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Gior gio Agam ben

P ilatos e Jesu s

Traduçao
Silv an a d e G asp ar i e P atr icia Peterle

editora ufsc E D I T O R I A L
C o p y r igh t d e st a ed ição © Bo it e m p o E d it o r ial, 2 0 1 4
C o p y r igh t © n o t t e t e m p o sr l, 2 0 1 3
T ít u lo or igin al: P ilat o e G esú

Bo it e m p o E d it o r ia l U n iv e r sid a d e Fe d e r al d e Sa n t a C a t a r in a

D ir e ção ed ito r ial I v an a Jin k in g s R e it o r a R o se lan e N e c k e l

Ed ição I sab e lla M a r c a t t i V ice-R eito r a L ú c ia H e le n a M a r t in s P ach eco

C o o r d e n ação d e p r o d u ção L iv ia C am p o s
E d it o r a d a U F S C
A ssist ên cia ed it or ial T h aisa B u r an i
D ir e t o r Exe cu t iv o F áb io L o p e s d a S ilv a
Eq u ip e d e ap o io
C o n se lh o Ed ito r ial
A n a Y u m i K a jik i, A r t u r R e n z o , B ib ia n a L e m e , E lain e R am o s,
F áb io L o p e s d a S ilv a (P r eside n te), A n a L ic e B ran c h e r,
F e r n an d a F an t in e l, Fran c isc o d o s S an t o s, K im D o r ia,
A n d re ia G u e rin i, C lé lia M a r ia L im a d e M e llo e C am p igo tt o ,
M arle n e B ap t ist a, M au r íc io d o S an t o s, N an d a C o elh o e
Fe rn an d o Jac q u e s A lt h o ff, I d a M a r a Fre ire ,
R e n ato S o are s
Jo ã o L u iz D o rn e lle s B ast o s, L u is A lb e rt o G ó m e z e
M a r ild a A p are c id a d e O liv e ira E f f iin g

BO IT E M P O E D IT O R IA L D ir e ção ed ito r ial


Jin k in gs Ed ito r e s A sso ciad o s Lt d a. P au lo R o b e rto d a S ilv a
R u a P ereira Le ite , 3 7 3
0 5 4 4 2 - 0 0 0 São P au lo SP
E D I T O R A D A U F SC
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T r ad u ção d o italian o S ilv a n a d e G asp ar i e P a t r ic ia P e te rle

Revisão d a tr ad u ção S e lv in o A ssm an n

Tr ad u ção d o s ter m os em latim e em gr e go M a u r i F u rlan

P r ep ar ação M a r ia A lic e S . d e A . R ib e iro

D iagr am ação A n t o n io K e h l

C a p a R o n ald o A lv e s
EcceHomo (c. 1 6 0 5 ), d e C a r a v a ggio (1 5 7 1 - 1 6 1 0 ) (fr e n te ),
so b r e de t alh e s d e
e so b r e EcceHomo (1 8 7 1 ) , d e A n t o n io C ise r i (1 8 2 1 - 1 8 9 1 ) (ver so)

C I P - BR A SI L. C A T A L O G A Ç Ã O - N A - F O N T E
SI N D I C A T O N A C I O N A L D O S E D I T O R E S D E LI V R O S, R J

A21p
A g a m b e n , G io r g io , 1942-
P ila t o s e Je su s / G io r g io A ga m b e n ; t r a d u ç ã o Silv a n a d e G a s p a r i , P a t r ic ia P et e r le. -
1. e d . - Sã o P au lo : Bo it e m p o ; F lo r ia n ó p o lis : E d it o r a d a U F SC , 2014.

T r a d u ç ã o d e : P ilat o e G e sú
In c lu i b ib lio gr a fia
I SBN 9 7 8 - 8 5 - 7 5 5 9 - 4 1 4 - 8 (B o it e m p o E d it o r ia l)
I SB N 9 7 8 - 8 5 - 3 2 8 - 0 7 0 8 - 3 (E d it o r a d a U F SC )

1. F ilo so fia e R e ligiã o . 2. V id a c r ist ã . 3 . T e o lo gia . I. T ít u lo .

14-17224 C D D : 2 5 3 .7
C D U : 2-766

E v e d a d a a r e p r o d u ç ã o d e q u a lq u e r p ar t e
d e s t e li v r o s e m a e x p r e s s a a u t o r i z a ç ã o d a e d i t o r a .

E s t e li v r o a t e n d e à s n o r m a s d o a c o r d o o r t o g n i í i c o c m v i g o r t l m l c ju n d r o d e 2 0 0 ‘J.

______ I 1 1' iI Il U H i IIiivi Ull il ii i l i i U i ) 1 »1


Su m ár io

A p r esen tação —So b r e a im p o ssib ilid ad e d e ju lg a r ...................7


V in íc iu s N ic ast ro H o n e sk o

P ilatos e Je su s.................................................................................. 1

G l o sa s........................................................................................... 65

Bib lio gr afia................................................................................... 77


Ap r esen tação
Sob r e a im p o ssib ilid ad e de ju lgar

P or ocasião d o lan çam en to d a edição origin al de P ilat o s e Je su s


{P ilat o e G esü ), pela ed itor a N ott ete m p o, G ior gio A gam b en p u ­

blica, n o jor n al L a S t am p a, de Tu r im , em 25 de setem bro dc


2 0 1 3 , “Eu e P ôn cio P ilatos” (“Io e P on zio P ilato”), em qu e expõe
as razões d a r edação dessa breve obr a. D iz o au tor q u e o en saio -
q u e agor a vem à lu z ao p ú b lico br asileiro n esta edição d a Boi-
t em p o - su r giu com o u m a “im p osição”; aliás, salien ta qu e, p en ­
san d o em Pilatos, acab ou p or in ter r om p er p o r três m eses ou tros
tr abalh os em cu r so (trata-se de L ’u so d e i corp i, ú ltim o volu m e da
série H o m o sacer, q u e acab ou p o r ser p u b licad o em setem br o
d e 2 0 1 4 pela ed itor a N er i Pozza, e d e I lf u o c o e i l raccon to, livro dc
en saios tam b ém p u b licad o em setem br o de 2 0 1 4 , pela N o t t e ­
te m p o), sen tin do-se qu ase obr igad o a refletir sobr e o prefeito da
Ju d e ia en tre os an os 2 6 e 36. Tod avia, qu al é a razão de o filósofo
sen tir tal obrigação? P or qu e essa m ot ivação im p er iosa p or in ves­
tigar esse f u n c io n ár io d a adm in ist r ação r om an a?
8

A gam b e n d á, de p r o n t o , u m m ot iv o p r elim in ar : P ilato s é,


talvez m ais d o q u e T ib é r io , a ú n ica figu r a a d ar t e st e m u n h o
h ist ór ico d os even t os m e ssiân ico s ligad o s a Je su s; ad em ais,
o cu id ad o c o m o q u al os ev an gelistas t r at am de d efin ir as
h esitações, as ter giver sações e m u d an ças d e o p in ião d o p r efei­
to d a Ju d e ia ap o n t a, se gu n d o A gam b e n , p ar a “algo p ar ecid o
co m a in t en ção de co n st r u ir u m p e r so n age m , co m p sico lo gia
e id io m at ism o s p r ó p r io s” 1. E ssa con st r u ção , en t r et an t o, ser ia
u m a te n t at iv a m e t icu lo sa d e ate st ar o car át er h ist ó r ico d e tal
p e r so n age m - u m a vez q u e as vár ias o u t r as figu r as qu e ap a­
r ecem n as n ar r ativas evan gélicas ser iam , em cer ta m e d id a, ou
p e rso n ag e n s já sacr alizad os (co m o Jo ã o Bat ist a e os ap ó st o lo s),

o u p e rso n ag e n s an ô n im o s q u e em er gem d a m assa d e se gu id o ­


res de Je su s p ar a, n os r elat os, exercer a fu n ção de exem p los
(co m o Lázar o, M ar ia M ad ale n a, o b o m sam ar it an o et c.).

Esse m ot iv o p r elim in ar , n o en t an t o - e p o r m ais in ter es­


san t e q u e se ja - , n ão foi o q u e p o r algu n s m eses ar r eb at ou
A gam b e n de seu tr ab alh o em seu o p u s m ag n u m , a sér ie H o m o
sac e r. O q u e o fez par ar , e se co lo co u c o m o m o t iv o im p e r io ­

so de in vestigação d e P ilato s, foi a im age m d o cr u zam e n t o


(qu e acon te ce ju st am e n t e n aq u elas seis h or as q u e m ar cam
o en con t r o d e Je su s e P ilato s) en tr e et er n id ad e e h ist ó r ia, o
p o n t o de at r ave ssam en t o d o t e m p o r al p elo eter n o. Im age m

1 N e st a e d iç ão , p . 2 3 .
9

en igm át ica, d iz A gam b e n , e q u e car r ega co n sigo a p e r gu n t a


q u e o p e r a em t o d o o en saio : p o r qu e o cr u zam e n t o en tr e d ois
m u n d o s, o h u m an o e o d ivin o, o h ist ó r ico e o q u e n ão tem
h ist ó r ia, tem a fo r m a de u m p r o ce sso , d e u m a k risis, ist o é, de
u m ju íz o p r ocessu al?

A gam b e n le m b r a q u e o te r m o k risis p r o vém d o ver b o gr ego


k rin o - q u e em su a e t im o lo gia est ar ia n a or igem de “sep ar ar ”,

“d ecid ir ”, e qu e, além d o u so ju r íd ico , tam b é m ter ia u m u so


m é d ico e o u t r o te o ló gico 2. En t r e t an t o , diz q u e k risis n ão ap a­
rece n os Evan gelh os e q u e n eles é co m p r e e n d id o pelo ter m o
técn ico p ar a a fu n ção de ju iz, b e m a , “a cát ed r a ou o p ó d io n o
q u al se sen ta aqu ele qu e deve p r o n u n ciar a sen te n ça (a se lla
c u r u lis d o m agist r ad o r o m an o )”3. T o d a a m ov im en t ação do

p r ocesso de Je su s, r elatad a n o en saio em p or m en or e s a p ar tir


d a le it u r a d o Evan gelh o de Jo ão , par ece, se gu n d o A gam b en ,
ser en tão o en con t r o de d ois b e m at a, de d ois ju izes: o j u i z do
r ein o m u n d an o e o ju i z d o r ein o d ivin o, am b o s q u e, em tese,
est ar iam p r o n t o s ao ju lgam e n t o . En t r e t an t o , a in q u ie tação
de A gam b e n está n o fato de qu e, d u r an te t o d o o p r o cesso,
P ilatos, em m o m e n t o algu m , d ian te de Je su s, sen te-se n a p o si­
ção d e ju i z , ist o é, capaz de em itir u m ju í z o 4.

2 N e st a e d iç ão , p . 3 3 .

3 Id e m .

4 A g a m b e n r e ssalt a t a m b é m , n o p a r á gr a fo 14 d e st e e n saio , q u e , e m r e lação a


Je su s, o ju lga m e n t o e r a im p o ssív e l. C f. p . 5 5 - 6 d e st a e d ição .
10

Q u an d o Je su s é levado a P ilat os p ar a ju lg am e n t o , o pr efeito


lo go p e r gu n t a aos su m o s sacer d ot es: “Q u al é a acu sação ( k a -
t e g o rian ) q u e tr azem co n t r a este h o m e m ?” . A r e sp ost a d os h e­

br eu s, to d avia, é evasiva: “Se este n ão fosse u m m alfeitor , n ão


o t er íam os en tr egu e {p are d o k am e rij”. O r a, se m u m a acu sação,
n o d ir eito r o m an o , n en h u m p r ocesso p o d e r ia ter in ício e, p o r ­
tan to , n en h u m ju lgam e n t o , n e n h u m a k risis, p o d e r ia ser leva­
d o a ter m o. E em face d a p ossib ilid ad e d e P ilato s d esistir d o
p r ocesso p ela falt a de acu sação, os ju d e u s lev an tam a h ip óte se
de acu sação m aio r : u m cr im e d e lesa m aje st ad e p o r co n t a d as
at r ib u ições de realeza d ivin a d ad as a Je su s. D ian t e d isso, de
m o d o in esp er ad o, P ilato s acab a p o r n ão se exim ir d o in ter r o ­
gat ó r io d e Je su s (e, p o r isso, A gam b e n su ger e qu e o p r o cesso
q u e se in icia é u m sim u lac ro d e p ro ce sso ).

Tal sim u lacr o de p r o ce sso 5 tem in ício e, to d avia, co m o ver ifica


A gam b e n , n ão cu lm in a n o p r o n u n ciam e n t o d e u m ju í z o p o r

5 N a s G lo sa s (p a r t e fin al d e st e e n sa io ), p . 6 7 d e st a e d iç ã o , A g a m b e n d iz q u e u m
p r o c e sso se m ju lg a m e n t o é u m a c o n t r a d iç ã o e, alé m d isso , c h e ga a afir m a r q u e
n ã o se t r a t a p r o p r ia m e n t e d e u m p r o c e sso , p o is, se é p o ssív e l d a r a o p r o c e sso u m
e sc o p o , e sse se r ia o ju í z o . D e a lg u m m o d o , h á n o p r o c e sso a lgo d a o r d e m d o m ist é ­
r io , t al c o m o n a p r ó p r ia v id a d o s h o m e n s. E so b r e o t e r m o m ist é r io A g a m b e n t r a ç a
a lgu n s p o n t o s n e ssa s g lo sa s, m a s, e m 2 0 1 1 , d u r a n t e o F e st iv a l d e M ú sic a s Sa gr a d a s
d o M u n d o , n o s E n c o n t r o s d e Fez, n o M a r r o c o s, e m u m a c o n fe r ê n c ia in t it u la d a
“ O q u e é u m m ist é r io ?” , e x p õ e d e m o d o m a is c la r o e ssa c o n c e p ç ã o . O t e x t o d a
c o n fe r ê n c ia , o r ig in a lm e n t e e m fr a n c ê s, fo i p u b lic a d o n o liv r o L e V o y age in it ia t iq u e
(P ar is, A lb in M ic h e l, 2 0 1 1 ) , o r ga n iz a d o p o r N a d i a B e n je l l o u n , e, n o Br a sil, h á u m a
t r a d u ç ã o fe it a p o r m im e p u b lic a d a e m S o p r o , F lo r ia n ó p o lis, C u lt u r a e Ba r b á r ie ,
n . 6 3 , d e z. 2 0 1 1 . D isp o n ív e l e m : <w w w .c u lt u r a e b a r b a r ie .o r g./ so p r o / o u t r o s/ m ist e
r io .h t m l>; ac e sso e m : 12 n ov. 2 0 1 4 .
II

p ar te de P ilatos, q u e se lim it a a e n t re g ar o acu sad o. N o texto


p ar a o L a S t am p a, o au t o r diz:

Duran te toda a duração do processo, no m ais, Pilatos apen as ter­


giversava, ten tan do, prim eiro, declarar-se in com peten te e reme­
ter o juízo a H erodes, propon do, depois, u m a an istia por con ta
da Páscoa e, por fim, m an dan do flagelar o acusado para subtraí­
do à acusação maior. M as quan do todo expedien te e qualquer
tergiversação resultam vãos, ele não pron u n cia o juízo, limita-se
a “en tregar” Jesu s.6

A q u estão d a e n t re ga (an alisad a n os p ar ágr afo s 8 e 9 d este en ­


saio), p o r t an t o , ser ia u m d o s p o n t o s d et er m in an t es em to d o
o r elato evan gélico (p er p assan d o , se gu n d o A gam b e n , a e n t re ­
g a d ivin a d o Filh o am ad o , a e n t re ga - a t raiç ão - d e Ju d as, a

e n t re ga d e Je su s a P ilatos p elo s ju d e u s e a e n t re ga de Je su s p o r

P ilat os ao fim d o in ter r o gató r io). É p r eciso lem br ar , an tes de


tu d o, qu e o te r m o e n t re ga (qu e em gr ego se d iz p ar ad o sis e,
n o latim , é t r ad u zid o p o r t r ad it io ) car r ega em si a n oção de
t rad iç ão e acab a p o r t o m ar u m p ap e l fu n d am e n t al n o qu e os

te ólo gos d e n o m in am “e co n o m ia d a salvação” . A e n t re ga , qu e


n o caso d o p r ocesso de Je su s p ar ece su p r im ir a falt a de j u í ­
z o , ap o n t a p ar a u m a ap o r ia n esse en con t r o en tr e r ein o divin o

6 G io r gio A g a m b e n , “ Io e P o n zio P ila t o ” , L a S t a m p a , T u r im , 2 5 se t. 2 0 1 3 . D is­


p o n ív e l e m : <w w w .v it a .it / so c ie t a / m e d ia - c u lt u r a / io - e - p o n z io - p ila t o .h t m l>; ace sso
e m : 7 n ov. 2 0 1 4 .
12

e r ein o m u n d an o , ap o r ia esta qu e, ain d a n o text o p ar a o L a


S t am p a , o p r ó p r io A gam b e n en u n cia:

O q u e é, c o m e fe it o , u m p r o c e sso se m ju íz o ? E o q u e é u m a p e ­

n a — n e sse c aso , a c r u c ifixã o — q u e n ã o se gu e a u m ju íz o ? P ila t o s,

o o b sc u r o p r o c u r a d o r d a Ju d e ia , q u e d e v ia a gir c o m o ju iz e m

u m p r o c e sso , r e fu t a- se a ju lg a r o a c u sa d o ; Je su s, c u jo r e in o n ão

é d e st e m u n d o , a c e it a su b m e t e r - se ao ju íz o d e u m ju iz , P ila t o s,

q u e se r e fu t a a ju lg á - lo .7

N o pr ocesso de Jesu s - u m d os m om en tos- ch ave d a h istór ia da


h u m an id ad e - , p or tan to , n en h u m ju lgam e n t o p ô d e ter lugar.
En t r etan to, tal su sp en são d a k risis deixa em aber to algu m as q u es­
tões à com pr een são d o p r o b lem a, p ar a A gam b en fu n d am en tal,
d a salvação (ou de su a im p ossib ilid ad e) e d a ju st iça (n esse caso, da
ju st iça ad vin d a d o con fr on to en tre os dois r ein os).

É n u m con te xt o diver so e n a an álise de ou t r o p r ocesso qu e


p o d e m o s talvez exp or co m o essa p r o b lem át ica se desen volve
em A gam b en . Tr at a- se de u m en saio, p r esen te em N u d it à *,
a r esp eito de Kafk a, so b r et u d o d e O p ro ce sso 8. Aí, A gam b e n
ar gu m e n t a em p r ol d o fato de q u e a let r a K, q u e co m p õ e o

Id e m .

* R o m a , N o t t e t e m p o , 2 0 0 9 . (N . E .)

tS R e t o m o a q u i a lgu m a s d a s an á lise s d e se n v o lv id a s n o e n saio “L ín g u a n o v a , lín ­


g u a m in gu a n t e ” , r e d igid o e m c o n ju n t o c o m C a r lo s E . S. C a p e la , c o m o p o sfá c io
d e G io r gio A g a m b e n , C a t e g o r ia s i t a l ia n a s : e n saio s so b re p o é t ic a e l it e r a t u r a (t r ad .
V in íc iu s N ic a st r o H o n e sk o e C a r lo s E d u a r d o Sc h m id t C a p e la , F lo r ia n ó p o lis,
E d u fsc , 2 0 1 4 ).
13
n o m e d o p r o t ago n ist a de 0 p ro ce sso , Jo se f K., d iz m e n os r es­
p eit o a Kafk a, co m o su p ô s M a x Br o d , d o qu e alu d e, ao m o d o
de u m a cifr a, à n o ção ju r íd ica de k alu m n iat o r. N o âm b it o d o
d ir eito r o m an o , esse con ceit o er a em p r egad o p ar a id en tificar
q u alq u e r in d iv íd u o qu e, p o r ter feit o u m a falsa acu sação, re­
ceb ia com o p u n ição ter o r ost o m ar cad o , em br asa, co m o
sím b o lo K. Jo se f K., p or t an t o , se gu n d o tal p er spect iva, co n s­
t it u ir ia u m a en car n ação d e u m t íp ico k alu m n iat o r, q u e, ju st o
p o r ter d ad o in ício a u m p r ocesso calu n io so con tr a algu ém
in ocen te, ter ia a in sígn ia K m ar cad a em si. En t r e t an t o , n o caso
específico de Jo se f K., o p r ocesso a q u e ele d á in ício p o r m eio
de su a d en ú n cia n ão é con t r a ou t r a p essoa, m as co n t r a si m e s­
m o - e essa ser ia a in sígn ia p ar ad o xal d o s escr itos k afk ian os.

A calú n ia, ob se r v a A gam b e n , só acon te ce n o caso de o acu ­


sad o r ter con h ecim e n t o d a in ocên cia d aq u ele a q u e m acu sa.
O r a, tal é a sit u ação d e Jo se f K., q u e, ao acu sar a si p r óp r io
d e u m a cu lp a q u e sab e in exist en t e, p assa a ser cu lp ad o d o cr i­
m e d e calú n ia: ele é cu lp ad o pelo fato de, sab en d o- se in ocen ­
te, ter -se aceito com o acu sad o e, assim , ter -se au t ocalu n iad o.
A gam b e n , n a seq u ên cia, esten d e esse p ar ad o xo - k afk ian o p o r
excelên cia - p ar a alé m d a con d ição de Jo se f K.

C o n sid e r an d o em ter m o s ger ais a sit u ação d o p er so n age m tal


com o im agin ad a p o r Kafk a, a au t o calú n ia, p ar a o filósofo,
con figu r ar ia a co n d ição b asilar d e t o d o h om em :
14

Todo h om em dá in ício a um processo calun ioso con tra si m es­


m o. Esse é o pon to a partir do qual Kafka se move. Por isso, seu
universo n ão pode ser trágico, m as apen as côm ico: a culpa n ão
existe —ou, antes, a ún ica culpa é a autocalún ia, que con siste em
acusar-se de u m a culpa in existente (isto é, da própria in ocên cia,
e esse é o gesto côm ico por excelên cia).9

O desen volvim en to d a an álise a par tir do p r ism a for n ecido pelo


m ecan ism o d a au tocalú n ia leva A gam b en a assum ir, com o qu es­
tão fu n d am en tal qu e d aí em er ge, o m o d o com o o in d ivíd u o se
su r pr een de cap tu r ado pelo processo. N a n arr ativa k afkian a, com
efeito, o tr ibu n al n ão ch ega a acu sar K., m as tão som en te acolh e
a acusação qu e ele faz a si m esm o, com o qu e o per son agem tem
su a vida atrelada, de m an eir a in elutável, ao aparelh o ju r íd ico. K.,
afin al, jam ais recebe u m a citação d o tr ibun al, n ão é de m o d o
algu m ch am ad o em cau sa n u m pr ocesso, m as, pelo con tr ário,
deixa-se o u se faz capt u r ar p o r u m pr ocesso ao qu al n in gu ém
m ais d o qu e ele m esm o alim en ta. Para o filósofo, n esse sen tido,
torn a-se cru cial a com pr een são d o qu e sign ifica o fato d a ac u sa­
ç ão , tan to n o âm b it o d o pr ocesso qu an to n o âm b ito etim ológico,

be m com o o en ten d im en to d as im p licações qu e dele decor rem .

E m su a exposição, A gam b en m o st r a qu e a ab er tu r a de u m p r o ­
cesso cr im in al, n o dir eito r o m an o , tin h a in ício co m a realização
d a d e lat io n o m in is, ist o é, a in scr ição d o n om e d o d en u n ciad o

9 G io r g io A g a m b e n , “ K .” , e m N u d i t à , c it ., p . 3 5 .
15

n a list a d os acu sad os. O n om e, desse m o d o , er a ch am ad o em


cau sa ( a d c au saré ). A con t ecia, p or t an t o , a im p licação d e algo
n o dir eito, a cap t u r a de u m a “coisa” p ela esfera do p r ocesso,
p elo d om in io d o ju r íd ico. O au t o r lem b r a qu e a cau sa e a coisa
(res) est ão, n o dir eito, r elacion adas d e m o d o ín tim o , p ois se m ­

pr e d izem r espeito a u m a q u estão p r ocessu al. E in d ica qu e,

[...] nas línguas neolatinas, cau sa é substituída de m odo progressi­


vo por res e, após ter design ado, n a termin ologia algébrica, a in cóg­
n ita (assim com o res, em francês, apenas sobrevive n a form a rien ,
“nada”), dá lugar ao termo “coisa” (chose em francês). N a realidade,
essa palavra tão n eutra e genérica, a “coisa”, n om eia “aquilo que
está em causa”, aquilo que acontece n o direito (e n a lin guagem ).10

Tor n a-se en tão p ossível in ferir, co m base em tal con st atação,


qu e a cu lp a e a p e n a são m e n os d efin itivas p ar a o p r o cesso
d o q u e a acu sação, q u e assu m e assim o p r im eir o p lan o. “A
acu sação é”, n as p alavr as d e A gam b e n , “talvez, a ‘cate gor ia
ju r íd ica p o r excelên cia ( c at e g o ria, em gr ego, sign ifica p r ecisa­
m en te ‘acu sação’), sem a q u al t o d o o ed ifício d o d ir e it o r u ir ia:
a ch am ad a em cau sa d o ser n o dir eito. Isto é, o d ir eito é, em
su a essên cia, acu sação, ‘categor ia’” 11.

Q u e o p r ocesso se m acu sação (e se m ju lgam e n t o ), q u e cu lm i­


n a n a cr u cifixão de Je su s, seja algo d et er m in an t e n a in q u ie t a­

10 I b id e m , p . 3 7 .

11 Id e m .
16

ção d e A gam b e n n ão é aq u i u m acaso. A o at r ib u ir a P ilat os


a con d ição d e a lt e r ego d e Je su s, co m efeito, o filósofo colo ca
am b o s, n os r ast r os d a t r ad ição 12, em r elação d e cu m p licid ad e .
N o t r ib u n al q u e colo ca fr en te a fr en te os d ois r ein os, u m a
m ú t u a acu sação p o d e r ia ser lev an tad a - e, n o m ais, t o d o o
d eb at e so b r e a ver d ad e e sobr e a realeza, q u e apar ece n as ce­
n as d escr itas p o r Jo ã o (e aq u i an alisad as m in u cio sam e n t e p o r
A gam b e n ), são as m ost r as d essa acu sação, p o r vezes ir ôn ica,
qu e, ao levar m os em co n t a a d in âm ica d o a lt e r ego , os h o m e n s
P ilato s e Je su s fazem en tr e si e a si m e sm o s.

Pilatos e Jesus, o vicário do reino m un dan o e o rei celeste, estão


frente a frente n um m esm o e único lugar, o pretório de Jerusalém,

12 Ë p r e ciso le m b r ar q u e e m “ O a m igo ” , e n saio d e d ic a d o a p e n sa r algo c o m o u m a


p o lít ic a d a am iz ad e a p a r t ir d e A r ist ó t e le s — e D e r r id a ali t a m b é m c o m p a r e c e c o m o
c o n t r a p o n t o - , A g a m b e n le m b r a q u e o am ig o é se m p r e , m a is d o q u e n o s le ga a t r a ­
d iç ão n a figu r a' a lt e r ego , u m h e t e ro au t o s. C f. G io r gio A g a m b e n , “ O a m ig o ” , e m O
q u e é o c o n t e m p o rân e o ? e o u t ro s e n saio s (t r ad . V in íc iu s N ic a st r o H o n e sk o , C h á p e c ó ,
A r go s, 2 0 0 9 ). “O a m igo é, p o r isso , u m o u t r o si, u m h e t e ro s au t o s. N a su a t r ad u ç ão
la t in a — a lt e r ego — e ssa e xp r e ssão tev e u m a lo n ga h ist ó r ia, q u e n ão é a q u i o lu ga r d e
r e co n st r u ir . M a s é im p o r t a n t e n o t a r q u e a fo r m u la ç ã o gr e ga t e m algo a m a is d o q u e
n e la c o m p r e e n d e u m o u v id o m o d e r n o . A n t e s d e t u d o , o gr e go - c o m o o lat im —
t e m d o is t e r m o s p a r a d ize r a alt e r id ad e : allo s (lat . a liu s) é a alt e r id a d e ge n é r ica, h e t e ­
ro s (lat. a lt e r ) é a alt e r id a d e c o m o o p o siç ã o e n tr e d o is, a h e t e r o ge n e id a d e . A lé m d is­
so , o la t im e go n ã o t r a d u z e xat am e n t e au t o s, q u e sign ific a ‘si m e sm o ’. O a m igo n ão é
u m o u t r o e u , m a s u m a alt e r id ad e im an e n t e n a ‘m e sm id a d e ’, u m t o r n ar - se o u t r o d o
m e sm o . N o p o n t o e m q u e e u p e r ce b o a m in h a e xist ê n cia c o m o d o ce , a m in h a se n ­
saç ã o é at r av e ssad a p o r u m c o m - se n t ir q u e a d e slo c a e d e p o r t a p a r a o a m igo , p a r a o
o u t r o m e sm o . A am iz a d e é e ssa d e ssu b je t iv aç ão n o co r a ç ão m e sm o d a se n sa ç ão m ais
ín t im a d e si” (p . 8 9 - 9 0 ). E n t r e t a n t o , c o m o e m P ila t o s e Je su s a q u e st ã o d a e n t re g a, d a
t r ad iç ã o , é u m d o s p o n t o s b asilar es p a r a a c o m p o siç ã o d e u m a ap o r ia , n ã o p o d e m o s
d e ixar d e p e n sa r q u e A g a m b e n e st e ja e n t ão jo g a n d o c o m o s t e r m o s.
17
o m esm o que os arqueólogos acreditaram identificar com o sítio
improvável. Para dar testemunho da verdade, Jesus deve afirmar
e, ao mesmo tempo, desmentir o próprio Reino, que está distante
(“não é deste m un do”) e, ao m esm o tempo, m uito próximo e, mais
do que isso, ao alcance das mãos (en tosy m in , Lc. 17,21). D o pon to
de vista do direito, seu testemun ho só pode falir, resultando n um a
farsa: o man to de púrpura, a coroa de espinhos, o bastão com o ce­
tro, os gritos: “Julga-n os!”. Ele - que não veio para julgar o m un do,
mas para salvá-lo —encontra-se, talvez justam en te por isso, tendo
de responder a um processo, submetendo-se a um julgamen to que,
aliás, seu alt e r ego, Pilatos, não proferirá, n em pode proferir.13

N o s t e r m os d essa con t e n d a, ist o é, n a cad u cid ad e d este m u n ­


d o (o n d e n áo e st á u m r ein o m e ssiân ico t al q u al esp e r ad o p elo s
h ebr eu s, m as ap en as u m a d e se sp e ran ça re v e lad a ) e n esse p r o ce s­
so sem ju lgam e n t o n em p e n a em q u e os h o m e n s se co lo cam
(n u m au t o calu n iar - se con st an t e), é p r eciso q u e as cr iatu r as
p er ceb am su a con d ição de in salv áv e is, ou , em ou t r as palavr as,
a im p o ssib ilid ad e d a r eden ção. E aq u i a c at e g o ria fu n d am e n ­
tal à con st r u ção d o ed ifício ju r íd ico (d e t o d a p o ssib ilid ad e de
elab or ação d o ju í z o , d a con fecção d esse con st an t e d isp ositivo
de cap t u r a d os viven tes qu e p o ssu e m a lin gu age m ), a acu sa­
ção, m o st r a qu e, en q u an t o falan tes, os h o m en s p assam a v id a
n u m a con st an t e e n t re ga d e si m e sm o s. A gam b e n salien ta (u m a
vez t o d os os h o m en s ac u sad o s ) q u e o n osso t e m p o se m o st r a

13 N e st a ed ição, p. 62- 3.
18

c o m o o d a in d ecisão, o d a e n t re ga p u r a e sim p les q u e par ece


escap ar ao ju ízo. En t r e t an t o, é t am b é m , e d e m o d o p ar ad oxal,
o d a crise , o d e u m con st an t e ju ízo sob r e to d as as coisas.

P ilat o s e Je su s, desse m o d o , é u m e n saio - u m gesto - em qu e

A gam b e n te n ta m o st r ar co m o o lu gar d a k r isis , d o ju ízo, h oje


abr e o m u n d o d o s h o m en s ao fu n cio n am e n t o de u m e st ad o
d e ex ce ção f ic t íc io , em qu e a lei (a cad u cid ad e d a lei) vige sem

sign ificar 14. E e n q u an t o p er d u r ar esse estad o (e n ão ad vir u m a


su sp en são e f e t iv a d a lei - tal co m o A gam b e n lê n as car tas p au -
lin as15) p er m an ecer em os - ac u sad o s p o r n in gu é m m ais d o qu e
n ós m e sm o s e im p licad o s n u m p r ocesso in ter m in ável - d e­
cid in d o so b r e o in d ecid ível q u e é a vid a, n a ap or ia d e u m a
“d ecisão in cessan t e [que] n ão d ecid e p r o p r iam e n t e n ad a”16.

V in íc iu s N ic ast ro H o n e sk o

14 C f. G io r gio A g a m b e n , E st ad o d e e x c e ç ão (t r ad . Ir a c i P o lle t i, Sã o P a u lo , Bo i-
t e m p o , 2 0 0 5 ).

15 C f. I d e m , I I t e m p o c h e r e st a: u n c o m m e n t o a l i a le t t e r a a i R o m a n i (T u r im , Bo lla t i
Bo r in gh ie r i, 2 0 0 0 ).

16 N e st a e d iç ã o , p . 7 6 .

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