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UM DIA NA VIDA DE LAGOA DO ARROZ

Afonso Silvestre*

Lagoa do arroz é uma comunidade quilombola situada na região da Batalha, hoje com 70 famílias
que foram se instalando a partir da primeira década do século XX. Seguindo o padrão desse tipo de
comunidade tradicional rural no Brasil, os ditos quilombos foram se reproduzindo ao longo do século
XIX, e mais acentuadamente no século XX (quando tiveram seu conceito ressignificado) à medida que
nos agrupamentos originais fossem escasseando os recursos com o aumento da população. Isto
levava famílias a formar novos povoados próximos. Assim, essas comunidades cresceram em
proporção geométrica. Vitória da Conquista tem hoje 42 comunidades, 23 delas certificadas pela
Fundação Palmares a partir dos levantamentos e estudos feitos pelo Município, trabalho que foi
realizado entre os anos de 2004 e 2008.

UM POUCO DE MEMÓRIA

Pertencendo ao Território de Identidade Quilombola de Maria Quelemença (ou Clemência), Lagoa do


Arroz é uma das comunidades mais carentes entre as que formam a região da histórica batalha entre
índios e portugueses no século XIX. Certificada após processo que durou entre 2005-2007, as origens
da comunidade remontam a primeira década do século XX, formada por migrantes da Batalha,
Ribeirão do Paneleiro e Lagoa de Maria Quelemença. Na época era uma área bastante úmida, onde
se plantava arroz, feijão, milho, mandioca, andu, batata, abóbora e algodão. Com o passar dos
tempos e as mudanças climáticas, essas culturas foram perecendo. Hoje, ao percorrer as casas, só se
veem plantadas palmas.

Cultivavam as festas de São João, as festas de Penitências, São Pedro e Santo Antônio, ocasiões em
que dançavam a valsa rancheira, o baião, a marcha e o bolero. As casas tinham paredes enchidas
com barro batido, cobertas de palha de coqueiro e capim. Dentro delas, dormiam-se em camas feitas
de vara e colchões de capim. Havia também quem dormisse em couro de boi ou esteira de palha,
cobrindo-se com sacos de açúcar ou uma peça de algodão produzida no tear chamada gatu,
aprendida com seus antepassados indígenas da região. Pra iluminar, usavam candeias de cera ou de
azeite, estas chamadas de “já-vou”. Os utensílios eram feitos de barro ou pau de umburana.

Durante todo o século XX a comunidade ficou praticamente isolada do Município ao qual pertence. O
pouco contato que havia era por conta da agricultura, vendiam-se os produtos nas feiras da cidade.
Porém, os últimos trinta anos foram de uma decrepitude crescente para a agricultura. Não houve
mais chuva. No ano de 2004, quando se iniciaram os trabalhos de reconhecimento das comunidades,
o poder público encontrou uma Lagoa do Arroz seriamente empobrecida.

Muitas pessoas passavam fome, e, em terras reduzidas e secas, a maioria vivia da aposentadoria dos
mais velhos. Foram registradas pouco menos de 60 famílias na ocasião dos trabalhos para a
certificação, morando dentro dos 40 alqueires de terra pertencentes à comunidade, que restaram
dos 200 possuídos por volta de 1930, segundo relatos dos moradores durante o processo de
certificação em 2005-2007. Na época, o senhor Osvaldo Soares Rocha, nascido ali em 1939, relatou
que havia muita gente, mas pouca terra para cultivar. Foi registrado também, no ano de 2005, que
muitas pessoas, crianças inclusive, viviam do trabalho da quebra de pedras com remuneração de
trinta centavos a lata.
O senhor Artêmio Rodrigues Gomes, nascido em 1944 ali mesmo, aposentado, conta que plantava-se
muito arroz até há uns 40 anos. Enquanto contempla a ampla vista de terras quilombolas que tem à
frente da sua casa, ele conta que “antes chovia muito, tinha fartura... muito arroz, milho, andu... e
era propósito de Deus; mas, hoje, Ele não tem mais esse propósito, por isso é tudo seco”, afirma.

QUESTÕES ATUAIS

Com incidência alta de problemas de saúde como alcoolismo e cardiovasculares, a localidade


também sofre com um relativo abandono. Nem todas as casas recebem energia elétrica e a água é
escassa (as únicas fontes de abastecimento são as aguadas de pedra e os caminhões tanque do
Exército).

Mesmo com as intervenções realizadas pelo Poder Público, a comunidade ainda se encontra em
estado de grande fragilidade e risco. Um dos fatores que incidem contribuindo com esta condição é o
analfabetismo, por conta das dificuldades históricas enfrentadas com a Educação formal. O acesso é
difícil pela distância e falta um planejamento que assegure o transporte regular dos alunos à escola,
seja do ensino fundamental ou médio. Quando perdem aula por um contratempo, eles levam faltas e
este é mais um fator que desestimula, fazendo com que os jovens desistam da escola. É o caso de
Rivaldo Rocha Santos, 18 anos, que abandonou a 6ª série, na Escola Municipal Professora Ridalva
Correa de Melo. Ele atualmente participa de um grupo que criou um torneio de futebol na Lagoa do
Arroz, e diz que voltará a frequentar a escola se tiver como ir.

Diante deste problema, a professora Leolina Francisca de Souza, moradora da localidade, teve a
iniciativa de criar um curso de letramento para a população de Lagoa do Arroz. Trata-se de um
método que se adapta às condições de vida e às dificuldades dos moradores, como com alimentação,
mobilidade ou dificuldades funcionais e cognitivas. Funcionando há cinco meses, o curso tinha, em
2017, 23 alunos, mais sete que eram atendidos em casa por conta de limitações físicas.

É com muita garra que Leolina enfrenta as dificuldades. Como ainda não conseguiu um diálogo com a
Igreja Católica para uso do espaço de realização das aulas, a professora mobiliza as pessoas e vai
conseguindo a cessão de lugares improvisados. Também consegue, entre os moradores, doações que
ajudam na manutenção do curso. De forma participativa, ela envolve as pessoas e divide com elas a
responsabilidade de decisões, fazendo com que todos percebam sua parcela de importância nas
ações. Recentemente, ela foi informada que a casa cedida para as aulas teria que ser vendida. Liu,
como é chamada em Lagoa do Arroz, levantou parte dos recursos e adquiriu a casa, cujo restante
está levantando através de doações, economias e esforços coletivos.
UMA REUNIÃO DA ASSOCIAÇÃO

Os moradores se reúnem em assembleia todo segundo sábado de cada mês. No encontro de 16 de


junho de 2018, foram discutidas questões relacionadas à garantia de frequência dos alunos na escola
por conta de problemas com transporte. Também se falou de saúde, abastecimento de água, de
energia elétrica e de segurança. Desses assuntos, o que mais chamou a atenção foram os
relacionados ao ensino fundamental e médio, mais especificamente ao acesso à escola.

Existe uma escola municipal que atende aos moradores, funciona na zona urbana, no bairro
Ibirapuera. No entanto, são frequentes as faltas do transporte, seja por questão de planejamento ou
mesmo de manutenção dos veículos. Na reunião, foi lembrado o caso de um pneu furado que levou
dois meses para ser consertado. Neste período, quem não pode pagar o transporte do próprio bolso
teve faltas na escola. Devido a essas faltas, dos vinte alunos da Lagoa, apenas dois foram aprovados
em 2017. Também comentou-se na reunião o episódio de que alguns alunos da escola foram mortos
a tiros na frente dos colegas. Estudantes da Lagoa do Arroz que presenciaram a tragédia relataram na
reunião sobre o medo que sentem em ir pra escola. No caso dos alunos do ensino médio, a situação
é pior. O ônibus que leva a turma à escola estadual situada no bairro Guarani, zona urbana, até o dia
da reunião, havia passado apenas uma vez naquele ano. No anterior, nenhuma.

Sobre a saúde mostraram uma sucessão de problemas decorrentes do alcoolismo, e a solicitação por
uma intervenção da secretaria municipal de Saúde com planejamento específico para o local. Este
planejamento, segundo os moradores, deve respeitar algumas particularidades, especialmente as
limitações das pessoas em se deslocar para ter um atendimento de urgência ou emergência na
cidade. É grande o número de casos de glaucoma e catarata, e o relato de três casos de morte por
cirrose hepática na mesma casa.

Por fim, ficou um encaminhamento a ser dado quanto ao fornecimento de energia elétrica. Algumas
famílias da Lagoa do Arroz não têm, são remanescentes da implantação de extensão em 2005 que
não foram contemplados. Segundo os moradores, a previsão fornecida pela concessionária
energética é para implantação em 2021. Uma das sugestões foi o encaminhamento do caso através
do Ministério Público.

O morador Humberto Reis é um dos não contemplados em 2005. Ele conta que, recentemente,
reivindicou junto à companhia de eletrificação concessionária dos serviços e teve a informação de
que sua residência está na lista dos que serão contemplados. Posteriormente, ele recebeu uma
correspondência da empresa com uma proposta de pagamento de R$ 70 mil para viabilizar a
antecipação da instalação. Ainda segundo a correspondência, o valor seria ressarcido em 2021,
devidamente corrigido. “Onde é que vou arrumar esse dinheiro?”, brincou Humberto.

As reivindicações foram anotadas e deverão ser encaminhadas pela Associação de Moradores aos
órgãos competentes. De acordo com Leolina, é uma luta diária, de idas e vindas à cidade para tratar
desses assuntos. Ela vê como lado bom o fato das famílias participarem dos esforços, isto dá a elas
um sentimento de capacidade para resolver seus próprios problemas, explica.

*Afonso Silvestre é historiador e coordenou as certificações das comunidades quilombolas


reconhecidas entre 2004-2010

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