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Roma: contexto histórico-literário

Divulgação.
Magna Grécia e as cidades colonizadas pelos gregos, cartagi-
neses e aborígenes.

Roma: uma breve história


Grandes diiculdades são encontradas na reconstrução da história objetiva
dos povos da Antiguidade. Essas se fundam especialmente na ausência de fontes
historiográicas coniáveis, porque, no mais das vezes, as grandes civilizações an-
tigas eram ágrafas como foram, por exemplo, a grega entre os séculos XX a.C.
e VI a.C. e a romana em seus primórdios. Assim, como são poucos os registros
materiais, devemos informações mais longínquas às mitograias4 – frequente-
mente transmitidas oralmente, na Antiguidade Clássica – e mais recentemente
aos achados arqueológicos que, não raras vezes, desmentem as primeiras, prin-
cipalmente naquilo a que as datas se referem.

Sobre essa questão, Michael Grant (1987, p. 18) nos diz:


Assim, quando buscamos reconstruir a história remota e a cronologia de Roma, temos de
desconiar de seus abundantes mitos e lendas patrióticos e partidários. Não obstante, este é,
infelizmente, o único material literário que temos para todos esses primeiros séculos, antes
que quaisquer fatos históricos idedignos sejam disponíveis. Os mitos são muito importantes
porque mostram aquilo que as gerações posteriores de romanos acreditavam sobre seu país e
como funcionavam suas mentes.
4
Mitograia (2004): ciência que estuda os mitos; descrição dos mitos.

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Literatura Latina

Entretanto, assumiremos aquilo que tradicionalmente é aceito entre os histo-


riadores e latinistas contemporâneos acerca da fundação e da delimitação histó-
rica de suas formas de governo, essas sim, determinantes e fundamentais para a
compreensão da literatura produzida. Três são os períodos históricos de Roma: a
Realeza (753-509 a.C.), a República (509-43 a.C.) e o Império (43 a.C.-476 d.C.)

Realeza
Como não poderia deixar de ser, o período da Realeza romana é o que melhor
se enquadra nas questões metodológicas levantadas por Grant sob o aspecto da
construção da história e, consequentemente, da identidade cultural romana em
seus primórdios. A mitograia, amiúde, oral, de um lado, e uma história objetiva
e cientíica, muitos séculos distante do objeto, de outro, são as únicas fontes
que temos acerca do período do qual vale ressaltar a ordem e a origem desses
governantes:

Reis romanos

Reis latinos e sabinos


753 a.C.–716 Rômulo
716–673 Numa Pompílio
673–641 Túlio Hostílio
641–616 Anco Márcio
Reis etruscos (Tarquínios)
616–578 Tarquínio Prisco
578–534 Sérvio Túlio
534–509 a.C. Tarquínio, o Soberbo

O período histórico dos reis romanos é o mais curto entre os três períodos da
sua história, compreendendo algo em torno de pouco mais de dois séculos. Sob
o aspecto da literatura, esse momento histórico é pouco importante, uma vez
que não há registro histórico em língua latina, tal como nós a conhecemos hoje
em que se pesem aqui artefatos arqueológicos como a fíbula praenestina, pe-
queno broche de ouro que contém a primeira inscrição em latim arcaico, datada
do século VII a.C., no qual lemos:

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Roma: contexto histórico-literário

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Fíbula Praenestina. Século VII a.C.

A inscrição nela contida apenas fazia referência ao ourives que a fabricara e


ao nome daquele que encomendara a peça. Diz a inscrição: “Manios med fhe-
fhaked Numasioi” (latim arcaico) ou “Manius me fecit Numasio” (latim clássico), ou
seja, Mânio me fez para Numásio.

Sob o ponto de vista literário, portanto, não há produção na época dos reis
de Roma. Tal fato, entretanto, não pode ser visto necessariamente no viés da
improdutividade cultural. Antes, talvez, deva ser considerado como ausência
produzida pela impiedade do tempo, pois, mesmo ágrafa, uma sociedade pode
produzir grande literatura. O exemplo mais claro é a sobrevivência das obras de
Homero que durante séculos foram transmitidas oralmente e apenas no século
V a.C. teriam sido veiculadas pela escrita. Assim, se Roma não nos legou obra
literária nesse período, dois motivos concorrem: a inexorável ação do tempo ou,
realmente, as práticas letradas não haviam sido empreendidas.

República
Se o período dos reis não nos deixou registros literários, a República, por seu
turno, foi momento dos mais frutíferos, pois é desse período o primeiro registro
tido como literário em Roma, e também a ocorrência da disseminação de gêne-
ros literários não romanos, principalmente aqueles desenvolvidos em Alexan-
dria, durante o Império Macedônico.

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Literatura Latina

Assim, se costuma atribuir ao ano de 250 a.C. o início da literatura latina, com
a composição da tradução da Odisseia realizada por Lívio Andronico. Essa data é
interessante, pois desnuda certa sincronicidade com a expansão de Roma, mar-
cada na República com as vitórias sobre os samnitas entre 341-304 a.C. (expan-
dindo o poder da cidade ao centro da Península Itálica), e a tomada da cidade
grega de Tarento, na Magna Grécia, em 272 a.C.

Há que se notar, portanto, que já iam 500 anos aproximadamente de história


quando surge o primeiro registro da literatura latina. Curioso é que esse regis-
tro seja uma tradução da Odisseia. Tal fato nos faz minimamente reletir sobre
dois aspectos: a tradução como literatura e o inluxo helênico (estamos diante
da Odisseia) no universo romano, nos moldes que nos informa Horácio na sua
epístola, como já vimos.

A compreensão da tradução como literatura parece-nos absolutamente


óbvia hoje em dia, principalmente se pensarmos nas teorias modernas da tra-
dução como recriação ou transcriação5, teorizadas por Augusto e Haroldo de
Campos nos anos 1960 e 1970. Entretanto, na Roma republicana, apesar de os
efeitos serem similares, isto é, os de se valorizar a tradução como prática letrada,
o que leva a esse mesmo efeito não é a genialidade do poeta tradutor, mas antes
o princípio poético e mimético de emulação, como veremos adiante.

A República talvez seja, dentre os três sistemas políticos existentes na história


de Roma, aquele que mais a singularizou, isto é, aquele que a diferenciou entre
a totalidade dos povos da Antiguidade. Poder-se-ia dizer que, em certa medida,
a República romana é o equivalente itálico da pólis grega.

Império ou Principado
O termo imperium refere-se ao poder administrativo supremo, à autoridade
exercida por um comandante militar, a uma investidura concedida pelo Senado
a certos cidadãos em momentos esporádicos da história da República. Isso tudo
sempre sob o controle do Senado, o que, para os romanos, signiicava controle
do povo; ainal todas as instituições públicas estavam sob controle do Senado o
que, de certa forma, impõem limitações aos governantes e deixa absolutamente
claro que o povo representado nas iguras dos senadores comanda os destinos
de Roma.

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Entre os poetas concretos, houve uma supervalorização da tradução, dando-lhe estatuto de criação literária, seguindo os preceitos do famoso
poeta Ezra Pound.

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Roma: contexto histórico-literário

A grande crise no inal da República, instaurada pelo conlito de interesses


entre o grupo da aristocracia, liderado por Pompeu, o Grande, e o grupo dos
populares, liderado por Júlio César, faz com que o Senado encontre uma saída
política temporária: o triunvirato, isto é, a divisão dos poderes da República
entre três nomes. O primeiro triunvirato foi composto por Júlio César, Pompeu
e Crasso. Essa saída negociada para gerir a crise político-institucional malogra,
isto é, aquilo que era para ser uma solução pacíica entre forças políticas discor-
des acaba numa terrível guerra civil comandada por dois desses triúnviros, Júlio
César e Pompeu. Com a vitória do primeiro sobre o segundo, o conlito só faz
aumentar e culmina com o assassinato de Júlio César por uma conjuração de
senadores liderada por Bruto.

Após a morte daquele que se declarara ditador perpétuo (dictator perpetuus),


o Senado experimenta a mesma solução anterior e soergue o triunvirato mais
uma vez. Sua composição dessa vez é Otávio, Marco Antônio e Lépido. Vale dizer,
entretanto, que a dissensão, mantém-se entre dois aliados de Júlio César, seu so-
brinho-neto Otávio e seu lugar-tenente Marco Antônio. Com a vitória do primei-
ro sobre o segundo, o segundo triunvirato termina e a República, por intermédio
do Senado, passa a conceder mais e mais poderes a uma só pessoa, Otávio, que,
justamente por esse acúmulo de atributos, passa a ser conhecido como o pri-
meiro imperador romano, recebendo a designação de Augusto.

O vastíssimo período imperial (do século I ao V), se não singulariza Roma como
o republicano, é, de longe, o que mais reverberou, ou seja, se o modelo republica-
no é diferencial, o imperial romano é emulado em diversos momentos da história
universal. Não foi por acaso que Aachen, na atual Alemanha, durante o império
de Carlos Magno (Sacro Império Romano-Germânico), foi chamada de “a segunda
Roma”. Não foi de outra forma que Roma se tornou paradigma emblemático a Na-
poleão e a outros “líderes” ocidentais que usurparam meios romanos de represen-
tação em prol de ideologias nefastas, hoje absolutamente execradas.

Alguns dos mais importantes imperadores romanos e suas respectivas


dinastias:

Imperador Data Dinastia


Augusto ou Otávio ou
27 a.C. – 14 d.C.
Otaviano
Tibério 14 – 37
Júlio-Claudiana
Calígula 37 – 41
Cláudio 41 – 54
Nero 54 – 68

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Literatura Latina

Imperador Data Dinastia


Galba 69
Ano dos quatro
Otho 69
imperadores
Vitélio 69
Vespasiano 69–79
Tito Flávio 79–81 Flaviana
Domiciano 81–96
Nerva 96–98
Trajano 98–117
Adriano 117–138
Antonio Pio 138–161 Antoninos
Marco Aurélio 161–180
Lúcio Vero 161–169 (Coimperador)
Cômodo 177–192
Pertinax 193
Dídio Juliano 193
6
Séptimio Severo (...) 193–211
Severos
Caracala 197–217
Geta (...) 209–211
Alexandre Severo 222–235
Crise do 3.º Século - 29 Imperadores (235–268)
Império das Gálias–seis Imperadores (260–274)
Imperadores Ilírios–13 Imperadores (268–284)
Diocleciano (...) 284–305
Constantino I (...) 307–337 Constantiniana
Juliano, o Apóstata (...) 361–363
Último imperador do
Rômulo Augusto 475–476
ocidente.

Sob a perspectiva literária e artística, podemos dizer que o início do Império


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trouxe consigo a emancipação estética de Roma. Se a República é nitidamen-


te devedora das artes gregas, sejam elas de matiz clássico-arcaizante, sejam de
matiz helenístico, o Império consolida um modo poético de produção literária
diferenciado.

Assim, o nascimento do Império com a morte de Júlio César em pleno Senado


(bela antítese!) é o nascimento de uma arte singular e, portanto, propriamente
romana, ainda que dialogue sistematicamente com outras culturas antigas como
a grega, a egípcia, a mesopotâmica, a gaulesa, a celta entre outras. A pax romana
(paz romana) de Augusto, além de todo signiicado político (época de paz polí-
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Foram suprimidos um ou mais imperadores.

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Roma: contexto histórico-literário

tica interna, longe dos conlitos civis), é metaforicamente a paciicação de con-


litos poéticos internos a Roma, que facilmente são vislumbrados na agonia da
República com os poetae noui (poetas novos) ou neóteroi (os jovenzinhos), como
Cícero (106 a.C.–46 a.C.) pejorativamente preferia.

Catulo (84 a.C.–54 a.C.) dizia: “Aos velhos severos todos voz nem vez vamos
dar” (poema 5). Com isso ele desejava era calar um projeto literário antigo, ve-
tusto, calcado na sisudez e na gravidade cívica em detrimento da leveza e da
suavidade da vida cotidiana. A poesia valorosa para esses jovenzinhos, como os
chamara Cícero, era aquela que “incita o que excita, não aos jovens, mas a esses
velhos que já não têm jogo de cintura...” (poema 16). Esse projeto, iniciado por
Catulo, Calvo e outros, será levado adiante, Império adentro, por poetas como
Horácio, Propércio, Tibulo, Ovídio, Virgílio e Marcial.

É claro que, sob o Império, outras manifestações literárias, que não as poéti-
cas, avolumaram-se, como é caso da historiograia de Tácito; da sátira menipeia
de Petrônio; da tragédia e da sátira de Sêneca; da tratadística de Quintiliano e de
Plínio, o Velho; a epistolograia de Plínio, o Jovem.

Práticas letradas

Princípios de observação, leitura


e compreensão da literatura latina:
as poéticas, as retóricas e as gramáticas
Quando falamos em literatura latina, devemos sempre ter em mente uma
questão metodológica importantíssima que diz respeito à própria nomeação de
literatura que para nós, modernos e pós-modernos, seria uma disciplina regula-
dora dos discursos esteticamente construídos e constituídos com o intuito de
produzir deleite ao agente da fruição, leitor ou ouvinte. Tal concepção, entretan-
to, não pode ser aplicada ao mundo romano, porque não só o conceito de lite-
ratura assim considerado é pré-romântico (iluminista mesmo), como também,
para os romanos, todos os discursos indistintamente são regulados por algumas
disciplinas que educam e instruem o público leitor a recepção. Essas não são
singulares, como a teoria literária, antes as temos plurais: as poéticas, as retóricas
e as gramáticas.

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