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Artifícios de dominação masculina: uma leitura sobre a naturalização da subjugação e

violência do corpo feminino a partir da obra O Colecionador de John Fowles

Maisa Andrade de Jesus


Resumo:
Dominação masculina, subjugação e violência de corpos femininos são termos que embora conjurem
um ideário negativo e inaceitável, em qualquer situação em que sejam evocados, não deixam de se
materializar e se repetir historicamente, camuflados por artifícios que os fazem passar por fatos naturais
nas relações sociais. A obra literária, por sua capacidade de representação ficcional da vida, é tomada
como um instrumento de provocação e tensionamento destas questões. Na busca por compreender
como é possível a naturalização de um projeto perverso de relação social, iniciou-se um trabalho de
investigação dos artifícios de escamoteamento da dominação masculina sobre os corpos femininos,
tomando por base de representação deste recorte da realidade a obra de John Fowles, intitulada O
colecionador.

Palavras-chave: Dominação Masculina, Subjugação Feminina, Artifícios Dóceis

Introdução

A dominação masculina é um produto da ação humana, historicamente promovida e sustentada,


portanto, inviabilizante de qualquer argumentação acerca de uma condição “natural” da supremacia
masculina. Ela se configura em caráter relacional, ou seja, a dominação dos corpos masculinos só é
possível na relação com os corpos não-masculinos dominados.
A distinção entre corpo feminino e masculino, muito além da demarcação biológica
(sexo/anatomia), se fundamenta sobre artifícios socialmente produzidos, como a credibilidade de
enunciação da realidade, a oupação masculina do espaço público e o estabelecimento e legitimação do
direito dos gêneros. Sendo esta a tríade basilar de naturalização do projeto de superioridade do corpo
“viril” do macho em relação ao corpo “frágil” da fêmea; ou seja, a constituição de uma ordem e de um
código de dominação masculina.
Os elementos que conferem o poder à dominação masculina não se restringem ao corpo do
homem. Na prática a dominação masculina prescinde do enraizamento profundo de seu código nos
corpos femininos para que seja possível a subjugação que lhe confere o lugar de poder. O princípio de
hospedagem do poder dominante no corpo dominado foi amplamente desenvolvido por Butler (2017),
no conceito de sujeição que, a grosso modo, tanto significaria sujeitar (submeter o outro à obediência)
quanto tornar sujeito (no sentido de educar/inculcar a dominação intimamente na estrutura do ser),
sendo estes dois processos indissociáveis à ideia de sujeição.
A partir de uma breve análise do romance O colecionador, do escritor inglês John Fowles,
tentar-se-á apontar alguns dos artifícios, sócio-historicamente articulados, que possibilitaram, até agora,
a naturalização e eternização (BOURDIEU, 2021) da dominação masculina. Compreende-se como
artifício qualquer mecanismo ou estratégia produzida e/ou adotada para fazer crer como verdadeiro, ou
semelhante ao natural, aquilo que é artificial ou forjado.
Portanto, investiga-se as formas de mascaramento dos atos e efeitos da dominação masculina,
que pressupõem-se como sendo condição "natural'' da subjugação e violência (simbólica ou factível)
dos corpos femininos. É importante ressaltar que, aqui, não há entendimento de fragmentação entre
corpo e mente, de modo que, ao se referir a corpo evocar-se-á a ideia de corpo-unidade enquanto
delimitação física que abarca o palpável e o intangível; o substrato físico e seus múltiplos complexos
subjetivos (experiência física, emocional, intelectual, psíquica, identitária, etc.).

A enunciação do mundo

Diz-se por aí que “todo ponto de vista é a vista de um ponto”, clichê ou não, deve-se ter como
um alerta diante da leitura do texto literário, bem como com a leitura da realidade. Em O colecionador,
por exemplo, John Fowles constrói a história de um sequestro, mas poderia ser uma tentativa
hospitaleira de cativar alguém. A ambiguidade do termo está de acordo ao exercício próprio de escrita
e de leitura desta obra, já que dependendo de quem está narrando os fatos ou sua interpretação da
realidade, cativar poderá se aproximar daquela poética explicação sobre amizade, apresentada pela
raposa ao pequeno príncipe de Saint-Exupéry, ou, ao contrário, poderá indicar o sentido de manter em
cativeiro; em privação de liberdade e de direitos.
Quando Fowles elege dois narradores para relatar essa história perturbadora, ele articula
elementos internos do texto narrativo para estabelecer uma relação com o (a) seu (sua) leitor (a),
propondo-lhe um convite, quase impossível de recusa, o de julgar as partes e adotar um posicionamento
moral e crítico frente aos argumentos e comportamentos apresentados, tanto por Clegg quanto por
Miranda. Sendo que a Frederick Clegg é concedido o privilégio de enunciação primeira dos fatos,
através de uma mistura de relato e monólogo interno, compete a ele - figura dominante masculina -
apresentar as ações associadas às motivações e justificativas acerca da captura de Miranda; o que ele
pensa, sente, planeja e realiza, a partir de suas escolhas sobre o que evidenciar e, também, o que omitir.
Nabokov (2011), em seu romance polêmico que traz a pedofilia como tema, também fez uso
deste mesmo recurso, de uma forma ainda mais contundente, já que diferente de Fowles, a Lolita não
foi dada a oportunidade de dizer qualquer coisa sobre sua condição de subjugação e múltiplas
violências sofridas, o (a) leitor (a) é levado (a) a considerar unilateralmente a experiência psíquica de
Humbert Humbert (narrador-personagem de Lolita) e seus argumentos de naturalização da barbárie.
Em ambas as obras têm-se este primeiro artifício - a linguagem como instrumento de poder -, projetado
para a construção de um vínculo emocional e arrefecimento da interpretação e do juízo do (a) leitor (a).
Entretanto, é importante ressaltar que há divergências significativas quanto à recepção de cada obra,
que tem forte influência dos aspectos externos ao texto. Fato é que ambas as obras tensionam o
problema da enunciação do mundo-realidade-verdade a partir da perspectiva dominante masculina.
O esforço em torno da elucidação da atividade do narrador, é essencial para a compreensão das
relações assimétricas que circunscrevem a condição masculina e feminina, dentro e fora do espaço
literário, especialmente quando levado em consideração o silenciamento e o apagamento do
protagonismo público, ao qual a condição feminina foi submetida sócio-historicamente, através da
apropriação discursiva “em que o princípio masculino é tomado como medida de todas as coisas”
(BOURDIEU, 2021, p. 31) e a partir daí é postulado os alicerces do que é aceitável, relevante,
verdadeiro, moral, oficial e legítimo.
Sendo “a credibilidade uma ferramenta básica de sobrevivência” (SOLNIT, 2017, p. 17) e esta é
privilégio da narrativa dominante-masculina, fica a pergunta: o que resta para os corpos não
masculinos? Ou como os corpos femininos sobreviverão descredibilizados?
Quando o mundo e as relações que nele decorrem são enunciadas por uma perspectiva
dominante tal, as polarizações e assimetrias serão aí erigidas: a razão (atributo masculino) em oposição
a sensibilidade (atributo feminino), a fragilidade (feminino) em oposição a força (masculino) -
sustentado por um artifício biológico -, a casa como o lugar da mulher (com os filhos ou em auxílio ao
marido) em oposição ao espaço público onde transita o homem (produzindo bens econômicos,
acumulando capital e detendo a propriedade privada) ancorado no artifício de papéis de gênero.
Ao longo de toda a primeira parte do romance, Frederick tece uma representação de si como um
verdadeiro gentleman, um cavalheiro saído de um dos romances de Jane Austen - uma imagem ideal do
homem -, ele dispõe de tudo um pouco: presentes caros, polidez, interesse aparente, promessa de um
final feliz, voz mansa, elogios, pequenas gentilezas e concessões. Até a sua ameaça (uso do
clorofórmio e de violência física) é justificada como uma forma de manter Miranda em segurança, para
o “próprio bem” dela. Eagleton sinaliza que “Quando se conta uma história do ponto de vista de um
determinado personagem, nem sempre é fácil deixar essa perspectiva (...) É difícil erguer-se acima da
consciência do próprio narrador.” (EAGLETON, 2019, p. 92). Portanto, é um imperativo ao (a)
sujeito/leitor (a) uma atenção apurada ao que é dito, ao que não é dito e como é dito, além de um
exercício de confronto dos dizeres e não dizeres de Clegg e Miranda, a fim de se estabelecer uma
compreensão dos símbolos da dominação masculina que estão em jogo.
É só na segunda parte do romance que o (a) leitor (a) terá o relato de experiência de Miranda
através de um diário, em que ela própria busca para si uma razão para escrever, que é também a procura
por uma estratégia de sobrevivência, ela diz: “Não posso escrever num vácuo como este” (FOWLES,
2018, p. 153), se referindo a sua situação de esvaziamento e solidão extrema - escrever para quê e para
quem? - pensa no diário, inicialmente, como uma forma de diálogo impossível, onde sua interlocutora
seria sua irmã, Minny, mas compreende, com a honestidade que só poderia ter consigo mesma, de que
se trata de uma luta para não sucumbir à loucura, de modo que ela reconsidera dizendo “Minny, não
estou escrevendo para você, estou conversando comigo mesma” (FOWLES, 2018, p. 155).
É interessante ressaltar o mecanismo narrativo que Fowles articula para dar “voz” a sua
personagem-corpo feminino que é o diário, ou seja, um recurso material de registro da história e
memória de Miranda, recurso-espaço este que historicamente foi negado à condição feminina; a
história oficial narrada e registrada, pelo homem (branco), se ocupou de apagar ou descredibilizar a
narrativa feminina. O diário que é também um gênero textual dialógico, pois se dirige a um
interlocutor, ainda que imaginário, aqui, aponta também para uma imposição específica à condição
feminina - a da solidão. O isolamento social além de ser uma realidade experimentada por muitas
mulheres ao longo da história, incluindo aquelas que conseguiram sobrepujar o silenciamento social
como Emily Dickinson, as irmãs Brontë, Mary Wollstonecraft, entre outras, é uma poderosa estratégia
de subjugação do corpo feminino, como será apresentado a seguir.

Aprisionamento e ocupação do espaço público

Em 1963, poucos meses antes da publicação de O colecionador, vinha a público o que foi
considerado um dos livros mais importantes do século XX - A mística feminina - uma investigação
realizada por Betty Friedan acerca de um fenômeno social que acometia as mulheres estadunidenses -
identificadas sob o jargão “ocupação: donas de casa” -, que experimentavam um sentimento de vazio,
ao qual não bastava um diagnóstico e tratamento individual para a histeria, “o sofrimento da dona de
casa presa tinha se tornado um jogo nacional” (FRIEDAN, 2021, p. 25).
As duas décadas que antecederam a Inglaterra em que Fowles concebeu O colecionador, foram
profundamente marcadas pela Segunda Guerra Mundial, seguida pela explosão da bomba de
Hidrogênio (temas secundariamente apontados no romance), acontecimentos que impuseram muitas
mudanças às mulheres, especialmente para as da classe trabalhadora, como indicou Brooke (2006), por
exemplo: a sobrecarga vivida entre o trabalho dentro e fora de casa (muitas mulheres ficaram sozinhas
nesta tarefa), as dificuldades (emocionais, físicas e financeira) de cuidar de uma grande prole pela
ausência de controle reprodutivo, além da insatisfação sexual. E quando, finalmente, os homens
retornaram da guerra, (re)ocupando seus espaços “legítimos”, um cenário fronteiriço entre a vida
doméstica e a vida fora de casa foi se (re)desenhando. Friedan relata que:
As mulheres com frequência ficavam amarguradas em sua área de atuação quando, prontas e
capazes de ter um cargo melhor, eram preteridas em favor de um homem. Em alguns empregos,
a mulher tinha de se contentar em fazer o trabalho enquanto o homem recebia o crédito. (...)
depois da guerra, elas foram confrontadas com essa cortina educada mas impenetrável de
hostilidade. Era bem mais fácil para uma mulher amar e ser amada e ter uma desculpa para não
competir com os homens. (FRIEDAN, 2021, p. 231)

Portanto, o romance ao retratar o encarceramento de uma mulher em sua forma mais extrema,
acaba por tensionar reflexões sobre a ocupação do espaço público versus o espaço privado que figuram
o contexto social da relação homem-mulher, dominante-dominada, evidenciando: a indiferença do
homem quanto ao que ocorria dentro de sua casa com sua mulher; a naturalização do aprisionamento
apesar de todos os seus efeitos (danos emocionais e psíquicos, ausência de propósito, aniquilação de
habilidades intelectuais, sociais e produtivas), a experiência de solidão e silenciamento da mulher
aprisionada, apagada da vida pública, seu medo e ansiedade acerca do que viria a lhe acontecer - se e
quando seria sexualmente violentada -, a ameaça permanente de se encontrar em situações de
vulnerabilidade, a incapacidade de se defender, a ansiedade e a alienação que a impede de encontrar
uma forma de escapar e de salvar a si mesma.
Talvez por tudo isso, Fowles constrói uma mulher muito consciente de si e da realidade em que
está inserida, uma mulher que mesmo sabendo que não está em pé de igualdade, procura armas para
lutar, uma mulher que confronta seu captor, dizendo: “Sou uma prisioneira, mas você quer que eu seja
uma prisioneira feliz.” (FOWLES, 2018, p. 58), uma mulher que, diferente daquelas mencionadas por
Friedan (2021) incapazes de nomear seu problema, estava consciente dos artifícios articulados para
ambientar a prisão transmutando-a em lar, para torná-la o espaço de confinamento por dependência
absoluta, o lugar de esvaziamento de suas necessidades, onde ela gradativamente deveria ceder à
alienação, onde o desejo e sonhos dele substituíssem sua própria vontade. Ela reconhece o processo de
mudança que sorrateiramente se instala dentro dela: “Odeio a forma como mudei. Aceito demais. (...)
Está fazendo com que eu me comporte exatamente como ele quer.”(FOWLES, 2018, p. 158). O que
escapa à consciência refinada de Miranda é o porquê.
O “direito” sobre o corpo feminino

O parágrafo de abertura do romance, aportado na estratégia da linguagem, aponta para um


artifício de mascaramento da natureza cruel e violenta de subjugação do corpo feminino que ao inverter
a lógica de passividade em atividade, e vice-versa, subverte a aparência da dominação. Assim, o
narrador de O colecionador inicia
Quando ela voltava do internato, eu costumava vê-la quase todos os dias, já que a casa dela
ficava bem em frente ao anexo da Prefeitura. Ela e a irmã mais nova costumavam entrar e sair o
tempo todo, quase sempre acompanhadas de rapazes, do que, é claro, eu não gostava. Quando
tinha um momento livre dos arquivos e contabilidade, eu parava em frente à janela e olhava
para o outro lado da rua, através do gelo fino no vidro, e às vezes a via. (FOWLES, 2018, p. 29)

Observa-se que Clegg relata a “aleatoriedade” que tornará aquela moça “sua convidada”,
centralizando a ação no(s) corpo(s) feminino(s). É o corpo feminino que lhe atravessa o campo de
visão, sem que ele quisesse; ele que só estava ali fazendo o seu trabalho. O que desencadeia o
movimento na narrativa está em quem transita (entrar e sair o tempo todo), quase não nota-se o aspecto
de inadequação e gravidade da ação de quem fica à espreita observando - o stalker que invade a
privacidade alheia - ele. Colocá-la em primeiro plano, ao longo de todo o primeiro parágrafo da obra, é
uma forma de dissimular a verdadeira essência da atividade de dominação. Ele se constrói num jogo de
palavras como o homem que venera uma mulher, que está na condição simbólica “aos seus pés”, que
chega “a perder o fôlego com sua beleza”, e que, não à toa, a assemelha à figura mitológica da “sereia”
(híbrido feminino que personifica os perigos do mar, que atrai os homens com seu canto mortal); é
quase como se ela estivesse no controle de suas pulsões; como se ela o dominasse. Assim, logo de
início, se faz flagrante o artifício, para o qual
Muitas mulheres são acusadas, como eu fui na juventude, de que algo que nós fizemos ou
dissemos ou vestimos, ou apenas a nossa aparência geral, ou o fato de sermos mulheres havia
excitado desejos que nós tínhamos, portanto, a obrigação contratual de satisfazer. Nós devíamos
isso a eles. Eles tinham esse direito. Tinham direito a nós. (SOLNIT, 2017, p. 168)

Para além da ficção, é real o grande número de mulheres que se identificam com o depoimento
de Solnit sobre a culpabilização da vítima e o pretenso direito do macho. Não à toa, o narrador de O
colecionador, também, encerra a primeira parte do romance afirmando “até aquele dia eu acredito que
estava agindo da maneira correta e dentro dos meus direitos” (FOWLES, 2018, p. 141), dentre os
“direitos” a que ele se refere estão o de: sequestrar, aprisionar, usar de violência física, contaminá-la
com um vírus, negligenciar tratamento, deixá-la morrer lentamente.
Na fantasia de Clegg o aprisionamento de Miranda deveria remontar o cenário de uma perfeita
vida conjugal, onde ela se ocuparia dos cuidados dele e dos filhos, que viriam a ter, enquanto ele
desempenharia o papel do provedor, sendo ele o dono do dinheiro, da casa e por conseguinte da mulher
- “Essa é a beleza do dinheiro. Com ele não há obstáculos” (FOWLES, 2018, p. 41) -. Desse modo a
relação se estabelece sobre um contrato tácito em que sendo ele o pagante pela manutenção das
necessidades do corpo feminino sob sua tutela, lhe confere o direito pleno sobre ele; há quem tenha
comparado o casamento para o sustento como uma forma de prostituição. E não se pode deixar de
mencionar que o estupro marital é uma pauta atual que ainda provoca debates divergentes, acerca do
direito do marido sobre o corpo da mulher, nas sociedades contemporâneas.
No caso de Frederick o dinheiro não consegue lhe conferir o tão sonhado aburguesamento, nem
mesmo a satisfação sexual. Ele revela sua frustração ao relatar que numa certa noite "depois do
restaurante grã-fino -, estava me sentindo deprimido (...) e de repente senti vontade de ter uma mulher,
quero dizer, de poder saber que eu tive uma mulher (...) Não direi o que aconteceu, apenas que não
prestei para nada” (FOWLES, 2018, p. 35). O romance além de apontar para a correlação entre poder e
sexualidade retroalimentando a estrutura da dominação masculina, também aponta para a transmutação
da castração simbólica em moralidade, camuflando a subjugação e violência impostas ao corpo
feminino, em que determinados predicados de feminilidade (limpeza, beleza, o modo de se vestir, de
falar, de andar, de se comportar, etc.) são valorizados, estimulados e padronizados como uma estética
de devir feminino, em detrimento de outros que devem ser inibidos, censurados e rejeitados.
Miranda é um corpo feminino que reúne tais atributos de feminilidade o que a torna elegível, à
condição de “troféu” (FOWLES, 2018, 47) ou de uma “espécie rara” (FOWLES, 2018, p. 48); um
objeto colecionável. A dominação masculina se realiza duplamente nesta lógica cultural: na
conformação da mulher a uma identidade ideal, e ao aproximá-la do estereótipo de feminilidade
correspondente a tal ideal imposto, a saber: a mulher burguesa aprisionada, “a bela, recatada e do lar”,
que se diferencia do tipo “vulgar”, faz dela uma vítima potencial de diferentes tipos de violência.
O suposto direito sobre o corpo feminino também se arvora sob o que talvez seja artifício mais
perverso de subjugação do(s) corpo(s) feminino(s): o amor. Os (as) leitores (as) da obra sabem, porque
são informados pelo próprio narrador, que Frederick não ama Miranda, que suas declarações de amor e
performances cavalheirescas são artifícios clichês de manipulação e manutenção da ordem que lhe é
conveniente. Ao que Bourdieu, mais uma vez, chama a atenção:
O “amor puro”, esta arte pela arte do amor, é uma invenção histórica (...) A aura de mistério que
o cerca, sobretudo na tradição literária, pode ser facilmente compreendida de um ponto de vista
estritamente antropológico: baseado na suspensão da luta pelo poder simbólico que a busca de
reconhecimento e a tentação correlativa de dominar suscitam, o reconhecimento mútuo pelo
qual cada um se reconhece no outro e o reconhece também como tal pode levar, em sua perfeita
reflexividade, para além da alternativa do egoísmo e do altruísmo ou até da distinção do sujeito
e do objeto, a um estado de fusão e de comunhão, muitas vezes evocado em metáforas próximas
às do místico, em que dois seres podem “perder-se um no outro” sem se perder. (BOURDIEU,
2021, ps. 180 e 181).
Neste contexto, Miranda ocupa o papel das tantas mulheres envolvidas em relacionamentos
abusivos ou nos chamados “amores tóxicos” e que só têm como instrumento de julgamento o que a
figura dominante lhe faz crer, o que torna seu aprisionamento ainda mais cruel, pois as forças que aí
atuam (promessas de mudança, esperanças de um final feliz), se escondem sob o manto do livre arbítrio
de quem tem a “sorte” de ser “amada”.

Reflexões Parciais

Retomando a reflexão sobre o papel efetivo da moralidade e da cultura, deve-se considerar que
a condição da dominação masculina exige uma estrutura sólida e ativa para se estabelecer e se
perpetuar, de preferência ad aeternum. Bourdieu considera que
Se a unidade doméstica é um dos lugares em que a dominação masculina se manifesta de
maneira mais indiscutível (e não só através do recurso à violência física), o princípio de
perpetuação das relações de força materiais e simbólicas que aí se exercem se coloca
essencialmente fora desta unidade, em instâncias como a Igreja, a Escola ou o Estado e em suas
ações propriamente políticas, declaradas ou disfarçadas, oficiais ou oficiosas. (BOURDIEU,
2021, p. 188)

A atividade pedagógica que daí decorre, seja ela exercida em espaços educacionais - como a
Escola, Família ou Igreja -, seja em espaços sócio-interativos - como as mídias de massa -, atua como
instrumento de inculcação da dominação masculina nos corpos, femininos e masculinos, seja por
valorização, observação ou transmissão direta, o código é absorvido por símbolos, o que quer dizer que
seus significados são construídos coletivamente e é tarefa histórica e social sua (des) eternização. Por
isso tudo, as vozes no movimento feminista contemporâneo tem chamado a atenção para a educação
(feminista) de meninos e meninas, sinalizando para o papel da mãe na reprodução de saberes e valores,
porém não se limitando a ela, já que é uma tarefa coletiva que deve ser encarada por todos e todas.
Quando Miranda batiza seu captor de Caliban, por identificar a ironia da referência de seus
nomes (Frederick se apresenta como Ferdinand) aos personagens shakespearianos, ela o faz como
indicativo da feiura e monstruosidade com que o personagem é descrito na peça. Entretanto, buscando
compreender a referência no próprio texto dramático, o que se percebe é que o “escravo selvagem,
disforme” (SHAKESPEARE, 2002) é antes de tudo um órfão que foi seduzido e aprisionado, portanto,
sua tal monstruosidade decorre em consequência ao processo da subjugação a que Próspero o submete.
Sem muito adentrar-se em tais pormenores, embora a intertextualidade proposta por Fowles mereça
uma análise apurada, o que se desponta dessa identidade múltipla congregada em Clegg se assemelha
ao que Butler propõe sobre a formação psíquica do poder, segundo ela “O senhor que a princípio
parece ser externo ao escravo, ressurge como a própria consciência do escravo” (BUTLER, 2017). De
modo que a única forma de libertação de Minerva, seria libertando Frederick/Caliban/Ferdinand, o que
parece ser a perspectiva defendida por Bourdieu ao refletir sobre os dualismos oriundos da dominação
masculina que estão “profundamente enraizados nas coisas (as estruturas) e nos corpos, não nasceram
de um simples feito de nominação verbal e não podem ser abolidos com um ato de magia performática”
(BOURDIEU, 2021, p. 168).
Ao ser perguntado sobre acreditar em um possível “princípio feminino”, dada a condição de
esclarecimento e autoconhecimento das mulheres de seus romances, Fowles comentou sobre sua
percepção acerca da condição feminina na literatura e na vida, bem como sua inquietação em relação às
ideias de dominação masculina. Em suas próprias palavras, disse:
I feel that the universe is female in some deep way. I think one of the things that is lacking in
our society is equality of male and female ways of looking at life. I’ve always disliked the
dominant theme of machismo as in Hemingway and the whole of American society. This sort of
deep thing in one’s writing really doesn’t come out in one’s conscious mind: it comes out in
how one was born, the culture one was brought up in. Which is what I was trying to say in The
Collector. (CAMPBELL, FOWLES, 1976, p. 465).

A obra literária se atualiza a cada novo contexto de onde o (a) leitor (a) a recepciona. De modo
que a leitura de O colecionador se renova, para além do prazer da leitura de um bom romance de
suspense, nas pautas sociais de um mundo que não dá trégua às práticas de subjugação e violência aos
corpos femininos, onde a alegoria do clorofórmio misturado ao CCl4 usado em Miranda, é o “boa noite
cinderela” de batismo das bebidas das meninas, em eventos sociais, ou o gás tóxico no carro de
aplicativo, assim como a representação ficcional do cárcere privado estampam às notícias nas redes
sociais, ou, ainda, a violência doméstica e o feminicídio que, não só continuam sendo realidade,
também tiveram uma elevação estatística assustadora em situações de confinamento doméstico,
impulsionados pelo desemprego e pela pandemia de COVID-19.
A literatura não tem compromisso direto com a enunciação de verdades, sua matéria-prima é
em grande medida a imaginação, e mesmo assim a atividade leitora não deixa ileso (a) o (a) leitor (a)
que assume o desafio de pensar sobre o dito/escrito-lido, participando dessa mágica que opera
ciclicamente transformando pensamento em linguagem e linguagem em pensamento.
Pensamento e linguagem são instrumentos de poder, com os quais estruturou-se o mundo tal
qual se conhece, sobre o código da dominação masculina, portanto, é com estes instrumentos, também,
que se vislumbra a construção de uma nova realidade para os corpos masculinos e femininos
desinstrumentalizados dos artifícios de qualquer forma de dominação. Ao “Cogito ergo sum” impõe-se
o exercício constante da problematização de: quem pensa? Quem é o que diz ser? Quem enuncia o
dito? Daí a importância de contestar as narrativas dominantes, expor narrativas alternativas, aquelas
que ficaram à margem das histórias “oficiais” e produzir outras narrativas diferentes, com as quais se
ateste que os corpos femininos devem ser tratados com a justiça da igualdade do tratamento destinado
aos corpos masculinos (brancos), acrescidos de todas as reparações aos corpos que acumulam outros
tantos marcadores sociais (de cor, raça, etnia, religião, etc.) que ampliam a condição de subjugação e
violência destes corpos.
Ademais, as mulheres ainda têm um longo caminho a trilhar para fora dos diferentes cárceres a
que foram e, ainda, são confinadas, rumo à ocupação igualitária das esferas públicas, sem que sejam
alvo de distinção salarial, censura, silenciamento, ridicularização, ou assédio de qualquer natureza.
Assim como na esfera privada, onde as mulheres são, majoritariamente, as encarregadas solo, não
remuneradas, da manutenção e cuidado da casa e da família, ainda que possuam seu trabalho fora do
lar.

Referências Bibliográficas

BOURDIEU, P. A dominação Masculina - a condição feminina e a violência simbólica.


19. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2021.
BROOKE, S. “Bodies, Sexuality and the ‘Modernization’ of the British Working Classes, 1920s to
1960s.” International Labor and Working-Class History, no. 69, 2006, pp. 104–22. JSTOR,
http://www.jstor.org/stable/27673024. Accessed 6 Sep. 2022.
BUTLER, J. A vida psíquica do poder - Teorias da sujeição. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. E-book
Kindle.
CAMPBELL, J. and FOWLES, J. “An Interview with John Fowles.” Contemporary Literature, vol. 17,
no. 4, 1976, pp. 455–69. JSTOR, https://doi.org/10.2307/1207620. Accessed 7 Sep. 2022.
EAGLETON, T. Como ler literatura. Porto Alegre: L&PM: 2019.
FOWLES, J. O colecionador. Rio de Janeiro: Darkside Books, 2018.
FRIEDAN, B. A mística Feminina. 3. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2021.
NABOKOV, V. Lolita. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2011. E-book Kindle.
SHAKESPEARE, W. A tempestade. Porto Alegre: L&PM, 2002. E-book Kindle.
SOLNIT, R. Os homens explicam tudo para mim. São Paulo: Cultrix, 2017.

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