Capítulo 2

A INICIATIVA INSTRUTÓRIA DOS

JUÍZES NOS CRIMES CONTRA A
"
ORDEM ECONOMICA

Eduardo Emanoel Dall'Agnol de Souza!

Sumário: I Introduçao: 2 A verdade como razao de ser da investiga-

Çao processual penal; 3 Intenções políticas do discurso que
torna a verdade o centro da investigação processual penal;
4 O papel investigativo dos juízes nos crimes col11raa ordem
econômica em um Estado Democrático de Direito; 4. I Por um
estatuto ontológico que leve em conta as Iimitw;ôes inerentes
ao ato de conheca: 4.2 Por um estatuto político Jimdado em
valores de um Estado Democrático de Direi/o; 5 Conclusões;
6 Refi:rências.

Nestc artigo pretende-se oll'rccl'r uma abordagem capaz de acla-

rar as dificuldades teóricas que tradit,jonalmente envolvem a questão da
iniciativa probatória dos juizes no pron'sso penal, especialmente nos
crimes contra a ordem econômica, Para isso, pretende-se superar o dis-
curso hermético que envolvc o 1l'1l1aalr;1\ ('s dt' lima análise que distingue
e considera isoladamcnte dois aspl'l'11lS IIIH' ,'I1VO!VCII1 o espaço de produ-
ção de provas dos magistradlls li ,'sl;llllltl llllllllúgico que explica os po-
tenciais e os limites do alo de ,'111111\'1','1 " 11 eslalllto político que define

Bacharel em Direito pela fa\'lIld,lth- ,I.- \111"'1" .I,' 1"111,1>,,111)( 'I. ,I" (\'ntro Universitá-
rio Curitiba (Unicuritihal \ll',ll.ld •• 1'11111111 ''''I'dil I illl\O'l~ltlíllk' d,' ('"imhra Portugal.
quais develll ser as 1'1111~'Úl'S
du juiz no processo penal. A partir de UIll
trabalho de .deseonstnl~·ao analítica das formulações corriqueiras, preten-
de-se sugenr call1lllhlls para a l'Onstrução de um estatuto ontológico cal-
ca.do em uma teoria do cUllheómento consistente e um estatuto político
almhado com valores de IIIll Estado Democrático de Direito.
A grande maioria das discussões estabclecidas no Brasil a respei-
to do espaço de iniciativa instrutória dos juízes no processo penal funda a
autorização desses poderes na necessidade de se descobrir a verdade so-
bre o fato investigado. Isso porque se considera que a importância dos
bens jurídicos tutelados em esfera penal, a gravidade das condutas delituo-
sas c as sérias implicações das penas que podelll ser infligidas tomam
necessária a descoberta inequívoca da verdade, seja para fàzer justiça
contra o autor do crime, com uma pretensa proteção da vítima ou da socie-
dade, seja para evitar punições apressadas que podem ser consideradas
injustas, com intento de salvaguardar o acusado contra um exercício in-
devido do poder de punir do Estado. Essa verdade buscada no processo
penal é tradicionalmente definida como "real" ou "material", em oposi-
ção à verdade "processual" ou "fonnal" do processo civif.
O discurso processual penal assim estabelecido assume uma aparên-
cia hennética quando se considera que foi introduzido na legislação brasileira
há cerca de 70 anos, com o decreto do Código de Processo Penal de 1941
(CPP), e que continua preservado em sua essência nos dias de hoje. FOIjado
durante o Estado Novo, com justi1icativa oficial apresentada na Exposição de
Motivos desse Código pelo então Ministro de Justiça Francisco Campos, ele
passou insensivelmente pelas significativas mü&nças políticas que o Brasil
vivenciou. Podem ser apontadas pelo menos duas razões para essa aparente
dissociação do discurso processual penal de seu contexto político.
A primeira, é de que a ideia de verdade constrói-se no imaginário
processual penal como algo quc não admite concessões a contingências his-
tóricas. Para o discurso jurídico modemo, a verdade representa a correspon-
dência entre um enunciado c a realidade das coisas3. Nesse contexto, se a
DIAS, Jorge de Figueiredo. l>ircito processual penal. Coimbra: Coimbra.
p.IX7-188.
Essa noçào pode ser identiticada no discurso do din:ito processual penal pelo menos
desde o século XIX, e contínua presente na atualidade. como podem indicar, a título
de exemplo, as formula\ôes de dOIS autores: para Nicola Framarino Dei Malatesta,
que escreveu no século XIX, a",·, '/'.I,/(Ie. em geral. J li cOllfimllic/lIde C/Unoçào iJeo-
busca por essa verdade é uma busca pelo conhecimento do que realmente
aconteceu em um momento passado, parece evident~ supor,qu~ ela ~e.va ser
considerada superior e indepcndente de qualquer clrclmstanCla po\ltlca ou
razão objetável. Esse significado da expressão "~erdade", disseminado no
senso comum, continna o ideário de uma modemldade amparada na cren!a
em uma razão que pretende fundar-se sobre ela m~s~a c "sobr~ ~/m :'~ncelto
de verdade que mio é apreendido em termos econmmcos ou PO!ltlCOS .'
A segunda razão vem de uma característica própria ao diseurs~ jurí-
dico que é a de tentar se distanciar do discurso político, Em certo se~l~ldo:.a
juridieização de um objeto do discu~so pol.ítico representa sua establl:zaç~o
corno valor sobre o qual não se penmtc abnr uma margem de concessoes t~o
ampla quanto seria se ele estivesse na esfera d~ político ..A pretensão do dIS-
curso político vitorioso é de se converter em leI, n~ m~dlda em que essa c~n-
versão representa a obrigatoriedade de sua observancl3, sob pel~ade sançao.
Essa primazia do discurso jurídico é notável quando se conslder~ .q~e. as
discussões travadas entre juristas brasileiros a respeito do espaço de 1l11Clatlva
instrutória do juiz no processo penal partem da prescrição ~efinida y~lo
art. 156 do Código de Processo Penal', quase como se esse fosse o UI1ICO
ponto de pal1ida possível.. l~so se toma es~ccialm~nt,enotório ao se observar
que a jurisprudência braslielra e a produçao do~tnnana sobre o assunto ten-
dem, de modo geral, apenas a comentar esse artIgo.
Assim, o hennetismo do discurso jurídico encobre dois aspectos
fundamentais para a compreensão das razões que fundam o espaço de
iniciativa instrutória dos juizes em esfera criminal. Um deles é o estatuto
ontológico, ou seja, o modo como é compreendida a capacidade humana
de conhecer, considerando especialmente as limitações do ato de conhe-
cer processual, que é atado a un~a.série de ~egras fixa~as ant~s da investi-
gação; o outro, é o estatuto pO.l1tlC.I~,ou seja, as conslderaç~e~ de ord.el~l
polítka que fundamentam ou JUstltlcam os poderes probatonos dos Jlll-
zes. Desses dois aspectos extraem-se duas perguntas que devem ser res-
pondidas satisfatoriamente para tomar o discur~o pr~c~ssual coerentt;.
Uma, é voltada a estabelecer um estatuto ontológlco mmlmo para as pra-
lógica com li reulic/ac/c". (Mt\L'\n;sTt\. Nicola Framarino Dei. A lógica das pro-
vas em matéria criminal (, ,'d ( amplllas Buuksel1er, 2005. p. 25.) E para Julio
Maier, autor contcmpnrillleo. a "'Idade " a "II'!"~"/l ~e ~'oncordância enl"e u pensa-
mento e o uhil:'to PCI/SIlI!O" '111"" ,."'". ''''1//,,(.10 idco!oglco correia de limo ~'eohdad('
olltu/áaico". (traduçào li, rl') (\1:\ 11·11.IlIhll Ih'rl'l'hu procesal penal argentmo. Bue-
1974.
nos Ai;es: Hammurahi. I'IS" I I., h. I' "(I,' I
TOURAINE, Alain. lim 1111\1'JlílrillllUnlll pólla 1'1I1ll1 rcender o mundo de hoje. Pe-
'
trópolis: Vozes. 20U6. p. S7
As duas redaçi\es pelas '11\;11'. ,..... ,. ,,'I'l'" "a·.'"1I "Il\·ul1lram·se nas notas ti e 12, a
seguir.
ticas processuais: "a verdade pode ser buscada no processo penal?". A
outra, se volta ao estatuto político que define as práticas probatórias nu
processo: "a verdade deve ser buscada no processo penal?".
Respostas coesas a essas perguntas são especialmente importan-
tes na atualidade, ao se observar forte tensão em favor da tlexibilização
de garantias penais e processuais penais nas chamadas sociedades pós-
-industriaisb, em razão da emergência do risco "de procedência humana
como fenômeno social eslrullIral"7. O direito penal material tem dado
prova disso em seus novos desafios no que concerne à delimitação dos
bens jurídico-penais e no que diz respeito à responsabilidade em cri-
mes de maior complexidade, como é o caso dos crimes contra a ordem
econômicax. No que toca ao processo penal, essas questões têm impor-
tância reflexa, visto que as dificuldades de se investigar e de se res-
ponsabilizar o verdadeiro autor do fato punível tornam-se mais com-
plexas. Há maiores dificuldades de se buscar provas nos crimes contra
a ordem econômica porque vários desses crimes são resultados de
práticas financeiras que exigem conhecimento técnico altamente espe-
cializado, tornando difícil sua descoberta. Isso quer di~er que "u di-
nâmica das condutas que possihilitam a prática desses crimes nào é
acompanhada no mesmo ritmo pelo sistema penal (ex. crimes ciherné-
ticos). Soma-se a isso a pouca capacitação dos órgàos estatais no
combate dessa forma de criminalidade"q.
Assim como o direito penal,' o processo também pode tentar en-
contrar soluções aparentes na flexibilizaç:ão de garantias do acusado. A
central idade que os riscos ocupam diante da impossibilidade de se deter-
Toma-se por base atlui uma proposla teúriea amplamente difundida nas pesquisas
jurídico-penais contempor.incas. tllll' parte da noçào de "sociedade do risco" dcsen-
volvida por Ulrich Reá. (BH 'K. I Jlrich. La sdaiedad dei riesgo mundial: en busca
de Ia seguridad perdida. Ban:elona: I'aídús. :!OO8.)
SILVA SANCIlFZ, .IcsÍls-Maria, " expansão do direito penal: aspectos da política
criminal nas sociedadl's pús IIldllstnals, São Paulo: Revista dos Tribunais. :!OO2. p. 29.
Uma ddinil;;Io lapidar dessa 1Il0dalidatlc dditiva é oferecida por Luiz Antonio Câma-
ra: "Os a;",I',~lit' I'ml'rl',~u <'0111111//('11I calegoria diferenciada de inji'uç6es penais.
murcl/(/II /It'/o 111/.'/\';0 11111'1I ,hl/ill/II (agl'nll'.I' com alto poder aquisitivo). sujeiçào
fiOS";"" d!/II.'" (/11;0 ,·.I/II',,/i, '01./0.1,. \'ililllas). e vulneraçào de hl'ns supra-individuais
1.. -1"", II ,\I\L\lU\. 111I1/\11101110.l(cf1cxões acerca das medidas callte\ares pessoais
1I0Sl'IllIl''', I"otllta li ""l'l1lil ltll,lIlú'lro naeiunal. In: GEVAERD. Jair; TONIN, Mat1a
(I 1I~, , !)1.-rlllI /·lIIlln· ••••·IIII,. ddlldllnia: questões contemporâneas. Curitiba: Juruá,
,'fln/, I' ." I I C I h"11I'1I1'1.IIII1I1'ldllaltllle interessa para o momelllo é a ordem eco-
11011111 'I (,III111"'
I 7iJ Ihl ( "'II'lltlll~';\Oda República Federativa do Brasil).
1'1IH " I 11I ti 1,""'\' :\1111.11,10, 7 difiruldades para se punir os crimes de colarinho
!l'14""lI Ilí"I""'I\ ••1 "111 11111':' www.novacriminologia.eom.br!Arts./ ArtigoLer.asp'!id
'\11111" 'IC" I"'"
;\. ,'11101110\,1010,
minar a extensão das lesões possíveis pode fazer com que nos crimes
contra a ordem econômica haja abandono de garantias processuais
para que se assegure a produção de resu1ta~os nas in,ves~igaç~es: De
todo modo, diante das demandas contemporancas da Justiça cnmmal,
para que se possa definir com clareza para qual dos lados o processo
penal deve tender (flexibilizar ou garantir), é necessário que seja es-
truturado um estatuto politico coerente com os valores que se pretende
realizar através do processo.
A questão que se coloca neste trabalho, portanto, é a de como
pensar a atuação instrutória dos magistrados de modo a considerar .as
novas demandas da criminal idade econômica, sem que se esbarre na HO-
lação de garantias. Para isso. pretende-se discutir os estatutos ontológicl~s
(ponto 2) e os estatutos políticos (ponto 3) que se colocam como dom~-
nantes na prática brasileira. para que, a partir de uma caracterização da
discussão atual. seia oferecido um ponto de partida mínimo capaz de
coibir a conversão 'de incoerências no discurso processual em espaço de
tlexibilização de garantias processuais na csfera dos crimes contra a or-
dem econômica (ponto 4).
2 A VERDADE COMO RAZAo DE SER DA
INVESTICAÇAo PROCESSUAL PENAL
Toda prática processual supõe de maneira explícita ou implícita
um modo de perceber as potencial idades c os limites da capacidade de
conhecimento do scr humano, assim como as potencial idades de investi-
gação de um fato passado no contexto processual. Costumciramentc, essa
percepção é tomada cm um sentido implícito. Nos tribunais brasileiros e
na maioria da doutrina, quando sc diz que a busca proces-sual é pautada
pela descoberta da verdade real. c por isso se confere poderes investigati-
vos amplos aos juízes a partir do art. 156 do CPP, pouco se diz sobre a
exequibilidade dessa proposta. A incongmência mais evidente dessa inde-
finição é o fato de que, ao mesmo tempo cm que se prima pela descoberta
de uma verdade incontrovcrsa li respcito do passado, adm.itc-se uma série
de limitações a ela atravl~s de rcgr:1S processuais. As presunções, por
exemplo, demonstram quc a pr:üil'a processual só está disposta a investi-
gar a verdade até um certo lil11ilt:,A proihição de provas ilícitas, por seu
turno, demonstra que hú lil1l1ll'S;'1111,,'sligaç:io que o legislador nào pre-
tende ver ultrapassados.
Para se comprel'IHkl l',llllll 11111.\
1I1l'Ol'rl'nciadessa natureza pas-
sa despercebida - e tal11hélll l'aLI 11'111011
""1111":1-1:1é necessário saber se
há algum estatuto olllolúgil'O da prática processual penal brasileira na
lei e nas decisões de tribullais para que seus limites possam ser explora-
dos. Para fins analítiws, agrupa-se a possibilidade de formação desse
estatuto a partir de dois núl:!eos. Um, que parte da ideia de que a verda-
de pode ser alcançada e outro, que considera que a verdade não pode ser
alcançada no processo penal. Esses são núcleos irredutíveis, ou condi-
ções necessárias, de qualquer percepção implícita ou explícita sobre
como se pode ver a investigação processual. Quando se pretende ofere-
cer resposta à pergunta a respeito de ser a verdade um objetivo tangível,
um desses dois núcleos fará necessariamente parte dessa resposta. E o
paràmetro de avaliação da coerência teórica de cada uma dessas pers-
pectivas passa pelo modo como elas respondem a outra pergunta: Por
que a verdade pode, ou não, ser atingida?
Da análise da legislação vigente sobre o espaço de iniciativa pro-
batória do juiz encontram-se primeiros traços que apontam para a caracte-
rização de um estatuto ontológico difuso e pouco desenvolvido. Francisco
Campos, na Exposição de Motivos do atual Código de Processo Penal,
afirmou que, além de conduzir e julgar uma açào penal, o juiz, com a
conversão do então projeto em lei, teria permissão para .'ordenar, de oji-
.
CIO,as provas que Ihe parecerem IItels
.. ao esc I'arcclmento
J
Claver dade,,10 .
Essa formulação ampara o art. 156 desse Código, que autoriza o magis-
trado a determinar a realização de diligências sempre que considerá-Ias
necessárias para o csclarecimento de dúvidas encontradas no curso do
processo) J. Sobre a redação desse artigo, é ne~ssário considerar a alte-
ração pela qual ele passou com a Lei 11.690, de 2008, que ampliou esse
poder probatório. Atualmente os juízes podem determinar a realização
dessas diligências não apenas no processo, mas também nas investigações
··
pre IImmares -. j1
'1'1
III BRASIL. Dee.-Ici 3.931 de 1941. Código Penal; Processo Penal e Constituição
Federal. 5. ed. São Paulo: Saraiva. 2009. p. 382.
11 A redação original tinha o seguinte conteúdo: "Art. 156. A prova da alegação incum-
birá a quem a .fizer: mas o jui: poderá. no curso da instrução ou antes de proferir
sen/enra, de/t'I'mi/lar. de oficio. diligências para dirimir dlÍl'ida sobre ponto relevan-
le". (BRASIL. Dec.-Iei 3.61;9 de 1941. Disponível em: <http://www.planalIo.gov.br/
ccivil!decreto-leiidcUhl(I).htm-'. Acesso em: 15 se!. 2010.)
12 A nova redaç<io 1l'll1o seguinte teor: "Art. 156, A prova da a/egaçelo incumbirá a
«(11<'11I (I li:("/". s<"/ldo.Ilfll":'/I. IÍI<'ullado(lOjuiz de oficio: 1 ordenar. mesmo antes de
illiciod<l li oçúu /'1'1/01. li (JI"Udll\'elU antecipada de prOl'as consideradas urgel1les e re-
1"1·.1/111"\, ub",n"(//,,/o o /I(·c,·.uit/ade. adequaç'ão e pl'Oporcionalidade da medida; fi
d<"l."'IIIIII'II·. /111,'lIno .1<1 ÍlI.,"/rU\úo,ou (ln/es de pro{i!rir sel1lença. (l realização de di-
Itg':II' /11' ('1/1/1 ,/il"ll/llr dtil'ido .wnre ponto relevame". (BRASIL. Dec.-Iei 3.689 de
IIJ,II t )"I"'llIwl ,'111: . hltp:i/\vww.planalto.gov.br!ccivil!dcerctu-lei/deI3689.htm>.
AlI".,,, ,'111 1"""1 . .:'010.)
Quando se afirma na Ex.posição de Motivos que as provas podem
ser produzidas desse modo, na medida em que ao magistrado pareçam
"úteis ao esclarecimento da verdade", isso qucr dizer quc Francisco Cam-
pos partiu da ideia de que a verdade pode. de fàto, ser alcan~ada de modo
inequívoco? Ou ele estava apenas querendo ressaltar que, mdcpendent~-
mente de poder, ou não, ser a1cançada, a vcrdade deve ser bl.lscada? ~ pn-
meira pergunta não pode ser respondida com clareza a partir do conjunto
da Exposição de Motivos, Não obstante, é certo que, se a resposta a ela
fosse positiva, seria patente a incongruência acima apontada sobre as limi-
tações processuais relativas às presunções e à proibição de provas ilícitas.
Já quanto à segunda pergunta, é certo que no trecho citado propugna-sc
pela necessidade de se buscar a verdade. Portanto, vê-se dcsenhado com
clarcza não um estatuto ontológico, mas um primeiro elemento de um esta-
tuto político que norteia as práticas processuais. Ele será analisado em maio-
res dctalhes na próxima seção.
Diante da impossibilidade de sc dcfinir um estatuto ontológico
inequívoco a partir da legislação vigente, cabe observar de que modo os
tribunais interpretam os poderes probatórios da lei para que sejam encon-
trados vestígios de como uma tradição jurídica vê sua própria capacidade
de investigar. Porque, mesmo que esse estatuto ontológico não scja. for-
mulado expressamente, os estatutos políticos estruturam-se a partir de
impressões gerais a seu respeito. Para saber se algo deve ser buscado, ou
seja, para se definir um estatuto político coeso, é necessário que prelimi-
narmente se considere se o objeto da busca é tangível, se a realidade for-
nece condições à sua investigação.
O Superior Tribunal de Justiça tem um entendimento pacificado a
respeito do que cmbasa a produção de provas. A sua forlllulação geral
afirma, como se pode extrair de um julgado publicado em 13.09.2005 e
relatado pelo Ministro Hélio Quagl ia Barbosa, que "0 magistrado, sob o
amparo do princípio da hlls('l/ da verdade real, pode tomar a iniciatim
de determinar (/ produÇ"clode I'rom qlle entenda indispensável para a
Jormaçâo do seu cOIl\'cncilllcnto" 11 , Ainda, na em.cnta dO.H.abca'i C(~r-
pus 32.578, publicado em OI.OX.2006. com relatona da Mll1lstra Launta
Vaz, aponta-se que,
nada impede I.(I/e (I 1/0\'0 .Il/i::o ""/11/1('/1'11/1', caso assim entenda. pro-
ceda à oitiva .Ias .I(·/II,m In/"I/I/II//ws la/tOl/tes, da defesa e aClIsa-
13 BRASIL. Superior Trihllllal d,' 111',11\.1 H,', 111"'" hlll"'ial 174.290 da 6" Turma do
Superior Tribunal de .111'11\.1 11I,"'''la. I I) 1\ IIIJ2fK)'i. l>isponível em: <https:i!
ww2.stj.jus.br/rcvistaclclrlltll,a 11.1 .1',1'"1'1"',1111 1(11)SIKI.\.171)25&dt_publicacao=03! 10/
20(}5> Acesso cm: 25 mal .'11111
 {'i/{) , a I('or ela jlo.l'.I'ihilidac/e de iniciativa prohatória do juiz, expres-
sa no art. 156, do ('rídigo de Processo Penal, como /órma de obten-
~'à() do alCtlllce da \'el'daJe real, que sempre deve prel'alecer fiO pro-
cesso penal14•
Na mesma Corte, na ementa do acórdão do Habeas Corpus
111.215, publicado em 13.04.2009, com relatoria da Mina. Jane Silva, lê-
se em um trecho que "razoável se mostra a dilação do término do pro-
cesso, pela natureza da persecutio criminis, para a perquirição da
verdade real e exercício tanto da ampla. defesa quanto do contraditó-
rIO
.
em caso ue.1
processos comp Iexos "I''. H'a casos maIs
. recentes que
podem ser agrupados a partir da posição (repetida em diversos julga-
dos) do Recurso Ordinário cm Habeas Corpus 27.555, de relatoria do
Min. Geraldo Og Femandes, publicado em 09.08.2010, cujo teor parcial
da ementa é o seguinte:
{ ..} Entrelanto, ainda que se admita que a nova redaçào do art. 2 j 2 c/o
Código de Processo Penal tenha estahelecido uma ordem de inquirido-
res de testemunhas, li lu::.de uma intelpretw;iío sistemútica, a não ob-
servância dessa regra pode gerar, no múximo, nulidade relativa, por se
tralar de simples iflversiio, dado que nàofiJi suprimida doilli::. a possi-
hilidade de efetuar as sllas pelgllfltas, ainda que .I'uhsidiariwnente, para
o esclarecimento da verdade real, sendo certo que, aqui, o interesse
protegido é exclusivo das parteslÓ:
Invoca-se, portanto, nesse tribunal. um prinCIpIO da "verdade
real" que tem tendência a considerar como núcleo de seu estatuto onto-
lógico a possibilidade de se atingir a verdade. Essa afirmação não está
isenta de contestação, mas parece poder ser sustentada especialmente a
partir do trecho da ementa acima citada d~,Mina. Laurita Vaz, quando
ela afinna que a prescrição do art. 156 é necessária "como forma de
14 BRASIL. Superior Tribunal de Juslll;a. f!"heu.l' COI'lJII.l'32.578 da 5" Turma do Superior
Tribunal de Justiça. Brasília. DF. O 1.0x'2006. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/
revistacletronil·a/ita.asp'?n:gislro 100.1023 I6832&dt_publicacao=0 I108/2006>. Acesso
em: 15 mar. 20 IO.
I) BR/\SIL. Superior Trihunal de Justiça. f!aheas corplls 111.215 da 6" Turma do Supe-
rior Tnhunal de .Iusllp. IIrasilia. DF. 13.04.2009. Disponível em: <https:I/ww2.stj.
jus.hr rl'vlslac"'tl"lIll'allla.i1sp'!regislro~20080 I579468&dt_publieaeao= 13/04/2009>.
/\u·"" l'llI I ~ "., .?1l10.
I" III<ASII SUI"'11lí1I'lIl1uu,,1lk Justiça. Recurso Ordinário em Ifahcas corplls 27.555
lta ,,' 1,IIUII1ti•• SUpel'lor Trihunal de Justiça. Brasitia. DF. 09.08.2010. Disponível em:
11111'li \1 " sll IlIsllliS('( IN!scrvlct/RuscaAeordaos?action=mostmr&nulll_registro=20
10000 I ''''I·I.\- ,11 pllhh •.acatl lll)i08/20 I O:>. Acesso cm: 15 seI. 20 IO.
obtenção do alcance da verdade real, que sempre del'e prevalecer no
processo penar'. Ao afirmar possibilidade dessa obtenção, permite-se
supor que a verdade está sendo considerada como um objeüvo tangível.
Logo, parece formar-se uma ideia de que a verdade pode ser atingida.
Desse modo, caracteriza-se um daqueles núcleos irrcdutíveis a que se
fez referência acima: na prática processual penal brasi \cira, de modo
majoritário, entende-se que a verdade pode ser alcançada. Após a idell-
tificação desse núcleo, deve-se verificar sua coerência através do modo
como ele é justificado. Ou seja, outra pergunta - por que a verdade POlil'
ser alcançada? - deve ser respondida satisfatoriamente para qlll' l:SSl'
núcleo de um possível estatuto ontológico não seja reduzido a UIlWpro
posição puramente retórica.
A resposta a essa nova questão não é encontrada no STJ. o qlll'
faz necessária uma análise do modo como a doutrina trata (}assunlo para
que sejam revelados argumentos espalhados na tradição processual penal
brasileira que amparam essa fonnulação. Ao tentar responder a essa per-
gunta, a doutrina, quando pretende afirmar a exequibilidade da persecu-
ção da verdade, parece recair em uma confusão entre pelo que a investi-
gação deve primar e o que, de fato, a investigação pode atingir. Ou seja:
caracteriza-se uma falta de limites nítidos entre estatuto ontológico (ser) e
estatuto político (devcr ser).
O que ocorre é geralmente ver-se essa resposta fonnulada de mo-
do a sugerir que há possibilidades de uma apreensão integral do fàto in-
vestigado. No entanto, essa réplica é desfeita quando os autores que a
enunciam deparam-se com a necessidade de justificar limitações à busca
da verdade. Corno a doutrina, em geral. tende a reproduzir de modo apro-
ximado o disposto na lei, são oferecidos aqui apenas alguns exemplos
entre processualistas penais consagrados. É o caso do pensamento de
Femando da Costa Tourinho Fi lho. Esse autor considera que o poder de
punir só pode ser exercido sobre quem realmente praticou uma conduta
delituosa e, por isso, o processo deve buscar a verdade real17• A grande
razão para a necessidade da busca da verdade é a natureza pública do
interesse repressivo c as provas aparecem como tendo por finalidade COI1-
fonnar as "qfirmaçi"Jes de ./"to feitas no processo com a verdade objeti-
va"IX. O pensamento de Vicellte (,reco Filho também esbarra na indefini-
ção referida com a afirmação de que a verdade real justifica-se no proces-
so penal "em virtude do intere.I·SI'I'úhiic() nel(' (,11I'olvido:de um lado li
17 TOLJRINHO FIL.HO. Fern<llldo da (·Ilsla 1'l'fll'l"'lI "l'nal: 27. ed. São Paulo: Saraiva.
2005. v. I. p. 36.
IX C1NTRA. Antonio; (jRlrsi()\'IR. ,\da. IJlN/\!\It\l«'(l. t'ândido. Teoria geral do
processo. 24. ed. São P<lul •• : 1\1I1IIl'II ••S, .'IIlIX JI \ /·1

ne~:essidl/dt' SllC'/tllda /'('/II'l.'ssliopenal e, de outro, o direito de liberda-
de , Isso, par:! o m!ltor, lI11pllca slIa busca pelo juiz, independentemente
do atuar das rart~s I ,
_ Desse rárid~) cxamc é possível extrair que essa primeira for-
mul~çao, embora nau sCJ" plenamente desenvolvida entre os autores
anahsa?os~ sugerc equivOl:OSque nào podem ser negligenciados, Exi s-
te t~ndencla a se comenta~ apenas porque a verdade deve ser buscada,
e nao, se ela o pode ser. E como se natureza pública do interesse re-
pressIvo, que to~a como gravemente ofensiva à organização social
uma conduta d~h,tuosa, pudesse converter seu teor valorativo em fun-
dam~nto ontologlCO: ,A vO,nt~de de punir, ou a demanda por aspectos
contmgentes de pohtIca cnm1l1al, converte-se na necessidade de busca
~a vcrda?e, ~?~e-se ampla m~rg~~ dc manobra, portanto, para uma
\-O~tade mq~lsltlva, que tenta JustIfIcar suas práticas através do recur-
so a expressao verdade,
?s perigos de~sa c,oncepção em desfavor de um direito processual
pe?al onentado ?as dlretnzes de um Estado Democrático de Direito são
eVldent~s, espeCIalmente nos crimes contra a ordem econômica, quando
se conSIdera que, ~s ,c?nheclmentos específicos que abrangem suas práti-
cas c a ~alta de vlslblhdade que envolve suas modalidades dclitivas levam
a uma,d1Íiculd~de de apuração e julgamento deles por parte das instâncias
formaIS, espeCIalmente com a "diluiçào das responsabilidades em entre-
laçados hierárquicos,,2o, .
. A partir ~e~sa configuração de um estáiüto ontológico difuso se-
dlmentado n~ pratIca processual brasileira, passa-se a uma análise do
estatuto político dessa prática.
3 INTENÇÕES POLÍTICAS DO DlSClfRSO QUE TORNA A
VERDADE O CENTRO DA INVESTIGAÇÃO
PROCESSUAL PENAL
. • A partir da d~scussà? estabelecida nos pontos anteriores, seria
I~g~nuo supor que a II1defifllção do estatuto ontológico da prática bra-
SIleIra, amparada em um consenso com bases nebulosas, corresponde
fi) GR
I l ECO ')FILflO. Vicente. Manual de processo penal. (, ed. São Paulo' Saraiva
11})<).p._16,
PEREIRA. Flávia Goulart. Os crimes econômicos na sociedade de risco Re . t
~li
Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Triburnis n 5 p i
UI,2004.p.120-121. ""
apenas a um erro ou a um descuido Icgislativo, ,A am~l!tude de aplica-
ção do art. 156 do Código de Processo Penal e propICIa a uma amp~a
gama de atuações judiciais. No Estado No:,o, o ~ecurso a _uma neces~a~la
descoberta da verdade poderia ser convelllente a repressao da oposlçao,
que configurava ameaça ao esforço de centr~,1ização d.o poder político do
Estado e fortalecimento do governo federal-', EspeCIalmente no que ,se
refere às tensões das elites locais nos estados, à penetraçào do COlllunlS-
mo como projeto político no Brasil, através da AN~ e. do ComiHle~'1ISll-
viétieo, e do Integralismo como uma versão brasdeJr<\ das Il'IHkm'I:I''o
fascistas europciascc. A aprovação da Lei de S~guran\a Nal'lllllaf l'lIt
1935 c a criação do Trihunal de Segurança NaCIonal' . sllgl'Il'1I1 101 h".
indícios de uma razão, acima de tudo, inquisitiva, quc pmkl 1':1 "l' altlp:1I.11
C se disfarçar na necessidade de encontrar uma verd:Hk 11111' "l'II:1 IIl11.-
pendente de qualquer inclinação politica. como 11CI1I1S11ltdlltl li :1\11,11 ( o
digo de Processo Penal poucos anos depois,
Do mesmo modo, a amplitude da atuaçào rrohall1na do" I"i/l'" li"
processo penal na atualidade de um E~tado ~~1l1ocrúticll.til' dill'llo apatl'
ce como possibilidade de um recurso 1I1QU1SltlVO l~a~Illaos du. hlado. lia
medida em que permite ampliar seu poder de rUllIçao rara akl1l d:.ls.IWO:
vas apresentadas pelo Ministério Público. Através do re,::ursl1rclunCI1 a
verdade, inclinações das mais diversas encontram um Idtr~) proccsSl~11
para serem realizadas. A repercussão midiática de casos crJmlllalS que sao
elevados à condição de paradigmáticos dispõe, nesse ponto, de um meca-
nismo processual privilegiado, que nào necessita ,do ~ndurecimento da
legislação criminal ou de qualquer, outro apelo !eglslatlvo. Isso por_que a
investigação de indícios pode contll1uar p~ra alen~ d~ que a ac~\s~çao e a
defesa pretendem apresentar, até que sejam satIsfeitas as .du.vldas dos
magistrados, Na história da doutrina processual penal braSIleIra. houve
juristas que tentaram dotar de sentido limitado a interpretação do art. ,156
do epp. É o caso de José Frederico Marques que afim10u, amda na deca-
da de 50, que "nào há em nossO processo, juiz penal inquisitil'o. Se a lei ()
autoriza a, ex o/Jido, investigar a verdade, cumpre lembrar qlle () faz
subsidiariamentc,,24. No entanto, nào foi essa a orientação que vigorou; e
21 SKIDMORE. Thomas. Uma história do Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 1998. p. 164.
No mesmo sentido. FAUSTO, Boris. Ilistória do Brasil.1 O. ed. São Paulo, USP.
2002. p. 333. e SKIDMORE. Thol11as. Brasil: de Getúlio Vargas a Caslelo Branco. 7.
ed. Rio de Janeiro: Paz c Temi. IlJX2. p. 'ilJ-W.
22 SKIDMORE. Thomas. Brasil. ... ,';1.. p. 41-42. e FAUSTO, Boris, História concisa
do Brasil. 2, ed. São Paulo: llSI'. I'NX. p. 1'/4.
. •
23 SKIDMORE. Tho11l3S.Brasil .... ul. p. ·12
~I~,t MARQUES. José Fredcrico. () .júri 1111 llin·jtu hrllsilciro. São Paulo: Saraiva. 1955.
24
, .. - p.40-41.
 Eduardo Emanoel Dall'Agnol de Souza

esse ~rgument~ é rcto.rç.ado ao sc. co~siderar. a ex~ansão do espaço de

José Frederico Marques, por exemplo, em seu Tratado de Direi-
atuaçao probatona do JUIZ para o amblto das II1vestlgações preliminares,
Processual Penal, ao tratar dos poderes instrutórios conferidos aos
com a Lei 11.690/08.
através do CPP de 1941, faz comentário detalhado do artigo 156 e
Antes de tratar dos problemas que envolvem esse mecanismo lllllicnta que ele trata de poderes ordinatórios instmtórios do juiz, visto
processual nos crimes contra a ordem econômica, cabe definir se há um que tem repercussão apenas no curso do processo e que tem por objetivo
estatuto pol.ítico dominante na prática processual penal brasileira que 2x
realizar diligências necessárias à descoberta da verdade . Esse artigo do
parta da Idela de que a verdade deve ser buscada. Na doutrina há tendên- C:ódigo apresenta, também, na obra de Frederico Marques, relação com
cia de .s~ estabelecer uma orientação geral sobre as razões que tomam poderes ordinatórios de disciplina, que se referem à determinação de dili-
neces~a~l~ a busca da verdade, à exceção dos autores críticos em relação à lências que visam "ordenar e inspecionar a atividade das partes, ,estimu-
exequ,lb.lhdade desse projeto, ou seja, dos autores que negam o estatuto lal/do-a. quando dejiciente, e reprimindo-a quando excessiva"-Y. Esse
ontologlco que coloca a verdade no centro do processo penal. Destes "Ulor salienta a ligação da redação do art, 156 com poderes ordinatórios
autores esta análise se ocupará no próximo ponto.
de impulsão, que são atribuídos em função do dever do juiz de conduzir o
De todo modo, na maior parte dos textos dos juristas que sc de- proeesso até que atinja suas finalidades, com economia de tempo e res-
JO
bruçam sobre o assunto, a fonuulação que autoriza poderes instrutórios pdto aos interesses das paltes . Não obstante perceba-se no texto de
pode ser sintetizada na seguinte asserção de Jorge Moras Mom: "a nalu- Frcderico Marques um objetivo de comentar as disposições do texto do
reza mesma da matéria própria do processo penal arrasta consigo per- Código de Processo Penal, no trecho analisado acima pode-se perceber
~lanentemente a ordem pública, extremo pelo qual a açdo que promove, que os comentários funcionam como simplcs continuação do texto da lei:
unpulsiol1a e conclui é púhl~ca e o lorna /O/àlO invesligado} necessário, a ele não se opõem e, pelo contrário, confirmam-no implicitamente, atra-
ohrigatório e indisponíve('2.,. Assim, considera-se que a verdade tem uma vés do uso de uma classificação dos tipos dc atos que têm repercussão
importância transcendental na investigação, ou seja, nào pode ser uma interna ao processo,
verdade ad hoc o,u uma "verdade fictícia", construída apenas através do Caso semelhante é o de Hélio Tomaghi, que, em sua obra Curso
6
acordo das partes- . Além disso, equivale à. formulação dc Ada Pelleo-rini de Processo Penal, anuncia que a finalidade principal da prova no proces-
Grinover, quando ela afirma quc o "poder-dever do juiz de esc/arec:'· os so é de "formar a convicção do juiz", "no concernente aos fàtos tal qual
.fàtos, aproximando-se do maior grau possíl'el (le cerleza" tem por missão eles se passaram", visto que ela seria urna reconstrução históricaJ', Para
'p'a.cijicar com justiça. E isso somente acontecerá se o provimento juris- isso, afirma o autor, "o juiz procura colher a prova de tudo quanto possa
(ilClOnal[or,o resultado da incidência da norma sobre /àtos ejeti\'Qmellte levar a conhecer os fàios reais. I'crdadeiros,,32, E alega que o papel do
oC01.,.ido,~,,,2,,
As posiçõcs de Tourinho Filho e Greco F'ilho, a~ima expos- magistrado no exercício dessa atividade não sc restringe apenas a controlar
tas, somam-se a csses entendimentos quando situam a busca da verdade as alegações do acusador c do acusado'.
q .. d
Isso mostra que entre JUflstas e
como balizadora do inten:sse público manifestona invcstigação criminal, inclinações nitidamente democráticas o modo de fundamentar o espaço de
que deve tratar de dois cxtremos: a liberdade do acusado e a repressão iniciativa instmtória dos magislrados mio guarda uma grande dissociação
estatal c.omo n.ccessidadl· da sociedade. Além deles, outros processualis- do modo como a questão f()i tratada na Exposição de Motivos do CPI>.
tas penais brasileIros consagrados aproximam-se dessa fonnulação.
Assim, é possível formular ullla estrutura geral do discurso pro-
cessual penal a respeito do espa,'o de inicialiva probatória do juiz que
~,
Tradu\';io IiVll' til' "/,/",,',1/111,';'-" ",,~I"It/(Jele Ia ma/eria propia deI proceso penal arras-
/"'1'",,,,,,'11"',,,,"/1,'
Ir" ,'"1/,1'/.1:" "/IJ,.~/<'IIpúhlico. exlremo por el eualla acción que 10 2M MARQUES. José Frcdcril'll, Tnlllldu dc' din'ilu 1lI'IIl'('ssual pena •. I. cd. São Paulo:
/"011/1/",'''''' /11I//1//1,/ 1""1// /1/1',' ',I /JllhI/<'l1 Y lu lurna enllecesario, ohligalorio e i/7(lis- Saraiva, 1980. p. 218.
/'0'1/"'" i 1\11 1M, ,Joll1" H, I'vlmas. La investigación em el proceso penal: técnica dei 2Q MARQUES. Jos': Frcdcril'lI r!'lII:lIlu .h' din'll11 1"'u\'I'\\1I1I1 penaL .. ("il., p, 220.
d"",lllliflfllll'IlIU 1111\'111" AIIl''', ,\hdcdo-Pcrrot, 1998. p. 54.)
.'10 30 MARQUES. 1980. p. 221 .
i\lf 11\1,Jol~': tc Mlllit' 1.lIlnH·,'li~ación em el proceso penal.... ci/ .• p. 54.
31 TORNAGHI. H':lio. Cunll dc' IIIII\'I'HII 1"'11111 I c'cL S;"H, Paulo: Saraiva, 1980.
I i111NIlVII(, "tlil l'I.'II1'W IIU ,\ iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusa- p.270-271.
10"" 1(",'1_1. Ilrlt~lIl'lnl ti., ('iêllcias Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais 32 TORNAGHI. Hélio. CllrSII lho 111Ul'C'~\" 1"'11111 "/, I' .''lI
" " I' /1 t'l,lul 1,,'1 I 'll}\). p. 74. '.
33 TORNAGHI. Iklio. Cursu 4h' I" III'C'\\" 111'11111 ,,11 I' .'71
contemple um estatuto ontológico e um estatuto político. É necessano momento repensar seu cstatuto ontológico, Em seguida, é crucial
registrar que, conforme apresentado no ponto anterior, o estatuto onto- com um estatuto político de um Estado Democrático de Direi-
lógico é pouco desenvolvido, por ser extraído da urgência das razões que reconheça limitações à capaeidade de conhecer e que tenha um
políticas que se costuma invocar. Assim, as tensões políticas que en- compromisso efetivo com a dignidade do ser humano, Essa necessidade
volvem o processo é que acabam definindo as feições dele. Feita essa çquivale à constatação de Winfried Hassemer de que, "com a obrigação
consideração, o conteúdo da estrutura geral pode ser traduzido do sc- de buscar a verdade. o direito processual remete-se aos fundamentos da
guinte modo: os poderes probatórios do juiz devem ser amplos para teoria do conhecimento e do direito constitucional"35,
que se possa descobrir a realidade do fato investigado, uma vez que a
gravidade das circunstâncias que envolvem o processo penal (o crime
que pode ter sido praticado e a pena que pode vir a ser aplicada) exige
Por um Estatuto Ontológico que Leve em Conta as
que a investigação seja tratada com a máxima seriedade de modo a Limitações Inerentes ao Ato de Conhecer
não serem cometidos erros, que teriam, necessariamente, implicações
A definição de um estatuto ontológieo coerente passa, portanto,
perigosas (impunidade ou punição de inocentes).
por uma análise calcada nas possibilidades teóricas do ato de conhecer. Jú
Como já ficou sugerido neste texto, uma formulação genérica
foram demonstradas, no segundo ponto deste trabalho, inconsistências do
como essa - que ao mesmo tempo em que busca a verdade descuida-se
núcleo irredutivcl de um estatuto ontológico pautado em uma crença na
por completo em ser coerente com as possibilidades de alcançá-Ia - abre
possibilidade de apreensão integral da realidade das coisas. Cabe, neste
uma larga margem para atuações puramente inquisitivas, em tàvor dos
momento, organizar as ohjeções a ele e recolocar o problema da investi-
mais diversos propósitos contingentes de política criminal. E nesse con-
gação processual.
texto, as investigações acerca de crimes contra a ordem econômica são
Hassemer, ao se referir à ingenuidade do discurso que compreen-
especialmente afetadas, em razão da funcionalização que a noçào de "pe-
de a verdade como correspondência entre pensamento e real idade, afirma
rigo", em detrimento da de "resultado", traz ao sistema penal como um
todo. Um exemplo importante do que se está a afirmar diz respeito à que
"magnitude da lesào causada" como pressuposto diferenciado para o de-
creto de prisão preventiva trazido pela Lei 7.<W2/86 e destinado a atingir Não existe nenhuIII o!Jieto que, em todo caso, não esteja constituído
a criminalidade empresarial1-l. pelo conhecimento subjetivo. Os objetos do conhecimento estiío a
/lOssa disposi~'ão apenas dentro do conhecer, e só se pode julgar a
No próximo ponto, empreende-se um esforço de desconstrução jhle/idade de seu reflexo por meio do conhecimento dentro dos pro-
dessa perspectiva para alinhar a investigação processual penal com valo- cessos cognitivos. O játo dI! que o conceito de uma coisa coincida
res de uma ordem constitucional dcmocrática. com essa coisa não é resultado de um procedimento ahstrato men.~u-
rável, senôo um proce.l·st! no qual sujeito e objeto encontram-se im-
plicados reciprocamente"'.
4 O PAPEL INVESTIGATIVO DOSJUÍZES NOS CRIMES
CONTRA A OI~I)EM ECONÔMICA EM UM ESTADO 3~ Tradução livre de: "Con Ia oh/igaciri// ri,' "/lscar Ia verdad, el derecho procesal se
DEM()(,Rt\'I'I(,() DE DIREITO remi/e <I los fimdamentos de Ia '('(I/'ia rI,,1 ,'o//(l('imiel1lo y deI derecho cO/lstituÔonal".
(HASSEMER, Winfricd. Crítil':1 Ih'l drtl'l:hll penal de hoy. Bogotá: Univcrsidad Exter-
nado de Colombia, 2002. p. 7X.)
Para qll\' U 11Iatériu Sl'jU rccstruturada, superando as inconsistên-
36 Tradução livre de: "No <'.ri,'(' IlIlIgti// "",,,,,, 'I/{'" ,'/{ todo caso, no esté cocolIStituido
cias Icúril'as apollladlls ucima. dc modo a trazer à tona perigos que sua por el conocimiento s/{hjdÍl'" 1,,(, "",,"'" d"{ nlllocilllicllto cstlÍlI a nuestra dispo-
fOl"lllllla\';lo chh'SIl'U c hl'lIll~lica não percebeu, é necessário em um pri- sición sálo dentro dei (,0//0""', I ",I" ,,' I'I/",{" I/{:gar Ia fidelidad de su re.flejo por
lIIedio deI conocimiel1/O .I.'11/1" , I.· I", 1"'" ,'1<1,' ,'ogll/til'o". I~'Ihecho de que el COf/-
('eplo de I/na cosa coillcic/" nl/' ,'"~I , ••,./ "" '" r"IIIi",rlo de /{I/ I,rncedimiento (Jl>.~-
\I
( !\MAHlI. '1111 t\lIIl1nip, I{etlcxõcs acerca das medidas cautelarcs pessoais nos 'racln mensltra!Jle, sillo 11//1"'" ,'" ,11 ,I, 11,,1 I/{t"'" I' "hic·t" se ('lIc/{entran impli-
'"l1h" \\\IIII~ II ~1~h"11I1 flllancciro nacional. [n: GEVAERD, Jair; TONIN, Marta Clulos recíprocamel1/<''' (lI,\S\1 !'Ill 11. \\llillll't1 ('rlll"1I ch'l dcrl'cho penal de
11"11" , !til ""li I''''IIr''.llrlllll' cidadania ..., cít., p. 234 e ss. hoy ... , ci'., p. 78-79.)
 Esse IredlO aprcscllla 11111 primeiro elemento de refutação à POSSI-
bilidade de plena de:-'l'lIbnla de lima verdade objetiva: o fato de que todo
conhecimento é mediado. ()II :-'Cj,l:lodo conhecimento só pode ser com-
preendido a partir de proccssos l'ognitivos, de estruturas de pensamento,
que estão ligadas ao descll\olvimclllo biológico e social do sujeito cog-
noscente. Essa primcira ohjeç:l0 pode ser calcada no pressuposto da filo-
sofia kantiana que estatui a impossibilidade de conhecimento da "coisa
em si" (da reaHdade plena), uma vez que o mundo só pode ser percebido
como fenômeno, ou seja, como resultado da interação entre os sentidos c
a inteligibilidade.
Uma segunda razão é a de que os autores que sustentam a possi-
bilidade de alcançar a verdade não conseguem explicar satisfatoriamente
uma possível exequibilidade da investigação da verdade diante de pre-
sunções, ficções e demais limitações que são inerentes à própria investi-
gação processual penal. Isso revela que nào basta esperar de um processo
a plena descoberta da verdade, capaz de solucionar todas controvérsias
sobre o ato de decidir judicialmente, visto que esse ato não é apenas atin-
gido por problemas de ordem puramente investigativa. Os valores leva-
dos em conta e os fins do procedimento são questões eentrais que devem
ser respondidas coerentemente durante o próprio andamento de um pro-
cesso. O filósofo belga Chai'm Perelman retratou essa peculiaridade do
discurso jurídico e apontou para a mobilidade das características da prova
em direito confonne suas áreas específicas, .Q.. que já demonstra a impor-
tância de se ter traçada com clareza a diferel~a entre um estatuto ontoló-
gico e um estatuto político:
A primeira vista, as técnicas de prova em direito nada teriam de es-
pecijicamente jurídico: dependeriam de critérios científicos, das re-
gras de lógica, da experiência comw/i:nlo hom sellso.· Alas eletil'lI-
mente. não é isso que ocorre: veremos que as técnicas de prova va-
ria1/l 11110 só con/imne os sistemas jurídicos, mas até conforme as fi-
nalidades próprias de cada ramo do direito; os meios de prova acei-
to,\' variam tamhém no tempo, segundo a preeminência concedida a
este ou àquele Falor [. ..]17.
I J ma terceira objeção importante, já apontada neste trabalho,
mas que tleve ser melhor desenvolvida, é a de que os autores que pro-
pugnam pela busca da verdade tentam converter suas razões políticas
panl li investigação do juiz em estatuto ontológieo da própria invest i-
II I'I:'REI.MAN. Chai'm. A prova em direito. In.· PERELMAN, Chai'm. Ética e direito.
S:\o Paulo: Martins Fontes. 199ó. p 592.
ção processual como um todo. Isso aparece quando se atribui como
sposta à pergunta "por que a verdade pode ser atingida no processo
«nal?" a natureza públ ica dos interesses tutelados em esfera pena I.
isso se mostra um risco de transformar uma postura política, de cu-
nho valorativo (portanto, um "dever ser"), em fundamento de Ulll
~·jer". Tem-se, nesse caso, uma expressa incongruência lógica, lJlll'
. de ser explicada a partir da Lei de Hume. Esse postulado rilosúlil'o
Slabelece a ideia de que um dever ser não pode resultar de 11111 SCI,
sim como um ser não pode resultar de um dever ser. <)ualltlo se \'\
ai de proposições prescritivas (a ordem social deve ser 11l'l'Sl'n:ld:1
contra o crime e a verdade deste deve ser avcriguada) uma el1ll1lllol,:11l
descritiva (a verdade pode ser atingida) ~sharra-se em UIII:I ,doi,',',,,
argumentativa que não pode ser explicadal~.
Para o processo penal, o risco dessa con\'l'rs:io i1ll/1l'IU'JlII\l' I
de dever ser em ser é a autorização de podercs prohalúlios a P:1I1 II dI'
um dado prescritivo travestido de descrição da naturcza da IlIn· ...I/)'.;1
ção. A margem de distorções políticas, de concessões iIH)lIisillva... l'
autoritárias é ampla sem um controle racional por meio de lima justifi-
cação de um estatuto ontológico que realmente guarde correspond0n-
cia com sua natureza. O conteúdo valorativo de qualyuer razüo polil i-
ea não deve ser base para o estatuto ontológico; pelo contrário, devc
ser parcialmente composto por esse estatuto, uma vez que um dever
não pode ignorar circunstâncias do ser.
Apresentadas essas refutações ao núcleo de um estatuto ontológi-
co baseado na possibilidade de descobrir a verdade, resta apenas um ou-
tro núcleo possível, o de que a verdade nâo pode ser descoberta. Embora
esse modo de perceber o ato de investigar não seja dominante entre os
juristas brasileiros, há diversos autores que o d~senvolvem,'pr~ncipalmcn-
te a partir de duas perspectivas. Uma, que conSidera que a Idela de verda-
de real enquanto possibilidade deve ser substituída pela de verdade "for-
mal", "processual" ou até mesmo pela noção de "certeza", e, enquanto
3H "Em todo sis/ema di' mor,,1 que ale! 11O;eencontrei. sempre notei que o autor segue
durante algum tempo o moelo Col11lmlele raciocinar, estahelecendo a exisléncia de
Deus. ou fa::endo ohst'rI'lI('(J('s a respeilo dos assim/os /tumanos, quando. de repenle.
sl/Iprei.'ndo-me ao ver qlle. 1'11/\',': das cripul</.\·proposicionais usuais. como é e não é,
não encontro uma só IJf'(Ipo'\i('(/o '1111'//l/O csteja conectada a o/ltra por um deve 011
não del'e. Essa mudml\'o (; illlf','/'(·cf"iI..-I. /ltIlàn d" maior importância. Pois. como
esse del'e 011não del'e <'1/11'('.1'.\(1 UIII" 1/111'" r,'hl\'do ou afirmaçào. esta precisaria Sf!r
notada e explicada: ao 11I1'.1'11I0 1<'lIIf'o.\,·ria IJr('('iso quI' .scdesse uma ra::ão para algo
que parece inteirlll11ellle ill<'tllIIT/liI'I'!, 1111 sl'ia. ,'1111I0
('.1' ..\(/ nova relaçào pode ser de-
du::ida de outras illleil'<l1UI'IIII' ,1t/'·II·lIIn". (111JI\1F, David. Tratado da natureza
humana. Sào Paulo: UNFSP 11I11'1l'1I\:I (11'11'1.11 dt) Fsladn, 2000. p. 509)
meta, deve ser preservada. (~o caso dos que admitem que a verdade não
pode ser atingida mas deve continuar sendo um modelo limite ao qual
não se pode renunciarJ'J. A outra perspectiva é a de que a noção de verda-
de não serve como objetivo para o processo, sendo mais apropriado pen-
sar na formação de um juizo de certeza ou similar, que se presta ao con-
vencimento dos atores processuais.
A ideia de que, embora não possa ser atingida, a verdade deve ser
buscada apresenta vantagens em relação à anterior, porque admite limita-
ções ao ato de conhecer. A verdade, na maioria dos casos, continua a
aparecer como correspondência entre pensamento e realidade, entretanto,
na condição de juízo subjetivo, ela só pode ser percebida mediante apro-
ximações, e o maior grau de convicção que esse juízo apresenta é a certe-
za.40 A busca rea I'IzadI'
a pe o JUIZ. no processo torna-se, nesse contexto,
uma busca por uma "verdade processual", suficiente para se extrair os
efeitos jurídicos a partir do fato passado.
O problema mais significativo dessa concepção é o de que a ad-
missão das limitações da percepção não obsta, entre seus autores, um
esforço no ideal de aproximação com a verdade como "coisa em si". Em-
bora esse estatuto ontológico negue a descoberta da verdade, seu estatuto
político, em nome da gravidade das condutas delituosas, pretende forçar
os sujeitos da investigação processual a investigar para além das próprias
possibilidades do ato de investigar. O desejo de corresponder às expecta-
tivas desse tipo de investigação pretende fi,)rçá-la para além dos limites do
possível. E na medida em que esse esforço revela-se impossível, também
se mostra perigoso. Impossível, porque se a verdade não pode ser apreen-
dida e todo o resultado de uma investigação é um juízo de convicção
formado por quem juntou as informações levadas ao processo, não existe
qualquer critério de mensuração de apro.ximação entre a verdade, como
modelo limite, e o resultado da investigaçâo. E esse esforço também se
revela perigoso, porque assim como a crença na possibilidade de atingir a
verdade, ao justificar seus atos em razões que extravasam as possibilida-
des do conhecer, também pode permitir que uma simples vontade de pu-
nir possa superar valores essenciais a um Estado de Direito.
A outra perspectiva que parte do núcleo de que a verdade não po-
de ser atingida é a que afirma que essa noção não serve como objetivo
para o prOl:CSSO,sendo mais apropriado pensar na formação de um juízo
i"~ hllalllll ~ 11 pfill~ipal excmplo, ao trazer para o processo penal a teoria semân-
1.U1j!.1
d~' \l,,,tmk d~' AI/red Tarski e continuar a se pautar pela busca da verdade como
lil.,l
.lu IlIvcslll!açull processual penal. (FERRAJOLl, Luigi. Derecho y ra-
lIh1d,'11I1I11111~'
'ôo ~ l'tI Mmlntl: blilllrial Trotta, 2006. p. 46)
111 MAllH,lull1l U"rt't<hu Ilrocesal penal argentino ...• cil., p.562-563.
de certeza ou similar, que se presta ao convencimento dos atores proces-
suais. Parte-se da ideia de que a possibilidade de se atingir um juízo de
certeza não significa a aproximação, ou uma tentativa de aproximaçã~, da
verdade. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, tomando por base Ennque
Dussel manifesta o condicionamento de todo saber a um ponto de início
demon~tráve1, que pode ser simplesmente por ser de uso corriqueir~, em
contraposição ao que é, que não fica circunscrito a um ponto d.e partl,d~, e
que se toma inevitavelmente in.demo~s~r~veI41.Em pers~ectlva ~eonca,
essa é uma objeção forte tanto a possIbilidade de conheClmento I~tegral
da verdade quanto à tentativa de se chegar a uma verdade apro~lIllada.
Em desfavor desta última possibilidade, não há como se aproximar de
algo que se admite inalcançávcl, uma vez que não há como fixar um ca-
minho (critério ou método preciso) de aproximação.
A desorientação indissociável dos critérios em direção a um mo-
delo limite de verdade - por eles terem um necessário ponto de partida no
ser humano e em sua linguagem, que não guarda nenhuma correspondên-
cia com as coisas nelas mesmas - desvela uma objeção fOl1e à busca da
verdade, quando já se admite de antemão que ela não pode ser atingida. O
que resta é apenas uma impressão de certeza ou um "sentimento de assi-
milação"42, que serve ao convencimento de quem os percebe. Essa cons-
tatação pode sugerir uma aproximaçã~3 da ideia de ce~t~z~ ~om a de c?~-
vencimento do auditório ou das partes . O espaço de IIlICtatlva probatona
do juiz no processo penal, nesse contexto, deve ser circunscrito a limites
precisos, de modo a, dc um lado .. ser ~uf~ciente ao conve.ncil~ento das
partes envolvidas e, de outro, respeitar bmltes sobre os qU31Snao se quer
admitir transgressão.
Desse modo evita-se o risco sempre presente entre os autores
que alegam não ser a verdade alcançável, mas modelo l!mit:, de em
pontos cruciais de suas argumentações resvalarem em dlreça~ ~ urna
pretensa possibilidade de descohcr~a. ~ia verdade. Pao!o TOOlI1l, por
exemplo, admite limitações Ú posslhllldade de conheclInento quando
afirma que "se entende qlle seia il1l/1Ossíl'('/ para o juiz atingir a \'erda-
41 OUSSEL EnrilJuc. Método panl Illllll l1Iosolill da Iihl'rtaçã.o. São Paulo: L~oyola.
1986. p. 24-25-29. AIJlul ('ll!ITINIIIl. Jacinto Nl'I~1l1lde Mlranda. Introduçao aos
princípios do processo p~nal hra~dl"iro Ih'vi\lil da "'lll'uldade de Direito da UFPR.
Curitiba. n. 30, p. 163-I<JS. 1'1'11-:. I' I'I~ 1'1\
42 N1ETZSCHE. FricJrich Ohrõl\ Í1u'lIll1llll'lll\ .' l'" S;lll l'al1lo: Abril CulturaL 1978.
p.50.
43 Perspectiva também explorada 1'''1 , (11'1'. JI( , "IIlV Infrllduçi10 critica ao proces-
so penal: fUlldamenllls da III'II'"I1"lItnlitl,"k "'II'lIlUl"Illl\lIl. 4. ed. RIO de Janeiro:
Lumcn Juris, 2006. p. 2S2
 Eduardo Emenoel Dall'Agnol de Souza

de absoluta em ./únçcio ela limitarão da capacidade humana; o que co/}-

ta é que a busca tenha por hase a prova, com respeito das garantias
t·,,44 . fi ~
.fiunuamen QlS M. as, ao mesmo tempo, cal em a lrmaçao que parece
À

tomar nebuloso seu argumento ao afirmar que "os princípios da orali-

dade. da imediatez, do contraditório não possuem valor em si mesmos,
antes servem para alcançar a verdade do melhor modo,,45. O reconhe-
cimento da distância, ou verdadeira dissociação, entre o conhecimento
humano e a verdade, apresenta a possibilidade de um controle mais
efetivo sobre usos abusivos dos poderes probatórios e pode evitar amál-
gamas de argumentação importantes.
A partir da constatação de que o processo penal é um jogo retóri-
co quc pretende formar o convencimento dos atores envolvidos, todo o
peso dos limites da investigação recai nos valores que se pretende ver
realizados no processo. Portanto, o estatuto político, que antes se encon-
trava confundido o com estatuto ontológico, passa a exigir fundamenta-
ções mais consistentes.

4.2 Por um Estatuto Político Fundado em Valores de um Estado

Democrático de Direito

O reconhecimento da central idade dos valores que permeiam

as práticas processuais permite uma percep_~?o mais apurada das te n-
dências inquisitivas de uma pretensa possibilidade de alcance plcno da
verdade. Assim, permite também um controle mais efetivo das práti-
cas processuais. Hassemer coloca a tônica desse estatuto no direito
constitucional e considera-se aqui que esse ponto de partida é impor-
tante ao relevar a dignidade dos envolvidos no processo, através de
"direitos de defesa frente aos interesses dàTnvestigaçc10 no procedi-
mento penat'46, Considera-se a ameaça que o processo pode represen-
tar a todos os envolvidos, e não apenas ao acusado, e coloca-se entre

44 Tradução livre de: "Si rili('l/I' ('hl' sia impossible per il gilldice accerlare Ia 'perilà
assolllla' a causa deI/a limilall'::::a defle capacilà umane; queflo che conta che e
I'accertamento {/\'I'ellga ill "asl' a prove, /lei rispetto delle gaf'all::ie .limdamemali".
(TONINI, Paolu. LinellJUl'nti di diritto processuale penale. 5. ed. Milano: Griuffré,
2007. p. 135.)
4, Tradução livn: (li.•: "i I"'ÚIr"Í/'i",'II'oralità, defl'immediate::::a e dei contraddiltorio 11011
1/(/11//11 I,tllore i" SI' st('.\'.\/. ""/11'; SC'I'I'U/lO
ad accertare Ia verità 1Ie1 l1/udo migliore".
(I'ONINI, Paolo, /.I1lCIUlIl'Iltidi diritto processuale penale ..., cit .• p. 135.)
47 Traduçãu livre de "el .lere •."" .1.-1111I/'/11.,.1" .I,' 110 ,'.\t(l/' ohlif!~/{Ioa declarar; el dere-
Tradll\'~iolivf"· de ",/.,,,,'('hos clt' d(~/ellsa.rrenle a 10.,-inlereses de Ia invesfigación en el
4h

/'1'''' ,''/I'''i''IIto I",""r, (IIASSLMER. Winfried. Crítica dei derecho penal de hoy ....
"0
cho dei lestigo a no 1I/l1";II•.rillll/llll\l·, .'/ '/"1"'''/'''.(/ ':,~tlflcar por ra::ol1es deJ!a-
I I/.. fi 1m) rel1tesco, proximidod so •.illl ,,\,.,""''' /" "/""o""r (IIASSEMER, Wmfncd. Critica
dei derecho penal de hu~' .. , .11 ,I' 7'1 HIII
lm tipo til: l:lrl'UIISI:llIl'H\l'tIl qUl.' isso pode ser pensado: a intervenção
ltória cnquallto alll dl' dl'll:sa (em casos em que a defesa mostra-se
gente ou hú cOllliss;)o pllr partl: do réu, por exemplo), como defendi-
)r Eugênio Pacdli de ()IiVl'íra~s. Surge disso, o problema de definir o
ilcance do excrckio lkssa atuação; definição que só pode ser feita
ante a observação do caso concreto,
Desse modo. uma resposta mais precisa à questão de saber se é
vel haver iniciativa probatória do juiz só pode ser adequadamente
ludida considerando as dificuldades das investigações concretas. as
ações impostas pelo ato de conhecer e os valores da ordem constitu-
1I em vigor, a partir do modelo unificador adotado no procedimento
I. Dentre a gama de princípios que devem ser respeitados, é necessá-
ue sejam estabelecidas, mediante fundamentação e um trabalho de
enêutica constitucional consistente, quais circunstâncias ensejam a
venção probatória do magistrado. E esta deve ser controlada, consi-
Ido-se a linha tênue existente entre ela e o riseo de um processo pe-
ermeado de arbitrariedades.
Nesse sentido, é importante notar que o projeto de lei de um novo
(PLS 156/2009) que foi votado em primeiro tumo no Senado no dia
2.2010, parte explicitamente de uma matriz acusatória. o que mos-
ma ruptura com a matriz inquisitiva do Código atual. A sua Expo-
I de Motivos, assinada pelo Min. Hamilton Carvalhido e por Eugê-
)acelli de Oliveira, salienta que "a decisãtJo.:judicialhá de se fundar
onhecimento - o mais amplo possível - de modo que o ato de jul-
:mto não seja única e solitariamente um ato de autoridade,,49. Há
nítida prevalência da necessidade de cognição, em detrimento de
rrefreável poder de decisão judicial. Porém, a percepção dos pro-
las que envolvem o ato de conhecer tem aqui uma formulação com-
. . Ti
:mente d \stmta.
A expressão "verdade" deixa de ser utilizada como o limite má-
) da investigação, na medida em que a própria Exposição de Motivos
lta uma "consciência das limitações inerentes ao conhecimento hu-
)" somada a uma "maturidade social na árdua tarefa do exercício do
'r,,50. Assim se justifica a necessidade de limitação dos poderes pro-
rios do juiz, e há, pelo menos, duas alterações que representam um
LIVEIRA. Eugenio Pacdli de. Curso de processo penal. 12. ed. Rio de Janeiro:
umen Juris, 2009. p. 318-327.
RASIL. Anteprojeto de Reforma do Código de Processo Penal. 8rasília: Senado
ederal, Subsecretaria de Ediçi\es Técnicas, 2009. p. 15.
RASIL. Anteprojeto de I{efllrmll do Código de Processo Penal, p. 16.
ande contraste em relação à .legislação vigente. Elas têm sua exposição
geral no art. 4° do Anteprojeto,1 e gravitam em tomo da separação funcio-
nal entre os órgãos estatais de acusação e julgamento - característica
típica de um modelo processual de matriz acusatória.
A primeira alteração. presente no próprio art. 4°, é de que fica ve-
dada ao juiz do processo qualquer atividade instmtória durante as investi-
gações preliminares. Essa medida representa uma significativa constri"'ào
do poder investigativo do juiz. A Segunda, diz respeito à produç;lo de
provas no curso do processo. O art. 162 do Anteprojeto cslabl'lccc. l'llI
substituição ao vigente mt. 156. que as provas devem ser proposlas Pc!;IS
partes, e o juiz só poderá esclarecer dúvidas sobre esse material pronalú-
. . . ~~
no posto anteflormente·-.
Deixa, portanto. de existir nessa nova proposta legislaliva um po-
der instmtório irrestrito ao juiz, mas não se tàla ainda de coibir por Clllll-
pleto sua capacidade de determinar a produção de provas. E, nesse senti-
do, parece ser possível admitir que não se abra mão de um recurso à cria-
. tividade do julgador, no que parece apropriada a consideração de Hélio
. Tomaghi segundo a qual, "é certo que o processo é atividade empírica,
nem sempre compatível com uma lógica jórmal e abstrata: a realidade
não tem lógica. Mas aí elltra a sabedoria do juiz, aqui/o que os romanos
chamavam prlldentia"S3,
Neste artigo pretendeu-se abordar a iniciativa probatória do juiz
no processo penal, de modo a aclarar as dificuldades teóricas que permeiam
o assunto na tradição jurídica brasileira. Deu-se enfoque especial aos
.•crimes contra a ordem econômica. por representarem eles uma modalida-
de delitiva que coloca o processo penal em posição dramática: entre a
necessidade de investigar eticientemente, correndo o risco de tlexibilizar
SI o
"Arf. 4·. processo pCllol/('ní ('sll"lll1l/,{/w'lIsolrírio, nos limiles defillidos neste Crídi-
go, vedada a inicia/il'a do jlli:: lia /0.1'1' ele illl'l's/igaçiio e a suhsri/lliçiio da o/uoçiio
probo/riria do órgão de <1(,11\'(/('<10". (BRASIL. Anteprojeto de Reforma do Código
de Processo Penal. Brasília: Sl'nado Federal. Suhsecretaria de Edições Técnicas,
2009. p. 29.)
52 "Arf. 162. As proms serào /wOI)OIII/\ 1'1'/1/11'111'1".1' Parágrafo lÍnico. Será (aculrado
ao juiz, al1les de proferir (/ .1'1'11I1'11('11. 1'1.1111'1'(','1' diÍl'lda sohre li IN'ova prod;D:ida. ob-
sermdo o disposto /10 a/'/. " .•.. (IIRASII . Anlrllroj\'lfl de Reforma do Código de
Processo Penal. 2009. p. 1>0.)
53 TORNAGHI. Hélio. CurslI dI' 1'1'11('('\\11 111'11111 1 l'd. S;\o Paulo: Saraiva. 1980.
p.272.
garantias conquistadas pdo dm.'ilo pcnal de bens jurídicos individuais, e a
necessidade de prcscrvar essas garantias, correndo risco de abrir margem
à impunidade. Para Iralar do tl'lIla, procurou-se isolar dois fatores essen-
ciais que corriqueiramente aparCl'CIll formulados de forma pouco clara, o
que tem como consequêlH:ia a rl~duçüo do discurso processual penal a um
discurso dissociado das circunsl;illl:ias de seu tempo.
O primeiro desses fatores ê o cstatuto ontológico da prática pro-
cessual penal. Demonstrou-se, ncssc scntido, que há um estatuto ontoló-
gico difuso nas práticas processuais que alímla ser a verdade um objetivo
tangível da busca processual. Conforme demonstrado, ele recai em três
inconsistências fortes: ignora o làto de que todo conhecimento é media-
do; não consegue responder às suas próprias contradições quando há ne-
cessidade de justificar limitações ao ato de conhecer; e tende a ser des-
considerado diante das necessidades de investigação calcadas no interesse
público que envolve as circunstâncias do processo penal. Sustenta-se que
ele abre margem a atuações essencialmente inquisitivas, na medida em
que propugna por amplos poderes probatórios aos juizes através de in-
consistências teóricas que não podem ser negligenciadas.
Com essa formulação, é refutada também a ideia de que o proces-
so penal pretende construir uma verdade formal ao passo em que se man-
tém a verdade real como um modelo limite. Do mesmo modo, há uma
objeção forte a essa construção: não há critérios de aproximação seguros
a um modelo limite que se admite de antemão ser inatingível. Assim,
poderes probatórios irrestritos ao magistrado ~eriam representar um
esforço injustificável em direção ao que se reconhece impossível; o quc
poderia se converter, novamente, em espaço de atuações não controlá-
veis. A saída sugeri da neste texto está no reeonhecimento da impossibili-
dade de se alcançar a verdade no processo e na renúncia de tê-Ia como
um objetivo. O processo passa a ser visto como !Jmjogo de convencimen-
to dos atores envolvidos. Desse modo, os valore~ue se quer ver realiza-
dos no processo assumem posição de centralidade. É a fixação das regras
do jogo que permitem um controle efetivo sobre ele.
O segundo tàtor considerado é o estatuto político da prática pro-
cessual penal. Para definir o espaço de atuação do magistrado na produ-
ção de provas é importante que os valores da ordem política em que o
processo penal se encontra sejam levados para o processo. Em um Estado
Democrático de Direito é neccssário que toda a construção processual
esteja atenta à realização dos valores desse Estado. Portanto, é necessária
uma conciliação entre a necessidade de se investigar e a preservação da
dignidade dos indivíduos envolvidos. O espaço de produção de provas do
juiz deve ser restringido pdo menos a um espaço complementar ao da
sação e ao da defesa. Essa perspectiva não se mostra como a única
ível, uma vez quc a participação probatória do juiz significa uma
ior fragilização de sua já de antemão frágil posição de imparcialidade,
çcssária para um julgamento que prime pela isenção. Nesse sentido, a
nstrição total dos poderes probatórios dos juízes figura-se, também,
mo wna opção possível.
De todo modo, mesmo que não se possa oferecer uma posição de-
nitiva, pretendeu-se reorganizar o modo como esses dois fatores (estatu-
ontológico e estatuto político) podem orientar a percepção do espaço
inieiativa instrutória dos juízes no processo penal. A principal contri-
ição que se espera oferecer ao tema está na inversão do discurso que
)siciona a verdade como centro da investigação processual pena\. 1\0
vés de se buscar uma impossível verdade imutável do fato passado lal
mo ele teria ocorrido, sustenta-se a necessidade de se realizar valores
.Osscnciais a uma ordem política democrática na investigação proccssual.
;Assim, evita-se uma abertura a excessos inquisitivos e se possihilita Ulll
. ntrole mais efetivo do processo penal, de modo a preservar a dignidade
umana no esforço de convencimento que o permeia.
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no tecido social. Por fim, manejam-se as conexões entre os sistemas
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Saraiva, 2005.
ritos e as funções (acrescentadas) do direito penal, bem como seu
espaço (aumentado) de atuação.

Promotor de Justiça, Doutor e Mestre t'm Direito das Relações Sociais (UFPR). Pro-
fessor de Direito Penal Econlllnico do Programa de Ml'strado em Direito Empresarial
e Cidadania do LJnieuritiba. Professor til' Direito Penal do lJnicuritiba, Fempar, Esmac.
Cejur c LFG. Atualmente ('''''l'lkIlOl 01f'os-( iraduae,:ão em Direito Criminal c Processo
Penal do Unicuritiba.