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Capítulo 148

Das tribulações que lixboa padecia per mingua de mantimentos.( efeitos do


cerco castelhano, a cidade de lisboa sofria de aflição/sofrimento e também de
falta de mantimentos)
Estando a cidade assi cercada na maneira que já ouvistes,, gastovam-se
os mantimentos cada vez mais, por as muitas gentes que em ela havia, assi dos
que se colherom dentro,(cada vez havia menos alimentos e excesso de
população) do termo, de homees aldeãos com molheres e filhos, come dos que
veerom na frota do Porto(vieram muitas pessoas do porto, porque achavam que
dentro da cidade estariam mais protegidas); e alguũs se tremetiam aas vezes em
batees e passavom de noite escusadamente contra as partes de Ribatejo(as pessoas
fugiam secretamente para o Ribatejo em busca de alimentos), e metendo-se em alguũs
esteiros, alí carregavom de trigo que já achavom prestes, per recados que ante
mandavom(era tudo combinado). E partiam de noite remando mui rijamente, e alguũas
galees quando os sentiam viinr remando, isso mesmo remavom a pressa sobre eles(os
castelhanos ouviam os portugueses a a carregar o trigo e remavam para os apanharem);
e os batees por lhe fugir, e elas (galés) por os tomar, eram postos em grande trabalho.

Os que esperavom por tal trigo andavom per a ribeira da parte de Exobregas,
aguardando quando veesse, e os que velavom, se viiam as galees remar contra lá,
repricavam logo por lhe acorrerem. (estão a espera dos outros e se aparecessem os
castelhanos estão prontos para tocar o sino para os avisar) Os da cidade como ouviam o
repico, leixavam o sono, e tomavom as armas e saía muita gente(os da cidade quando
tocava o sino eram acordados e pegavam armas e armadilhas em direção ao local), e
defendiam-nos aas beestas se compria, ferindo-se aas vezes dũa parte e doutra; porem
nunca foi vez que tomassem alguũ(os castelhanos nunca apanharam ninguém), salvo ũa
que certos batees estavom em Ribatejo com trigo, e forom descobertos per uũ homem
natural d’Almadãa, e tomados por Castelãos; e el foi depois tomado e preso e arrastado,
e decepado e enforcado(gradação crescente-recurso expressivo que consiste na
apresentação de palavras ou conceitos por uma ordem crescente)(polissíndeto- recurso
expressivo que consite na repetição de elementos de ligação entre palavras e
frases(frequentemente a conjunção coordenativa completiva))E posto que tal trigo algũa
ajuda fezesse, era tam pouco e tam raramente, que houvera mester de o multiplicar (era
preciso um milagre para que ninguém morresse a fome)como fez Jesu Cristo aos pães,
com que fartou os cinco mil homees.

Em esto gastou-se a cidade assi apertadamente, que as pubricas esmolas


começarom desfalecer,(começa a escassear por falta de solidariedade; consequências:
falta de esmolas e sera necessário tomar medidas: deitar fora os que não servissem para
defender a cidade)e neũa geeraçom de pobres achava quem lhe dar pam; de guisa que a
perda comum vencendo de toda a piedade, e veendo a gram mingua dos mantiimentos,
estabelecerom; e esto foi feito duas ou três vezes, ataa lançarem fora as mancebas
mundairas e judeus e outras semelhantes, dizendo que pois taes pessoas nom eram
pera pelejar, que nom gastassem os mantimentos aos defensores; mas isto nom
aproveitava cousa que muito prestasse.

Os castelãos aa primeira prazia-lhe com eles, e davom-lhe de comer e


acolhimento, depois veendo que esto era com fame, por gastar mais a cidade, fez el-Rei
(D. João I de castela)tal ordenança que neũuũ de dentro fosse recebido em seu arreal,
mas que tods fossem lançados fora; e os que se ir nom quisessem, que os açoutassem e
fezessem tornar pera a cidade(os primeiros que chegaram foram bem tratados; depois
começaram-se a aperceber que eles tinham fome e ordenou:não os receber; maltrataá-
los, e fazê-los voltar para a cidade) ; e esto lhes(expulsos) era grave de fazer, tornarem
per força pera tal logar, onde chorando nom esperavom de seer recebidos(preferiam ser
prisioneiros dos espanhois do que voltar para a cidade para morrer à fome); e taes i
havia que de seu grado se saíam da cidade, e se iam pera o arreal, querendoante de todo
seer cativos, assi perecerem morrendo de fame.
Como nom lançariam fora a gente minguada e sem proveito, que o Meestre
mandou saber em certo pela cidade que pam havia per todo em ela(atitude dee
compreensão do cronista), assi em covas come per outra meneira, e acharom que era
tam pouco que bem havia mester sobr’elo conselho?

Na cidade nom havia triigo pera vender, e se o havia, era mui pouco e tam caro
que as pobres gentes nom podiam chegar a ele; ca valia o alqueire quatro livras; e o
alqueire do milho quarenta soldos; e a canada do vinho três e quatro livras( vigor na
pesquisa de Fernão lopes); e padeciam mui apertadamente, ca dia havia i que, ainda que
dessem por uũ pam ũa dobra, que o nom achariam a vender, e começarom de comer
pam de bagaço d’azeitona, e dos queijos das malvas e raízes d’ervas, e doutras
desacostumadas cousas, pouco amigas da natureza(começaram a arranjar alternativas
para se alimentarem); e taes i havia que mantinham em alféloa. No lugar u costumavom
vender o trigo, andavom homees e moços esgravatando a terra; e se achavom algũus
grãos de trigo, metiam-nos na boca sem tendo outro mantimento; outros se fartavom
d’ervas, e bebiam tanta agua, que achavom mortos homees e cachopos jazer inchados
nas praças e em outros logares. (começaram a morrer homens e crianças por beberem
agua impropria e comerem ervas)

Das carnes, isso mesmo, havia em ela grade mingua; e se algũus criavom
porcos, mantinham-se em eles, e pequena posta de porco, valia cinco e seis livras que
era ũa dobra castelãa; e a galinha, quarenta soldos; e a dúzia dos ovos, doze soldos
( não vendiam os alimentos porque eram para consumo próprio); e se almogávares
tragiam alguũs bois, valia cada uũ sateenta livras, que eram catorze dobras cruzadas,
valendo entom a dobra cinco e seis livras; e a cabeça e as tripas, ũa dobra(era tudo
aproveitado); assi que os pobres per mingua de dinheiro, nom comiam carne e pedeciam
mal; e começarom de comer as carnes das bestas (os pobres não comiam carne porque
era caro e começaram a comer os animais de carga), e nom somente os pobres e
minguados, mas grandes pessoas da cidade,(já não eram so os pobres, os mais ricos
também pois não havia outra opção) lazerando, nom sabiam que fazer; e os gestos
mudados com fame, bem mostravom seus encubertos pedecimentos. Andavom os
moços de três e de quatro anos pedindo pam pela cidade por amor de Deos, como lhes
ensinavam suas madres, e muitos nom tinham outra cousa que lhe dar senom lagrimas
que com eles choravom que era triste cousa de veeer; e se lhes davom tamanhopam
come ũa noz( muitas pessoas não tinham o que dar, a não ser lagrimas (cronista
tolerante e compreensivo) (comparação), haviam-no por grande bem. Desfalecia o leite
aaquelas que tinham crinças a seus peitos per miingua de mantimentos; e veendo
lazerar seus filhos a que acorrer nom podiam, choravom ameúde sobr’eles a morte ante
que os a morte privasse da vida. Muitos esguardavom as prezes alheas com chorosos
olhos, por comprir o que a piedade manda (muitos queriam dar mas não tinham), e nom
tendo de que lhes acorrer, caíam em dobrada tristeza.

Toda a cidade era dada a nojo, chea de mesquinhas querelas, sem neuũ prazer
que i houvesse:uũs com gram mingua do que padeciam; outros havendo doo dos
atribulados; e isto nom sem razom, ca se é triste e mesquinho o coraçom cuidadoso nas
cousas contrarias que lhe aviinr podem, vede que fariam aqueles que as
continuadamente tam presentes tiinham?(interrogação retóricas pessoas não tinham
outra saída e não podiam fazer nada diferente do que já estavam a fazer) Pero com todo
esto, quando repicavom, neuũ nom mostrava que era faminto(as pessoas estavam com
fome mas quando tocava o sino ninguém mostrava essa fomeera como se houvesse
umaa injeção de energia e iam lutar pela pátria), mas forte e rijo contra seus emigos.
Esforçavom-se uũs por consolar os outros, por dar remedio a seu grande nojo, mas nom
prestava conforto de palavras, nem podia tal door seer amansada com neũas doces
razões( o sofrimento era tao grande que os argumentos mais doces não eram capazes
de animar as pessoas); e assi como é natural cousa a mão ir ameúde onde seer a
door( era tao natural falar do sofrimento que como é tao natural e inevitável tocar num
sitio que nos está a doer), assi uũs homees falando com outros, nom podiam em al
departir senom em na mingua que cada uũ padecia.
Ó quantas vezes encomendavom nas missas e pregações que rogassem a deos
devotamente por o estado da cidade( o cronista quer: estado de espírito nas pessoas;
súplicas por ajuda divina)! E ficados os geolhos, beijando a terra, braadavom a deos que
lhes acorresse, e suas prezes nom eram compridas! Uũs choravom antre si, mal-dizendo
seus dias, queixando-se por que tanto viviam, como se dissessem com o Profeta: «Ora
veesse a morte ante do tempo, e a terra cobrisse nossas faces, pera nom veermos tantos
males!» Assi que rogavom a morte que os levasse, dizendo que melhor lhe fora morrer,
que lhe serem cada dia renovados desvairados padecimentos ( as pessoas almaldiziam a
sua sorte e pediam a deus para acabar com a vida deles para o sofrimento acabar).
Outros se querelavom a seus amigos, dizendo que forom desaventuirada gente, que se
ante nom derom a el-Rei de Castela que cada dia padecer novas mizquiindade, firmando-
se de todo nas peores cousas que fortuna em esto podia obrar.

Sabia porem isto o Meestre e os de seu Conselho, e eram-lhe doorosas d’ouvir


taes novas; e veendo estres males a que acorrer nom podiam, çarravom suas orelhas do
rumor do poboo.

Como nom querees(dirige-se a nos cria connosco uma relação mais intima e
quer-nos levar para um lugar e compreender tudo o que se passou) que maldissessem
sa vida e desejassem morrer algũus homees e molheres, que tanta diferença há d’ouvir
estas cousas aaqueles que as entom passarom, como há da vida aa morte? Os padres e
madres viiam estalar de fame os filhos que muito amavom, rompiam as faces e peitos
sobr’eles, nom tendo com que lhe acorrer, senom planto e espargimento de lagrimas; e
sobre todo isto, medo grande da crual vingança que entendiam que el-Rei de Castela
deles havia de tomar, assi que eles padeciam duas grandes guerras( fome e com os
inimigos), ũa dos emigos que os cercados tinham, e outra dos mantiimentos que lhes
minguavom, de guisa que eram postos em cuidado de se defender da morte per duas
guisas.

Pera que é dizer mais de taes falecimentos? Foi tamanho o gasto das cousas que
mester haviam que soou uũ dia pela cidade que o Meestre mandava deitar fora todolos
que nom tevessem pam que comer(boato de que o mestre ia expulsar da cidade quem
não tivesse o que comer), e que somente os que o tevessem ficassem em ela; mas quem
poderia ouvir sem gemidos e sem choro tal ordenança de mandado aaqueles que o nom
tinham? Porem sabendo que nom era assi, foi-lhe já quanto de conforto. Onde sabee que
esta fame e falecimento que as gentes assi padeciam, nom era por seer o cerco
perlongado,( justificação do cronista- esta forma não era pelo cerco não havia tanto
tempo que lisboa era cercada) ca nom havia tanto tempo que Lixboa era cercada; mas
era per aazo dass muitas gentes que se a ela colheom de todo o termo; e isso mesmo da
frota do Porto quando veo, e os mantimentos serem muito poucos.( lisboa está a viver
esta situação por duas razoes: muita população e poucos alimentos, sendo que o cerco
não estava montado há muito).

Ora esguardae(apelo à visualização/imperativo) como se fosses presente, ũa tal


cidade assim desconfortada e sem neũa certa feúza de seu livramento, como veviriam
em desvairados cuidados quem sofria ondas de taes aflições( interrogação retórica falta
de confiança das pessoas perante a situação que estão a viver)? Ó geeraçom que depois
veo(apóstrofe), poboo bem aventuirado, que nom soube parte de tantos males( que não
sofrem estes sofrimentos), nem foi quinhoeiro de taes padecimentos! Os quaes a Deos
por Sua mercee prougue de cedo abreviar doutra guisa, como acerca ouvires.

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