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11 : GENOGRAMA FAMILIAR Mariana Goncalves Boeckel Laissa Eschiletti Pra valiar a complexidade inerente as rela- es familiares é uma preocupacao rela- tivamente recente na psicologia. O geno- grama como recurso avaliativo e interventivo surge como uma ferramenta bastante itil para acessar essas interagdes, e sua utilizagado encon- tra-se cada vez mais ampla na pratica psicolégica nas tiltimas décadas. Trata-se de um instrumento que permite organizar, de forma sintética e clara, imimeras informagGes quanto 4 dindmica fami- liar. Este capitulo objetiva descrever 0 genograma como modalidade técnica avaliativa da dinamica transgeracional familiar, O genograma! é a representacdo grifica das relagdes familiares. Contém informagées sobre a estrutura, o funcionamento e a dinamica de, a0 menos, trés geragdes de um sistema familiar. Utiliza 0 suporte grafico para proporcionar uma modalidade narrativa sobre historias desse siste- ma. Essa narrativa ocorre por intermédio da lin- ‘guagem verbal, ou, ainda, por intermédio das lin- guagens analdgica, metaférica e representativa, que facilitam a aproximacio as emogdes ¢ redes- cobertas de novos significados. Seu uso no contex- to avaliativo viabiliza o delineamento das confi- guragoes das relagdes transgeracionais, auxilia na construgio dos nexos mais representativos entre as 2 Alguns autores utilizam 0 termo genetograma e outros genograma. A opcio pelo terme genograma tem a intengi0 de salientar que o desenho éa familia esté além da genética, envolvendo relagdes, sentimentos, padcdes de funcionamento, essoas ¢ eventos significativos, entre outros, distintas geraces e evidencia aspectos mais com- plexos das relagdes atuais (Andolfi, 2003). Considera-se como um dos pioneiros da técnica o psiquiatra e terapeuta familiar norte- -americano Murray Bowen, Ele estudou arvores genealogicas de diversas familias ¢ identificou 0 impacto da transmissio transgeracional nas inte- ragées familiares atuais. Autores como Guerin ¢ Pendgast (1976), Montigano e Pazzagli (1989), McGoldrick, Gerson € Petry (2012) e Cerveny (2014) também se apropriaram da técnica e a aprimoraram. Eles destacam a ideia de que a téc- nica do genograma permite 0 acesso & dindmi- ca familiar de forma mais proeminente do que entrevistas centradas na realidade atual ou a livre narrativa sobre a histéria familiar. © uso do genograma como técnica avaliativa ¢ interventiva difere da construgao do genograma por parte do avaliador de forma breve, com 0 intuito de conhecer e contextualizar a demanda trazida pela familia. E construido em conjunto com o(s) paciente(s) e facilita o acesso as memé- rias €a0s relatos do mundo relacional. Inclui mui- tos dados, além de nomes, idades e eventos impor- tantes, Sua construgao implica, necessariamente, © aprofundamento das historias ¢ das relacdes estabelecidas com as familias de origem. Para sua construgao, existem simbolos comumente utili- zados que auxiliam na compreensio grafica da dinamica familiar. Ha simbolos que representam a estrutura (Tab. 11.1), as informagées sobre a familia e seus membros (Tab. 11.2) e suas relagoes emocionais (Tab. 11.3). PSICODIAGNOSTICO ee 137 TABELA 11.1 Representacées de estrutura familiar Estes simbolos representam a construcao do desenho, apresentando Grafico as pessoas da familia e indicando suas relacoes geracionais. Homem Refere-se ao sexo e ndo d orientacao sexual. mulher Refere-se ao sexo e ndo 4 orientacao sexual. Sexo desconhecido ou hermafroditismo Namoro Noivos Casamento ou uniao estavel Em caso de miitiplas unides, procurar apresentar a unido em diferentes alturas, indicando de forma clara a sequéncia das uniées ‘por datas de unido e Separacdo junto aos tracos. Casamento anulado : Conforme Novo Cédigo Civil - Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Separado £m caso de separacdo com filhos, colocar 0 traco entre os filhos e 0 genitor que 1ndo estd com a sua guarda. Divorciado £m caso de divércio com filhos, colocar os tragos entre os filhos 0 genitor que 1ndo estd com a sua guarda. £m caso de guarde compartithada, os filhos ficam entre os tracos. Vitvo Tipos de filiac3o Gravider £ importante que o tamanho do tridngulo seja relativamente menor que 0 desenho das demais pessoas no genogramo. Continua 138 J, wot, BANDEIRA, TRENTINI & KRUG (ORGS.) TABELA 11.1 Representacées de estrutura familiar Aborto espontaneo E importante que 0 tamanho da esfera seja relativamente menor que 0 desenho das demols pessoas no genograme. ‘Aborto provocado E importante que 0 tamanho do X seja relativamente menor que o desenho das demais pessoas no genograma, Guarda temporéria Conforme o Estatuto da Crianca e do Adolescente (Lei n° 8.069/90). Filho biolégico Nascimentos miltiplos Colacar uma linha na diagonal para cada filho da mesma gestacéo. Em caso de gémeos univitelinos, colocar uma linha ligando-os. Outros Animal Descrever o tipo de animal ao lado do simbolo, quando signiticotivo para a familia Fonte: Com base em Cerveny (2014) e Genupro.com (¢2015).. TABELA 11.2 Representacdes de informacoes sobre a familia Estes simbolos representam informacées especificas das pessoas das familias que interferem na dinamica relacional do sistema fai Morte Especificar a causa da morte e o data. PSICODIAGNOSTICO fe 139 Grético Dependéncia quimica Especificar a substancia preferencial. Doenga clinica Especificar 0 tipo de doenca clinica ou diagnéstico. Doenca mental Especificar 0 tipo de doenca mental ou diagndstico, Suspeita de dependéncia quimica Especificar a substéncia. Doenca mental com uso de drogas Especificar 0 tipo de doenca mental e a substancia preferencial. Bee Xx) OO O1e/O & Traicao A traicao refere-se a qualquer quebra de confianca, ndo somente traicdo ofetiva. Uma trai¢do emocional ou ruptura de um segredo também podem ser representadas no genograma. Descrever 0 tipo de traicdo no desenho. segredo Desenhar 0 cadeado préximo 4 situacdo envolvida no segredo e explicar. Fonte: Com base em Cerveny (2014) e Genopro.com (2015). Sugere-se a utilizagao do genograma na etapa final do processo avaliativo, com o intuito de investigar hipéteses relacionais elaboradas duran- te etapas avaliativas anteriores, Nessa situaco, sua aplicagao permite acessar a dinimica relacional ou informagies familiares especificas que comple- mentam 0 diagnéstico e o prognéstico provenientes da aplicagao de outros instrumentos psicolégicos. ‘A construgao do genograma é processual ¢ requer do avaliador habilidades para respeitar 0 tempo que a famflia ou que a pessoa em proces- so de avaliagao psicolégica necessita. A durabil dade de cada etapa é relativa, jé que cada processo é intensamente singular e requer tempo diferente tanto no que concerne a investigacdo mais apura- da como no que tange ao tempo para elaboracio dos conteiidos suscitados, Acredita-se ser funda- mental pelo menos dois encontros para a cons- trugio do genograma, tendo em vista que muitas vezes € preciso “buscar informagées” com outros membros da familia extensa. Partindo dessa contextualizagio, propomos a construcao do genograma em cinco etapas, Para isso, buscou-se a exemplificagao da técnica na deserigao de um caso modelo. A partir desse caso, serdo retomados alguns pressupostos tedricos € técnicos indispensaveis para 0 uso do genogra- ma como instrumento investigativo e avaliativo. 140 J. Wr, BANDEIRA, TRENTINI & KRUG (ORGS.) TABELA 11.3 Representacées de relacdes emocionais familiares Estes simbolos indicam como as pessoas se relacionam. Exi- gem, necessariamente, a ligacao entre pessoas. Vinculagao entre pessoas Distanciamento Conflito ‘Agressao/Violéncia ‘Abuso emocional Abuso fisico Abuso sexual Ruptura de contato Proximidade afetiva Intensa proximidade afetiva Fusionamento Organizacao fisica da familia Moram juntos Guarda compartilhada Desenhar uma linha em torno das pessoas que moram na mesma casa. a r= As ctiancas que vivenciam a questao da guarda compartithada devem ser incluidas em dois nucleos de familias que moram juntas. Fonte: Com base em Cerveny (2014) Genopro.com (2015). As cinco etapas norteadoras s4o: 1) Contextualizagao da estrutura familiar e avaliagao dautilidade de uso do genograma 2) Investigagao relacional da familia de origem de um dos membros do casal 3) Investigacao relacional da familia de origem do outro membro do casal 4) _Investigacdo relacional da familia atual 5) Associagdes transgeracionais e conexao com a demanda/objetivo da avaliagao PRIMEIRA ETAPA Conteiidos referentes & estrutura e & dinémica fa- miliar costumam fazer parte de qualquer proces- so de avaliacao psicologica, podendo ser na forma PSICODIAGNOSTICO eo 141 VINHETA CLINICA / 11.1.1 — PRIMEIRA ETAPA O contato telefonico foi realizado por Horinda, a mae, que relata que a filha de 8 anos, Maria, nd0 consegue aprender a ler € a escrever. A escola solicitau uma avaliacao psicoléqica. Maria participou de uma avaliacao cognitiva, nao aptesentando prejulzos. Durante essa etapa do processo avaliativo, em uma das sessdes com os pais, a mae referiu haver algo muito triste ne familia que ela ainda ndo gostaria de contar. O pai, Arthur, complementou dizendo: “Passado é passado, temos que olhar para a frente; falar sobre dor nde leva a nada”. Com o resultado da avaliacéo e a5 falas dos pais, considerou-se relevante investigar ahist6ria familiar 2 fim de compieender se existia alguma associacio entre o sintoma e a dinamica transgeracional. Tendo em vista a disponibilidade da familia de Maria, todos os membros foram convidados a par- ticipar da construcao do genograma. A familia era composta pelo casal de pais dois filhos, sendo a Maria @ mais velha (Fig. 11.1). de relatos breves ou mais aprofundados, suscita- dos por intermédio da entrevista psicolégica ou de escalas, questionérios, entre outros instru- mentos. Esses conteiidos constituirao o alicerce na defini¢ao da utilidade do uso do genograma para determinado caso avaliado. Assim, a primei- ra etapa do genograma como recurso avaliativo inclui desde a ponderagio, por parte do avaliador, quanto & sua utilidade e viabilidade (averiguar se ha disponibilidade para tal por parte do avalian- do), até 0 delineamento dos objetivos do uso de tal técnica. O planejamento dos objetivos devera ser constitufdo por hipdteses de possiveis associa Ges entre 0 sintoma que originou a avaliacao ea dinamica familiar. E importante considerar que 0 uso do geno- grama como técnica avaliativa requer 0 estabele- cimento de um vinculo terapéutico de confianca nao apenas com a pessoa em avaliagao, mas com sah ° Florinda Maria Tiago FIGURA 11.1. / Genograma - primeira etapa. a familia, pois se almeja que ela participe do pro- cesso junto com o paciente identificado, Como é um recurso que possibilita acessar historias inti- mas e, muitas vezes, de importante impacto emo- cional, o vinculo de confianga ser primordial. Algumas falas podem ser indicativas da uti- lidade e da viabilidade do uso do genograma, como: “Se vocé conhecesse a minha sogra...”; “O tio jd dizia isso”; “Vocé se parece com 0 seu av”; “Se seu avo estivesse vivo...” “Algumas coisas ndo so ditas nesta familia"; “Meu pai nunca se preocu- pou ¢ me criei firme e forte, por que teria que ser diferente com meu filho?”; “Eu nao posso interfe- rir, pois éa minha mae que cuida da nossa filha’. A partir disso, sugere-se a técnica de cons- trucdo do genograma para o paciente identifica- do (avaliando) e, se possivel, a inclusio da familia no processo de avaliacao. Explica-se, entio, a pro- posta de construgio da histéria de, pelo menos, trés geracGes. Destaca-se a relevancia da técni- ca como recurso para conhecer a familia e, con- sequentemente, compreender as relacées entre 0 motivo de encaminhamento para avaliacio e a historia familiar. O avaliador conversou com os pais, a fim de convidar a familia a participar de uma avaliacao das relagdes familiares por meio do genograma. Inicialmente, Florinda e Arthur questionaram a utilidade de relembrar historias familiares. O ava- liador resgatou as falas trazidas anteriormente ¢ © quanto nao ser permitido falar sobre determi- nados assuntos traz sofrimentos para as familias. Florinda chorou e concordou. Arthur disse que se fosse para o bem da filha, ele aceitaria, Soli- citou-se, na ocasiéo, que resgatassem a historia, 142 - HUTZ, BANDEIRA, TRENTINI & KRUG (ORGS.) VINHETA CLINICA / 11.1.2 - SEGUNDA ETAPA Comparecem a sessao Arthur, Florinda, Maria e Tiago. 0 avaliador inicia 0 encontro solicitando que contem a histéria familiar livremente. Arthur comeca falando que seus pais moravam no campo e nunca estudaram, que ele mesmo sé estudou até o 4° ano. Relata que a vida era muito dura, que ele e seus dois itmaos trabalhavam na lavoure desde criancas. Sua irma cuidava da casa junto com a mde, e ambas trabalhavam fazendo doces para fora. Florinda contribui acrescentando que seus sogros eram muito trabalhadores e morreram cedo em funcao de vida dura. Arthur conta que era muito comum eles adoecerem devido ao trabalho e a alimentacao precéria. lembra que a irma teve pneumonia duas vezes, sendo hospitalizada. Enquanto 0 casal relata, o avaliador constidi o genograma em uma folha de flipchart. Para isso, questiona alguns pontos- idade dosirmaos; época da morte dos pais, como os pais se conheceram; se houve ritual de casamento; como foi a uniao; onde moravam, qual a relacao com a farnitia extensa, quais as caracteristicas culturais da familia; quem estudou ¢ até que série; quem tinha facilidade para aprender coisas novas; quem tinha dificuldade para aprender coisas novas; entre outros. Arthur nao lembrava detalhes da historia de vida de seus avés e de seus pais, pois, sequndo ele, pouco se conversava sobre “essas coisas nia familia”. Entao, fol solicitado a ele que conversasse com seus itmaos (mais velhos) para tentar descobrir mais informacbes.. Arthur conseguiu, com seu irmao mais velho, uma foto de sua familia materna, que ele nao conhecia. A foto era tipica da época, 1920, e ali aparece um tio que morreu quando era bebe e do qual Arthur Aunca ouvira falar. Diz, também, que isso era muito comum: “Os bebés mortiam”. Sobre o pai, refere que nao consequiu descobrir nada, que era muito calado e sua familia era de outro Estado. 0 pai dizia que “olhar para o passado ndo garantia 0 sustento’” 0 avaliador investiga detalhes e registra essas informacoes, confirmando a hipotese de que esté diante de uma familia que apresenta dificuldades para falar sobre alguns temas, possivelmente os dolorosos. 0 avaliador pergunta se gostariam de dar um titulo a familia, um nome que a caracterizasse (Fig. 11.2). As vezes, dar titulos e nomes para 2 familia ou para os ndcleos familiares pode facifitar a identificacao de padroes e caracteristicas. Arthur denominou a sua familia de origem como “Fortaleza”, conversassem com pessoas significativas, revisi- tassem dlbuns da familia e trouxessem fotos, objetos e registros que julgassem representativos. £ importante destacar aos integrantes da familia que devem coletar 0 maior nimero possivel de informagées sobre relagdes, conflitos, doengas, historias tipicas, hist6rias sobre a origem da fami- lia, caracteristicas marcantes de cada um, etc. Solicitou-se aos pais, Florinda e Arthur, que com- partilhassem essas instrugées com os filhos. SEGUNDA ETAPA A construcao do genograma comega com anarra- ao da historia da familia de origem por um dos membros do casal/pais. Geralmente, parte-se da histéria de um dos pais. Quanto a qual das his- torias ser a escolhida, fica a cargo do paciente decidir. E solicitado que a pessoa escolhida fa- le sobre a sua familia, enquanto o avaliador or- ganiza o desenho grafico do genograma em um flipchart, em uma cartolina ou em um papel par- do.? Orienta-se aos demais membros da familia envolvidos no proceso terapéutico que parti pem desse momento, ouvindo a narracio da pes- soa. No entanto, em casos de violéncia e de se- gredo (p. ex., relagdes extraconjugais), sugere-se a montagem em separado, pois, em contextos em que a comunicagio nao pode ser clara, a histéria, provavelmente, nao sera narrada de forma verda- deira. 2 Sugere-se utilizar o papel como material de escolha, pois pode ser armazenado para revisitacZo durante o processo avaliativo efou psicoterapéutico. A utilizaglo de recursos eletrénicos também é interessante, desde que armazenaveis, Florinda sa Arthur Maria Tiago FIGURA 11.2 / Genograma - segunda etapa. E importante investigar, em cada familia, aspectos como: quem so as pessoas; suas idades; qual a sua origem cultural; as caracteristicas pes- soais marcantes de cada um e da familia como um todo; proximidades, distanciamentos ¢ rom- pimentos entre os membros; semelhangas e dife- rengas entre as geracdes; historias das relagdes relevantes ao tratamento/problema apresentado; género; doencas; futo; morte; rupturas; mudan- gas geogrificas; entre outros. Orienta-se que essas informacées sejam registradas pelo avalia- dor, preferencialmente junto ao desenho grafi- co do genograma, para que todos possam acom- panbar, observar e fazer conexdes. Os familiares que esto acompanhando podem contribuir, mas a fala principal é da pessoa que se propés a contar a histéria naquele momento. Algumas informa- ses poderio ser solicitadas como tarefa de casa, a fim de complementar a histéria conhecida © avaliador pode optar por deixar livre 0 primeiro relato, ou seja, solicitar que a pessoa conte sobre a sua familia e, ao final, resgatar pon- tos importantes ou ausentes do discurso. Ou, ain- da, pode ir norteando o relato, indicando temas, geragdes, contextos ¢ situagdes a serem narradas. TERCEIRA ETAPA Essa etapa comeca quando se percebe que a nar- rativa acerca de uma das partes da familia esta PSICODIAGNOSTICO — 143 encertada. Propée-se, entio, o relato da outra his- toria familiar. Segue-se o mesmo modelo adotado na segunda etapa. E importante investigar os te- mas abordados no relato anterior; no entanto, de- ve-se estar atento as caracteristicas de cada fami- lia ¢ aos temas diferentes que possam surgir. Se necessirio, pode-se retomar a narracao anterior para complementar informagées. QUARTA ETAPA A partir de fotos ou de outros recursos, 0 avalia- dor investiga a histéria da constituigdo da fami- lia atual. Sugere-se iniciar com ahistéria de como © casal se conheceu, buscando acessar 0 contra- to conjugal e seus padrdes relacionais. Nesse mo- mento, é importante compreender como o casal se vincula com as familias de origem ~ niveis de individuacio, hierarquies, regras, limites, fron- teiras, comunicacio, planejamento familiar, tem- po livre, recursos, potencialidades, processos de resiliéncia, entre outros. Nessa etapa, as criangas sio incluidas de forma mais intensa, pois fazem parte da histéria.> QUINTA ETAPA Esse momento objetiva buscar associages trans- geracionais como um todo e sua conexdo com a demanda/objetivo da avaliagao. E de grande rele- vancia resgatar recursos e estratégias funcionais de familias e individuos ao longo do tempo. No transcurso do processo, as conexOes se fazem pre- sentes 4 medida que a familia se apresenta prepa- rada para isso; no entanto, é interessante retomar 05 principais aspectos na etapa final. nessa etapa que se encerra 0 proceso por meio da devolucio participativa; ou seja, 0 ava- liador resgata com a familia ou com o avalian- do individualmente os principais aspectos, assim como complementa com os pontos que identifi- cou durante o relato. Essa etapa pode coincidir com a devolugao de outros instrumentos avalia- tivos, isto & a devolugao da avaliacao realizada com o paciente identificado antes do genograma pode ocorrer junto com a devolucao dos aspec- tos vislumbrados na hist6ria familiar. Além dis- 80, a partir da devolugao, o avaliador, o paciente 3 Ascriancasdevem ser incluidas 0 longo de todo. processo de ‘construgao do genograma, pois, aém deestaremacompanhando ‘o processo, sio excelentes narradoras da situagao familia. 144 / HUTZ, BANDEIRA, TRENTINI & KRUG (ORGS.) VINHETA CLINICA / 11.1.3 - TERCEIRA ETAPA florinda conta ser de uma familia que trabalhaya na pedreira. Seu pal e seu irmao mais novo tta~ balhavamn, jo ela, sua mde ¢ suas duas irmés cuidavam da casa. As mulheres nao podiam trabalhiar a pedireira, ainda que Florinda desejasse ajudar a familia, Ela, que sempre almejara estudar, fez supletivo € terminou 0 ensino médio, Conta que a vida era dificil, mas conversavam bastante, especialmente entre as mulheres da familia. Morava junto uma tia paterna, que adorava contar historias da sua época. A tia esteve casada por apenas um ano —seu marido era alcoolista © morrey em funcao de complicacées decorrentes de um acidente de trabalho na pedreira. fla, entao, nunca mais asou, e ajudava a mae a cuidar de Florinda e seus irmaos. O avaliador investiga a repercussa0 desea morte na familia, ¢ Florinda diz que era muito pequena ¢ nao lembra- Sobre a mae, conte que eram imigrantes italianos e trabalhavam no comércio. 0 avaliador pede para que ela conver 0 com sua mae para saber como foi, em funcda de a temitica morte estar recorentemente na natrativa da farnilia. No atendimento sequinte, Florinda conta que a tia ficou mal durante 0 luto e que se “apegou muito a ela para superar o periodo de dor”. Sua mae e sua fia nao falavam diretamente sobre o assunto. No entanto, hoje a mae conta que delegou mais os cuidados na educacao de Florinda tie por pena, pois ela nao tinha filhos e ja era viva, A tia morreu dois anos antes de Florinde ir para a cidade estudar. Nesse momento, Florinda chore, refere o quanto sente falta da tia e de seu pai, falecido nd cinco anos ~ “ele jd estava velhinho”. Maria corre para o colo da mae e Tiago segue brincando com pecas de plastica que se encaixam. 0 avaliador inclui as ctiancas na narfativa e pergunta se Ja conheciam essa histéria. Ambos dizem que nao. Arthur fala que é dificil e que o melhor é nao falar, pois precisa de um tempo. 0 avaliador cespeita o tempo necessario a familia, validando a fala de Arthur, e a0 mesmo tempo abre espaco para acolher tals relatos e sentimentos. Solicita que deem um titulo familia, e Florinda a denomina “Luta”. 0 desenho estrutural das famflias de origem esta pronto (Fig. 11.3). a Lem ¢ bod arthur Hlorinda ae Maria Tiago FIGURA 11.3, / Genograma - terceira etapa. PSICODIAGNOSTICO - 145 VINHETA CLINICA / 11.1.4 - QUARTA ETAPA Oaveliador sinaliza que, a partir desse momento, @ conversa serd sobre a familia que estd naquela sala ¢ pede que mostrem as fotos trazidas que ajudam a contar a histéria da familia atual. Maria e Tiago mostram a foto do casamento dos pais; contam que eles se conheceram em um baile e que foi amor a primeira vista. Todos riem. Florinda tinfia uma colega que conhecia o primo de Arthur. eles foram apresentados e, desde entao, estao juntos. 0 avaliador pergunta 0 que mais chamou 4 aiencao no outro, Florinda diz que Arthur era certinho e provavelmente trabalhador. Arthur conta que Florinda era a moca mais linda do baile e tinha um olhar forte. Tiago interrompe a histéria e mostra uma foto em que estao presentes Tiago bebé, Maria com uns 5 anos, 0 Casal e outra menina aparentando ter uns 7 anos. Contam qué essa foi uma foto tirada no batizado de Tiago e detalham o evento. No entanto, nao trazem relatos sobre essa outra crianca. 0 avaliador pergunta, entao, sobre a menina. Silencio. 0 avaliador busca contirmar se a familia percebia que 0 padrao transgeracional de comunicacdo sobre temas dificeis estava acontecendo naquele momento (resgatando os aspectos trabalhados anteriormente). Tiago diz “a mana morreu”. Florinda retoms ¢ fala do inicio do proceso, quando disse haver algo complicado e sobre o qual ainds nao estava pronta para falar, mas “parece que Tiago esta pronto para relatar”. Ela nao sabia que ele havia escolhido aquela foto. 0 avaliador concorda com Florinda e pergunta aos demais © que acham da sua fala, se todos conseguiriam falar sobre o assunto. Arthur conta que a filha morteu daquilo que suas irmas haviam sobrevivido: pneumonia. A filha tinha 9 anos. Todos cho- fam. Ndo conveisam sobre 0 assunto. Os filhos participaram do velério e do entero, mas nunca mais visitaram o timulo e tampouco falaram sobre a irma, Luiza. Arthur diz que a filha era muito magrinha e comia pouco, que se sente muito mal quando pensa nisso, mas que insistia para que ela comesse. Ela fot internada e ficou 10 dias hospitalizada, sendo encaminhada para a UT! um dia antes de morrer. Florinda questiona se ela nao deveria ter ido antes para a UN, e diz que sentia que algo nao estava bem, “ela tinha dor”. Florinda chora e no conseque falar. Maria esta no colo da mae e também se cala. 0 avaliador acolhe os sentimentos e mostra, no genograma, o padrao de resolucao que envolve nao falar sobre temas dificeis (Fig. 11.4). Conversa-se sobre essas relacoes € 05 sentimentos reativados com a morte de Luiza. Explore-se o reflexo disso na familia extensa. Por fim, 0 avaliador pergunta se eles identificam alguma relacao disso com 0 sintoma de Maria. ees I @ peo q 5 Acthur Florinda ————l Maia Tiago FIGURA 11.4 / Genograma - quarta etapa. 146 va HUTZ, BANDEIRA, TRENTINI & KRUG (ORGS.) Familia Fortaleza Familia Luta Morte por acidente de trabalho Morreu crianga Calado, nao gostava de falar sobre o passado FIGURA 11.5 / Genograma - quinta etapa. identificado e a familia deverao definir os enca- minhamentos, quando necessérios. CONSIDERACOES FINAIS Avaliar a dinamica familiar com os integrantes presentes no setting pressupde acolher a comple- xidade relacional. Isso requer clareza quanto aos. objetivos e, consequentemente, o delineamen- to de algumas hipéteses referentes as associagées entre o sintoma que trouxe o paciente identifi- cado & avaliacdo e a dinamica familiar. Partindo desses pressupostos, foram construidas as cinco etapas descritas ao longo deste capitulo, que ob- jetivam servir de guias orientadores na aplicagao da técnica do genograma. Guia orientador nao implica a definicao rigida quanto a tempo, uso de recursos, roteiro de entrevista, entre outros. A partir disso, alguns aspectos merecem ser des- tacados como particularidades da técnica. ‘A subjetividade inerente a cada individuo a intencao do avaliador séo pontos que orienta- rao o tempo requerido para cada etapa, os assun- tos abordados, 0 uso de dispositivos que auxi liem na narrativa, etc. Além disso, tendo em vista © conceito de familia na contemporaneidade ser de grande abrangéncia, os simbolos utilizados no desenho grafico também sao guias e nao abarcam todas as tipologias de relacdes, acontecimentos ¢ situagées. Por isso, cabe ao avaliador ser habili- oso e criativo para dar conta das novas informa- des e registré-las da forma que considerar mais adequada, descrevendo-as por meio de palavras ou simbolos. O mais importante é que as infor- mages coletadas fiquem suficientemente claras para avaliador e avaliando. A técnica, como instrumento dispositivo em um processo de avaliagao psicolégica e como um psicodiagnéstico, é o ponto central deste capitu- Jo, No entanto, o genograma pode e é comumente utilizado como recurso avaliativo e interventivo em atendimentos psicoterapéuticos individuais, de casais, de familias ¢ de grupos. Tendo em vis- ta os objetivos bastante diferenciados entre uma avaliagdo psicolgica e um processo_psicote- rapéutico, os aspectos elencados anteriormen- te (tempo, uso de recursos, roteiro de entrevis- ta, etc.) referentes as cinco etapas iréo variar com mais intensidade. Para além do processo avaliativo, o genogra- ‘ma, em contextos de psicoterapia, pode fazer parte da fase inicial da terapia, com o intuito de conhe- cer a realidade relacional através das geracies, PSICODIAGNOSTICO # 147 ou, ainda, pode ser construido ou retomado ao longo de todo o proceso. Quando em psicotera- pia individual, a narrativa pode ser exclusiva do paciente, ou outros integrantes da familia podem ser convidados para a sua construgao, desde que isso seja considerado pertinente tanto para o ava- liador quanto para a pessoa. Nos casos de tera- pia de casal, o genograma é um recurso de intensa valia, pois possibilita o acesso aos padrées rela- cionais transgeracionais, as questdes de género, aos contratos conjugais que podem estar impac- tando a relagao atual. Nos atendimentos familia- res, a técnica auxilia no reconhecimento das nat- rativas das familias de origem que influenciam a dinamica relacional atual. Nos atendimentos de grupo-terapias, 0 genograma pode ser um exce- lente recurso para identificar demandas especifi- cas (como grupos de terapia com mulheres viti- mas de violéncia doméstica, ou a identificacao de profissées das familias de origem — genoprofis- siograma), assim como para compartilhar com os demais integrantes do grupo histérias e vivencias familiares. Sugere-se que, no processo terapéuti- co, o genograma de cada integrante do grupo seja trabalhado ao longo de 1 ou 2 encontros, e que os demais pacientes possam contribuir para associa- oes e identificagdes de padrées relacionais. A seguir, so descritos alguns tépicos espe- ciais no que tange ao uso do genograma em dife- rentes contextos. Essas situagdes podem tanto fazer parte do processo avaliativo como do psico- terapéutico. Séo descritos alguns cuidados e par- ticularidades que devem ser considerados pelo avaliador/psicoterapeuta, Nos casos de violencia, de segredos ede inten- sa rivalidade conjugal ou litigio, aconselha-se que algumas sessdes sejam realizadas com um conju- ge e outras com 0 outro, pois contetidos referentes as familias de origem podem ser intensificadores de conflitos. Algumas orientagdes de manejo nes- sas situagdes serdo brevemente descritas a seguir. Em casais envolvidos em violéncia, quan- do os encontros ocorrerem com ambos 0s cénju- ges, as narraces devem ser respeitadas, mesmo que em contradigao. © foco do avaliador esta em idemtificar situagdes de risco ou momentos em que 0 conflito ficou mais exacerbado. Sugere-se que seja realizado um trabalho em separado com cada um dos cénjuges e uni-los somente no final da construgao do genograma. Nessa unifo, o ava- liador deve trazer dados relevantes para a solu- a0 do problema e nao ampliar o conflito ineren- tearelacao. 148 WA HUTZ, BANDEIRA, TRENTINI & KRUG (ORGS.) Em familias com segredos, 0 genograma pode auxiliar na sua revelagao, pois possibili- ta ambiente propicio para a partilha de historias dificeis ¢ a construcao de visdes complementares sobre um mesmo evento, E mais facil revelar um segredo contextualizando suas origens do que apenas contar 0 que os outros membros da fami- lia néo conheciam. A construgio do genograma também pode facilitar um ambiente de abertura ao diferente, uma vez que muitas histérias novas podem ser narradas. ‘Ainda, a construgio do genograma em fami- lias com histéria de abuso de substncias também exige cuidados especiais. Em primeiro lugar, nao é produtivo trabalhar a historia familiar quan- do uma ou mais pessoas estiverem sob efeito de substincia, Quando as histérias comecam a ser narradas, ¢ inevitavel a descrigao de outras pes- soas que também fizeram uso de substancias, ‘Assim, 0 avaliador deve estar atento para nao jus- tificar o uso atual por um padrao de uso repetido na familia de origem. Quando esse padrio come- gaa ser sinalizado no relato da familia, 0 avalia- dor deve utilizar essa identificagio para romper o padrao disfuncional que vem definindo os rela- cionamentos interpessoais. A ruptura sé poderé ser estabelecida se o padrdo relacional for iden- tificado. Uma altima situagio que exige cuidados especiais do avaliador é a construgio do geno- grama em familias em litigio. O foco principal da investigacio deve ser encontrar recursos que possibilitem a protecao das criangas e dos ado- lescentes desse sistema, O avaliador pode traba- Thar em separado com cada um dos pais, uma vez que 0 contrato sobre informages necessdrias a0 processo esteja bem estabelecido. Ambos 08 pais devem ter claro que 0 objetivo de retomar as his tGrias de origem € encontrar recursos € poten- ciais, em cada sistema familiar, para a resolugao do impasse do casal quanto ao manejo com os filhos. Em alguns momentos do ciclo vital familiar, a construcio do genograma pode ter caracteris- ticas especiais. Por exemplo, quando as historias das familias de origem sao resgatadas durante a construcio do novo casal, ha grande possibili- dade de serem retomados aspectos referentes a0 contrato secreto do casamento (expectativas de anabos os conjuges construidas a partir das fam{- lias de origem e que nem sempre sio explicitadas pelo casal). Em familias com criangas pequenas, o avaliador deve estar atento para utilizar recur- sos que envolvam as criangas na narragio (como fotos, bonecos ou outros recursos que possibili- tem a ludicidade no processo). Ao mesmo tem- po, quando temas delicados (como sexualidade, traicéo ou violéncia) surgirem no relato, é impor- ante construir um espago somente com os adul- tos, protegendo a crianga de histérias que ela nao conseguir compreender. Em familias com ado- lescentes, pode-se comegar o relato da historia das familias a partir da familia atual. Assim, eles podem se envolver de forma mais ativa na cons trugao da histéria e compreender, junto com a familia, 0 quanto as atitudes atuais so reflexos das familias de origem. Por fim, ao construir-se © genograma com casais idosos, é interessante, além da investigacao das historias das familias de origem, explorar as geragdes posteriores 20 casa- mento (filhos e netos). Essa nova perspectiva (de continuidade da vida) pode permitir a visualiza- 40 do quanto suas atitudes influenciam as dind- micas das familias de seus descendentes. O genograma, portanto, é a descrigo repre- sentativa da familia em um determinado momen- to, Entende-se como varivel a0 longo do tempo, assim como qualquer outro instrumento psicolé- gico. O significado das relagies, as percepgies as narrativas sao descricdes de como as pessoas se relacionam com suas histérias em um momento especifico. A preocupag4o em manter 0 genogra- ma guardado durante processo terapéutico ou avaliativo esta diretamente relacionada a possi- bilidade de mudanga nas relagGes. Sugere-se que ele possa ser retomado em diferentes momentos, revisando ou acrescentando informacdes. Esse movimento amplia a possibilidade das pesso- as identificarem e compreenderem os diversos recursos familiares nem sempre adotados pelo sistema atual. REFERENCIAS Andolfi, M. (2003). Manuale di psicologia relazionale: La dimensione ‘faniliare, Roma: Accademia di Psicoterapia della Famiglia, ‘Cerveny, C. (2014). O livre do Genograma. Sto Paulo: Roca, CGenopro.com. (2015), Recuperada de hitps/lwww.genopro.comn! Guerin, P, & Pendergast, F. (1976). Evaluation of family system and ‘genogeam, In. J. Guerin (Ed), Family therapy. New York: Gardner MeGoldrick, M., Gerson R&Petry,S. 2012). Genogranas:Avaliagdo ceintervengi familiar (3.64). Porto Alegre: Artmed. Montigano,S, &Pazzagi, A. (1989). II genogramma: Teatrodialckimie Jamiltari Milano: Franco Angeli.

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