Você está na página 1de 36

CLÁUDIO BRANDÃO 1 Cláudio Brandão

Professor Titular concursado

TEORIA JURÍDICA DO CRIME


de Direito Penal. Professor
dos Programas de Pós-gra-
duação em Direito da Pon-
“(…) O Professor Cláudio Brandão não necessita apresenta-
ção, no Brasil ou na Europa, onde partilha o seu saber com TEORIA JURÍDICA DO CRIME
tifícia Universidade Cató- Estudantes e Colegas de várias Universidades. A Faculdade 6º edição
lica de Minas Gerais (PUC de Direito da Universidade de Lisboa conta há muito com o
seu magistério e todos gostamos de pensar que a sua chegada,
Minas) e Faculdade Damas
todos os anos, não é a chegada de um Professor Visitante, mas
da Instrução Cristã (FADIC). um regresso a casa. (…) Numa combinação, hoje tão rara,
Professor visitante, ao abri- de rigor e clareza, os Estudantes são apresentados a uma das
go do Programa Erasmus, construções mais notáveis da nossa civilização, precisamente A interpretação do atual
da Faculdade de Direito da a Teoria Jurídica do Crime. Num estilo cristalino, o Autor Direito Penal, através dos
Universidade de Lisboa. Pro- descreve a forma como esse extraordinário edifício que é a argumentos teleológicos,
fessor da UFPE. dogmática penal foi paulatinamente levantado a partir do
históricos e sistemáticos, é o
século XIX. O leitor (e portanto, em primeiro lugar, os Estu-
dantes) é sempre confortavelmente conduzido pela mão. Tem objeto da Coleção Ciência
aqui uma oportunidade única porque, nos caminhos mais Criminal Contemporânea.
estreitos e sinuosos, nunca se perderá e os momentos decisivos Para tanto, os pontos chaves
de viragem serão sempre assinalados. Quando mergulhamos do saber criminal, tratados
nos detalhes, percebemos a riqueza e o sentido de cada palavra cientificamente, são cuida-
e a forma como o texto, ascético e contido, irradia em múltiplas
dosamente dispostos em obras

6ª ed.
direções e potencia os mais variados interesses. Percebemos a
modéstia laboriosa da erudição que oferece, mas não exibe.”
que tem como elo o rigor me-
todológico através do qual as
Sílvia Alves investigações são realizadas,
Universidade de Lisboa para além da contribuição
original que elas geram.

Cláudio Brandão
ISBN 978-65-5059-098-7

editora
COLEÇÃO CIÊNCIA CRIMINAL CONTEMPORÂNEA
Coordenação: Cláudio Brandão
TEORIA JURÍDICA DO CRIME
Cláudio Brandão

TEORIA JURÍDICA DO CRIME


6ª Edição

COLEÇÃO CIÊNCIA CRIMINAL CONTEMPORÂNEA


Coordenação: Cláudio Brandão
Belo Horizonte São Paulo
Av. Brasil, 1843, Av. Paulista, 2444,
Savassi, Belo Horizonte, MG 8º andar, cj 82
Tel.: 31 3261 2801 Bela Vista – São Paulo, SP
CEP 30140-007 CEP 01310-933
W W W. E D I TO R A D P L A C I D O. C O M . B R

Copyright © 2019, D’Plácido Editora.


Copyright © 2019, Cláudio Brandão.

Todos os direitos reservados.


Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, por quaisquer meios,
sem a autorização prévia do Grupo D’Plácido.

Editor Chefe Plácido Arraes

Editor Tales Leon de Marco

Produtora Editorial Bárbara Rodrigues

Capa, projeto gráfico Letícia Robini


(Photo by Patrick Tomasso on Unsplash)

Diagramação Enzo Zaqueu

Catalogação na Publicação (CIP)

Brandão, Cláudio (Professor)


B817 Teoria jurídica do crime / Cláudio Brandão. - 6. ed. - Belo Horizonte, São Paulo : D’Plácido, 2020.
336 p. - (Ciência criminal contemporânea; v. 1)

Coordenador da coleção: Cláudio Brandão


ISBN 978-65-5059-098-7

1. Direito. 2. Direito Penal. 3. Teorias gerais sobre o crime e a criminalidade. 4. Penas.


Penalidades em geral. I. Título. II. Série.

CDDir: 341.5
Bibliotecária responsável: Fernanda Gomes de Souza CRB-6/2472
“Ao Rei dos séculos, Deus único, invisível e imortal, honra e
glória pelos séculos dos séculos! Amém”
1 Timóteo, 1:17
AGRADECIMENTOS

Ao Deus Uno e Trino: no Seu amor infinito e inexplicável, Ele


nos guarda a todos e tem-nos gravado na palma de Suas mãos.
Ao longo de mais de vinte anos, quer orientando, quer examinan-
do, teses de titularidade, de livre-docência, de doutorado e dissertações
de mestrado, deparei-me com uma notável nova geração científica de
penalistas brasileiros. A todos e cada um desses cientistas eu dedico
este livro, desejando-lhes que os seus trabalhos deem muitos frutos,
e que esses frutos permaneçam!
SUMÁRIO

PREFÁCIO 15
PREFÁCIO DA QUARTA EDIÇÃO 19
PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO 23
INTRODUÇÃO 31
1. CONCEITO DE CRIME  35
1.1. Conceito da Escola Positiva e conceito jurídico de crime 35
1.2. Conceito material de crime 38
1.2.1. Conceito de bem jurídico. Antecedentes 40
1.2.2. Nascimento do conceito de bem jurídico 41
1.2.3. O bem jurídico no positivismo normativo de Binding 45
1.2.4. A construção do bem jurídico
a partir do neokantismo 47
1.3. Conceito formal de crime 50
1.4. Classificações do crime 54
2. A CONDUTA HUMANA 59
2.1. Considerações Iniciais 59
2.1.1. A conduta na teoria do crime 60
2.1.2. Origem dogmática do conceito de conduta 61
2.2. Teorias do conceito de ação 63
2.2.1. Teoria causalista da ação 63
2.2.2. Teoria finalista da ação 66
2.2.3. Teoria social da ação 71
2.2.4. Teoria funcionalista da ação 72
2.3. Considerações críticas sobre as teorias da ação 75
2.4. Omissão 77
2.4.1. Considerações Iniciais 77
2.4.2. O problema conceitual da omissão 79
2.4.3. A viragem metodológica do positivismo e
os problemas decorrentes do não fazer 81
2.4.4. As abordagens da omissão a partir do finalismo 85
2.5. Comissão por omissão (omissão imprópria) 88
2.6. Omissão e Tipicidade 90
2.7. Ausência de conduta 94
3. NEXO DE CAUSALIDADE 97
3.1. Conceito de nexo de causalidade 97
3.2. Teorias sobre o nexo de causalidade 99
3.2.1. Teoria da Equivalência das Condições 99
3.2.2. Teoria da causalidade adequada 101
3.3. Posição do direito brasileiro 102
3.4. Causalidade e imputação objetiva 105
3.5. Causalidade nos crimes culposos 108
4. TIPICIDADE 111
4.1. Conceito de tipicidade 111
4.2. Antecedentes históricos do conceito de tipicidade 112
4.3. Afirmação da tipicidade e sua posição
no conceito de crime 116
4.4. Função de garantia da tipicidade 122
4.5. Análise do tipo penal 123
4.5.1. Sujeito ativo 124
4.5.2. Sujeito passivo 127
4.5.3. Objeto material 128
4.5.4. Elementos do tipo penal 128
5. TIPO COMISSIVO DOLOSO 131
5.1. Conceito de dolo 131
5.2. Teorias do dolo 132
5.3. Normatização do dolo 134
5.4. Elementos do dolo 136
5.5. Preterdolo 139
6. TIPO COMISSIVO CULPOSO 141
6.1. Conceito e teorias da culpa 141
6.2. Espécies de culpa 145
6.3. Formas de cometimento do crime culposo 146
6.4. Requisitos da culpa 148
7. ANTIJURIDICIDADE 149
7.1. Conceito de antijuridicidade 149
7.2. Relações entre tipicidade, antinormatividade
e antijuridicidade 150
7.3. A antijuridicidade na teoria geral do direito 154
7.4. Antijuridicidade como essência do crime 156
7.5. Antijuridicidade como elemento do crime 158
7.6. Antijuridicidade formal e material 163
7.7. Antijuridicidade objetiva e subjetiva 165
8. EXCLUSÃO DE ANTIJURIDICIDADE 169
8.1. Fundamento da exclusão da antijuridicidade 169
8.2. Estado de necessidade  170
8.2.1. Requisitos da situação de perigo 173
8.2.2. Requisitos da ação agressiva 176
8.3. Legítima defesa 178
8.3.1. Repulsa a uma agressão injusta, atual ou iminente 179
8.3.2. Uso moderado dos meios necessários 182
8.3.3. Direito próprio ou de outrem 183
8.3.4. Animus defendendi 183
8.3.5. Legítima defesa versus legítima defesa putativa 183
8.4. Estrito cumprimento do dever legal 184
8.5. Exercício regular de um direito 185
8.6. Problemática do consentimento do ofendido 186
8.7. Excesso 187
9. A CONCEPÇÃO MATERIAL DO INJUSTO PENAL: BEM JURÍDICO E
ANTINORMATIVIDADE NA TEORIA DO CRIME 189
9.1. Considerações iniciais 189
9.2. A localização do gérmen do bem jurídico
enquanto valor na síntese das ideias penais:
o papel da escolástica tardia ibérica 190
9.3. O nascimento conceitual do bem jurídico sua
coordenação com a epistemologia penal de seu tempo 196
9.3.1. A noção de sistema e a constituição
da epistemologia penal 196
9.3.2. A construção do sistema penal
fundamentado em imperativos 197
9.4. Norma e tipo penal 203
9.5. Norma e injusto 206
9.6. Síntese da função material do injusto penal 209
10. CULPABILIDADE 215
10.1. Conceito de culpabilidade 215
10.2. Culpabilidade como princípio do direito penal 219
10.3. A culpabilidade como elemento do crime 222
10.3.1. O gérmen da culpabilidade: o
Direito Penal Romano 223
10.3.2. Teoria psicológica da culpabilidade 225
10.3.3. Teoria psicológico-normativa da culpabilidade 227
10.3.4. Teoria normativa pura da culpabilidade 228
10.3.5. Teoria funcionalista da culpabilidade 230
10.4. Posição do direito brasileiro 232
11. POTENCIAL CONSCIÊNCIA DE ANTIJURIDICIDIDADE 233
11.1. Conceito de consciência de antijuridicidade 233
11.2. Classificação da consciência da antijuridicidade 235
11.2.1. Consciência da antijuridicidade formal 235
11.2.2. Consciência de antijuridicidade material 236
11.2.2.1. Consciência de antijuridicidade
como consciência ética 237
11.2.2.2. Consciência de antijuridicidade como
agir comunicativo 238
11.2.2.3. Consciência de antijuridicidade como
valoração paralela na esfera do profano 239
11.3. Colocação da consciência da antijuridicidade
na teoria do delito 241
11.3.1. Teoria estrita do dolo 241
11.3.2. Teoria limitada do dolo 242
11.3.3. Teoria estrita da culpabilidade 243
11.3.4. Teoria limitada da culpabilidade 244
12. IMPUTABILIDADE 245
12.1. Conceito de imputabilidade 245
12.2. Análise do Direito Brasileiro 246
12.3. Emoção e paixão 253
12.4. Embriaguez 254
13. EXIGIBILIDADE DE OUTRA CONDUTA E SUA EXCLUSÃO 257
13.1. Conceito de exigibilidade de outra conduta 257
13.2. Inexigibilidade de outra conduta 259
13.2.1. Obediência hierárquica 261
13.2.2. Coação moral irresistível 262
14. ERRO 265
14.1. Conceituação de erro 265
14.2. Espécies de erro segundo a dogmática penal 267
14.3. Erro de fato e erro de direito 269
15. ERRO DE TIPO E ERRO DE PROIBIÇÃO 275
15.1. Erro e finalismo 275
15.2. Conceito de erro de tipo 275
15.3. Erro de tipo essencial e erro de tipo acidental 276
15.4. Conceito de erro de proibição 278
15.4.1. Erro de proibição direto 281
15.4.2. Erro de proibição indireto versus
descriminantes putativas fáticas 282
15.4.3. Erro mandamental 284
15.5. Escusabilidade do erro de proibição 285
15.6. Inescusabilidade do erro de proibição 286
16. CRIME CONSUMADO E CRIME TENTADO 289
16.1. Conceito e fundamento da tentativa 289
16.2. Histórico da tentativa 290
16.3. Iter criminis 291
16.4. Requisitos da tentativa 295
16.5. Punibilidade da tentativa 297
16.6. Desistência voluntária e arrependimento eficaz 299
16.7. Crime impossível 300
17. CONCURSO DE PESSOAS 303
17.1. Conceito de concurso de pessoas 303
17.2. Teorias sobre o concurso de pessoas 304
17.3. Requisitos do concurso de pessoas 306
17.4. Espécies do concurso de pessoas 307
17.4.1. Autoria 307
17.4.2. Participação 309
17.5. Cooperação dolosamente distinta 311
17.6. Formas especiais de autoria 312
17.7. Comunicabilidade das circunstâncias 313
18. CONCURSO DE CRIMES 315
18.1. Introdução 315
18.2. Concurso Material 316
18.3. Concurso Formal 318
18.4. Crime continuado 320
REFERÊNCIAS 323
PREFÁCIO
Sílvia Alves

O privilégio de escrever as linhas que abrem a Teoria Jurídica do


Crime devo-o à amizade e à generosidade do seu Autor.
O Professor Cláudio Brandão não necessita apresentação, no
Brasil ou na Europa, onde partilha o seu saber com Estudantes e Co-
legas de várias Universidades. A Faculdade de Direito da Universidade
de Lisboa conta há muito com o seu magistério e todos gostamos
de pensar que a sua chegada, todos os anos, não é a chegada de um
Professor Visitante, mas um regresso a casa.
A Teoria Jurídica do Crime foi primeiramente publicada quando o
Autor, que é hoje incontestavelmente um dos pensadores de referência
do direito penal contemporâneo, iniciava a sua docência. Entretanto,
a sua obra ampliou-se e diversificou-se extraordinariamente, mas este
seu primeiro livro permanece como uma pedra angular.
Escrevo este prefácio na encantadora cidade de Gent (Bélgica),
que o Professor Cláudio Brandão tão bem conhece, e ao reler as
páginas da sua Teoria Jurídica do Crime, quando a neve cai no claustro
do antigo convento jesuíta que hoje acolhe a Faculdade de Direito
da Universidade de Gent, é impossível deixar de as comparar aos
magníficos quadros dos mestres flamengos. Tal como quando olha-
mos para o Cordeiro Místico de Jan van Eyck, somos imediatamente
capturados pelo propósito do mestre e os retábulos perfilam-se, um
após outro, ordenada e laboriosamente, contando a sua história. E
quando olhamos os detalhes - os inúmeros e surpreendentes detalhes
- eles desfilam diante nós como novos quadros. Assim sucede com o
texto de a Teoria Jurídica do Crime. Numa combinação, hoje tão rara,
de rigor e clareza, os Estudantes são apresentados a uma das constru-

15
ções mais notáveis da nossa civilização, precisamente a Teoria Jurídica
do Crime. Num estilo cristalino, o Autor descreve a forma como esse
extraordinário edifício que é a dogmática penal foi paulatinamente
levantado a partir do século XIX. O leitor (e portanto, em primeiro
lugar, os Estudantes) é sempre confortavelmente conduzido pela
mão. Tem aqui uma oportunidade única porque, nos caminhos mais
estreitos e sinuosos, nunca se perderá e os momentos decisivos de
viragem serão sempre assinalados. Quando mergulhamos nos detalhes,
percebemos a riqueza e o sentido de cada palavra e a forma como o
texto, ascético e contido, irradia em múltiplas direções e potencia os
mais variados interesses. Percebemos a modéstia laboriosa da erudi-
ção que oferece, mas não exibe. Por isso, através dos prefácios de tão
Ilustres Professores que me antecederam, verifico, sem surpresa, que
cada um de nós leu a Teoria Jurídica do Crime em harmonia com os
interesses científicos que dirigem a nossa investigação, por vezes bem
diferentes. Com todos a obra é generosa.
Para um historiador do direito, com gosto pela história do di-
reito penal, é verdadeiramente sedutora a forma como o Professor
Cláudio Brandão desenha, com precisão e transparência, o complexo
quadro intelectual que operou o nascimento e o desenvolvimento
dos elementos que formam o conceito de crime ou a sua estrutura.
Retábulo a retábulo, capítulo a capítulo. A tipicidade. A antijuridici-
dade. A culpabilidade.
O estudo do crime e da punição convoca não somente a dog-
mática penal, mas a história do direito, o direito romano e o direito
canónico, as ciências criminais como a criminologia, a filosofia e (é
preciso dizê-lo, se pensamos nas suas raízes) a teologia. Aqueles que
conhecem a obra do Professor Cláudio Brandão não estranharão por
isso a sua faceta multidisciplinar e interdisciplinar.
A parte geral do direito penal é, como refere o Autor, um projeto
deliberado, que começa a ser executado a partir da segunda metade
do século XVIII, não obstante o “embrião” ou a “cápsula conceptual”
engendrada, no século XVI, pelo humanista moderado Decianus:“se
é verdade que a parte especial surge de forma espontânea, também é
verdade que a parte geral surge de forma deliberada”. Mas a sucessiva
construção da teoria do crime enquanto método e, em consequên-
cia, a verdadeira cientificidade do direito penal são essencialmente
legados do século XIX.

16
O direito penal geral e, de modo mais exato, os temas da teoria
geral do crime nascem também como forma de resolver concretos
problemas de punição, a propósito de específicos tipos penais:“de forma
não planejada, começa-se a construção dos conceitos penais a partir dos
crimes em espécie, isto é, inicia-se a parte especial do Direito Penal”.
O direito penal é uma reação à violência, mas constitui ele
próprio violência. Observou um historiador do direito que a velha
liberdade que residia originalmente no homem alodial e livre, per-
mitindo-lhe punir os crimes que contra si eram praticados, mudou,
em parte, com a construção do projeto político estadual, de mãos. Foi
apropriada pelo Estado. E essa liberdade, tocada pelo Estado, transmu-
tou-se e mudou também de nome: soberania. O ius puniendi público
pode ser um atributo da soberania, mas significa uma expropriação
de liberdade. No contexto de um poder não autoritário, ela carecerá
sempre de justificação.
O direito penal é violência institucionalizada, mas a história
do direito penal não é apenas uma história de violência; é a história
de uma construção que caracteriza a nossa civilização – uma teoria
(jurídica) do crime que confere natureza científica ao direito penal
- e que tende à legitimação e à limitação dessa violência entregue ao
Estado. O direito penal é, portanto, um resíduo de liberdade (espoliada)
e simultaneamente um garante da liberdade remanescente. Se, depois
de uma reação penal privada e mais ou menos instintiva, o direito
penal começou por ser um instrumento do poder e da sua política,
rapidamente os juristas entraram em cena. Eles seriam necessários ao
poder e à construção do seu direito, mas eles estiveram sempre, através
da criação doutrinária, na defesa da fronteira que impõe um limite
à violência estatal. O penalista será incessantemente um guardião da
liberdade e dos direitos.
A Teoria Jurídica do Crime representa igualmente a perenidade
da tradição cultural do ius poenale commune, do direito penal liberal
e do humanismo penal. E encerra, no seu percurso histórico, uma
advertência. O edifício da dogmática penal nunca está terminado. Ele
precisa ser cuidado e melhorado. Como uma máquina em sucessiva
afinação e aperfeiçoamento. Os perigos do passado encontram sempre
forma de reaparecer nos desafios e perplexidades do presente. Seja no
declínio ou erosão da legalidade ou na forma como o poder escolhe o
inimigo de turno. Afinal, o direito penal encerra em si um paradoxo.

17
Ele é simultaneamente violência e proteção ou segurança. Como diz
o Poeta, o abismo do mal e o reflexo do céu ou a incessante conquista
do bem e da justiça. O penalista não terá um momento de descanso.
«Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.»
Fernando Pessoa

Gent, Janeiro de 2019


Sílvia Alves1
Universidade de Lisboa

Professora e Presidente do Conselho Pedagógico da Faculdade de Direito da


1

Universidade de Lisboa.

18
PREFÁCIO DA QUARTA EDIÇÃO
Maria Fernanda Palma

A Teoria Jurídica do Crime, desenvolvida por uma longa tradi-


ção europeia e complementada pelo pensamento latino-americano,
defronta, no nosso tempo, desafios importantes.Tais desafios resultam,
desde logo, da necessidade de afirmação convincente de um núcleo
essencial de princípios, em face de visões relativistas, funcionalizadoras
e, em suma, instrumentalizadoras do Direito Penal. Essas visões cor-
respondem à espuma dos dias dos interesses económicos e políticos
ou a certas conceções do objeto de conhecimento - o crime e a pena
- que abstraem da especificidade do projeto de justiça do Direito.
A par dessa crise, que afeta o projeto de humanização da res-
ponsabilidade penal, na medida em que esta seja entendida como
utensílio de engenharia social, existe um conjunto de novos conhe-
cimentos sobre o comportamento humano.Trata-se de conhecimen-
tos traziidos pelas behavioural sciences e pela compreensão lógica
da ação proporcionada pela filosofia da linguagem, que interpelam
metodologicamente os critérios tradicionais da definição de crime
e as categorias da ação e da omissão, da causalidade e da imputação
objetiva, o dolo e da negligência, da justificação e da culpabilidade.
A teoria jurídica do crime encontra-se, deste modo, sob os ven-
tos de interpelações decisivas para a discussão crítica e a inovação, a
ponto de ter de se abrir a novos modos de pensar a realidade e de
a definir, como se poderá verificar em face de recentes aquisições
de conhecimentos (neurociências, filosofia da mente e das ciências
cognitivas). Existe um impulso ainda não inteiramente formulado
para uma reconstrução dos critérios jurídicos que se referem ao
conhecimento da capacidade, possibilidade e interesse da responsabi-

19
lidade penal. Está, pois, em causa distinguir o que é adaptável a novos
desígnios e o que é perene.
É neste ambiente que surge a 2ª edição de uma obra límpida,
que arruma ideias sedimentadas e a preservar sobre a teoria jurídica
do crime, de autoria do Professor Cláudio Brandão, jovem e ilustre
Mestre da Faculdade de Direito do Recife, da Universidade Federal de
Pernambuco, a qual reúne o seu pensamento sobre a matéria essencial
do Direito Penal. Nesta obra, é significativa a afirmação de uma linha
de análise que radica na justificação do Direito Penal pela proteção de
bens jurídicos e que constrói o crime a partir de referentes objetivos.
A presente obra rejeita, assim, critérios decorrentes da pura
emanação de normas ou da vontade política do legislador, por vezes
sedutores mas sempre perigosos, dando o merecido destaque ao pa-
pel que, na história da teoria do crime, tiveram o conceito de ação
final e o reconhecimento das estruturas ônticas na determinação do
objeto da proibição penal. Há, nesta visão, a recusa de uma confusão
do conceito de crime com o puro desvalor ético e uma rejeição da
redução da matéria do proibido à mera desobediência a normas, o
que corresponde à herança de uma teoria do crime alicerçada na
teoria germânica dos sistemas, desenvolvida por uma visão liberal
e garantística tão cara ao pensamento latino-americano, através de
grandes autores como Jiménez Asúa.
Essa ligação entre, por um lado, o pensamento filosófico do
Direito Penal de tradição europeia (expressivamente manifestado
na obra de Welzel, mas também, noutra perspetiva metodológica, na
Teoria do Direito de Radbruch e, mais especificamente, na lógica
de uma total “analogia com o humano” de Arthur Kaufmann) e, por
outro lado, o pensamento latino-americano, que absorveu a tradição
ibérica e italiana, representa uma herança cultural notável. Essa he-
rança reconduz-nos a um humanismo penal que é traço identitário
de uma cultura comum europeia e latino-americana.
A obra do Professor Cláudio Brandão, sendo pedagógica e
concisa, não deixa de ilustrar todos os institutos da teoria do crime
com os seus antecedentes históricos e de acentuar os pilares de um
Direito Penal humanista e respeitador dos direitos fundamentais.
Incluem-se neste âmbito o conceito de bem jurídico, o conceito
material de crime, o conceito de ação humana como expressão da
vontade e da liberdade de configuração do mundo (não prescindindo

20
das ligações às descrições não jurídicas do mundo, como a causali-
dade) e a ideia de culpabilidade como fundamento último de uma
responsabilidade da pessoa contra todas as tentativas de objetivação
da responsabilidade penal.
Na sua clareza expositiva, a proposta de conceção de responsa-
bilidade penal e de justiça penal é apresentada com coerência, não se
revelando rígida e fechada aos desafios do pensamento contemporâneo
sobre o crime, oriundos dos novos modos de abarcar o comportamen-
to humano na sua dimensão social e psicológica. Sendo uma obra para
todos – estudantes, docentes e investigadores - organiza o pensamento
sobre o crime na perspetiva jurídica e prepara um início de discussão
sobre os temas do presente com o devido conhecimento do passado.
Por outro lado, pela sua profunda relação com a tradição cultural
europeia e ibero-americana, esta obra é, sem dúvida, uma ponte para o
diálogo científico e cultural entre o pensamento penal do Brasil e de
Portugal, que a Faculdade de Direito de Lisboa e o Centro de Inves-
tigação de Direito Penal e Ciências Criminais tanto cultivam. É, por
conseguinte, um marco relevante nesse caminho de diálogo científico
e cooperação cultural, que continuaremos, seguramente, a percorrer.

Maria Fernanda Palma1

Professora Catedrática da Faculdade de Direito de Lisboa. Presidente do Insti-


1

tuto de Direito Penal e Ciências Criminais - UL. Coordenadora do Centro de


Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais - UL

21
PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO
Cezar Roberto Bitencourt

Para a compreensão, a interpretação, o manejo e a aplicação da


lei penal, é necessária uma sistematização conceitual do delito, um
conjunto de princípios ordenados e orgânicos, aplicáveis à solução de
todos os casos concretos. Em outros termos, é fundamental a existência
de uma teoria geral do crime, embora concordemos que um enfoque
técnico não nos dá, todavia, diagnóstico algum sobre o problema
criminal nem está em condições de sugerir programas, estratégias ou
meras diretrizes para nele intervir, não dá resposta nem se preocupa
com os principais problemas que ele suscita: por que se produz o crime
(etiologia, gênese e dinâmica do acontecimento criminal, variáveis,
fatores etc.); como se pode e deve preveni-lo; como se pode e deve
intervir positivamente no infrator etc. Sustentamos, igualmente, que,
apesar de a resposta estatal ao fenômeno criminal dever ocorrer nos
limites e por meio do Direito Penal, que é o mais seguro, democrático
e garantista instrumento de controle social formalizado, a reação ao
delito não deve ser exclusividade do Direito Penal, que somente deve
ser chamado a intervir quando falharem todas as demais formas de
controle social, isto é, somente deve ser utilizado como a ultima ratio.
Contudo, deve-se permanecer atento à reflexão que a teoria do
crime continua a exigir, pois, a despeito do tempo decorrido desde
o lançamento da base fundamental dos atributos do crime, com o
insuperável trabalho realizado por Von Liszt e Beling, a tipicidade, a
antijuridicidade e a culpabilidade continuam sendo as categorias fun-
damentais através das quais se analisam sequencialmente os aspectos
mais importantes que se situam na conceituação jurídica de um fato
como crime. Ao longo de um século, a discussão doutrinária enri-

23
queceu sobremodo a teoria originária, com novas referências e novas
matrizes, de sorte a torná-lo uma das principais, senão a principal,
construção jurídica do século XX.
Como já foi dito em outra oportunidade, é importante para
qualquer jurista, seja ou não penalista, esteja ou não especialmente
interessado no Direito Penal, o estudo de uma teoria que chega a ser
a mais perfeita contribuição do pensamento jurídico à elaboração
sistemática do Direito Penal positivo. Atualmente, não se pode pôr em
dúvida a importância de seu estudo para a formação do jurista, para
o conhecimento do direito positivo e para a prática de sua aplicação
na vida diária. O jurista que ignore ou despreze sua importância pode
passar como o burguês gentilhomem de Molière, que fala em prosa
durante toda sua vida, sem saber que fala em prosa.
Pois bem, a Teoria Jurídica do Crime, primeira obra do professor
Cláudio Brandão, com estilo impecável e elevado rigor científico,
mantém viva a preocupação que a dogmática penal requer perma-
nentemente. Nosso autor destaca, sobretudo, a necessidade de se ter
sempre presente que a pessoa humana deve ser o centro de toda
elaboração teórico-científica. Sob essa perspectiva, pode-se constatar
o desenvolvimento de um trabalho refletido e atual, comportando
vários níveis de leitura tanto para especialistas quanto para estudantes.
Fazendo uma sintética mas profícua análise da teoria do crime, Cláudio
Brandão destaca a importância da proteção do bem jurídico como
fundamento do Direito Penal, examinando e concebendo o crime na
sua concepção tríplice (tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade),
ao contrário de uma “corrente tupiniquim” que, majoritariamente,
no último quarto do século, vem sustentando que o crime compõe-se
apenas de tipicidade e antijuridicidade. Comungamos com quase a
totalidade dos fundamentos e conceitos aqui emitidos.
Segundo Welzel2, o Direito Penal tem, basicamente, a função
ético-social e a função preventiva. A função ético-social é exercida atra-
vés da proteção dos valores fundamentais da vida social, que deve
configurar-se com a proteção de bens jurídicos. Os bens jurídicos são
bens vitais da sociedade e do indivíduo, que merecem proteção le-
gal exatamente em razão de sua significação social. O Direito Penal
objetiva, assim, assegurar a validade dos valores ético-sociais positivos e,

WELZEL. Derecho penal alemán..., p. 11-12.


2

24
ao mesmo tempo, o reconhecimento e proteção desses valores que,
em outros termos, caracterizam o conteúdo ético-social positivo das
normas jurídico-penais. A soma dos bens jurídicos constitui, afinal, a
ordem social. O valor ético-social de um bem jurídico, no entanto, não
é determinado de forma isolada ou abstratamente, mas, ao contrá-
rio, a sua configuração será avaliada em relação com a totalidade do
ordenamento social. A função ético-social é inegavelmente a função
mais importante do Direito Penal e, através desta, surge a sua segunda
função, que é a preventiva.
Na verdade, o Direito Penal protege, dentro de sua função ético-
-social, o comportamento humano daquela maioria capaz de manter
uma mínima vinculação ético-social, que participa da construção
positiva da vida em sociedade através da família, da escola e do tra-
balho. O Direito Penal funciona, num primeiro plano, garantindo a
segurança e a estabilidade do juízo ético-social da comunidade e, em
um segundo plano, reage, diante do caso concreto, contra a violação
ao ordenamento jurídico-social com a imposição da pena correspon-
dente. O Direito Penal orienta-se segundo a escala de valores da vida
em sociedade, destacando aquelas ações que contrariam essa escala
social, definindo-as como comportamentos desvaliosos, apresentando,
assim, os limites da liberdade do indivíduo na vida comunitária. A
violação desses limites, quando adequada aos princípios da tipicidade
e da culpabilidade, acarretará a responsabilidade penal do agente. Essa
consequência jurídico-penal da infração ao ordenamento produz
como resultado ulterior o efeito preventivo do Direito Penal, que ca-
racteriza a sua segunda função.
Conhecemos o autor, professor Cláudio Brandão, há pouco
mais de dois anos; jovem e talentoso, já Mestre em Direito Penal,
está por concluir seu curso de Doutorado, na mesma Universidade
Federal de Pernambuco, honrando a tradicional Escola do Recife,
que legou à comunidade jurídica brasileira tantos expoentes, como
Aníbal Bruno, Everardo da Cunha Luna, entre tantos outros. O
professor Cláudio Brandão nasceu para o Direito Penal, fazendo
do magistério superior, além de uma profissão de fé, a sua razão de
ser e, mesmo antes de concluir seu doutorado, brinda-nos com este
belíssimo trabalho – Teoria Jurídica do Crime – que, certamente, será
bibliografia obrigatória de todos aqueles que se aventurem pelos
espinhosos caminhos da dogmática penal.

25
Embora a “reserva legal” constitua hoje um princípio funda-
mental do Direito Penal, seu reconhecimento constitui um longo
processo, com avanços e recuos, não passando, muitas vezes, de simples
“fachada formal” de determinados Estados.
Feuerbach, no início do século XIX, consagrou o princípio da
reserva legal através da fórmula latina nullum crimen, nulla poena sine
lege. O princípio da reserva legal é um imperativo que não admite
desvios nem exceções e representa uma conquista da consciência
jurídica que obedece a exigências de justiça, que somente os regimes
totalitários o têm negado.
Os textos legais e até constitucionais continuam abusando do
uso excessivo de expressões valorativas, dificultando, quando não
violando, o próprio princípio da reserva legal. Claus Roxin afirma que
“uma lei indeterminada ou imprecisa e, por isso mesmo, pouco clara
não pode proteger o cidadão da arbitrariedade, porque não implica
uma auto-limitação do ius puniendi estatal ao qual se possa recor-
rer. Ademais, contraria o princípio da divisão dos poderes, porque
permite ao juiz realizar a interpretação que quiser, invadindo, dessa
forma, a esfera do Legislativo”3.
Não se ignora que, por sua própria natureza, a ciência jurídica
admite certo grau de indeterminação, posto que, como regra, todos os
termos utilizados pelo legislador admitem várias interpretações. O
tema ganha proporções alarmantes quando o legislador utiliza exces-
sivamente “conceitos que necessitam de complementação valorativa”,
isto é, não descrevem efetivamente a conduta proibida, requerendo,
do magistrado, um juízo valorativo para complementar a descrição
típica, com graves violações à segurança jurídica e ao princípio da
reserva legal. Não se desconhece, no entanto, que o legislador não
pode abandonar por completo os conceitos valorativos, expostos como
cláusulas gerais, os quais permitem, de certa forma, uma melhor ade-
quação da norma de proibição com o comportamento efetivado. Na
verdade, o problema são os extremos, qual seja, ou proibição total
da utilização de conceitos normativos gerais ou o exagerado uso
dessas cláusulas gerais valorativas, que não descrevem com precisão
as condutas proibidas. Sugere-se que se busque um meio-termo
3
ROXIN, Claus. Derecho penal, Parte General, tomo I – Fundamentos. La Estruc-
tura de La Teoria del Delito..., p. 169.

26
que permita a proteção dos bens jurídicos relevantes contra aquelas
condutas tidas como gravemente censuráveis, de um lado, e o uso
equilibrado das ditas cláusulas gerais valorativas, de outro lado, além
do que a indeterminação será inconstitucional.
Vários critérios, arrolados por Claus Roxin4, são propostos para
encontrar esse equilíbrio, como, por exemplo: (1o) segundo o Tribunal
Constitucional Federal alemão, a exigência de determinação legal au-
mentaria junto com a quantidade de pena prevista para o tipo penal
(como se a legalidade fosse necessária somente para os delitos mais
graves) e que a consagração pela jurisprudência de uma lei indeter-
minada atenderia o mandamento constitucional (ferindo o princípio
constitucional da divisão dos poderes e a garantia individual); (2o)
haverá inconstitucionalidade quando o legislador, dispondo da possi-
bilidade de uma redação legal mais precisa, não a adota. Embora seja
um critério razoável, ignora que nem toda a previsão legal menos
feliz pode ser taxada de inconstitucional, além de incitar a indesejada
ampliação da punibilidade, violando o princípio da ultima ratio; (3o)
o princípio da ponderação, segundo o qual os conceitos necessitados de
complementação valorativa serão admissíveis se os interesses de uma justa
solução do caso concreto forem preponderantes em relação ao interesse
da segurança jurídica. Este critério é objetável porque relativiza o prin-
cípio da legalidade. Os pontos de vista da justiça e da necessidade de
pena devem ser considerados dentro dos limites da reserva legal, sob
pena de estar-se renunciando o princípio da determinação em favor
das concepções judiciais sobre a justiça. Enfim, todos esses critérios
sugeridos são insuficientes para disciplinar os limites da permissão do
uso de conceitos necessitados de complementação através de juízos valorativos,
sem violar o princípio constitucional da legalidade.
Claus Roxin5 sugere que a solução correta deverá ser encon-
trada através dos “princípios da interpretação em Direito Penal”,
pois, segundo esses princípios, “um preceito penal será suficiente-
mente preciso e determinado se e na medida em que do mesmo se
possa deduzir um claro fim de proteção do legislador e que, com
segurança, o teor literal siga marcando os limites de uma extensão
arbitrária da interpretação”.
4
ROXIN, Claus. Derecho penal..., p. 172.
5
ROXIN, Claus. Derecho penal..., p. 172.

27
Pois bem, uma boa dogmática penal, uma teoria geral do crime
bem elaborada também contribui para evitar os inconvenientes que
essas “políticas criminais oficiais”, puramente funcionalistas, podem
ocasionar. Não importa o rótulo que se dê para qualquer política de
combate à criminalidade ou para garantia da ordem pública, enfim,
sempre que atingirem o direito de liberdade do cidadão, o princípio
cunhado por Feuerbach de nullum crimen nulla poena sine lege deve
estabelecer o marco fundamental. Igualmente, a política de criminali-
zação somente se justifica como ultima ratio, isto é, quando os demais
ramos do direito revelarem-se incapazes de dar a tutela devida a bens
relevantes na vida do cidadão e da própria coletividade. Embora a
resposta estatal ao fenômeno criminal deva ocorrer nos limites e por
meio do Direito Penal, que é o mais seguro, democrático e garantista
instrumento de controle social formalizado, a reação ao delito não deve
ser exclusividade do direito penal, que somente deve ser utilizado, já
o afirmamos, em última instância. E, por derradeiro, a culpabilidade,
que é a pedra de toque da teoria geral do crime, deve ser vista não como
uma categoria abstrata ou a-histórica, à margem ou contrária às fina-
lidades preventivas da sanção penal, mas como a culminação de todo
um processo de elaboração conceitual, destinado a explicar por que e
para que, em um determinado momento histórico, o Estado recorre
a um meio defensivo da sociedade tão grave como a pena criminal.
Cláudio Brandão demonstra a mesma preocupação com o institu-
to da culpabilidade, especialmente com as moderníssimas concepções,
como as de Jacobs e Roxin, entre outros. Por tudo isso e também pela
preocupação externada com o futuro da teoria do delito, queremos
cumprimentar o professor Cláudio Brandão, que, em grande estilo,
lança o seu primeiro livro.
Por fim, Teoria jurídica do crime é um livro denso, sério e atual.
Encerra uma perspectiva conceitual própria de um Direito Penal
liberal, tendo como eixo central o homem real, verdadeiro e não
apenas instrumental, puramente paradigmático, imaginário, que existe
apenas nos velhos manuais. Ademais, a importância da teoria geral do
crime reside também no fato de constituir instrumento eficaz para o
entendimento e a comunicação entre os penalistas dos diversos re-
cantos do mundo, independentemente das diversidades idiomáticas e
ideológicas. Logicamente, sua importância cresce na medida em que
se integra aos fins da pena, à política criminal, à criminologia, pois

28
não ignoramos que, para atingir esses objetivos a que se propõe, uma
disciplina puramente normativa e sistemática como a Criminologia, que
admita o problema criminal como um fenômeno social e comunitário, que
pode existir nas mais diferentes camadas da população, sem qualquer
conotação patológica.
Por todos os seus atributos, é extremamente honroso prefaciar
este livro de Cláudio Brandão, que, certamente, será seguido por ou-
tros, com o mesmo brilho deste que acabamos de prefaciar. Deixamos,
propositalmente, de fazer um exame minucioso de todo o conteúdo
do trabalho, para não tirar o privilégio do leitor que, certamente, se
deliciará com o que encontrará.

Porto Alegre, verão de 2001


Cezar Roberto Bitencourt

29
INTRODUÇÃO

O direito penal tem como característica diferenciadora a sua


consequência, isto é, a pena, prevista no tipo como uma resultante
da conduta proibida.6 De regra, portanto, esse ramo do direito não
constitui institutos jurídicos, mas sanciona através da pena as violações
reputadas como mais graves às instituições construídas pelos outros
ramos do direito. Destarte, saberemos se uma norma tem natureza
penal se ela estiver relacionada com aquela consequência, enfatize-se,
a pena. Por isso, Tobias Barreto afirmou que o centro de gravidade
do direito penal está na pena.7
A importância deste primeiro alerta reside no fato de que toda
consequência penal é uma manifestação de violência. Não se pode,
portanto, separar o conceito de direito penal do conceito de violência.
É porque o direito penal tem em si a violência, que os esforços para
limitá-lo representaram um marco que tem por escopo dar legitimi-
dade àquela violência, a partir de sua justificação.
Nesse panorama, construiu-se a partir do século XIX uma dog-
mática que fornece critérios para limitar a imposição da violência da
consequência do nosso ramo do direito: a dogmática penal.8
A dogmática penal é sustentada através de três grandes pilares: a
teoria da pena, a teoria do crime e a teoria da lei penal. A teoria do

6
ORDIEG, Enrique Gimbernat. Concepto y método de la ciencia del derecho
penal. Madrid: Tecnos, 1999. p. 17.
7
BARRETO, Tobias. Estudos de direito, T. II. São Paulo: Record, 1991. p. 110.
8
BRANDÃO, Cláudio. Introdução ao direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
p. 98. HASSEMER, Winfried; MUNÕZ CONDE, Francisco. Introducción a la
criminologia y al derecho penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1991. p. 20.

31
crime, entretanto, é a que mais se desenvolveu, com vistas a conferir
cientificidade ao direito penal. Como dizia Tobias Barreto, a razão
da pena está no crime.9
O mais importante gérmen da dogmática penal atual reside nas
construções romanas acerca do Direito. A grande maioria dos crimes
previstos no nosso Código Penal foi produto da atividade criativa
dos pretores, que eram os juízes romanos, não das leis romanas. Com
efeito, o direito penal público romano teve início com a Lei Valéria,10
mas, mesmo depois dela, “o arbítrio (Willkür) dos magistrados não
é eliminado; ainda agora poderia o magistrado, tanto quanto pelo
direito da guerra, ou por outra parte pelo direito de coerção que lhe
é oferecido, sem delito fixado, sem processo fixado, sem a medida da
pena fixada, punir só pelo seu julgamento”.11
Com efeito, podemos exemplificar essa assertiva a partir de inú-
meros delitos, como é o caso da apropriação indébita do funcionário
público romano, que era a depeculatus, a qual corresponde ao crime
hodierno de peculato; no mesmo sentido, a fraude como forma de
aquisição patrimonial ilícita gerou o delito de stellionatus, que provém
de stellio (camaleão), correspondente ao nosso estelionato. Registre-se
que alguns crimes que não foram gestados no Direito Romano, como
é o caso da maioria dos crimes contra a pessoa, tiveram sua origem
no Direito Canônico, inaugurado no século XIII.
Isso posto, de forma não planejada, começa-se a construção dos
conceitos penais a partir dos crimes em espécie, isto é, inicia-se a
parte especial do Direito Penal.
Contudo, se é verdade que a parte especial surge de forma espon-
tânea, também é verdade que a parte geral surge de forma deliberada.

9
BARRETO, Tobias. Estudos de Direito, T. II. São Paulo: Record, 1991. p. 102.
10
MOMMSEN diz categoricamente que “o direito penal público começou com a
Lei valéria”.Tradução livre de:“Das römische öffentliche Strafrecht beginnt mit
dem valerischen Gesetz.” MOMMSEN, Theodor. Römisches Strafrechts. Leipzig:
Duncker & Humblot, 1899. p. 56.
11
radução livre de:“Die Magistratische Willkür ist keineswegs beseitigt; auch jetzt
kann der Magistrat, soweit einerseits das Kriegsrecht, andrerseits städtliche Co-
erction reichen, ohne festes Delicit, onhe festen Prozess, ohne festes Strafmass
nach Ermessen ahnden.” MOMMSEN, Theodor. Römisches Strafrechts. Leipzig:
Duncker & Humblot, 1899. p. 57. No mesmo sentido:“il piu antico ordine penale
romano è l’ampiezza data al potere discrezionale di punizione dei magistrati,
considerada coerctio”. GIOFFREDI, Carlo. I principi del diritto penale romano.
Torino: Giappichelli, 1970. p. 14.

32
No século XVI, época final dos pós-glosadores, período do cha-
mado mos italicus tardio, Tiberius Deciano, com base em Aristóteles,
busca responder à seguinte pergunta: quais são as causas primeiras
do crime? Com efeito, tanto na Metafísica quanto na Lógica, Aris-
tóteles indaga quais são as causas primeiras e quais são os princípios
primeiros do Ser. Quanto às causas, são quatro: formal, material,
eficiente e final. Assim, a tarefa de Deciano era desvendar qual era
a causa material do crime, qual era a causa formal do crime, a final
e a eficiente. Da resposta a essas quatro perguntas surgiu o Tractatus
Criminalis e inaugura-se a busca das características comuns a todos os
crimes em espécie: eis aí o embrião da parte geral do direito penal.12
Somente depois da construção das partes geral e especial do
direito penal surgiu a questão política da necessidade da limitação
ao poder de punir do Estado. Foi no final do século XVIII, com a
obra de Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria, que se propôs o
princípio da legalidade. A sistematização jurídica desse princípio se
deu, entretanto, com Anselm von Feuerbach, em 1801, com a sua
teoria da coação psicológica.
Pois bem, no século XIX, após a formulação do princípio da
legalidade, desenvolvem-se os elementos que formam o conceito de
crime, nomeadamente a tipicidade (estudada no Capítulo IV), a an-
tijuridicidade (estudada no Capítulo VII) e a culpabilidade (estudada
no Capítulo IX). Surgem primeiramente os estudos sobre a antiju-
ridicidade, com Merkel, e, com base na imputatio romana, Binding
inicia a teorização da culpabilidade. Registre-se que foi nessa época
que a palavra latina imputatio foi traduzida para o alemão Schuld, que
quer dizer culpabilidade.
O conceito de tipicidade é o último a ser aventado, pois surgiu
apenas como um elemento do crime no início do século XX, mais
precisamente em 1906, através da obra de Ernst von Beling.
Esses três elementos − tipicidade, antijuridicidade e culpabili-
dade − formam a estrutura do crime, pois são eles que dão os atributos
jurídicos capazes de transformar uma conduta humana em um crime.
Logo, a estrutura volta-se para a própria substância do delito.
Entretanto, quando analisamos o fenômeno do crime, podemos
fazê-lo em sua estrutura ou em sua manifestação.

BRANDÃO, Cláudio. Introdução ao direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 27.
12

33
Na manifestação do crime, estuda-se como o delito se com-
porta no ambiente real no qual ele se desenvolve, não abrangendo
dita manifestação, portanto, aqueles institutos que compõem a sua
essência. Fazem parte de manifestação do crime a tentativa, o concurso
de pessoas e o concurso de crimes.
A estrutura e a manifestação do delito formam a Teoria Jurídica
do Crime, que é o objeto deste livro.

34
CLÁUDIO BRANDÃO 1 Cláudio Brandão
Professor Titular concursado

TEORIA JURÍDICA DO CRIME


de Direito Penal. Professor
dos Programas de Pós-gra-
duação em Direito da Pon-
“(…) O Professor Cláudio Brandão não necessita apresenta-
ção, no Brasil ou na Europa, onde partilha o seu saber com TEORIA JURÍDICA DO CRIME
tifícia Universidade Cató- Estudantes e Colegas de várias Universidades. A Faculdade 6º edição
lica de Minas Gerais (PUC de Direito da Universidade de Lisboa conta há muito com o
seu magistério e todos gostamos de pensar que a sua chegada,
Minas) e Faculdade Damas
todos os anos, não é a chegada de um Professor Visitante, mas
da Instrução Cristã (FADIC). um regresso a casa. (…) Numa combinação, hoje tão rara,
Professor visitante, ao abri- de rigor e clareza, os Estudantes são apresentados a uma das
go do Programa Erasmus, construções mais notáveis da nossa civilização, precisamente A interpretação do atual
da Faculdade de Direito da a Teoria Jurídica do Crime. Num estilo cristalino, o Autor Direito Penal, através dos
Universidade de Lisboa. Pro- descreve a forma como esse extraordinário edifício que é a argumentos teleológicos,
fessor da UFPE. dogmática penal foi paulatinamente levantado a partir do
históricos e sistemáticos, é o
século XIX. O leitor (e portanto, em primeiro lugar, os Estu-
dantes) é sempre confortavelmente conduzido pela mão. Tem objeto da Coleção Ciência
aqui uma oportunidade única porque, nos caminhos mais Criminal Contemporânea.
estreitos e sinuosos, nunca se perderá e os momentos decisivos Para tanto, os pontos chaves
de viragem serão sempre assinalados. Quando mergulhamos do saber criminal, tratados
nos detalhes, percebemos a riqueza e o sentido de cada palavra cientificamente, são cuida-
e a forma como o texto, ascético e contido, irradia em múltiplas
dosamente dispostos em obras

6ª ed.
direções e potencia os mais variados interesses. Percebemos a
modéstia laboriosa da erudição que oferece, mas não exibe.”
que tem como elo o rigor me-
todológico através do qual as
Sílvia Alves investigações são realizadas,
Universidade de Lisboa para além da contribuição
original que elas geram.

Cláudio Brandão
ISBN 978-65-5059-098-7

editora
COLEÇÃO CIÊNCIA CRIMINAL CONTEMPORÂNEA
Coordenação: Cláudio Brandão

Você também pode gostar