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2º Nas Nuvens... Congresso de Música – de 01 a 07 de dezembro de 2016 – ANAIS Artigo

A Educação Musical como recurso de intervenção precoce em crianças


com suspeita de desenvolvimento do autismo

Gleisson do Carmo Oliveira1


Maria Betânia Parizzi2
Resumo: Atualmente é sabido que a gravidade dos sintomas do autismo pode ser
minimizada a partir do diagnóstico precoce e do imediato início do tratamento da
síndrome (SAINT-GEORGES, 2013). Na tentativa de antecipar o diagnóstico do
Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) e permitir uma intervenção mais precoce,
diversos instrumentos para detecção dos traços do autismo têm surgido. Esse artigo,
portanto, apresenta um relato de experiência sobre o contato dos autores com uma
criança que foi alertada para um possível desenvolvimento do autismo, e que, após
alguns anos de aulas de música, tem conseguido alcançar expressivo
desenvolvimento musical-geral. Apresenta também um enquadramento teórico
sobre o assunto.

Palavras-chave: Educação Musical Especial. Autismo. Intervenção precoce.

The Music Education as early intervention resource in children with suspected


development of autism

Abstract: Nowadays, it is known that severe symptoms of autism can be minimized


by immediate early diagnosis and early treatment of the syndrome (SAINT-
GEORGES, 2013). In an attempt to anticipate the diagnosis of Autism Spectrum
Disorder (ASD) and to allow earlier intervention, various instruments for the
detection of autistic traits have emerged. This article therefore presents an
experience report about the contact the authors with a child who was alerted to a
possible development of autism, and that after a few years of music lessons, has
managed to achieve significant musical and general development. It also presents a
theoretical framework on this subject.

Keywords: Special Music Education. Autism. Early intervention.

Introdução
Nos últimos anos, as pesquisas têm indicado que a gravidade dos sintomas do
autismo pode ser minimizada a partir do diagnóstico precoce e do imediato início da
intervenção/tratamento (SAINT-GEORGES, 2013). Na tentativa de antecipar o
diagnóstico do Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) e permitir uma intervenção
mais precoce, diversos instrumentos para detecção dos traços do autismo têm surgido. A

1 Doutorando em música, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Escola de Música,


gco.sni@gmail.com
2 Doutora em Ciências da Saúde, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Departamento de Teoria

Geral da Música, betaniaparizzi@hotmail.com

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Associatión de Prévention Autisme (PREAUT), da França, desenvolveu um protocolo, o


qual, a partir do quarto mês de vida, já consegue detectar traços de um possível
desenvolvimento do autismo, o que, assim, possibilita o início da intervenção a fim de
reverter os sintomas, ou, se não, de minimizar os mesmos no caso de uma posterior
confirmação do diagnóstico de autismo (SAINT-GEORGES, 2013).
Por outro lado, sabe-se hoje que a Educação Musical Especial pode oferecer
importantes recursos capazes de estimular o desenvolvimento geral de crianças com
suspeita ou com diagnóstico de autismo (OLIVEIRA, PEIXOTO, 2013; OLIVEIRA, 2015;
HAMEL, HOURIGAN, 2013; RODRIGUES, 2009).
Assim, esse artigo se justifica pela motivação dos autores, educadores musicais
que visualizaram, na prática, os efeitos benéficos da música, enquanto processo
interventivo, em criança com Transtorno do Espectro do Autismo.
A estrutura do trabalho conta com um enquadramento teórico acerca do
Transtorno do Espectro do Autismo e da Educação Musical Especial e um breve relato da
experiência dos autores com crianças com suspeita de autismo, apresentando um caso
específico de uma criança autista submetida à Educação Musical Especial desde 2013.

1 Enquadramento teórico

1.1 Autismo
Atualmente, o autismo é enquadrado dentro dos TGD (Transtornos Globais do
Desenvolvimento), os quais constituem um grupo de condições biologicamente
diferentes e caracterizadas por déficits em muitas áreas do desenvolvimento (GABBARD,
HALES, YUODOFSKY, 2012).
A palavra vem do grego autos, que significa “de si mesmo”. Assim, revela o traço
mais flagrante da doença que é o isolamento do mundo exterior, com a consequente
perda da interação social (OBERMAN, RAMACHANDRAN, 2006).
Os níveis de gravidade do autismo variam desde indivíduos incapazes de falar,
com grave retardo mental, a indivíduos com uma inteligência bem acima da média
(GATTINO, 2015). Devido à grande variação existente nos padrões comportamentais e
de habilidade social e comunicativa, tais transtornos do desenvolvimento global
passaram a ser nomeados de Transtorno do Espectro do Autismo (TEA).

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O TEA, como doravante chamaremos este transtorno do desenvolvimento,


revela seus primeiros sinais, em geral, antes dos três anos de vida e caracteriza-se pelo
comprometimento da comunicação, da interação social e dos comportamentos
(GATTINO, 2015).
Ainda hoje as causas do autismo são desconhecidas, mas pesquisadores sabem
que a propensão à doença é hereditária, embora fatores ambientais exerçam importante
papel. Na década de 90 pesquisadores da Universidade da Califórnia em San Diego
descobriram uma possível conexão entre o autismo e uma classe de células nervosas
denominadas neurônios espelhos (OBERMAN, RAMACHANDRAN, 2006) que estão
associadas ao processo de imitação, memória musical e interação social (GATINO, 2015;
OBERMAN, RAMACHANDRAN, 2006).
Nos indivíduos com autismo os neurônios espelhos não funcionam de modo
adequado e comprometem suas ações de imitação e espelhamento de gestos e/ou
expressões faciais (GATINO, 2015), bem como de compreensão de atos, intenções e
emoções de outras pessoas (OBERMAN, RAMACHANDRAN, 2006).
Para o diagnóstico do transtorno não existem testes laboratoriais. O Transtorno
do Espectro do Autismo é diagnosticado através da avaliação do quadro clínico, baseado
em sistemas de diagnósticos que instrumentalizam e tornam uniforme o parecer. Os
mais comuns são a Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial de
Saúde, atualmente CID-10, e o Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos
Mentais, atualmente DSM-5 (PADILHA, 2008).
Não há medicamentos específicos para o autismo, mas remédios podem ser
prescritos quando há outra doença associada à síndrome, como: epilepsia,
hiperatividade etc. Também não existe, ainda, cura para o TEA, mas existem várias
opções de tratamento, como Terapia Ocupacional, Fonoaudiologia, Psicoterapia,
Musicoterapia e Equoterapia, por exemplo. Estudos recentes têm mostrado que o
atendimento multidisciplinar é bastante benéfico ao individuo com Transtorno do
Espectro do Autismo.
No âmbito das intervenções, há a Educação Musical, que não se enquadra como
uma terapia, por não ter como objetivo tratar qualquer disfunção gerada pelo autismo,
mas que, por meio de suas atividades, proporciona diversos benefícios aos indivíduos

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com Transtorno do Espectro do Autismo (HAMEL, HOURIGAN, 2013; OLIVEIRA,


PEIXOTO, 2013; OLIVEIRA, 2015; SANTOS, 2008; RODRIGUES, 2009).

1.2 Educação Musical Especial


Fernandes (2000) define a Educação Musical Especial como sendo a
especialidade que trata da aprendizagem e do ensino da música para pessoas com
deficiência, perseguindo o desenvolvimento musical, a progressão conceitual e de
habilidades, a memorização, a prática de conjunto e todos os processos envolvidos.
Logo, o objetivo primário da Educação Musical Especial é estimular e
desenvolver habilidades musicais acessíveis ao aluno que possui limitações. Para tanto,
lhe são oferecidas experiências musicais que procurarão desenvolver a destreza vocal e
instrumental, a capacidade de perceber os vários aspectos do som, o conhecimento de
obras musicais de culturas diversificadas e o conhecimento/prática de rudimentos da
teoria musical (DARROW, 2006 e MOOG, 1979 apud SANTOS, 2008).
Na Educação Musical Especial, além das conquistas musicais, as crianças podem
alcançar êxito em outras finalidades não musicais, entre elas as sociais e as
comunicativas. Estas conquistas são benefícios secundários propiciados pela atividade
musical, importantes para as crianças que apresentam distúrbios sociais e de linguagem,
como é o caso das crianças com autismo. Entretanto, estes benefícios não constituem,
como dito anteriormente, objetivo primário da Educação Musical Especial (MOOG, 1979
apud SANTOS, 2008).
A Educação Musical pode surtir, muitas vezes, efeitos tão benéficos quanto o de
uma terapia que utiliza a música, mas, mesmo assim, não pode ser considerada como um
processo terapêutico, uma vez que os objetivos pedagógicos são diferentes dos
reabilitacionais (LOURO, 2006).
Não raramente, muitas pessoas confundem a Educação Musical Especial com a
Musicoterapia, uma vez que ambas lidam com indivíduos que apresentam necessidades
educativas especiais, bem como utilizam o som como matéria prima de seus processos.
Porém, enquanto a Educação Musical Especial constitui um conjunto de práticas
pedagógicas que visam o desenvolvimento de competências musicais, através de
experiências tais como a apreciação, a performance e a criação (LOURO, 2006), a
Musicoterapia consiste na utilização da música e/ou seus elementos constituintes, tais

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como ritmo, melodia e harmonia, por um musicoterapeuta qualificado, com um cliente


ou um grupo, num processo destinado a facilitar e promover a comunicação, o
relacionamento, a aprendizagem, a mobilização, a expressão, a organização e outros
objetivos terapêuticos relevantes, a fim de atender às necessidades físicas, emocionais,
mentais, sociais e cognitivas da pessoa (LOURO, 2006). Vale ressaltar que uma prática
não substitui e nem impede a realização da outra. Podem ser, inclusive,
complementares.
Na Educação Musical Especial é importante que haja a preocupação não só da
inclusão do aluno, mas também das acomodações do método, dos materiais e dos
recursos às necessidades individuais de cada um. Corroborando Edgar Willems (LOURO,
2006), “o importante não é o método, mas sim ter método”.
As propostas da Educação Musical Especial mesclam as ideias e metodologias de
educadores musicais dos chamados métodos ativos, tais como Kodály, Willems,
Dalcroze, Orff, Paynter, Schafer e Gainza e de outros vários. As atividades criadas têm
por primeiro objetivo a vivência corporal do aluno e, depois, a formalização dos
símbolos e dos conceitos musicais (LOURO, 2006).
Entre os princípios básicos da Educação Musical Especial está a vivência e a
distinção das propriedades dos sons (altura, duração, timbre e intensidade). Porém,
independente do conteúdo a ser abordado, o principal ponto da Educação Musical
Especial constitui o fato de as atividades serem pensadas considerando os déficits e as
competências de cada aluno.
O professor que atua neste campo precisa saber que, antes de tudo, deve
eliminar os diversos rótulos relacionados à deficiência e transferir sua atenção para o
modo como seu aluno recebe as informações em decorrência dos déficits que apresenta
(HAMEL, HOURIGAN, 2011).
Pesquisas e práticas de Educação Musical Especial direcionam-se à exploração
das relações de ensino e aprendizagem na sala de aula considerando principalmente os
déficits cognitivos, comunicativos, comportamentais, sensoriais e físicos dos alunos
(HAMEL, HOURIGAN, 2011).
A Educação Musical Especial realizada por profissionais informados e
conscientes de seu papel educa e reabilita a todo o momento, uma vez que afeta o
indivíduo em seus principais aspectos: físico, mental, social e emocional (LOURO, 2006).

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Ainda, a Educação Musical Especial pode servir tanto como forma de crescimento de
conhecimento, como de possibilidade de estabelecimento de comunicação entre a
criança e o mundo que a cerca (RODRIGUES, 2009).
No próximo item veremos como a música beneficiou uma criança com o
diagnóstico de autismo, propiciando sua comunicação com o mundo e seu
desenvolvimento geral.

2 Relato de experiência
Nossa experiência com as crianças com Transtorno do Espectro do Autismo
começou há cinco anos, quando integrávamos um grupo de pesquisa que buscava
identificar a influência da música no desenvolvimento de bebês nascidos prematuros, no
Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais, sob a orientação da
professora Maria Betânia Parizzi. Neste momento, nossa equipe foi convidada para
participar de um outro projeto, que tinha como objetivo intervir precocemente em
crianças com real possibilidade de desenvolvimento do autismo, a partir de intervenções
multidisciplinares, que seriam realizadas no Hospital São Geraldo, anexo ao Hospital das
Clínicas, sob a supervisão da professora Erika Parlato-Oliveira. Neste momento tivemos
o primeiro contato com as crianças autistas e a oportunidade de adentrar no mundo da
Educação Musical Especial, mundo este repleto de perguntas e escasso de respostas.
Tudo isto ocorreu em 2012, quando também tivemos a oportunidade de realizar
o curso PreAut: Sinais de risco para o autismo na primeira infância, promovido pelo
Departamento de Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de
Minas Gerais. Neste curso conhecemos um protocolo que havia sido implantado na
França, o qual se baseava em observações clínicas detalhadas e em fundamentos da
psicanálise (CRESPIM, 2007). O referido protocolo foi aplicado a um grupo de crianças
no Hospital das Clínicas da UFMG e algumas delas, com suspeita de desenvolvimento do
autismo, foram selecionadas para receberem intervenções de um grupo multidisciplinar
composto por Terapia Ocupacional, Fonoaudiologia, Psicologia Familiar e Musicalização.
Assim, tivemos a primeira experiência de ensino de música para crianças com
desenvolvimento atípico.
Este projeto com as crianças autistas infelizmente foi interrompido alguns
meses depois, mas nossa vontade de trabalhar com aquelas crianças permaneceu. Desde

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então, começamos a receber este público no CMI - Centro de Musicalização Integrado da


Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais, local em que atuávamos
como professores de música e onde pudemos continuar o processo de aprendizado e
prática da Educação Musical Especial.
Ficou perceptível nestes anos de atuação no Centro de Musicalização Integrado
o quanto a procura pela Educação Musical Especial para crianças com o Transtorno do
Espectro do Autismo tem crescido. Na referida instituição tal procura pode ser
comprovada numericamente. Segundo dados da escola, em 2010 e 2011, havia um aluno
com Transtorno do Espectro do Autismo matriculado. Em 2012, este número passou
para quatro, em 2013 para onze, e em 2014 para quatorze alunos. Em 2015, o CMI
atingiu a marca de vinte alunos diagnosticados dentro do espectro autista e
regularmente matriculados. Hoje, em 2016, a instituição possui cerca de quarenta alunos
com TEA em turmas especiais e inclusivas.
Nosso encantamento com a temática do autismo foi tão grande que acabou por
tornar-se objeto de estudo de um trabalho de conclusão de curso (OLIVEIRA, PEIXOTO,
2013), no qual foram verificados os benefícios gerados pela Educação Musical nos
indivíduos com Transtorno do Espectro do Autismo.
Num segundo momento, no contínuo trabalho com os indivíduos autistas, certos
questionamentos surgiram, tais como: pode um contexto de aprendizagem exercer
influência no desenvolvimento musical das crianças autistas? Que fatores podem
interferir no desenvolvimento musical dos sujeitos com Transtorno do Espectro Autista?
Os fatores extraclasse podem afetar o desempenho dos alunos na sala de aula? Logo,
uma nova pesquisa originou-se, desta vez no mestrado (OLIVEIRA, 2015), com o
objetivo de estudar o desenvolvimento musical de crianças autistas em diferentes
contextos de aprendizagem e identificar os prováveis fatores causadores de
interferências neste processo. Hoje, no doutorado, continuamos debruçados nas
investigações acerca do uso da música enquanto recurso de desenvolvimento musical e
geral para pessoas com autismo e outras deficiências.
Para ilustrar este relato de nossa experiência com crianças autistas,
apresentaremos o caso de uma criança diagnosticada com Transtorno do Espectro do
Autismo, que aqui chamaremos pelo nome fictício de Daniel.

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Em 2013, um ano após iniciarmos os trabalhos de musicalização de crianças


com autismo, chegou até nós, no Centro de Musicalização Integrado, o Daniel – uma
criança diagnosticada com autismo, prestes a completar 3 anos.
Daniel apresentava os principais sintomas da síndrome: não falava, apresentava
grande dificuldade de interação, permanecendo isolado quando colocado junto de outras
crianças. Não permanecia na sala de aula desacompanhado da mãe e apresentava
frequentes momentos de irritação, realizando birras, jogando-se no chão e chorando,
com grande resistência a qualquer tipo de aproximação. Apresentava dificuldades para
lidar com mudanças e com regras (GATTINO, 2009; OBERMAN, RAMACHANDRAN,
2006).
O menino começou tendo aulas de música com uma outra criança também
autista e continuou apresentando os comportamentos citados por aproximadamente um
ano. Seguindo as orientações de Hamel e Hourigan (2013) e LOURO (2012) foi decidido
que faríamos uma entrevista com a mãe de Daniel para colhermos alguns dados sobre
suas preferências e tentar integrá-las, na medida do possível, às aulas de música. Dentre
outras coisas, soubemos que ele gostava de assistir a desenhos animados em inglês. A
partir de então, começamos a usar comandos simples em inglês, durante as aulas e,
surpreendentemente, o menino começou a responder aos comandos. Então, começamos
a cantar canções em inglês, a solfejar a escala maior utilizando inicialmente números
cantados em inglês ao invés dos nomes das notas musicais (WILLEMS, 1963), utilizando
também o xilofone, o piano e outros instrumentos. Assim, Daniel começou,
ineditamente, a se interessar também pelos instrumentos, além de se expressar
oralmente, como dito anteriormente, cantando palavras em inglês e se comunicando
com o professor nesta língua (HAMEL E HOURIGAN, 2013), bem como apresentou suas
primeiras interações sociais desenvolvendo pequenos diálogos com o professor,
ajudando-o a pegar e a guardar os instrumentos musicais e participando das atividades
coletivas, como bandinhas rítmicas, por exemplo, sem se isolar do grupo (HAMEL E
HOURIGAN, 2013).
Algum tempo depois, a criança começou a se interessar por animais.
Começamos a cantar canções sobre animais e a fazer o som dos animais também nos
instrumentos, imitando o leão (grave) e o passarinho (agudo), no piano; ou tentando
criar a sonoridade dos bichos nos diversos instrumentos. Descobrimos uma canção

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chamada Trem dos Animais, na qual o menino tinha que intervir, ora falando o nome de
algum animal, ora imitando o som do animal que era falado. Com o tempo, conseguimos
estender a atividade para outros tipos de “trem”. Assim, surgiu o trem das frutas, dos
instrumentos musicais, das notas musicais e nosso relacionamento foi se ampliando,
bem como a criança, que antes não comunicava, passou a interagir no próprio idioma,
em português, como também manteve seu interesse em se expressar no idioma inglês.
Atualmente, Daniel está com 6 anos e não apresenta mais dificuldades de
comunicação, nem de interação, bem como deixou de apresentar comportamento
irritadiço. Consegue tocar peças simples em instrumentos como o piano e o xilofone.
Apresenta boa percepção auditiva. Apresenta alegria por participar das aulas de música
e tem demonstrado progressos fora das aulas de música, como na escola, por exemplo,
segundo relato de sua mãe.
O desenvolvimento musical-geral conquistado por Daniel neste período
(2013/2016) foi notório. A Tabela 1, abaixo, apresenta o percurso deste
desenvolvimento.

Tabela 1 - Desenvolvimento musical-geral de Daniel entre os anos de 2013 e 2016

Início (2013) Hoje (2016)


Desenvolvimento musical
 Presença do pulso interno3;  Desenvolvimento da regulação
 Desconhecimento de elementos temporal6;
rítmicos (pulsação, apoio, ritmo real)4;  Percepção da mudança de
 Incapacidade de realizar ostinatos5 andamentos;
rítmicos e de perceber a quadratura  Execução de pulsação, apoio, ritmo
presente em canções; real,
 Ausência de vocalizações;  Execução de ostinatos e percepção da
 Ausência de percepção melódica; quadratura;

3 Execução de movimentos com padrões de regularidade, mas no próprio tempo, sem o ajuste do próprio
pulso à pulsação da obra ouvida (PARIZZI, 2009, CARNEIRO, 2006).
4 A pulsação corresponde ao conjunto de pulsos, ou batidas repetidas de forma constante, e que dividem o

tempo em fragmentos de mesma duração. O apoio é o pulso mais forte dentro do compasso musical. O
ritmo real é o ritmo da melodia, da prosódia (WILLEMS, 1963).
5 Motivo ou frase persistentemente repetido.
6 Capacidade de conseguir processar a informação relacionada com o tempo e estruturar a sua própria

ação dentro desse tempo (POUTHAS, 1996).

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 Indiferença a mudanças de timbres,  Capacidade de solfejar a escala


andamento, intensidade e altura; diatônica;
 Recusa aos instrumentos musicais.  Percepção/execução dos planos de
altura grave, médio e agudo;
 Percepção/execução de movimento
sonoro (grave-agudo e vice-versa);
 Reconhecimento auditivo de diversos
instrumentos musicais;
 Percepção/execução de intensidades
fortes e suaves;
 Percepção/execução de sons curtos e
longos;
 Execução de pequenas melodias ao
xilofone e ao piano;

Desenvolvimento geral
 Isolamento social;  Interação com professores e colegas;
 Ausência de contato visual;  Maior tempo de contato visual;
 Pobreza de expressão verbal;  Expressão verbal nos idiomas inglês e
 Inexistência de empatia; português;
 Hipersensibilidade auditiva;  Desenvolvimento de tolerância às
 Mudanças de humor sem causa sonoridades;
aparente;  Maior constância de bom humor;
 Obsessão por determinados objetos;  Desaparecimento de ecolalias e
 Presença de ecolalia7 e estereotipias8. estereotipias.

7 À repetição de códigos verbais dá-se o nome de ecolalia. Há ecolalia imediata quando o autista repete
literalmente uma sentença ou comando verbal dirigido ao mesmo e há ecolalia tardia quando palavras ou
frases ouvidas em propagandas publicitárias, músicas, ou em outros ambientes são ouvidas, estocadas e
pronunciadas mais tarde (GATTINO, 2009).
8 Padrões ritualísticos e não funcionais, por exemplo: torcer mãos e dedos, realizar movimentos
pendulares com o corpo, ficar girando, etc. (GATTINO, 2009).

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Considerações finais
Acreditamos que o sucesso alcançado por Daniel foi devido, em especial, ao
diagnóstico feito precocemente, hoje fechado como autismo; e ao imediato início das
intervenções. A música, enquanto linguagem, possibilitou a abertura de canais de
comunicação entre a criança e o professor, com os colegas e o mundo que a cerca. Por
meio das atividades musicais realizadas de forma sistemática, a criança desenvolveu-se
musicalmente, e este desenvolvimento teve um papel importante na superação das suas
dificuldades oriundas do autismo. Logo, ficou claro o quanto a música afeta o individuo
em sua globalidade, contribuindo em questões não estritamente musicais (THAUT,
2005; LOURO, 2012; HAMEL, HOURIGAN, 2011).
Consideramos, pois, que a prática musical pode trazer benefícios para as
crianças com Transtorno do Espectro do Autismo, e que investigações acerca deste
assunto podem profundar as discussões acadêmicas relacionadas à inclusão social e à
Educação Musical Especial, bem como poderão despertar o interesse de educadores
musicais pela Educação Musical Especial, além de instigar uma maior aproximação entre
as áreas da música, da saúde e da educação.

Referências
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