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Resumo: Este trabalho busca refletir acerca da formação no Ensino Superior, a par-
tir de estudos de currículo que se fundamentam nas Diretrizes Curriculares Nacionais
de cursos de graduação e seu alinhamento com os pilares propostos pela UNESCO
para a educação no século XXI. Nesse contexto, discute sobre desenhos curriculares
que atendam às demandas da sociedade do conhecimento, considerando uma formação
profissional e humanista, cujo princípio desencadeador é uma matriz de referência de
formação por competências. A representação da matriz referencial gênese se expressa
na estrutura do currículo, por meio de referenciais formativos, alicerçada em níveis de
complexidade, resultantes da inter-relação conhecimento-competências, em uma con-
cepção dada por Perrenoud. Ao se construírem desenhos curriculares dessa natureza,
reflete-se a respeito do seu desenvolvimento no processo ensino e aprendizagem, assu-
mindo as metodologias ativas como determinantes para a aquisição de competências.
Palavras-chave: Currículo. Referenciais formativos. Competências. Processo de ensino e
aprendizagem. Metodologias de ensino.
Abstract: This work seeks to reflect on training in higher education, based on curri-
culum studies that are based on the National Curriculum Guidelines for Undergra-
duate Courses and its alignment with the pillars proposed by Unesco for education
in the 21st Century. In this context, it discusses curricular designs that meet the de-
mands of the knowledge society, considering professional and humanistic training,
which has as its triggering principle a reference matrix of training by competencies.
The representation of the genesis referential matrix is expressed in the curriculum
structure, through formative references, based on levels of complexity, resulting from
the knowledge-skills interrelation, in a conception given by Perrenoud. When cons-
tructing curricular designs of this nature, it reflects on their development in the tea-
ching and learning process, assuming active methodologies, as determinants for the
acquisition of skills.
Keywords: Curriculum. Formative references. Skills. Teaching and learning process. Tea-
ching methodologies.
BERCHIOR, A. C. F.
Desenhos curriculares por desenvolvimento de competências no Ensino Superior
Rev. Educ., Brasília, ano 43, n. 162, p. 159-173, jun./set. 2020 159
Diseños curriculares para el desarrollo de habilidades en Educación Superior
Introdução
BERCHIOR, A. C. F.
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Nas considerações de Silva (2002, p. 15), “[...] o currículo é sempre o re-
sultado de uma seleção: de um universo amplo de conhecimentos e saberes sele-
ciona-se aquela parte que vai constituir, precisamente, o currículo”. No entanto,
ao se pensar em currículo no seio multifacetado da contemporaneidade, na era
da globalização e da sociedade do conhecimento, os seus contextos e contornos
são muito menos definidos e muito mais difusos. O acesso à informação, por
meio da rede de computadores, por si só já traz desafios imensos e inauguram
um novo paradigma. Diante de tamanho desafio, cabe a reflexão de Mead (1968,
s/p), que, mais de cinco décadas atrás, já pensava em tecnologias e multimídias:
“[...] chegamos ao ponto em que temos de educar as pessoas naquilo que nin-
guém sabia ontem, e prepará-las para aquilo que ninguém sabe ainda, mas que
alguns terão que saber amanhã”.
Assim posto, o currículo, que tem sua ancoragem na seleção de conteúdo
a ser transmitido, deixa de fazer sentido. No entanto, como ressaltam Moreira et
al. (2007, p. 19), “[...] o currículo é o coração da escola, o espaço central em que
todos atuamos”. Portanto, a construção de um currículo para atender a essas de-
mandas passa a ser um grande desafio, visto ser necessário romper paradigmas.
Tem surgido uma infinidade de desenhos curriculares que se propagam
como contemporâneos e inovadores, mas, em muitos, o que se constata são
“modismos”, permanecendo o caráter periférico, diversificando somente a es-
trutura de se dispor o mesmo conteúdo, com bom design e modernas tecnolo-
gias, sem atingir a gênese dessa construção complexa. Também, as formas de
representação, em muitos casos, acabam por não considerar as reflexões teóricas
historicamente construídas acerca do currículo e, sem assumirem outra ancora-
gem, podem apresentar fragilidades na formação, comprometendo sobremanei-
ra o perfil do egresso.
Repensar o currículo à luz da contemporaneidade não terá como premis-
sa “quais conteúdos ensinar”, visto que muitos serão obsoletos amanhã, mas
sim quais competências devem ser desenvolvidas e quais conhecimentos serão
recursos para se atingir esse nível de complexidade. Assim posto, desloca-se o
centro do currículo para o desenvolvimento de competências, e não mais pre-
dominando o acúmulo de conteúdo. Nesse contexto, a instituição escola, que
organiza seus currículos a partir dos conteúdos a serem transmitidos, entra em
crise; portanto, se está “[...] diante de um verdadeiro dilema: para construir com-
petências, esta precisa de tempo, que é parte do tempo necessário para distribuir
o conhecimento profundo” (PERRENOUD, 1999, p. 3).
Para se pensar em uma proposta curricular que atenda a esses princípios,
é necessário se ancorar nas Diretrizes Curriculares Nacionais de cada curso de
graduação, partindo de macroeixos, em que seriam alocadas as competências a
se desenvolver, para atingir determinado perfil de egresso. Ainda, deve-se vis-
lumbrar a visão humanista inter e multidisciplinar e expressa em uma concepção
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Essa arquitetura curricular gênese efetua a horizontalização do currículo, ter-
reno em que o percurso formativo, para atingir determinado perfil do egresso, articu-
la-se com as competências a se desenvolver. Para tanto, o conhecimento será recurso
a ser mobilizado nos contextos didático-metodológicos, conforme a Figura 1.
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[...] toma como foco o perfil pretendido e a partir dele define quais
os saberes que o estudante precisa sistematizar ao longo do curso
para se constituir com autonomia, criatividade, criticidade e compro-
misso social atuando como sujeito de sua própria história. Para isso,
a partir do perfil do egresso, definem-se os eixos sobre os quais os
estudos se farão e a forma de organização dos conteúdos das disci-
plinas, enredadas em suas áreas, de forma a criar redes significativas
de saberes tanto cognitivos, quanto procedimentais e atitudinais.
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b) Referenciais raízes desencadeadoras da formação específica, que emba-
sam os percursos formativos na relação conhecimento-competências, en-
quanto raízes que desencadeiam a dimensão profissional, essenciais para
a sustentação da formação específica. Esses referenciais contemplam as
teorias e as técnicas/procedimentos que fundamentam a área, assim como
as linhas de atuação profissional de maior impacto.
c) Referenciais decorrentes das raízes desencadeadoras da formação es-
pecífica, que pressupõem os níveis mais complexos da relação conheci-
mento-competências e envolvem o desenvolvimento de competências
específicas e relacionais, bem como as socioemocionais, as quais, em sua
articulação com a dimensão humanista, apoiam a tomada de decisão.
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A fim de se ampliar esses pressupostos, é relevante agregar também con-
cepções teóricas que podem contribuir para ancorar o processo de ensino e
aprendizagem que aqui se propõe. Nesse sentido, o construtivismo sócio-histó-
rico de Vygotsky (2004, p. 456) traz suas contribuições ao destacar a importân-
cia de se considerar no processo educativo a vivência em sociedade, posto que
“[...] só a vida educa, e quanto mais amplamente ela irromper na escola, mais
dinâmico e rico será o processo educativo”. O autor coaduna com um processo
educativo que deve ter seu vínculo com a realidade, com a sociedade em que
se vive, na interação social. Essa perspectiva pressupõe um docente mediador/
organizador do processo educativo e um aprendiz ativo, desafiado a assumir um
posicionamento crítico e reflexivo. Portanto, o foco é a aprendizagem, e não o
ensino, com transmissão de conteúdo, em que a postura do aprendiz é de re-
cepção, passivo. Vygotsky (2004, p. 448) corrobora essa visão ao conceber que
o professor deve se posicionar como “[...] organizador do meio social, que é o
único fator educativo”, pois se ele “[...] desempenha o papel de simples bomba
que inunda os alunos com conhecimento pode ser substituído com êxito por um
manual, um dicionário, um mapa”. Na contemporaneidade, é possível acrescen-
tar ainda que o aprendiz pode ser inundado por toda informação disponível nas
redes de computadores. Portanto, a receptividade de conteúdo está disponível a
qualquer momento, sem garantias de se transformar em aprendizagem.
Acrescenta-se ainda o pensamento de John Dewey (1979, p. 83), para
quem a educação “[...] é uma reconstrução ou reorganização da experiência, que
esclarece e aumenta o sentido desta, e também, a nossa aptidão para dirigir o cur-
so das experiências subsequentes”. O autor ressalta, portanto, a importância da
experiência prévia no processo educativo, o que impacta em metodologias que
desafiam o aprendiz a pensar, pois “[...] pensar é inquirir, investigar, examinar,
provar, sondar para descobrir alguma coisa nova ou ver o que já é conhecido
sob prisma diverso” (DEWEY, 1979, p. 262). Nesse sentido, é pertinente a con-
cepção de Ausubel no que concerne à relevância da aprendizagem significativa,
que ocorre quando o novo conhecimento/informação é incorporado à estrutura
cognitiva, e “[...] o fator isolado mais importante que influencia a aprendizagem
é aquilo que o aprendiz já conhece” (AUSUBEL; NOVAK; HANESIAN, 1980,
p. 137). Para Ausubel, é relevante descobrir o que o aprendiz já sabe e iniciar
o processo educativo, a partir dessa experiência prévia (AUSUBEL; NOVAK;
HANESIAN, 1980). Destaca-se que a aprendizagem por desenvolvimento de
competências, que aqui se propõe, tem essa natureza, o que pressupõe um apren-
diz ativo no processo educativo e um docente organizador da aprendizagem, vis-
to que “a principal função do organizador está em preencher o hiato entre aquilo
que o aprendiz já conhece e o que precisa conhecer antes de poder aprender
significativamente a tarefa com que se defronta” (AUSUBEL; NOVAK; HANE-
SIAN, 1980, p. 144). Cabe ainda a reflexão de Dewey (1979) acerca da discussão,
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mento, fundamentado nas teorias a serem mobilizadas, no percurso formativo.
Agregam-se, para um movimento anterior, os conhecimentos prévios, media-
dos pelo docente, a fim de se desencadear a aprendizagem. Nesse estágio de
complexidade, as metodologias devem propiciar leitura, análise, interpretação,
indagação, produção, entre outras atividades, que incentivem a apropriação de
um conhecimento desencadeador. Em um próximo nível, mais complexo, as
reflexões devem ser mediadas no âmbito do “aprender a fazer” e pressupõe que,
“além da aprendizagem de uma profissão, há que adquirir uma competência
mais ampla, que prepare o indivíduo para enfrentar numerosas situações, muitas
delas imprevisíveis, e que facilite o trabalho em equipe” (DELORS et al., 2001, p.
20). Aqui se adequa ao “saber-fazer”, porquanto encadeado pela prática, em sua
interação com a teoria, proporcionando ao aprendiz novos desafios na esfera da
aplicabilidade de determinado conhecimento. Em outras palavras, ocorrem en-
cadeamentos em níveis mais complexos da aprendizagem envolvendo reflexões,
que exigem posicionamento crítico diante da realidade que se apresenta. Em um
nível mais avançado de complexidade, vislumbra-se a problematização, em uma
concepção interdisciplinar, sendo possível o aprendiz ter autonomia para efetuar
a intervenção em uma dada realidade. Nessa perspectiva, concebe-se uma refle-
xão crítica acerca do “aprender a ser”, uma vez que “a educação deve contribuir
para o desenvolvimento total da pessoa” e “aprender a viver juntos e aprender
a viver com os outros” (DELORS et al., 2001, p. 99), em uma perspectiva de
tolerância e de diálogo. No “saber ser” também se vislumbram os pressupostos
de que “todo o ser humano deve ser preparado [...] para elaborar pensamentos
autônomos e críticos e para formular os seus próprios juízos de valor, de modo
a poder decidir, por si mesmo, como agir nas diferentes circunstâncias da vida”
(DELORS et al., 2001, p. 99). Aqui, neste propósito, definem-se, de forma mais
ampla, os dois últimos pressupostos, pelo “saber ser”, que incorpora, de forma
transversal, o respeito às diferentes etnias e religiões, os direitos humanos, as
relações com o outro, o compromisso com a sociedade e com o desenvolvimen-
to sustentável, os valores, a ética: o que se concebe como formação humanista,
crítica e reflexiva.
Nesse estágio, é relevante ainda revisitar o pensamento de Freire (2000,
p. 66-67), ao considerar que “[...] o respeito à autonomia e à dignidade de cada
um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns
aos outros” e acrescenta que o professor autoritário “[...] afoga a liberdade do
educando, amesquinhando o seu direito de estar sendo curioso e inquieto”. Na
visão de Freire (2000, p. 36), “[...] transformar a experiência educativa em puro
treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano
no exercício educativo: o seu caráter formador”, pois “educar é substantiva-
mente formar”.
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Considerações finais
Submissão: 17/06/2020
Revisão: 08/07/2020
Aprovação: 12/08/2020
Notas
1 Doutora e mestre em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita. Licenciada
em Letras e bacharel em Biblioteconomia. Atua na implementação de currículos por competên-
cias e em capacitação de docentes. E-mail: acfrigeri@hotmail.com
Referências
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