1
PREFÁCIO
(cinco páginas)
2
AGRADECIMENTOS
3
dirige ao Cónego José Pedro de Jesus Martins que nos deu a conhecer o
Arquivo Histórico da Diocese do Algarve, em Faro, ao Padre Dionísio, que em
Torres Vedras nos abriu as portas da igreja de Nossa Senhora da Graça, e ao
Doutor Marco Maiorino, do Arquivo Secreto do Vaticano, que autorizou a
microfilmagem de inúmeros manuscritos até agora inéditos e que em muito
enriqueceram o nosso estudo. Reconhecido apreço dirige-se também à Dr.ª
Aurora Machado e à Dr.ª Lígia Martins, da Biblioteca Nacional, por nos terem
possibilitado o contacto com obras cujo estado de conservação não admite já
acesso livre.
Seria ingrato não mencionar todos os amigos e colegas que ao longo
deste tempo nos dirigiram o seu incentivo e incondicional apoio. De entre todos
agredecemos especialmente à Mestre Célia Reis, ao Poeta Fernando Echevarría,
ao Dr. Eduardo Frutuoso, ao Mestre Lúcio Sousa, à Drª Rita Dias, à Drª Susana
Costa e à Drª Sara Castro.
4
INTRODUÇÃO
5
hereditariedade da cronística e memórias hagiográficas, fundamentalmente
barrocas, frequentadas pela preocupação de edificar uma imagem da
personagem histórica e da santidade de Frei Gonçalo de Lagos, informam o
primeiro andamento, que é seguido pela descrição dos seus milagres e
prodígios. Na terceira parte, além do culto, são analisadas as práticas religiosas
e devocionais, sublinhando o papel exercido pelos devocionários e a
apropriação do santo pelos poderes públicos. Do desconhecimento
demonstrado pelos hagiógrafos acerca da personagem histórica à inventio da
santidade, que enquadrámos na especificidade dos contextos políticos, sociais e
religiosos locais, aos quais se prendem também os da própria Ordem,
trataremos na quarta parte. Em modos de epílogo, tendo em conta as variações
cultuais desde o século XVI, concluiremos com o estudo e reflexão em torno
da sobrevivência desse culto que, desde sempre, foi elemento de projecção de
identidades locais.
6
I PARTE
7
1 - AMBIENTE BIBLIOGRÁFICO DO BARROCO
8
Cronológica da Literatura de Espiritualidade 2, encontramos apenas cinco
hagiografias no século XVI, aumentando esse número para o dobro na
centúria seguinte 3, certamente em comunicação com uma nova orientação
social e cultural no consumo da vida e exemplos de santidade, sobretudo
portugueses.
Para além daquele movimento reformador renascentista, João
Francisco Marques sublinha que do Concílio de Trento resultaria a
reafirmação de Cristo como único salvador e redentor dos homens e um
fundo incentivo ao valimento dos santos para obtenção do favor divino 4. Na
Sessão XXV do grande concílio da contra-reforma católica é confirmada
uma forma tradicional de piedade que, condenando as posições dos
reformistas, reafirma o culto dos santos, das relíquias e o uso das imagens,
sendo aqueles apresentados como intermediários que oferecem a Deus as
suas orações em benefício dos homens. Neste contexto o género
hagiográfico constitui, por um lado, o meio por excelência para permitir aos
fiéis um contacto com o maravilhoso divino que se manifestava através de
milagres e aparições e, por outro, um veículo de difusão dos princípios
tridentinos a que não são alheias - através do aparecimento de santos
contemporâneos praticantes desses princípios, fazedores de portentosos
milagres através dos quais Deus demonstra o seu beneplácito 5 - a defesa
da legitimidade romana, do culto e do dogma.
Esta santidade é apresentada através de sinais divinos que ocorrem
durante a juventude, vida e morte, registando-se mesmo um padrão que
contempla sinais durante a primeira idade, práticas penitenciais e ascéticas
2
CARVALHO, José Adriano de Freitas (dir. de), Bibliografia Cronológica da
Literatura de Espiritualidade em Portugal. 1501 –1700 , Porto, Faculdade de Letras do
Porto/Instituto de Cultura Portuguesa, 1988.
3
SOUSA, Ivo Carneiro de, ob. cit. , pp. 120 – 121.
4
MARQUES, João Francisco, «A tutela do sagrado: a protecção sobrenatural dos
santos padroeiros no período da Restauração», in BETHENCOURT Francisco, CURTO
Diogo Ramada (Org. de), A Memória da Nação , Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1991, p.
275.
5
LORA, José L. Sanchez, Mujeres, Conventos y Formas de la Religiosidad
Barroca, Madrid, Fundación Universitaria Española, 1988, p. 378.
9
purificadoras durante a vida religiosa e, finalmente, portentos que ocorrem
imediatamente após a morte, destacando-se aqui os milagres e aparições a
que se associam romarias e peregrinações, a tentativa de obtenção de
relíquias e outras práticas devocionais relacionadas com o seu culto,
merecendo particular destaque as trasladações.
A maior parte das ordens contou com os seus próprios hagiógrafos
que, para além de biografarem os respectivos santos, chamavam já a
atenção, num esforço para criar ambiente propício para a beatificação e
canonização, daqueles que, não se incluindo nestas categorias, se
notabilizaram pelas suas virtudes e gozavam fama de santidade. Nem
mesmo as restrições de Urbano VIII, em 1625 e 1634, proibindo o culto
prévio de candidatos à santidade – os muito populares fenómenos de
«santidade viva» – afastaram estas personagens dos textos cronísticos e
hagiográficos, como bem o demonstram no século XVII as advertências do
nosso famoso Agiológio Lusitano, da autoria de Jorge Cardoso 6 ou, entre
outros textos, da Chronica agostiniana de Frei António da Purificação 7, obra
de fundamental visita nas estratégias barrocas da hagiografia dos padres
de S. Agostinho.
Desta forma, a hagiografia barroca, para além de ir ao encontro das
necessidades da Contra-Reforma, serviu também para promover o
engrandecimento das ordens que frequentes vezes é feito com recurso à
“criação” de origens históricas peregrinas ou referências da passagem pela
instituição de religiosos notáveis de outras ordens, registando-se mesmo,
6
CARDOSO, Jorge, Agiologio Lusitano dos Sanctos e Varoens Illustres em
Virtude do Reino de Portugal, e suas Conquistas. ..., I, Lisboa, Of. Craesbeeckiana,
1652, II, Lisboa, Of. Henrique Valente de Oliveira, 1657, III, Lisboa, Of. António
Craesbeeck de Melo, 1966, IV, Lisboa, Of. Sylviana, 1744.
7
PURIFICAÇÃO, Frei António da, Chronica da Antiquissima Provincia de Portugal
da Ordem dos Eremitas de S. Agostinho Bispo de Hippôna, & principal Doutor da Igreja ,
Parte I, Lisboa, por manoel da Sylva, 1642; idem , Chronica da Antiquissima Provincia de
Portugal da Ordem dos Eremitas de S. Agostinho Bispo de Hippôna, & principal Doutor
da Igreja. Com uma adição no cabo: na qual se responde aos principaes lugares da
Benedictina Lusitana , Parte II, Lisboa por Domingos Lopes Roza, 1656.
10
como assinalaremos, verdadeiras disputas pela apropriação dessas
personalidades e da sua projecção cultual e social.
8
CARDOSO, Jorge, Officio Menor dos Sanctos de Portugal. Tirado de Breviarios
& memorias deste Reino , Lisboa, Pedro Craesbeeck, 1629.
9
ANJOS, Frei Luís dos, Jardim de Portugal, em que se da noticia de algũas
Sanctas, & outras molheres illustres em virtude, as quais nascerão, ou viuerão, ou estão
sepultadas neste reino, & suas cônquistas , Coimbra, Nicolao Carualho, 1626.
10
Este tipo de peocupações não toca apenas os géneros cronístico e
hagiográfico. No contexto da política centralista do Conde-Duque de Olivares que
afastou na prática o que havia sido estabelecido nas Cortes de Tomar, surgem várias
obras que reforçam a individualidade de Portugal. Em 1631, António de Sousa Macedo
publicaria as Flores de España Excelencias de Portugal , texto engrandecendo as
riquezas naturais do país e uma panóplia de qualidades dos nacionais, potenciando
uma identidade nacional distinta da espanhola.
11
É neste contexto «forte» de edificação especializada de uma
identidade portuguesa que convoca elementos importantes de santidade
católica que se deve também inserir tanto a história como a hagiografia de
S. Gonçalo de Lagos. Tratemos de entender por “hagiografia gonçalina”
aqueles textos que, ultrapassando a dimensão da simples notícia, fornecem
elementos biográficos e definidores de uma fama de santidade, não só pelo
retrato penitencial e ascético, como pelo relato de milagres. Estes dois
aspectos, bem como a reflexão sobre o contexto ou intencionalidade destas
produções, serão tratados no capítulo relativo à construção da imagem de
santidade, sendo conveniente começar por reconstruir rigorosamente a
ordem cronológica das obras e textos que nos legaram a memória exemplar
da história da vida de S. Gonçalo de Lagos.
11
Proceso da Fama de Santidade Virtudes, e Milagres do Servo de Deos Fr.
Gonçalo de Lagos da Ordem de S.to Agostinho. Concluido por Authoridade Ordnaria em
o anno de 1760 , Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, fls. 197v – 216v.
12
OROZCO, Alfonso, Chronica del glorioso padre y doctor dela yglesia sant
Augustin: y de los sanctos y beatos: y de los doctores de su ordẽ. Nuevamente
ordenada por um padre de la misma ordẽ , Sevilha, en Casa del Maestro Gregório dela
Torre, 1551.
12
muchos beatos de quen no se hallan hystorias: por tãnto haremos aqui una
summa breue de ellos» 13, o cronista incluiu em escassas linhas, que em
nenhum dos casos chegam a preencher uma coluna completa, alguns dados
relativos a personagens que, sendo na sua maioria religiosos, comparecem
apresentados como beatos , conquanto pouco mais se possa ler do que o
país de origem. Para o caso do beato agostinho português pode encontrar-
se esta breve notícia:
13
OROZCO, Alfonso, ob. cit. f. 39v.
14
Idem, ibidem , f. 40.
15
Natural de Tentúgal, ingressou na ordem dos Eremitas de Santo Agostinho em
1544 tendo sido Subprior do Convento de Nossa Senhora da Graça de Lisboa e Prior do
Convento de Tavira onde faleceu em 1580 (Cf. MACHADO, Diogo Barbosa, Bibliotheca
Lusitana Historica Critica e Cronnologica , Tomo II, Lisboa, Inácio Rodrigues, 1747, pp.
675 – 676).
13
dos outros santos e beatos desta Ordem e Prouincia sedo
sahhirão a lume com o fauor diuino» 16.
16
Corografia do Reyno do Algarve dividida em quatro liuros pera mor declaração
da obra. Escrita pello R. P. Fr. João de São Jozé da Ordem dos Eremitas de S. Agostinho
da Prouincia de Portugal no anno de 1557 ., f. 27 v.
17
PACHECO, Frei Duarte, Epítome da Vida Apostólica, e Milagres de S. Thomas
de Villa Nova Arcebispo de Valença, Exemplo de Prelados, & pay de pobres, da Ordem
nosso Padre Santo Agostinho. Com hum Tratado da Vida do venerauel P. Frey Luis de
Montoya, Mestre que foy dos nouiços em Salamanca, sendo o Glorioso S. Prior delle; &
assi mais de algũs seruos de Deos que deu à Igreja assi là, como nesta Prouincia sendo
Prelado della , Lisboa, Pedro Craesbeck, 1629, fls. 171 – 179v.
18
Idem, ibidem, f. 151.
19
B.G.U.C., Cód. n.º 436, f. 1.
20
PURIFICAÇÃO, Frei António da, Chronica da Antiquissima Provincia de Portugal
da Ordem dos Eremitas de S. Agostinho... , I, Lisboa, Manoel da Sylua, 1642, f. 19v.
14
nos diversos conventos da ordem destinados à elaboração da sua crónica,
não tendo dado ao prelo mais que, no ano de 1565, um livro sob o título de
Familia Augustiniana , contemplando a regra e os privilégios da Ordem do
Eremitas de Santo Agostinho 21. Barbosa Machado apenas nos esclarece
indicativamente de mais duas obras que, apesar de aparentemente se
terem perdido, nada indicia que fossem frequentadas por uma vida de S.
Gonçalo de Lagos 22. Para além de todos estes factos acresce que, malgrado
Frei Jerónimo Román tenha contado com a colaboração deste autor, só
depois da recolha documental por ele efectuada - na qual terá contado com
a colaboração de Frei Aleixo de Menezes, que lhe forneceu diversos
manuscritos - apresenta uma biografia de Frei Gonçalo de Lagos cujos
dados são coincidentes com os do manuscrito da autoria daquele autor. O
próprio Arcebispo de Goa, ao assinalar a documentação de que Frei João de
São José era possuidor e que Román terá levado, não refere qualquer
elemento acerca de S. Gonçalo 23.
Assim, uma vez que todas as biografias seguem fundamentalmente o
texto do Códice 436 e a crónica de Purificação, é de admitir que Frei João
de São José não estivesse na posse de dados significativos. Recorde-se
que, à boa maneira da época, uma simples referência biográfica, ainda que
21
MACHADO, Diogo Barbosa, Bibliotheca Lusitana Historica Critica e
Cronnologica , Tomo I, Lisboa, António Isidoro da Fonseca, pp. 675 – 676.
22
Familia dos Aboins historiada e Processo, e verdadeira relação do que se
passou acerca das precedências da Ordem dos Herimitas do Gloriosos N. P. e Doctor da
Igreja S. Agostinho, e do glorioso Padre S. Domingos nesta Cidade de Lisboa, Evora e
Santarem do reyno de Portugal em cumprimento do Motu, e Constituição do Papa
Gregorio XIII. Passou em favor dos Ordinarios contra Regulares o anno de 1573. feito
por ho Padre Ioham de São Jozé subprior do Convento de Lisboa em cujo tempo se isto
começou, e moveo . (Cf. MACHADO, Diogo Barbosa, ob. cit., Tomo I, p. 676).
23
B.G.U.C., Cód. n.º 436, f. 1v. Desta recolha documental feita por Frei
Jerónimo Román também nos dá notícia Frei António da Purificação que assinala ter
encontrado no Convento de Nossa Senhora da Graça de Torres Vedras um recibo
assinado por ele. (PURIFICAÇÃO, Frei António da, Chronica da Antiquissima Provincia de
Portugal da Ordem dos Eremitas de S. Agostinho ... , II, Lisboa, Domingos Lopes Roza,
1656, f. 279).
15
imprecisa, era suficiente para ser convocada e fornecer argumento de
autoridade. Disso é exemplo paradigmático, no presente estudo, o caso da
referência a diversos autores feita pelo esforço cronístico de Purificação
sem que, todavia, esclareça a diminuta relevância do respectivo contributo
da maior parte deles.
Da leitura destes textos, aos quais poderíamos acrescentar os de
José Pamphilo, Juan Marieta, Jerónimo Román, Simpliciano de Tirrinis e
Pedro Calvo, sobre os quais teceremos algumas considerações quando nos
debruçarmos sobre a obra de Frei António da Purificação, fica-se com a
sensação que estes autores pouco mais conheciam da vida de Frei Gonçalo
de Lagos que a sua naturalidade, local de morte e respectiva sepultura. O
autor da Corografia ainda afirma a existência de um registo de milagres
que servirá para uma história dos beatos da província de Portugal. Como
veremos, esse registo, cujo autor não é identificado, poderá referir-se ao
conjunto de instrumentos de autenticação de milagres 24, ou ao que Frei
Aleixo de Menezes 25 e Frei António da Purificação 26 atribuíram a João de
França de Brito e que aparecerá no decurso da instrução do Processo de
Fama e Santidade... , altura em que o procurador da ordem, Frei Agostinho
da Silva, o apresenta já em fase superveniente à apresentação dos
documentos biográficos, impressos e manuscritos, por só nessa altura ter
sido encontrado no Convento de Nossa Senhora da Graça de Torres
Vedras.27
16
2.2.1 – FREI JERÓNIMO ROMÁN
17
que esta en su sepulcro. Su vida es marauillosa, y fue me
dada toda entera por el muy religioso padre fray Ioan de
sancto Ioseph, el qual tãbiẽ escribe una chronica de la ordẽ
en la lẽgua Portuguesa» 29.
29
ROMAN, Fray Hieronymo, Chronica de la orden de los Ermitanos del Glorios
Padre Sancto Augustin, Diuidida en Doze Cẽturias, Salamanca, Casa de Ioan Baptista de
Terra Noua, 1569, f. 105.[B.N.: RES 2615 V.] O erro do cronista explica-se pelo facto de
ter confundido a data da feitura do sepulcro com a da morte, muito embora essa
construção tenha sido feita em 1518.
30
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit. , f. 279.
31
Provavelmente em 1568 (Cf. PINTO, Augusto Cardoso, Frei Jerónimo Román e
os seus Inéditos Sobre História Portuguesa , Lisboa, [s.n.], 1938, p. 7).
32
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit. , f. 279.
33
Processo da Fama de Santidade Virtude, e Milagres ... , Arq. Sec. do Vaticano,
Cong. Riti, Processus n.º 3335, f. 241v.
18
Sanct.Augustin» 34 do qual o processo acima citado fornece uma cópia
integral 35.
34
Idem, ibidem , f. 241v.
Desta obra manuscrita de Jeronimo Román faz referência, para além de Frei
António da Purificação, como acima assinalámos, Jorge Cardoso no Agiológio Lusitano...
a propósito da Madre Margarida de Jesus: «escreve della F. Hieronimo Romano na 2ª p.
da Hist. Dos Sanctos de Hesp. A quem parece seguirão D. F. Aleixo de Menezes no
trattado dos Sanctos da Ordem, e F. Luis dos Anjos no jardim de Portugal. F. Pedro
Caluo nas lagrimas dos justos l. 12. c. 12 F. Antonio da Natiuidade na Silua de
suffragios em varios lugares [...]». (CARDOSO, Jorge, Agiologio Lusitano ... , I, p. 61).
Embora Jorge Cardoso filie o texto de Frei Aleixo de Menezes no de Jerónimo Romám,
os dados de que dispomos e a comparação dos dois textos apontam precisamente no
sentido inverso. O Arcebispo de Goa afirma que forneceu diversos documentos ao
cronista espanhol, provavelmente quando, entre 1588 e 1590, foi Prior do Convento de
Nossa Senhora da Graça de Torres Vedras: «A uida do glorioso Saõ g.lo de Lagos
andaua taõ curta e mal escrita ẽ liuro tão roto e esfarrapado no Conuento de Torres
Vedras quando me fizeraõ prior delle q me pareceo ne cessario do que ali e noutras
partes achey a da tradiçaõ de mtas peçoas fide dignas e da mta jdade do q Commũ
mẽte ouuiaõ contar a seus pais a papeis q daquelle tpo dã lem branças de cousas
notaueis q sempre homẽs curiosos fazẽ q algũs tinhaõ do que tudo junto compus auida
do Santo q dey ao pe Romano e p me parecer q tudo sera perdido a torno a por aqui na
forma ẽ que entaõ ordeney sem ter taõ pera a consertar melhor.» (B.G.U.C., Cód. n.º
436, fls. 2 – 2v). Ora entre 1587 e 1590 ou 1592 Román esteve no nosso país onde
privou durante alguns meses com Frei Agostinho de Castro que aliás também lhe
forneceu numerosos elementos (Cf. PINTO, Augusto Cardoso, ob. cit., p. 8-9).
35
Idem, ibidem , fls. 247v – 264.
36
Idem, ibidem , fls. 391 – 399v.
19
que não tenha sido escrito antes de 1585 38. Os peritos do então Real
Arquivo da Torre do Tombo que, na altura, verificaram a autenticidade do
caderno original composto por oito meias folhas apresentado por Frei
Agostinho da Silva, procurador da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho
neste processo, consideraram que estava escrito com letra de quinhentos,
muito embora tenham também esclarecido que o título, atribuindo a sua
autoria a João de França de Brito, havia sido escrito posteriormente 39. Uma
vez que João de França de Brito conheceu os instrumentos de autenticação
de alguns milagres, dos quais foi feito, em 25 de Outubro de 1553, a
pedido do então Prior do convento, uma cópia autêntica pelos escrivães da
Provedoria de Torres Vedras, João de França e Gonçalo Serrão 40, é de
admitir a hipótese de João de França de Brito ser, se não precisamente
aquele escrivão, pelo menos seu parente, facto que legitima a hipótese
explicativa de uma apropriação ou envolvimento familiar na divulgação do
culto do beato agostinho.
Estudando este texto vetusto copiado para o processo de
beatificação de S. Gonçalo de Lagos, uma simples leitura destaca
37
Da colecção dos textos e memórias hagiográficas produzidas entre os séculos
XVI e XVII está já no prelo uma edição com estudo introdutório.
38
Processo da Fama de Santidade Virtudes, e Milagres ... , Arq. Sec. do Vaticano,
Cong. Riti, Processus n.º 3335, f. 393v. O facto de Frei Aleixo de Menezes assinalar um
registo de milagres da autoria de João de França de Brito faz supor que a sua redacção
tenha sido anterior a 1588, altura em que aquele religioso agostinho assumiu o cargo
de prior do convento torriense (Cf. B.G.U.C., Cod. 436, f. 11v).
39
«Porque esta letra [...] segundo a sua formatura , sendo também antiga, hé
certamente mais moderna, que o carácter da letra, com que se achão escritas as
referidas outo meyas folhas, em o que não pode haver duvidas» ( Processo da Fama de
Santidade Virtudes, e Milagres ... , Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335, f. 402). Infelizmente o documento original nunca foi encontrado. Talvez a análise
paleográfica permitisse, dado que conhecemos bem as letras de Fei Aleixo de Menezes
e de Frei António da Purificação, atribuir, o título a um desses autores uma vez que o
perito refere tratar-se de letra antiga. De qualquer forma, essa hipótese não nos parece
de desprezar porquanto estes dois autores afirmam ter conhecido o documento original.
40
Processo da Fama de Santidade Virtudes, e Milagres... , Arq. Sec. do Vaticano,
Cong. Riti, Processus n.º 3335, f. 216v - 217
20
imediatamente que o relato dos milagres apresentado é bem mais sumário
do que aquele que se pode frequentar em textos posteriores 41. Além disso,
na esteira do grande desconhecimento por parte de diversos autores e
crónicas acerca de dados biográficos fundamentais da vida de Frei Gonçalo,
também aqui deparamos com uma significativa imprecisão: a data de
nascimento não é assinalada e, relativamente à da morte, apenas nos é
dito que «auerá como cento e vinte e dous anos pouco mais ou menos no
mês doutubro meado» 42. Outro aspecto relevante fornecido por este
documento, reside na informação respeitante à efectiva dimensão do culto
e práticas devocionais nos anos oitenta da centúria de quinhentos. São
elucidativas, quer quanto a estes aspectos, quer quanto à intencionalidade
hagiográfica, as afirmações em que o autor descreve quanto esquecida
estava a veneração a Frei Gonçalo, situação que se traduz, para assinalar
apenas um ilustrativo, no abandono de um sepulcro de pedra onde os
devotos recolhiam terra acreditando no seu valor taumaturlógico 43. De igual
forma, é visível no seguinte excerto a preocupação em recuperar a
memória de uma devoção esquecida:
21
em Romaria, huns a dar graças das merces, que delle tinhão
recebidas, e outras abuscar remedio a suas infermidades, que se
ajuntavão tantas em hum dos dias do mês doutubro, que he
certo, e como affirmarão pessoas antiguas, e dinas de fé, que do
muito concursso da gente que vinha desde legoas ao redor e
fazia, como huma grande feira com as [?] , em que vinhão.
Guastou o tempo a memoria disto, e ainda dos muitos milagres
que o santo fazia alguns estormentos, que se disso tirárão por ma
guarda se perderão somente ficarão estes poucos dos muitos,
que eu vi, e de que sou lembrado e malguardo de tal perda,
ajuntei estes poucos estormentos, e a elles alguns milagres, dos
que sei, e vi, que o glorioso santo fez, em que tomo ao mesmo
Senhor por testemunha, que os por elle obrou»44.
44
Processo da Fama de Santidade Virtudes, e Milagres... , Arq. Sec. do Vaticano,
Cong. Riti, Processus n.º 3335, f. 390 - 391v.
22
2.2.3 - FREI ALEIXO DE MENEZES
45
Na mesma biblioteca, sob o n.º 112, encontra-se um códice com o título
Treslado da portentosa vida de São Gonçalo de lagos da Ordẽ de Santo Agostinho da
Provincia de Portugal Escrita pelo Ex.mo, e R.mo Snr. Arcebispo Primaz do Oriente e
das Hespanhas Dom Fr. Aleixo de Menezes da mesma Ordem de Santo Agostinho . No
Anno de 1604, um texto que é cópia quase integral das folhas 2 a 11v do Cód. n.º 436
onde está inserta a vida de Frei Gonçalo.
No verso da segunda folha de guarda pode ler-se, em letra contemporânea
atribuída por Alberto Iria ao bibliotecário Simões de Castro (cf. IRIA, Alberto, Treslado
da Portentosa Vida de S. Gonçalo de Lagos , Lagos, 1964, p. 29.), a nota: «Acaso será
este o livro (ou a sua cópia?) escrito por D. Fr. Aleixo de Menezes , mencionado na
Bibliotheca Lusitana, tomo 1.º, pag. 91, com o titulo Vidas de Religiosos modernos que
na Religião de Santo Agostinho da Provincia de Portugal florecerão em virtudes e vida
religiosa?» Na margem esquerda da primeira destas folhas lê-se a nota manuscrita com
letra e tinta semelhantes às que acima referimos: «Esta Vida do beato Gonçalo de
Lagos pode ver-se em melhor letra, com algumas variantes, no Ms. n.º 112 da Biblioth.
da U.de Coimbra».
46
B.G.U.C., Cód. n.º 436 , fls. 2 – 2v.
23
Gonçalo de Lagos 47, Frei Martim de Santarém e Rodrigo de Santa Cruz 48,
Frei Álvaro Monteiro 49, Frei Ubertino Enneo 50, Frei Francisco de Villafranca 51,
Frei Cipriano Perestrello 52, Frei Gonçalo de Almeida 53, Frei Luís de
Montoya 54, Frei Aleixo de Penafirme 55, uns parcos dados sobre uns
agostinhos anónimos mortos em França 56, Frei Afonso de Allos Vedros 57,
Frei Paulo Barletta 58, Frei Agostinho do Rosário 59, Soror Margarida Nunes 60 e
Beatriz Vaz de Oliveira 61. No final do documento 62 descobrem-se ainda,
provavelmente da autoria do copista 63, breves referências biográficas
relativas àqueles agostinhos que foram bispos, servidores áulicos e
docentes universitários. Esta última parte 64 terá ainda sido, com duas letras
diferentes, acrescentada para referir três professores da Universidade de
Coimbra. Este aditamento, dado referenciar Frei Francisco da Fonseca,
lente de Escoto , e Frei Manuel Lacerda, lente de Durando , permite concluir
65
que o manuscrito foi acrescentado necessariamente entre 1617 e 1633 .
47
Ibidem , fls. 2v – 11v.
48
Ibidem , fls. 15 – 15v.
49
Ibidem , fls. 15v – 18.
50
Ibidem , fls. 18 – 20.
51
Ibidem , f. 20v.
52
Ibidem , fls. 21 – 22.
53
Ibidem , fls. 22 – 23.
54
Ibidem , f. 23.
55
Ibidem , fls. 23v – 24.
56
Ibidem , fls. 24 – 24v.
57
Ibidem , fls. 24v – 25.
58
Ibidem , fls. 25v – 26.
59
Ibidem , fls. 26 – 26v.
60
Ibidem , fls. 26v – 29.
61
Ibidem , f. 29.
62
Ibidem , fls. 29 – 30v.
63
O facto de aparecerem nesta parte refências a Frei Aleixo de Menezes na
terceira pessoa (fls. 29v e 30) permite-nos tirar esta conclusão. Repare-se que o autor
noutras partes do texto original utiliza sempre a primeira pessoa.
64
B.G.U.C., Cód. n.º 436 , f.30v.
65
Frei Francisco da Fonseca foi lente de Escoto a partir de 1617 (Cf. MACHADO,
Diogo Barbosa, Bibliotheca Lusitana Historica Critica e Cronnologica , Tomo II, Lisboa, Of.
24
O único elemento «interno» identificador claro da autoria deste
manuscrito esclarece ter sido escrito na Índia por um “cronista” desconhecido
que foi prior do Convento de Nossa Senhora da Graça, em Torres Vedras, como
se pode ler na folha 2v.: um espaço textual em que o próprio autor, utilizando a
primeira pessoa66, descreve, na altura em que foi feito prior daquele convento,
a qualidade e o mau estado de conservação em que se encontrava um livro
contendo a vida de São Gonçalo, facto que o terá levado a compor uma
“biografia”67. No entanto, tudo leva a crer, secundando aliás o que, a propósito
do mesmo códice, foi defendido por Alberto Iria quando publicou a transcrição
do códice 112 da B.G.U.C.68, tratar-se de um texto da autoria de Frei Aleixo de
Menezes que foi precisamente prior do Convento de Nossa Senhora da Graça
de Torres Vedras entre 1588 e 1590.69 No entanto, a comparação da letra deste
códice coimbrão com textos da autoria comprovada de Frei Aleixo de Menezes
de Ignacio Rodrigues, 1747, p. 146; FERREIRA, Francisco Leitão, Alphabeto dos Lentes
da Insigne Universidade de Coimbra desde 1537 em diante , Coimbra, Universidade de
Coimbra, 1937, p. 25). Frei Manuel Lacerda foi lente de Durando entre 1617 e 1633 (Cf.
MACHADO, Diogo Barbosa, ob. cit. , Tomo III, Lisboa, Of. de Ignacio Rodrigues, 1752, p.
292; FERREIRA, Francisco Leitão, ob. cit. , p. 42).
66
Esta referência à utilização da primeira pessoa parece importante porquanto
na folha 29 v. as referências a Fr. Aleixo de Menezes aparecem na terceira pessoa,
indicando que «foi pregador de Filipe I de Portugal e ultimamente Arcebispo de Goa»,
sintaxe que, por apontar para o facto de Frei Aleixo de Menezes ocupar ainda, à data da
inserção deste acrescento ao texto original, o cargo de Arcebispo de Goa, constitui mais
um elemento que vai ao encontro da datação da feitura deste códice por nós defendida
pelos motivos que adiante referiremos.
67
A noção de “biografia” que frequenta este trabalho não comunica com o
conceito actual comunmente consagrado de recolha factual documentada. Antes
convoca o que se pode designar por “representação biográfica”, categoria
epistemológica que, não afastando a utilização de estratégias de tipo historiográfico por
parte dos autores, constitui um significativo esforço, quase retórico, frequente no
discurso hagiográfico no sentido de apresentar ao leitor um percurso de vida modelar e,
geralmente, indiciador de sinais precoces de santidade.
68
IRIA, Alberto, Treslado da Portentosa Vida de S. Gonçalo de Lagos, Lagos,
1964, p. 29.
69
ALONSO, Carlos, Alejo de Menezes, O.S.A. (1559-1617). Arzobispo de Goa
(1595-1612). Estudio biográfico, Valladolid, Estudio Augustiniano, 1992, p. 18.
25
permite-nos, com segurança, afirmar não se tratar de um autógrafo seu. Trata-
se de uma dimensão autoral corroborada pelas informações fornecidas pela
introdução do manuscrito, sublinhando que do volume original seriam
realizadas cópias quer para a província de Portugal dos agostinhos quer para a
sua congregação da Índia, local onde o texto original foi indubitavelmente
escrito70.
Não sabemos rigorosamente se este códice, ou o seu original,
corresponde ao que na Bibliotheca Lusitana aparece referenciado com o
título de Vidas dos Religiosos modernos que floreceram nesta provincia 71 e
que, tendo provavelmente integrado a biblioteca de Jorge Cardoso inserto
nos dois tomos de Santos da Ordem eremitica de S. Agostinho 72, o
Agiologio refere como «trattado, que nos deixou dos varões em santidade
da Eremitica familia Augustiniana 73», ou «Catal. Dos Sanctos da Ordem» 74.
Contudo, várias citações de autores que convocam os escritos do Arcebispo
de Goa alimentam a dúvida quanto à possibilidade de este texto não
corresponder ao que acima referimos. Dado que, como se referiu, não
estamos perante o original, temos, pelos motivos a seguir assinalados, que
considerar a possibilidade do códice manuscrito de Coimbra poder ser uma
cópia imperfeita que viajou desde a Índia para a Província dos agostinhos
portugueses ou que se copiou integralmente em ambiente de escrivania
metropolitana.
D. Rodrigo da Cunha, na segunda parte da Historia Ecclesiastica dos
Arcebispos de Braga, e dos Santos, e Varoens illustres, que florecerão
neste Arcebispado , assinala que Frei Aleixo de Menezes num «liuro
[manuscrito] das vidas dos Religiosos modernos, que na Religiaõ de S.
Agostinho da Prouincia de Portugal florecerão em virtudes, e vida religiosa
70
B.G.U.C., Cód. n.º 436, f. 2
71
MACHADO, Diogo Barboza, ob. cit., I, p. 91.
72
FERNANDES, Maria de Lurdes Correia, A biblioteca de Jorge Cardoso (1669),
autor do Agiologio Lusitano. Cultura, erudição e sentimento religioso no Portugal
Moderno, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2000, p. 232.
73
CARDOSO, Jorge, ob. cit. , I, p.144.
74
Idem, ibidem , p. 176.
26
[fala de] Frei Rafael da Madre de Deos, natural de Vila do Conde, que em
Goa tomou o habito, e foi morto pella sua fè na Sunda em 3. de Outubro de
1605» 75. Apesar de não sabermos se se trata do mesmo manuscrito, o certo
é que no códice 436 não consta o nome deste religioso.
Paralelamente, alguns dados fixados por Jorge Cardoso relativamente
às fontes que utilizou para escrever as vidas de alguns religiosos
agostinhos suscitam-nos algumas dúvidas para as quais, à falta de nova
documentação, ainda não temos resposta. Assim, na notícia que o Agiológio
Lusitano dedica a Frei Agostinho da Graça, Jorge Cardoso refere que as
suas acções se encontram escritas «no livro m. s. que [Al. Men.] deixou dos
varões santos desta Província» 76. Ora no ms. 436 apenas constam pouco
mais de duas linhas acerca de Frei Agostinho da Graça 77 e encontram-se
precisamente na parte que se supõe não ser, como atrás referimos, da
autoria do Arcebispo de Goa. Outro caso que nos conduz a conclusões
semelhantes descobre-se quando novamente o Agiologio Lusitano afirma
que a vida de Frei Gaspar das Chagas mereceu «ter por cronista de suas
prerogatiuas, i excellencias o illustrissimo Primaz D. Fr. Alexo de Menezes
da mesma Ordẽ» 78. Ora, no códice 436 nada consta deste religioso
agostinho.
Se estas discrepâncias poderiam, à partida, levar-nos a pôr em causa
a autoria do seu original, são precisamente os textos que Frei Duarte
Pacheco 79 e Frei António da Purificação 80 dedicam à vida de S. Gonçalo de
Lagos onde é de sublinhar a estreita dependência devida ao de Aleixo de
Menezes, que ainda mais reforçam a atribuição defendida 81.
75
Dom Rodrigo da Cunha, Historia Eclesiástica dos Arcebispos de Braga .
Reprodução fac-similada com nota de apresentação de José Marques, Vol. II, Braga,
[s.n.], 1989, p. 447.
76
CARDOSO, Jorge, ob. cit., I, p. 381.
77
B.G.U.C., Cód. n.º 436, f. 30.
78
CARDOSO, Jorge, ob. cit. , II, pp. 419-420; 426e.
79
PACHECO, Duarte, ob. cit. , f. 186v.
80
PURIFICAÇÃO, Frei António, ob. cit., II, f.277.
81
Estas aparentes discrepâncias permitem-nos conhecer algo acerca da
“economia” da produçao heurística do próprio Agiológio , sendo esta ideia alicerçada
27
Considerando que os aditamentos encontrados entre as folhas 29 a
30v não são, como atrás referimos, da autoria de Frei Aleixo de Menezes e
tendo em conta os dados relativos aos religiosos nelas referidos, podemos
concluir que a elaboração do códice ocorreu sem qualquer dúvida entre
1599 e 1609. A data de 1599 é apresentada como limite inferior dado o
facto de ser na f. 29v assinalado Frei Jorge Queimado como Bispo de Fez
(1599 – 1618). Na mesma folha também se pode ler que Frei Agostinho de
Castro «foi ultimamente arcebispo de Braga primas de Espanha», cargo que
sabemos ter sido por ele ocupado entre 1589 e 1609. Infere-se, assim, que
o original, dado ter sido escrito na Índia, terá naturalmente sido escrito
entre Setembro de 1595, altura em que o seu autor chegou àquele
continente 82, e 1598.
De todos os biografados neste importante códice manuscrito, Frei
Gonçalo é, sem dúvida, apesar do seu segundo lugar, o religioso agostinho
que merece maior atenção do autor, ocupando a sua notícia cerca de nove
folhas e meia divididas em sete capítulos de nítido ressaibo hagiográfico:
pelo facto de Jorge Cardoso, nas diversas referências que faz ao texto manuscrito do
Arcebispo de Goa, utilizar diversas designações, isto apesar de o mesmo ter feito parte
da sua biblioteca (cf. FERNANDES, Maria de Lurdes Correia, ob. cit. , p. 232.
82
SANTO ANTÓNIO, Frei José de, Flos Sanctorum Augustiniano , II, Lisboa, Off.
da Musica, 1723, p. 550; ALONSO, Carlos, Alejo de Menezes, O.S.A.. Arzobispo de Goa
(1595 – 1612). Estudio biográfico , Valladolid, Estudio Augustiniano, 1992, p. 29.
83
Cod. nº 436, B.G.U.C., fls. 3 – 4v.
84
Idem, ibidem , fls. 4v – 5v.
28
- «Do exercicio de ensinar os trabalhadores que o servo de
Deus Frei Gonçalo sendo prior de Torres Vedras e dum notavel
caso que nesse tempo lhe aconteceo» 85;
- «De huma molher segua a quem o servo de Deus São
Gonçalo deu vista e da sua gloriosa morte» 86;
- «Das uezes que foi tresladado o corpo de São gonçalo e do
milagre que fez quando se treladou o seu sepulcro» 87;
- «De como Saõ Gonçalo apareceo depois de sua morte a
muitas peçoas que se lhe encomendarão acodindo a suas
neçeçidades» 88;
- «Doutros milagres do glorioso São Gonçalo»89.
85
Idem, ibidem , fls. 5v – 7v.
86
Idem, ibidem , fls. 7v – 9.
87
Idem, ibidem , fls. 9 – 10.
88
Idem, ibidem , fls. 10 – 11.
89
Idem, ibidem , fls. 11 – 11v.
90
Em 1964, na sequência das comemorações gonçalinas que se realizaram em
Lagos na abertura da década, seria novamente publicado com o título: Treslado da
Portentosa Vida de S. Gonçalo de Lagos por D. Frei Aleixo de Menezes. Com um
Comentário de Alberto Iria , Lagos, Comissão Executiva das Comemorações do VI
Centenário de S. Gonçalo de Lagos, 1964.
91
MARTINS, Mário, Peregrinações e Livros de Milagres na Nossa Idade Média ,
Lisboa, Edições “Brotéria”, 1957, p. 26.
29
de 1604. Na margem esquerda da primeira folha deste manuscrito pode ler-se,
com letra semelhante à que se encontra na segunda folha de guarda do códice
nº 436, atribuída por Alberto Iria ao bibliotecário Simões de Castro 92, o seguinte
apontamento: «Pode ver-se em letra mais antiga, e com algumas variantes, no
vol. ms. n.º 436 da Bibliothª da Unide. de Coimbra». De facto as semelhanças
entre um e outro manuscritos são notáveis, permitindo com toda segurança
afirmar que um é cópia quase integral do texto identificado com o título «Do
beato gonsalo de Lagos» que se encontra naquele códice entre as folhas 2 v. e
11 v.
Quando atrás nos debruçámos sobre o códice nº 436, datamos a sua
produção entre os anos 1599 e 1609. Referimos também que a encadernação e
as folhas de guarda não são da época, pelo que seria de considerar a
possibilidade de não estar completo. O título do códice 112 refere que o original
foi escrito no ano de 1604. Ora, caso o original tenha sido o códice 436, ou
outro texto semelhante, nada, pelas razões já apontadas, autoriza que se
considere aquela data93, levantando-se desta forma a hipótese de o traslado ter
sido feito a partir de um outro documento muito idêntico ao códice nº 436, de
que este seria inevitavelmente cópia. Esta ideia não parece ser de desprezar
dadas algumas discrepâncias cronológicas entre os dois códices. A primeira,
embora possa tratar-se de mero lapso do copista, diz respeito ao dia da morte
do santo: apesar de no manuscrito seiscentista estar indicado por extenso o dia
quinze de Outubro94, a cópia do século XVIII referencia o dia dezasseis95. Outro
caso, talvez mais significativo, relaciona-se com um milagre em que são
beneficiados os mareantes de uma caravela em Lagos, sublinhando-se uma
92
Cf. nota 45.
93
Esta ideia seria, depois do nosso contacto com os dois códices, consolidada
pela consulta do Processo da Fama de Santidade... onde se encontram sólidas
referências epistolares relativas ao facto de o texto original ter sido enviado para a
Província de Portugal em 1604. (Cf. Processo da Fama de Santidade Virtude, e
Milagres... , Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, f. 239).
94
B.G.U.C., Cód. n.º 436, f. 8v.
95
B.G.U.C., Cód. n.º 112, f. 22v.
30
evidente disparidade: o códice 112 96 situa-o no ano de 1508 ao passo que no
43697 o mesmo milagre é datado de 1570. Ora, estando esta última data escrita
por extenso, parece-nos razoável afastar a possível explicação de erro de
leitura. Acresce que se Duarte Pacheco 98 segue a data que se encontra no
códice 436, já Frei António da Purificação na Chronica99 situa o mesmo milagre
no ano de 1508, podendo daqui inferir-se também a possibilidade de o autor do
traslado do século XVIII, caso tenha utilizado o códice referido, ter procedido à
sua correcção com base no trabalho cronístico de Purificação, hipótese que nos
parece mais provável dado que no Processo da Fama de Santidade... se
encontra uma cópia integral do texto do códice nº 112100. Independentemente
destes aspectos, confirmando a preocupação, desde o século XVII, com o
estabelecimento de uma biografia o mais rigorosa possível, importa para o
presente estudo enquadrar a produção deste traslado num movimento de
confirmação devocional, contemporânea, ainda que sem dados precisos que
nos informem da sua periodização e contextos rigorosos.
96
Idem, ibidem , f. 30.
97
B.G.U.C., Cód n.º 436, f. 10 v.
98
PACHECO, Frei Duarte, ob. cit., f. 178.
99
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 285v.
100
Acerca das datas aqui apresentadas, tudo indica que por parte dos seus
autores poderá ter havido uma confusão entre o milagre referido e um outro que, num
contexto semelhante, envolve um sobrinho de Frei Gonçalo, Diogo Rodrigues. O
instrumento de autenticação do milagre em que foram beneficiados os mareantes de
Lagos data de 1489, tendo o relator, Frei Lionel, afirmado que havia ocorrido havia
cerca de vinte anos (Cf. Processo da Fama de Santidade Virtude, e Milagres... , Arq. Sec.
Vaticano, Cong. Riti, Proc. n.º 3335, fls. 199). O milagre que envolveu Diogo Rodrigues,
também numa situação de naufrágio, foi autenticado em 1510 tendo sido declarado
pelo próprio que havia ocorrido cerca de dois meses antes (Cf. Idem, ibidem , fls. 212v –
214). Assim, poderá configurar-se a hipótese de por parte do cronista ter havido uma
má leitura da expressão «dois meses».
31
Catorze anos antes de ser publicada a segunda parte da sua grande
Chronica 101dos agostinhos portugueses, Frei António da Purificação na sua
não menos importante Chronologia , na parte respeitante ao décimo quinto
dia do mês de Outubro, contrastando com o que naquela obra nos é
oferecido, fixava-nos a seguinte informação sobre S. Gonçalo de Lagos:
32
António da Purificação. Como é afirmado pelo próprio autor, a empresa de
compor uma crónica da Província dos Eremitas de Santo Agostinho de
Portugal foi-lhe encomendada em 1633 104. O projecto inicial previa a
existência de quatro tomos: o primeiro, desde a fundação da Província até
ao ano de 870; o segundo, contemplando a história da reforma executada
por Frei Luís de Montoya, abrangeria o período compreendido entre aquela
data e o ano de 1569; o terceiro estender-se-ia até ao ano de 1636, altura
em que, por decisão de Urbano VIII , as eleições da Província passaram de
bienais a trienais, alteração merecedora da crítica do cronista que
procurava discutir o tema, limitando, por isso, esta parte cronística a
apenas 67 anos; o último volume trataria da presença da Ordem na «India
Oriental», desde a fundação da Congregação em 1572 até à época da
eleboração da crónica 105. Contudo, este plano acabaria por não ser
integralmente respeitado e a obra ficaria incompleta, tendo apenas passado
pelos caracteres tipográficos as duas primeiras partes, não ultrapassando a
crónica desta forma o ano de 1422. Purificação escreveu ainda uma terceira
parte que, na sua forma autógrafa manuscrita, terá alimentado a
investigação hagiográfica de Jorge Cardoso, nomeadamente para poder
relatar a história «maravilhosa» de um sacrário com uma relíquia do Santo
Lenho existente no Mosteiro de Cete 106. A ter existido, em redacção
completa ou em apontamentos dispersos, esta terceira parte da crónica dos
agostinhos não parece ter conseguido chegar até nós 107. Uma situação que,
apesar dos limites cronológicos medievais, não invalida o trabalho
principaes lugares da Benedictina Lusitana , Parte II, Lisboa, Domingos Lopes Roza,
1656, fls. 266v. – 293v.
104
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit. , I, f.20v.
105
Idem, ibidem , f. 22.
106
CARDOSO, Jorge, ob.cit. , III, p.54.
107
Além dos dados fornecidos pelo próprio Frei António da Purificação no
«Prologo...» da primeira parte da Chronica que atrás referimos, a referência cardosiana
foi a única frequentada por nós. Nem Barbosa Machado nem Inocêncio lhe fazem
qualquer alusão. Por outro lado, no trabalho de Maria de Lurdes Correia Fernandes
acerca da biblioteca do autor do Agiologio apenas são referenciadas as partes
publicadas (Cf. FERNANDES, Maria de Lurdes Correia, ob. cit. , p. 113).
33
monumental de Frei António da Purificação, absolutamente pioneiro e
original no espaço cultural de uma Ordem que, até à sua produção
cronística, tinha conhecido vários religiosos que haviam procedido à recolha
de documentos espalhados pelas diversos conventos, mas compilando
apenas trabalhos sobretudo de natureza biográfica sem que deles saísse
uma crónica geral relativa à Província Portuguesa do Eremitas de Santo
Agostinho.
Na introdução da biografia de Frei Gonçalo, o cronista, de uma forma
que depois de frequentada a obra se verifica ir pouco além de um exercício
retórico, convoca, em jeito de argumento de autoridade, um rol
significativo de autores consagrados da época, a que se somam os arquivos
que pressupomos serem fundamentalmente os do Cartório do Convento de
Nossa Senhora da Graça de Torres Vedras:
34
autênticos da vida, e milagres deste Santo, como adiante em
seu lugar notaremos. Destes Authores, e Archivos tiraremos
fielmente o que dissermos: posto que sempresenta a menor
parte do muyto, que puderamos dizer: porque se perderão
algũs dos mais antigos memoriaes authenticos [...]» 108.
108
Frei António da Purificação, ob. cit. , II, fls. 266v. – 267.
109
PAMPHILO, Frei Ioseph, Chronica Ordinis Fratum Eremitarum Sancti
Augustini , Roma, Georgii Ferrarii, 1581, p. 134, apud Processo da Fama de Santidade
Virtudes, e Milagres... , Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, f. 247v.
110
MARIETA, Frei Juan, Historia Ecclesiastica de todos los Santos de Espanha ,
Cuenca, en Caza de Pedro del Valle Impressor, 1596, apud Processo da Fama de
Santidade Virtudes, e Milagres... , Arquivo Secreto do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335, f. 247v.
35
seguir, em 1600, Frei Simpliciano de Tirrinis faz um referência a Frei Gonçalo de
Lagos. Mas assinalando somente, à semelhança de José Pamphilo, a sua
condição de beato e respectiva nacionalidade 111. Continuando a seguir esta
sequência cronológica, descobrimos Fr. Pedro Calvo na Defensam das
lagrimas dos justos... , no capitulo XII, editando uma «Breve summa de
algũns Santos e Santas da Sagrada Religião dos Eremitas do glorioso Padre
Santo Augustinho clarissimo lume da Igreja», informando que
111
SIMPLICIANO, Frei, Libro dele Gratie e Indulgenze concesse da N. S. Papa
Gregorio 13, et altri Sommi Pont. alla Compag. de Centuati di S. Agost. ..., 1600, f. 83,
apud Processo da Fama de Santidade Virtudes, e Milagres... , Arq. Sec. do Vaticano,
Cong. Riti, Processus n.º 3335, f. 285.
112
CALVO, Fr. Pedro, Defensam das lagrimas dos justos perseguidos e das
sagradas religioens fruto das lagrimas de Christo , Lisboa, Pedro Craesbeeck, 1618, fls.
65 – 65v. Saliente-se aqui que a obra do dominicano portuense, como assinalou José
Adriano de Freitas Carvalho, terá sido feita de forma algo apressada por necessidade de
resposta a Les Misères du Temps , obra provavelmente de origem reformista, pelo que a
intencionalidade de construção hagiográfica não está nela presente (Cf. CARVALHO,
José Adriano de Freitas, «O Portuense Fr. Pedro Calvo, O. P., e a Polémica sobre as
Ordens Religiosas nos Começos do Século XVII», Revista de História. Actas do Colóquio
“O Porto na Época Moderna” , Vol. III, Porto, Instituto Nacional de Investigação
Científica / Centro de História da Universidade do Porto, 1980, pp. 9 – 10).
36
Estamos perante mais um autor que, certamente, como se pode ver
pela data atribuída à morte de Frei Gonçalo, seguiu os dados fornecidos
pelo Arcebispo de Goa, constituindo desta forma mais um elemento que
comprova a autoria do texto do códice manuscrito guardado actualmente
em Coimbra.
Até à segunda parte da Chronica de Frei António da Purificação,
estampada em 1656, como adiante referiremos, todos os autores
concordam em fixar a morte de S. Gonçalo de Lagos em 1445, na
sequência do que foi indicado por Frei Aleixo de Menezes. Arrola-se uma
única excepção quando, em 1651, Sebastian Portilho escreve que o
agostinho português «partió su bendita alma a gozar de Dios á 15 de
Octubre del año de 1422 113».
Jorge Cardoso, antes ainda da compilação e edição do monumental
Agiológio Lusitano , entendeu incluir na parte final do seu Officio Menor dos
Sanctos de Portugal uma sumária informação relativa a uma série de
personagens, religiosos ou não, merecedores da mesma veneração dos
beatificados ou canonizados 114:
113
AGUILLAR, Sebastian Portilho y, Chronica Espiritual Augustiniana , Madrid,
Imprenta del Venerable P. Fray Alonso de Orosco, 1651 apud Processo da Fama de
Santidade Virtudes, e Milagres... , Arquivo Secreto do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335, f. 306v.
114
Nas «Advertencias necessarias» do primeiro tomo do Agiologio ..., p. 52, Jorge
Cardoso informa mesmo o leitor que para além dos canonizados e beatificados
acrescenta mais três categorias: a «dos que (posto que não estão Canonizados, nem
Beatificados) forao de esclarecida virtude, e acreditados do ceo com marauilhas; [...
a ...] dos que (dado que não subirão a tanta excellencia) forão de conhecida, i exemplar
vida, dignos de se proporẽ para imitação; [finalmente, a] dos que padecendo pela Fé
Catholica, derramarão seu sangue, e derão a vida por Christo, os quaes vulgarmente se
chamão Martyres.»
37
santidade, os quaes antes, e depois da morte honrou Deos
com milagres, em tanto que se Portugal não ouuera faltado à
deuoção, solicitude, e diligencia, que para os qualificar, com o
testemunho irrefragauel da Igreja se requere, puderão estar
já canonizados, commo são os sanctos Infantes Dom
Fernando, que morreo cattivo em Berbere, e Dona Ioanna
filha d’el Rei Dom Affonso V. Freira da Ordem de S. Domingos,
o Beato Frei Bernardo da mesma Ordem, Mestre dos sanctos
meninos de Santarem: o B. Thadeu que por seus milagres he
venerado dos Mouros, e S. Gonçalo de Lagos, ambos Eremitas
de S. August. S. Espinella de Arouca Religiosa de Cister: Frei
Pedro Porteiro de S. Domingos de Euora; e o Sancto e
Apostolico prelado Frei Bartholomeu dos Martyres da mesma
Ordem Arcebispo de Braga: e outros sem numero, que em
todas idades, e em conquistas nossas florecerão, dos quaes
com grande gloria deste Reino, muitos derramaraõ seu sangue
pela confissão da Feé Catholica.» 115
38
várias canonizações de santos espanhóis e, logo a seguir, em 1625, se ter
concretizado a canonização da rainha Santa Isabel, mas procurando muitos
textos e autores celebrá-la enquanto santa portuguesa, abrindo, assim,
avenidas para outros processos oficiais de santificação. Este programa
também ideológico sai reforçado com a estratégia hagiográfica vazada no
Agiologio Lusitano, concorrendo para reforçar definitivamente a ideia de
que o registo da vida dos «nossos» santos contribuiria para o
engrandecimento da pátria:
117
CARDOSO, Jorge, «A Quem Ler», Agiologio Lusitano... , I, Lisboa, na Off.
Craesbeekiana, 1652, p. VI (não numerada).
39
sepultados no esquecimento, com que carecia Portugal, não
só da honra, e gloria , que lhe accresce, por gèrar tam pios, e
generosos filhos [...] com que os Portugueses se animem
(mediante a graça divina) imitalos porque se persuadem muito
as vidas dos Sanctos estrangeiros, muito mais persuadem as
modernas dos naturaes, e conhecidos »118.
118
CARDOSO, Jorge, «Licenças», ob. cit. , II, p. II (não numerada).
119
PACHECO, Frei Duarte, Epítome da Vida Apostólica, e Milagres de S. Thomas
de Villa Nova Arcebispo de Valença, Exemplo de Prelados, & pay de pobres, da Ordem
nosso Padre Santo Agostinho. Com hum Tratado da Vida do venerauel P. Frey Luis de
Montoya, Mestre que foy dos nouiços em Salamanca, sendo o Glorioso S. Prior delle; &
assi mais de algũs seruos de Deos que deu à Igreja assi là, como nesta Prouincia sendo
Prelado della , Lisboa, Pedro Craesbeeck, 1629.
120
Idem, ibidem, f. 151 v.
40
Estas biografias seguem de perto o texto coimbrão do códice nº 436,
afirmando o autor no final deste Livro IIII não ter feito mais que «epilogalo
de hum livro que deixou escrito o Illustrissimo, e Reuerendissimo senhor
Dom Fr. Aleixo de Menezes, Arcebispo de Braga [...] e de outro liuro feito
pello padre Fr. Ioão de S. Ioseph, como nele se pode ver mais
largamente» 121. Trata-se de mais um testemunho confirmando a autoria do
texto original copiado para o referido códice. Acresce ainda que esta
informação sublinha ter sido da autoria de Frei João de São José a biografia
gonçalina mais completa. O desconhecimento, perda ou mesmo a
inexistência de uma obra organizada, como já foi por nós considerado como
provável, não nos permite confirmar a afirmação deste autor. No entanto,
dado que um dos milagres descritos por Frei Duarte Pacheco não frequenta
as demais biografias 122, somos obrigados a concluir que, pelo menos, Frei
João de São José estava na posse de algum outro material hagiográfico.
Frei Aleixo de Menezes, tal como João de França de Brito, são, além
das fontes já assinaladas, os principais inspiradores do texto cronístico de
Purificação. Apesar de serem apenas referidos pelo autor no interior do
próprio texto, resulta evidente, pela estrutura da narrativa e pela
semelhança dos elementos descritivos, que o cronista se socorreu
essencialmente dos seus escritos. Salvaguarde-se a possibilidade de essa
“inspiração” estreita – quase uma imitatio ao gosto barroco – ter sido
igualmente bebida em Frei Duarte Pacheco ou no texto manuscrito de
Jerónimo Román. O que, como já foi referido quando nos debruçámos
sobre estes textos, obriga incontornavelmente a filiar as suas notícias sobre
Frei Gonçalo de Lagos na obra do Arcebispo de Goa, mas que, na obra de
Purificação, apenas é referido com o propósito de, recorrendo ao seu
testemunho, o cronista atestar que alguns documentos relativos aos
milagres do santo se perderam ou destruíram por incúria dos religiosos do
convento, tendo mesmo acontecido que um livro de milagres depois de ter
121
Idem, ibidem , f. 186 v.
122
Idem, ibidem , f. 175.
41
sido emprestado a uma doente nunca mais haver sido devolvido 123. Embora
Purificação, ao assinalar estes factos, refira o cap. I da vida gonçalina
escrita por Aleixo de Menezes, copiada para o cód. nº 436, os eventos
assinalados figuram não nesse capítulo, mas no prólogo da vida do santo 124.
Esta situação leva-nos naturalmente a considerar que o autor da Chronica
não frequentou este códice coimbrão, conseguindo ter acesso ao
manuscrito original ou uma outra cópia. De admitir parece também a
possibilidade de Purificação ter utilizado a primeira versão do texto do
Arcebispo de Goa que, como se sublinhou, terá sido entregue a Jerónimo
Román. Não deixe de se recordar que, de acordo com testemunho
cronístico, Aleixo de Menezes na sua introdução informa que, depois de ter
dado a história da vida de S. Gonçalo de Lagos a Jerónimo Román,
temendo pela sua perda, decidiu escrever de «memória» a sua versão
original. 125
Investigando com mais atenção os principais investimentos
organizados por Frei António da Purificação na construção da hagiografia
exemplar de S. Gonçalo de Lagos, para além, como adiante se verá, de
enriquecer a vida do santo com a apresentação de novos milagres 126, a
alguns dos quais esteve, aliás, associado, e de projectar no santo
elementos da ascética e da espiritualidade barrocas, a Chrónica revela
originalmente o facto do beato ter sido, por decisão do Senado da Câmara,
eleito padroeiro de Torres Vedras. Na origem dessa eleição esteve, diz o
cronista, uma carta escrita no Algarve por D. João II, em 26 de Setembro
de 1495, à Câmara daquela vila em que o monarca louvava o santo pelos
seus milagres e a vila por ser possuidora de tão importantes relíquias: 127
123
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit. , II, f. 277.
124
B.G.U.C., Cód, n.º436, f. 2v.
125
Idem, ibidem.
126
De um conjunto de treze iniciais, assinalados no texto de João de França de
Brito, passa-se aqui para quarenta.
127
Não é estranha à época e à espiritualidade de D. Leonor a importância do
culto das relíquias, como o atesta Frei Francisco Santa Maria ( Anno Historico, Diário
Portuguêz, Noticia abreviada de pessoas grandes e cousas notaveis de Portugal , Lisboa,
42
«Depois estando el Rey Dom Ioaõ o segundo no Algarue
pellos annos de nosso Redemptor Iesu Christo de mil
quatrocentos e nouẽnta e cinco. E ouuindo a fama, que la
corria dos milagres deste sancto, e os que fazia nos naturaes
daquelle Reyno, em q elle nacera, escreueo hũa carta em
vinte e seis deSettembro à Camara de Torres Vedras, cheia de
louvores do sancto, chamandolhe pouo venturoso, pois
gozaua o corpo de hum sancto milagroso. E desta carta tomou
aquella villa motiuo para logo o eleger por seu Padroeiro, e
defensor. Assi consta de hum assento da mesma Camara
lançado no liuro, que se intitula Real Extravagante : a folhas
39. e se poz terceira fechadura no cofre das sanctas reliquias,
de cuja chaue se entregou ao Vereador mais antigo daquella
Villa.» 128
Off. de Joseph Lopes Ferreyra, 1714, tomo III, p. 9) ao relatar a chegada a Portugal do
corpo de Santa Auta: «No [dia 3 de Setembro], anno de 1517, entrou pela barra de
Lisboa hum thezouro mais precioso, que quantos tributou o Oriente ao Tejo: Este foi o
corpo de Sante Auta , huma das doze mil Virgens, que a Rainha Dona Leonor, mulher
de ElRey D. João II mandara pedir ao Emperaador Maximiliano I seu primo como irmão:
Venera-se o sagrado corpo da Cidade de Colonia, donde o Emperador o remeteo para
Portugal».
128
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit , II, f. 278v.
129
A invenção de documentação, dando origem aos chamados “falsos históricos”
não seria um caso inédito. Veja-se a título de exemplo, o caso de F. Miguel Contreiras
relativamente à Misericórdia. Sobre este assunto visite-se a obra de SOUSA, Ivo
Carneiro de, Da Descoberta da Misericórdia à Fundação das Misericórdias (1498 –
1525) , Porto, Granito, 1999, p. 117 e ss.
43
«livro» intitulado «Real Extravagante»). Sabe-se, no entanto, que na data
apontada o rei estava em Alcáçovas de onde partiu em direcção ao Algarve
apenas no início do mês de Outubro, 130 tendo chegado ao Alvor apenas no
dia 17 de Outubro já o dia ia avançado 131. Por outro lado, da presença do
rei no Algarve por essa altura 132, não se encontram nas obras cronísticas de
Garcia de Resende ou Rui de Pina, malgrado sejam abundantes as
referências a Lagos, qualquer alusão a S. Gonçalo. Recuando no tempo
cerca de quatro anos, depois do acidente que vitimou o príncipe D. Afonso,
encontramos D. João II e D. Leonor no Varatojo, sem que exista qualquer
referência documental indiciando uma passagem pelo Convento de Nossa
Senhora da Graça. 133 Esta teria sido obrigatória caso existisse a fama de
santidade de S. Gonçalo de Lagos, impondo a frequência do seu culto por
um «casal» régio em dramática perseguição da expiação pela morte do
príncipe que iria unir toda a Península sob a coroa de um monarca
130
SERRÃO, Joaquim Veríssimo, Itinerários de El-Rei D. João II (1481 – 1595) ,
Lisboa, Academia Portuguesa de História, 1993, p. 569; Rui de Pina, Crónica de D. João
II , Lisboa, Publicações Alfa, 1989, p.147; Garcia de Resende, Crónica de D. João II e
Miscelânea , Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1991, edição fac-similada da
nona edição conforme a de 1798, p. 276.
131
PINA, Rui de, ob. cit., p. 148; RESENDE, Garcia de, ob. cit, , p. 277.
132
PINA, Rui de, ob. cit., p. 147 - 152; RESENDE, Garcia de, ob. cit., pp. 277-
283.
133
PINA, Rui de, ob. cit., p.111; RESENDE, Garcia de, ob. cit, , p. 205. Esta
estada é também descrita por Frei Manuel de Maria Santíssima numa passagem que
ilustra bem a forte ligação aos Observantes acima referida: «O Senhor Rei D. João
segundo que com o reino herdou a piedade e affecto de seu pai a Varatojo, favoreceu,
protegeo e visitou este convento na occasião da sua maior afflição. Achava-se
vivamente magoado este Monarca, e a Rainha sua esposa pelo desastre do Principe D.
Affõso seu filho, de pouco casado, e morto infelismente da queda de hũ cavalo nos
cãpos de Santarem, elle e a Rainha para mitigarem a sua dor barcarão logo o sagrado
retiro de Varatojo, onde assistindo por alguns dias com os Religiosos lhes pedirão
oraçoẽs para acertado governo dos seus vassalos, e pela alma de seu filho, socorrendo
liberais e piedosos as necessidades do convẽto» (SANTÍSSIMA, Manuel de Maria,
Historia do Convento e Seminario do Varatojo... , B.N., Cód. n.º 1422, pp. 83-84).
Joaquim Veríssimo Serrão ( ob. cit., p. 442) detecta a presença dos monarcas no
convento do Varatojo entre os dias 21 e 23 de Setembro de 1491.
44
português. Significativo é também o facto de cerca de dois anos antes da
arranjada carta joanina, em 1493, estando o monarca doente em Torres
Vedras, onde aliás passou larga temporada, tenha feito promessa de ir a pé
ao mosteiro de Santo António da Castanheira, da ordem de S. Francisco 134,
não se descobrindo qualquer referência documental pela visita ao santo
agostinho de Lagos.
Está também assinalada desde o final da década de oitenta do século
XV a proximidade de D. Leonor aos Observantes franciscanos que
forneceram os seus principais confessores e colaboradores 135. Não há
mesmo qualquer prova documental indicadora de qualquer protecção ou
devoção especial da rainha aos Eremitas de Santo Agostinho, sendo a sua
conhecida ligação a Frei João de Estremoz principalmente resultado de uma
preferência pessoal. A rainha protegeu dezenas de casas religiosas e
religiosos na região da Estremadura, dirigiu a sua caridade e mecenato
para os principais espaços de santidade e peregrinações desta região, mas
na sua documentação e correspondências não se descobre qualquer
atenção ainda que residual a S. Gonçalo de Lagos.
Sobre esta pretensa carta de D. João II, no processo destinado à
beatificação que, em 1760, se iniciou em Lagos incluiu o procurador da
Ordem um artigo com o objectivo de provar a sua existência 136. Contudo,
das dezasseis testemunhas inquiridas, apenas uma, o Sargento Manoel Dias
Ferreira, declarou «por leer, e ouvir, que estando neste Reyno El Rey D.
João 2º, e vendo os milagres, que obrava S. Gonçalo de Lagos, escrevera
134
RESENDE, Garcia de, ob. cit., p. 246.
135
SOUSA, Ivo Carneiro de, A Rainha D. Leonor (1458–1525). Poder,
Misericórdia, Religiosidade e Espiritualidade no Portugal do Renascimento, Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 662.
136
Processo de Fama de Santidade e Culto dado a hũa Reliquia de São Gonçalo
de Lagos da Ordem de Santo Agostinho feito nesta Cidade de Lagos Authoridade
ordinária por Delegação do Ex.mo, e R.mo Snor. Arcebispo do Reyno do Algarve, No
Anno de 1760 , Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3337, f. 14.
45
hũa carta á Villa de Torres Vedras, chamando-lhe povo ditozo por ter tal
thezouro» 137.
46
na obra notícias que frequentam algumas das peças processuais, destacando-se
algumas citações dos relatos de milagres atribuídos a João de França de Brito,
a renovação do voto feito pelo Senado da Câmara em 1760 e a setença do
próprio processo. Em 1778, caberia a Frei Pedro de Souza 145 fornecer ao público
a última produção hagiográfica gonçalina destinada a preparar a sua
canonização, como o próprio autor declara claramente 146, mas avisando o leitor
que nada haveria de escrever que não constasse noutros autores e nos
documentos do processo de beatificação147.
Seguindo de perto a obra de Frei Manuel de Figueiredo, embora com
menos investimentos literários, a relevância do trabalho de Frei Pedro de
Souza reside no facto de, ainda que retirados das peças processuais,
apresentar a público dois elementos que não frequentam a literatura
anterior: primeiro, o ano de nascimento de S. Gonçalo, fixado
rigorosamente em 1360 148; segundo, à semelhança do tinha sido feito por
autores anteriores, mas completando as referências de Purificação (f. 278v)
à carta joanina de 26 de Setembro de 1495 dirigida à Câmara de Torres
Vedras, acrescenta-se um dos documentos que fazem parte do Processo da
Fama de Santidade... 149, concretamente uma certidão, encontrada no
145
SOUZA, Frei Pedro de, Compendio da Prodigiosa Vida, Exemplares Virtudes, e
Portentosos Milagres do Proto-Santo de todo o Reino do Algarve, e novo Thaumaturgo
de Portugal, o Glorioso S. Gonçalo de Lagos, da esclarecida Ordem do Grande Patriarca
Santo Agostinho, da antiquissima Provincia de Portugal. Do culto immemorial, e
diligencias para a sua Beatificação, e Canonização , Lisboa, Regia Officina Typografica,
1778.
146
«[...]agora que, depois de beatificado o Santo, se vai a tratar da sua
Canonização [...]» (SOUZA, Frei Pedro de, ob. cit., p. IV).
147
SOUZA, Frei Pedro de, ob. cit., p.V.
148
SOUZA, Frei Pedro de, ob. cit., p. 2. Foram várias as testemunhas assinalando
que o nascimento terá ocorrido por volta dos anos de 1360. O próprio Frei Manuel de
Figueiredo o fez muito embora nada tenha escrito na sua obra. Recorde-se que em
nenhum dos textos até aqui estudados se faz qualquer referência, nem sequer
relativamente aos factos mais importantes da sua vida, à idade do santo.
149
Processo da Fama de Santidade Virtudes, e Milagres do Servo de Deos Fr.
Gonçalo de Lagos da Ordem De S.to Agostinho. Concluido por Autoridade Ordinaria em
o anno de 1760. , Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, fls. 196 – 196v.
47
Convento da Graça, do assento em que o Senado elegeu o santo como
padroeiro da vila e decidiu a criação da sua confraria. O original, informa o
autor, havia sido queimado juntamente com todos os papéis do Cartório da
Câmara num incêndio 150. Assim, desta peça documental vetusta apenas se
conhece a transcrição apresentada nesta obra:
48
Lopes Procurador do Senado = e eu Antom Martim, Escrivom
do munto nobre Senado, que a escrevi, e assinei.=» 151.
151
SOUZA, Frei Pedro de, ob. cit., pp. 56-58.
49
II PARTE
50
Na relação do Homem com o sagrado, a oração é apenas uma faceta
de um universo comunicacional em que os gestos, mais ou menos
ritualizados e imbuídos de uma importante carga emocional, traduzem a
devoção e asseguram o contacto com o divino. No mundo da cristandade
latina, as diferentes formas de piedade foram destacando produções sociais
e cultuais de longa duração, mais do que plurisseculares, entre as quais se
impõem as peregrinações, as romarias e o culto das relíquias.
Manifestações religiosas e cultos progressivamente mais populares
acreditando que Deus, também por intermédio dos santos, se revelava
através de prodígios que, assumindo essas variadas formas estendendo-se
das aparições aos milagres 152, proporcionavam tanto protecções como
auxílios, expiações como libertações. A partir do século XIII, porém, os
153
milagres dominam os processos de santidade e de canonização oficiais ,
porque, como bem esclarece Jacques Le Goff, era preciso isolar tanto as
concorrências de pretensos taumaturgos como de todos os que, como
adivinhos ou feiticeiras, manipulavam um sagrado fora do controlo eclesial.
A Igreja cada vez mais a caminho de, com as cisões protestantes, se tornar
romana alarga canonicamente uma tendência para limitar o poder de certos
santos ao período posterior à sua morte, o que, concomitantemente, terá
conduzido a um relançamento do culto das suas próprias relíquias que, ao
serem tocadas, podiam concretizar o milagre 154.
152
Milagre, do latim miraculum , deriva do verbo mirari , isto é, admirar ou
admirar-se de qualquer coisa.
153
MUNIER, Fréderic, «Miracles», Claude Gauvard, Alain de Libera, Michel Zink
(dir. de), Dictionnaire du Moyen Âge , Paris, Quadrige/PUF, 2002, p. 927.
51
Para muitas das populações e grupos sociais que vivem e trabalham
na Europa Medieval e Moderna, estas maravilhas e prodígios, tantas vezes
ligadas a todos os fenómenos extraordinários que, do natural ao sideral,
escapam às suas categorias tradicionais de entendimento, perspectivam-se
frequentemente sob a atracção do milagre. Por isso, a grande maioria dos
milagres ligados à constelação de santidades oferecida pela Igreja católica
incide sobre domínios em que a fragilidade do homem é maior, mais vísivel
e imediata: o corpo. Os milagres consistem essencialmente em curas
muitas vezes operadas naqueles que são as vítimas privilegiadas da miséria
da época ou da impotência de uma medicina balançando entre o barbeiro e
o sangrador. Fundamentalmente taumatúrgica, a santidade do milagre
revela-se pela sua eficácia, já que, como sublinha André Vauchez, se o mal
do corpo é, à semelhança do pecado, algo de diabólico, a cura milagrosa só
pode ter origem divina, sendo prova bastante para demonstrar que o
intercessor está em contacto com Deus 155.
O milagre entendido como manifestação da intercepção divina e
condição de santidade carece de registo e divulgação. As autenticações
feitas por autoridade civil com base em prova testemunhal, os relatos dos
cronistas e memorialistas ou a tradição oral, são os processos mais comuns
em que assenta a transmissão dessas maravilhas que, depois, o poder da
Igreja seleccionará, organizará e tentará transformar canonicamente até se
consagrarem em ofícios, orações e imensas possibilidades de intercessão.
Mais do que serem utlizados simplesmente como exemplo a fornecer aos
fiéis para enaltecer aquele que viveu em odores de santidade, conferindo-
lhe dessa forma essa condição, estes relatos de milagres servem também,
ao mesmo tempo que definem uma “especialização” do santo, para fazer
sobressair algumas das suas qualidades que, depois, transformam espaços,
pessoas e memórias.
154
LE GOFF, Jacques, «O Homem Medieval», LE GOFF, Jacques (dir. de), O
Homem Medieval , Lisboa, Editorial Presença, 1989, p. 26.
155
VAUCHEZ, André, A Espiritualidade da Idade Média Ocidental. Séc. VIII –
XIII , Lisboa, Editorial Estampa, 1995, pp. 180-181.
52
Ao estudarmos o corpus da cronística e memórias hagiográficas de S.
Gonçalo de Lagos, destacamos essa construção hagiográfica fundamental
oferecida pela Chrónica de Frei António da Purificação que tinha ainda a
vantagem de associar as diversas tradições escritas com a sua própria
experiência vivida na sua condição de religioso. Compilação cronística e
experiência religiosa fazem também deste trabalho cronístico uma fonte
prioritária para o estudo da taumaturgia do beato agostinho. As memórias
do cronista serão ainda cruzadas com os instrumentos públicos cujos
traslados se encontram no processo de beatificação e canonização de S.
Gonçalo de Lagos 156, peças documentais até agora inéditas no nosso país
fixando elementos que clarificam ou, eventualmente, corrigem os relatos de
Frei António da Purificação. Refira-se também que a colecção de milagres
narrada por Purificação encontra em manuscrito seiscentista resumos e
apontamentos similares. 157 Estes breves textos manuscritos apresentam
algumas semelhanças formais com o texto do autor agostinho, acrescendo
que, na parte final, com letra diferente, embora também do século XVII, se
podem encontrar duas passagens em que o nome do cronista surge na
primeira pessoa, conquanto mais nada autorize se possa afirmar estarmos
perante um autógrafo do mesmo autor. Seja como for, investigando as
informações cronísticas, as peças do processo de beatificação e alguma
outra documentação complementar, torna-se possível fixar uma série
exaustiva de milagres gonçalinos.
156
Destes peças de autenticação judicial o que chegou até nós são os traslados
que se encontram no Processo da Fama de Santidade... entre as fls. 198v e 216v (Cf.
Processo da Fama de Santidade Virtudes, e Milagres do Servo de Deos Fr. Gonçalo de
Lagos da Ordem De S.to Agostinho. Concluido por Autoridade Ordinaria em o anno de
1760. , Arq. Sec. do vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, fls. 216v- 217). Estes por
sua foram feitos a partir de um outro datado de 25 de Outubro de 1553 por João de
França e Gonçalo Serrão, escrivãos da Provedoria da vila de Torres Vedras ( idem,
ibidem ) por ordem do Doutor Estêvão de Aguiar do Dezembargo do rei, provedor e
contador da sua fazenda e a requerimento de Frei António dos Anjos, Prior do Convento
de Torres Vedras ( Idem ibidem , fls. 197v – 198).
157
IAN/TT, Ms. da Livraria n.º 673.
53
Assim, neste conjunto de textos hagiográficos e documentos
processuais regista-se um total redondo de 40 milagres e maravilhas
situados cronologicamente entre o último terço do século XV e meados
XVII. Destes milagres, uma parte considerável (22) está associada
directamente ao culto das relíquias gonçalinas 158. Em menor número,
encontrámos dez que se relacionam com a invocação do santo, quatro com
a sua aparição e ainda alguns outros de mais difícil tipificação.
Os primeiros milagres que a cronística de Frei António da Purificação
apresenta aos seus devotos leitores têm claramente a função de elevar as
qualidades religiosas de Frei Gonçalo de Lagos na ordem da vida
conventual. Depois de descrever as suas exímias capacidades na escrita de
livros de coro , o cronista assinala o desvio do convento a que pertenciam,
Santarém e Lisboa, de dois desses livros que, por fazerem grande falta
tornaram à casa de origem por intercepção do santo. 159 Testemunhando o
zelo com que Frei Gonçalo geria os conventos de que foi prior, um outro
milagre refere-se a uma herdade que, tendo sido doada ao convento da
Lourinhã, foi reclamada, em 1436, pelo rei D. Duarte por considerar que
aqueles terrenos eram da coroa. A perda do documento que bastaria para
provar que aqueles terrenos não integravam o reguengo, fazia prever que a
resolução da contenda fosse desfavorável aos religiosos, até que, na altura
em que o procurador do convento procurava testemunhas da doação,
deparou com «hum minino lendo hũa escritura grande de pergaminho [que
era] a escritura que no conuento faltaua [...] assinada pello Sancto Frey
Gonçalo. E sem ver mais o minino (que deuia ser algum anjo) se veyo para
o Conuento» 160. Se pelo aumento dos bens do convento é assinalado o
mérito do seu prior, com esta aparição maravilhosa mais não se pretende
que sublinhar a especial protecção divina à Ordem, incluindo o seu
património fundiário, contrariando mesmo os mais altos poderes do século.
158
Neste número contam-se três casos em que a referência à terra como relíquia
nos é dada através da utilização das expressões “sepulcro” e “sepultura”.
159
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 270.
160
Idem, ibidem, fls. 272v – 273; I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º 673, f. 419
54
Muitos milagres gonçalinos dirigem-se para o mundo social e devoto
exterior às fronteiras e espaços conventuais. Assim, ilustrativo da
preocupação em apresentar a predestinação de Frei Gonçalo para a
condição de santidade, é o pedido feito por uma mulher de idade avançada
que havia cegado: «Padre Fr. Gonçalo, vos a todos os que vos pedem
fazeis merces; a todos dais saude, a todos remediais: so a mim que sou
velha, e pobre [...] não me quereis acodir , e darme vista nestes olhos ,
que o podeis fazer sò com me pores as mãos nelles, como fazeis a tantos
doentes...». A este pedido terá o prior respondido que não tinha tais
poderes e que com recurso à fé sararia mesmo que lavasse os olhos com
«agua de sardinhas», conselho que, credulamente seguido pela mulher,
resultou em cura 161. Um relato que especializa uma taumaturgia,
informando uma tipologia de prodígios que se recupera em muitas outras
intercessões milagrosas do santo agostinho em busca de outras tantas
especializações de grupos sociais transformados em grupos de devoção.
Uns mareantes de Lagos , por exemplo, foram salvos de um naufrágio
depois de invocarem o nome do santo que, em aparição, lhes recomendou
que «chamassem por nossa senhora da Graça [...] e fossem logo ao Reyno
de portugal à villa de Torres-Vedras, e naquelle mosteiro acharião seu
corpo sepultado; aonde lhes dessem os agradecimentos do beneficio que
lhes fizera por mandado de Deos» 162. Deste milagre foi feito, em 2 de
Agosto de 1489, a requerimento de Frei Lionel, então prior do convento,
instrumento público de autenticação 163 perante Antas Serveira, juiz
ordinário local. O requerente declarou «pode ora aver vinte anos pouco
mais ou menos que [compareceram no convento] três homẽs e hum moço
com elles, que erão da villa de lagos [...] os quais vierão em romaria ao
dito Moesteiro [...] notificando a todos ho milagre que o Benaventurado
161
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 276.
162
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 284v.
163
Processo da Fama de Santidade Virtudes, e Milagres do Servo de Deos Fr.
Gonçalo de Lagos da Ordem De S.to Agostinho. Concluido por Autoridade Ordinaria em
o anno de 1760. , Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, f. 198V.
55
Santo lhes fizera» 164. Foram apresentadas três testemunhas do relato
destes mareantes, tendo explicado Frei Lionel que, à data do sucedido, não
tinha sido feito qualquer memorial deste e doutros milagres por negligência
do prior da época. 165
Leonor de Menezes , «filha do Conde de Monsanto, Senhora de Vila
Verde, molher de Gonçaalo de Albuquerque, e may do Grãde Affõso de
Albuquerque 166 conquistador da India Oriental [...] estaua de todo surda de
ambos os ouuidos». Ouvindo falar dos milagres de S. Gonçalo deslocou-se
a Torres Vedras para fazer uma novena junto à sua sepultura. Feita a
oração introduziu nos ouvidos uns «papelinhos de terra della» e recuperou
a audição. Deixou «huma grossa esmolla ao conuento. E depois mandou
entregar aos mordomos da confraria quatro castiçaes de bronze grandes a
modo de tocheiras, e huma duzia de tochas pera a sepultura do sancto» 167.
O instrumento de autenticação deste milagre esclarece que foi feito a 12 de
Agosto de 1489, em Vila Verde, em casa de Gonçalo de Albuquerque,
membro do Conselho do Rei, na presença do seu ouvidor Ruy Daguiar (por
se achar ausente da terra o juiz de fora) e do tabelião Pero Vas, escudeiro
do rei. Requereu a auenticação Frei Lionel, prior do convento de Torres
Vedras. O milagre, informa Leonor de Menezes, havia ocorrido há cerca de
oito anos atrás, numa sexta-feira vendo nessa altura o então prior do
convento, Frei João Cardona, dar a umas mulheres terra do sepulcro.
Fornecendo-se da mesma relíquia e embrulhando-a nuns paninhos que
introduziu nos ouvidos mandou rezar uma missa dos confessores durante a
qual se produziu o milagre. Foram apresentadas como testemunhas do
164
Idem, ibidem , fls. 198v-199.
165
Idem, ibidem , f. 199.
166
Afonso de Albuquerque foi segundo filho de Gonçalo de Albuquerque, senhor
de Vila Verde dos Francos tendo apontando-se como data provável de nascimento o ano
de 1463. (cf. SANCEAU, Elaine, «Afonso de Albuquerque», in Joel Serrão (dir. de),
Dicionário de História de Portugal , Vol. I, Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1963, p. 74).
167
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 290v-291.
56
prodígio o referido Ruy Daguiar, Diogo Varela, criado de Martim Gonçalves
de Atayde, filho de Leonor Menezes e Gonçalo de Albuquerque. 168
João Anes, morador no termo de Lisboa, que «auia hum anno [...]
estaua entreuado em huma cama padecendo grandes e continuos tremores
de todo o corpo, que lhe impediaõ poderse bulir» foi curado depois de a
sua mulher ter feito uma romaria à sepultura gonçalina e lhe ter trazido
terra 169.
Afonso Anes, morador em Asseiceira «auendo hum anno que trazia
maleitas» prometeu fazer uma romaria e pôs ao pescoço uma bolsinha com
terra de S. Gonçalo que lhe fora dada pela mulher de João Anes, curando-
se.170
Maria Rodrigues , moradora na Carreída dos Caualleiros , «despois de
auer hum anno, e meio; que senam podia bolir, senam andando de
gatinhas» ficou curada por ter também pendurado ao pescoço uma
bolsinha de terra da sepultura de S. Gonçalo de Lagos 171.
Destes três milagres em que foram beneficiados os referidos João
Anes, Afonso Anes e Maria Rodrigues foi feito em 23 de Julho 1489,
também a requerimento do Frei Lionel , prior do convento, perante Diogo de
Sequeira, juíz ordinário, instrumento público em que os três intervenientes
relataram as melhoras recebidas havia cerca de um ano, tendo sido
apresentadas como testemunhas quatro religiosos do convento de Torres
Vedras: Frei Pero Callado, Frei João Carniceiro, Frei Sebastião e Frei Pero
de Vila Viçosa 172.
168
Processo da Fama de Santidade Virtudes, e Milagres do Servo de Deos Fr.
Gonçalo de Lagos da Ordem De S.to Agostinho. Concluido por Autoridade Ordinaria em
o anno de 1760. , Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, fls. 214 – 215v
169
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 287; I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º
673, f. 416.
170
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 287; I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º
673, f.416.
171
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., fls. 287-287v.
172
Processo da Fama de Santidade Virtudes, e Milagres do Servo de Deos Fr.
Gonçalo de Lagos da Ordem De S.to Agostinho. Concluido por Autoridade Ordinaria em
o anno de 1760. , Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, fls. 200 –
57
João Gonçalves Pessoa, morador em Vila de Povos «auia hũ anno
que era muy doente de colica e de pedra, de que tinha acidentes tam
crueis, que de cada qual o dauam por morto». Numa das crises «chamou
por Sam Gonçalo [...] e logo adormeceo, por espaço de meya hora: e
acordado se achou sem vestigio algum de dores, e ficou da hi por diante
sam de todo». 173 Desta cura milagrosa foi feito no convento, perante o juíz
ordinário João Devassas instrumento público a 2 de Junho de 1490 do qual,
como nos demais casos, chegou até nós o traslado feito no processo de
fama de santidade . Do relato processual, retira-se que a cura ocorrera um
ano antes e que, como agradecimento, fez o beneficiado romaria ao
convento, tendo o prior Frei Lionel requerido o registo do milagre. As
testemunhas referidas no documento são apenas as que assistiram à sua
elaboração: Pero Nunes, Afonso Pires, Gomes Leitão, Fernao Vas (clérigo
beneficiado em Santa Maria) Antao Martins, Fernao Salvado e João Esteves,
todos escudeiros moradores da vila. 174
Leonor Fernandes, moradora em Aldeia Galega, «auia nuitos mezes
que jazia em cama tolhida de todos os membros de sorte que se nam
bolia». Esgotadas as possibilidades de cura pela medicina epocal, um
médico ter-lhe-á aconselhado o recurso a S. Gonçalo. Levada a Torres
Vedras, ficou curada depois de ter adormecido junto da sepultura, mercê
que agradeceu mandando dizer uma missa, sendo o milagre autenticado a
28 de Setembro de 1489 175. O instrumento público, feito no convento
naquela data perante Afonso Pires, escudeiro e vereador do Senado, a
exercer o cargo de juíz por ausência de ordinário. O relato feito pelo
marido da beneficiada, Álvaro Anes, indicou que a cura ocorrera quatro
meses antes e que o médico era o Doutor Gonçalo Fernandes que assistia a
201v.
173
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 287v; I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º
673, f. 416.
174
Processo da Fama de Santidade, Virtudes, e Milagres ... , Arq. Sec. do
Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, fls. 202 – 202v.
175
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., fls. 287v-288; I.A.N./T.T., Livraria,
Ms. n.º 673, f. 416v .
58
uma prima do rei. No relato então feito consta ainda que, depois da
milagrosa cura, o casal se deslocou a pé até à casa de Pero Mendes ,
escudeiro, e que a enferma jantou «com as suas próprias maõs» 176.
Catarina Lopes, moradora na Carvoeira, tendo na mão esquerda
«huma postema com que lhe inchou, e se fez toda negra, com tam agudas
dores, que lhe cauzauam desmayos, e perturbaçam no miolo. E uendo que
lhe hiaa laurando o mal pelo braço, e que já o nam podia bolir», fez-se
levar ao sepulcro de S. Gonçalo onde, depois de meter o braço no
respectivo buraco, ficou sem qualquer inchaço 177. O traslado da
autenticação, feito perante o juiz ordinário Diogo Sequeira, escudeiro do
rei, datado de 16 de Outubro de 1489, não esclarece em que cronologia
ocorreu o milagre. A beneficiada, sobrinha de André Gonçalves, prior da
Carvoeira que, juntamente com Afonso Pires, testemunhou a cura, recorreu
às potencialidades milagrosas da sepultura gonçalina por indicação de um
religioso, Frei Bastião 178, que na altura estava presente. Coube a Frei Lionel
requerer como sempre a autenticação 179.
176
Processo da Fama de Santidade Virtudes, e Milagres do Servo de Deos Fr.
Gonçalo de Lagos da Ordem De S.to Agostinho. Concluido por Autoridade Ordinaria em
o anno de 1760. , Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, fls. 204v –
205.
177
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 288; I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º
673, fls. 416v - 417.
178
Este religioso, no ano de 1489, presenciou outro milagre em que foi
beneficiada Leonor Rodrigues, milagre esse que está datado de 25 de Outubro. (Cf.
Processo da Fama de Santidade, Virtudes, e Milagres ... , Arq. Sec. do Vaticano, Cong.
Riti, Processus n.º 3335, f. 209v).
179
Processo da Fama de Santidade, Virtudes, e Milagres ... , Arq. Sec. do
Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, fls. 205v – 206v. O relato e o instrumento de
autenticação deste milagre sucitam-nos alguma perlplexidade. O cronista refere o
sepulcro, embora sabendo que o mesmo só havia sido construído em 1518; no
instrumento utiliza-se a a expressão «metesse a mão dentro no buraco da sepultura». O
cronista na folha 278v assinala que aquele sepulcro tinha um buraco para os devotos
poderem aceder à terra, descrição que está de acordo com o exame que foi feito em 12
de Janeiro de 1760 pelos peritos do processo que o examinaram (Cf. Processo do Culto
Immemorial..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus 3336, f. 288v). Trata-se
59
Afonso Pires, morador no Maxial, «carregando sobre elle huma trave
pezada [...] quebrou ambas as virilhas, de modo que lhe cahiram as tripas
quasi até os giolhos; e desconfiaram os medicos de sua Vida». Levado até
à sepultura do santo, recobrou perfeita saúde, sendo o milagre autenticado
a 18 de Novembro de 1489 180. A autenticação foi feita perante Antão
Serveira, escudeiro, juiz ordinário cerca de dez dias depois do sucedido.
Testemunharam o acidente Fernão Anes, sapateiro, e seu filho, Afonso
Esteves, ambos moradores no Maxial. Requereu a formalização do caso o
inevitável Frei Lionel 181.
Uma « menina de peito, filha de Daniel Gonçalves, morador em
Torres Vedras, como chegasse a estar noue dias continuos sem fala, e sem
comer, a deram os medicos por morta», foi salva sendo levada até à
sepultura de S. Gonçalo onde lhe foi deitada terra sobre o seu rosto 182.
Autenticado a 20 de Novembro de 1489, o instrumento foi feito no
convento perante Diogo Serqueira, juíz ordinário, a petição de Frei Lionel,
apresenta a data de 20 de Agosto de 1489. Testemunharam Leonor Alvres,
mulher de Daniel Gonçalves, e sua mãe, Catarina Rodrigues 183.
Leonor Rodrigues, moradora em Torres Vedras, «padecia hum fluxo
de sangue continuo que a tinha posta as portas da Morte de mera
fraqueza». Pedindo uma vizinha, Catarina Correa, no convento uma
relíquia, levou-lhe o «Padre Sanchristam hum papelinho de terra [...] e
aspergindo com ella a doente, ficou logo sam», sendo o milagre qualificado
a 13 de Dezembro de 1489 184. No instrumento oficial consta a data de 1 de
Novembro de 1489, sendo feito no convento perante Diogo Sequeira , juiz
todavia de uma imprecisão do cronista que por diversas vezes utiliza indistintamente as
palavras “sepultura” e “sepulcro” (Sobre esta questão nos debruçaremos mais adiante)
180
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit. , f. 288. I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º
673, f.417 MF 164-165. PDS 93-94
181
Processo da Fama de Santidade, Virtudes, e Milagres ... , Arq. Sec. do
Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, fls. 207 - 208
182
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit. , f. 288; I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º
673, f. 417.
183
Processo da Fama de Santidade, Virtudes, e Milagres ... , Arq. Sec. do
Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, fls. 208 – 209.
60
ordinário. Leonor Rodrigues é identificada enquanto criada de Catarina
Correia. O milagre terá ocorrido a 25 de Outubro estando já a beneficiada
doente há cerca de quatro meses. O religioso que forneceu a relíquia é
identificado como sendo Frei Bastiam . Por devoção e para agradecer a cura
foi dormir junto à sepultura do santo, sendo nessa altura que Frei Lionel
tomou conhecimento do sucedido e requereu que fosse feita autenticação
que contou como testemunhas Catarina Correia e D. Isabel. 185
Diogo Fernades, de Torres Vedras, «como lhe nacesse no dedo
polegar do pè esquerdo huma espongia, e padecesse cõ ella grandes
dores» fez, para obtenção de cura, uma promessa a Nossa Senhora da Luz
que acabou por não cumprir, facto que terá ocasionado uma recaída. Foi
então levado ao sepulcro de S. Gonçalo onde introduziu o pé no buraco e
ficou «sem dor algũa e a espongia quasi de todo sumida». O cronista
assinala a qualificação a 13 de Dezembro de 1489 186. No instrumento
público, requerido por Fei Lionel, data o milagre de 20 de Novembro
daquele ano. Feito no Convento, onde estiveram presentes os juizes
ordinários Antão Serveira e Diogo Sequeira, Diogo Fernades declarou que o
milagre tinha ocorrido na noite de véspera 187.
«Huma menina por nome Filippa de tres pera quatro annos» filha de
Afonso Pires e Catarina Anes, moradores no termo de Lisboa, «estando
tolhida da boca, e detoda a parte de alto a baixo, foy por seus pais
offerecida a S. Gonçalo de Lagos, e logo sarou», pelo que a levaram a
Torres Vedras e mandaram dizer uma missa em louvor do santo.
Autenticado a 4 de Maio de 1491 188, o instrumento lavrou-se no convento
184
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 288v; I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º
673, f. 417.
185
Processo da Fama de Santidade, Virtudes, e Milagres ... , Arq. Sec. do
Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, f. 209 – 210v. I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º
673, f.417-417v.
186
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 288v.
187
Processo da Fama de Santidade, Virtudes, e Milagres ... , Arq. Sec. do
Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, f. 210v – 211v.
188
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 288v; I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º
673, f. 417v.
61
perante Afonso Pires, escudeiro e tabelião da Princesa D. Isabel, senhora
da Vila, a pedido de Frei Lionel, incluindo o relato de Catarina Anes, sendo
datado de 30 de Outubro de 1491, embora não refira a cronologia precisa
em que ocorreu o milagre 189.
Madalena Luís , mulher de Diogo Lopes, morador em Vieiros, depois
«de hum parto, que teue trabalhoso ficou tolhida da cintura pera baixo por
espaço de quatro Mezes, e com hum inchasso tão grande em hum peito,
que lhe passaua por cima do hombro, e lhe chegaua à espadoa. Offereceo
a hum irmão seu a S. Gonçalo de lagos prometendolhe de ir cõ ella visitar a
sua sepultura com alguma esmola se lhe desse saude e logo sarou, e se
leuantou da cama: e o peitro tambem logo arrebentou por si, ficando sam
sem mezinha alguma». Refere ainda o cronista ter sido o milagre
autenticado a 7 de julho de 1490 190.
Pedro Santiago, morador em Azambuja, «adoeceo de dores de
cabeça e de hum estilhcido de humores, que lhe deciam aos olhos, de
maneira, que quasi de todo estaua cego». Prometeu visitar as relíquias do
santo e ofertar uns olhos em cera. Ficou curado assim que entrou na igreja
do convento. O milagre foi qualificado a 3 de Novembro de 1490 191.
Destes dois milagres encontra-se no processo traslado do
instrumento conjunto feito perante Diogo Fernandes, juíz ordinário.
Todavia, nesta peça são corrigidas as datas fornecidas pelo cronista para 5
de Junho de 1490. De destacar que no relato então feito a cura de
Madalena Luis levou cerca de oito dias, muito embora em toda a vila
tivesse sido por todos notada. Quanto a Pedro Santiago a descrição da cura
milagrosa fixada pelo cronista é corrigida por outra menos fantástica:
«taõto, que fora dentro nesta sua Caza, logo vira, e que já guora via
189
Processo da Fama de Santidade... , Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti,
Processus n.º 3335, fls. 216 – 216v.
190
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 287v.
191
Idem, ibidem ; I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º 673, f. 416v.
62
rezoadamente» 192 A iniciativa da autenticação de novo coube a Frei
Lionel. 193
Um sobrinho de S. Gonçalo, natural de Lagos, tendo sofrido um
naufrágio, foi o único sobrevivente graças à invocação e consequente
aparição do santo que lhe terá ordenado que se deslocasse a Torres Vedras
onde poderia curar as feridas resultantes do acidente, facto que aconteceu
depois de, chegado ao convento, as cobrir com terra e ter dormido ao pé
da sepultura gonçalina 194. O cronista salienta o facto de ter sido feito
«instrumento authentico em dous originais, hum dos quaes se lançou no
arquiuo daquelle conuento, e outro se leuou ao Algarue pera glória de
Deos, e mayor veneraçam de seu seruo» 195. O instrumento de autenticação
requerido a 20 de Agosto de 1510 pelo Prior Frei Gabriel, feito na presença
de Antão de Oliveira, juiz ordinário, para além de um maior rigor descritivo
nos factos que emolduram esta aparição e milagre, sublinha significativa
dissonância na cronologia. O beneficiado é Diogo Rodrigues, natural de
Lagos, que a rogo de seu pai fez uma viagem para descobrir onde se
encontrava sepultado um parente seu que era santo e frade de Santa Maria
da Graça. Iniciada em Leça, a viagem seria interrompida ao anoitecer no
porto de S. João da Foz, onde o navio naufragou por ter embatido nuns
rochedos, tendo o náufrago permanecido agarrado a uma tábua «até outro
dia a oras de vespora», altura em que lhe apareceu um frade que,
puxando-o para terra o salvou e lhe disse para, em Torres Vedras,
perguntar por ele no convento de Santo Agostinho, altura em que
recobraria saúde. De acordo com o testemunho de Diogo Rodrigues, estes
factos aconteceram cerca de dois meses antes da elaboração do documento
de autenticação 196.
192
Processo da Fama de Santidade, Virtudes, e Milagres ... , Arq. Sec. do
Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, f. 203v.
193
Idem, ibidem , fls. 203 - 203v.
194
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., fls. 284v - 285v.
195
Idem, ibidem, f. 285v.
196
Processo da Fama de Santidade, Virtudes, e Milagres ... , Arq. Sec. do
Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, fls. 212v – 214. Do documento de
63
Um tal Fernando, morador em Rio Maior, depois de ter sido ferido
pelo rodízio de um moínho que se soltou e lhe fracturou as pernas,
deslocou um braço e o «escalaurou todo» foi dado como morto pelos que o
acudiram. Frei Fernando da Cruz, procurador do convento de Santo
Agostinho de Santarém, que por ali passava, persuadiu os presentes que «o
leuassem a Torres-Vedras a São Gonçalo de Lagos, que elle o sararia se
estaua viuo; e lhe daria Vida se estaua mõrto». Iniciados os preparativos
para a viagem, o enfermo «abrio os olhos muyto alegre, e se leuantou em
pè saõ das pernas e braço, e das feridas, sem dor, ou sinal algum de onde
as tiuera. E perguntado quem assi o saràra, respondeo que hum frade de S.
Agostinho muito fermoso lhe untara todo o corpo com hum unguento, e
que logo se sentira são» facto que terá estado na origem de uma romaria
ao convento de Torres Vedras «com todos os de caza». 197 Autenticado a 25
de Agosto de 1510 no convento perante o juiz ordinário, Antão Oliveira,
cavaleiro por iniciativa do Prior Frei Gabriel 198.
Em 1551, Frei Álvaro Monteiro, religioso do convento de Lisboa,
estando «atormentado com dores de mal de gouta e sentindosse hum dia
com maiores dores», facto que o terá impedido de se levantar e «estando
em trabalho assi do mal que padecia como da fraqueza de naõ comer, vio
entrar pella cella dous religiosos que a encheraõ de claridade»: Frei João
de Estremoz e São Gonçalo de Lagos que, para além de o aliviarem das
dores, lhe deram alimentos anunciando-lhe também que «se aparelhasse
que cedo seria seu companheiro na gloria» 199.
autenticação deste milagre, foi, segundo Purificação, enviada uma cópia para o Algarve
«pera gloria de Deos, e mayor veneraçam de seu seruo» (PURIFICAÇÃO, Frei António
da, ob. cit., f. 285v).
197
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., fls. 288v-289. I.A.N./T.T., Livraria,
Ms. n.º 673, f. 417v.
198
Processo da Fama de Santidade, Virtudes, e Milagres ... , Arq. Sec. do
Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, f. 211v.
199
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., fls. 285v – 286. Este milagre aparece
também descrito por Frei João de São José quando narra a vida de Frei João de
Estremoz. No entanto aqui o papel de Frei Gonçalo é quase secundário (Cf. Frei João de
São José, Flos Sanctorum Augustiniano... , Parte III, Lisboa Occidental, Of. da Musica,
64
Quando, a 14 de Outubro de 1556, se tratava dos preparativos para
a festa de S. Gonçalo, a comemorar no dia seguinte, Frei André Toscano
pregava um prego «sobre a chave do arco da Capela mòr, escorregou, e
caindo em uoltas pelo ar ueyo dar de cabeça abaixo sobre a sepultura do
Sancto com os pès pera cima. E deuendo, segundo a Rezam natural,
espedaçar a cabeça no duro marmore, e ficar logo morto: aconteceo [...]
que sem lezão alguma sepos logo em pé muito alegre, com espanto seu, e
de todos os que ouiram cair» 200.
Dona Joana Góis que, afirma o cronista, viria a ser aia de D.
Sebastião, estando em Torres Vedras, no ano de 1558, teve no peito «hum
cancro muito grande». Por se ter deitado sobre a sepultura do santo, foi
curada milagrosamente 201.
Maria Henriques, «molher nobre da villa de Torres Vedras [...] tendo
huma uinha no dedo polegar do pe direito, a qual lhe furaua o dedo» 202 foi
curada depois de visitar a sepultura gonçalina que se encontrava nas ruínas
do convento e ter introduzido o pé no buraco funerário. Frei António da
Purificação descreve este milagre com generosa riqueza de pormenores,
acrescentando que ocorreu no dia 15 de Outubro de 1560 203.
1726, p. 16).
200
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 289v; I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º
673, f. 418v; Processo da Fama de Santidade, Virtudes, e Milagres ... , Arq. Sec. do
Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, fls. 393v-394.
201
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., fls. 289v-290; I.A.N./T.T., Livraria,
Ms. n.º 673, f. 418v; Processo da Fama de Santidade, Virtudes, e Milagres ... , Arq. Sec.
do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, f. 394.
202
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 281v.
203
Idem, ibidem , fls. 281v-282; I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º 673, f. 418;
Processo da Fama de Santidade, Virtudes, e Milagres ... , Arq. Sec. do Vaticano, Cong.
Riti, Processus n.º 3335, fls. 394-394v.
65
febre», ficou curado no momento em que tocou na sepúltura do beato
agostinho. 204
João de França de Brito, «homem dos nobres de Torres Vedras» não
foi contagiado pela peste depois de durante o sono o santo, numa
aparição, lhe dizer: «Està seguro que tua molher tem por seu auogado Saõ
Nicolao Tolentino. Tua mãy a S. Sebastiaõ, tu a mim: não ajas medo que
nós te livraremos» 205. Crónicas hagiográficas e processo de beatificação
esclarecem mesmo, nesta linha taumaturlógica, que, durante a peste de
1576 em Torres Vedras os que tinham consigo terra da sepultura de S.
Gonçalo ou outra relíquia não ficaram doentes 206.
No ano de 1578, um escravo de João de França de Brito «achando-se
doente em tal estado, que o medico lhe daua so huma hora de uida» foi
curado graças a uma relíquia gonçalina e à promessa de trabalhar durante
204
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., fls. 282 – 282v. O cronista situa este
milagre «pelos anos de 1570»; Frei Manuel de Figueiredo e Frei Pedro de Souza, apesar
de terem conhecido o texto de Frei Aleixo de Menezes (Cf. B.G.U.C., Cód. N.º 436, f.
10) e de João de França de Brito (Cf. Processo de Fama de Santidade... , f. 394v-395)
datando o milagre de 1579 e 1576, respectivamente (Cf. Processo de Fama de
Santidade... , f. 394v-395), situam-no com a mesma imprecisão «pelos anos de 1570».
Ora, Frei Gaspar Cão foi Bispo de São Tomé entre 1554 e 1572, ano em que morreu (Cf.
CARDOSO, Jorge, Agiologio Lusitano... , I, p. 452). Fortunato de Almeida (Cf. História da
Igreja em Portugal , vol. II, p. 716) refere que, em 1565, na sequência de queixas feitas
contra excessos cometidos em S. Tomé, foi Frei Gaspar Cão chamado a Lisboa tendo-
lhe sido instaurado um processo do qual não se chegou a saber o resultado. Este facto,
pelo menos, indica a forte possibilidade da sua presença em Portugal nas proximidades
da década de setenta o que nos remete para um erro de datação de João de França de
Brito do qual os hagiógrafos posteriores se defenderam assinalando apenas a década.
205
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., fls. 286 – 286v (o cronista data esta
aparição do ano de 1569); I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º 673, f. 418v; Processo da Fama
de Santidade, Virtudes, e Milagres ... , Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335, fls. 395-396.
206
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 290.
66
trinta dias nas obras do convento novo 207 que se haviam iniciado a 7 de
Setembro 208.
Em 1579 um homem visitado por João de França de Brito «que
estaua perigoso de sangue que deitaua pela boca» foi curado pela mesma
relíquia 209. Ainda em 1579, o próprio João de França de Brito padecendo de
uma «postema» numa perna, «tomou huma cãdea de rolo a medida da
perna em prezença do Çurgiam que estaua pera lha abrircom ferro; e
mandou por hum Criado seu, que a puzesse aceza em hum dos castiçaes
da sepultura do Sancto pera que estiuesse ardendo em quanto o Çurgiam
fazia seu officio. E contam os escritores deste cazo; que no ponto em que a
candea foy posta na sepultura do sancto, arrebentou por si, a postema de
improuiso, ficando o Çurgiam pasmado» 210. A seguir, João de França de
Brito, depois de, num episódio de caça, ter sido, acidentalmente, alvejado
por um criado seu, não sofreu qualquer ferimento graças a uma relíquia
gonçalina e ao facto de, no preciso momento do disparo, ter invocado o
santo 211.
Maria Fernandes, casada com Pedro Gomes, «desconfiada da vida
com o rigor das maleitas qua auia muito tampo padecia» foi aconselhada
por duas filhas de João de França de Brito a deslocar-se à sepultura do
207
Idem, ibidem.
208
Idem, ibidem, f. 183; I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º 673, f. 418v-419; Processo
da Fama de Santidade, Virtudes, e Milagres ... , Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti,
Processus n.º 3335, f. 396.
209
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 290; Processo da Fama de
Santidade, Virtudes, e Milagres ... , Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335, fls. 396-396v.
210
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., fls. 289v - 290; I.A.N./T.T., Livraria,
Ms. n.º 673, f. 419; Processo da Fama de Santidade, Virtudes, e Milagres ... , Arq. Sec.
do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, f. 396v.
211
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., fls. 291 - 291v; I.A.N./T.T., Livraria,
Ms. n.º 673, f. 419; Processo da Fama de Santidade, Virtudes, e Milagres ... , Arq. Sec.
do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, f. 397.
67
santo e a trazer consigo terra da sepultura e quando «recebeo da mão do
Sanchritam hum papelinho daquella terra se achou saã de todo» 212.
«No anno de 1583 morrião em Torres-Vedras muytas crianças do mal
de bexigas». Um filho de Agostinho Lopes foi curado por visitar a sepultura
de S. Gonçalo depois de a tal ter sido aconselhado por João de França de
Brito. Divulgada a cura milagrosa, várias foram as crianças que, da vila e
arredores, foram levadas à sepultura, tendo todas recuperado a saúde.
Acrescenta ainda o cronista agostinho que os que lá foram levados «antes
que adoecessẽ nam lhes pegaua aquelle mal tam contagioso, e perigoso em
crianças: e somente adoeceram, ou morreram os filhos daquelles que nam
recorreram ao sancto» 213
Catarina Sarrã por estar há três dias «ás portas da morte com dores
de parto [...] pedio lhe trouxessem huma reliquia de S. Gonçalo. Levaram o
recado ao Conuento; e o Padre Prior por acodir com mais breuidade a esta
pressa, tirou, do pescoço um relicario em que tinha hum pequeno osso do
Sancto, e mandoulho [...] e pario immediatamente huma filha que viueo
muytos annos» 214.
Dois homens e uma mulher moradores nos arredores de Lisboa, não
identificados, foram curados de dores de estômago, de febre e de paralisia
graças a relíquias de terra da campa de S. Gonçalo de Lagos. 215
212
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 291v; I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º
673, f. 419v; Processo da Fama de Santidade, Virtudes, e Milagres ... , Arq. Sec. do
Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, fls. 398 - 398v.
213
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 290v; I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º
673, f. 419v-420; Processo da Fama de Santidade, Virtudes, e Milagres ... , Arq. Sec. do
Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, fls. 398v - 399.
214
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 291v; I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º
673, f. 420; Processo da Fama de Santidade... , Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti,
Processus n.º 3335, f. 399. Frei Manuel de Figueiredo esclarece que a filha nascida é
Maria Serrão que deixou um legado de 50.000 reis anuais (FIGUEIREDO, Frei Manuel
de, Ecco da Santidade, continuado no immemorial culto do Beato Gonçalo de Lagos da
ordem de Santo Agostinho da Provincia de Portugal , Lisboa, na Offic. de Ignacio
Nogueira Xisto, 1765.pp. 191-192).
215
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., fls. 291v-292.
68
No dia 15 de Outubro de 1634, «huma molher nobre de Lisboa », por
ter um osso atravessado na garganta, havia deixado de comer. Esgotada a
possibilidade de intervenção dos cirurgiões socorreu-se sem sucesso de
uma relíquia de São Brás, chamando-se o confessor que era o próprio autor
da crónica. Este mais não fez que contar à moribunda alguns milagres de
São Gonçalo fazendo com que a própria e os circunstantes «lhe
prometessem huma missa offertada, e o invocassem naquelle ultimo
aperto». Feito isto, a enferma engoliu o osso e «logo mandou a Torres
Vedras dar cumprimento a promessa que fizera da offerta» 216.
A 27 de Novembro de 1634, em Lisboa, uma mulher nobre chamada
Custódia de Almeida que «estaua muito doente de camaras, e cõ grandes
dores de tripas» chamou o seu confessor que, precisamente Frei António da
Purificação, «lhe inculcou os merecimentos de S. Gonçalo de Lagos e lhe
aconcelhou, se encomendasse a elle» o que foi bastante para a curar. Após
este facto terá a doente pedido que, para prevenir males futuros, lhe
enviassem de Torres Vedras terra da sepultura do santo 217.
Em continuação, no dia 28 de Novembro de 1634, apresentando-se o
cronista como testemunha na qualidade de confessor, D. Filipa de
Lencastre, filha de D. João Lobo, barão de Alvito, estando doente e tendo
notícia dos milagres, encomendou-se ao santo e fez oferta de cera para a
sua sepultura. Logo melhorou, mas esquecendo-se de cumprir a promessa
tornou a ficar doente, situação que foi ultrapassada pelo seu
cumprimento 218.
216
Idem, ibidem, f. 292v; I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º 673, fls. 420-420v (Aqui é
fornecida uma descrição semelhante à do texto cronístico em que o autor da crónica se
refere a si próprio utilizando a primeira pessoa. Contudo, os dados que possuímos não
nos permitem, como assinalámos, afirmar com segurança estarmos na presença de um
autógrafo de Frei António da Purificação, muito embora a letra do documento seja do
século XVII).
217
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 292v-293; I.A.N./T.T., Livraria, Ms.
n.º 673, f. 420v.
218
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., fls. 291v-293; I.A.N./T.T., Livraria,
Ms. n.º 673, fls. 420v-421; O cronista serve-se deste milagre para, fazendo uma
referência bíblica, recordar a importância do cumprimento das promessas.
69
Em 1635, outra filha do mesmo barão de Alvito, D. Maria de
Lencastre, casada com D. Álvaro de Abranches, moradores em Lisboa,
temendo as dificuldades de parto que já havia sofrido, «tomou S. Gonçalo
por seu auogado naquella necessidade fazendolhe outra promessa como a
sobre ditta Donna Filipa sua irmãa [e] pario hum filho com tanta facilidade,
que disse nam sentira dores algũas nelle: sendo no minimo manifestamẽte
maior do que costumam ser as crianças quando nacem. E acautellada com
a aduertencia da irmâa. Satisfez logo a promessa que fizera, e em breues
dias se leuantou sam, e ualente» 219.
No ano de 1642, Maria Serrão Borges, «nobre matrona» de Torres
Vedras e «grande benfeitora da nossa Ordem, trazendo em Lisboa huma
demanda contra certas pessoas poderosas sobre quãtidade de dinheiro que
lhe deuião, encommendaua a causa a S. Gonçalo de Lagos». Durante duas
noites teve aparições que associou a sonhos. Numa terceira o santo
repreendendo-a anunciou-lhe que a ssentença lhe seria favorável, mercê
que foi agradecida com «pera ornato da sua sepultura huma esmola
considerauel de seda, e dinheiro.» 220
Este itinerário taumaturlógico de S. Gonçalo de Lagos permite
rapidamente destacar estarmos perante um santo cuja principal
especialização é a cura de problemas e doenças físicos. Trata-se de uma
colecção de milagres dirigida directamente a interferir com males corporais,
sobrepujando a medicina e as culturas medicinais epocais para ofercer um
auxílio súbito, inesperado por vezes, preparado noutros, mas sempre
absolutamente eficaz, estendendo-se do parto aos acidentes de caça,
passando pelas pandemias e doenças colectivas. Por isso, é
frequentemente o próprio médico a apontar o milagre da intercessão de S.
Gonçalo de Lagos como a única possibilidade de cura, sugestão que, não
deixando de recordar as fronteiras porosas epocais entre ciência e
superstição, revela a preocupação dos relatos milagrosos em fornecer
219
Frei António da Purificação, ob. cit., fls. 293-293v.
220
Idem, ibidem., fls. 286v-287. A «esmola» a que o cronista se refere não mais
que o testamento feito pela beneficiada ( Processo da Fama de Santidade, Virtudes, e
Milagres ... , Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, fls. 220 – 223v).
70
argumentos de autoridade “científica” firmando a verdade da cura
milagrosa e, consequentemente, a santidade do santo agostinho.
Esta colecção de milagres permite também destacar a especialização
cultual de S. Gonçalo de Lagos. É a terra do sepulcro do santo que,
guardada em campa feita em pedra especialmente em 1518, especializa a
principal relíquia que se manipula para curar. Metida nos ouvidos, nos
olhos, em qualquer parte doente do corpo, simples ou envolta em papel, a
terra sacral do sepulcro gonçalino tudo cura, mesmo às portas da morte. A
capela sepulcral transforma-se, assim, em espaço de devoções, em
santuário, mas não se conseguem surpreender peregrinações e romarias
numerosas capazes de transformar a sepultura em espaço de cultos
massivos e populares.
Por isso, S. Gonçalo de Lagos precisa, por vezes, do apoio de outras
figuras santas: S. Sebastião, S. Nicolau Tolentino, Frei João de Estremoz ou
a intromissão mariana de Nossa Senhora da Graça mobilizam-se para
ajudar a taumaturgia gonçalina. Se, no dois primeiros casos, se trata de
colar um santo, afinal, local a grandes figuras da santidade cristã, já a
aparição de S. Gonçalo ao lado do confessor da rainha D. Leonor, visa
colocá-lo no mesmo patamar de uma figura histórica de inegável prestígio
religioso aúlico e conventual. Finalmente, a recomendação feita aos
mareantes de Lagos para invocarem Nossa Senhora da Graça parece
concretizar a devoção mariana que os religiosos do convento reclamaram
ainda antes de 1340, altura em que o culto mariano da Graça foi ordenado
pelo Geral da Ordem, Frei Francisco do Monte Rubiano 221.
221
«Em seus principios era esta casa [o convento de Torres Vedras] dedicada a
Santo Agostinho; mas no ano de 1340. mandando o Reverendissimo Geral da Ordem
Frey Francisco de Monte Rubiano hum Decreto, em que dispunha que todos os
Conventos que dalli por diante se fundassem, o fizessem debaixo do titulo de nossa
senhora da Graça, em gratificação de hum favor que a Senhora lhe havia feito, e à
Ordem toda conservandolhe o seu Escapulario. Os Padres do Convento de Torres Vedras
o abraçarão de forte, que ainda que o Decreto os não comprehendia [...]. Em seus
principios tinhão no seu altar hũa Imagem de nossa Senhora; porque sempre os mossos
Eremitas se confeárão filhos, e reconhcerão obrigados a esta Senhora, e a estimarão, e
venerárão sempre como Mãy sua. Dizem alguns, que naqueles principios se intitulava
71
A geografia dos milagres remete-nos para três zonas: Torres Vedras
e termo, Lisboa e termo e Algarve, apesar do domínio quase esmagador do
primeiro espaço. A iniciativa de Frei Lionel, requerendo uma série de
autentificações de milagres entre 1489 e 1490, conduz à ideia de que, pela
oficialização e consequente divulgação, há um esforço daquele prior no
sentido de, não só reforçar o culto local, mas também convocar devoções
da região de Lisboa e do Algarve. Um acréscimo de frequência de devotos
que fizessem peregrinações em sinal de agradecimento ou para pedir a
intercepção do santo aumentaria a notoriedade e prestígio do convento,
mas também engrossaria as suas entradas em bens, atracção económica
que, infelizmente, não se encontra adequadamente documentada, o que
não deixa de sugerir a dimensão limitada do culto do santo. De qualquer
forma, os documentos de autenticação e de descrição dos milagres
esclarecem uma ligação particular intensa ao priorado de Frei Lionel, no
final do século XV, a que se somam os favores dirigidos a João de França
de Brito, entre as décadas de 1570 e 1580, concluindo-se
significativamente pelos anos de 1630 e 1640 por uma comunicação
milagrosa com o próprio cronista, Frei António da Purificação.
No caso de Frei Lionel tudo parece indicar tratar-se, como acima
referimos, de um esforço nem sempre conseguido de ampliar uma devoção
estritamente local, investimento provavelmente inserido também num
contexto religioso e devocional “concorrencial” já que o convento do
Varatojo, inaugurado em 1474 com catorze religiosos franciscanos
observantes, rapidamente viria a exercer forte influência social na região.
Quanto a João de França de Brito, provavelmente o próprio ou
parente do escrivão que, em 1553, a pedido de Frei António dos Anjos,
esta Imagem com o titulo dos Remedios, e que este titulo se lhe deu pelos muytos
milagres que obrava, por que todos achavão na sua invocação o seu remedio, mas
depois do Decreto a denominárão sempre com o titulo da Graça» (SANTA MARIA, Frei
Agostinho de, Santuario Mariano e Historia das Imagẽs milagrosas de Nossa Senhora, e
das milagrosamente apparecidas, em graça dos Prègadores, e dos devotos da mesma
Senhora , Tomo II: Imagẽs de Nossa senhora que se venerão no Arcebispado de Lisboa ,
Lisboa, Of. de António Pedroso Galrão, 1707, pp. 70-71).
72
trasladou em pública forma os instrumentos de autenticação dos milagres
feitos por autoridade judicial 222, verifica-se a existência de uma forte
ligação da sua família ao convento agostinho e ao culto gonçalino local 223,
sendo muito provavelmente um dos que protagonizou a defesa dos
religiosos dos diversos ataques de que eram alvo desde que haviam
tomado posse da gafaria de S. André e respectivas rendas.
Concomitantemente, a fundação em 1570, pela Infanta D. Maria, de um
convento de monges Arrábidos no Barro 224, poderá ter contribuido para
uma eventual necessidade de reavivar a memória dos fiéis no sentido de
renovar uma devoção que estava adormecida ou circunscrita ao espaço de
influência directa do santuário funerário. Não serão igualmente estranhas
para este ciclo de renovação cultual, a nova espiritualidade inspirada pelos
decretos tridentinos e a importante reforma da Ordem dos agostinhos que,
promovida por D. João III, foi levada a cabo por Villafranca e Montoya
entre 1535 e 1569, promovendo a restauração e trasladação de algumas
casas conventuais, cuidando das vocações, tentando aumentar junto da
corte o prestígio da Ordem e fundando o seu importante colégio de
Coimbra 225.
Frei António da Purificação comparece, duplamente, como
testemunha e cronista de milagres que ele próprio procurou promover. Uma
devoção que não se pode dissociar dessa outra forma de devoção que,
através da representação cronística, tratava de fixar a memória das glórias
de uma Ordem que se vazava nos seus santos e nessa outra ordem dos
seus milagres. Um cronista testemunha permitia ainda edificar essa ordem
fundamental da prova, da realidade, da historicidade que, do culto ao
documento, faltava desesperadamente na história quase perdidade de S.
222
Processo da Fama de Santidade... , Arquivo Secreto do Vaticano, Processus
n.º 3335, fls. 197v-198 e 216v-217
223
O próprio refere que incutiu em várias pessoas a devoção em Frei Gonçalo
( ob. cit., f. 398v).
224
B. N. L., Reservados, Cód. n.º 1435, f. 7.
225
ALONSO, Carlos, Os Agostinhos em Portugal, Madrid, Ediciones Religión y
Cultura, p. 61-72.
73
Gonçalo de Lagos, à semelhança dessas outras histórias recuperadas por
Frei António da Purificação para construir a história gloriosa da sua Ordem.
74
III P ARTE
1 – RELÍQUIAS
75
através da exposição, bênçãos, procissões, peregrinações e festas ou
cerimónias relacionadas com a sua chegada, manipulação e visita 226.
Por se acreditar que mantêm ad aeternum as mesmas capacidades
de intervenção miraculosa, o culto das relíquias está estreitamente
associado ao dos santos que concorrem para afirmar cultural e socialmente,
sendo, por isso, alvo de uma circulação e procura consideráveis. Com
efeito, são vários os relatos que nos permitem concluir que a sua posse
contribuía para o engrandecimento da pessoa ou instituição, da localidade
ou espaço regional, da pátria ou nação que detinha e agitava os seus
poderes, do religioso ao social, passando pelo económico e pelo ideológico.
Desta forma, julgamos pertinente a busca de resposta a algumas questões
que, ajudando a compreender a importância das relíquias, concorrem para
se investigar devoções e práticas religiosas que se concentram em S.
226
São várias as produções literárias que atestam este carácter festivo da
chegada das relíquias. Para o caso da procissão saída da Sé de Lisboa que, em 25 de
Janeiro de 1588, feita para a recepção das relíquias oferecidas à Igreja de S. Roque,
Manuel de Campos oferece-nos um minucioso relato dos festejos e respectivos
preparativos: «A noite dantes se gastou toda em ornar as janellas, paredes, e ruas por
onde a procissam auia de passar, e o mais della se vigiou andando muita gente com
tochas pera ver os apercebimentos, e ornatos das ruas, excitandoos a isso os muitos
lumes em que ardia a igreja de Sam Roque cujo tecto e varandas de hũa e outra parte
estiueram cercadas de lanternas q arderam grãde espaço da noite juntamente com
muitos barris de alcatrão, a que se deu fogo com grande aluoroço de charamelas e
repique de sinos que á entrada da noite se tocáram [...] Alem do ornato das paredes , e
casas, estauam as ruas cheas de palanques alcatifados, E cubertos cõ cortinas de seda
com muita gẽte que estaua apinhoada assi nelles comopollas janellas de todas estas
ruas, as quaes se alugauam por muito dinheiro, pois uoue janella de quarenta cruzados
de aluguer, e casas de trinta mil reis: de algũas se soube de certo que naquellas sete
ou oito horas forráram o aluguer de todo o ãno». (Cf. CAMPOS, Manuel de, Relaçam do
solenne recebimento que se fez em Lisboa às santas reliquias q se leuaram à igreja de
S. Roque da companhia de Iesu aos 25 de Ianeiro de 1588 , Lisboa, Antonio Ribeiro
1588, fls. 7 – 8). [B.N.L.: RES. 1681P.]
Idêntica riqueza descritiva encontramos em Gaspar dos Reis, Relaçam do
Solenne Recebimeto das Santas Reliquias que forão da See de Coimbra ao real Mosteyro
de Santa Cruz: he carat coriosa que se escreueo da Universidade a hum amigo per hum
sacerdote canonista , Coimbra, em casa de Antonio de Mariz, 1596 [B.N.L.: RES. 1405P.]
76
Gonçalo de Lagos: (a) Que consequências sob o ponto de vista económico
ou político tinham para uma localidade a propriedade e a exploração cultual
de relíquias consagradas? (b) Que dignificação sócio-religiosa obtinham as
pessoas e grupos sociais locais que estavam associados ao seu culto? (c)
Que renovação religiosa ou vitalidade devocional ofereciam as relíquias na
«popularidade» devocional da Ordem religiosa que albergava o seu culto? 227
(d) Que indulgências eram obtidas para elevar festas, cultos e orações
relacionados com a celebrações realizadas em torno das relíquias e dos
seus poderes taumaturlógicos?
Para organizar a resposta a estas perguntas que interessam para o
estudo da localização e consumo religioso e social do culto de S. Gonçalo
de Lagos, comece por se sublinhar que o culto das relíquias é anterior ao
das imagens dos santos e só conheceu uma diminuição com a introdução e
difusão medievais dos cultos marianos. Baseado na veneração das imagens
e com uma capacidade de protecção mais abrangente, o culto da Virgem
conhece no século XVI um renovado florescimento através de diversos
centros de devoção e peregrinação, chegando a suplantar em muitos casos
a veneração de padroeiros locais que vêem transferidas as devoções
populares para os espaços marianos 228. William Christian Jr. estudou o caso
espanhol para o século XVI, referindo que, com a invasão muçulmana, as
relíquias cristãs foram levadas para os territórios do Norte tendo lá
permanecido mesmo depois do fim Reconquista, situação que explicaria o
facto de no período do Renascimento se encontrar um número cada vez
menor de relíquias à medida que se avança para sul. Esclarece ainda o
antropólogo americano que, na mesma época quinhentista, em Castela,
227
«Na história da religiosidade portuguesa do Renascimento, os santuários mais
numerosos e procurados eram aqueles que reuniam e ofereciam às devoções populares
relíquias que apresentavam um conjunto de intercepções milagrosas e de propriedades
excepcionais que atraiam as populações de fiéis da época, especializando festas e
romarias religiosas, apelando a peregrinações continuadas». (SOUSA, Ivo Carneiro de,
D. Leonor... , p. 722).
228
PENTEADO, Pedro, «Peregrinações e Santuários», AZEVEDO, Carlos Moreira
(dir. de), História Religiosa de Portugal , vol. 2, Rio de Mouro, Círculo de Leitores, 2000,
p. 355.
77
onde a antiga devoção aos ossos dos santos permanecia viva, se podiam
encontrar dois tipos de relíquias: um composto essencialmente por restos
mortais dos santos, convocando elevada devoção pelos milagres e curas
que proporcionavam; outro tipo mais variado reunia relíquias na sua
maioria vindas de Roma ou dos países em que a Reforma protestante havia
triunfado, gerando novos martírios católicos, mas em ambos os casos estes
relicários não davam origem a devoções tão sólidas e populares quanto as
precedentes 229.
Recorde-se ainda que, na XXV sessão do Concílio de Trento, reunida
em 13 de Dezembro de 1563, a magna assembleia conciliar reafirma caber
aos bispos ensinar os fiéis acerca das «honras devidas às relíquias». Deste
modo, a igreja romana tridentina reitera a dimensão canónica e oficial do
culto das relíquias, promovendo a sua renovada difusão tanto em espaços
europeus como nos espaços missionários ultramarinos, fazendo assim com
que a ordem da literatura hagiográfica se veja obrigada a frequentar e a
provar também com relíquias a santidade das personagens que procura
exornar. Em consequência, as histórias da intercessão milagrosa das
relíquias dos santos invadem a literatura hagiográfica barroca, verificando-
se que praticamente todas as produções hagiográficas já impressas já
simplesmente manuscritas estão formalmente organizadas em torno da
biografia, dos milagres e traslados de relíquias dos santos que ajudam a
celebrar 230.
229
CHRISTIAN JR., William A.., Religiosida local en la España de Filipe II ,
Madrid, Nerea, 1991, pp. 157-158.
230
Não poucas vezes as trasladações, para além de se inscreverem numa festa
no calendário religioso local, são acompanhadas de milagres. No caso da segunda
trasladação das relíquias de S. Gonçalo, em 1570, um criado de Frei Gaspar Cão foi
milagrosamente curado de peste.
78
Agiologio Lusitano a sua essência e função, salientando a sua importância
como elemento motivacional para a imitação dos santos:
231
Jorge Cardoso, «Aduertencias necessarias ao Agiologio Lusitano.», Agiologio
Lusitano dos Sanctos e Varoens Illustres em Virtude do reino de Portugal, e suas
Conquistas. ... , Tomo I, Lisboa, Off. Craesbeekiana, 1652, p. 41
79
Com a cisão do céu da cristandade europeia, o século XVI é
frequentado por um movimento de recuperação das relíquias existentes nos
territórios dominados pelos protestantes, circulação que, frequentemente,
se fez acompanhar de uma actividade comercial de compra e venda de
relicários e indulgências que, por assumir proporções desmedidas, viria a
merecer estreita regulamentação por parte da Igreja romana. As
Constituições Sinodais de Arcebispado de Braga, por exemplo, proíbem em
1639 com a pena de excomunhão os seculares que se entreguassem a
estas práticas de venalidade religiosa, 232 instruindo os visitadores das
igrejas para procederem a um exame de proveniência, autenticidade e
decência das relíquias e relicários 233. Noutro caso exemplar, relembre-se
para o nosso século XVI o processo inquisitorial do pretenso frade
agostinho Francisco Leão, envolvido num negócio de venda de relíquias
trazidas de Itália cerca de 1560, constituindo a sua actividade venal um
bom ilustrativo não só destas práticas verdadeiramente mercantis, como
também da grande procura devota dos objectos que eram exibidos como
candidatos a relíquias prestigiadas, colaborando na consolidação pública e
privada da devoção dos crentes 234. Um outro exemplo desta circulação e
232
Constituições Sinodais do Arcebispado de Braga (1639), tit. 26, Const. IV,
p.338, apud MARQUES, João Francisco, A Parenética Portuguesa e a Restauração. !640
– 1668 , vol. I, Lisboa, INIC, 1989, p. 259.
233
Constituições Sinodais do Arcebispado de Braga (1639), tit. 40, Const. VII,
p.479, apud MARQUES, João Francisco, ob. cit., p. 259.
234
«[...] dez partículas do lenho da Cruz [...]; um espinho da coroa de Nosso
Senhor Jesus Cristo; dois cabelos e “ũa redoma de vidro com três pelouros do leite de
Nossa Senhora coalhado”; ossos dos Santos Inocentes e dous “pedaços dos ossos de
São Cristóvão, mártir; mais partículas das cabeças de São Gervagy e Portagy, da pelle
de São Lourenço, e dos carvões em que foy queimado e da terra do mesmo logar em
que foy assado”; uma partícula do queixo de São Joáo Baptista; outra da cabeça de
“Santo Inofre, martir”; partículas dos ossos dos santos Fabião e Sebastião; “mais um
pedaço do pao onde dormia São Alexandro, martere”; mais outro pedaço do lenho da
Cruz; ossos de São Filipe, mártir, e de São Brás, bispo e mártir; “mais um pedaço do
braço de São Marçalinho, martir; “mais ossos e um dente do mesmo martir”; ossos de
Santa Maria Madalena e dos apóstolos Filipe e Tiago; “mais lenho da crux em que foy
crucificado Sancto André apostolo, e ossos do mesmo apostolo»; mais ossos da cabeça
80
valor das relíquias como motivo de, por eleição divina, engrandecimento de
um país que, neste caso concreto, é extensivo à Casa de Bragança,
esclarece-se no Agiologio Lusitano a propósito das relíquias da coroa de
espinhos de Cristo, destacando-se que, dos setenta e dois que a
compunham, Portugal possuía, na altura, «mais de sincoenta, e seis, em
ricas custodias de ouro, e ambulas de christal» 235.
Expressão do favor divino gozado pelos santos, os seus restos
mortais ou os seus objectos de uso quotidiano assumem para os fiéis, para
além de um estímulo à imitação, capacidades interceptivas e
taumatúrgicas, sendo a sua posse motivo para uma verdadeira corrida a
que muitas vezes estiveram associados factores políticos e económicos.
Conferindo uma maior importância à instituição religiosa e à localidade que
as possuía 236, registava-se em muitos casos a procura de uma colecção de
relíquias que, assegurando intercessão para todos os males, prestigiasse
espaços e meios sociais. À importância do culto das relíquias estavam
também associados mecanismos de distinção social e religiosa para os que
as doavam a igrejas e instituições religiosas. Veja-se, entre tantos, o caso
de D. João de Borja e sua esposa que, em 1588, doaram apreciável
quantidade de relíquias à igreja de S. Roque e receberam em troca a
«capella mor da dita casa de S. Roque pera sua sepultura, e de seus
descendentes co hũa missa quotidiana, e outras muitas, com outros
de Santo Estêvão, mártir, “e dos marteris Mario e Marta”; ossos dos Santos Inocentes,
de São Jerónimo, de São Pedro Apósto, dos mártires São João e Paulo ; «mais dos
ossos de Sancta Demicila virgem e martyr”, de São Lourenço, de São Gens e de Santo
Eleutério, bispo; “mais ũa bolsa de tafetá azul, dentro de na qual estavam varias terras
e pedras de reliquias da Terra Santa de Jerusalem”; “mais outra bolsinha de cor
catassol de seda, com algũas contas dentro em sy”, etc.». (MARQUES, Armando de
Jesus, O processo inquisitorial inédito do aventureiro Francisco de Leão , Braga, [s.n.],
1968, separata de Itinerarium , Ano XIV, n.º 59, pp. 10 – 11).
235
CARDOSO, Jorge, ob. cit. , III, p. 64.
236
Recorde-se a este respeito que Jorge Cardoso asssinala ser a posse de
relíquias um dos critérios de apropriação de um santo por um reino ou cidade
(CARDOSO, Jorge, «Aduertencias necessarias ao Agiologio Lusitano.», ob. cit. , I, p.
40).
81
sufragios que em vida, e pera depois de sua morte lhes foram
concedidos» 237
Para o caso do nosso país não há ainda estudos que permitam
conhecer o movimento de coleccionismo e multiplicação das colecções de
relíquias. Socorremo-nos, pois, do trabalho referencial de William Christian
Jr. que, inscrito na antropologia histórica da Castela Moderna, nos informa
que, até ao século XVI, a maior parte das relíquias se achava na posse de
mosteiros, catedrais e colegiadas, instituições religiosas dotadas de maiores
recursos e contactos com Roma. A partir da época de quinhentos, o facto
de a Espanha se ter transformado numa potência imperial europeia com
fundos tentáculos coloniais americanos, situação política que importa cruzar
com a prioridade missionária dos Jesuítas, eleitos pela Santa Sé como
«milícia espiritual em toda a Europa» em comunicação com a intensa
frequência com que os sacerdotes espanhóis se deslocavam a Roma
constituem factores políticos, eclesiásticos e religiosos concorrendo para a
entrada de muitas relíquias no mundo ibérico 238. Tendo os Jesuítas, muitos
deles espanhóis, chegado a Portugal em 1540, por iniciativa de D. João III,
compreende-se que este renovado culto das relíquias, já anteriormente
apreciado pela casa real, 239 tenha conhecido uma dimensão ainda
237
CAMPOS, Manuel de, Relaçam do solenne recebimento que se fez em Lisboa
às santas reliquias que se leuaram à igreja de S. Roque da companhia de Iesu aos 25
de Ianeiro de 1588 , Lisboa, Antonio Ribeiro, 1588, pp. 4 – 5. [B.N.: RES. 1681P.]. Na
segunda metade do século XVI, seria um dos mais notáveis santuários de relíquias,
possuindo mais de quarenta relicários (Cf. SOUSA, Ivo Carneiro de, A rainha D.Leonor
(1458 – 1525). Poder, Misericórdia, Religiosidade e Espiritualidade no Portugal do
Renascimento , Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian – Ministério da Ciência e do
Ensino Superior, 2002, p. 732).
238
CHRISTIAN JR., William A.., Religiosida local en la España de Filipe II ,
Madrid, Nerea, 1991, p. 166.
239
Exemplos conhecidos da devoção régia às relíquias são, entre outros, os
casos de D. Catarina (1502 – 75) e D. Isabel (1502 – 39); a importância da famosa
relíquia da coroa de espinhos da corte da rainha D Leonor (1458-1525); o enorme
impacto social, urbano e devocional da chegada promovida pela mesma rainha a
Portugal do corpo de Santa Auta: «No [dia 3 de Setembro], anno de 1517, entrou pela
barra de Lisboa hum thezouro amis precioso, que quantos tributou o Oriente ao Tejo:
82
considerável, congraçando vetustos cultos com novas devoções a relicários
nacionais e ultramarinos, reinventando-se santidades e taumaturgias que
trataram de reorganizar o processo de longa duração de difusão de uma
identidade católica de Portugal. É neste contexto geral que se devem
também inserir as relíquias de S. Gonçalo de Lagos que, como esclarecem
os seus milagres, se tornaram especialmente activas entre finais do século
XV e as primeiras décadas do século XVIII.
83
central da capela funerária do agostinho, sendo a sua terra a principal
relíquia que, começando por ser recolhida directamente da sepultura térrea
do convento velho, passa, depois, a procurar-se em sepulcro de pedra feito
especialmente para esse efeito. Aquela sepultura era distinta das dos
outros religiosos; situava-se «na capela mor da Igreja do Conuento no chão
do presbyterio do altar mor à parte do Euangelho» 242. Embora nenhum dos
autores até aqui referidos o esclareça, a leitura dos instrumentos de
autenticação dos milagres leva-nos a admitir a hipótese de a sepultura
térrea ter especializado uma tampa com um buraco por onde os devotos
podiam recolher aquela relíquia formada pela terra funerária 243. Motivada
por esta devoção terá sido criada pela nobreza local de Torres Vedras uma
confraria que tinha a seu cargo a celebração de uma festa anual 244 que as
hagiografias, procurando ampliar a dimensão e importância desta
comemoração, assinalaram ser acompanhada da realização de uma feira
que, provavelmente, não corresponderia a mais que à prática de pequenas
transacções comerciais.
Os textos e documentos hagiográficos destacam ainda, em seguida,
o grande concurso de crentes que, em 1492, terá estado na origem de uma
primeira trasladação dos restos mortais de Frei Gonçalo, nessa altura
depositados num cofre, fechado com duas chaves, que foi colocado dentro
242
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 277v. Embora João de França de
Brito e Frei Aleixo de Menezes também refiram os factos que envolvem esta procura de
terra pelos devotos, é com Frei António da Purificação, por ter frequentado estes textos
e compulsado outra documentação, que nos fornece dados mais correctos
cronologicamente. Saliente-se, contudo, que o cronista confunde frequentes vezes as
palavras “sepultura” e “sepulcro”, utilizando-as indistintamente, sendo certo que a
distinção é perceptível pelo contexto da narrativa ou descrição em que estão inseridas.
243
Como ilustrativo refira-se que, no relato constante do instrumento do milagre
em que foi beneficiada Catarina Lopes, surge a expressão «metesse a mão dentro no
buraco da sepultura» ( Processo da Fama de Santidade... , Arq. Sec. do Vaticano, Cong.
Riti., Proc. n.º 3335, f. 206)
244
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 278. Desta confraria, compulsados
diversos arquivos onde seria plausível encontrar qualquer notícia sobre a sua existência,
não encontrámos, à excepção dos textos hagiográficos, nenhum vestígio.
84
de um arco feito para esse efeito na mesma capela-mor 245. O elevado
número de devotos e a falta de espaço no interior da igreja são os motivos
apresentados pelo cronista agostinho para justificar esta trasladação
ordenada por Frei João da Madalena 246, então Provincial da Ordem:
245
PURIFICAÇÃO, Frei António da Purificação, ob. cit., f. 278.
246
Frei João da Madalena nasceu em 1449. Ingressou no Convento de Nossa
Senhora da Graça de Lisboa em 1458 e, depois de uma prolongada permanência em
Florença e em Perugia, onde estudou e chegou a leccionar, regressou a Portugal em
Janeiro de 1480, sendo lente de Teologia na Universidade desde 1486 até 1515, altura
em que faleceu no Convento de Penafirme (Cf. MACHADO, Diogo Barbosa, Bibliotheca
Lusitana Historica Critica e Cronnologica , Tomo II, Lisboa, Ignacio Rodrigues, p. 685 –
686).
247
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 278.
248
Foi, segundo Purificação, a data inscrita neste sepulcro que levou Frei
Jerónimo Román a assinalar este ano como ano da morte de Frei Gonçalo. O engano
seria detectado pelo próprio depois da sua vinda ao nosso país, altura em varejou «os
cartorios dos Conventos desta Prouincia. Donde leuou do de Torres-Vedras hua
historia authentica da vida, & milagres deste Bemauenturado», tendo corrigido o erro
na «Centuria quinze» (Cf. PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit. , f. 279).
85
enfremos» 249 ou dela tirarem essa relíquia mais popular. Concluía-se deste
modo um processo de especialização relicária, vazando o culto de S.
Gonçalo de Lagos na organização de um «chão santo», um espaço
santuário especializado na procura e manipulação da terra que se
apresentava como o envólucro sacral dos prodígios do frade agostinho.
Não deixe de se referenciar também algumas contradições neste
processo devocional. Na trasladação das relíquias de S. Gonçalo não foi,
contudo, contemplada a mudança daquele sepulcro, retirado apenas mais
tardiamente por ordem de Frei Gaspar Cão, Bispo de S. Tomé, entre 1570 e
1572 250. Nenhum dos textos hagiográficos parece dar importância a esse
facto. Somente Frei Manuel de Figueiredo 251 adianta como hipótese
explicativa para esta aparente contradição a possibilidade de, para além de
descuido dos religiosos, não haver na igreja do hospital de S. André espaço
que pudesse, com dignidade, receber aquele receptáculo, razão discutível
porquanto os demais autores afirmam ter ficado votado ao abandono,
muito embora ressalvem o facto significativo de ter continuado a ser
frequentado pelo povo que nele recolhia terra como remédio para vários
males 252. Poderá, pois, ter existido uma verdadeira concorrência devocional
entre um culto popular que continuava a dirigir-se ao espaço funerário
medieval de S. Gonçalo e os esforços quinhentistas tanto da Ordem como
da cidade para, apropriando este culto, lhe dar uma dimensão mais
organizada, estruturada e monumentalizada. De facto, depois dos religiosos
agostinhos se mudarem para o Hospital de Santo André, em 1544, o cofre e
o sepulcro de pedra gonçalinos permaneceram no convento velho até que,
em 1559, o edifício começou a ser demolido para que os seus materiais
249
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., fls. 278v - 279. Ver imagem
apresentada em anexo. Actualmente, como é bem visível na fotografia, o referido
buraco encontra-se tapado com cimento.
250
Purificação assinala este facto como tendo ocorrido «pelos annos de 1570».
Assinalámos este espaço de dois anos uma vez que Frei Gaspar Cão morreu em 1572.
251
FIGUEIREDO, Frei Manuel de, ob. cit., p. 124.
252
Cf. B.G.U.C. Cód. n.º 436, f. 9v; Frei António da Purificação, ob. cit. , f. 281v;
Frei Pedro de Souza, ob. cit., pp. 64 – 65.
86
fossem aproveitados na construção da nova igreja. Nessa altura, a 5 de
Agosto, foi feita a trasladação do cofre que se encontrava no arco da
capela-mor:
253
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit. , f. 280.
254
FIGUEIREDO, Frei Manuel de, ob. cit., p. 114
255
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 280
87
importância no que diz respeito à renovação da vitalidade do santuário o
facto de ter sido acompanhada da concessão pelo Arcebispo de Lisboa, D.
Fernando, de quarenta dias de indulgências:
256
Idem, ibidem , ob. cit., f. 279v - 280.
88
ter sido esta a primeira vez que foi celebrada missa em honra do santo. A
celebração litúrgica existia já desde o tempo da instituição da confraria e
perdurou até à morte de D. Sebastião (1578), altura em que aquela se
extinguiu. Acrescenta ainda que, ao contrário do indicado pelo documento
que transcreve, a missa então celebrada não foi a de todos os santos «mas
do commum de hum confessor não Pontifice», atestando esta conclusão
com as orações que encontrou no «liuro segundo dos milagres deste
Sancto às folhas vinte» 257. A este argumento acrescenta ainda o facto de a
confraria ter ornamentos de cor verde que era a utilizada em Roma para as
festas dos confessores 258.
Regressando à trasladação quinhentista do santo, retenha-se que
este evento confirma a necessidade de convocar em novo contexto sacral a
devoção da população, urgência que resultaria também da luta que o
Senado camarário terá movido aos religiosos por causa da posse das suas
novas instalações e rendas que lhe estavam afectas, confrontação que se já
se havia verificado em 1544 259. O diferendo ganha novas proporções em
257
Idem, ibidem , f. 280v.
258
Idem, ibidem , f. 281. Apesar destas afirmções, o autor afirma mais à frente
que durante conversas que teve com religiosos que moraram no convento
(provavelmente quando procedia a inquirições e varejos para a elaboração da segunda
parte da crónica, facto que aconteceu a partir de 1633 e muito provavelmente não
antes de 1640, ano das licenças da Chronologia Monastica Lusitana , obra em que, como
se viu, os dados biográficos eram parcos e pouco precisos), nenhum se lembrava de ver
celebrada outra missa que não fosse a de todos os santos (Cf. ob.cit., f. 281v). Desta
informação retira-se ainda, permitindo desta forma esclarecer algumas das imprecisões
que se detectam ao longo da narrativa, algo acerca da economia da produção da
crónica: o autor deve ter frequentes vezes recorrido a testemunho de outros religiosos
que frequentaram o convento torrejano. Ter-se-á igualmente socorrido de algumas
memórias sucintas e dispersas como as que se encontram no Ms. n.º 673 da Livraria no
I.A.N./ T.T.
259
O motivo desta oposição é esclarecido pelo cronista da seguinte forma: «O
Prouedor, e outros officiaes, que neste hospital tinhão a grandes proueitos, fizerão sua
resistencia, e protestos de nulidade, afim de se conseuarem na posse em que estauão
de comerem salarios por seruiço de pobres que não auia. E como a utilidade que daqui
tirauão tocasse a muytos por rezão das eleiçoẽs que cada anno se fazião em diuersas
89
1557 260, chegando mesmo a ocasionar tumultos organizados pela Câmara
que levaram à intervenção da Infanta D. Maria que, a 12 de Julho desse
ano, escreveu uma carta ao Senado lamentando a posição assumida contra
os religiosos agostinhos. Contudo, esta intervenção não terá sido suficiente
para sanar as contradições, esclarecendo o cronista outra missiva de
semelhante teor, agora escrita pela rainha D. Catarina em 2 de Agosto do
mesmo ano 261.
Na altura da trasladação de 1559, o sepulcro que continha a terra
foi deixado no convento velho, situação que, como se sugeriu, pode
ressaltar de um culto tradiocionalmente ligado a esse espaço, mas que
pode igualmente revelar uma diminuição do concurso de devotos, ao ponto
de não justificar a sua deslocação para a nova fundação. Tal só aconteceria
pessoas da terra, tomou a Camara, e pouo, á sua conta molestarnos em tudo o q podia
para q, visto não podernos tirar o hospital por via da justiça, nós de opprimidos o
deixassemos, e lho largassemos» (PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 182v).
260
É neste contexto que se inscreve o traslado dos instrumentos de autenticação
feitos em 1553 a que já nos referimos (Cf. nota n.º 133) e os milagres da década de
setenta associados a João de França de Brito.
261
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 182v. Sobre este assunto é
esclarecedor o seguinte excerto «No anno de 1559. gouernando a ditta Prouincia [?]
Rd Pe Fr. Fran.co de Villa Franca confessor da Rainha Dona Catheria o s.to Pe Fr. Luis
de Montoya confessor del Rey Dom Sebastião, sendo ambos vivos, e vigairos gerais
desta Prouincia tomãdo emparticular a sua conta a protecção e amparo do Convº de
Torres Vedras, alcansarão del Rey Dom João o 3º q Deus tem em gloria unisse a gafaria
de S. Lazaro ao ditto Conv/to de Torres Vedras, pois a auia dado aos P.es do Carmo pª
fazerem hum Conv/to na mesma villa; E o ditto Rei e S.or Dom João o 3º impetrando a
Bulla do Summo Pontifice Paulo 3º a anexou neste Conv.to de Torres Vedras, sobre oq
ouue tantos motins nesta villa contra os dittos Religiosos q não bastando o Respeito q
se deuia ao Sto Pe Montoya, varão de tantas virtudes e milagres, que em sua vida se
conta q qdo dizia missa depois de leuantar [?] o cobria e não aparecia o sto senão
despois de consumir a hostia. Chegarão os motins a tal extremo, q a Infanta Dona
Maria , q era em o tal tempo snra da ditta villa mandou carta de reprehensão aos
Moradores della , estranhandolhe m.to o pouco resp.to q tinhão aos Religiosos sendo q
lhe devião ter m.to porque (palavras formais da Infanta Dona Maria na mesma carta) os
Padres tudo o que fazem he afim de aproveitarem nossas Almas com confissoens e
pregaçoens.» (I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º 673, f. 368).
90
em 1570 por iniciativa do Bispo de S. Tomé, Frei Gaspar Cão, ocorrendo
então o milagre que, durante o transporte do sepulcro, curou da peste um
seu escravo. Naturalmente, o aparato em torno da movimentação do
sepulcro e da cura milagrosa representou um esforço para promover as
práticas devocionais em torno de uma relíquia que podia direccionar para o
santuário as romagens e oferendas dos devotos. Saliente-se aqui que,
apesar da mudança de convento, a construção do edifício definitivo foi um
processo longo. As obras do novo espaço religioso só se iniciaram a 7 de
Setembro de 1578, 262 ficando a igreja pronta em 1580, altura em que, a 18
de Dezembro, foi feita a terceira trasladação tendo na cerimónia pregado
Frei Agostinho da Trindade 263. Desta vez, contemplando as duas peças
relicário – o cofre e o sepulcro de pedra –, congraçavam-se na cerimónia os
religiosos e os poderes civis locais concluindo a resolução da contenda que
havia envolvido o Senado 264. Junto do nicho então preparado para albergar
o cofre das relíquias, mandou mesmo este órgão municipal colocar a
seguinte inscrição feita sobre tábua:
Entre 1580 e 1634 266, ano do primeiro milagre ao qual está associado
Frei António da Purificação, apenas há registo de um em 1583, altura em
262
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 183.
263
Idem, ibidem , fls. 282 – 282v
264
Idem, ibidem , f. 282v.
265
Idem, ibidem , f. 282v – 283. Ressalta aqui o facto de Frei Gonçalo ser
venerado como padroeiro depois da Virgem.
266
Os milagres do século XVII, com já foi referido, estão associados a Frei
António da Purificação que na qualidade de confessor aconselhava a invocação do
santo.
91
que por conselho de João de França de Brito 267, Agostinho Lopes conduziu
um filho com bexigas ao sepulcro gonçalino. Finalmente, em meados de
Dezembro de 1640, procurando associar o religioso cultuado à causa da
Restauração e, simultaneamente, criando um registo de culto posterior aos
decretos de Urbano VIII , foi feita uma quarta trasladação, se bem que
desta vez não tenha o cronista agostinho assinalado a participação de
representantes dos poderes públicos ou eclesiásticos, situação interrogando
a memória social e política de um culto que parecia dissolver-se:
267
Processo da Fama de Santidade... , Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti,
Processus n.º 3335, fls. 398v-399.
268
PURIFICAÇÃO Frei António da, ob. cit., f. 283.
92
«Sepultura do Sancto Padre Frei Gonçalo de Lagos Prior que
foy deste Conuento, que em vida floreceo em virtude, e em
morte resplãdeceo em milagres» 269.
269
Idem, ibidem , ob. cit., f. 284v.
270
Recorde-se que Frei Pedro Calvo, a que já nos referimos quando nos
debruçámos sobre os autores que Frei António da Purificação assinala terem já escrito
sobre Frei Gonçalo, também afirmou que no tempo de D. Jorge de Almeida, Arcebispo
de Lisboa, se havia iniciado semelhante diligência. Ora, durante o curso do Processo da
Fama de Santidade, foram compulsados os arquivos do Colégio do Pópulo em Braga e
da Câmara Patriarcal de Lisboa. Todavia, nenhum documento foi encontrado que fizesse
referência às ditas diligências. (Cf. Processo da Fama de Santidade... , Arq. Sec. do
Vaticano, Cong. Riti, Processus, 3335, fls. 390-390v).
93
1.2 - RELÍQUIAS EXISTENTES EM 1760 EM
TORRES VEDRAS E LAGOS
271
Ver desenho em anexo.
272
Trata-se de uma arca de formato quadrangular com cerca de um palmo e três
dedos de altura por dois palmos e um quarto de largura, forrada de couro por fora e
com uma fechadura. Estava dentro de um nicho quadrangular, a catorze palmos do
chão, protegida por um gradeamento com sete varões de ferro na vertical e três na
horizontal enquadrado num arco de volta perfeita e ornado por cortinas de seda «que
mostravão ter sido de cor encarnada , mas muito antigas, e gastas pelo tempo»
( Processo de Culto Imemorial... , Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Proc. n.º 3336, fls.
287 – 287v). Feitas várias diligências para encontrar as três chaves que permitiam a
abertura da grade e a da arca resultaram infrutíferas, pelo que se procedeu ao seu
arrombamento ( ob. cit., fls. 299v – 304).
273
«O crâneo e queixo superior, e inferior, seis vertebras do espinhaço; duas
fibulas, ambas as juras da composição das pernas; ambos os ossos das coxas; dous
ossos das cias, ou illios; dous docados de radios do antebraço; hum osso do tarso do
pé; dous ossos do metacarpo da mão; e outras muitas partes miudas, que por
confundidas, e quebradas, se não podia ao certo ajuizar a sua situação cada huma de
per si» ( Processo de Culto Imemorial... , Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Proc. n.º
3336, fls. 289v – 290).
274
Processo de Culto Imemorial... , Arq. Sec. do Vaticano, Cong.Riti, Proc. n.º
3336, fls. 289v-290
94
Terminado o exame, as relíquias foram depositadas de novo dentro da arca
que se decidiu guardar dentro de outra 275. O sepulcro de pedra também foi
examinado, 276 mas, no seu interior, da terra que noutros tempos tinha sido
procurada pelos devotos para obtenção dos favores divinos, não foi
encontrado qualquer vestígio. 277 Um facto que, por si só, nos permite
detectar uma diminuição do culto, assinalando ainda uma alteração das
práticas epocais devocionais em torno dos prodígios milagrosos que,
informadas por uma maior espiritualidade barroca setecentista, recorriam
menos aos poderes daqueles objectos sagrados e mais ao prestígio da
imagem e da palavra.
A relíquia existente em Lagos foi também identificada pelos
cirurgiões chamados a depor no processo relativo ao seu culto 278,
esclarecendo um fragmento de osso do antebraço (um rádio),
provavelmente parte da relíquia que haviam observado ainda antes do
terramoto de 1755 279. Das conclusões do processo retira-se que, originária
de Torres Vedras, esta relíquia terá rumado para a cidade algarvia ainda
antes dos decretos de Urbano VIII relativos ao culto dos santos, sendo
depositada na Ermida de S. Pedro dos Mareantes 280. Transformando-se esta
275
Tinha esta nova arca «três palmos de comprido, e meio de alto, de feitio
abaulado forrada por fora dee cetimencarnado, debruado com galão de seda amarelo
com duas argolas nas ilhargas douradas, e huma fechadura com três chaves, também a
fechadura dourada». ( Processo de Culto Imemorial... , Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti,
Proc. n.º 3336, f. 291).
276
Situado no chão, contava cerca de três palmos e meio de largura por quatro
de alto, tinha na tampa esculpida a efígie de um religioso cujo hábito era cingido por
um cinto de fivela. No lado direito tinha um buraco ( Processo de Culto Imemorial... ,
Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Proc. n.º 3336, f. 288v).
277
Processo de Culto Imemorial... , Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Proc. n.º
3336, f. 293.
278
Processo de Fama de Santidade e Culto dado a hũa Reliquia... , Arq. Sec. do
Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3337.
279
Idem, ibidem , fls. 139 – 139v.
280
Frei António da Purificação quando refere a eleição de Frei Gonçalo como
padroeiro da vila feita pelo Senado de Torres Vedras em 1495, altura em que se
colocou um terceiro cadeado no cofre das relíquias, informa que aquele só foi aberto
95
no hospital de S. João de Deus 281, passou a relíquia para a posse de
Francisco Nunes da Silva, Vedor Geral, vendo-se, posteriormente, colocada,
primeiro no Sacrário da capela de Nossa Senhora do Rosário, depois no
armário dos cálices na sacristia da Igreja de Santa Maria até que, com o
terramoto de 1755, ficou sepultada entre os escombros. Cerca de cinco
anos mais tarde, tomando o Senado conhecimento das diligências
processuais, ordenou que fosse procurada a relíquia para que, entregue ao
prior da Colegiada de Santa Maria, pudesse ser examinada pelos peritos
que testemunhavam no processo 282. Em qualquer dos casos, distingue-se a
acção decisiva dos poderes municipais na organização das relíquias
necessárias para o processo de beatificação.
2 – ROMARIAS E PEREGRINAÇÕES
«dahi a muytos annos, para se tirar huma relíquia, que à instancia da Camara de Lagos
se mandou para aquela Cidade, e se collocou na Igreja do Corpo Santo onde he
iuntamente, com o Bemauenturado Sam Pedro Gonçalves, invocado dos Mareantes, em
cujo fauor tem Deos por elle obrado grandes marauilhas.» (PURIFICAÇÃO, Frei António
da, ob. cit., f. 278v). Num memorial que, durante a tramitação do processo, foi feito
pelo Senado de Lagos e a seu requerimento integrado no processo, consta que para
obtenção da relíquia se deslocaram dois Senadores a Torres Vedras. Chegada a Lagos
foi recebia com «os maiores jubilos e festas pelo Bispo deste Reyno D. Fernando
Coutinho» (Cf. Processo de Fama de Santidde e Culto dado a hũa Reliquia ... , Arq. Sec.
do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3337, f. 29). A dar-se crédito a este memorial
terá a relíquia chegado a Lagos entre 1502 e 1536.
281
O autor da Monografia de Lagos situa e edificação da ermida no ano de 1490
e a fundação do hospital de S. João de Deus no ano de 1696 (Cf. Manoel João Paulo
Rocha, Monografia de Lagos , ed. fac-similada da de 1909, Faro, Algarve em Foco, 1991,
p.152).
282
Processo de Fama de Santidde e Culto dado a hũa Reliquia... , Arq. Sec. do
Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3337, fls. 141v - 145. Da transferência da relíquia
para a igreja de Santa Maria o único testemunho que aponta para uma data é o do
Padre Rodrigo Caetano Xavier que afirmou lembrar-se de a ver nesse local desde 1740
( ob. cit., f. 50v).
96
Associadas ao culto dos santos e, em particular, ao das relíquias
descobrem-se as peregrinações que, na tradição cultual portuguesa,
aparecem, desde cedo, organizadas em torno dessa noção ainda hoje
dominante de romaria . Prática devocional que convoca transversalmente
todos os estratos sociais, consiste, para cumprimento de promessas,
agradecimento, obtenção de protecção ou cura, em deslocações ao
santuário onde se encontram em exposição aqueles objectos ou imagens
sagradas, ultrapassando frequentes vezes a dimensão regional para impor
verdadeiros espaços de devoção nacionais e internacionais. Os santuários
de relíquias eram especialmente prezados pelas populações locais e
regionais portuguesas, descobrindo-se que, ao longo dos séculos XV e XVI,
a maior parte das peregrinações a estes espaços se relacionava com a
busca de cura para as grandes e pequenas doenças cujo socorro não era
oferecido pelas diferentes culturas medicinais epocais: paralisias, febres,
inchaços, perda de fala, deficiências físicas ou, entre tantas centenas de
casos, acidentes mobilizavam multidões de peregrinos a perseguir a
intercessão dos santuários de relíquias. Estes romeiros deslocavam-se ao
santuário para, junto da relíquia, obter a intervenção divina ou agradecer
uma mercê obtida, fazendo-se frequentes vezes acompanhar de ofertas de
bens que, na sua maior parte, estão relacionados com o culto: das velas ao
pagamento de missas, dos objectos pessoais a essas belíssimas colecções
de ex-votos populares. As relíquias eram manipuladas de diferentes
maneiras: somente exibidas e rezadas, por vezes tocadas, noutros casos
passadas por água que se dava a beber, em muitos outros exemplos
osculadas, difundiam uma crença profundamente misteriosa, tão
intercessora como curativa.
A partir da década de trinta da centúria de seiscentos, regista-se
uma progressiva incidência das dimensões penitencial e espiritual das
peregrinações religiosas portuguesas que, como sublinha Pedro Penteado,
se explica pela maior interferência do clero nestes santuários e itinerários
de santidade, dificultando o acesso directo às imagens e relíquias com vista
a uma valoração da administração dos sacramentos, sobretudo o da
97
confissão e a procura de indulgências, fazendo com que o reconhecimento
e identificação do pecado, o arrependimento e a obtenção do perdão
fossem fundamentais para o contacto ou aproximação com aqueles
objectos sagrados 283. Uma alteração que, de forma alguma, dissolveu a
devoção e prestígio dos objectos tradicionais ligados ao culto dos santos.
Na verdade, no caso de S. Gonçalo de Lagos verifica-se que, convocando o
processo setecentista destinado a demonstrar a existência do culto
imemorial gonçalino, os depoimentos das quarenta testemunhas arroladas
continuam a destacar que a intercessão através de ofertas e votos se
tornam tradicionais: membros em cera ou em pão, fitas, ex-votos, tranças
de cabelo e muitos outros objectos pessoais e da cultura material popular
mobilizam-se para interferir com o poder taumaturlógico do santo
agostinho. 284
As festas e celebrações religiosas, sobretudo as relacionadas com o
santo padroeiro, também constituíam motivo de peregrinação, assumindo
especial relevância as que estavam associadas a trasladações de relíquias.
João de França de Brito, na década de oitenta da centúria de quinhentos,
assinala que, no século anterior, se fazia uma romaria no dia em que se
celebrava a morte de Frei Gonçalo. A utilização da expressão «hum dos
dias do mês doutubro» é reveladora de que nem na memória do devoto era
guardada uma recordação precisa de uma prática já desaparecida como é
pelo próprio assinalado 285.
Num estilo que denuncia a frequência deste texto, bem como do
manuscrito de Frei Aleixo de Menezes 286, Frei António da Purificação
assinala a existência de uma romaria anual no dia da morte de S. Gonçalo
283
PENTEADO, Pedro, «Peregrinações e Santuários», in AZEVEDO, Carlos Moreira
(dir. de), História Religiosa de Portugal , vol. 2, Rio de Mouro, Círculo de Leitores, 2000,
p. 349.
284
Processo do Culto Imemorial... , Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus
n.º 3336, fls. 38v - 249
285
Processo da Fama de Santidade... , Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti,
Processus n.º 3335, fls. 391 – 391v.
286
B.G.U.C., cód n.º 436, f. 9.
98
envolvendo pessoas do Algarve e ofertório variado. Associada a esta data,
embora bebendo a informação nos mesmos textos, refere ainda o cronista
a realização de «uma grande feira no terreiro de fronte do mosteiro» 287,
associação entre sagrado e profano que, como assinala Virgínia Rau, é
frequente. Com efeito, o aparecimento de muitas feiras foi favorecido pela
existência de cerimónias religiosas, pois muitas vezes o peregrino e o
mercador são quase a mesma pessoa. Esclarece ainda a autora que «quase
todas as cartas de feira portuguesas marcam o prazo da feira em relação a
uma festa da Igreja», sublinhando que «muitas feiras tiveram o seu berço
junto à capela de algum orago particularmente venerado» 288.
No entanto, no caso em análise, não se pode aceitar que a feira de
Torres Vedras deva a sua existência àquelas celebrações gonçalinas visto a
sua fundação datar de 1293, realizando-se de acordo com a respectiva
carta de feira entre o primeiro dia de Maio e o primeiro dia de Junho 289,
sendo este período alargado, em 1318, até ao primeiro dia de Julho 290,
alteração que se manteve até ao final da Idade Média 291. A comunicação
entre as comemorações do santo agostinho e a feira torrejana não colhem
quaisquer provas documentais rigorosas, não assentam na ordem da
cronologia, antes sublinham mais uma dessas estratégias de ampliação do
biografado próprias da retórica hagiográfica barroca.
3 - DEVOÇÕES E DEVOCIONÁRIOS
287
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit. , f. 278.
288
RAU, Virgínia, Feiras Medievais Portuguesas. Subsídios para o seu Estudo ,
Lisboa, Editorial Presença, 1983, pp. 33 – 34.
289
Idem, ibidem, p. 180-181.
290
Idem, ibidem, p. 182-183.
291
RODRIGUES, Ana Maria, Torres Vedras. A Vila e o Termo nos Finais da Idade
Média , Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/Junta Nacional de Investigação Científica,
p.345.
99
A estas diferentes práticas cultuais dirigidas para S. Gonçalo de
Lagos estão associadas outras actividades de natureza devocional,
geralmente especializadas por aqueles que rogavam a proteção do santo ou
tratavam da manter viva a fama do seu culto. Em sinal de agradecimento
pelos favores alcançados, era frequente a romagem ao santuário para que,
junto do altar das relíquias, fossem depositadas as ofertas mais comuns –
essas colecções referidas de velas, membros de cera ou pão, ex-votos ,
fitas, medalhas, etc. –, ao mesmo tempo que os mais abastados mandavam
celebrar missas em louvor do santo.
Em meados do século XVII, regista-se a existência de dois legados
pios significativos dedicados a S. Gonçalo de Lagos. Em 1644, Maria Serrão
Borges, viúva de Bartolomeu Pacheco de Sande, oferece em vida, para
esmola e obras pias, uma tença anual de vinte e cinco mil reis a Frei Miguel
da Luz, seu confessor, valor que depois da sua morte passará a ser o
dobro, para que por sua alma fossem ditas dez missas por ano, gastando-
se metade daquele valor. Depois de morto o confessor, dos cinquenta mil
reis receberia Frei Francisco da Luz dez mil e o restante seria cobrado pela
Misericórdia para prover às mesmas despesas e diligências, sendo que,
depois de beatificado o santro agostinho, deveria ser construida uma
capela ornada com quatro castiçais de prata 292. Em 1648, Jacinto da
Fonseca Moniz, morador em Torrre Vedras, determinou por testamento que
dos rendimentos de umas casas fosse retirado o bastante para que todos
os sábados, enquanto o santo estivesse no nicho, fossem acesas no
convento, quatro velas de dois arráteis, cabento ao sacristão a devolução
dos cotos aos herdeiros para troca por outras novas. Extinguir-se-ia esta
obrigação apenas no caso de o santo ser mudado para altar onde se
dissesse missa, altura em que deixaria de pertencer aos devotos esse tipo
de prática por passar a ser da obrigação dos religiosos 293.
Além dos beneficiados com os milagres e prodígios, os autores das
principais biografias hagiográficas e uma larga maioria das testemunhas
292
Processo da Fama de Santidade... , Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti,
Processus n.º 3335, fls. 220 – 223v.
293
Idem, ibidem , fls. 218-218v.
100
dos processos de beatificação destacam a existência de uma confraria
gonçalina e o patrocínio continuado dos Senados municipais de Torres
Vedras e de Lagos. Relativamente à erecção desta confraternidade, as duas
principais fontes hagiográficas apresentam uma ligeira diferença quanto à
ocasião e motivo. Se o Arcebispo de Goa, D. Aleixo de Menezes, assinala a
sua criação depois da era de 1518294 - altura em que terá sido feito um
sepulcro de pedra de onde os devotos retiravam terra -, já o cronista oficial
da ordem, Frei António da Purificação, em diversos locais do seu texto
hagiográfico sublinha três elementos que conduzem o leitor até aos anos
vinte de quatrocentos: primeiro, teria sido a confraria a suportar as
despesas da primeira trasladação das relíquias feita em 1492 295; segundo,
durante a trasladação efectuada em 1559, o cronista afirma que se
preservava um tipo de culto que era costume prestar-se apenas ao santos
canonizados «com grande deuoção auia mais de cem anos» 296; finalmente,
depois de fazer coincidir quase «tragicamente» a extinção da confraria com
o ano da morte de D.Sebastião, 297 não deixa de informar que a sua
actividade durou 150 anos 298. Frei António da Purificação, dada a sua
condição de cronista oficial dos Eremitas de Santo Agostinho, teve
certamente acesso a um maior número de fontes documentais que
deveriam firmar uma análise mais apurada, conquanto, no que toca à
hagiografia gonçalina, à boa maneira da imitatio epocal, sejam constantes
as colagens mais do que íntimas ao texto de Frei Aleixo de Menezes.
Instituída pela «nobreza da terra» 299, tudo leva a crer que se tratava
de uma confraria laica cuja função se prendia essencialmente com as
294
B.G.U.C., Cód. n.º 439, f. 9 - 9v. Como já referimos o texto deste autor é
frequentado pelas duas formas de datação, a de César e a de Cristo, sem que a tal,
aparentemente, correpondam rigorosamente os dois critérios.
295
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 278v.
296
Idem, ibidem, f.280v.
297
Idem, ibidem , f. 280v e f. 283.
298
Idem, ibidem , f. 281.
299
Idem, ibidem , f. 278.
101
práticas e despesas do culto de S. Gonçalo 300. Acerca do tema da sua
extinção são reveladores no plano simbólico e das estratégias hagiográficas
os textos fundamentais de Frei Aleixo de Menezes e o de Frei António da
Purificação. O primeiro faz depender a dissolução da confraria, bem como a
retracção das manifestações devocionais ao santo agostinho, da falta de
autorização pontifícia do seu culto, uma condição que, nos primeiros
tempos, havia sido desrespeitada por ignorância ou simplicidade dos
devotos 301,
«O que depois se foi esfriando assi pello tempo que tudo passa
como pello pouco cuidado que se teve de se zellar a devação do
santo e apregoar as maravilhas que o Senhor continua muito per
seus merecimentos obrava principalmente por se não fazerem
estas cousas com autoridade do Summo Pontifice nem estarem
ainda aprovadas pela Santa Igreja Romana cuja licença e
aprovação por sertas semelhanças he neceçaria porque naquelles
primeiros annos parece que não advertio a simplicidade e
singileza dos que nelles viviaõ, mas posto que esta confraria e
concurso de gente cessasse não cessou a devaçaõ do povo»302
«Ià por este tẽpo [1580] não auia confraria do S[anto]. A qual
se começou a dsfazer cõ a infelice iornada, e morte de ElRey
300
Idem, ibidem , f. 281.
301
B.G.U.C., Cód. n.º 436, f. 9 - 9v.
302
B.G.U.C., Cód. n.º 436, f. 9 - 9v.
102
D. Sebastião. Porque ficando desde então o Reyno sẽ gẽte, e
sẽ dinheiro pouoado de Viuuas, e orfãs, e banhado em
lagrimas, foy faltando pouco, e pouco quem cõtinuasse com
as obrigaçoens, de hũa confraria tão custosa: e assi veyo
breuemente a se extinguir de todo: confirmandose este
desemparo com a noua ẽtrada do Rey Castelhano Dom Fellipe,
que por morte do Cardeal Rey Dom Henrique no mesmo anno
de 1580. se introduziu industriosamente na sucessam destes
Reynos» 303.
303
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit. , f. 283.
103
pela restauração do seu culto e popularidade em estreita comunicação com
essa outra libertação política concretizada com a Restauração de 1640.
304
Arq. Sec. Vaticano, Processus nº 3336, Processo do Culto Immemorial ... , fls.
122 – 122v.
305
SOUZA, Frei Pedro de, ob. cit. , pp. 56 – 57.
306
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit. , f. 278.
307
Arq. Sec. Vaticano, Processus nº 3336, Processo do Culto Immemorial ... , f.
122v.
104
relevância das alianças ou solidariedades políticas, sociais e religiosas. A
este respeito, a medievalista Maria Helena da Cruz Coelho considera que,
desde os finais do século XIV, altura em que a eleição para os cargos
municipais se começa a fazer de forma indirecta, os processos utilizados
para a centralização régia encontram ao nível local um equivalente na
concentração do poder em grupos elitários municipais 308. Se, durante a
segunda metade de quatrocentos, entre os oficiais concelhios de Torres
Vedras existe uma relação equilibrada entre o número de cavaleiros e
escudeiros face aos provenientes de outras categorias sociais, na centúria
seguinte a presença de elementos da nobreza é dominante 309, facto que
admite a hipótese de terem sido desenvolvidas estratégias de tipo clientelar
para manutenção dessa oligarquia, alargando-se do político e do económico
também ao social e ao religioso.
Quanto a Lagos, sabemos através da cronística oficial de Frei António
da Purificação que, embora não clarificando a cronologia, a Câmara local
pediu ao Senado municipal de Torres Vedras uma relíquia do santo
agostinho que havia nascido na cidade algarvia. Um memorial feito em 16
de Abril de 1760 pela Câmara lacobrigense esclarece ter chegado a santa
relíquia entre 1502 e 1536:
105
decoroza guarda seis clerigos com sobrepelizes e lanternas,
que alumiavão a Sagrada Reliquia, erigindo-lhe para maior
culto altares em todos os lugares, que nos povos da iornada
estavão destinados. Chegando a esta Cidade foi recebida com
os maiores jubilos e festas pelo Bispo deste Reyno D.
Fernando Coutinho, que a esperava acompanhado de nuitas
Dignidades e Conegos da sua Cathedral; Levantarãose pelas
ruas arcos em triunfo, e gloria do nosso Bemaventurado
Patricio, e com repetidas aclamaçoẽs foi levada para a Ermida
de São Pedro dos Mareantes desta Cidade honde se conservou
athe o anno de 1695, tempo, em que recebendo alguas ruinas
esta, e fazendose dificultozo o seo reparo, a arrogou á sua
iurisdicção o Snor. Rey D. Pedro, e a mandou reedificar,
estabelecendo nella o Hospital dos militares dando a
administração delle aos Religiozos de S. João de Deos, a quem
a dita Ermida servio de Capella, sendo por esta cauza
removida, e levada a Sagrada Reliquia para a Igreja de Santa
Maria onde se colocou, e venerou sempre, continuando o
concurso da nobreza, e povo desta Cidade que no mesmo dia
e anno em que se recebeo iurarão a este prodigiosos varão
por seo Padroeiro, e Protector» 310
106
de Janeiro, era perante os mesmos juízes renovado o voto a que os seus
antepassado se haviam obrigado em 1495 312. Por sua vez, em Lagos, os
vereadores, quando, em 17 de Abril de 1760, entregaram aquele memorial
de culto, renovaram o antigo juramento devocional, prometendo a
edificação de uma capela na igreja de Santa Maria e a celebração anual de
uma cerimónia religiosa em que a Câmara seria sempre representada
formalmente pelo vereador mais velho 313. Destaca-se, assim, que tanto num
local como noutro, os detentores da autoridade municipal perseguem uma
propositada associação e apropriação de elementos religiosos próprios do
culto gonçalino, elevando quer o seu prestígio social público, quer
principalmente associando a bondade do poder municipal a essa outra
bondade maior da santidade.
312
Idem, ibidem , fls. 304v – 307v.
313
Processo de Fama de Santidade e Culto dado a hũa Reliquia... , Arq. Sec.
Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3337, f. 30
107
IV PARTE
DA PERSONAGEM HISTÓRICA
À INVENTIO DA SANTIDADE 314
314
A expressão « inventio » deverá ser aqui entendida no seu sentido retórico de
res aptum , ou seja, o conjunto de elementos capazes para demonstrar e oferecer ao
leitor uma imagem de santidade.
108
1 – AS FONTES
109
uma diomensão já firmadamente eclesiológica atestada pelas sucessivas
trasladações das relíquias realizadas em 1492, 1559, 1580 e 1640 até se
encontrar o espaço religioso julgado adequado para um santo ligado, por
fim, à própria celebração religiosa da Restauração política.
Integrando-se claramente no contexto da “reconquista” tridentina, a
hagiografia gonçalina é tardia, essencialmente barroca, concorrendo para
esse movimento que, ao longo dos séculos XVI e XVII, procurou sedimentar
uma cultura e praxeologia de uma santidade portuguesa, estendendo-se da
recuperação de vetustos santos da antiga Lusitânia romana à divulgação de
«novos», restaurados ou inventados a partir de memórias antigas, tardo-
medievais, mais ou menos populares e locais. A estes dois aspectos
devemos ainda acrescentar a preocupação mais especializada de geração
de santos, agora portugueses, capazes de elevar a história das diferentes
ordens e institutos religiosos, esforço que se alarga ao Eremitas de Santo
Agostinho e ao investimento cronístico que desagua na obra de Frei
António da Purificação. Somem-se ainda factores locais mobilizando elites e
municípios para afirmarem a sua prioridade regional graças à sua
antiguidade e poder dos seus santuários. Em Torres Vedras, os finais do
período medieval são agitados pela competição entre novas observâncias e
experiências religiosas organizadas em torno dos franciscanos do Varatojo
(1474) e dos monges arrábidos do Barro (1570), acrescentando-se, a
seguir, a mudança, com a apropriação das respectivas rendas, do convento
dos agostinhos para o Hospital de Santo André (1544). Apesar de
encontrarem um local mais privilegiado, a demora na construção do edifício
definitivo foi grande, tendo-se iniciado apenas em 1578, 317 prolongando-se
por vários anos até receber o impulso decisivo do próprio Frei Aleixo de
Menezes durante o seu curto priorado (1588-90). 318 Esta instalação local de
317
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit , f. 183.
318
Relacionados com os bens e doações do convento terão estado na origem de
conflitos com um grupo encabeçado por João Gomes Rebelo. A intervenção régia levaria
a que Gaspar de Abreu Castelo Branco, juíz de fora, sanasse a contenda a favor dos
religiosos. «No anno de 1588. sendo Prior do ditto Conu/to Dom Fr. Aleixo de Menezes
q não so por seu sangue foi illustre mas pelos lugares que tem, sendo Arcebispo de Goa
110
novas ordens e programas religiosos obriga a frequentar os trabalhos
cronísticos e hagiográficos barrocos, entre outros factores mais complexos,
também em função da luta por vezes culturalmente violenta pela
justificação da prioridade de espaços religiosos, dos seus santos, ideários e
instituições. Uma concorrência religiosa que a cronística religiosa barroca
haveria de exagerar e que não deixa de matizar a aparente tranquilidade
com que se edificam exemplos de santidade e se provam vetustos cultos
oferecidos ao consumo social e devocional público.
Compulsados vários arquivos e muitas colecções documentais, no
estado actual dos nossos conhecimentos sobre a história da vida de S.
Gonçalo de Lagos apenas sobreviveu uma única referência documental
contemporânea do frade agostinho em contrato de emprazamento
celebrado entre o Convento de Nossa Senhora da Graça de Lisboa e um tal
Diogo Lopez. Trata-se de documento datado de 21 de Maio de 1404, cujo
interesse histórico reside no facto de atestar que, nesse ano Frei Gonçalo
de Lagos, era o prior do convento:
Primas das Indias, e vicerey da mesma India, Arcebispo de Braga, Primas das Espanhas
e viceRey de Portugal e acabou Presidente em Castella do Consº de estado em
Portugal, sendo chamaado o Restaurador da fée q.do o Apostolo São Thome auia
pregado nas partes Orientais; e auista do grande exemplo q nesta villa sendo Prior
viueu; todo o pouo da villa como do termo lhe fez esmola de certo dinheiro para aiuda
das obras da Igreia, e certos homens se confederarão tambem contra o ditto Prior, e
mais religiosos fazendo assinar a outros homens papeis contra os dittos Religiosos afim
só de os dezacreditarem, uzando trapaças e emburulhadas para lhes tirarem a esmola q
lhes auião prometido chegãndo seus maos termos e ruins procedim.tos a tanto q elRey
D. Felipe de Castella q.do (intruso gouernaua Portugal) mandou por guiza sua ao Juis
de Fora q antão seruia o [?] Gaspar de Abreu Castelbranco q não consentisse que João
Gomes Rabelo q era procurador e cabeça dos ditos homens requeresse contra os
Religiosos, mande por nulla a procuração q elles lhe auião feito p[ara] procurar contra
os mesmos Religiosos.» ( I.A.N./T.T., Livraria, Ms. 673, f. 368 - 368v).
111
cruzada d’ ouro. Sendo Provincial Fr. Lourenço, e Prior Fr.
Gonçalo de Lagos...» 319
319
I.A.N./T.T., Livro 1 do Convento de N. Srª. da Graça de Lisboa, f. 162 v.
320
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit. , f. 271.
321
GUTIÉRRES, David, Los Agustinos en la edad media. 1357 – 1517 , Roma,
Instituto Historicum Ordinis Fratum S. Augustini, 1977, p. 130.
322
Processo da Fama de Santidade... , Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti,
Processus n.º 3335, fls. 391 – 399.
112
do santo, mas oferecendo um fundo desconhecimento dos factos
biográficos da vida gonçalina.
A cópia do texto manuscrito de Frei Aleixo de Menezes 323 enviado da
Índia em 1604, tem sido apresentado pela historiografia especializada como
sendo a mais antiga biografia de S. Gonçalo de Lagos que subsistiu até
nós. O seu autor afirma ter-se baseado na tradição oral, frequentada
durante o período em que foi Prior do convento de Torres Vedras (1588-
90), e em escritos anteriores muito sumários. O facto de muitos desses
textos não terem sobrevivido, não permite que sejam definidos os limites
entre a tradição oral e a certeza documental, fronteiras muitas vezes
abertas às indagações mais fantasiosas. Ficamos, pois, sem saber se as
fontes alegadas pelo Arcebispo de Goa conteriam matéria semelhante à
frequentada por esta hagiografia que, claramente, encontraremos plasmada
nas produções posteriores. De uma forma ou de outra, uma primeira leitura
da expressão utilizada por Frei Aleixo de Menezes declarando que a vida de
S. Gonçalo se achava «taõ curta e mal escrita ẽ liuro [...] no Conuento de
Torres Vedras» 324, faz supor um conjunto escasso de informações, pelo
que, aliado à falta de documentação e à pouca informação biográfica
fornecida por outros autores, somos levados a admitir como plausível a
possibilidade de os chamados testemunhos por ouvir dizer terem sido
frequentemente convocados por Frei Aleixo de Menezes sempre que se
tornava indispensável alimentar uma hagiografia longe da precaridade
documental. Uma espécie de estratégia de ocultação característica da
hagiografia e da cronística religiosas barrocas, compondo os lugares vazios,
os hiatos e as ignorâncias com inventadas tradições orais.
O original deste códice é uma espécie de segunda edição desse
outro entregue a Frei Jerónimo Román, relação que o Arcebispo de Goa
temia poder perder-se 325, mobilizando-o quase de memória durante a sua
estada em Goa. De qualquer modo, existe uma clara relação de
323
B.G.U.C., Cód. 436.
324
B.G.U.C., Cód. n.º 436, f. 2v. Provavelmente o autor referia-se ao texto de
João de França de Brito.
325
B.G.U.C., Cód. n.º 436, f . 2.
113
hereditariedade entre o texto mais antigo, atribuído a João de França de
Brito, e as hagiografias de Menezes e Purificação. Com efeito, a tradição
mais vetusta define já o corpus de atributos pessoais do santo – a
humildade, a caridade, a pregação e a castidade – que os textos de Frei
Aleixo de Menezes e de Frei António da Purificação tratarão de ampliar,
ultrapassando a sua dimensão tópica. O mesmo acontece, como se verá,
quanto à naturalidade e origem social de S. Gonçalo, se bem que é notório
um desconhecimento do seu percurso religioso e uma grande incerteza
quanto à data da sua morte.
Apesar de os fundos do Convento de Nossa Senhora da Graça se
terem perdido após a acção legislativa de Joaquim António de Aguiar que,
com a extinção das ordens religiosas, viu perpetuada essa alcunha de
“mata frades”, os biógrafos gonçalinos são unânimes na acusação aos
religiosos da época de falta de cuidado na preservação dos documentos
respeitantes à história da ordem. Frei António da Purificação, no «Prologo»
da sua Chronica chega mesmo a apresentar um historial de desvios e
perdas pelas quais teriam sido responsáveis Frei Egidio Viterbiense que,
Geral da Ordem, em 1512, mandou recolher documentos da Província de
Portugal com vista à elaboração de uma Crónica Geral que nunca chegou a
ser feita; no ano de 1553, por ordem do Geral Frei Cristóvão Patavino,
procedeu-se a idêntica recolha que teve como fruto « hum breue index, a
que seu author Dom Fr. Ioseph Pamphilo chama Chronica da ordẽ de
Sancto Agostinho, e taõ sucinto que naõ ocupa mais, que 36. folhas de
papel» 326. Muitas foram também as perdas resultantes de selectivas
pesquisas de vários religiosos que, por ordem dos seus superiores,
recolhiam documentos conventuais para escrever memórias gerais e locais.
De entre esses religiosos, destaca-se Frei João de São José que terá
fornecido vários documentos das casas e arquivos dos agostinhos
portugueses a Frei Jerónimo Román 327 que, durante as suas estadas no
nosso país, recolheu e levou consigo diverso material com interesse para a
326
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit. , I, f. 19v.
327
Idem, ibidem , f. 19v.
114
história da ordem que, refere o nosso cronista, provavelmente se terá
perdido:
328
Idem, ibidem , f. 20.
329
ANJOS, Frei Luís dos, Jardim de Portugal, em que se da noticia de algũas
Sanctas, & outras molheres illustres em virtude, as quais nascerão, ou viuerão, ou estão
swepultadas neste Reino, & suas cõquistas , Lisboa, Nicolao Carualho Impressor del Rey,
1626.
330
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit. , I, f. 20.
115
Pedro del Campo com vista à publicação de uma crónica geral. Contudo, a
viagem de regresso, feita em pleno Inverno, fez com que a maior parte da
documentação ficasse destruída, pelo que os poucos volumes chegados ao
seu destino eram de somenos importância, sendo devolvidos cerca de dois
anos mais tarde 331. Neste contexto, parece de destacar o sucesso
documental raro do próprio Frei Aleixo de Menezes, dele resultando
331
Idem, ibidem , f. 20v.
332
Idem, ibidem , f. 20.
116
autor. O facto de se registar alguma omissão de elementos cronológicos ou
do percurso religioso, poderá ser explicado pelas circunstâncias em que o
autor, como se refriu, elaborou esta “segunda edição”, inventando e
preenchendo de memória as etapas e eventos marcantes da vida de S.
Gonçalo de Lagos. A seguir, Frei António da Purificação, por ter tido acesso
a um volume superior de fontes, fornece-nos mais elementos biográficos
acerca do santo agostinho. Num estilo marcadamente barroco, recompõe e
redimensiona o retrato exemplar edificado pelo Arcebispo de Goa para,
desta forma, elevar as qualidades e notoriedade do biografado. Sigamos
entre retóricas barrocas e inflamadas exemplaridades este itinerário
biográfico da hagiografia gonçalina.
117
pela grande nobreza de costumes permitindo que ao jovem fosse
ministrada uma educação exemplar possibilitando-lhe até no campo das
letras o domínio da língua latina:
«criaraõ seu filho com grande zelo, e cuidado, para que saisse
muy perfeito em todo o genero de virtudes, e como o
mandassem aprẽder as artes, q na primeira idade se
costumaõ estudar, sahio nellas consumado, e principalmente
na de escreuer, e na noticia da lingua Latina» 334
334
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit. , II, f. 267v.
118
graça conseruar por então, e em todo o discurso da sua vida,
a limpeza, e pureza d’alma, que no baptismo recebera» 335.
335
Idem, ibidem , fls. 267v - 268.
336
SOUZA, Frei Pedro de, ob. cit. , p. 5.
119
nouo em obras mais subidas de virtudes, dando-se com mais
afectos, e frequencia a jejuns, oraçoes, e disciplinas» 337
337
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit. , f. 268
338
Idem, ibidem , f. 269.
339
B.G.U.C., Cód. 436, f. 3v; PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob.cit., f. 268 -
268v.
340
Processo da Fama de Santidade Virtudes, e Milagres... , Arq. Sec. do Vaticano,
Cong. Riti, Processus n.º 3335, f. 392.
341
Apesar de o ter sido também no convento de Lisboa entre 1592 e 1595, nada
refere sobre a passagem de Frei Gonçalo por aquela casa. Esta omissão, se por um lado
poderá reforçar a hipótese por nós avançada de um significativo peso da tradição oral
no texto do autor, por outro conduz-nos à ideia de que com Frei António da Purificação
não serão raros elementos de invenção hagiográfica. Este autor, como adiante veremos
assinala neste priorado uma acção significativa e reformadora de Frei Gonçalo. Ora,
tendo Frei Aleixo de Menezes sido prior da mesma casa, não seria de esperar que um
tão relevante desempenho do seu antecessor constasse nas suas memórias?
120
Assim, as informações recordam que o primeiro convento em que S.
Gonçalo foi Prior teria sido o de S. Lourenço, na Lourinhã, cerca do ano de
1394 342. Relativamente a este período Frei Manuel Figueiredo 343 e Frei Pedro
de Sousa 344 demarcam a cronologia do priorado gonçalino entre aquele ano
e o de 1396, acrescentando este autor que as memórias deste convento se
perderam em 1555 com a sua extinção inscrita na reforma de Frei Luis de
Montoya 345.
Em 1404, encontramos o nosso santo no exercício do mesmo cargo
de prior no Convento de Nossa Senhora da Graça de Lisboa 346. Com base no
facto de muitos dos priores do convento terem sido também Vigários
Gerais, Frei António da Purificação presume que, durante esse priorado,
Frei Gonçalo também o terá sido. Por isso, atribui ao seu labor na vigararia
geral a responsabilidade da aplicação na província agostinha de Portugal do
ordenado no Capítulo Geral da Ordem de 1404 acerca da cerimónia da
genuflexão «quãdo no hymno Te Deum laudamus , se diz o verso Te ergo
quaesumus », assim elevando S. Gonçalo de Lagos como Reformador da
Província.
Entre 1404 e 1408, data em que inicia o exercício de semelhantes
funções no convento dos agostinhos de Santarém, não temos qualquer
dado que permita saber se permaneceu ou não na cabeça do reino. Na casa
escalabitana terá aumentado, pela aquisição de uma herdade em 1409, o
342
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob.cit. , f. 271. O Cód. n.º 436 da B.G.U.C.
não refere este priorado.
343
FIGUEIREDO, ob. cit. , pp. 34-35.
344
SOUZA, Frei Pedro de, pp. 19-20.
345
SOUZA, Frei Pedro de, ob. cit., p. 34. (Cf. PURIFICAÇÃO, Frei António da,
ob.cit. , f. 271).
346
I.A.N./T.T., Livro 1 do Convento de N. Srª. Da Graça de Lisboa, f. 162 v;
B.G.U.C., Cód. n.º 436. Purificação aponta como fonte para o priorado do Convento de
Nossa Senhora da Graça de Lisboa umas escrituras datadas de 1404 assinadas por Frei
Gonçalo (Cf. PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob.cit., f. 271). Dessas escrituras apenas
conseguimos encontrar, como acima assinalámos, a que se encontra no Livro 1 do
Convento de Nossa Senhora da Graça de Lisboa, folha 162 v, depositado no I.A.N./T.T.
121
património do convento 347, facto também assinalado por Frei Aleixo de
Menezes a propósito do milagre que envolve a escritura de doação 348.
Finalmente, frei Gonçalo assume, desde 1412, o priorado do Convento de
Nossa Senhora da Graça de Torres Vedras, cargo que ocupará até à sua
morte apontada, sem unanimidade, em 15 de Outubro de 1422.
A forma como dirigiu estes conventos é sobejamente utilizada pelos
seus biógrafos para justificar uma caracterização recheada de virtudes,
bem como para registar alguns dos prodígios que lhe são associadas.
Embora o primitivo biógrafo torreense tenha assinalado de forma sumária a
humildade que marcou o exercício deste cargo 349, caberia ao Arcebispo de
Goa350 e, numa redacção mais cuidada, ao cronista da ordem, recorrendo
mesmo a uma comparação tópica com a figura de Cristo, informar que Frei
Gonçalo se encarregava de todo o tipo de tarefas humildes. De todas, as
mais evidenciadas eram as que se relacionavam com práticas caritativas e
piedosas quase levadas ao extremo, como é ilustrado com a sua dedicação
permanente aos doentes:
347
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob.cit., f. 271v; FIGUEIREDO, Frei Manuel
de, ob. cit., p. 41; SOUZA, Frei Pedro de, ob. cit., pp. 22-23.
348
B.G.U.C., Cód. N.º 436, f. 5v.
349
Processo da Fama de Santidade... , Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti,
Processus n.º 3335, f. 392.
350
B.G.U.C., Cód. N.º 436, f. 4v.
122
alimpaua as officinas do Conuento, e seruia a todos em tudo o
que as forças do seu cançado corpo podião chegar, cõ tanta
humildade, e prontidão, como se fosse hum escrauo do
conuento.» 351
351
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 271v.
352
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob.cit., f. 272. João de França de Brito ( apud
Processo da Fama de Santidade... , Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335, f. 392) e Frei Aleixo de Menezes ( ob. cit. f. 4v) com graus de relevância
semelhantes aos dos casos já referidos em comparações anteriores também assinalam
estes factos.
123
o seruo de Deos com os pães que pode leuar nos alforges,
que trasia às costas, e encheo hũa pequena almotolia de
azeite, e hũa borracha de vinho, cousas todas com que elle
podia caminhar. E [...] se voltou a pera Torres Vedras a pè
[...] muyto alegre, e contente [...] Mas o Arcebispo, q de
muytos annos o reuerenciava, e estimaua, como sua
santidade merecia, pasmado de ver um espirito tam humilde ,
e singello, q empregando os desejos só nos bens do Ceo, com
tam pouco dos da terra se satisfazia, deixouo leuar seus
pobres alforges pela reuerencia que lhe tinha, e por não
molestar sua singeleza. Mas mandou apos delle muytas
azemolas carregadas de paõ, vinho, carnes, pescado, azeite, e
todas as mais cousas necessarias pera o Capitulo» 353
124
1519 apontado por este cronista mais não era que o que se encontrava na
sepultura do santo existente no convento de Torres Vedras,
correspondendo não ao ano da sua morte, mas sim ao da feitura da sua
renovada campa fúnebre 358. Cerca de nove anos mais tarde, Frei João de
São José, supostamente na posse de numerosos documentos e colaborador
de Román, quando na sua Corografia refere o nosso religioso, fá-lo de uma
forma intemporal que parece denotar fundo desconhecimento.
Depois de João de França de Brito assinalar que, relativamente à
altura em que escrevia, terem ocorrido «cento e vinte anos pouco mais ou
menos» em meados de Outubro pois em tempos já passados se realizara
uma romaria nessa época do mês 359, caberia, menos de uma década
depois, a Frei Aleixo de Menezes, recheando de abundantes detalhes a vida
e morte de Frei Gonçalo, situar no início daquele mês, «na era de 1445», a
grave doença que no dia quinze poria termo à vida do beato agostinho 360.
Frei António da Purificação fixaria o início da doença no dia 2 de Outubro
do ano de 1422 e a morte treze dias depois. Tal como em Frei Aleixo de
Menezes, a morte é aqui encarada como uma recompensa, podendo mesmo
afirmar-se que estas hagiografias nos oferecem uma paideia da morte:
125
Sacramentos da Igreja. E ficando com elles mais confortado, com
tão grande alegria e jubileos dalma esperou a morte, que parecia
começar já a gozar na terra a gloria, que dahi a pouco auia de
receber no Ceo.»361
Relativamente à construção da imagem de santidade, não
considerando aqui os milagres já estudados, sobressai que, se o primeiro
hagiógrafo, João de França de Brito, fornece um quadro simples
enaltecendo fundamentalmente os dotes pregatórios, a castidade e a
caridade 362, à medida que se percorrem os textos hagiográficos posteriores
deparamos, além da valoração daqueles predicados tópicos e normativos,
com outros elementos que chegam mesmo a consubstanciar uma projecção
da espiritualidade barroca dos autores na vida do seu biografado medieval.
Assim, Frei Aleixo de Menezes, colocando a educação recebida nos tempos
de juventude ao serviço de Deus, apresenta Frei Gonçalo como um exímio
escritor de livros para o serviço do coro cuja valoração é exaltada através,
como atrás referimos, dos milagres em torno dos volumes desaparecidos
nos conventos Lisboa e Santarém 363. Com a intervenção cronística de Frei
António da Purificação, Frei Gonçalo é já debuxado como um homem que,
tendo mesmo frequentado, pese o anacronismo, Artes e Teologia na
Universidade, manteve a centralidade da humildade e o desejo de
rapidamente se dedicar à pregação, opções religiosas impelindo-o a não
prosseguir os estudos superiores para obtenção de grau académico em
Teologia:
361
PURIFICAÇÃO, Frei António da Purificação, ob.cit., f. 277.
362
Processo da Fama de Santidade... , Arq. Sec. do Vaticano, Processus n.º 3335,
fls. 392 – 392v.
363
B.G.U.C., Cód. n.º 436, f. 4.
126
força tem a doutrina Euangelica na boca do Prègador, que à
imitação de Christo faz o que ensina» 364
127
eclesiástico que se vivia em Torres Vedras. São frequentes e insistentes as
recomendações no sentido de ser aumentada a doutrinação, o rigor da
celebração eucarística e a necessidade de impor uma maior regularidade da
confissão. A respeito das colegiadas de Torres Vedras, Ana Maria Rodrigues
conclui que a frequência das visitas feitas no século XV denota uma
situação pautada pela ignorância, absentismo e imoralidade dos clérigos 367.
Se bem que estas situações se reportem a um período pré-tridentino,
diversas recomendações da hierarquia ao longo dos séculos XVI e XVII
reforçam a importância do ensino da catequese 368 como resposta
fundamental na formação dos fiéis e na organização da sua participação na
vida da Igreja.
Apesar de não serem referidos pelo texto mais vetusto de João de
França de Brito, o rigor eucarístico, a contemplação, a oração pessoal e as
práticas penitenciais associadas a um rigoroso ascetismo atravessam os
textos da hagiografia gonçalina, fornecendo ao leitor um exemplo modelar
de santidade. Denotando uma rigorosa domesticação dos sentidos e do
corpo, na vida religiosa de S. Gonçalo estão presentes fenómenos de
mortificações corporais (cilícios e açoutes) e penitenciais (cama de vides, o
dormir sem cobertura, a privação de sono, as lágrimas e suspiros) bem
apreciados pela espiritualidade barroca, invadindo e colorindo as suas
hagiografias. Mais uma vez Purificação, ainda que convocando no essencial
o que, embora não de forma tão sistematizada, havia sido escrito por Frei
Aleixo de Menezes 369, organiza um retrato plasmando um modelo espiritual
e de santidade modernos, descobrindo-se mesmo uma combinação
366
PEREIRA, Isaías da Rosa, «Visitações da Igreja de S. Miguel de Torres Vedras
(1462-1524), Lusitania Sacra , 2ª Série, Tomo VII, Lisboa, Universidade Católica-Centro
de Estudos de História Religiosa, 1995, pp. 181- 252.
367
RODRIGUES, Ana Maria, «As Colegiadas de Torres Vedras nos séculos XIV e
XV», Espaços, gente e sociedade no Oeste. Estudos sobre Torres Vedras Medieval ,
Cascais, Patrimonia, 1996, p. 240.
368
Sobre este assunto veja-se o estudo de João Francisco Marques em «A
palavra e o livro», AZEVEDO, Carlos Moreira (dir. de), História Religiosa de Portugal ,
Vol. 2: Humanismos e Reformas , Lisboa, Círculo de Leitores, 2000, pp. 377 – 393.
369
B.G.U.C., Cód. n.º 436, fls. 4 – 4v.
128
harmoniosa entre elementos ascéticos e místicos que não conhecem aqui
grande distinção. Todavia, estes caracteres espirituais fazem de Frei
Gonçalo (e consequentemente da própria ordem) um conveniente
«precursor» de uma espiritualidade frequentada e reivindicada pelos seus
biógrafos modernos cujo protagonismo cabia essencialmente aos Jesuítas e
aos Dominicanos:
129
«o principal exercicio, em que [...] se ocupaua era como
temos dito a quietação da oração, e suaue sono da
contẽmplação: o qual o fazia andar assi por fora como por
casa, todo absorto em Deos, e ardendo em tão viuas chamas
de amor de hum Senhor [...]» 372
igualmente suscitado as desconfianças dos que seguiam com mais rigor os princípios
tridentinos (Cf. MARQUES, João Francisco, «Orações e devoções», in AZEVEDO, Carlos
Moreira (dir. de), História Religiosa de Portugal , Vol.2: Humanismos e Reformas , Lisboa,
Círculo de Leitores, 2000, p. 603.
372
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob.cit., f. 273.
373
Idem, ibidem, f. 268.
374
Uma ingenuidade quase infantil ressalta da relação de Frei Gonçalo com as
crianças decorrente da prátrica da pregação: «E muytas vezes se ajuntauão a brincar
com elle, como se fosse outro de sua idade. O que tudo consentia o seruo de Deos com
grande alegria, e deuoto affecto» (PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob.cit., f. 274.)
375
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob.cit., f. 286-288.
130
tentativa diabólica «para derribar aquella fortaleza tão fortificada por
Deos» 376, existem alguns indícios documentais 377 sugerindo tratar-se de
uma «conjura» de alguns habitantes da vila de Torres Vedras com vista a
desacreditar o Prior do Convento para, desta forma, denegrir a imagem
local dos Agostinhos, enformando esse temário da luta entre o século e a
prioridade da religião atravessando de forma recorrente os programas da
hagiografia medieval e moderna.
A partir destes dados fundamentalmente hagiogáficos,
progressivamente mais barrocos, importa destacar que o quase vazio
documental acerca da vida histórica de Frei Gonçalo se preenche sobretudo
com hagiografias e processos de beatificação como os reunidos entre 1759
e 1760. Uma situação obrigando a que se coloque a seguinte questão:
como é que uma figura acerca da qual existem tão poucos dados
documentais contemporâneos só assume relevância devocional a partir dos
finais do século XVI, conhecendo depois assinalável dimensão cultual em
meados da centúria seguinte, principalmente em Torres Vedras e Lagos?
Note-se, porém, que na sua Chronica da Antiquissima Provincia de Portugal
Frei António da Purificação, estabelecendo uma associação ao poder real
em comunicação com essa alegada carta de D. João II, confere ao prior de
Torres Vedras um prestígio que ultrapassa as fronteiras do local, mas que,
em rigor, o santo agostinho nunca conseguiu consolidar fora dos textos e
376
B.G.U.C., Cód. 436, f. 6v.
377
«No anno de 1420. sendo Prior do ditto conuº o s.to P.e Fr. Gonçalo de Lagos
qem vida floreceo em todo o genero de virtudes e na morte resplandece com
protentosos milagres p[ara] q detodo eclipsasem sua virtude e infamassem tão grande
S.to q.do mais sua fama era conhecida; certas pessoas seconfederarão entre sy (ô
coniuração diabolica) e persuadirão a hua moça q de noite entrasse na cella do sto P.e
Fr. Gonçalo fingindo q hia fugida aqual entrando se descompos em sua presença e o
incitou m/tas vezes; porem como a providencia divina [?] da malicia humana nâo soó
não teve effeito tâo preversa e danada tenção mas a pureza do sto Religioso ficou mais
pura e a malicia detaes pessoas detodo frustrada; q este era o respeito q se tinha a
hum Prior tão S.to vivendo na villa de Torres Vedras.» (I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º
673, f. 368).
131
páginas dos cronistas da sua Ordem. No entanto, com a veneração dos
santos e das relíquias estimulada pelo Concílio de Trento, lavra-se o terreno
propício ao fascínio pela santidade, pelos milagres, pelo maravilhoso e
pelos estados místicos, investimentos tridentinos que favorecem, afinal, a
restauração e invenção do culto de S. Gonçalo de Lagos, progressivamente
localizado e, por fim, associado à Restauração.
O prestígio espiritual das ordens religiosas passava necessariamente,
para além de outros critérios de prestígio que adiante assinalaremos, pela
visibilidade das suas personagens mais heróicas, nomeadamente pela
afirmação axial da santidade. Desta forma, acompanhando o movimento
editorial do século XVI, podemos encontrar na cronística uma preocupação
com a compilação e redacção dos factos históricos e gloriosos das ordens
religiosas, um notório esforço de divulgação dos seus santos e religiosos
relevantes, ao qual não terá sido igualmente estranha a divulgação de
novos modelos de santidade. É neste contexto que deverá ser entendida a
canonização de santos das ordens reformadas nas primeiras décadas do
século XVII 378, concretizando a exemplaridade e o didatismo que
cronísticas, hagiografias e visitadores tratavam de semear.
Assim, a hagiografia gonçalina parece inscrever-se também num
contexto de tentativa de reafirmação da importância da Ordem dos
Eremitas de Santo Agostinho no Portugal Moderno e Barroco. Os
observantes Franciscanos tinham enxameado no século XV o tecido urbano
e alcançado os meios áulicos, suplantando o prestígio das chamadas ordens
primárias antigas 379. A seguir, os Dominicanos e os Jesuítas assumem no
378
Maria de Lurdes Correia Fernandes, «História, santidade e identidade. O
Agiologio Lusitano de Jorge Cardoso e o seu contexto», Via Spiritus, 3, 1996, pp. 35 –
36.
379
O convento do Varatojo, logo desde a sua fundação chamou gente dos
estratos sociais mais elevados. Alguns dos que os iam ouvir chegaram mesmo a
construir casas na imdiações do convento. Do palacete dos Andrade ainda hoje se
podem ver as ruínas (a esta família pertenceram homens como Diogo Paiva de Andrade
e Tomé de Andrade que depois seria conhecido por Frei Tomé de Jesus). Sobre este
assunto veja-se a síntese que Manuel Clemente , sob o título «Varatojo: centro de
irradiação», publicou no jornal Badaladas de 5/10/84, p. 11 e 19.
132
século XVI uma relevância que os levará a dominar o ensino e a
missionação. Esta concorrência terá mesmo originado uma disputa pelo
prestígio perdido entre as ordens primárias. Essa disputa é reconhecível
pela inscrição nos textos cronísticos e hagiográficos daquilo que poderemos
chamar elementos indiciadores de prestígio: a antiguidade e prioridade da
ordem, a sua associação a factos relevantes da construção da história
nacional, a associação ao poder monárquico ou senhorial, 380 a
especialização de uma cultura erudita teológica e, acima de tudo, a
elevação e glória dos seus membros através da santidade.
O texto cronístico de Frei António da Purificação constitui um
verdadeiro manifesto procurando restaurar o prestígio religioso e social
perdido pelos agostinhos. Não só se preocupa em demonstrar que os
Eremitas de Santo Agostinho chegaram a Portugal ainda antes da formação
da nacionalidade, afirmando mesmo ter sido S. Frutuoso membro da Ordem
e «o primeiro, que neste Reyno plantou a nossa Religião, edificando algũs
Mosteiros naquela Prouincia de entre Douro, e Minho» 381, adiantando ainda
que o convento de Penafirme foi fundado «pellos annos de 840» 382.
Reclamando a primazia sobre os Cónegos Regrantes de Santo Agostinho
esclare igualmente que na armada reunida em auxílio de D. Afonso
Henriques para a conquista de Lisboa seguiam cinco religiosos eremitas
agostinhos a quem o fundador do mosteiro de S. Vicente entregou o seu
governo 383. Paralelamente, à prioridade histórica soma-se o prestígio das
133
letras, destacando-se, entre vários, Frei Rodrigo de Santa Cruz, pregador
de D. João II e de D. Manuel, Frei Tomé de Jesus, autor dos famosos e
muito lidos Trabalhos de Jesus , Frei Agostinho da Graça, celebrado Lente
de Teologia. 384 Por fim, como seria de esperar, Frei António da Purificação
destaca o papel da sua Ordem na missionação do Oriente, complementando
qualificadamente a acção prosélita de Franciscanos, Jesuítas e Dominicanos
até revelar a sua prioridade:
134
o de 1622. em que os Persas tomaraõ esta ilha com ajuda dos
Ingrezes, e extinguirão nella a memoria do nome Christão» 386
386
Idem, ibidem .
387
Idem, ibidem , f. 18.
388
Idem, ibidem .
389
Inclui-se aqui na noção de religiosidade popular, malgrado alguma
impropriedade científica do conceito, uma área populacional socialmente ampla,
frequentada quer por elementos das elites, no sentido sociocultural do termo, quer por
elementos de origem popular.
390
Com efeito, em 1171, com Alexandre III é proibida a veneração e culto
religioso a qualquer homem sem o aval da Igreja Romana. As determinações de Urbano
VIII de 1625, que seriam confirmadas em 1634, relativamente ao culto dos não
beatificados ou canonizados, indicia claramente que se vivia uma época de proliferação
da santidade vox populi , processo do qual certamente as ordens religiosas não estariam
desligadas. A própria criação da Congregação dos Sagrados Ritos e Cerimónias em
1587, que logo no ano seguinte procedeu à primeira canonização (Diogo de Alcalá),
fazendo depender de Roma e de uma complexa tramitação processual a condição de
beato ou de santo, tendia a disciplinar a santidade nascida exclusivamente da
veneração pública.
135
a sua vida exemplar e inventa a sua história, ocupando o vazio documental
com a elevação da espiritualidade, o frade agostinho dificilmente acabaria
os seus dias «condenado» a ver a sua história narrada por um processo
bem sucedido de beatificação.
V PARTE
136
EPÍLOGO:
S. GONÇALO DE LAGOS DO SÉCULO XVIII
AOS NOSSOS DIAS
391
ALONSO, Carlos, Os Agostinhos em Portugal , Madrid, Ediciones Religión y
Cultura, 2003, pp. 121-122.
137
espaços vazios, representavam episódios relevantes dos notáveis da
ordem 392. Deste século podemos igualmente encontrar em algumas das
casas do nosso país inúmeras esculturas de religiosos que se evidenciaram
por virtudes ou pela sua acção nas missões ultramarinas. Entre as muitas
com que deparámos figuram também as arranjadas iconografias de S.
Gonçalo espalhando-se pelo Algarve, distribuídas entre Lagos e Tavira, por
Lisboa, Torres Vedras, Coimbra e Porto 393.
Apesar desta iconografia geograficamente vasta, mas limitada e
pobre, vários são os indicadores de uma diminuição devocional do culto do
santo agostinho, como os que se recuperam nas Memórias Paroquiais do
século XVIII, inventariando o património e a história do reino graças ao
patrocínio da Academia das Ciências. Para o caso da freguesia de Santa
Maria de Lagos, nada é referido ao questionário número sete 394,
encontrando-se somente na resposta ao número dezoito 395 informações
sumárias sobre a naturalidade e o local onde, de acordo com a tradição
oral, terá vivido S. Gonçalo, a que se acrescentava ainda a existência de
uma relíquia perdida em 1755 396, mas recuperada por ordem do Senado
cinco anos mais tarde. O caso de Torres Vedras é ainda mais
paradoxalmente sintomático, não se arrolando nas Memórias Paroquiais
quaisquer notícias sobre o santo agostinho que havia falecido na vila.
392
Dos azulejos que decoram as paredes da portaria fornecemos imagens
legendadas em anexo iconográfico. FALTA PÁG.
393
De algumas das esculturas e representações iconográficas apresentamos em
anexo fotografias das que se encontram em localidades onde ainda hoje, pelos
testemunhos verbais que conseguimos obter, se mantém viva, ainda que com
expressões distintas, a prática devocional.
394
«Qual é o seu orago, quantos altares tem, e de que santos, quantas naves
tem; se tem Irmandades, quantas e de que santos?» ( apud Fontes setecentistas para a
história de Lagos , Lagos, Centro de Estudos Gil Eanes, 1996, p. 89.
395
«Se há memória de que florecessem, ou dela saíssem alguns homens insignes
por virtudes, letras ou armas?» ( ob. cit., p. 90)
396
«Florecerão com virtudes, desta cidade, o Beato Gonsallo de Lagos, religiozo
de Santo Agostinho, e se dis foi morador na rua de Santa Bárbara; havia huma relíquia
em huma redoma de cristal com seu pé de prata, dentro da qual estava hum pedaço de
ousso do dito Bem-aventurado, e no terremotu de sincoenta e sinco se perdeu» ( ob.
cit., p. 116)
138
É, assim, em contexto de recuperação de um culto quase exangue
que se inserem as diligências com vista ao reconhecimento pontifício do
culto e fama de santidade de S. Gonçalo. Em dois de Agosto de 1759, Frei
Francisco Xavier Vasques, então Provincial, requereu ao Cardeal Patriarca
de Lisboa que fosse instruído um processo com vista à beatificação e
canonização de Frei Gonçalo de Lagos. Os poderes para condução das
diligências foram delegadas em José Dantas Barbosa, Arcebispo da
Lacedónia e Vigário Geral do Patriarcado, em dois juízes adjuntos, os
presbíteros seculares Luís da Costa Barbuda, doutor em Teologia e Prior na
paróquia de Santa Engrácia de Lisboa e Ângelo de Barros, Doutor en
Cânones. Para a legítima contradição foi nomeado Promotor Fiscal da Cúria
Patriarcal Mateus Antunes da Luz e Miranda. A Frei Agostinho da Silva
caberia desempenhar as funções de procurador da Ordem. As diligências
processuais iniciar-se-iam sete dias depois daquela data para terminarem
em vinte e quatro de Março do ano seguinte 397. Paralelamente ao processo
sobre a fama de santidade e milagres, correu outro 398 sobre a fama de culto
entre catorze de Novembro e vinte e seis de Abril de 1760. Finalmente,
seria feito em Lagos, entre 20 de Março e 9 de Julho deste ano, um
processo semelhante relativo à fama de santidade e culto de uma
relíquia 399. Aqui seriam nomeados pelo Bispo do Algarve, D. Lourenço de
Santa Maria, João Baptista Coelho de Castro, prior da Colegiada de S.
Sebastião em Lagos, Frei António Caetano Nunes, religioso de Nossa
Senhora do Monte do Carmo, Lázaro Moreira Landeiro Corte Real, prior da
colegiada da Santa Maria de Lagos 400.
Juntos os três processos, procedeu-se à sua cópia autêntica que
forneceu um total de mil oitocentas e setenta e seis páginas. Todavia, os
397
Processo da Fama de Santidade... , Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti,
Processus n.º 3335, fls. 1 – 4v.
398
Processo do Culto Imemorial... , Arq. Sec. Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3336.
399
Processo de Fama de Santidde e Culto dado a hũa Reliquia... , Arq. Sec.
Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3337.
400
Idem, ibidem , fls. 3 - 4.
139
processos só seguiriam para Roma cerca de catorze anos mais tarde 401,
atraso que se terá devido em parte ao corte de relações com a Santa Sé 402.
Datada de 29 de Maio de 1773, uma cópia de uma carta escrita em Faro e
destinada ao Papa, fornece-nos como argumento para aceitação da causa,
além dos cuidados exames feitos acerca dos milagres e da vida virtuosa de
Frei Gonçalo, a importância do reconhecimento de um santo para uma
Ordem que pretendia ser activa na missionação no império português. 403 A
seguir, Frei Pedro de Souza esclarece que, em 16 de Julho de 1777, Pio VI
autorizou que fossem os processos analisados pela Sagrada Congregação
dos Ritos:
401
MARTINEZ, Hipólito, S. Gonçalo de Lagos , Braga, Editorial Apostolado da
Oração, 1992, p. 51.
402
Depois de um período de relações tensas entre o Marquês de Pombal e D.
Filipe Acciauoli relacionado com a questão dos Jesuítas, o núncio, a pretexto do
episódio em torno dos festejos do casamento da princesa D. Maria foi expluso do reino.
O corte de relações com Roma duraria cerca de dez anos pois só em Janeiro de 1770 foi
nomeado como núncio para Portugal D. Inocêncio Conti. (Cf. OLIVEIRA, Miguel de,
História Eclesiástica de Portugal , Mem Martins, Publicações Europa-América, 2001, pp.
198-199).
403
Arquivo Histórico da Diocese do Algarve, Carta ao Papa pera a beatificação de
S. Gonçalo de Lagos , Faro, 23 de Maio de 1773 [Este documento por se encontrar junto
de vários outros ainda não catalogados, não tem cota].
404
SOUZA, Frei Pedro de, ob.cit., p. 204 – 205.
140
Conhecida a notícia em Lisboa, fez-se celebração no Convento da
Graça durante três dias. A própria coroa se associaria aos festejos 405,
voltando depois a fazê-lo durante a trasladação que foi feita em quinze de
Novembro de 1784, patrocinada por D. Pedro III que, na sequência de uma
cura prodigiosa, 406 ofereceu um cofre para serem depositadas as relíquias
gonçalinas 407 e se fez representar nos festejos do dia seguinte por Frei
Joaquim Forjaz. Nesta festa, que congregou os religiosos de Lisboa e
Torres Vedras, fez-se uma procissão em que o cofre relicário seguia
debaixo de um pálio transportado pelo Juíz de Fora e Vereadores do
Senado 408. Compunham o desfile «todas as Collegiadas, Irmandades, Clero
Secular e Regular, e toda a Nobreza desta Villa e seu Termo, achando-se as
Tropas Auxiliares postadas pelas ruas» 409.
405
«Os Religiosos de Santo Agostinho celebrárão com muita solemnidade no
Convento da Graça hum Triduo nos dias 13, 14, 15 deste mez em memoria de S.
Gonçalo de Lagos, beatificado em Maio passado. A 15, dia anniversário do feliz transito
deste Santo, a Rainha nossa Senhora, Principes, e Infantes forão venerar a sua Imagem
na ditta Igreja. El Rei nosso Senhor foi render o culto devido á sobredita Imagem no dia
18 de tarde.» ( Gazeta de Lisboa , n.º XII, 20 de Outubro de 1778, p. 4).
406
Tendo o rei uma chaga numa perna, ter-lhe-á sido sugerido por Frei Joaquim
Forjaz que invocasse S. Gonçalo de Lagos, do qual lhe ofereceu uma estampa para
colocar sobre a ferida. ( Cf. TORRES, Manuel Agostinho Madeira, Descripção historica e
Econnomica da Villa e termo de Torres-Vedras , ed. fac-similada da 2ª ed., Torres
Vedras, Santa Casa da Misericórdia, 1988, p. 126, nota do editor).
407
«S. M. o Senhor D. Pedro III., multiplicando todos os dias os exemplos da sua
grande piedade, acaba de dar hum novo testemunho do zelo que o anima pela Religião,
e da devoção singular que lhe inspirão as heroicas virtudes deste bemaventurado Servo
de Deos pela Real magnificencia com que ordenou se celebrasse a sua trasladação,
fazendo-lhe presente d’hum precioso cofre, para nelle serem depositadas as suas
Reliquias e mandando concorrer para a solemnidade deste dia a Musica da sua Real
Capella, os seus Mestres de Cerimonias, e os seus mais ricos ornamentos e tapecerias.»
( Segundo Supplemento Á Gazeta de Lisboa , n.º XLVI, 20 de Novembro de 1784, p. 3).
408
A participação dos representantes e agentes do poder local na procissão
deveu-se a uma ordem dada nesse sentido por D. Maria I ( Cf. TORRES, Manuel
Agostinho Madeira, ob. cit., p. 125, nota do editor).
409
Segundo Supplemento Á Gazeta de Lisboa , n.º XLVI, 20 de Novembro de
1784, p. 4. Júlio Vieira fornece um lista das pessoas, notáveis ou representantes do
141
2 - DO SÉCULO XIX ÀS COMEMORAÇÕES DOS ANOS SESSENTA
poder local, que assistiram à cerimónia, bem como uma descrição completa do cofre
oferecido por D. PedroIII (Cf. VIEIRA, Júlio, Torres Vedras Antiga e Moderna , Torres
Vedras, 1926, pp. 136-137).
410
ROCHA, Manoel João Paulo, Monographia. As forças militares de Lagos nas
Guerras da Restauração e Peninsular e nas pugnas pela liberdade , ed. fac.-similada de
ed. de 1909, Faro, Algarve em Foco, 1991, pp. 161-163.
411
Livro de acórdãos da vereação, f. 280, apud Júlio Vieira, ob. cit., p. 138.
412
TORRES, Manuel Agostinho Madeira, ob. cit., p. 127, nota do editor.
413
Idem, ibidem , p. 126, nota do editor.
142
turismo, as duas cidades que acolheram e foram permitindo a sobrevivência
tanto da arranjada memória como da devoção gonçalina.
Seria preciso esperar pelo ano de 1926 para que a cidade torrejana
voltasse a conhecer novamente os festejos em honra do seu padroeiro. Um
edital de 6 de Agosto relativo à marcação da «Feira Nova» associava à
exposição agrícola, pecuária e industrial as festas do antigo e quase
esquecido santo padroeiro da vila. Ligados aos trabalhos preparatórios para
este evento estavam, entre outros, Rafael Salinas Calado 414, um dos
oradores do «I Colóquio Gonçalino» que se realizaria em Lagos, em 1961, e
Júlio Vieira que, autor de obra monográfica já citada dedicando oito
páginas a S. Gonçalo, viria a fazer parte da comissão executiva responsável
em associar à «Feira Nova» os festejos em honra do padroeiro da vila,
restaurando essas vetustas comunicações entre profano comercial e
sagrado devocional 415.
Em Torres Vedras, a realização de festejos em honra de S. Gonçalo
conheceria a partir desta data uma evolução pautada pela instabilidade. No
final dos anos cinquenta, vários são os artigos do jornal Badaladas que
apresentam propostas para a sua realização. Sob o título
«Restabelecimento do culto e das tradicionais festas em honra do santo
Padroeiro de Torres Vedras», chega-se mesmo a afirmar que as festas
gonçalinas deviam coincidir com a feira anual que se realizava no mês de
Junho, pois o mês de Outubro não convocava muitos devotos. 416
Entretanto, em Lagos, uma série de acções prepararia o terreno para o
recrudescimento do culto que conduziria mais tarde ao envolvimento e
apropriação do santo pelas autoridades municipais da cidade. Em 1940, nos
«Folhetins Históricos do Algarve» do Jornal de Lagos , Alberto Iria, com o
título «S. Gonçalo de Lagos (Uma biografia manuscrita inédita do século
XVII em cópia do século XVIII)», 417 viria a estampar o códice nº 112 da
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. Dois anos mais tarde, aquele
414
«Exposição e Festas Anuais», O Correio de Torres , n.º3, 24/Jan./1926, p.1.
415
«Festas Anuais e Exposição», O Correio de Torres , n.º4, 1/Fev./1926, p. 1.
416
Badaladas , 1/1/58, p. 4.
417
Jornal de Lagos , 19/X/40, p. 2.
143
hitoriador e José Fernando Mascarenhas, também colaborador do mesmo
jornal, ambos alferes milicianos no Regimento de Infantaria 4, encontrar-
se-iam na «Juventude Católica Militar» ou «Obra dos Soldados de Lagos»,
surgida na sequência da desobriga 418 preparada para os soldados na altura
da Páscoa. Durante a organização deste acto terá surgido a ideia de, sob o
patronato de D. Nuno Álvares Pereira, S. Gonçalo de Lagos e S. Sebastião,
consolidar a formação moral, religiosa, patriótica e cultural dos mesmos
militares, para que, dentro das linhas que norteavam a Acção Católica,
pudessem ser «melhores cristãos e melhores portugueses» 419. Consistia
essa formação em palestras realizadas numa dependência da igreja de S.
Sebastião em que eram tratados temas da moral e doutrina cristãs e
episódios da história pátria que atestassem ou fossem conformes a esses
princípios. Visitas ao Museu de Lagos, cerimónias evocativas de
personagens históricas, espectáculos de grupos corais e celebração de
cerimónias religiosas e festas aos patronos da organização integravam
também as actividades então reallizadas 420.
Uma das acções então desenvolvida foi a recuperação do nicho e
capela de S. Gonçalo de Lagos junto das chamadas Portas do Mar que viria
a ser inaugurado no dia 15 de Novembro de 1942 421. Por essa altura, os
dois impulsionadores ainda criaram, chegando mesmo a redigir os seus
estatutos, a Confraria de S. Gonçalo dos Pescadores de Lagos destinada a
«desenvolver o culto pelo glorioso Santo Algarvio, como também tornar
extensivo à juventude marítima o espírito da Acção Católica» 422.
Novos festejos em honra do santo só se realizariam a partir de 1955
por iniciativa do padre Eudoro dos Santos Vieira, responsável também pela
418
Confissão anual que é imposta aos católicos.
419
MASCARENHAS, J. Fernandes, No Rumo da Educação , Lisboa, 1944, pp. 41 –
42; Antero Nobre, O Pescador que quis ser Monge e foi Santo , Tavira, 1957, p. 131-
132.
420
MASCARENHAS, J. Fernandes, ob. cit., pp. 43 – 45.
421
Jornal de Lagos , 21/11/42; MASCARENHAS, J. Fernandes, ob. cit., Lisboa,
1944, p. 45; NOBRE, Antero, ob. cit., Tavira, 1957, p. 133.
422
MASCARENHAS, J. Fernandes, ob. cit., Lisboa, 1944, p. 83.
144
constituição da Liga dos Amigos de S. Gonçalo de Lagos que, para além de
assegurar o culto, tinha também funções caritativas. Daí em diante
celebraram-se festejos anuais com a presença dos representantes das
autoridades civis, militares e das instituições algarvias ligadas à actividade
piscatória 423. Contudo, o momento mais alto da recuperação deste culto
concretiza-se com o I Colóquio Gonçalino em Lagos nos dias 2 e 3 de
Setembro de 1961 na sequência das comemorações henriquinas de 1960,
espalhando o fervor nacionalista do Estado Novo por parte da
intelectualidade situacionista do país. Para o efeito, a Câmara Municipal de
Lagos nomearia uma Comissão 424 que se encarregaria de organizar o ciclo
de conferências que, no conjunto, incidiu sobre a biografia, bibliografia e
iconografia de S. Gonçao, tudo acompanhado da inevitável exposição. As
presenças que assinalaram a sessão inaugural realizada nos Paços do
Concelho de Lagos evidenciam o envolvimento dos poderes civis regionais
algarvios, da hierarquia da Igreja e da própria Ordem dos Eremitas de
Santo Agostinho 425. Dos votos finais do colóquio sairiam algumas ideias-
423
CEROL, A. M. Cristiano, Estudos Gonçalinos em Lagos , Lagos, Grupo dos
Amigos de Lagos, 1993, pp. 27-31. Idênticos festejos ocorriam naquele ano em Torres
Vedras, cidade onde se deslocavam os devotos lacobrigenses («Bairrismo e
Espiritualidade. Os Algarvios visitam Torres Vedras», Badaladas , 15/4/56, pp. 1-2).
Todavia, como atrás se referiu, não voltariam a ter dimensão assinalável.
424
Alberto Iria, então director do Arquivo Histórico Ultramarino, Mário Lyster
Franco, director do Museu Municipal de Faro e do Jorna Correio do Sul, Padre Carlos
Patrício, director do jorna Folha de Domingo, José Fernandes Mascarenhas, dirigente
nacional da Obra dos Soldados da Juventude Católica, Padre José Monteiro, Vigário da
Vara de Lagos, Antero Nobre e Gonçalo Lyster Franco, funcionário superior da Direcção
dos Edifícios e Monumentos Nacionais («Comemorações Gonçalinas em Lagos»,
Badaladas , 18/3/61, p. 1 e p. 4).
425
«Presidiu o Ex.mo Sr. Dr. António Baptista Coelho, Governador Civil de Faro,
que tinha à sua direita o Ver. Padre Provincial da Ordem dos Eremitas de Santo
Agostinho e do Rev. Padre Prior do Real Mosteiro Agostinho do Escurial (Madrid), e o
Exº Sr. Dr. José Correia do Nascimento, Presidente da Junta Distrital de Faro, e à
esquerda os Srs. Dr. José Fernandes Mascarenhas, Relator Geral do Colóquio. Em lugar
especial, à direita da Mesa, sentava-se S. Exª Revª o Sr. D. Frei Francisco Rendeiro,
Bispo do Algarve.» ( I Colóquio Gonçalino , Lagos, 1962, p. 165). Nesse ano realizar-se-
145
chave para o futuro: a criação de um feriado municipal em Lagos no dia
litúrgico de S. Gonçalo; a edificação numa das praças cidade de um
monumento alusivo; a criação em parceria com Torres Vedras de
seminários de estudos gonçalinos; a criação de uma secção no Museu
Regional de dedicada ao santo; a restauração da Ordem dos Eremitas de
Santo Agostinho em Portugal; a promoção das diligências para a
canonização 426. Pouco tempo depois, em 1963, surgiria com o apoio da
Câmara o Grupo de Estudos Gonçalinos e Expansão do Culto de S. Gonçalo
de Lagos . Com o objectivo de divulgar o culto, publicaria dois boletins 427
com pequenos artigos maioritariamente escritos pelos sócios do grupo que,
em 1964 ascendia, já a 106 428, número que aumentaria para 250 no ano
seguinte 429.
Se em Lagos se assistiria à concretização de alguns daqueles votos,
fazendo do culto um elemento de projecção da identidade local, em Torres
Vedras a memória confinar-se-ia às celebrações religiosas. Em 1977, o
feriado municipal passaria mesmo a ser o dia 11 de Novembro, dia de S.
Martinho. Valorizava-se desta forma a importância da vitivinicultura na
economia da região 430. Como muitos desses santos e heróis das gestas
oceânicas portuguesas que marcam exageradamente os lugares da
memória de um certo Portugal que, entre sonhos imperiais e utopias
messiânicas, pensava inscrever-se numa eternidade casando Deus, Pátria e
Autoridade, também esse S. Gonçalo laboriosamente edificado pelo esforço
hagiográfico barroco não parece ter resistido às mudanças económicas e
sociais da sociedade portuguesa contemporânea. Restam as estátuas.
Sobrevivem memórias longínquas. E sobra espaço para este estranho ofício
146
de historiador, para quem documentos e monumentos do passado se
assemelham tão estranhamente às relíquias que procuramos exorcizar.
147