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Introdução
Nos últimos anos, as pesquisas têm indicado que a gravidade dos sintomas do
autismo pode ser minimizada a partir do diagnóstico precoce e do imediato início da
intervenção/tratamento (SAINT-GEORGES, 2013). Na tentativa de antecipar o
diagnóstico do Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) e permitir uma intervenção
mais precoce, diversos instrumentos para detecção dos traços do autismo têm surgido. A
1 Enquadramento teórico
1.1 Autismo
Atualmente, o autismo é enquadrado dentro dos TGD (Transtornos Globais do
Desenvolvimento), os quais constituem um grupo de condições biologicamente
diferentes e caracterizadas por déficits em muitas áreas do desenvolvimento (GABBARD,
HALES, YUODOFSKY, 2012).
A palavra vem do grego autos, que significa “de si mesmo”. Assim, revela o traço
mais flagrante da doença que é o isolamento do mundo exterior, com a consequente
perda da interação social (OBERMAN, RAMACHANDRAN, 2006).
Os níveis de gravidade do autismo variam desde indivíduos incapazes de falar,
com grave retardo mental, a indivíduos com uma inteligência bem acima da média
(GATTINO, 2015). Devido à grande variação existente nos padrões comportamentais e
de habilidade social e comunicativa, tais transtornos do desenvolvimento global
passaram a ser nomeados de Transtorno do Espectro do Autismo (TEA).
Ainda, a Educação Musical Especial pode servir tanto como forma de crescimento de
conhecimento, como de possibilidade de estabelecimento de comunicação entre a
criança e o mundo que a cerca (RODRIGUES, 2009).
No próximo item veremos como a música beneficiou uma criança com o
diagnóstico de autismo, propiciando sua comunicação com o mundo e seu
desenvolvimento geral.
2 Relato de experiência
Nossa experiência com as crianças com Transtorno do Espectro do Autismo
começou há cinco anos, quando integrávamos um grupo de pesquisa que buscava
identificar a influência da música no desenvolvimento de bebês nascidos prematuros, no
Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais, sob a orientação da
professora Maria Betânia Parizzi. Neste momento, nossa equipe foi convidada para
participar de um outro projeto, que tinha como objetivo intervir precocemente em
crianças com real possibilidade de desenvolvimento do autismo, a partir de intervenções
multidisciplinares, que seriam realizadas no Hospital São Geraldo, anexo ao Hospital das
Clínicas, sob a supervisão da professora Erika Parlato-Oliveira. Neste momento tivemos
o primeiro contato com as crianças autistas e a oportunidade de adentrar no mundo da
Educação Musical Especial, mundo este repleto de perguntas e escasso de respostas.
Tudo isto ocorreu em 2012, quando também tivemos a oportunidade de realizar
o curso PreAut: Sinais de risco para o autismo na primeira infância, promovido pelo
Departamento de Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de
Minas Gerais. Neste curso conhecemos um protocolo que havia sido implantado na
França, o qual se baseava em observações clínicas detalhadas e em fundamentos da
psicanálise (CRESPIM, 2007). O referido protocolo foi aplicado a um grupo de crianças
no Hospital das Clínicas da UFMG e algumas delas, com suspeita de desenvolvimento do
autismo, foram selecionadas para receberem intervenções de um grupo multidisciplinar
composto por Terapia Ocupacional, Fonoaudiologia, Psicologia Familiar e Musicalização.
Assim, tivemos a primeira experiência de ensino de música para crianças com
desenvolvimento atípico.
Este projeto com as crianças autistas infelizmente foi interrompido alguns
meses depois, mas nossa vontade de trabalhar com aquelas crianças permaneceu. Desde
chamada Trem dos Animais, na qual o menino tinha que intervir, ora falando o nome de
algum animal, ora imitando o som do animal que era falado. Com o tempo, conseguimos
estender a atividade para outros tipos de “trem”. Assim, surgiu o trem das frutas, dos
instrumentos musicais, das notas musicais e nosso relacionamento foi se ampliando,
bem como a criança, que antes não comunicava, passou a interagir no próprio idioma,
em português, como também manteve seu interesse em se expressar no idioma inglês.
Atualmente, Daniel está com 6 anos e não apresenta mais dificuldades de
comunicação, nem de interação, bem como deixou de apresentar comportamento
irritadiço. Consegue tocar peças simples em instrumentos como o piano e o xilofone.
Apresenta boa percepção auditiva. Apresenta alegria por participar das aulas de música
e tem demonstrado progressos fora das aulas de música, como na escola, por exemplo,
segundo relato de sua mãe.
O desenvolvimento musical-geral conquistado por Daniel neste período
(2013/2016) foi notório. A Tabela 1, abaixo, apresenta o percurso deste
desenvolvimento.
3 Execução de movimentos com padrões de regularidade, mas no próprio tempo, sem o ajuste do próprio
pulso à pulsação da obra ouvida (PARIZZI, 2009, CARNEIRO, 2006).
4 A pulsação corresponde ao conjunto de pulsos, ou batidas repetidas de forma constante, e que dividem o
tempo em fragmentos de mesma duração. O apoio é o pulso mais forte dentro do compasso musical. O
ritmo real é o ritmo da melodia, da prosódia (WILLEMS, 1963).
5 Motivo ou frase persistentemente repetido.
6 Capacidade de conseguir processar a informação relacionada com o tempo e estruturar a sua própria
Desenvolvimento geral
Isolamento social; Interação com professores e colegas;
Ausência de contato visual; Maior tempo de contato visual;
Pobreza de expressão verbal; Expressão verbal nos idiomas inglês e
Inexistência de empatia; português;
Hipersensibilidade auditiva; Desenvolvimento de tolerância às
Mudanças de humor sem causa sonoridades;
aparente; Maior constância de bom humor;
Obsessão por determinados objetos; Desaparecimento de ecolalias e
Presença de ecolalia7 e estereotipias8. estereotipias.
7 À repetição de códigos verbais dá-se o nome de ecolalia. Há ecolalia imediata quando o autista repete
literalmente uma sentença ou comando verbal dirigido ao mesmo e há ecolalia tardia quando palavras ou
frases ouvidas em propagandas publicitárias, músicas, ou em outros ambientes são ouvidas, estocadas e
pronunciadas mais tarde (GATTINO, 2009).
8 Padrões ritualísticos e não funcionais, por exemplo: torcer mãos e dedos, realizar movimentos
pendulares com o corpo, ficar girando, etc. (GATTINO, 2009).
Considerações finais
Acreditamos que o sucesso alcançado por Daniel foi devido, em especial, ao
diagnóstico feito precocemente, hoje fechado como autismo; e ao imediato início das
intervenções. A música, enquanto linguagem, possibilitou a abertura de canais de
comunicação entre a criança e o professor, com os colegas e o mundo que a cerca. Por
meio das atividades musicais realizadas de forma sistemática, a criança desenvolveu-se
musicalmente, e este desenvolvimento teve um papel importante na superação das suas
dificuldades oriundas do autismo. Logo, ficou claro o quanto a música afeta o individuo
em sua globalidade, contribuindo em questões não estritamente musicais (THAUT,
2005; LOURO, 2012; HAMEL, HOURIGAN, 2011).
Consideramos, pois, que a prática musical pode trazer benefícios para as
crianças com Transtorno do Espectro do Autismo, e que investigações acerca deste
assunto podem profundar as discussões acadêmicas relacionadas à inclusão social e à
Educação Musical Especial, bem como poderão despertar o interesse de educadores
musicais pela Educação Musical Especial, além de instigar uma maior aproximação entre
as áreas da música, da saúde e da educação.
Referências
CARNEIRO, Aline Nunes. Desenvolvimento musical e sensório-motor da criança de zero a
dois anos: Relações teóricas e implicações pedagógicas. Dissertação de mestrado – Escola de
Música, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2006.
GABBARD, Glen O.; HALES, Robert E.; YUODOFSKY, Stuart C. Tratado de psiquiatria
clínica. 5. ed. São Paulo: Artmed, 2012.
HAMMEL, Alice M., HOURIGAN, Ryan M. Teaching music to student with autism.
Estados Unidos: Oxford, 2013.
______. Teaching music to students with special needs. Estados Unidos: Oxford, 2011.
POUTHAS, Viviane. The development of the perception of time and temporal regulation of
action infants and children. In: Deliége I.; Sloboda J. (Ed.) Musical beginnings. New York:
Oxford University Press, 1996, cap. 5.
SAINT-GEORGES, Catherine et al. Sinais precoces do autismo: De onde vêm? Para onde
vão? In: BUSNEL, Marie-Claire; MELGAÇO, Rosely Gazire (org.). O bebê e as palavras:
uma visão transdisciplinar sobre o bebê. 1. ed. São Paulo: Instituto Langage, 2013.
THAUT, Michael. The Future of Music in Therapy and Medicine. In The Neurosciences
and Music II: From Perception to Performance. Colorado, Vol. 1060, 2005.