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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE


DEPARTAMENTO DE TERAPIA OCUPACIONAL
FILOSOFIA

GABRIEL SERAFIM, JULIA COSTALONGA, LETÍCIA CARDOSO E MAYSA GOMES

DISCIPLINA DOS CORPOS DE FOUCAULT E A TERAPIA OCUPACIONAL: ENTRELAÇADOS

VITÓRIA
AGOSTO 2022
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Segundo Foucault (1987):

Aprender a comportar-se, movimentar-se, ser preciso e ter ritmo. Gestos são fabricados, e
sentimentos são produzidos. Este adestramento é resultado da aplicação de técnicas positivas de
sujeição baseadas em saberes pedagógicos, médicos, sociológicos, físicos, etc. O corpo torna-se útil e
eficiente, mas ao mesmo tempo torna-se dócil e submisso: o corpo só se torna força útil se é ao
mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso. (FOUCAULT, 1987).

A partir desse pensamento, foi possível levantar uma reflexão de como a disciplina dos
corpos formulada por Foucault contribui para a formação da subjetividade e de que maneira
os fundamentos bioéticos contribuem como balizadores no trabalho do terapeuta ocupacional.
Esta reflexão irá dialogar com uma performance proposta em sala de aula pelos os autores
deste trabalho.

A performance “EntreLaçados” consiste em quatro performers sentados em um pequeno


círculo no centro do espaço cênico, onde de suas cadeiras partem fios que são distribuídos
entre o público. O texto utilizado na encenação é a letra da música “Admirável Chip Novo”
da cantora Pitty. No transcorrer da cena ouve-se um alarme que funciona como um comando
para a passagem dos fios entre as pessoas presentes na sala, no sentido horário. Dessa forma,
ao final da encenação, os atores estarão entrelaçados, presos pelos fios.

Neste sentido, os fios utilizados exemplificam o que Foucault chama de micropoder, uma
prática que não parte do governo central mas que acontece no cotidiano das pessoas,
adestrando, modelando e controlando os corpos, de forma praticamente imperceptível.
Através das relações de poder com professores, pais, patrões e entre outros, dando base para
que o poder do Estado também possa ser exercido.

Logo, levando a um primeiro ponto de reflexão de como essas ações disciplinam nossos
corpos, os tornam "dóceis" e contribuem para a construção da nossa subjetividade, já que
para o capitalismo corpo e mente estão associados, e é através dele que os homens se
expressam, portanto podendo ser um objeto de manipulação, mostrando que o poder é algo
externo ao corpo mas que o afeta diretamente na sua formação e percepção mediante si e os
outros. Revelando, por conseguinte, que o sujeito se forma não só de um caráter filosófico
mas também político-discursivo.

“O corpo humano entra numa maquinaria que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma
anatomia política’, que é também igualmente uma ‘mecânica do poder’, está nascendo; ela define
como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer,
mas que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A
disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as
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forças do corpo – em termos econômicos de utilidade – e diminui essas mesmas forças – em termos
políticos de obediência –.” (FOUCAULT, 2010).

Sendo assim, de acordo com a filosofia foucaultiana, o corpo é um produto técnico que não
pode ser dissociado do meio em que está inserido. Portanto, a disciplina se torna uma
ferramenta para a normatização de condutas, controle e regularização dos indivíduos,
tornando-os úteis sob uma vigilância permanente, como acontece nas prisões e no
adestramento das fábricas, hospitais, escolas, asilos e entre outros.

A performance simboliza esta situação ao dispor a plateia em um círculo em volta dos atores,
tornando visível a constante vigilância, semelhante ao panóptico do sistema carcerário
descrito por Jeremy Bentham e analisado e entendido por Foucault como panoptismo. Na
sociedade, este controle não é só feito pelo Estado, mas agora por todos, uma vez que são as
pessoas que alimentam esse poder em busca de uma sensação de segurança e tranquilidade. O
panóptico de Bentham é descrito da seguinte maneira:

“[...] o edifício é circular. Os apartamentos dos prisioneiros ocupam a circunferência. Você pode
chamá-los, se quiser de celas. Essas celas são separadas entre si e os prisioneiros, dessa forma,
impedidos de qualquer comunicação entre eles, por partições, na forma de raios que saem da
circunferência em direção ao centro, estendendo-se por tantos pés quantos forem necessários para se
obter uma cela maior. O apartamento do inspetor ocupa o centro; você pode chamá-lo, se quiser, de
alojamento do inspetor. [...] Cada cela tem, na circunferência que dá para o exterior, uma janela,
suficientemente larga não apenas para iluminar a cela, mas para, através dela, permitir luz suficiente
para a parte correspondente do alojamento. A circunferência interior da cela é formada por uma grade
de ferro suficientemente fina para não subtrair qualquer parte da cela da visão do inspetor.”
(BENTHAM, 2019).

Todavia, vale enfatizar que a disciplinarização dos corpos possui também um aspecto
positivo, pois ao se debruçar sobre este objeto podemos entender como a cultura, a política e
o espaço onde este indivíduo está pode ser resultado deste condicionamento e não o detentor
de uma verdade absoluta, mas sim um objeto que pode ser analisado por meio de divisões
normativas e daí reconfigurar o sistema.

Outro ponto importante é como o terapeuta ocupacional se encaixa neste contexto, uma vez
que usa de atividades para ocupar, reabilitar, tornar novamente útil os pacientes/clientes
mediante a sociedade. Fato que está na gênese da Terapia Ocupacional (TO), que buscava
entender a loucura e como o trabalho poderia favorecer a aprendizagem da ordem, da
regularidade e da disciplina, através de instituições e da sistematização do processo, que
visava a reabilitação com o objetivo de “reconstrução” e reinserção dos indivíduos
deficientes na sociedade.

Destaca-se que a incompatibilidade com o ócio e a necessidade do fazer constante, servia não
só para disciplinar os corpos, mas também para tentar controlar paixões e sentimentos através
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da razão, causando uma sensação de aprisionamento e falta de liberdade da subjetividade.


Este tipo de conduta não deixa de ser influenciado pelo sistema capitalista em que nos
encontramos inseridos, que supervaloriza o trabalho e a produção, fazendo com que a
definição enquanto indivíduo, esteja subjugada ao trabalho e a ocupação permanente.

“Mesmo que o sistema capitalista tenha sofrido transformações no que diz respeito ao controle dos
indivíduos e às formas de acumulação do capital, pode-se afirmar que a base da exploração continua
ligada à força de trabalho, à divisão do trabalho, à hierarquização e a orientação para o crescimento e
para o lucro, mostrando que o trabalho ainda sustenta a heteronomia e a negação da fruição.”
(CHAVES, 2007).

Assim, a disposição dos corpos no espaço devia corresponder às exigências técnicas da


produção. Porém, essa articulação do espaço de produção também foi comprovadamente
impregnada de poder disciplinar. Foucault cita a manufatura Oberkampf, em Jouy, como um
exemplo.

“Nas fábricas que aparecem no fim do século XVIII, o princípio do quadriculamento individualizante
se complica. Importa distribuir os indivíduos num espaço onde se possa isolá-los e localizá-los; mas
também articular essa distribuição sobre um aparelho de produção que tem suas exigências próprias. É
preciso ligar a distribuição dos corpos, a arrumação espacial do aparelho de produção e as diversas
formas de atividade na distribuição dos “postos”. A esse princípio obedece a manufatura de
Oberkampf em Jouy. Ela se compõe de uma série de oficinas especificadas segundo cada grande tipo
de operações: para os impressores, os encaixadores, os coloristas, as pinceladoras, os gravadores, os
tintureiros.” (FOUCAULT, 1999).

Dessa forma, se vê o início da profissão muito ligada a parte física e a “Escola de Tratamento
Moral”, em que as atividades, inicialmente ligadas às instituições de exclusão e depois
reformuladas para ações com qualidades mais expressivas, voltadas para a percepção de si,
de suas limitações e como se adaptar a sua realidade.

Mediante o exposto, podemos salientar como os princípios bioéticos da autonomia formulado


por Tom Beauchamp e James Childress têm peso nisso, onde as pessoas têm a liberdade de
fazer escolhas e agir de acordo com seus valores. E a não maleficência, com regras morais
mais específicas que visam além de não causar dano, mas sempre que possível optar por
ações que tragam benefícios.

A expansão da Bioética no Brasil vem se dando ao longo dos anos com a necessidade de
mudanças no perfil profissional, onde já como estudantes da área, devemos ter um perfil
crítico e reflexivo sobre os conteúdos de nossa formação e sobre nossas condutas
profissionais a serem construídas de forma contextualizada com a realidade atual, implicando
na necessidade de avaliação dos projetos políticos pedagógicos quanto à presença da
Bioética nos cursos de Terapia Ocupacional.
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“Importa estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como encontrar os indivíduos, instaurar
as comunicações úteis, interromper as outras, poder a cada instante vigiar o comportamento de cada
um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos. Procedimento, portanto, para
conhecer, dominar e utilizar. A disciplina organiza um espaço analítico.” (FOUCAULT, 1999).

Esses pensamentos são extremamente necessários para que haja uma conduta adequada do
terapeuta ocupacional, visto que é preciso um olhar crítico no nosso fazer diário para não
realizarmos atividades ou propor tratamentos e ações que só reproduzem os comportamentos
em que estamos condicionados e assim, não darmos ouvidos ao desejo e as necessidades dos
nossos pacientes/clientes. Dessa forma, trazendo outros benefícios que não sejam os que
sirvam apenas como mais um mecanismo disciplinador e que mina a singularidade e
individualidade desses sujeitos.

Neste sentido, seguindo os princípios da Bioética e do código de ética do Conselho Federal


de Fisioterapia e Terapia Ocupacional (COFFITO), o terapeuta ocupacional deve: “respeitar
os princípios bioéticos de autonomia, beneficência e não maleficência do
cliente/paciente/usuário/família/grupo/comunidade de decidir sobre sua pessoa ou
coletividade e seu bem estar;” (Resolução Coffito nº425, de 08 de Julho de 2013 – D.O.U. nº
147, Seção 1 de 01/08/2013, Artigo 14º - IV)

Por fim, nós escolhemos fazer uma intervenção artística porque a arte nos permite ter um
olhar crítico sob situações do nosso cotidiano, olhar esse proposto pelo código de bioética da
terapia ocupacional, trazendo de uma forma mais lúdica a reflexão sobre como a disciplina,
se não for tratada como uma bioética adequada, pode levar a um engessamento ou a uma
prisão da subjetividade da pessoa. Escolhemos então, como dito inicialmente a música
“Admirável Chip Novo” da cantora Pitty, que é uma crítica transparente ao sistema e toda a
sua forma de controle da sociedade, tornando-a cada vez mais robotizada. Abaixo,
analisamos os versos da letra da canção:

“ Pane no sistema
Alguém me desconfigurou
Aonde estão meus olhos de robô?
Eu não sabia, eu não tinha percebido”

A música se inicia com a personagem acordado de um sono profundo após um “probleminha”


no sistema. Ela, que pensava ser humana, notou ser um robô, agora desconfigurado.

“Eu sempre achei que era vivo


Parafuso e fluído em lugar de articulação
Até achava que aqui batia um coração
Nada é orgânico, é tudo programado”
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Na segunda estrofe, percebe-se que a personagem, na realidade, não estava liberta como
imaginava. Ela observa a liberdade como uma grande ilusão, vivendo em um mundo
totalmente programado.

“E eu achando que tinha me libertado


Mas lá vêm eles novamente
Eu sei o que vão fazer
Reinstalar o sistema”

Ao primeiro sinal de qualquer pane, a solução logo se apresenta com novas medidas de
manipulação e tentativa de fazer com que a sociedade continue dormindo. Esse trecho nos
remete à relação que temos atualmente com as redes sociais. Muito se fala que a internet e as
redes trouxeram liberdade para que as pessoas possam se expressar, ter diferentes formas de
trabalho. Mas, na verdade, é apenas um novo sistema que faz com que todos continuem sendo
escravos e dependentes.

“Pense, fale, compre, beba


Leia, vote, não se esqueça
Use, seja, ouça, diga
Tenha, more, gaste, viva
Não, senhor, sim, senhor
Não, senhor, sim, senhor”

Aqui no refrão, a ideia de colocar verbos no imperativo, nos leva a pensar em como esse
sistema tem induzindo as pessoas a realizarem uma ação. Isso ocorre na sociedade o tempo
todo, somos constantemente levados a consumir cada vez mais e a assumir compromissos que
nem sempre gostaríamos. Estamos apenas obedecendo, como sugere os versos finais.

“Mas lá vem eles novamente


Eu sei o que vão fazer
Reinstalar o sistema”

E você, se fosse realmente livre, viveria hoje exatamente da forma que vive?
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REFERÊNCIAS

BENTHAM, J. O panóptico. Autêntica, 2019.

CHAVES, Juliana de Castro. A liberdade e a felicidade do indivíduo na racionalidade do


trabalho no capitalismo tardio: a (im) possibilidade administrada. 2007. Tese ( Doutorado
em Psicologia Social) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.

COSTA, L. S.; CAMARGO, L. N. Disciplina e poder: breves considerações sobre a questão


do corpo na filosofia de Michel Foucault. Griot: Revista de Filosofia, v. 19, n. 1, p. 127-138,
2019. Disponível em: <https://www.ssoar.info/ssoar/handle/document/61689>. Acesso em: 26
jun. 2022.

DA GAMA, G. O.; DA GAMA, C. O.; PINHO, L. C. Ética e cuidado de si: uma possibilidade
de resistência em Foucault. EFDEPORTES, Revista Digital - Buenos Aires - Año 14 - Nº
139, 2009. Disponível em:
<https://www.efdeportes.com/efd139/etica-e-cuidado-de-si-resistencia-em-foucault.htm>.
Acesso em: 26 jun. 2022.

FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1987.

GIDDENS, A. Novas Críticas: Foucault Sobre Distribuição De Tempo E De Espaço. A


constituição da sociedade. 2017.

PITTY. Admirável Chip Novo, letra da música, 2003 In: Deckdisc; Polysom. 39:31.
Disponível em: <https://www.letras.mus.br/pitty/admiravel-chip-novo/>. Acesso em: 26 jun.
2022.

Revista O COFFITO. Brasília, n. 6, 2000. Disponível em: <https://www.coffito.gov.br>.


Acesso em: 01 ago. 2022.

SPÍNDOLA, Pablo. O panoptismo de Foucault: uma leitura não utilitarista. Anais do XXVI
Simpósio Nacional de História–ANPUH–São Paulo, p. 01-16, 2011.

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