz meio embargada.
Ela assentiu, o queixo trêmulo e os olhos azuis cheios de lágrimas.
Trocamos um rápido beijo.
— Tive tanto medo, linda — confessei e os braços dela me apertaram
mais forte.
— Acabou. Graças a Deus acabou.
— Vamos sair daqui? — sugeri, colando os lábios na testa dela.
— Por favor.
Depois de me certificar que todos os trâmites legais haviam sido
cumpridos, pegamos um táxi e fomos para um hotel descansar durante o resto do
dia. Na manhã seguinte voltaríamos para casa.
O detetive informara que Calvin-Bryan fora preso em flagrante pelo
sequestro de Eveline e Romeo e, somado aos testemunhos das professoras que
foram ameaçadas, amarradas e amordaçadas na creche, além dos pais das
crianças que ficaram presas em uma sala por horas, a situação dele não era
favorável. O tiro que Eveline dera na perna do filho da puta se enquadrava
perfeitamente na conduta de legítima defesa.
Fizemos o check-in e subimos para o quarto. O cômodo era amplo,
elegante e confortável, com duas camas de casal, aquecedor e ar condicionado,
tevê de LED, armários grandes e um frigobar abastecido.
— Aqui tem roupas e itens de higiene pessoal que Lucy e dona Rebecca
arrumaram para vocês. — Depositei a pequena mala em uma das camas.
Romeo seguia no meu colo, sem querer se afastar mais que poucos
centímetros. Eveline se aproximou, abraçando-me por trás.
— Está perfeito. Você fica com ele enquanto eu tomo banho? Realmente
preciso tirar essa sujeira do corpo — perguntou, os olhos tristes e abatidos.
— Vai tranquila.
Ela beijou Romeo e sumiu no banheiro. Peguei o controle da enorme
televisão e busquei um canal infantil que estivesse passando desenho animado
ou algo que prendesse a atenção dele.
— Quer assistir Hey Duggee? — ofereci, lembrando que ele era fissurado
no cachorro marrom que comandava um clube de brincadeiras ou qualquer
merda do tipo.
Com o dedo polegar na boca, ele concordou. Ajeitei o travesseiro e
apoiei as costas na cabeceira. Eu sentia pura tensão emanar do menino de três
anos. Uma tensão que nunca havia percebido antes e aquilo doeu o coração. A
criança tinha passado por mais coisas nos seus curtos anos do que a maioria das
pessoas passava em uma vida inteira.
Escorreguei, deitando na cama, e trouxe Romeo para apoiar a cabeça no
meu peito. Os olhos brilhantes encaravam a tevê, mas não mostravam a
animação habitual. Achei-o quieto demais, quase retraído.
As vozes melodiosas do desenho animado, misturadas ao cansaço das
últimas semanas, me fizeram cochilar. Acordei com as mãos frias de Eveline no
meu rosto.
— O que foi? — inquiri, notando os olhos rasos d’água.
— Nada, bobagem minha. Fiquei emocionada vendo vocês dois
dormindo juntinhos, abraçados. Depois de tudo, ver Romeo depositar confiança
em você é muito importante para mim. Obrigada por ser esse homem tão
maravilhoso.
A garganta travou ao escutar aquelas palavras. Cheguei para o lado,
abrindo espaço na enorme cama.
— Vem, deita aqui com a gente.
Puxando uma parte do edredom, ela se acomodou debaixo dele.
— Você não precisa agradecer — esclareci. — Eu amo o seu filho. E me
sinto honrado por ser digno da confiança dele.
— E eu te amo ainda mais por isso.
Nossos olhares conversaram por alguns segundos, mergulhados um no
outro. Inclinei a cabeça para o lado e capturei seus lábios com os meus, iniciando
um beijo lento, gostoso, molhado e apaixonado. Eu ficaria horas degustando o
sabor delicioso da boca dela.
— Você quer ouvir o que aconteceu?
— Só se você quiser contar. Se não estiver pronta, fica para depois.
— Honestamente, eu quero. Preciso falar em voz alta para alguém que
não seja um detetive de polícia desconhecido. Porque eu ainda acho que foi tudo
um pesadelo, sabe? Dos piores.
— Então fale, amor. — Apertei a mão dela, encorajando-a a desabafar.
Em uma entonação baixa e constante, ela reviveu a história em detalhes,
desde a sua chegada à creche até a ligação para a polícia. Pensei no que poderia
ter feito diferente para evitar aquilo, sentindo a conhecida pontada de culpa
crescer.
Antes de ir para casa, quando saí do quarto de hotel de Bryan, havia
colocado Macey e Diego para vigiarem o filho da puta vinte e quatro horas por
dia, alternadamente. Também me assegurei de que a informações sobre o desvio
substancial de dinheiro chegasse à Track.
Como o desgraçado tinha conseguido despistar homens treinados e por
que Track não fizera o que deveria fazer eram enigmas para mim.
— Estou uma bagunça emocional — revelei quando ela finalizou. —
Puto pelo que passaram. Desejando matar aquele infeliz por ter tido a ousadia de
chegar perto de vocês outra vez. Orgulhoso de você. Nunca duvidei da sua força,
Eveline. Espero que você não volte a duvidar também.
— Não vou, prometo.
— Quando estivermos precisando de reforços nos trabalhos de campo da
LTM, você será a primeira opção — brinquei, tentando aliviar um pouco o clima.
E deu certo. Eveline riu, o som descontraído melhorando o meu humor.
— Ele está num sono profundo — comentou, olhando Romeo
adormecido no meu peito. — Vou colocá-lo na outra cama.
Segurei o seu braço, mantendo-a no lugar.
— Não precisa, deixe-o aqui. Ele está assustado.
Embora apenas a luz do abajur iluminasse o quarto, vi o instante em que
a expressão dela murchou.
— Estou tentando não focar em como essa situação toda vai afetá-lo.
Sinto-me o maior fracasso por não ter impedido o meu filho de passar por isso,
Luke.
— Essa culpa não é sua, é dele, então não a carregue. Você foi
maravilhosa e fez o que era necessário para garantir a segurança dos dois. Foque
nisso.
— Audrey, a policial que estava conversando comigo quando você
chegou, me aconselhou a levar Romeo para fazer terapia.
— Eu acho uma excelente ideia. Talvez você deva considerar ir também.
Não seria bom ter alguém para a ajudar a lidar com os anos de abusos e a
aconselhar sobre como agir diante de possíveis traumas dele?
Eveline ficou quieta, parecendo pensar sobre as minhas palavras.
— Você vai ser um pai maravilhoso — murmurou.
A sentença caiu sobre mim como um meteoro. A ideia de ser pai nunca
passara pela minha cabeça. Quando pensei em uma criança com ela, no entanto,
uma espécie de euforia me abarcou, um desejo que eu nem sabia possuir
fincando raízes e ameaçando expandir.
— Desculpa! — Apressou-se a dizer. — É cedo demais para esse tipo de
conversa. Não quis sugerir que…
Antes que ela pudesse continuar tagarelando — coisa que sempre fazia
quando estava nervosa —, a fiz se calar com um beijo.
— Seria uma honra ser o pai dos seus filhos.
— Sério? Não está falando isso para não ferir os meus sentimentos? Às
vezes eu sou pior que Lucy e não penso até que as palavras já tenham saído da
minha boca.
Eu dei risada.
— Por mais que a ame, jamais falaria algo do tipo só para agradar.
Eveline ficou parada, encarando-me. Inclinou o corpo, de modo que o
braço rodeou a minha barriga e o rosto parou a centímetros do meu. A próxima
coisa que senti foi seu beijo cheio de amor, misturando às lágrimas que caíram
diretamente na minha pele.

Entrei no banheiro movido pelo barulho do chuveiro, recebendo


instantaneamente o vapor que a água quente produzia. O corpo feminino estava
de costas para mim, parcialmente escondido pelo vidro do box embaçado. Ainda
assim, vi os cabelos molhados, a cintura fina, o quadril largo e a bunda que
acabava com o meu controle.
Tirei as roupas e as joguei no chão de qualquer jeito, meu pau mais
acordado que eu naquele início de manhã.
Passei os braços ao redor da cintura dela, apoiando o queixo em sua
cabeça. Eveline riu, a mão deslizando por cima das minhas e subindo até meu
rosto, onde ela fez uma carícia.
— Bom dia, amor — a voz delicada cumprimentou.
— Está ficando bom agora — sussurrei, afastando os fios encharcados
para o lado, beijando a pele alva do pescoço delgado. — Foi uma tortura dormir
na mesma cama que você sem poder te tocar como eu queria.
Ela soltou um baixo gemido, principalmente quando arrastei a língua por
todo o comprimento do pescoço até o início das costas.
— E que melhor lugar para matar a saudade desse corpo gostoso do que
em um banheiro? — Mordi o lóbulo da orelha.
Eveline sorriu em meio a uma série de arrepios e virou de frente,
presenteando-me com a bela visão dos peitos tentadores. Passei a mão por eles,
encantado em ver como os mamilos endureciam ao meu toque.
Desliguei o chuveiro e encostei Eveline na parede. Abaixei para pincelar
a ponta da língua em um mamilo. Ela respirou fundo, a mão subindo para minha
nuca, as unhas arranhando o couro cabeludo. Mantive a carícia suave, quase sem
tocar sua pele, torturando-a. Ao final de alguns segundos, meu rosto já era
puxado para mais perto, enquanto ela se impacientava com a minha lentidão.
Sorri embevecido e dei o que ela pedia. Chupei o peito com vontade,
mamando firme e forte, usando a pressão que ela gostava. Migrei para o outro,
repetindo o processo, alternando mordidas nos montículos, percebendo como
eles ficavam vermelhos e inchados pelos meus chupões.
Os gemidinhos dengosos só serviam para me deixar maluco. Subi a boca
pelo pescoço, lambi, mordi, suguei enquanto segurava seus cabelos para que ela
não movesse a cabeça. A boca deleitável foi a minha última parada.
Repeti o processo que fiz nos seios, provocando os lábios macios com a
ponta da língua, contornando todo o formato deles. Eveline tentou me beijar,
mas me afastei, fazendo um gesto negativo com a cabeça.
— Luke…
— Shh, fica quietinha.
Voltei à boca desejosa, esfregando meu pau em sua barriga, e dei várias
mordidinhas doloridas na carne inchada.
— Me beija! — A voz rouca tinha um tom impaciente.
Gargalhei, aumentando o aperto nos cabelos, sem fazer o que ela queria.
Desci a mão para o queixo e o ergui, de forma que tive toda a região do pescoço
disponível. Mergulhei lá outra vez mais, usando língua e boca para beijá-la.
Eveline tremeu, gemeu e se arrepiou, rebolando o quadril em mim,
excitada. Afastei-me um pouco para perguntar:
— Você consegue ficar quietinha enquanto eu fodo essa boceta gostosa?
Ela fechou os olhos, jogando a cabeça para trás. Quando voltou a abri-
los, o azul estava mais escuro, uma miríade de sentimentos e sensações.
— Acho que não.
— Então vou precisar tapar a sua boca? Não quero que acorde Romeo
com gritos escandalosos.
— Ei! Eu não…
Sem deixá-la terminar, levantei sua perna direita, abaixei o quadril,
encaixando meu pau na boceta, e meti de uma vez. Só então a beijei na boca.
Engoli o alto e descontrolado gemido de Eveline, soltando o meu próprio
na língua dela. Meu pau entrava apertado, deslizando entre a carne macia e
pegando fogo, ao mesmo tempo que minha língua invadia os lábios dela.
Sintonia perfeita.
Apertei sua cintura, mantendo-a paradinha para que minhas estocadas
fossem profundas e contínuas. As unhas afiadas arranharam o meu braço,
deixando o local ardido, mas estava pouco me fodendo. Ela podia me tirar
sangue e eu aceitaria feliz a recompensa.
Aumentei a velocidade do quadril, arrepios espalhando-se pelo meu
corpo enquanto uma mão subia para esmagar os seios. O desejo de tocar todas as
partes de Eveline ao mesmo tempo era forte pra caralho. Perto de gozar, saí dela,
abaixando sua perna trêmula, e continuei beijando-a, minha boca castigando a
sua sem trégua. Depois, a virei de costas e puxei o quadril para trás.
— As posições onde eu vejo sua bunda enquanto te como são as minhas
favoritas. — Desci um rápido e ardido tapa em um dos globos. — Qualquer dia
desses vou te comer aqui. — Levei um dedo ao pequeno buraco e ela se retraiu
inteira.
— Luke…
— Não hoje. Preciso te preparar com calma para isso e agora nós dois
estamos precisando de um alívio rápido.
Beijei o pescoço, mordi o lóbulo da orelha mais uma vez e deixei minha
mão vagar do quadril para a barriga. De lá, fui descendo lentamente até alcançar
a boceta melada. Encontrei o clítoris e passei a movimentar o dedo em
movimentos circulares, aproveitando sua própria lubrificação para facilitar a
tarefa.
Voltei a penetrá-la, aquela posição permitindo-me ir até o talo. Eveline
não conseguiu se controlar e gemeu alto, como eu previa. Normalmente, a
entrega total dela me deixava mais aceso. No momento, contudo, seus gritos
poderiam ser um empecilho. Se Romeo acordasse…
Inclinei o tronco para frente, o peito colado às costas dela e tapei sua
boca com uma mão, enquanto a outra continuava a masturbá-la e meu quadril era
impulsionado para frente cada vez mais rápido, a vontade de gozar quase me
vencendo. Gemi baixo, a boca encostada em seus cabelos, os dentes dela
arranhando a palma da minha mão, tentando me morder.
Desferi outro tapa forte na bunda, os arrepios na coluna alertando que o
gozo era iminente. Dei uma última estocada e esporrei gostoso na bocetinha
apertada. Retomei os movimentos em seguida, aumentando a pressão do dedo
até Eveline se retesar e se perder no orgasmo potente, as paredes fervendo
estrangulando meu pau, prolongando meu orgasmo de forma deliciosa.
Os olhos azuis, agora preguiçosos, encontraram os meus e recebi um
lindo sorriso dos lábios vermelhos. Sorri de volta, abraçando-a e beijando-a mais
controladamente agora que nossos corpos estavam saciados.
— Estava com saudade disso — confidenciou, apoiando o rosto no meu
peito.
— Eu também, minha linda.
Tomamos banho juntos com calma, tirando proveito da atividade
clandestina que Romeo felizmente não interrompera.
Secos e trajando roupas limpas, começamos a arrumar as coisas para
irmos ao aeroporto. Nosso voo sairia em duas horas.
— Pronta para voltar para casa? — perguntei.
— Nunca estive tão pronta na vida.
CAPÍTULO 40
Eu Estarei Lá

O voo de duas horas transcorreu de forma tranquila, sem nenhum


contratempo. Desembarcamos no Midway, Chicago, e encontramos Ty de pé na
saída da sala de desembarque, apoiado na parede, esperando-nos. Ele abriu um
pequeno sorriso ao nos ver e aproximou-se a passos largos, mancando quase
imperceptivelmente. Os braços fortes me apertaram em um caloroso abraço, que
eu retribuí com carinho.
— Não precisa abraçar minha mulher desse jeito — Luke resmungou
logo às minhas costas.
Ignorei o tom ciumento e dei risada. Quando nos afastamos, os olhos
azuis escuros me encararam com escancarado alívio.
— Já chega de nos dar sustos, hein? — Apertou meus ombros.
— Concordo completamente. Já vivi a minha cota de situações perigosas,
estou pronta para a aposentadoria — brinquei.
Ty virou-se para Luke, bagunçou o cabelo de Romeo no colo dele e
cumprimentou o amigo com um aperto de mão.
— E aí, deu tudo certo?
Luke assentiu e eu notei a troca de olhares entre os dois, como se
estivessem se comunicando sem palavras. Seja lá o que fosse aquilo, Ty pareceu
concordar, satisfeito.
Quase alcançando as portas de saída que levavam ao estacionamento, Ty
enrijeceu ao meu lado, mudou de direção e, em segundos, desapareceu entre os
transeuntes. Parei de andar, sem entender nada, levantando nas pontas dos pés
para procurá-lo. Minutos depois, ele voltou lívido, o rosto contorcido em tensão.
Olhei para Luke, que deu de ombros e negou com a cabeça, aparentemente tão
confuso quanto eu.
— Está tudo bem? — perguntei. — Você parece ter visto um fantasma.
— Quase isso. — Foi a única coisa que ele revelou.
Alcançamos o estacionamento e entramos no carro em silêncio. Sentei no
banco traseiro com Romeo, enquanto Luke foi na frente, no carona. Apoiei a
cabeça no estofado macio, respirando fundo, sentindo o cansaço me pegar.
Queria a minha casa, meu quarto, minha cama, descansar por várias horas
seguidas sem me preocupar com nada. Não havia conseguido dormir muito bem
na noite anterior, nem sequer cochilado no avião.
— Vamos fazer uma parada rápida aqui — Luke esclareceu, trazendo-me
de volta ao presente.
Confusa, olhei através do vidro do carro e vi a fachada da casa de
Rebecca. Estava tão distraída que nem percebi a mudança de trajeto. Apesar de
bastante cansada, não havia possibilidade de negar aquela visita. Sabia como
minha sogra se importava comigo e Romeo, devia estar apavorada com toda a
situação.
Tirei Romeo da cadeirinha e segui Luke, que abriu a porta da casa. No
cômodo espaçoso, havia mais pessoas que eu esperava. No entanto, meus olhos
foram atraídos para uma delas em especial.
Miranda.
A princípio, minhas pernas não responderam, os pés pareciam colados ao
chão. Em seguida, nós duas começamos a andar ao mesmo tempo, de forma que
nos encontramos no meio do caminho.
— Não acredito! — exclamei, esmagando Romeo entre nossos corpos.
— Não acredito! Não acredito! — repeti feito uma idiota.
— Pode acreditar, vadia! — Pulávamos de maneira descontrolada,
agarradas uma à outra como adolescentes histéricas. — Eu estava morrendo de
saudade!
Nem tentei segurar a emoção, derramei lágrimas de alegria e saudade.
Ela se afastou um pouco, apenas o suficiente para me olhar.
— Vocês estão bem?
Assenti, mordendo a boca, incapaz de pronunciar qualquer coisa de
forma coerente.
— Dinda! — Romeo esticou os braços para ela, que o recebeu de bom
grado.
— Amor, como você cresceu! Sua mãe está temperando sua comida com
fermento?
— Não — ele respondeu, rindo.
— Eu acho que está sim. — Distribuiu vários beijos estalados nas
bochechas dele, arrancando gargalhadas infantis. — A dinda trouxe tanto
presente para você que Eveline vai precisar de um quarto só para guardá-los.
A informação pareceu despertar o interesse dele.
— Oba! Cainhos? — indagou, esperançoso.
— Carrinhos e mais um montão de coisa legal!
Naquele momento amei Miranda ainda mais por fazê-lo rir e espantar a
tristeza que tomava seu rosto desde o dia anterior. Lola, sentindo-se
negligenciada, soltou uma profusão de latidos escandalosos que perduraram até
Romeo descer para abraçá-la.
Limpando discretamente as lágrimas, olhei ao redor, percebendo as
outras pessoas. Caminhei primeiro até Rebecca, recebendo o abraço acolhedor,
ouvindo as palavras reconfortantes e agradecendo por cada uma delas. Depois
foi a vez de Amanda me abraçar e demonstrar felicidade por tudo haver
terminado bem. Em seguida, parei em frente a Lucy, que mordia o lábio para
conter o tremor do queixo. Certamente o ocorrido tinha despertado recordações
ruins de meses atrás, quando éramos nós duas à mercê de outro homem
desequilibrado. Rodeei-a com os braços.
— Você deveria ter subido a arma e acertado as bolas do filho da puta —
sussurrou em meu ouvido no meio do abraço, arrancando-me uma risada alta.
— Na hora não me ocorreu — respondi depois de nos afastarmos. —
Mas era realmente uma ideia excelente.
— Sinto muito que o colar não tenha ajudado dessa vez.
— Eu também. Mas o importante é que escapamos a tempo. Só quero
enterrar esse passado e viver em paz. — Apertei sua mão.
Matt foi o último a me cumprimentar. De todos, ele era com quem eu
tinha menos intimidade, mas não duvidei por um segundo sequer que ele não
fosse capaz de qualquer coisa para nos ajudar. A sua amizade com Luke era forte
demais para ser diferente. A pessoa que fosse importante para um,
automaticamente se tornava para o outro também.
Luke se aproximou cheio de sorrisos e ganhou um tapa no braço.
— Você não me falou nada, né? — acusei.
— Era surpresa, linda — defendeu-se, puxando-me para um abraço e um
rápido beijo. — Gostou?
— Eu amei! Miranda era a única pessoa que faltava para eu me sentir
completa. Obrigada!
Almoçamos todos na casa de Rebecca. A mesa, como de costume, estava
repleta de opções deliciosas para todos os gostos. Luke não exagerara sobre a
mãe cozinhar quando se sentia nervosa. Parecia que receberíamos uma enorme
comitiva.
Amanda, Lucy, Miranda e eu conversávamos na mesa, aproveitando as
bebidas quentes para espantar o frio.
— Ainda não consigo acreditar que você está mesmo aqui! — falei,
enroscando o braço de Miranda ao meu. — Como isso aconteceu?
— Graças ao seu namorado — frisou a palavra, arqueando uma
sobrancelha sugestivamente. — Ele me ligou, contou o que havia acontecido e
me convidou para vir passar uns dias com você. Não que ele precisasse fazer
isso, né, meu amor? Eu viria de qualquer jeito, mas achei bonitinho da parte
dele. A propósito, você está de parabéns! Que homem! — Ela olhou os três
sentados no sofá, assistindo uma partida de… Alguma coisa. — Corrigindo, esta
cidade está de parabéns! Desde que pisei os pés aqui só me deparei com homem
gostoso. Luke tem cara de ter uma pegada que só Jesus na causa, mas como
namorado de amiga minha para mim é mulher, não vou pensar nisso. O moreno
tem um ar misterioso, charmoso, todo sério. Mas, honestamente, o loiro foi o que
mais me chamou atenção.
Imediatamente meus olhos procuraram Lucy, que franziu a testa e
engasgou com um gole do chocolate quente que tomava. Ela e Miranda não
gostaram muito uma da outra, pude notar.
— Que olhos são aqueles? Parecem o céu em dias ensolarados. E a boca
bem-feita? O jeito que o homem anda, misericórdia! — Miranda continuou suas
considerações, dando risada e abanando-se com as mãos.
Lucy estreitou os olhos, depositando a caneca na mesa com uma força
desnecessária. Ela podia repetir que não queria mais nada com ele e estar saindo
com outro, mas estava longe de ficar indiferente a uma mulher tecendo aquele
tipo de comentário sobre o homem.
— Ele é lindo mesmo — Amanda concordou, sem perceber o perigo
sentado bem ao seu lado. — Todos são, cada um a seu modo. Os três juntos são
uma verdadeira visão. Lembro que quando comecei a trabalhar na LTM, tinha
dificuldades em não ficar embasbacada sempre que apareciam. — Riu da própria
recordação.
O trio era, de fato, digno de virar cabeças femininas. E algumas
masculinas também.
— Se eu não estivesse muito satisfeita com o homem que tenho em casa,
ele estaria agora embaixo de mim, enquanto eu testava meus dotes de amazona.
Foi a minha vez de quase engasgar com a bebida. Quando vi o rosto de
Lucy ficar vermelho, levantei em um pulo e puxei Miranda pelo braço.
— Mi, você pode vir comigo? É rapidinho. — Sem esperar resposta, saí
arrastando-a em direção ao corredor que levava ao banheiro.
— O que foi? — ela perguntou assim que paramos de andar. — Está com
dor de barriga?
— Não é nada disso. — Revirei os olhos. — Por favor, pare de fazer
comentários sexuais sobre Matt.
— Por quê? — Curiosidade brilhou nos olhos castanhos.
— Lucy e ele têm uma história complicada e mal resolvida. Não estão
juntos, mas ainda é um assunto delicado pra ela.
— Ah, então foi por isso que a boneca Susi estava me fuzilando? — O
sorriso que ela deu me causou calafrios. — Bom saber.
— Miranda Perry, desista agora mesmo do que quer que esteja passando
por essa mente diabólica. Você é minha melhor amiga e quero que as duas se
deem bem.
— Que pessoa, em sã consciência, não gostaria de mim? — Arqueou
uma sobrancelha, arrogante.
— Sabe por que as duas antipatizaram uma com a outra? — Cruzei os
braços. — Porque são parecidas demais! E se os opostos se atraem, os iguais se
repelem.
Ela fez uma careta, mas cessou as provocações.
A tarde passou em um piscar de olhos. O cansaço desapareceu
completamente diante da realidade de estar com todas as pessoas que amava ao
mesmo tempo, reunidos em um só lugar. A solidão, desamparo e coração vazio
de meses atrás eram meras lembranças que já não me assombravam. E pensar
que estava vivendo aquele momento porque fui corajosa o suficiente para
permitir que me ajudassem.
Às vezes associávamos força à condição de resolver tudo sozinho. Muito
mais difícil do que sempre resolver suas questões você mesmo, era ter a coragem
de abrir o coração, a vida e permitir que outras pessoas te estendessem a mão e
seguissem ao seu lado.
Precisar de ajuda não quer dizer ser fraco, mas sim não estar sozinho. E
eu demorei um longo tempo para compreender isso.
No final da tarde, enquanto ajudávamos Rebecca a organizar a cozinha,
Luke pegou o quarto pote de mousse de chocolate. O homem era completamente
viciado em doces. De repente, de forma inesperada, me imaginei lambuzando o
corpo com a sua sobremesa favorita e pedindo para ele lamber.
A temperatura subiu somente de imaginar. O apetite sexual dele estava
passando para mim, era a única explicação para os pensamentos libertinos que
surgiam de uma hora para outra, nos momentos mais inapropriados. A vagina
ainda estava sensibilizada do sexo bruto no chuveiro do hotel naquela manhã e
eu já queria mais.
Eu estava viciada nas palavras sujas sussurradas ao pé do ouvido e nos
orgasmos apoteóticos que ele me proporcionava.
Com os pratos lavados, as sobras do almoço devidamente guardadas em
potes na geladeira e o sol se pondo, enxuguei as mãos no pano de prato e fui até
a área de trás da casa, para onde os três homens haviam desaparecido há alguns
minutos, chamar Luke para irmos embora.
— Por que você não conversa com ela de uma vez e tira essa dúvida? —
Era a voz de Matt.
— Talvez você tenha interpretado o gesto de Eveline equivocadamente
— Ty completou.
Estaquei na porta da cozinha ao perceber que falavam de mim. Eles
estavam de costas, bebidas nas mãos, iluminados pela parca luz da lua quase
completamente encoberta pelas densas nuvens.
O correto seria alertá-los da minha presença, mas só fiquei lá, parada
feito uma estátua, o coração acelerado de medo em descobrir por que era o tema
central do debate.
— A mala estava aberta no canto do quarto e havia muitas roupas
espalhadas pelo chão. Era uma cena típica de alguém se preparando para uma
fuga rápida — disse Luke.
Demorei alguns segundos para associar a frase dele ao dia que Bryan me
encurralara no estacionamento do supermercado. Não fazia ideia que Luke
guardava aquela dúvida desde então. Eu tinha mesmo pensado em fugir, mas a
ideia durou poucos minutos, influenciada pelo pavor e insegurança.
— Às vezes eu acho que sou um filho da puta — Luke voltou a dizer. —
Ela era jovem e inexperiente quando foi ficar com o desgraçado, não conhece
quase nada do mundo. E mesmo assim estou a arrastando para um
relacionamento sério. Talvez Eveline precise de um tempo para ter certeza de
que é isso que realmente quer.
Não! Eu tenho certeza!, quis gritar.
— Então pergunte a ela, puto — aconselhou Ty.
Trêmula e com o coração retumbando dentro do peito, me afastei antes
de ser descoberta e voltei à sala. As quatro mulheres concentraram os olhos em
mim simultaneamente.
— O que foi? — Lucy questionou. — Você está pálida.
Sentei-me ao sofá e contei a elas o que tinha ouvido. Ao término do meu
relato, todas começaram a falar ao mesmo tempo, de modo que não consegui
entender uma frase completa. Quando se acalmaram e passaram a falar cada uma
na sua vez, ouvi diversas opiniões acerca do que deveria fazer para resolver a
questão.
Houve muitas discordâncias — especialmente entre Miranda e Lucy —,
mas no fim uma ideia foi a mais votada.
E fiquei com borboletas no estômago enquanto imaginava colocá-la em
prática.
CAPÍTULO 41
Seja Meu

Miranda passara a última semana conosco, dormindo no quarto de


Romeo. E, uma vez que eu havia decidido não o matricular em outra creche até
setembro, quando teria idade suficiente para começar o jardim de infância, ele
ficava aos cuidados da dinda pela manhã enquanto eu trabalhava. Quando ela
fosse embora, ele ficaria na casa da vovó Rebecca.
Fizemos vários passeios juntos, os três. Visitei lugares que ainda não
conhecia, mesmo morando na cidade há mais de seis meses, fomos ao cinema,
patinamos no gelo — minha bunda roxa não me deixava mentir sobre as
vergonhosas quedas —, comemos muitas porcarias, pizza, cupcakes, bacias de
pipoca e conversamos como se não houvesse o amanhã. Lucy nos acompanhara
em duas ocasiões e, como era de se esperar, as duas ficaram de implicância. Eu
quis bater as cabeças delas até enfiar um pouco de juízo em cada.
Às noites, por várias vezes Luke precisou tapar a minha boca para
Miranda não ouvir os gemidos. Não funcionou muito bem porque a mão grande
pressionando meus lábios aumentou o tesão, de modo que eu só sentia vontade
de gritar ainda mais. E o meu descontrole, por sua vez, parecia deixá-lo
igualmente transtornado. No final das contas, eu tinha quase certeza que minha
amiga ouviu uma coisa aqui, outra ali.
Ele e Miranda haviam se dado bem, para meu alívio. Conversavam
amigavelmente sobre diversos assuntos e, segundo ela, eu tinha encontrado um
dos bons. No dicionário de Mi, aquele era o elogio do mais alto escalão.
Mas como tudo que era bom durava pouco, eu estava sofrendo por
antecedência ao despedir-me dela no aeroporto. Estávamos abraçadas e
chorando.
— Tem certeza que precisa ir? — perguntei, fungando.
— Dax está quase ficando louco, amiga. O homem não aguenta ficar
muito tempo longe de mim. Só não encheu o meu saco para antecipar a
passagem porque sabe como você e Romeo são importantes para mim. Quando
eu chegar lá, preciso dar um chá de boceta para amansar a fera — brincou,
segurando o choro.
— Eca! Não preciso saber dos detalhes! Meus ouvidos vão sangrar.
Ela gargalhou.
— Meu amor, se os meus estão intactos depois de ouvir as safadezas que
você e o ex-militar gostosão fizeram no quarto ao lado, noite após noite, os seus
aguentam ouvir uma frasezinha de nada.
Minhas bochechas esquentaram ao ter as desconfianças confirmadas.
Parecia que eu nunca conseguiria falar sobre sexo sem que meu corpo reagisse
com tamanha timidez.
— Você ouviu mesmo? — sussurrei.
— As paredes da casa são finas, amiga, não tem como não ouvir. Mas se
serve de consolo, a partir da segunda noite eu dormi com fones de ouvidos. —
Nós duas gargalhamos, atraindo alguns olhares. — Quando Romeo ficar maior,
vocês terão que ser mais silenciosos. Talvez Luke precise te colocar uma
focinheira.
— Vaca! — Dei um tapa no braço dela, voltando a rir.
— Estou muito feliz por te ver bem, Eve. Verdadeiramente bem e feliz.
— O rosto bonito ganhou seriedade, apagando os resquícios de riso do meu. —
Você, mais do que ninguém, merecia encontrar um cara bacana. Não o deixe
escapar por causa de mal-entendidos.
— Obrigada. Eu não vou, prometo. — Apertei suas mãos. — E você, está
feliz?
— Sim — ela garantiu e eu acreditei.
A despeito das minhas inseguranças em relação a Dax, a felicidade dela
era o que mais importava para mim.
A última chamada do seu voo foi anunciada nos alto falantes e não
pudemos mais adiar o momento da partida.
— Promete que não vamos mais demorar a nos vermos? — pedi, dando-
lhe o último abraço, enfiando o rosto nos cabelos pretos longos.
— Claro, boba! Agora que o traste está onde merece, não precisaremos
mais fazer nada às escondidas. Algo me diz que, mais cedo que imaginamos,
estarei de volta — sugeriu com um sorriso conspirador.
Minha barriga se contorceu com a lembrança do que faria hoje à noite.
— E você, meu príncipe, dê aqui um abraço bem apertado na dinda. —
Abaixou-se para pegá-lo no colo.
Com uma mão na de Romeo, usei a outra para dar um tchauzinho antes
que Miranda desaparecesse pelo portão de embarque. Limpei as lágrimas,
dando-me conta de que nunca me acostumaria às despedidas. Seria maravilhoso
se ela morasse perto, mas nada na vida era perfeito e eu havia aprendido a
agradecer pelas pequenas graças concedidas.
Caminhamos até o estacionamento onde deixei a picape de Luke, que
hoje havia ficado comigo e, antes de colocar Romeo na cadeirinha, perguntei:
— Pronta para ajudar a mamãe a surpreender Luke?
Ele me encarou compenetrado.
— Sim!

A casa estava mergulhada na escuridão quando cheguei. Estranhei, pois


àquela hora Eveline e Romeo costumavam estar acordados. Normalmente era o
barulho e não silêncio que me recebia todas as noites, então entrei em alerta.
Mas relaxei ao ouvir uma risadinha infantil, seguido de um "shh" e um
latido de Lola. Dei risada quando percebi que estavam tentando se esconder por
alguma razão. Coloquei as chaves e carteira em cima do aparador e aumentei a
voz, atuando:
— Ué, cadê os moradores desta casa? Será que saíram e me deixaram
sozinho? Até Lola, aquela cadela traíra?
Romeo deu mais uma risada e Lola, ao ouvir o seu nome, entregou o
esconderijo de vez. Veio até mim abanando o rabo e ficou sobre as patinhas
traseiras, as dianteiras apoiadas nas minhas pernas, pedindo que a pegasse no
colo. Recebi uma série de lambidas efusivas no rosto ao obedecê-la.
— Lola estragou a brincadeira, mamãe. — Romeo tentou sussurrar, mas
qualquer pessoa que não fosse surda e estivesse no imóvel teria o ouvido
perfeitamente.
— Da próxima vez você vai precisar segurá-la no colo — Eveline
respondeu.
A luz da sala foi acesa e eu me surpreendi com o que vi. Estava tudo
impecavelmente arrumado, a mesa decorada para uma ocasião especial, com
direito a taças e champanhe em um balde de gelo.
Nada me preparou, no entanto, para a imagem de Eveline.
O vestido vermelho, um pouco acima dos joelhos, era colado o bastante
para não deixar muita coisa à imaginação. O batom, da mesma cor, dava a
impressão de que os lábios eram mais grossos. Os cabelos presos em um coque
elegante destacavam o rosto maquiado.
Ela estava absolutamente deslumbrante.
Admirei-a embasbacado, meio bobo, certamente parecendo um idiota. Os
batimentos cardíacos aceleraram.
Ao lado dela, trajando um mini terno e gravata borboleta que o deixava
engraçado, Romeo me olhava e sorria todo animado. No meu colo, percebi
tardiamente, Lola estava enfiada em um vestido canino cor de rosa.
— Você está linda — declarei, levantando os olhos para ela outra vez. —
Os três estão muito elegantes. Estamos comemorando alguma coisa?
— Vai depender de você.
Estreitei o olhar, analisando o semblante de Eveline em busca de
qualquer resposta. Surpreendentemente, não parecia tão fácil decifrar as
emoções que perpassavam o rosto bonito.
— O que estão aprontando? — sondei, devolvendo Lola ao chão.
— Eu aprendi, desde novinha, a não esperar muitas coisas da vida — ela
disse. — Não consigo lembrar exatamente quando me dei conta de que eu era
diferente da maioria das crianças. É difícil, sim, crescer em um orfanato, não
saber quem são seus pais, não ter noção se alguma família vai se interessar por
você algum dia e te tirar dali. Não vou negar, é difícil pra caramba. Precisei de
muita força interior para manter a minha fé em Deus. Muita mesma. Mas em
algum momento eu pensei que não poderia mais ficar lamentando tudo aquilo
que não tinha, e sim correr atrás para conseguir o que eu queria no futuro. Por
isso, estudei e me dediquei mais do que qualquer menina lá dentro, queria estar
preparada para enfrentar o mundo além dos muros altos.
“Fiz planos, tracei objetivos e me esforcei para fazê-los dar certo. Os
lares adotivos foram o primeiro baque. Por mais que não gostasse da rotina do
orfanato, nunca fui submetida a nenhum tipo de violência física enquanto fiquei
lá. E quando estava duvidando da minha força de vontade, Miranda apareceu.
Conhecer aquela menina tão diferente de mim, mas com um coração igualmente
maravilhoso, foi como um sopro de ar fresco em um quarto abafado e fétido. Ela
me devolveu a esperança de que poderíamos, sim, ser alguém perante a
sociedade, conquistar o nosso lugar.
“Meus planos viraram nossos planos. Meus sonhos viraram nossos
sonhos. Minha força virou nossa força. Desejávamos coisas diferentes, mas nos
apoiávamos como verdadeiras irmãs. Entrei na universidade, ela conseguiu fazer
o curso de estética. Dividíamos uma quitinete minúscula, mas estávamos felizes.
Então, novamente eu duvidei da minha força quando notei que havia sido
ludibriada pelo primeiro homem que confiei. Aquele baque foi maior, sabe?
Demorei muito mais tempo para me recuperar dele. Achei que não superaria,
mas o fiz.
“Então, por alguma razão, eu quis ficar em Naperville. Fiquei, arranjei
trabalho, fiz amigos e conheci você. Como eu disse, aprendi a não esperar muito
da vida, mas serei eternamente grata a ela por ter colocado tantas pessoas
especiais no meu caminho. Eu me dei conta de que, sim, era possível recomeçar.
Sim, eu merecia ser feliz. Sim, eu continuei sendo forte, mesmo quando atingi o
ápice da fraqueza. E você foi peça fundamental para que eu reencontrasse a
fortaleza que sempre senti dentro de mim. Eu te prometi naquele quarto de hotel
e prometo novamente, nunca mais vou duvidar de mim, da minha força. Nunca
mais. Mesmo que eu fraqueje, vou lembrar do que sou capaz, do que já venci.
Você só me deu certezas, de modo que me recuso a te fazer sentir dúvidas.”
— De que… — pigarreei, a voz embargada, a garganta travada de
emoção. — De que dúvidas está falando?
— Eu ouvi a sua conversa com os rapazes na sua mãe, no dia que
voltamos de Oklahoma.
— Eve…
— Não, me deixa terminar, por favor — interrompeu. — Não foi
proposital. Fui te chamar para virmos embora e peguei a conversa na metade.
Acabou comigo saber que te causei insegurança. Eu pensei, sim, em fugir sem
avisar a ninguém, mas foi um momento de desespero. Sabe quando, de repente,
você se vê frente a frente com seu pior pesadelo, é completamente dominado
pelo pânico e perde a capacidade de raciocínio? Foi o que aconteceu comigo
aquele dia.
Eveline veio até mim e levou a mão ao meu rosto, acariciando a barba
lentamente. Eu nunca tinha visto tanta emoção no azul bonito dos seus olhos.
— Enquanto jogava as roupas dentro da mala, fechei os olhos e imaginei
o meu futuro. E você estava em todos os cenários, meu amor. Por isso, ao invés
de ir embora sem olhar para trás, eu peguei o celular e disquei seu número.
Engoli em seco, perdendo a batalha para o controle, o maxilar travado
para não chorar.
— Eu não preciso de tempo para saber o que quero. Tampouco que vá
devagar comigo. Posso conhecer o mundo ao seu lado. Nós dois estamos na
mesma página nesse relacionamento. E é por isso que estou aqui hoje, na
companhia de Romeo e Lola, para te perguntar se você quer casar conosco. Seja
meu marido, seja um pai para meu filho, seja o pai dos meus futuros filhos, que
serão crianças extremamente sortudas por ter você na vida delas. Seja meu,
Lucas Hayes. E eu prometo fazer o que estiver ao meu alcance para te fazer feliz.
Foi a primeira vez na vida que fiquei completamente sem palavras.
Segurei a mão que estava no meu rosto e apertei os dedos nos meus,
trêmulo e emocionado. Beijei toda a extensão da palma de Eveline e subi pelos
pulsos, até metade do braço, tomando um tempo para me acalmar e ter certeza de
que não teria um ataque cardíaco.
Com relutância, afastei os lábios da pele macia e a encarei. Toquei os
dedos no seu queixo e os deslizei pela bochecha com devoção.
— O que eu faço com você, Eveline? — Balancei a cabeça de um lado a
outro. — Eu tinha um esquema preparado para pedi-la em casamento. Aí você,
como tem feito desde que entrou na minha vida, muda todos os meus planos e
me surpreende. Não sei se isso me deixa terrivelmente frustrado ou idiotamente
mais apaixonado.
Ela sorriu, a mão delicada subindo pelo meu peito.
— Eu prefiro a segunda opção — sussurrou.
— Claro que prefere. Como se eu tivesse alternativa — resmunguei. —
Passar o resto da vida ao seu lado será uma honra, minha linda. Será uma honra
ser o seu marido, ser o pai de Romeo e o pai dos seus futuros filhos. Antes de te
conhecer, sempre fui capaz de controlar meus próprios sentimentos. Mas você
foge ao meu controle. Perder o controle me apavora um pouco, mas por vocês,
vale a pena o risco.
Ela sorriu, os olhos grandes cristalinos de lágrimas. Puxei-a para mim,
beijei cada parte do seu rosto, limpando as tímidas lágrimas que escorriam e, por
fim, capturei a sua boca apaixonadamente. O sabor dela era viciante. Eu estava
dependente daqueles lábios pintados de vermelho, da língua morna e macia que
me sugava com paixão. Dependente daquela mulher.
— Eca, mamãe! — exclamou Romeo.
E Lola latiu, parecendo apoiá-lo.
Com as bocas coladas, Eveline e eu tivemos uma crise de riso. Apoiei a
testa no ombro cheiroso, sentindo o corpo pequeno da minha mulher sacudir de
alegria em meus braços.
O futuro nunca pareceu tão promissor.
CAPÍTULO 42
Bônus – O Monstro em Mim

Com um rápido movimento vertical, fiz o décimo risco na parede com


um giz branco. Um para cada dia que eu estava naquela cela pequena, escura e
fétida. Dez dias que eu faria Eveline e Lucas Hayes pagarem com juros e
correções monetárias.
Lembrar sobre como meu plano tinha dado errado fazia meu sangue
ferver. Então ele estava sempre fervendo, porque não pensava em outra coisa.
Era para estarmos em algum país da América do Sul, recomeçando a vida do
zero, sem ninguém para se intrometer onde não devia.
O meu maior erro foi ter subestimado a vadia.
Subestimei os dois. Ela e o filho da puta do ex-militarzinho de merda.
Não esperava que ele fosse desenterrar um passado que o velho desembolsou
uma grana do caralho para manter escondido. Ter de recuar por causa das
ameaças atrapalharam todo o meu planejamento e pôs em curso o plano B de sair
do país.
Eu não gostava da ideia de deixar os Estados Unidos. O velho Campbell
tentou me obrigar, mas nem a força do desgraçado havia conseguido me
convencer. O que ele ia fazer? Mandar me prender e anunciar ao mundo o
escândalo que queria enterrar? Contudo, iria para outro país se fosse
absolutamente necessário.
Há anos eu não pensava sobre Calvin Campbell. Era como se Calvin e
Bryan fossem duas pessoas, divididas por um instante de perda de controle.
Catherine era só a irmã mais nova irritante pra caralho que gostava de se meter
onde não devia. Nunca tinha pensado em fazer com ela o que fiz.
Desde novo, percebi que gostava de coisas diferentes, erradas perante à
sociedade hipócrita em que vivia. No meu computador pessoal — protegido por
uma senha que até hoje eu não fazia ideia de como tinha sido descoberta —, eu
guardava um arsenal pornográfico poderoso. Filmes e fotografias de todos os
tipos. Gostava de ver um homem comer uma mulher à força, aquilo costumava
me deixar de pau duro instantaneamente. Em todos os vídeos que assisti, elas
negavam, se rebelavam, se debatiam, mas terminavam com porra nas caras e
expressões de putas. Perdi as contas de quantas punhetas bati.
Sempre fui meticulosamente cuidadoso em manter meu quarto trancado e
o computador bloqueado. Um dia, entretanto, cheguei em casa e encontrei a
fedelha sentada em minha cadeira, olhando para tela plana com horror e asco.
Ao me ver, levantou, lívida e ameaçou contar tudo aos velhos. Eu, que
nunca gostei de ser ameaçado, perdi a paciência e nós dois tivemos uma briga
feia. Catherine tentou passar correndo por mim, mas a agarrei pelo braço e a
impedi de fazer uma merda.
A briga passou a ser física. Ela me bateu, arranhou e chutou feito louca.
A pequena blusa que ela usava acabou sendo rasgada no meio dos puxões,
deixando o sutiã branco à mostra. De repente, a raiva foi substituída pelo tesão e
me vi arrancando o restante das suas roupas, enquanto empurrava o corpo
franzino em direção a cama, prendendo-a debaixo do meu.
Nunca me senti mais poderoso do que naquela posição de dominância.
Catherine não queria estar ali, lutava contra mim com todas as suas forças, mas
não era páreo para mim. A situação me rememorou aos vídeos e vi a
oportunidade para vivenciar a experiência, sair da posição de expectador para
praticante. As meninas que saíam comigo eram umas putinhas frescas que só
permitiam o sem graça papai-e-mamãe, no máximo, e depois de muita
insistência, se dignavam a ficar de quatro. E pegar prostituta estava fora de
cogitação. Por que pagar por algo que eu poderia ter de graça?
Depois de finalizar, sentindo os resquícios do melhor orgasmo da minha
vida atravessarem o corpo satisfeito, foi que me dei conta do que tinha feito.
Olhei para baixo, vendo as roupas destruídas, a saia acima da cintura, as
manchas de sangue nos lençóis, nela e em mim, além dos machucados que
começavam a avermelhar por grande parte do corpo — e que eu nem havia me
dado conta de haver produzido.
O medo veio tão forte que quase conseguiu apagar o sentimento de
realização.
E a minha mãe, impulsionada pelos gritos, chegou antes que eu pudesse
fazer qualquer coisa para reverter a situação a meu favor.
Eu não tinha planejado a transa, as coisas saíram de controle e aconteceu.
Por outro lado, estaria mentindo se dissesse que senti remorso. A sensação foi
potente demais para permitir arrependimentos.
Eu não havia calculado, porém, os problemas de pegar uma mulher à
força. Se elas colocassem na cabeça que não gostaram, as mentirosas, não
voltariam. Então, ao longo dos anos seguintes eu desenvolvi uma técnica. Passei
a misturar dor e prazer, metia com força para machucar, mas também usava
artifícios para incluir doses de deleite. Elas se tornavam viciadas no jogo dúbio e
constantemente queriam repetir a dose.
Não era, de longe, tão bom quanto foi com Catherine, havia um júbilo na
primeira vez que não acontecia de novo. Mas ao menos eu conseguia aplacar
uma parte da minha fome.
Meus pais não conseguiram me perdoar, mas não queriam que o
escândalo se alastrasse e prejudicasse a carreira polícia tão almejada de
Christopher Campbell. De início, fiquei furioso por estarem isolando-me,
banindo-me. Depois de algum tempo de reflexão, no entanto, percebi que havia
mais benefícios do que malefícios. Poderia começar uma vida do zero, com
muito dinheiro, onde eu quisesse, sendo quem eu quisesse e, principalmente, não
ficaria submetido a ter de agir de acordo com os padrões sociais para não
manchar a reputação familiar.
Já na pele de Bryan Allen, namorei algumas mulheres, mas nenhuma
despertou o efeito que Eveline teve em mim. Aquela mistura de força e
fragilidade, e a inocência genuína de alguém que não conhecia nada sobre a vida
me fascinaram. Na primeira troca de palavras, sabia que seria ela minha.
Custasse o que custasse.
O filho da puta do Lucas Hayes estava completamente certo ao dizer que
conquistá-la foi como tirar doce de criança. Bastou identificar os pontos fracos,
que Eveline não fazia um bom trabalho em esconder, e trabalhar em cima deles.
Foi exultante ser o primeiro, ainda que tivesse tido que me controlar para
não a assustar e afastá-la. Não esperava pela gravidez, nunca quis filhos, mas
não chegou a ser um incômodo. Pelo contrário, foi um atalho para atrelá-la a
mim em definitivo. Só não esperava que Eveline fosse ficar tão fissurada por
aquele garoto quando eu não via a menor graça em um bebê que não fazia nada
além de fazer um cocô fedorento, chorar feito um despertador quebrado e dormir
durante a maior parte do dia.
Eu não o odiava. Somente não sentia o amor tão falado e
supervalorizado. Era como se fosse um… Nada. Vazio.
A fuga dela, a princípio, me deixou puto e estressado, mas mentiria se
dissesse que foi uma surpresa. Mesmo quando estava assustada, amedrontada e
quebrada, havia aquele ar diferente nos olhos azuis. Aquela força ameaçando vir
à borda que tanto havia me chamado atenção no início. Não medi esforços para
encontrá-la, porque me excitava a ideia de domá-la mais uma vez.
O golpe nas bolas e o tiro na perna, sim, foram inesperados. Deixando
um sorriso escapar, alisei o membro machucado que ainda guardava as marcas e
sequelas da bala. Fiquei alguns dias no hospital e, depois de receber alta, fui
transferido àquele local que me causava ânsia de vômito.
Dez dias que eu não via a luz do sol, enclausurado no espaço minúsculo.
Não era idiota e sabia o que acontecia quando a notícia de um estupro ou
violência contra mulheres e crianças percorreria as celas do presídio, por isso
precisava sair dali em breve.
Com o dinheiro que desviei do imbecil do Track, contratei um dos
melhores advogados do país e ele estava confiante de que o juiz firmaria uma
fiança, segundo ele, em um valor substancial. Dinheiro não era problema para
mim, nunca foi.
Se eu havia subestimado Lucas Hayes, ele também tinha cometido o
mesmo erro comigo. Eu sabia que ele mentia sobre não me entregar à Track, mas
eu conhecia o traficantezinho imundo muito melhor do que ele. O idiota não me
mataria rápido. Ele era do tipo que gostava de brincar, amedrontar e apavorar a
vítima antes de executá-la. Então aquilo me deu uns dias para colocar o plano B
em prática.
Passei os primeiros dias recluso, sem sair para fazer nada além do básico.
Ia ao supermercado comprar comida e à farmácia comprar remédio para os
ferimentos.
Percebi que estava sendo vigiado, tanto por homens de Track, quanto por
homens de Lucas Hayes. Enquanto os primeiros faziam questão de ser vistos,
passando a todo momento em frente à minha casa, apontando armas cada vez
mais pesadas na minha direção, deixando pacotes suspeitos à minha porta e até
mesmo me presenteando com um gato preto esquartejado de forma violenta e
grotesca; os segundos se mantinham quietos, escondidos, anônimos e
praticamente invisíveis para alguém com olhos menos atentos que os meus.
Meu plano B consistiu em entrar em contato com um ator de quinta
categoria pela internet e contratar os seus serviços. Embora não precisasse dar
explicações, inventei que queria me esconder de uma ex-mulher perseguidora
para encontrar a amante. Pedi que me esperasse no banheiro da farmácia, local
que eu estava visitando com frequência, então não levantaria suspeitas. A troca
ocorreu lá. Ele possuía a estrutura física semelhante à minha e, trajando as
minhas roupas, o mesmo boné e os óculos que eu usava para esconder os
hematomas, era quase impossível descobrir que se tratava de outra pessoa.
Vesti a roupa do cara, entreguei o valor acordado e ele saiu primeiro,
levando o idiota que estava a serviço de Lucas Hayes consigo. Quando o imbecil
se desse conta da troca, eu já estaria longe dali, pondo em prática os próximos
passos. Aluguei um carro, usando documentos falsos, e segui para Naperville.
Se não fosse a rebeldia dispensável de Eveline, tudo teria saído conforme
o planejado. Mais uma vez o sangue ferveu ao lembrar do tiro que a puta tinha
me dado e que talvez me deixasse manco para sempre. Não pretendia matá-la,
porque aquela mulher tinha uma coisa que mexia comigo, mas a faria sofrer de
maneira cruel.
O barulho seco do metal, indicando a porta da cela sendo aberta, me
alertou. Sentei depressa, sentindo a perna fisgar, e olhei o meu colega de cela em
um sono profundo. Um medo gelado me atingiu quando, mesmo na baixa
iluminação, reconheci o rosto do homem que era braço direito de Track, vestido
com o uniforme do guarda.
Ameacei gritar, mas o filho da puta foi mais rápido e torceu meu braço
para trás em um ângulo que me extirpou a voz e pressionou uma lâmina no meu
pescoço.
— Track manda lembranças.
As palavras foram sussurradas no meu ouvido e a lâmina afiada cortou
minha carne de um lado a outro. Profundamente.
Levei as mãos ao local instintivamente, melando os dedos com o líquido
quente e viscoso. Tentei falar e a voz não saiu.
Apertei o pescoço com mais força enquanto caía de joelhos no chão,
observando o vermelho vivo tingir a minha pele, escorrer pelas roupas e
empapar o piso escuro.
Um frio terrível me assolou, percorrendo desde a ponta da unha do pé até
o último fio de cabelo na cabeça.
Caí.
Olhando para o teto, engasguei. Tossi, cuspi e engoli meu próprio sangue.
Senti a boca tremer.
Frio.
Frio.
Tão frio…
Eu não podia acreditar que a minha vida estava se esvaindo assim, de
forma tão rápida e estúpida. E eu não conseguiria cumprir as promessas de
vingança.
Contra Eveline.
Contra Lucas Hayes.
A visão embaçou, depois escureceu. O frio aumentou.
Frio. Tão frio…
Eveline ia escapar.
Eveline ia ser feliz sem mim.
Frio. Tão frio…
Eveline.
Eveline.
Eveline.
Eveli…
CAPÍTULO 43
Minha Âncora

Bryan Allen — ou Calvin Campbell — havia sido assassinado há três


meses na prisão. Luke comentara que ele fora encontrado sem vida em sua cela,
empapado com o próprio sangue, com um corte gigantesco de um lado ao outro
da garganta.
Nós sabíamos que a morte estava diretamente ligada ao traficante que ele
estupidamente decidira roubar. Eu gostaria muito de ter sido uma boa católica,
seguido os ensinamentos da Madre e tido dó dele. Mas não fui. O único
sentimento que me invadiu ao saber do acontecido foi o alívio, pois ainda que
ele fosse condenado e preso por muitos anos, eu sempre ficaria com a sensação
de insegurança e medo. Bryan possuía muito dinheiro e estar atrás das grades
nunca foi empecilho para cometer novos crimes.
Minha presença em Reno foi necessária para resolver questões
burocráticas, como a venda da casa, por exemplo. Romeo era seu único herdeiro
e, por mais que eu desejasse que meu filho não tivesse nada a ver com o crápula,
não cabia a mim talhar um direito seu. Não entrei no imóvel, no entanto. Foi
Luke quem havia resolvido aquilo com o corretor. O dinheiro da venda foi
diretamente para um fundo em nome de Romeo que, ao atingir a maior idade,
faria com ele o que achasse melhor.
Eu não quis um centavo. Graças a Deus tinha saúde para trabalhar e me
sustentar. Grana suja não me enchia os olhos.
Uma parte da quantia desviada da gangue fora encontrada pela polícia
após o sequestro, escondida em um compartimento falso do automóvel alugado,
e apreendida. O restante ninguém fazia ideia de onde estava e, para ser sincera,
nem me interessava.
Após o noivado, Luke e eu decidimos morar na casa dele em definitivo.
Praticamente era o que já fazíamos na minha casa, mas a dele era própria, maior
e melhor localizada, então não fazia sentido continuar pagando aluguel.
Na segunda semana pós-mudança, Luke me chamara para conversar.
Colocando um envelope em cima da mesa, revelara o documento que havia feito
Bryan assinar, autorizando a adoção de Romeo. Em seguida, informara a
intenção de adotá-lo com a minha autorização.
Justo quando eu acreditava que Lucas Hayes não poderia mais me
surpreender, ele aparecia com algo assim.
Kalel me ligara na quarta-feira para informar que meu filho tinha um
novo sobrenome. Romeo Hayes.
Eu desligara o telefone trêmula, chorando com a miríade de sentimentos
que me engolfaram. Luke infelizmente estava viajando a trabalho e retornaria
apenas no final da semana, de modo que tive tempo de sobra para organizar uma
comemoração surpresa particular.
Saí de casa cedo na sexta-feira, deixei Romeo e Lola com Rebecca e parti
para o meu dia de beleza. Submeti-me à tortura da depilação íntima com cera
mais uma vez apenas porque desejava testar os limites do meu noivo. Depilei
também as pernas, axilas e buço. Fiz uma massagem relaxante e segui para a
parte capilar.
Agora, olhando-me no espelho do quarto, quase não me reconheci. O
cabelo de volta à cor natural tornava a minha aparência semelhante à da mulher
que fugira de Reno. Por dentro, contudo, sentia-me uma pessoa inteiramente
diferente, cem anos mais velha, experiente e feliz.
Eu sabia que a incrível sensação de amadurecimento se devia, na maior
parte, à terapia, que havia me ajudado a compreender, de uma vez por todas, que
a culpa não era minha. A culpa nunca era da vítima, por mais que o agressor
tentasse nos convencer do contrário. Ainda teria um longo caminho a percorrer,
mas o primeiro passo havia sido dado.
Romeo também estava tendo acompanhamento profissional, que
proporcionava todo o suporte para a mente infantil processar da melhor maneira
possível tudo que presenciara nos curtos, mas intensos anos de vida. E a
terapeuta me orientava sobre como lidar com ele em casa, caso houvesse
qualquer pergunta ou comportamento atípico.
Fechei o robe de seda preto, parcialmente transparente escondendo o
conjunto de lingerie da mesma cor, e caminhei, com meu novo scarpin vermelho
de saltos altíssimos para sala, a fim de esperá-lo. O voo de Luke estava marcado
para pousar em Chicago às cinco da tarde. Como o relógio já marcava quase
seis, a qualquer instante o veria passar pela porta.
Ouvi o barulho do automóvel enquanto acendia a última vela
aromatizante, apreciando o gostoso cheirinho de morango se espalhando pelo ar.
Ajeitei os seios dentro do bojo, consertei a postura, abri um pouco o robe e
fiquei aguardando, o coração martelando o peito.
Luke me viu imediatamente. Seus olhos se fixaram em mim e em seguida
fizeram uma lenta inspeção pelo meu corpo, dos pés à cabeça, o castanho-
esverdeado escurecendo em apreciação.
Eu havia feito um planejamento para aquela noite. Jantaríamos,
bebericando um pouco de vinho e, depois da sobremesa, pretendia seduzi-lo
tortuosamente. Entretanto, meu corpo reagiu ao desejo tão cru, honesto e
arrebatador no rosto angular. Luke vivia dizendo que eu mudava seus planos,
mas, de fato, quem me desestruturava a ponto de jogar tudo para alto era ele.
Os olhos voltaram aos meus, mais escuros do que eu jamais tinha visto
antes e, sem desconectar nossos olhares, desfiz o laço do robe, permitindo que o
tecido deslizasse lentamente pelos ombros até tocar meus pés.
Calado, Luke abaixou para deixar a pequena mala no chão e caminhou
até mim. Esperei que me pegasse com força, descontrolado e esfomeado como
sempre. Esperei, inclusive, que rasgasse a lingerie. Para a minha surpresa, parou
a centímetros de distância, pousou a mão no meu queixo, direcionando-a à nuca,
emaranhando os dedos nos cabelos. Enquanto analisava os fios com a atenção, o
polegar da mão desocupada fez movimentos circulares na bochecha.
— Me diga o que eu fiz para merecer essa recepção. — A voz rouca me
causou arrepios. — Diga, para eu me certificar de não parar de fazer. Linda.
— Além de estar morrendo de saudade, essa semana é especial.
— Sim?
— Você e Romeo agora compartilham o sobrenome — relevei, mordendo
o lábio.
O aperto em meu cabelo aumentou. Ele abriu um sorriso tão lindo que foi
direto ao meu coração apaixonado.
— Quando?
— Quarta-feira. Não falei nada porque queria dizer pessoalmente.
— Em breve, você também compartilhará.
— Não vejo a hora. — Rodeei seus ombros com os braços. — Fiz um
jantar especial, fiz sua sobremesa favorita, mas nada disso parece importante
agora — sussurrei com a boca quase encostando na sua.
— Eu adoro mousse de chocolate. Mas a minha sobremesa favorita
sempre será você.
Luke puxou-me pela cintura, colando nossos corpos, abrindo a boca para
receber a minha língua, chupando-a daquele jeito gostoso. Beijá-lo era sempre
uma experiência extraordinária.
O encontro foi interrompido para que a língua percorresse o meu pescoço
e serpenteasse até o lóbulo da orelha, onde recebi uma mordida delicada.
Quando os primeiros gemidos sôfregos já me escapavam, ele desceu novamente,
alternando lambidas e chupadas até o colo.
Sentou-se no sofá, puxando-me para seu colo de maneira que precisei
apoiar os dois joelhos no estofado macio, nossas intimidades se tocando por
cima das roupas. Sem apartar os olhos do meu rosto, abaixou o sutiã até liberar
os seios, sem retirar a peça. Desviou o olhar para eles, massageando-os com as
mãos, passando a palma delicadamente nos mamilos eriçados. Quando a boca
desceu para encontrar os montículos, eu já tremia em antecipação.
Começou lento, rodeando a ponta da língua, saboreando o gosto da pele
como se tivesse todo o tempo do mundo. Arrastou a boca até o outro, chupando-
o com gentileza. Rebolei no seu pau, desejando mais, úmida e palpitante. Luke
apertou minha cintura, depois subiu as mãos para juntar os seios, amassando-os,
mamando nos dois ao mesmo tempo.
Joguei a cabeça para trás e gemi, o tesão crescendo vertiginosamente.
Minha carne era chupada, mordida e amassada pelas grandes mãos. O tecido
preto preso a mim de modo displicente tornava a cena erótica.
Pegando-me de surpresa, inverteu a posição, minhas costas tocando o
grande sofá confortável. Luke afastou-se e sumiu na cozinha. Retornou instantes
depois segurando o pirex de mousse.
— Mas quem disse que não posso ter as duas coisas ao mesmo tempo?
— provocou, depositando a sobremesa na mesinha de centro, e ajoelhou entre
minhas pernas.
Pegou um pouco do creme escuro com a colher e levou até mim. O doce
extremamente gelado na minha pele quente e sensível me fez ofegar. Segurei
firme no seu ombro, observando meu seio direito ser melado de forma
significativa. Direcionando-me um sorriso safado, ele abaixou a cabeça e limpou
tudo com a língua.
Era uma sensação estranha ter o gelado do mousse e o morno da língua
dele em seguida. Não um estranho ruim, ao contrário. Luke brincou comigo por
um bom tempo, deixando-me louca com a confusão de sensações, os mamilos
duros como nunca, a vagina cremosa, o corpo trêmulo de tesão. Melava meus
bicos com a sobremesa e os chupava com sofreguidão até não restarem
resquícios dela.
Os lábios deslizaram pela barriga, a língua entrou no umbigo
ligeiramente e depositou um demorado selinho no meu sexo, por cima da fina
calcinha de renda. De onde eu estava, meio sentada, meio deitada, tinha uma
visão privilegiada do que acontecia. Luke entre minhas pernas, a boca
justamente onde eu queria que estivesse.
Sem pressa, roçou os dedos na região e ergueu meus quadris para retirar
a peça delicada. Seus olhos me disseram precisamente o instante em que viu a
minha última surpresa. Fitou o local com atenção, a testa franzida em confusão.
Passou a ponta do dedo na pequena âncora tatuada na parte baixa da barriga,
quase no início da virilha. Embaixo dela, estava um minúsculo L, que somente
poderia ser visto se olhado de perto. E como a única pessoa a chegar perto da
região era ele…
Perdi o fôlego ao receber o olhar tão tempestuoso, cheio de luxúria e
promessas.
— Você quer me matar, porra?
Luke levantou minhas pernas, afastando-as, e beijou a tatuagem com
adoração. Em seguida, como se não pudesse resistir, abocanhou a boceta. Tremi,
recebendo sua língua úmida no meu ponto sensível.
Muito antes que eu estivesse minimamente satisfeita, ele cortou o
contato, esticou o braço e retirou outra quantidade do doce. Olhando-me com um
ar travesso, depositou a generosa quantidade na minha vagina. Gritei com a
sensação. E, antes que a sobremesa escorresse, a boca de Luke me chupava outra
vez.
Ele mantinha minhas pernas bem abertas e separadas, a língua entrando e
saindo sem descanso. Gemi e rebolei em sua boca, contorcendo-me inteira,
mordendo os lábios para evitar gritar feito louca.
— Sem dúvidas, a minha combinação favorita — murmurou.
Meio atordoada e ofegante, sorri com a declaração.
Mais mousse depositado e mais língua me chupando em uma tortura
deliciosa. Eu era uma confusão de sensações sôfregas, sem saber o que causava
mais prazer.
O frio do doce.
O quente da língua.
A sucção firme que abarcava quase todo o meu sexo.
Os sinais do orgasmo surgiram, de modo que meus movimentos de
quadril se tornaram mais urgentes. Percebendo o quão perto eu estava, Luke se
afastou.
— Me deixa gozar, amor — implorei toda trêmula.
Sem se dignar a me responder, apertou minhas coxas, os dedos
afundando na carne, e voltou a chupar todas as partes, menos onde eu mais
desejava, na junção de nervos inchada e protuberante.
— Eu vou pensar em uma maneira tão perversa de me vingar que você
vai ficar com as bolas roxas, seu filho da puta! — resmunguei, tentando fazer
sua língua tocar meu nervo inchado e necessitado. — Não! Filho da puta não, eu
gosto muito de Rebecca. Seu… Seu… Patife!
Ele gargalhou, afastando-se alguns centímetros.
— Patife? Isso é tudo que você consegue, minha linda? — perguntou,
sarcástico.
— Minha linda é o cacete! Você está me torturando. Não é justo! Fiz uma
tatuagem para você e é isso que ganho?
Luke riu ainda mais, divertindo-se às minhas custas.
Finalmente a língua alcançou o ponto certo. Ele puxou o clítoris para
dentro da boca, prendendo-o com os lábios enquanto a ponta da língua o
pincelava duramente. Foi o que bastou para que eu explodisse em sensações
maravilhosas. Gritei, levantando os quadris, o formigamento delicioso
atravessando meu corpo como um raio, arrancando arrepios e tremedeiras.
Luke abriu o sofá, de modo que pudéssemos deitar com folga.
Acomodando-se sobre mim, beijou a minha boca com pressa, enfiando a língua
para explorar cada recanto, reclamando-me para si. As roupas dele foram
retiradas por minhas mãos ansiosas. Queria o contato pele a pele, o calor do
corpo musculoso no meu.
A boca retornou à minha precisamente no momento em que me penetrou.
Eu estava bastante lubrificada, então o membro deslizou facilmente por
meu canal. Senti cada centímetro entrar nos tecidos sensíveis. Gemendo em
minha boca, Luke começou a estocar, arreganhando minhas pernas para se
afundar todo.
O ritmo, apesar de constante, era um pouco mais lento que o de costume.
Luke escorregou o corpo para o lado, deitando-se atrás de mim, o peito colado às
minhas costas. Ergueu uma perna com a mão e voltou a deslizar para dentro.
— Amo te foder com força, de quatro. Mas também amo fazer amor com
você — sussurrou, mordendo meu ombro.
Eu estava além da capacidade de proferir frases coerentes, limitando-me
a gemer, perdida e maravilhada na sensação de fazer amor com o homem que eu
amava.
Luke soltou a minha perna e os dedos habilidosos procuraram meu
clítoris. Ele aumentou a velocidade do vai-e-vem, os movimentos circulares no
nervo bastante estimulado eram quase mais do que eu podia suportar.
— Goza no pau do teu homem. — Mordeu meu ombro com força.
O segundo orgasmo foi tão arrebatador quanto o primeiro. Agarrei seu
braço e virei o rosto para que ele pudesse capturar minha boca com a sua. Eu
adorava ouvir os grossos gemidos que ele soltava.
Luke saiu de mim, ajoelhou-se e ergueu meu quadril até me posicionar de
quatro. Segurei no encosto do sofá, imaginando se aguentaria mais, pois estava
bastante sensibilizada. No instante que ele voltou a me penetrar, no entanto, os
arrepios que me perpassaram me disseram que sim, mesmo exausta, era gostoso
senti-lo me preencher completamente.
Quando as mãos abriram minha bunda e o dedo dele foi até o meio dela,
eu não me contraí como das outras vezes. Nos últimos meses, Luke havia
estimulado tanto aquele lugar, enfiando a língua e dedos, sussurrando ao meu
ouvido o tanto que queria foder minha bunda, que a curiosidade tinha se
instalado em cada célula do meu corpo com sucesso.
Percebendo minha reação — ou melhor, a falta dela —, ele foi para trás e
se inclinou para morder os globos, amassando-os com mãos fortes. Abriu-a
novamente e passou a língua ao redor do buraco. Depois, enfiou e tirou a língua
repetidas vezes, fazendo-me ofegar. Empinei a bunda em seu rosto, pedindo por
mais, ansiosa para que ele me mostrasse o prazer daquele tipo de sexo.
Ele voltou a se erguer, deslizou o membro muito duro em minha vagina e
o polegar entrou na bunda. Era sempre uma sensação inexplicável ter os dois
lugares estimulados ao mesmo tempo, um prazer quase pecaminoso, proibido.
Luke cuspiu na mão, espalhou mais saliva em meu buraco e forçou dois dedos
para dentro. Ardeu e eu me contraí, mas relaxei em seguida, as estocadas do seu
pau distraindo o desconforto.
— Me espere aqui, quietinha — avisou e saiu.
Minha cabeça girava, o corpo pegando fogo, a vagina latejando e o ânus
ardendo. Tentei não pensar muito na logística do que faríamos, porque ainda
fugia à minha compreensão como todo aquele comprimento caberia em um
espaço tão pequeno.
Ele não demorou a retornar, posicionando-se novamente atrás de mim.
Quando ouvi o barulho de uma tampa sendo aberta, nem precisei virar o rosto
para saber do que se tratava. Apertei o encosto do sofá, ansiosa e nervosa, o
coração acelerado.
Luke espalhou um líquido gelado em minha bunda, os dois dedos
entrando com mais facilidade, despertando o conhecido prazer doloroso.
Demorou um tempo me preparando; girou os dedos para me alargar e os retirou.
Contrai-me inteira quando a cabeça do seu pau forçou minha abertura traseira.
— Relaxe — avisou, alisando minhas costas. — Você precisa estar
relaxada para não doer.
Era muito fácil para ele falar! Não era em seu rabo que aquela vara
entraria.
Engoli em seco e me obriguei a relaxar. Usando uma mão para afastar as
nádegas, Luke começou a deslizar devagar. Ardeu como o inferno, a impressão
era de estar sendo rasgada. Fechei os olhos com força, enquanto o membro abria
passagem, alargando-me.
— Ai, Luke — ofeguei, trêmula. — Está doendo.
— Vai passar. Fique calma. — Deslizou os dedos para o meu clítoris,
estimulando-o ao mesmo tempo que forçava a passagem na minha bunda.
Para ser brutalmente honesta, a princípio a sensação era
assustadoramente semelhante à de fazer o número dois. Conforme ele passava a
se movimentar para frente e para trás, ao mesmo tempo que me masturbava,
porém, outras sensações nasciam, mesclando prazer e dor sem precedentes.
Luke foi paciente e delicado, deslizando quase tudo para fora e entrando
sempre mais profundamente que a vez anterior. Quando se abrigou por
completo, achei que estava preenchida além do limite. Ele ficou alguns segundos
parado, um longo e profundo gemido rouco escapando da garganta.
— Se toque enquanto eu fodo esse cuzinho gostoso — orientou, abrindo
a bunda com ambas as mãos e passando a se movimentar com mais rapidez,
deixando um rastro de ardor em meu canal dilatado.
Gritei, ardida, dolorida e excitada. Levei meus próprios dedos ao clítoris,
os olhos apertados, sentindo o pau entrar e sair com decisão. Se não era
exatamente prazeroso, estava longe de não ser. Eu não compreendia meu corpo,
dividido por uma linha tênue de emoções contraditórias.
— Cu apertado da porra! — Desferiu um tapa em uma nádega. — Que
delícia, Eveline.
As palavras e o tapa me acenderam. Gemi alto, os dedos trabalhando
intensamente para alcançar outro orgasmo, recebendo até o último centímetro do
pau de Luke.
— Vou gozar — avisei.
— Goza — concordou, arreganhando a bunda para entrar com mais
facilidade, deslizando nela em estocadas dolorosas e absurdamente deleitantes.
— Goza que eu vou encher esse rabo de porra.
Ao receber o próximo tapa, meu corpo estalou no terceiro orgasmo da
noite, tão potente como nunca havia sido. Eu gritei, sem me importar com o
barulho, a cabeça girando, o corpo estremecendo, o ânus se contraindo ao redor
de Luke, apertando-o e dificultando um pouco a penetração.
Ele grunhiu, amassou a minha pele e deu mais duas estocadas antes de se
enrijecer todo e gozar na minha bunda.
Caí no sofá de bruços, o corpo enorme em cima do meu, ainda
profundamente enterrado em mim. Alguns fios de cabelo cobriam meu rosto,
mas sequer tive forças para retirá-los, acabada e morta para o mundo. Luke
também tinha a respiração alterada, espalhando baforadas na minha nuca.
Lentamente, deslizou para fora e eu gemi, dolorida e sensibilizada. Ele
deitou ao meu lado, de frente para mim, e tirou meu cabelo do rosto, os olhos
semicerrados brilhantes de satisfação. Beijou minha testa, depois minha boca e
passeou a mão das costas até a bunda.
— Amo você — disse, um sorriso bonito no rosto.
— Você tem que me amar muito mesmo para compensar o que passei
aqui.
Ele riu.
— Você gostou de cada segundo, safada.
Qual era o sentido de negar a óbvia veracidade de suas palavras? Para
não sair por baixo, fiz o gesto mais maduro que me ocorreu: mostrei a língua a
ele.
Eu nunca iria enjoar daquilo. Fazer amor com Luke era uma das
melhores coisas que já havia experimentado. Principalmente porque, embora
fosse altamente carnal e erótico, estava muito além do sexo.
Era um encontro de almas.

Tomamos um longo banho juntos, aproveitando para namorar no


chuveiro. Enrolados em roupões, sentamos para jantar. A comida de Eveline,
como sempre, estava deliciosa, obrigando-me a repetir o prato. Mais tarde, ao
levar o mousse à boca, soube que a sobremesa nunca mais teria o mesmo
significado para mim. Estaria sempre associada à imagem da minha mulher toda
lambuzada e minha língua limpando cada parte dela.
Fazia frio, então liguei a pequena lareira da sala, Eveline buscou um
edredom no quarto e deitamos no sofá, conversando e tomando um pouco de
vinho. O ambiente estava à meia-luz, parcamente iluminado pelo abajur no
aparador, tornando o clima íntimo e aconchegante.
Não restava dúvida de que eu estava vivendo a fase mais feliz da minha
vida. A casa adquirira nuances de um verdadeiro lar, o gosto de Eveline presente
nas pequenas mudanças que ela fazia ao longo dos meses. Todos os dias eu era
recebido com cheiro de comida gostosa, o barulho da tevê ligada, misturado às
vozes de Romeo e dela, e os latidos finos e animados de Lola.
Eu me apegara ao menino de uma maneira tão profunda que chegava a
assombrar. E finalmente compreendi como Thomas, meu padrasto, não fizera
distinção alguma entre nós três. Quando Eveline e eu tivéssemos filhos, eu não
os amaria mais do que amava aquele pirralho. Romeo sempre seria meu
primogênito, aquele que fez de mim um pai.
— Você como sempre estragando meus planos — falei, um braço ao
redor do ombro dela, as costas apoiadas em meu peito.
— O que eu fiz dessa vez?
— Atrapalhou a minha surpresa.
— Que surpresa? — Girou o tronco para conseguir me olhar.
— Essa. — Apontei para o peito.
Eveline se afastou, virou até ficarmos de frente e estreitou os olhos para
enxergar o que estava escrito no lado esquerdo, sobre o coração.
— É um R e um E? — Arregalou os olhos.
Não respondi, apenas lhe dei um sorriso.
— Quando você fez? — perguntou, contornando as letras com o dedo
indicador.
— No segundo dia de viagem.
— Não acredito que tivemos a mesma ideia e a realizamos praticamente
ao mesmo tempo!
— Será que você nunca vai permitir que eu te surpreenda, mulher? —
resmunguei.
Ela riu com vontade.
— Desculpa, amor. Eu não sabia.
Puxei-a pelo pescoço para colar a boca à testa dela.
— Onde você fez?
— Lucy e eu fomos em um estúdio famoso em Chicago.
— Deus — gemi. — O que aquela pirralha tatuou no próprio corpo?
— Nada, eu juro — Eveline garantiu, ainda rindo. — Ela disse que fazer
uma tatuagem era algo definitivo, então precisava pensar bastante sobre o que
queria para sempre em “sua pele maravilhosa”.
— Começo a acreditar que o fim do mundo está chegando. Lucy Buttler
agindo com sensatez.
— Não fale assim dela. — Deu um tapa no meu braço, fingindo-se de
brava. — Todos os seus desenhos possuem um significado?
— Alguns, sim. Outros não passaram de rebeldia adolescente. Fiz para
meu pai, padrasto, alguns amigos que perdi no exército, mãe, irmãs. Outros
representam fases da vida, o que eu estava sentindo naquele momento. Marcar o
corpo em homenagem às pessoas importantes para mim foi o jeito que descobri
de expressar meus sentimentos.
— Ah, quando você fala essas coisas tenho vontade de te morder todo!
São lindas, amor. Fiquei fascinada por elas quando as vi pela primeira vez —
confessou, alisando as outras tatuagens que cobriam parte do peitoral e os
braços.
— Nenhuma se compara à sua — revelei, aproximando o rosto para
capturar seu lábio inferior com os dentes.
— Fico feliz que tenha gostado. A experiência não foi lá muito boa,
quem diz que não dói está mentindo, mas adorei o resultado.
— Toma cuidado, senhorita Eveline. Tatuagem é um caminho sem volta,
se não se vigiar daqui uns anos vai ter me ultrapassado em números — brinquei.
Ela riu também, abraçando-me, dando um beijo nas mais recentes letras
desenhadas em mim.
Eu odiei a ideia de estragar o clima descontraído, mas precisava falar
sobre um assunto importante. E esperava que a reação dela fosse positiva, no
final das contas.
— Enquanto estive fora, fiz algo sem te consultar.
Afastou novamente o rosto para me encarar, desconfiada.
— Meu Deus, o que foi agora?
Levantei e fui até a minha mala, ainda no chão à direita da porta, onde eu
a havia deixado ao entrar. Peguei o envelope lacrado e voltei ao sofá.
— O que é isso, Luke? Cada vez que vejo um envelope em sua mão é um
susto diferente.
— Aqui dentro tem todas as informações sobre a sua família biológica
que um amigo conseguiu levantar. Não sei se possuem informações realmente
relevantes, não sei o que está escrito, não li, sequer abri. Estou lhe entregando da
mesma maneira que foi entregue a mim. E fiz isso porque, apesar de apreciar o
fato de você considerar a minha família como sua, gostaria que tivesse a escolha
sobre conhecer ou não o seu passado.
O rosto dela empalideceu. Não sabia se tinha agido certo, mas queria dar
o mundo para aquela mulher. Muita coisa já havia sido tirada dela, muitas
decisões não couberam à Eveline tomar. Então, era importante para mim que ela
tivesse opções.
Após vários tensos minutos em silêncio, encarando fixamente o papel em
suas mãos como se fosse um monstro, levantou os olhos bonitos na minha
direção.
— Não quero abrir — disse, convicta.
— Tem certeza?
— Sim.
— O que quer que eu faça com ele? — Levantei o envelope.
— Quero que guarde em um local seguro — afirmou. — Eu já tive, sim,
muita vontade de conhecer as minhas origens, toda criança abandonada ou
adotada quer saber. Esse desejo cresceu quando Romeo nasceu e comecei a
pensar o que aconteceria a ele se eu morresse, por exemplo. Sentia pavor ao
imaginar meu filho sendo criado por aquele louco, à mercê de tanta violência. E
a madrinha dele vivendo com um traficante perigoso também não era uma opção
razoável para mim, para a minha paz de espírito.
“Esse peso saiu das minhas costas na quarta-feira, quando soube que a
adoção deu certo. O seu sobrenome da certidão de nascimento de Romeo me deu
paz, segurança e tranquilidade, tirou o peso das minhas costas. Porque agora eu
sei que se acontecer alguma coisa comigo, meu pequeno não ficará
desemparado. Ele terá você e sua família, que olharão e cuidarão dele com muito
amor. E esse foi o melhor presente que você poderia ter me dado.”
Engoli em seco, sentindo um nó na garganta. O peito ameaçava explodir
de orgulho daquela mulher.
— O prazer é meu, linda.
— Estou vivendo um momento tão feliz, pleno e satisfatório. Trabalho
com algo que gosto, tenho amigos maravilhosos, meu filho está bem, protegido,
vou casar com o homem que amo. O abandono dos meus pais biológicos parece
ter acontecido em outra vida, com outra pessoa. E não me sinto inclinada a
permitir que o que quer que esteja escrito nesses papéis estrague isso. Talvez eles
tenham tido um bom motivo, talvez não. Mas agora não me interessa descobrir.
Coloquei o envelope na mesinha de centro, sentei no sofá e a puxei para
um selinho demorado.
— Você tem o meu apoio sempre, independente do que decidir.
— Obrigada. — Passou a mão macia pela barba. — Muito obrigada por
ter feito isso por mim. É realmente maravilhoso ter a decisão nas mãos. Mas
prefiro que você o guarde e, se algum dia sentir curiosidade ou vontade de abri-
lo, eu faço.
— Combinado. E sobre aquelas mordidas das quais falou? Será que
tenho chance de ganhá-las?
Ela jogou a cabeça para trás e gargalhou. Eu ri também, admirando a
minha futura esposa.
Com as mãos no meu rosto, voltou a me encarar, a expressão travessa.
— Chegou o momento da minha terrível vingança. Se prepare, senhor
Lucas Hayes, porque ela será maligna. — Empurrou meu peito, fazendo-me cair
deitado no sofá.
De baixo, observei-a levantar, um pé em cada lado do meu quadril,
presenteando-me com uma visão privilegiada. Desfez o nó do roupão.
— Mal posso esperar — sussurrei, alisando sua panturrilha. — Minha
morena gostosa.
Ela riu novamente, enviando uma onda de bons sentimentos em minha
direção. Movimentando apenas os lábios, disse, sem usar a voz:
Amo você.
E eu respondi, do mesmo jeito.
Até o meu último suspiro.
EPÍLOGO


— Essa foi uma das fortes.
— Sim — concordei, ofegante, as mãos estendidas sobre as dele, que
espalmavam a minha enorme barriga de trinta e sete semanas e meia.
Todas as últimas contrações foram quase insuportáveis. Eu estava há sete
horas em trabalho de parto e com nove centímetros de dilatação. Apesar das
dores insuportáveis, me sentia calma e feliz por aquele momento. Porque…
Lá vem outra!
— Ahhhh! — gritei, curvando o tronco para frente, balançando a água ao
meu redor, sentindo muita dor na parte inferior das costas e região pélvica.
— Respire, amor — Luke sussurrou calmamente atrás de mim na
banheira, as pernas ao redor do meu corpo, massageando minha coluna como
aprendemos nas aulas de preparação para o parto.
O único momento em que o vi nervoso desde que descobrimos a gravidez
foi quando revelei o meu desejo de ter um parto domiciliar. Foi completamente
contra a princípio, enumerando com exasperação todas as coisas que poderiam
dar errado. Depois de compartilhar com ele todas as pesquisas que havia feito,
assistir a alguns documentários sobre o assunto e levá-lo à obstetra, que
explicara o procedimento em detalhes, ele foi se acalmando, aceitando a ideia.
No final, como sempre fizera nos três anos de relacionamento e dois de
casamento, ele me apoiara.
Tudo fora preparado para a chegada do bebê. Contratamos a equipe
médica e a enfermeira obstetra que assistiria o parto me acompanhou durante
toda a gestação. Os móveis da sala foram afastados e uma piscina inflável foi
instalada onde antes estava o sofá.
Luke usou o recipiente para pegar um pouco da água quente e jogar por
cima do ventre avantajado, enquanto tirava os fios de cabelo grudados ao meu
rosto por conta do suor. Outra contração chegou em seguida, tirando-me o ar.
Quando passou, joguei o tronco para trás, apoiando a cabeça no peitoral
firme do meu marido.
— Você está sendo maravilhosa — falou no meu ouvido, acariciando
toda a extensão da barriga com devoção.
Descansei o corpo nele, entrelaçando nossos dedos, confortada e cuidada
como sempre me sentia ao seu lado. Aquele parto estava sendo tão diferente do
de Romeo, em que o momento de júbilo fora atrapalhado pela presença daquele
homem horrível. Sentia-me segura, amada e realizada por saber que ele queria e
esperava o bebezinho tanto quanto eu.
O homem passou nove meses mimando-me além do razoável — fato do
qual você nunca me veria reclamar.
Abri os olhos e o rostinho assustado no corredor me chamou atenção.
— Chama ele, amor — murmurei para Luke, apontando com a cabeça
naquela direção.
Nós havíamos preparado Romeo durante toda a gravidez para aquele
momento. Contamos a ele que o irmão nasceria em casa e o deixamos à vontade
para circular por onde sentisse vontade. Ele decidiria se queria participar do
parto ou não. Aos seis anos de idade, era um menino carinhoso, inteligente e
intuitivo.
A despeito da decisão ser dele, a expressão de angústia no rosto amado
fez doer meu coração.
— Ei, rapaz. Quer vir até aqui e ver como eles estão? — Luke sugeriu.
Aparentemente indeciso, demorou alguns segundos para abandonar a
proteção das paredes e caminhar em nossa direção. Estendi a mão molhada para
ele, que a segurou com firmeza, os olhos idênticos aos meus cheios de
preocupação.
— Por que ele está fazendo a senhora sofrer tanto, mãe?
— Porque ele já está na minha barriga há muito tempo e agora quer sair.
Mas o espaço é bem pequeno, então dá um pouco de trabalho, sabe? — expliquei
com a voz fraca de cansaço.
— Ele não pode sair logo? Já faz horas.
Antes que houvesse tempo de responder, outra contração chegou e puxei
a mão da dele para não esmagar seus dedos. Encolhi-me inteira, prendendo a
respiração, travando o maxilar para não gritar.
— Faz um carinho na mãe para ela melhorar. — Ouvi Luke orientar.
A mão pequena alisou meus cabelos com carinho, inicialmente
hesitantes, mas ganhando confiança com a voz do pai incentivando-o a
continuar.
Patricia Maxell, a enfermeira obstetra, aproximou-se para me examinar.
— Dez centímetros, Eveline — avisou, sorrindo. — Agora é hora de
fazer força.
Luke beijou minha têmpora e eu olhei para o meu filho.
— Você quer ver o seu irmão nascer? Se não quiser, está tudo bem, amor.
Eu não vou ficar magoada.
Ele engoliu em seco e buscou o pai com o olhar. Em seguida, virou para
mim outra vez e assentiu.
— Eu quero.
Surpreendentemente, não demorou. No terceiro empurrão, senti uma
pressão absurda, que ameaçava me partir em duas e, em seguida, meu filho
deslizou para fora de mim. Patricia o pegou com rapidez e o colocou no meu
peito, enquanto a água ganhava tons avermelhados. Quando o chorinho irrompeu
no ambiente, a emoção explodiu no peito e vazou pelos olhos.
Eu olhava maravilhada para o minúsculo corpinho sobre o meu, a visão
embaçada pelas lágrimas.
— Ele é perfeito, Luke — comentei, soluçando.
— Ele é sim, linda — respondeu com a voz embargada.
— Seja bem-vindo ao mundo, meu amor. — Beijei a cabeça quase
careca.
Meu marido fechou os braços ao nosso redor e me deu inúmeros beijos
no rosto. Depois, puxou Romeo para mais perto.
— Consegue vê-lo, campeão?
Como ele não respondeu, levantei o rosto e o encontrei com lágrimas
contidas, o queixo tremendo, emocionado também. Com cuidado, virei o rosto
do bebê para o outro lado.
— E agora, amor?
Romeo deu dois passos à frente e pegou a pequena mãozinha. Os dedos
diminutos se fecharam ao redor do indicador dele, deixando-o maravilhado.
— Ele é pequenininho, mas aperta muito forte, mãe.
Luke e eu rimos do comentário espirituoso. E ao apoiar a cabeça no meu
marido outra vez, fiz uma prece silenciosa em agradecimento Àquele que sempre
me dava forças para seguir em frente.
Obrigada, meu Deus.


— Não machuca, linda? — perguntei, observando a boca ávida sugar o
mamilo com força.
— Apenas no início, mas é uma dor suportável. — Acariciou a fina
penugem escura que cobria a cabeça do bebê.
Era surreal a compreensão de que Eveline segurava nos braços uma
mistura nossa. Surreal e emocionante para um caralho.
A gravidez havia sido planejada. Quando completamos dois anos juntos,
um deles casados, ela parara de tomar o anticoncepcional. Após três meses de
deliciosas tentativas, a menstruação atrasara e um exame de sangue confirmara
as nossas suspeitas.
Ver todas as mudanças pelas quais o corpo da minha mulher passou foi
uma experiência enobrecedora. Junto à barriga dela, crescia a minha adoração
por ter ajudado a gerar uma nova vida.
E para ser honesto, eu não tinha do que reclamar. Eveline ficara muito
mais sensível ao toque, então bastava chegar perto dela para transarmos. Fui
acordado várias vezes com a boca dela no meu pau, ou a bunda gostosa roçando
em mim, provocando-me. Os seios maiores me enlouqueceram, assim como o
traseiro levemente mais arredondado. Nos últimos trintas dias, demos uma
maneirada, mas foram nove meses sensacionais. Por mim, teríamos cinquenta
filhos se ela assim o desejasse.
A gestação avançou de forma tranquila, sem nenhuma complicação. E foi
aquela certeza e a garantia da obstetra que Eveline era uma perfeita candidata ao
parto domiciliar que me fizeram aceitar aquela ideia. E ainda bem que ela
insistira, porque foi absolutamente incrível participar diretamente e ver meu
filho nascer em casa.
Ela estava sentada na cama, as costas apoiadas à cabeceira, alimentando
o bebê. Os cabelos presos e o semblante cansado não tiravam a beleza que os
olhos azuis exalavam. Enquanto para mim foi torturante vê-la sentindo tanta dor,
a mulher permaneceu calma, pacífica e satisfeita.
Quem bradava aos quatro ventos que mulher era o sexo frágil deveria
fazer um favor à humanidade e arrancar a própria língua. Um homem não
aguentaria dez minutos daquilo. Eu não suportaria um.
— Você pode fazê-lo arrotar? — ela pediu quando ele parou de sugar,
ajeitando o sutiã e a camisola.
— Claro. — Levantei, pegando-o no colo com delicadeza. — Descansa,
linda.
— Vou dormir um pouquinho. Qualquer coisa você me acorda? —
Bocejou, acomodando-se na cama.
— Descansa — repeti. Inclinei o corpo e depositei um selinho nela. —
Obrigado por me proporcionar essa experiência incrível.
Ela sorriu, os olhos brilhando de felicidade.
— Eu te amo, Luke.
— Não mais que eu.
Apaguei a luz e fechei a porta do quarto para deixá-la dormir. Depois de
colocá-lo na posição correta, não demorou nada até o forte arroto ser ouvido.
Logo depois, as vozes na sala chamaram minha atenção.
— É verdade, vovó, eu vi! — exclamou Romeo. — Ele saiu da perereca
da minha mãe.
Quase gargalhei ao entrar no cômodo já completamente arrumado e ver o
rosto estupefato da minha mãe, que certamente acabara de chegar para conhecer
o neto.
— Agora não, porque é pequeno, mas quando crescer vou lembrar todo
dia que ele passou a cara na perereca da minha mãe. Eu não fiz isso! Cortaram a
barriga dela para me tirar, então não podem me perturbar.
Não pude mais prender o riso e os dois perceberam a minha presença.
Dona Rebecca arregalou os olhos ao ver quem eu carregava. Levou as mãos à
boca, a emoção cobrindo toda a expressão. Ela parecia congelada no lugar.
— A senhora não quer conhecer seu neto, dona Rebecca? — brinquei.
— Oh, querido! — Mas continuou firme onde estava.
Notando que ela não conseguia se mover, aproximei-me e o passei para
seus braços.
— Meu Deus! Como ele é lindo e perfeito. — Passou o dedo nas
mãozinhas fechadas. — Oi, amor. Sou a vovó e vou estragar você de mimos e
amor.
Lola, deitada no sofá, se mostrava completamente indiferente à chegada
do novo membro à família.
— Eveline está descansando?
— Sim, acabou de amamentar e a deixei dormindo. — Sentei no sofá e
Romeo veio para o meu colo.
— Podemos contar a ela agora? — “sussurrou” no meu ouvido.
— Você quer falar?
— Sim!
— Então vá em frente.
— Vovó, sabia que o nome do meu irmão é Thomas Hayes?
Ela levantou o rosto do neto para o meu, os olhos ameaçando saírem de
órbita.
Nome do meu padrasto. Sobrenome do meu pai.
E no que dependesse de mim, seria um homem tão bom e honrado quanto
os dois foram.
— Que homenagem linda, querido — fungou, claramente emocionada.
— De onde os dois estiverem, sei que estão orgulhosos de você. Quando o vejo
com Romeo, Thomas vem à minha cabeça imediatamente. Vocês não
compartilham DNA, mas possuem muitas características em comum. E o seu pai
também era um homem maravilhoso.
Assenti, a emoção criando um bolo na garganta. Eu era consciente de ser
um homem sortudo por ter nascido em uma família como aquela. E me
orgulhava de estar construindo uma tão especial quanto.
Minha mãe passou o restante do dia conosco, ajudando e babando no
neto. Pouco antes das oito, Romeo tinha uma mochila nas costas, pronto para
passar a noite na casa da avó adorada.
— Querido, fiz comida para vocês. Amanhã volto para ver Eveline e
ajudar no que precisarem.
Abracei-a e beijei o topo da cabeça que não chegava ao meu queixo.
— Obrigada, mãe.
— Amanhã o pessoal vem conhecer Thomas. Estão loucos para vê-lo.
Sorri, imaginando a loucura que se instalaria em casa no dia seguinte.
— Pai, você consegue cuidar da mamãe e do meu irmão sozinho? —
Romeo perguntou, compenetrado e preocupado. — Se precisar de ajuda, eu fico.
O peito encheu de orgulho. Estávamos criando o garoto bem.
— Eu acho que consigo — respondi, bagunçando o cabelo dele. — Se
não der, ligo para você e vou te buscar, mesmo se for de madrugada.
Combinado?
— Combinado.
Trocamos um abraço, ele foi buscar Lola e os três saíram.
A casa caiu em um atípico silêncio. Ativei o alarme de segurança,
desliguei as luzes e fui para o quarto. Thomas dormia tranquilamente no peito da
mãe, todo encolhido e satisfeito. As duas mãos de Eveline repousavam nas
costas dele.
A cena me cobriu de emoção. Tirei os sapatos, deitei no meu lado da
cama e passei o braço ao redor dela, trazendo seu corpo para perto. Minha
esposa se remexeu e apoiou a cabeça no meu antebraço.
E, enquanto meus dedos alisavam o rosto pequeno e rechonchudo,
sentindo a maciez da pele de bebê, uma antiga dúvida foi definitivamente
extinta.
Sim, realmente existia um Deus. E eu sentia a Sua presença naquele
quarto.
LUCY – LIVRO 2 DA TRILOGIA LTM
SINOPSE

Para se livrar de uma família disfuncional, Matthew Baker fez da casa
dos Buttlers o seu verdadeiro lar. Tudo caminhava perfeitamente bem até Lucy, a
caçula do clã, decidir que estava apaixonada por ele.
Matt levou as inúmeras investidas na brincadeira, os dez anos de
diferença entre os dois mantendo-a a uma distância segura. Mas uma noite de
fraqueza mudou as coisas de forma irreversível.
Anos depois, carregando as consequências emocionais de um sequestro
violento e traumático, Lucy está decidida a deixar o passado para trás. Para
tanto, a paixão adolescente que sentira por Matt precisava ser enterrada de vez. E
era isso que faria.
No entanto, por mais que você tente fugir do passado, ele sempre
encontra o caminho de volta. E, nos momentos de dificuldades e surpresas
impostas pelo destino, de uma maneira improvável, eles encontrarão o apoio
necessário um no outro.
UMA PRÉVIA DO QUE VEM POR AÍ


Naperville, Illinois, abril de 2011.

Meu estômago reclamou pela terceira vez no último minuto. Tentei
ignorá-lo, mas a fome já causava dor na barriga. O relógio marcava duas e cinco
da manhã. Suspirando, tirei apenas o fone de um dos ouvidos, prendi o IPod à
calça do pijama e levantei na cama.
Como minha mãe estava fora há dois dias, acompanhando uma amiga
recém-operada, provavelmente eu só encontraria uma caixa velha de cereal na
cozinha. No máximo, se estivesse com sorte, haveria um pedaço de pizza na
geladeira.
Todo mundo sabia que eu era um completo desastre culinário ambulante,
até os meus ovos mexidos conseguiam ficar com consistência e gosto duvidosos.
Laura dizia que eu era a vergonha da família naquele quesito. Até Luke se saía
melhor que eu, mas quando conseguia as raras folgas do exército, cozinhar não
entrava na lista de prioridades dele.
Dona Rebecca havia preparado uma quantidade de comida que
normalmente duraria uma semana ou mais. Com meu irmão e os amigos em
casa, no entanto, tudo tinha acabado em vinte e quatro horas. Os brutamontes
consumiam em uma refeição o que eu levava três dias completos para ingerir.
Atravessei o comprido corredor que levava às escadas e, antes de descer
o primeiro degrau, pensei ter ouvido alguma coisa. Tensa, tirei o outro fone e
fiquei quieta, esperando para ver se o barulho se repetiria. Agucei a audição e
escutei mais uma vez. Aquilo era um… gemido?
Com o coração acelerado, voltei alguns passos até parar em frente ao
quarto de hóspedes onde Matt costumava dormir. Uma voz feminina exclamou:
— Vai, mete mais forte… Me come com força!
A constatação do que acontecia ali dentro, a poucos metros de mim, me
deixou estupefata. Por alguns segundos, fiquei completamente chocada, o queixo
quase tocando o chão. Tapei a boca antes que deixasse escapar um som de
espanto.
O canalha trouxe uma mulher para casa enquanto minha mãe estava fora!
E nem sequer teve a decência de fechar a porta completamente enquanto
transava com ela!
Uma irritação me percorreu e o sangue subiu para a cabeça. Era a maior
falta de respeito! Se quisesse comer alguém, pagasse a porra de um motel! Dei
dois passos para frente, disposta a invadir o cômodo e fazê-lo passar a maior
vergonha da sua patética existência. Quando meus olhos tiveram o primeiro
vislumbre da cena, contudo, fiquei estática.
Uma loira estava de quatro na cama, uma mão no colchão e a outra
segurando a cabeceira com força. Matt estava posicionado de joelhos atrás dela,
permitindo que eu visse somente o cabelo comprido. A bunda masculina
musculosa e bem-feita se contraía enquanto o quadril balançava para frente e
para trás em uma velocidade impressionante.
Engoli em seco, sentindo uma sensação estranha por dentro. Ao mesmo
tempo que estava ultrajada por presenciar algo tão cru e devasso, havia alguma
coisa de fascinante em ver um homem e uma mulher praticarem um dos atos
mais antigos da humanidade, tão unidos quanto fisicamente possível. Eu sabia
que deveria dar meia volta e correr para meu próprio quarto antes de ser
descoberta e acusada de voyeur, mas simplesmente não consegui me mover um
centímetro.
Matt enrolou os fios dourados com os punhos, puxou a cabeça da garota
para trás e aumentou a velocidade das estocadas. Os gemidos femininos também
cresceram.
— Ai, ai… Eu vou gozar, Matt! — ela quase gritou.
— Goza, porra! — ele respondeu, estapeando-a na bunda com força.
Então, a mulher perdeu o controle e gritou alto. Realmente alto. Ele
inclinou o tronco para frente e tapou a boca dela com a mão, sem parar os
movimentos.
Tarde demais, imbecil! A vizinhança inteira deve ter ouvido essa
baixaria! E pior, com certeza imaginam que sou eu a escandalosa fodedeira!
Instantes depois, foi a vez de um gemido rouco e meio contido sair da
garganta grossa. Matt jogou a cabeça para trás, apertou a cintura da loira e
estremeceu.
Com o coração retumbando no peito e a cabeça um tanto aérea, virei e
corri para o final do corredor o mais rápido que pude. Fechei a porta do quarto
em um baque e a tranquei. Meu peito subia e descia rapidamente e, por mais que
tentasse, não conseguia compreender a minha reação física ao flagra.
Eu estava com quinze anos, já havia beijado garotos e assistido vídeos
pornôs com as amigas da escola, mas aquilo foi o mais perto do sexo que tinha
chegado até então. Foi a primeira vez que presenciei duas pessoas transando.
Joguei-me na cama de barriga para cima, olhando o teto e tentando tirar a
imagem da cabeça, porém ela estava crua e nítida, como eu acreditava que
ficaria por um longo tempo. Sentia meu corpo quente e o estômago embrulhado.
Os mamilos estavam eriçados contra o tecido do pijama e a vontade de apertar
uma coxa na outra era latente, quase desesperada.
Deus, era Matt!
O cara que me viu crescer e esteve presente em todos os momentos
constrangedores da minha infância. Quando menor, eu costumava sentir por ele a
mesma coisa que sentia pelo meu irmão.
Eu deveria estar debruçada sobre o vaso sanitário vomitando por ter visto
aquela cena, e não ficar… Excitada.
Recoloquei os fones e aumentei o volume ao máximo, a voz de Beyoncé
estrondando em meus ouvidos.
Demorei horas para dormir e, quando o sono veio, tive o meu primeiro
sonho erótico.
Com Matthew Baker.
SOBRE A AUTORA
Isabela Delezzott tem vinte e seis anos, nasceu e se criou no interior da
Bahia, onde atualmente reside com o marido, a avó e os dois filhinhos de quatro
patas, Lola e Nick. Ainda pequena descobriu o amor pela leitura, mas a paixão
pela escrita se desenvolveu aos doze anos, quando passou a escrever fanfics no
extinto Orkut. Desde 2017 vem publicando suas histórias no Wattpad e depois de
muito incentivo da família e das leitoras, resolveu se aventurar na Amazon.

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