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Sementes crioulas: resgatar,


multiplicar e conservar: relato de
experiência

Aline de Oliveira Matoso


UFTM

Ariane Fernandes da Conceição


UFTM

Milena Teixeira dos Santos


UFTM

Ivanessa Vieira de Oliveira


UFTM

Luci Aparecida Souza Borges de Faria


UFTM

10.37885/210605065
RESUMO

Uma das principais características da agricultura familiar é a seleção e conservação de


sementes da colheita do ano anterior para o cultivo na próxima safra, ou obtendo as
sementes de vizinhos da comunidade a qual pertence, no Brasil estas sementes são
conhecidas como tradicionais e/ou crioulas. Esta prática é passada de geração para
geração e geralmente o cultivo é realizado de forma agroecológica, o que garante se-
mentes adaptadas as condições locais de cultivo. Com o advento da revolução verde,
houve o aumento no comércio de sementes híbridas e geneticamente modificadas, o
que além de encarecer o custo de produção inviabiliza a multiplicação destas sementes,
muitos agricultores ao adquirirem os novos pacotes tecnológicos deixaram de armazenar
suas sementes fazendo com que muitas variedades tradicionais e adaptadas às suas
condições de cultivo desaparecessem, acelerando o processo de erosão genética de
inúmeras espécies. Uma das alternativas que vem sendo utilizada por agricultores fami-
liares na preservação das espécies crioulas são os bancos de sementes. Os bancos de
sementes são organizações que tem como objetivo o armazenamento e conservação de
diferentes espécies vegetais cultivadas pela comunidade, garantindo que os agricultores
tenham sementes de boa qualidade para a próxima safra, além de possibilitar a troca
de conhecimentos e a conservação genética. Diante do exposto a criação de um banco
de sementes crioulas na UFTM - campus de Iturama e área de produção agroecológica,
têm como objetivo auxiliar os agricultores familiares da região na conservação da bio-
diversidade local, no fortalecimento da agricultura familiar, na autonomia e segurança
alimentar das comunidades.

Palavras- chave: Segurança Alimentar, Soberania Alimentar, Banco de Sementes,


Agroecologia, Agricultura Familiar.

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Agroecologia: métodos e técnicas para uma agricultura sustentável - Volume 5
INTRODUÇÃO

A modernização da agricultura no Brasil por meio do uso dos chamados pacotes tecno-
lógicos (sementes melhoradas, fertilizantes, mecanização e uso de agrotóxicos) promoveu
considerável aumento da produtividade agrícola, especialmente das espécies cultivadas para
exportação (milho, soja, café e cana de açúcar), entretanto, trouxe inúmeras consequências
negativas para a agricultura familiar, visto que muitos produtores não conseguiram se adaptar
e/ou ter acesso às novas tecnologias. Dentre os principais impactos negativos podemos citar
o aumento do custo de produção, êxodo rural, a redução da diversidade e qualidade dos
alimentos produzidos e consumidos pela população rural e a erosão genética de espécies
cultivadas pelas comunidades rurais.
A tradição da estocagem de sementes pelos agricultores sofreu forte impacto decor-
rente da expansão e intensificação do processo de modernização técnica da agricultura
brasileira. A subordinação da agricultura à lógica da produção capitalista alterou as formas
tradicionais de produção da agricultura familiar à medida que o tradicional passou a ser
desvalorizado e tido como sinônimo de atrasado e antigo, e o “novo” passou a ser sinônimo
de moderno e revolucionário (NASCIMENTO, 2011).
A substituição de sementes próprias por sementes híbridas comerciais e transgênicas
teve como consequência um acelerado processo de erosão genética (SOUZA et al., 2017).
Inúmeras espécies e variedades tradicionais que até então eram produzidas e consumidas
pelas famílias da área rural desapareceram, na medida que a prática de se armazenar se-
mentes de espécies selecionadas a inúmeras gerações deu lugar a compra de sementes
produzidas pelas grandes empresas. Como consequências deste processo podemos citar a
perda da autonomia das comunidades rurais em decidir o que e como cultivar, a redução na
diversidade e qualidade dos alimentos produzidos, o desaparecimento de inúmeras espécies
vegetais e a perda do conhecimento popular sobre a forma de cultivo, usos alimentares e
medicinais destas espécies.
Além dos altos custo para a aquisição dos insumos no cultivo de híbridos e transgê-
nicos, o valor destas sementes vem aumentando consideravelmente nos últimos anos, isto
se deve a fusão de empresas produtoras de sementes que têm monopolizado e controlado
o comércio mundial, retirando principalmente dos agricultores familiares a autonomia de
seus cultivos e como já mencionado a perda de inúmeras espécies, fato este reconhecido
inclusive pelas próprias instituições que promoveram este ‘novo modelo’ de agricultura.
Diante deste cenário várias ações a níveis mundiais vêm sendo realizadas com o ob-
jetivo de resgatar a autonomia, preservar e conservar as espécies de interesse econômico,
social e cultural das comunidades rurais e estimular a diversificação produtiva, promovendo
maior segurança alimentar destas comunidades. No Brasil, a principal estratégia utilizada
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Agroecologia: métodos e técnicas para uma agricultura sustentável - Volume 5
vem sendo a criação dos Bancos de Sementes Comunitários (BSC) de sementes crioulas
(BALENSIFER; SILVA, 2014).
De acordo com a Lei de Sementes 10.711 (BRASIL, 2013) sementes crioulas e tradi-
cionais são aquelas variedades desenvolvidas, adaptadas ou produzidas por agricultores
familiares, assentados da reforma agrária ou indígenas, com características fenotípicas bem
determinadas e reconhecidas pelas respectivas comunidades e não se caracterizem como
substancialmente semelhantes aos cultivares comerciais.
A formação de bancos de sementes comunitários vem sendo uma das principais es-
tratégias no Brasil especialmente nas regiões sul e nordeste, como forma de garantir a
continuidade e a existência das variedades tradicionais/crioulas e de todo o conhecimento
popular associado a elas, desde as técnicas de manejo, até as diversas formas de uso na
alimentação e na medicina popular.
Na região do Pontal do Triângulo Mineiro do estado de Minas Gerias, existem mui-
tos assentamentos rurais reconhecidos pelo INCRA e agricultores familiares tradicionais,
entretanto não existe até o momento nenhum banco de sementes comunitário, as trocas
são realizadas informalmente e sem um controle na produção e qualidade das sementes, e
muitos agricultores relatam a perda de cultivares tradicionais locais.
A experiência relatada possui como objetivo a formação de um banco de sementes
comunitário e a implantação de uma área de multiplicação de sementes agroecológicas
na UFTM (Universidade Federal do Triângulo Mineiro) campus de Iturama (MG) que visa
auxiliar os agricultores familiares no resgate de espécies tradicionalmente cultivadas na
região, na conservação genética destas espécies, e incentivar a diversificação de cultivos
e consequentemente maior segurança alimentar destas famílias.

RELATO DE CASO

Este relato de experiência trata das ações do programa de extensão, cadastrado na


UFTM que teve início no mês de março de 2020. As principais atividades do programa
concentram-se na instalação de uma área de cultivo agroecológico para a multiplicação de
sementes crioulas e para a realização de atividades práticas referentes ao manejo e seleção
das espécies; da criação e manutenção do banco comunitário de sementes e da realização
de feiras para a troca de sementes.
Em decorrência da pandemia causada pela Covid-19, as atividades como a realização
das feiras de troca e oficinas foram suspensas, a fim de manter as atividades e divulgar as
ações do programa de extensão foram criadas uma conta da rede social Facebook e outra no
Instagram, ambas com o nome Agroecologia e Sementes – UFTM. Até o mês de setembro
as páginas nas mídias sociais contabilizaram mais de 650 seguidores.
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Nas mídias sociais são divulgadas as ações do projeto, práticas agroecológicas, texto
com informações sobre a importância das sementes crioulas, formas de seleção, colheita e
secagem das sementes. O uso das mídias sociais tem possibilitado maior divulgação sobre
o programa e sensibilização de agricultores sobre o tema. Após a divulgação as doações
de sementes crioulas para o banco da UFTM aumentaram consideravelmente.
A área de multiplicação e o banco de sementes foram instalados no mês de janeiro
de 2020 na Fazenda Escola da UFTM em Iturama, MG. Participaram durantes os meses
de janeiro a março, das atividades de instalação e manejo na área os alunos do curso de
agronomia. As alunas bolsistas do projeto e os alunos do curso Agronomia via Pronera que
auxiliaram durante os meses de janeiro e fevereiro com a catalogação das sementes, que
deram início ao Banco de Sementes Crioulas.
Durante o mês de janeiro foi realizada a catalogação das sementes doadas para iniciar-
mos o banco de sementes. As sementes foram doadas pelos alunos do curso de Agronomia,
Agronomia via Pronera e por agricultores familiares de Iturama e região. Atualmente o banco
recebe doações de alunos e agricultores familiares de diversas regiões do Brasil.
O banco inicialmente foi composto por 108 variedades crioulas, a maioria das espécies
são de: Oryza sativa; Cajanus cajan; Vigna unguiculata; Mucuna pruriens; Phaseolus vul-
garis; Phaseolus lunatus; Cucurbita máxima; Cucúrbita pepo; Sorghum bicolor; Zea Mays;
Crotalaria juncea; Lupinus albus; Lagenaria siceraria; Gossypium arboreum; Abelmoschus
esculentus; Cucumis anguria; Hibiscus sabdariffa; Sesamum indicum e Helianthus annuus.
Para dar início ao campo de multiplicação foram selecionadas 25 variedades crioulas
que foram semeadas pelos alunos participantes do projeto e da disciplina de agroecolo-
gia. As semeaduras ocorreram durante os meses de fevereiro e março e o cultivo foi reali-
zado de forma agroecológica. A multiplicação destas espécies visou fomentar inicialmente
a demanda do banco de sementes e dos agricultores locais.
Em decorrência da pandemia e das medidas de segurança adotadas os alunos não
acompanharam presencialmente o manejo e colheita, sendo estas atividades realizadas pela
coordenação do programa. Após a colheita, as sementes são encaminhadas às alunas bol-
sistas do programa que realizam a secagem, seleção, identificação e empacotamento. As se-
mentes são recolhidas pela coordenação do programa e encaminhadas para a Empresa de
Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas Gerais (EMATER – MG).
O projeto conta com a parceria dos extensionistas EMATER – MG, que recebem as se-
mentes do programa e repassam aos agricultores familiares, muitos agricultores também têm
encaminhado a EMATER as suas doações para o banco de sementes da UFTM (Figura 01).

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Agroecologia: métodos e técnicas para uma agricultura sustentável - Volume 5
Figura 01. Colheita, secagem e distribuição das sementes crioulas aos agricultores familiares.

Fonte: Os autores, 2020.

Em 2021 será realizado o preparo da área para cultivo de novas variedades crioulas
de forma agroecológica, para a manutenção do banco e distribuição aos agricultores. Tão
logo a pandemia passe, esperamos que as atividades presenciais como oficinas de seleção,
conservação de sementes e as feiras de troca sejam retomadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O uso das mídias sociais tem possibilitado a troca de saberes populares e científicos,
a divulgação do banco de sementes e despertando o interesse da comunidade sobre a
importância da preservação das sementes crioulas e adoção de práticas agroecológicas.
Durante a elaboração e execução do projeto os alunos participantes estão tendo a pos-
sibilidade de vivenciar a realidade inerente da agricultura familiar. Através das atividades rea-
lizadas foi possível a construção do conhecimento entre acadêmicos, docentes e agricultoras.
Observamos que as ações do programa estão possibilitando maior autonomia das
famílias que obtiveram suas sementes, uma vez que muitos relataram que já estão reali-
zando o cultivo das variedades crioulas. O cultivo destas espécies também tem auxiliado
as famílias na diversificação dos seus cultivos e poderá contribuir para maior segurança
alimentar das famílias.
Muitos agricultores que estão participando do programa comercializavam seus produ-
tos em feiras locais, via mercados institucionais e/ou diretamente com o consumidor, em
época de pandemia onde algumas vias de comercialização diminuíram e as vendas diretas
aumentaram, tem se mostrado importante a diversificação de produtos e adoção de práticas
que reduzam os custos de produção.

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REFERÊNCIAS
1. BALENSIFER, P. H. M.; SILVA, A. P. G. Metodologia para formação de bancos comunitá-
rios de sementes. Recife, PE: Instituto Agronômico de Pernambuco, 2016. 32 p.

2. BRASIL. Constituição (2003). Lei nº 10.711, de 05 de agosto de 2003. Dispõe Sobre O Sis-
tema Nacional de Sementes e Mudas e Dá Outras Providências. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.711.htm>. Acesso em: 20 set. 2020.

3. NASCIMENTO, J. M. Os bancos de sementes comunitários na construção dos territórios


de Esperança: o caso do assentamento Três Irmãos/PB. 2011. 179f. Dissertação (Mestrado
em Geografia). Universidade Federal da Paraíba, UFPB, João Pessoa, 2011.

4. SOUZA, J. C. et al. Experiência agroecológica do movimento dos pequenos agricultores (MPA):


semeando soberania a partir da Produção de sementes crioulas na Bahia. In: II SÍMPOSIO
BAHIANO DE GEOGRÁFIA AGRÁRIA: entre teoria e prática, articulação e resistência. Anais
eletrônicos [...]. Salvador, BA: UFBA, 2017. Disponível em: < https://2sbga2017.ufba.br/si-
tes/2sbga2017.ufba.br/files/eixo5_leomarcio_leila_gilfredo claudiano_flavia.pdf>. Acesso em
15 set. 2020.

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