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Análise das Obras Indicadas ao Vestibular

Prof. Marco Antonio Mendonça


Melhores Poemas de João Cabral de Melo Neto
(Seleção: Antonio Carlos Secchin)

Modernismo:
O modernismo brasileiro foi um amplo movimento cultural que repercutiu fortemente sobre a cena artística e a
sociedade brasileiras desde a primeira metade do século XX, e resultou, em grande parte , da assimilação de novas
tendências artísticas e culturais lançadas pelas vanguardas européias anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Tradicionalmente, considera-se a Semana de Arte Moderna realizada em São Paulo, em fevereiro de 1922, o ponto de
partida do modernismo no Brasil.
Didaticamente, divide-se o Modernismo em três fases: a primeira fase, mais radical e fortemente oposta a tudo que foi
anterior, cheia de irreverência e escândalo; uma segunda mais amena, que formou grandes romancistas e poetas; e uma
terceira, também chamada Pós-Modernismo por vários autores, que se opunha de certo modo a primeira e era por isso
ridicularizada com o apelido de neoparnasianismo.
Primeira Geração (1922-1930)
Caracteriza-se por ser uma tentativa de definir e marcar posições. Período rico em manifestos e revistas de vida
efêmera. É a fase mais radical, justamente em conseqüência da necessidade de definições e do rompimento de todas as
estruturas do passado. Caráter anárquico e forte sentido destruidor. Principais autores desta fase: Mário de Andrade,
Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Antônio de Alcântara Machado, Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo,
Guilherme de Almeida e Plínio Salgado.
Características
Busca do moderno, original e polêmico. Paródias - tentativa de repensar a história e
―Língua brasileira‖ - falada pelo povo nas a literatura brasileira.
ruas.
Segunda Geração (1930-1945)
Estende-se de 1930 a 1945, sendo um período rico na produção poética e também na prosa. O universo temático se
amplia e os artistas passam a preocupar-se mais com o destino dos homens, o estar-no-mundo. “A segunda fase colheu
os resultados da precedente, substituindo o caráter destruidor pela intenção construtiva, “pela recomposição de
valores e configuração da nova ordem estética”.(Cassiano Ricardo)
A poesia prossegue a tarefa de purificação de meios e formas iniciada antes, ampliando a temática na direção da
inquietação filosófica e religiosa, com Vinícius de Moraes, Jorge de Lima, Augusto Frederico Schmidt, Murilo Mendes,
Carlos Drummond de Andrade, ao tempo em que a prosa alargava a sua área de interesse para incluir preocupações
novas de ordem política, social e econômica, humana e espiritual. À piada sucedeu a gravidade de espírito, a seriedade
da alma, propósitos e meios. Uma geração grave, preocupada com o destino do homem e com as dores do mundo, pelos
quais se considerava responsável, deu à época uma atividade excepcional.
Características
Poesia
Nova postura temática - questionar mais a realidade e a si mesmo enquanto indivíduo
Tentativa de interpretar o estar-no-mundo e seu papel de poeta
Literatura mais construtiva e mais politizada.
Surge uma corrente mais voltada para o espiritualismo e o intimismo (Cecília, Murilo Mendes, Jorge de Lima e
Vinícius)
Aprofundamento das relações do eu com o mundo
Consciência da fragilidade do eu - "Tenho apenas duas mãos / e o sentimento do mundo" (Carlos Drummond de
Andrade - Sentimento do Mundo)
Prosa
Romances caracterizados pela denúncia social, verdadeiro documento da realidade brasileira, atingindo elevado grau
de tensão nas relações do eu com o mundo. O regionalismo ganha importância, com destaque às relações do
personagem com o meio natural e social.
Os escritores nordestinos merecem destaque especial, por sua denúncia da realidade da região pouco conhecida nos
grandes centros. O 1° romance nordestino foi "A Bagaceira" de José Américo de Almeida (1928). Esses romances
retratam o surgimento da realidade capitalista, a exploração das pessoas, movimentos migratórios, miséria, fome, seca
etc.
Terceira Geração (1945- +/- 1980)
A literatura brasileira, assim como o cenário sócio-político, passa por transformações.
A prosa, tanto no romance quanto nos contos, busca uma literatura intimista, de sondagem psicológica, introspectiva,
com destaque para Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles. Ao mesmo tempo, o regionalismo adquire uma nova
dimensão com Guimarães Rosa e sua recriação dos costumes e da fala sertaneja, penetrando fundo na psicologia do
jagunço do Brasil central. Um traço característico comum a Clarice e Guimarães Rosa é a pesquisa da linguagem, por
isso são chamados instrumentalistas. Na poesia, surge uma geração de poetas que se opõem às conquistas e inovações
dos modernistas de 22. Assim, negando a liberdade formal, as ironias, as sátiras e outras ―brincadeiras‖ modernistas, os
poetas de 45 buscam uma poesia mais ―equilibrada e séria‖. Os modelos voltam a ser os Parnasianos e Simbolistas.
Principais autores (Ledo Ivo, Péricles Eugênio da Silva Ramos, Geir de Campos e Darcy Damasceno). No fim dos anos
40, surge um poeta singular, pois não está filiado esteticamente a nenhuma tendência: João Cabral de Melo Neto.

João Cabral de Melo Neto.


João Cabral de Melo Neto é o mais importante poeta da geração de
45. Nasceu em 1920, no Recife, e morreu em 1999, no Rio de Janeiro.
Filho e neto de donos de engenho, desde cedo apresentou interesse pela
palavra, pela literatura de cordel nordestina e desejava ser crítico
literário.
“E da feira do domingo/ me traziam conspirantes/ para que os lesse
e os explicasse/ um romance de barbante./ Sentados na roda morta/ de
um carro de boi, sem jante/ ouviam o folheto guenzo,/ a seu leitor
semelhante,/ com as peripécias de espanto/ preditas pelos feirantes./
Embora as coisas contadas/ e todo o mirabolante,/ em nada ou pouco
variassem/ nos crimes, no amor/ nos lances,(...)” Descoberta da
literatura in A Escola das Facas (1980)
Tinha como primos dois nomes ilustres da cultura brasileira: Gilberto Freyre e Manuel Bandeira. Aos vinte anos já lia
no original os grandes poemas da literatura estrangeira, como Apollinaire, Valéry e outros. Em 1942, apenas com o
curso secundário concluído, muda-se para o Rio de Janeiro e, para sobreviver, ingressa no funcionalismo público.
Trazia consigo seu primeiro livro, Pedra do Sono (1941), de tendência surreal. Três anos depois, num segundo
concurso, ingressa no Itamarati, passando a viver em várias cidades famosas do mundo, como Barcelona, Londres,
Sevilha, Marselha, Genebra, Berna e outras.
Cronologicamente, João Cabral situa-se entre os poetas da geração de 45, mas trilhou caminhos próprios, dando
continuidade a certos traços que já se delineavam na poesia de Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes, tais
como a poesia substantiva, a objetividade e a precisão dos vocábulos.

Em sua obra encontram-se temas fundamentais :


A preocupação cada vez maior com a realidade social, particularmente com o Nordeste,
A reflexão permanente sobre a criação poética e artística (metalinguagem),
o aprimoramento de sua poética já em construção, a poética da linguagem-objeto, isto é, que procura sugerir o assunto
retratado pela própria construção da linguagem, (presença de um despojamento cada vez maior de sua linguagem.
Algumas palavras são usadas sistematicamente na poesia deste autor: cana, pedra, osso, esqueleto, dente, gume,
navalha, faca, foice, lâmina, cortar, esfolado, baía, relógio, seco, mineral, deserto, asséptico, vazio, fome.)
A Espanha, em uma comparação eterna com o seu Pernambuco natal,
As diversas artes, sobretudo o surrealismo
Talvez se possa afirmar que a poesia de João Cabral tenha sido a primeira a estabelecer um corte profundo entre a
poesia romântica e a moderna. Ao tratar a mulher como tema amoroso, por exemplo, o poeta o faz de forma distanciada,
sem cair no sentimentalismo.
Comentários de João Cabral:
“A palavra poeta me dá arrepios. Ela traz uma conotação de sujeito romântico, sonhador, irresponsável e até
homossexual.”
“Eu escrevo para ser lido em português...digo, em nordestino”
Comentários sobre João Cabral
“É quase impossível falar sobre João Cabral sem recorrer abundantemente aos seus próprios versos. Cabral, como
Mallarmé no século passado, como Pound e Maiakóvski, no presente, é um poeta-
crítico, ou seja, um poeta que analisa e critica o próprio fazer poético em seus
poemas [...] a melhor crítica de poesia que se fez neste século não foi feita por
críticos, mas por poetas, em poemas como (...) "Antiode", em "Psicologia da
composição", em "A palo seco", de João Cabral. [...] Contra os que querem
"poetizar o seu poema", fazê-lo dócil, submisso às concessões sentimentais, Cabral
(...) opõe o dique de sua poesia-prosa, sua poesia-crítica, sua poesia-pedra.”
Augusto de Campos, "Da antiode à antilira", texto de 1966, reeditado em Poesia,
antipoesia, antropofagia, Cortez & Moraes, 1978.
“A obra de João Cabral, obra que está longe de seu término e que nos reserva
ainda muitas surpresas, é hoje sem dúvida a que mantém maior unidade e coerência de produção, dentro de um alto
gabarito, na poesia brasileira. Obra que honraria qualquer literatura e que em qualquer literatura seria rara pela sua
qualidade [...] entre os poetas, especialmente na nova geração, a poesia de JCMN tem um lugar privilegiado: o lugar
cartesiano da lucidez mais extrema.” Haroldo de Campos, "O geômetra engajado", texto de 1963, reeditado em
Metalinguagem e outras metas, 4a. ed. revista e ampliada, Perspectiva, 1992.
Análise dos poemas
Pedra do Sono (1941)
Segundo Antonio Carlos Secchin, o primeiro livro de João Cabral, também é o ―mais atípico‖. ―Nele predomina uma
atmosfera surrealista*, visível no encadeamento de imagens logicamente dispares, nas reiteradas alusões ao mundo
onírico (sonho), numa certa passividade frente às forças misteriosas do poema, que acabam por obstruir a faculdade
crítica do poeta.‖ Ora, se Cabral vai se tornar o mais seco dos poetas, o ―mais mineral‖, este livro se opõe a esta
tendência, como vamos observar nos poemas (e excertos) a seguir:

Poema da Desintoxicação
Em densas noites O poema inquieta
com medo de tudo: o papel e a sala.
de um anjo que é cego Ante a face sonhada
de um anjo que é mudo. o vazio se cala.
Raízes de árvores Ó face sonhada
enlaçam-me os sonhos de um silêncio de lua,
no ar sem aves na noite da lâmpada
vagando tristonhos. pressinto a tua.
Eu penso o poema Ó nascidas manhãs
da face sonhada, que uma fada vai rindo,
metade de flor sou o vulto longínquo
metade apagada. de um homem dormindo.

Perceba a sugestão onírica do homem sonhando, a fada; além das ―raízes de árvores‖ se enlaçando aos sonhos. Uma
cena completamente surreal, além da metalinguagem que já se insinua no poema, e que será importantíssima em toda a
obra subseqüente do escritor pernambucano.

A André Masson o alimento a química o enxofre


Com peixes e cavalos sonâmbulos da noite.
pintas a obscura metafísica
do limbo.

Cavalos e peixes guerreiros


fauna dentro da terra a nossos pés
crianças mortas que nos seguem
dos sonhos.

Formas primitivas fecham os olhos


escafandros ocultam luzes frias;
invisíveis na superfície pálpebras
não batem.

Friorentos corremos ao sol gelado


de teu país de mina onde guardas

Uma outra constante da temática de Cabral já se insinua neste poema, a intertextualidade e as referências a outras
artes. João Cabral sempre se interessou, inclusive, em divulgar artistas plásticos, tendo sido amigo de vários deles.
André Masson (1896 – 1987) era um pintor francês que se iniciou no cubismo, mas integrou o primeiro grupo de
surrealistas liderados por André Breton, chegando a ser um dos signatários do Manifesto Surrealista de 1924. O quadro
acima, Germinação (de 1942) mostra algumas de suas características: retoma as cores e luzes, movimentando-as. Um
novo espaço e uma nova temática são criados dentro dessa sequência. A estrutura negra, sempre presente nas obras
anteriores, torna-se uma massa escura que permeia as formas orgânicas, movimentando-se em torno de um grande olho.
As tonalidades amarelas, vermelhas e azuis diluem-se nessas formas. Uma nova profundidade se apresenta: uma
atmosfera surrealista desenha-se na projeção de um mundo fantasmagórico.
Assim também é a poesia de Cabral neste primeiro momento de sua poética. Perceba as imagens sugeridas: “Cavalos
e peixes guerreiros”... “Formas primitivas fecham os olhos”... “o alimento a química o enxofre”.... muito semelhante
às sugestões oníricas do pintor surrealista.
* Surrealismo: movimento modernista do começo do século XX que se construiu, na literatura, sobre lapsos e lacunas
sintáticas e sobre a quebra da estruturação lógica do pensamento e de sua tradução lingüística equivalente.

O Engenheiro (1945)
Após uma experiência na prosa poética em 1943, quando publicou Os Três Mal Amados, a partir do poema
Quadrilha de Carlos Drummond de Andrade, João Cabral começa a mudar seu estilo com a publicação do livro O
Engenheiro (1945), dedicado àquele poeta mineiro. Para Secchin, “começa a predominar um ideal de rigor, de
ordenação tão consciente quanto possível dos elementos lingüísticos que se articulam no texto.” Apesar de alguns
poemas ainda mostrarem a face surreal das primeira composições, o livro inaugura a longa tradição dos poemas críticos,
uma obsessão na obra de Cabral. Lembre-se que o poeta sonhava em ser crítico, antes de escrever. Aqui começa a
aparecer a estrutura das quadras (estrofes de quatro versos) em medida velha, marca registrada do poeta, pois se
aproxima do processo de versificação popular dos cordéis nordestinos.
As nuvens
As nuvens são cabelos são o olho pintado
crescendo como rios; escorrendo imóvel;
são os gestos brancos a mulher que se debruça
da cantora muda; nas varandas do sono;

são estátuas em vôo são a morte (a espera da)


à beira de um mar; atrás dos olhos fechados;
a flora e a fauna leves a medicina, branca!
de países de vento; nossos dias brancos.

Ainda de temática surreal e com referências à morte, mas já sem o sentimentalismo de outros poetas como Manuel
Bandeira, por exemplo. Cabral está em um processo de definição dos rumos a serem trilhados e que serão a tônica de
sua poesia.

O Engenheiro
A luz, o sol, o ar livre (Em certas tardes nós subíamos
envolvem o sonho do engenheiro. ao edifício. A cidade diária,
O engenheiro sonha coisas claras: como um jornal que todos liam,
superfícies, tênis, um copo de água. ganhava um pulmão de cimento e vidro).

O lápis, o esquadro, o papel; A água, o vento, a claridade


o desenho, o projeto, o número: de um lado o rio, no alto as nuvens,
o engenheiro pensa o mundo justo, situavam na natureza o edifício
mundo que nenhum véu encobre. crescendo de suas forças simples.

O poema acima é extremamente importante na obra do poeta que, em virtude ele, ganhou o apelido de ―engenheiro do
verso‖, por sua temática objetiva e por sua poesia substantivada. Repare que o poeta trabalha em O Engenheiro, a poesia
a partir de substantivos concretos (―O lápis, o esquadro, o papel;/o desenho, o projeto, o número:/o engenheiro pensa o
mundo justo,/mundo que nenhum véu encobre.‖), dando a entender ao leitor como o poeta deveria trabalhar e qual será
o caminho seguido por ele a partir de agora. Em outro poema do livro (A lição da poesia), Cabral usa de metalinguagem
para exemplificar essa ―luta com as palavras‖ no sentido de despojá-las de sentimentalismo: “A luta branca sobre o
papel/que o poeta evita/luta branca onde corre o sangue/de tuas veias de água salgada.”

Psicologia da Composição (1947)


A partir de agora o poeta encontra plenamente o seu caminho de despojamento lingüístico. No livro estão importantes
textos metalingüísticos, “espécie de „arte poética‟ a ser „concretizada‟ em poemas explicitamentes referenciais.”, como
aborda o crítico da obra de Cabral em suas primeiras páginas.

Fábulas de Anfion
1 - O Deserto
No deserto, entre a Anfion, entre pedras
paisagem de seu como frutos esquecidos
vocabulário, Anfion, que não quiseram

Ao ar mineral isento Amadurecer, Anfion


mesmo da alada como se preciso círculo
vegetação, no deserto estivesse riscando
que fogem as nuvens
trazendo no bojo Na areia, gesto puro
as gordas estações. de resíduos respira
o deserto, Anfion

Fábula de Anfion é um poema narrativo , onde o anti-herói procura despojar a poesia de sua afetividade. Inspira-se no
mito clássico da construção de Tebas, problematizando a insuficiência das palavras. Anfion, de acordo com a mitologia
grega, era filho de Júpiter e Antíopa. Dotado de talento para a música, Anfion recebeu uma lira (no poema aparece
como flauta) de Apolo. Ao som dessa lira, construiu depois a muralha de Tebas; as pedras iam-se colocando umas
sobre as outras, sem qualquer esforço.
Cabral substituiu a lira por uma flauta rústica e interpretou o mito com liberdade de criação, associando os motivos
temáticos "pedra" / "palavra". Ao final do poema o acaso vai frustrar o projeto de Anfion (depuração, mineralização dos
objetos), por aparecer inexplicavelmente com toda uma vitalidade biológica. É uma força instintiva e anárquica que
rompe com a aridez da vida ascética perseguida pelo poeta.

Psicologia da composição I –VII


I. Saio de meu poema VII. É mineral o papel
como quem lava as mãos. onde escrever
o verso; o verso
Algumas conchas tornaram-se, que é possível não fazer
que o sol da atenção
cristalizou; alguma palavra São minerais
que desabrochei, como a um pássaro. as flores e as plantas,
as frutas e os bichos
Talvez alguma concha quando em estado de palavra.
dessas (ou pássaro) lembre,
côncava, o corpo do gesto É mineral
extinto que o ar já preencheu; a linha do horizonte,
nossos nomes, essas coisas
talvez, como a camisa feitas de palavras.
vazia, que despi.
É mineral, por fim,
qualquer livro:
que é mineral a palavra
escrita, a fria natureza

Da palavra escrita

Repare neste, que é um dos principais excertos de Psicologia da Composição. No poema, Cabral demonstra,
utilizando a metalinguagem, como tudo se resume a uma essência mineral quando em estado de palavra, quando no
branco do papel... mineral. Como se poemas e coisas voltassem à sua substancialidade mineral. O poema desprovido de
sentimentos e o poeta teorizando sobre ele e sobre as palavras e nomes, e objetos.
Um outro poema do livro (Antiode – contra a poesia dita profunda), também segue uma temática de crítica e
despojamento metalingüístico. Nele o poeta se refere à poesia como fezes, para opor-se à idéia de flor, tão comum aos
poetas sentimentais:

Antiode (contra a poesia dita profunda)


A
Poesia, te escrevia: extinta de flor, flor
flor! conhecendo não de todo flor,
que és fezes. Fezes mas flor, bolha
como qualquer, aberta no maduro.)

gerando cogumelos Delicado, evitava


(raros, frágeis cogu- o estrume do poema,
melos) no úmido seu caule, seu ovário,
calor de nossa boca. suas intestinações.

Delicado, escrevia: Esperava as puras,


flor! (Cogumelos transparentes florações,
serão flor? Espécie nascidas do ar, no ar,
estranha, espécie como as brisas.

O primeiro elemento que evidencia a temática cabralina é a composição de um metapoema – o assunto em pauta é o
próprio poema: a poesia faz da poesia seu tema.
Perceba o juízo crítico já na escolha do vocabulário, em que o poeta habilmente emprega as palavras flor e fezes.
Flor x fezes – a poesia enquanto flor remete ao lírico, à emoção, à idéia do objeto a refletir e simbolizar um estado de
alma. É a representação do artefato como fonte de inspiração poética. Por outro lado, a palavra "fezes" não é um termo
da ordem do sublime – no sentido de não ser algo altivo, ilustre ou belo.
"Antiode (contra a poesia dita profunda)", trata da reflexão de João Cabral, sobre o seu próprio conceito de como
fazer poesia. Desse modo, emprega uma linguagem elaborada, que tem seu cerne nas palavras flor e fezes, não só para
colocar frente a frente às duas vertentes que regem a poesia, mas ainda, ressaltar a "fabricação" do poema. Ou seja, tem-
se a utilização de vocabulários aparentemente antagônicos (flor e fezes), como mostra o poeta, a servirem de ponte para
estabelecer a ligação entre margens opostas, retratos de uma poesia lírica x uma poesia cerebral.

O Cão Sem Plumas (1950)


Os três livros abaixo têm como tema central a figura do rio Capibaribe. O rio – seja ele qual for – é altamente
simbólico no inconsciente das pessoas e dos poetas.
Simbologia da Água
O rio, como escoamento das águas, é símbolo de fertilidade, de morte e de renovação. A corrente é a vida; a água
descendo para o oceano e o ajuntamento das águas o retorno à indiferenciação (CHEVALIER, Jean e Alain
GHEERBRANT (1982), Dictionnaire des Symboles, Paris, Éditions Robert Laffont.)
A água, em si, contém sempre este binómio de significados: causa de morte e fonte de vida. É binômio, porque os
dois significados acabam por se verificar no mesmo momento. Exemplo disto mesmo é o beber água para matar a sede;
ao verificar-se a "morte" da sede, sente-se uma "nova vida". Esta só acontece quando se dá aquela. Na tendência que
tem de correr para baixo, a água conduz ao abismo (cataratas e enxurradas) e é sinal de morte, mas também se estende
na horizontal (acalmia) e até corre para cima, em forma de seiva por exemplo, e, então, é sinal e causa de vida.
Na terra, a água é mãe e fonte de todas as coisas, está na origem da criação; ao contrário, a terra sem água, o deserto,
é sinal de morte. Ela é fonte de vida e causa de morte; é criadora e destruidora, simultaneamente.
Porque não tem forma determinada, a água é imagem do caos, estado anterior à criação do mundo; com a ausência de
vida e de harmonia, ela é desordem.
Os rios são agentes de fertilização; as chuvas e o orvalho trazem a fecundidade e manifestam a bondade divina,
mesmo em forma de neve. A própria hospitalidade exige que se dê água fresca ao visitante e que os seus pés sejam
lavados para assegurar a paz do seu repouso.
É também meio de purificação. Os muçulmanos, por exemplo, têm os ritos de purificação com água corrente, antes de
entrarem nas mesquitas; os cristãos usam-na também nos ritos de aspersão e ablução. Toda a gente a usa para se lavar,
tomar banho (morte à impureza e sujidade e vida de higiene e limpeza).
Sendo sinal de purificação física, ela é também figura da purificação moral no batismo, na aspersão com água benta,
no "lavabo" da missa.
A água regenera porque também dá novas forças. Imaginem quando muito fatigados e sentados à borda da água
corrente e cantante ou na margem dum rio repousarão e recuperarão forças, paz e nova vida. (http://www.cne-
escutismo.pt/mistica/simbologia_2seccao.htm)
Heráclito de Éfeso, pensador grego dizia: "Tudo flui, nada persiste, nem permanece o mesmo". E Platão ainda dizia
de Heráclito: "Ele compara as coisas com a corrente de um rio - que não se pode entrar duas vezes na mesma
corrente"; o rio corre e toca-se outra água. Seus sucessores dizem até que nele nem se pode mesmo entrar, pois que
imediatamente se transforma; o que é, ao mesmo tempo já novamente não é. Além disso, Aristóteles diz que Heráclito
afirma que é apenas um o que permanece; disto todo o resto é formado, modificado, transformado; que todo o resto fora
deste um flui, que nada é firme, que nada se demora; isto é, o verdadeiro é o devir, não o ser - a determinação mais
exata para este conteúdo universal é o devir. (http://www.mundodosfilosofos.com.br/heraclito.htm)

A Obra
Considerado por muitos como o seu livro mais importante, foi o último livro impresso na prensa manual do poeta, e
inspirado na literatura de cordel.
O Cão sem Plumas é a descrição das condições sub-humanas nas palafitas e mocambos do Recife, tendo o rio
Capibaribe como eixo central. A dicção é dura, como convém ao tema e ao autor, mas nunca resvala para o tom de
panfleto. Segundo o crítico Antonio Secchin, “por sua linguagem antidiscursiva, o enfoque da pobreza nordestina
escapa do tom panfletário a que tantas vezes o social foi submetido(...)” É um longo e hermético poema que denuncia
não só o estado do rio, mas também a situação de exclusão da população ribeirinha, à margem de tudo.
O poema utiliza dois aspectos geográficos: a da geografia física, que reflete sobre as questões regionais propriamente
ditas (a descrição do rio, sua desembocadura, seus mangues e o processo de seu desaguamento no mar), e a da geografia
humana, que nos faz pensar não só sobre as condições sociais e econômicas do homem que habita suas margens, mas
também sobre o que faz de um homem um homem, ou seja, o poema parte de uma reflexão sobre a região e se completa
com outra de caráter mais universal.
Há ainda, para a compreensão do poema, de se relevar uma oposição: a que o autor criou entre as coisas como
deveriam ser e as coisas como na realidade se apresentam. Assim, ao falar da água do rio, ele sonha com a água perfeita
(a água do copo, a água da chuva azul, a água que se abre aos peixes, a água que teria os enfeites ou as plumas das
plantas), ao mesmo tempo em que sofre ao constatar que ela não existe no rio Capibaribe, cuja água tem lodo, ferrugem
e lama. Também, ao se referir ao habitante das margens do rio, o autor reflete sobre o que um homem devia ser (sonho e
pluma) e se revolta diante da dificuldade de achar, naquele ser, um homem. Assim, ele já antecipa a temática de sua
obra mais famosa: Morte e Vida Severina.
No poema, que se compõe de quatro momentos (Paisagem do
Capibaribe, I e II; Fábula do Capibaribe, III e Discurso do
Capibaribe, IV):

A cidade é passada pelo rio


como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.

O rio ora lembrava


a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio da água de cântaro,
de aquoso pano sujo dos peixes de água,
dos olhos de um cão. da brisa na água.

Sabia dos caranguejos


de lodo e ferrugem.
Aquele rio Sabia da lama
era como um cão sem plumas. como de uma mucosa.
Nada sabia da chuva azul, Devia saber dos polvos.
da fonte cor-de-rosa, Sabia seguramente
da água do copo de água, da mulher febril que habita as ostras.

Os versos a seguir, extraídos do II momento, ilustram com precisão o que foi dito acima:

Como o rio da lama.


aqueles homens
são como cães sem plumas Na paisagem do rio
(um cão sem plumas difícil é saber
é mais onde começa o rio;
que um cão saqueado; onde a lama
é mais começa do rio;
que um cão assassinado. onde a terra
(...) começa da lama;
Na paisagem do rio onde o homem,
difícil é saber onde a pele
onde começa o rio; começa da lama;
onde a lama onde começa o homem
começa do rio; naquele homem.
onde a terra
começa da lama; Difícil é saber
onde o homem, se aquele homem
onde a pele já não está
começa da lama; mais aquém do homem;
onde começa o homem mais aquém do homem
naquele homem. ao menos capaz de roer
(...) os ossos do ofício;
Na água do rio, capaz de sangrar
lentamente, na praça;
se vão perdendo capaz de gritar
em lama; numa lama se a moenda lhe mastiga o braço;
que pouco a pouco capaz
também não pode falar: de ter a vida mastigada
que pouco a pouco e não apenas
ganha os gestos defuntos dissolvida
da lama; (naquela água macia
o sangue de goma, que amolece seus ossos
o olho paralítico como amoleceu as pedras).

O Rio (1953)
―O poeta cede a voz ao próprio Capibaribe, que, sujeito da enunciação, narra seu percurso, da nascente ao Atlâtico‖.
(...) ―Ultrapassando uma captação meramente geográfica da paisagem, a primazia será concedida à realidade humana
que a povoa‖ e que vai aparecer mais fortemente em Morte e Vida Severina (1955)

Da lagoa da Estaca a Apolinário os nomes que vão mudando.


Sempre pensara em ir Terras que eu abandono
caminho do mar. porque é de rio estar passando.
Para os bichos e rios Vou com passo de rio,
nascer já é caminhar. que é de barco navegando.
Eu não sei o que os rios Deixando para trás
têm de homem do mar; as fazendas que vão ficando.
sei que se sente o mesmo Vendo-as, enquanto vou,
e exigente chamar. parece que estão desfilando.
(...) Vou andando lado a lado
de gente que vai retirando;
De Apolinário a Poço Fundo vou levando comigo
(...) os rios que vou encontrando.
Deixando vou as terras
de minha primeira infância. (...)
Deixando para trás
Vou na mesma paisagem tem em mim um amigo,
reduzida à sua pedra. seu companheiro mais íntimo.
A vida veste ainda Vivo como esta gente,
sua mais dura pele. entro-lhes pela cozinha;
Só que aqui há mais homens como bicho de casa
para vencer tanta pedra, penetro nas camarinhas.
para amassar com sangue As vilas que passei
os ossos duros desta terra. sempre abracei como amigo;
E se aqui há mais homens, desta vila de lama
esses homens melhor conhecem é que sou mais do que amigo:
como obrigar o chão sou o amante, que abraça
com plantas que comem pedra. com corpo mais confundido;
Há aqui homens mais homens sou o amante, com ela
que em sua luta contra a pedra leito de lama divido.
sabem como se armar (...)
com as qualidades da pedra. A não ser esta cidade
(...) que vim encontrar sob o Recife:
sua metade podre
Encontro com a Usina que com lama podre se edifica.
Mas nas Usina é que vi É cidade sem nome
aquela boca maior sob a capital tão conhecida.
que existe por detrás Se é também capital,
das bocas que ela plantou; será uma capital mendiga.
que come o canavial É cidade sem ruas
que contra as terras soltou; e sem casas que se diga.
que come o canavial De outra qualquer cidade
e tudo o que ele devorou; possui apenas polícia.
que come o canavial Desta capital podre
e as casas que ele assaltou; só as estatísticas dão notícia,
que come o canavial ao medir sua morte,
e as caldeiras que sufocou. pois não há o que medir em sua vida.
Só na Usina é que vi (...)
aquela boca maior,
a boca que devora Os dois mares
bocas que devorar mandou. A um rio sempre espera
(...) um mais vasto e ancho mar.
Para a agente que desce
As duas cidades é que nem sempre existe esse mar,
(...) pois eles não encontram
Conheço todos eles, na cidade que imaginavam mar
do Agreste e da Caatinga; (...)
gente também da Mata
vomitada pelas usinas; Oferenda
gente também daqui Ao partir companhia
que trabalha nestas usinas, desta gente dos alagados
que aqui não moem cana, que lhe posso deixar,
moem coisas muito mais finas. que conselho, que recado?
(...) Somente a relação
de nosso comum retirar;
A gente da cidade só esta relação
que há no avesso do Recife tecida em grosso tear.

Morte e Vida Severina – Auto de Natal Pernambucano (1955)

Sem dúvida é o poema mais famoso do autor, apesar dele chamá-lo de ―obra menor‖. Morte e Vida Severina é o
coroamento de uma temática iniciada com O Cão Sem
Plumas e desenvolvida de forma criativa e inédita em O Rio.
Fugindo do sertão, Severino se depara – ―seguidamente com
paisagens em que a morte exerce seu império, devido às
injustiças sociais que marginalizam os camponeses
nordestinos‖, que também aparecerá mais tarde em Dois
Parlamentos (1960).
Seguindo a mesma temática outrora explorada em obras
como Vidas Secas (Graciliano Ramos – com quem Cabral
compartilha, inclusive a mesma linguagem despojada e para
quem dedica um poema no livro Serial, de 1961), e O Quinze
(Raquel de Queiros), Cabral pode ser considerado a partir desta obra um escritor engajado e de temática social.
Em 1965, a pedido do escritor Roberto Freire, diretor do Teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(TUCA), o músico Chico Buarque musicou o poema para a montagem da peça. A partir da
década de 80 é considerado uma espécie de Hino do MST.
Podemos subdividir o livro Morte e Vida Severina basicamente em 18 partes distintas:

1ª) A peça é aberta com a explicação de Severino que se apresenta e diz a que vem:
O meu nome é Severino, na mesma cabeça grande
não tenho outro de pia. que a custo é que se equilibra,
Como há muitos Severinos, no mesmo ventre crescido
que é santo de romaria, sobre as mesmas pernas finas
deram então de me chamar e iguais também porque o sangue,
Severino de Maria que usamos tem pouca tinta.
como há muitos Severinos E se somos Severinos
com mães chamadas Maria, iguais em tudo na vida,
fiquei sendo o da Maria morremos de morte igual,
do finado Zacarias. mesma morte severina:
Mas isso ainda diz pouco: que é a morte de que se morre
há muitos na freguesia, de velhice antes dos trinta,
por causa de um coronel de emboscada antes dos vinte
que se chamou Zacarias de fome um pouco por dia
e que foi o mais antigo (de fraqueza e de doença
senhor desta sesmaria. é que a morte severina
Como então dizer quem falo ataca em qualquer idade,
ora a Vossas Senhorias? e até gente não nascida).
Vejamos: é o Severino Somos muitos Severinos
da Maria do Zacarias, iguais em tudo e na sina:
lá da serra da Costela, a de abrandar estas pedras
limites da Paraíba. suando-se muito em cima,
Mas isso ainda diz pouco: a de tentar despertar
se ao menos mais cinco havia terra sempre mais extinta,
com nome de Severino a de querer arrancar
filhos de tantas Marias alguns roçado da cinza.
mulheres de outros tantos, Mas, para que me conheçam
já finados, Zacarias, melhor Vossas Senhorias
vivendo na mesma serra e melhor possam seguir
magra e ossuda em que eu vivia. a história de minha vida,
Somos muitos Severinos passo a ser o Severino
iguais em tudo na vida: que em vossa presença emigra.

2ª) A primeira morte é a da emboscada. Severino trava um diálogo com dois homens que carregam um defunto
embrulhado na rede, saindo o triste estribilho " irmãos das almas ". Na cena acontece a denúncia daqueles que abusam
do poder, matar para tomar posse da terra e jamais são discriminados. Ao mesmo tempo desperta a solidariedade do
andarilho:
— E o que guardava a emboscada, — Mas que roças que ele tinha,
irmão das almas irmãos das almas
e com que foi que o mataram, que podia ele plantar
com faca ou bala? na pedra avara?
— Este foi morto de bala, — Nos magros lábios de areia,
irmão das almas, irmão das almas,
mas garantido é de bala, os intervalos das pedras,
mais longe vara. plantava palha.
— E quem foi que o emboscou, — E era grande sua lavoura,
irmãos das almas, irmãos das almas,
quem contra ele soltou lavoura de muitas covas,
essa ave-bala? tão cobiçada?
— Ali é difícil dizer, — Tinha somente dez quadras,
irmão das almas, irmão das almas,
sempre há uma bala voando todas nos ombros da serra,
desocupada. nenhuma várzea.
— E o que havia ele feito — Mas então por que o mataram,
irmãos das almas, irmãos das almas,
e o que havia ele feito mas então por que o mataram
contra a tal pássara? com espingarda?
— Ter um hectares de terra, — Queria mais espalhar-se,
irmão das almas, irmão das almas,
de pedra e areia lavada queria voar mais livre
que cultivava. essa ave-bala.
3ª) A Segunda forma de morte encontrada é a própria natureza agreste do sertão. O retirante vê o seu rio-guia, o
Capibaribe, seco.

4ª) Temeroso de perder o rumo segue a viagem, indo em direção do som de uma cantoria e Severino depara com um
velório. No momento das excelências, dois homens começam a imitar o som das vozes dos que rezam.
5ª) O retirante, cansado, interrompe a viagem e procura um trabalho. Severino retoma os motivos que o fizeram partir:
está à procura da vida; de certa maneira, tenta esconder sua própria vida, ultrapassar os trinta, catando as migalhas
que lhe permitem a sobrevivência.

6ª) Novo diálogo é estabelecido desta vez com uma mulher. Enquanto Severino vai desafiando o que sabe fazer, o leitor
percebe que o conhecimento adquirido por ele não pode ajudá-lo, pois o que ele precisa saber para trabalhar com a
mulher é pouca coisa, e justamente são estas coisas que ironicamente revelam quem ela é:
Muito bom dia senhora, não há espécie de terra
que nessa janela está que eu não possa cultivar.
sabe dizer se é possível Isso aqui de nada adianta,
algum trabalho encontrar? poucos existe o que lavrar
Trabalho aqui nunca falta mas diga-me, retirante,
a quem sabe trabalhar o que mais fazia por lá?
o que fazia o compadre Também lá na minha terra
na sua terra de lá? de terra mesmo pouco há
Pois fui sempre lavrador, mas até a calva da pedra
lavrador de terra má sinto-me capaz de arar.

7ª) A caminhada prossegue e o retirante chega á Zona da Mata. Em contato com a terra mais branda e macia, já
próxima do litoral e com rios que não secam, Severino percebe que aí pode se estabelecer, vê uma leve esperança
balançar, decerto pela aparente beleza do lugar:
Mas não avisto ninguém, Feriando: que nesta terra
só folhas de cana fina tão fácil, tão doce e rica,
somente ali à distância não é preciso trabalhar
aquele bueiro de usina todas as horas do dia,
somente naquela várzea os dias todos do mês,
um bangüê velho em ruína. os meses todos da vida
Por onde andará a gente
que tantas canas cultiva?

8ª) A oitava cena vem em resposta aos versos que finalizaram a anterior. Por que não havia gente no lugar? Os
trabalhadores levam um morto ao cemitério, um trabalhador da lavoura. Severino-observador ouve o que dizem os
amigos do finado. Uma raiva até então contida vai crescendo, acompanhada do ritmo da poesia que salta em versos de
redondilhas menores até versos eneassílabos, sofrendo cortes rápidos, o que dá a impressão de tumulto:
Essa cova em que estás, é a terra que querias
com palmos medida, ver dividida.
é a cota menor
que tiraste em vida. é uma cova grande
para teu pouco defunto,
é de bom tamanho, mas estarás mais ancho
nem largo nem fundo, que estavas no mundo.
é a parte que te cabe
neste latifúndio. é uma cova grande
para teu defunto parco,
Não é cova grande. porém mais que no mundo
é cova medida, te sentirás largo.

9ª) O retirante apressa o passo a fim de chegar mais rapidamente ao Recife. Nesta cena, ele reitera o motivo de sua
retirada: não foi pela cobiça, mas para defender sua própria vida. No entanto, as esperanças vão se rareando, porque
em qualquer lugar a morte é sua sempre companheira

10ª) Chegando ao Recife, Severino pára para descansar e ouve a conversa de dois coveiros. Ambos discutem a
possibilidade de arrematar bens com a morte, com promoções e gorjetas. A morte carrega as características do morto
enquanto vivia, seu lugar depende de sua classe social em um cemitério também dividido, hierarquizado. Somente os
retirantes são a " massa " da morte e morrem sem classificação:
O dia hoje está difícil há sempre menos trabalho
não sei onde vamos parar. e gorjetas pelo serviço
Deviam dar um aumento, e é mais numeroso o pessoal
ao menos aos deste setor de cá. (toma mais tempo enterrar os ricos).
As avenidas do centro são melhores, pois eu me daria por contente
mas são para os protegidos: se me mandassem para cá.
Se trabalhasses no de Casa Amarela é que o colega ainda não viu
não estarias a reclamar. o movimento: não é o que se vê.
De trabalhar no de Santo Amaro Fique-se por aí um momento
deve alegrar-se o colega e não tardarão a aparecer
porque parece que a gente os defuntos que ainda hoje
que se enterra no de Casa Amarela vão chegar (ou partir, não sei).
está decidida a mudar-se
toda para debaixo da terra.

11ª) O retirante se aproxima de um cais de rio, confessa não ter esperado muita coisa, pois tinha a consciência de que
a vida não seria diferente na cidade. No entanto esperava que melhorassem suas condições de vida, com água, farinha
e um pouco mais de expectativa de vida. Só que sem querer descobre, da conversa dos coveiros que seguia seu próprio
enterro:
adiantado de uns dias;
o enterro espera na porta;
o morto ainda está com vida.

12ª) A décima segunda cena estabelece uma ruptura e ao mesmo tempo anuncia a próxima parte. Trata-se do encontro
de Severino com a primeira forma de otimismo exterior ao personagem, um otimismo contido, possível em tais
circunstâncias da vida. O retirante trava um diálogo com José, mestre carpina. Enquanto vai dando forma às suas
angústias através de perguntas, recebe uma resposta.

13ª) A mulher de José anuncia a chegada do filho. O anúncio do nascimento do filho-esperança, filho do mestre
carpina, que " saltou para dentro da vida ", num jogo contínuo de antíteses em que se opõem as desesperanças
severinas à esperança.
Seu José, mestre carpina, Seu José, mestre carpina,
que habita este lamaçal, para cobrir corpo de homem
sabes me dizer se o rio não é preciso muito água:
a esta altura dá vau? basta que chega o abdome,
sabe me dizer se é funda basta que tenha fundura
Severino, retirante, igual à de sua fome.
jamais o cruzei a nado Severino, retirante
quando a maré está cheia pois não sei o que lhe conte
vejo passar muitos barcos, sempre que cruzo este rio
barcaças, alvarengas, costumo tomar a ponte
muitas de grande calado. quanto ao vazio do estômago,
se cruza quando se come.

14ª) Aparecem para visitar o recém-nascido, amigos, vizinhos e duas ciganas. Ao tomarem a palavra os elementos de
cada grupo-coral, tecem loas, fazem predições, trazem presentes, em cena que reconstitui no lamaçal (presépio)
ribeirinho o milagre da vida. Severino é colocado fora da cena, como mero observador em contato com a pequena
alegria, que faz o povo esquecer, por um tempo a dura realidade que carregam.

15ª) Presentes são levados à criança, reis magos da miséria repartem a pobreza:
Minha pobreza tal é para meu filho amamentar
que não trago presente grande: aqui todos são irmãos,
trago para a mãe caranguejos de leite, de lama, de ar.
pescados por esses mangues Minha pobreza tal é
mamando leite de lama que não tenho presente melhor:
conservará nosso sangue. trago este papel de jornal
Minha pobreza tal é para lhe servir de cobertor
que coisa alguma posso ofertar: cobrindo-se assim de letras
somente o leite que tenho vai um dia ser doutor.

16ª) Ao tomarem a palavra, as duas ciganas tecem suas previsões. Num processo de perfeita identidade do homem ao
meio em que ele vive, as videntes tiram lições de sobrevivência. A primeira cigana toma a palavra, antecipa para a
criança o mesmo destino de seu pai; a segunda cigana prediz um destino, que levará o menino às máquinas e a
paragens nos mangues melhores do Beberibe
Primeira Cigana a mesmo destino do pai acabado de nascer:
Atenção peço, senhores, aprenderá a engatinhar
para esta breve leitura: por aí, com aratus,
somos ciganas do Egito, aprenderá a caminhar
lemos a sorte futura. na lama, como goiamuns,
Vou dizer todas as coisas e a correr o ensinarão
que desde já posso ver o anfíbios caranguejos,
na vida desse menino pelo que será anfíbio
como a gente daqui mesmo. de jereré toda a vida.
Cedo aprenderá a caçar: Minha amiga se esqueceu
primeiro, com as galinhas, de dizer todas as linhas
que é catando pelo chão não pensem que a vida dele
tudo o que cheira a comida há de ser sempre daninha.
depois, aprenderá com Enxergo daqui a planura
outras espécies de bichos: que é a vida do homem de ofício,
com os porcos nos monturos, bem mais sadia que os mangues,
com os cachorros no lixo. tenha embora precipícios.
Vejo-o, uns anos mais tarde, Não o vejo dentro dos mangues,
na ilha do Maruim, vejo-o dentro de uma fábrica:
vestido negro de lama, se está negro não é lama,
voltar de pescar siris é graxa de sua máquina,
e vejo-o, ainda maior, coisa mais limpa que a lama
pelo imenso lamarão do pescador de maré
fazendo dos dedos iscas que vemos aqui vestido
para pescar camarão de lama da cara ao pé.
Segunda Cigana à um novo destino E mais: para que não pensem
Atenção peço, senhores, que em sua vida tudo é triste,
também para minha leitura: vejo coisa que o trabalho
também venho dos Egitos, talvez até lhe conquiste:
vou completar a figura. que é mudar-se destes mangues
Outras coisas que estou vendo daqui do Capibaribe
é necessário que eu diga: para um mocambo melhor
não ficará a pescar nos mangues do Beberibe.

17ª) Chegam os vizinhos e cantam a beleza do recém-nascido. Os atributos que distinguem a criança são os mesmos
que marcam toda a população restante. Criança magra, franzina, pálida, pequena, mas criança que vai fazer minar um
pouco de vida:
E belo porque o novo Infecciona a miséria
todo o velho contagia. com vida nova e sadia.
Belo porque corrompe Com oásis, o deserto,
com sangue novo a anemia. com ventos, a calmaria.

18ª) No último segmento da peça, após a valorização da vida, o mestre carpina toma a palavra, dialoga com Severino,
que é chamado mas permanece mudo:
É difícil defender, que também se chama vida,
só com palavras, a vida, ver a fábrica que ela mesma,
ainda mais quando ela é teimosamente, se fabrica,
esta que vê, severina vê-la brotar como há pouco
mas se responder não pude em nova vida explodida
à pergunta que fazia, mesmo quando é assim pequena
ela, a vida, a respondeu a explosão, como a ocorrida
com sua presença viva. como a de há pouco, franzina
E não há melhor resposta mesmo quando é a explosão
que o espetáculo da vida: de uma vida severina.
vê-la desfiar seu fio,

Paisagem com Figuras (1955)


Este livro é o primeiro com temática espanhola na obra do poeta. São dezoito poemas entre os quais a Espanha
aparece em dez. É clara a relação do poeta em estabelecer paralelos entre essas duas realidades geográficas (a secura, a
pedra, o ambiente ‗agreste‘) e memoriais. É, portanto, um livro de ruptura, pois a partir dele tem início um fundo
intimista e confessional, marcados ainda pela linguagem despojada.

O vento no canavial
Não se vê no canavial roupa lavada estendida.
nenhuma planta com nome,
nenhuma planta maria, Contudo há no canavial
planta com nome de homem. oculta fisionomia:
como em pulso de relógio
É anônimo o canavial, há possível melodia,
sem feições, como a campina; ou como de um avião
é como um mar sem navios, a paisagem se organiza,
papel em branco de escrita. ou há finos desenhos nas
pedras da praça vazia.
É como um grande lençol
sem dobras e sem bainha; Se venta no canavial
penugem de moça ao sol, estendido sob o sol
seu tecido inanimado como a das ondas na areia
faz-se sensível lençol, ou as ondas da multidão
lutando na praça cheia.
se muda em bandeira viva,
de cor verde sobre verde, Então, é da praça cheia
com estrelas verdes que que o canavial é a imagem:
no verde nascem, se perdem. vêem-se as mesmas correntes
que se fazem e desfazem,
Não lembra o canavial
então, as praças vazias: voragens que se desatam,
não tem, como têm as pedras, redemoinhos iguais,
disciplina de milícias. estrelas iguais àquelas
que o povo na praça faz.
É solta sua simetria:

Importante referência à riqueza (e manutenção da pobreza) regional, o canavial em questão remete a uma paisagem
geográfica que também é símbolo da esperança de um povo oprimido, mas que pode de juntar na praça e, em
redemoinho, transformar o mundo.

Cemitério pernambucano (Nossa Senhora da Luz)


Nesta terra ninguém jaz, Vêm em redes de varandas
pois também não jaz um rio abertas ao sol e à chuva.
noutro rio, nem o mar Trazem suas próprias moscas.
é cemitério de rios. O chão lhes vai como luva.

Nenhum dos mortos daqui Mortos ao ar-livre, que eram,


vem vestido de caixão. hoje à terra-livre estão.
Portanto, eles não se enterram, São tão da terra que a terra
são derramados no chão. nem sente sua intrusão.

A dura realidade, aqui descrita pelo poeta João Cabral de Melo Neto, esconde um misticismo amargo e penoso; não
há como deixar de reconhecer nuanças da passagem bíblica (portanto mística) que lembra ao homem que ele é pó, e ao
pó retornará (Gênesis 3, 19). A leitura dos últimos versos aponta para tal passagem; e, reforçando a leitura, o mar não é
cemitério de rios por serem ambos — mar e rio — formados de água (primeira estrofe). O amargo da realidade está em
o eu-lírico descrever a pobreza de quem é enterrado. Nenhum morto enterrado em tal cemitério tem direito a um enterro
digno, a um caixão; nenhum, portanto, vem "vestido de caixão". Já eram mortos ao ar-livre, muitos antes de
morrerem…

Uma Faca Só Lâmina (ou: Serventia das Idéias Fixas) (1955)


João Cabral dizia que era um poema sobre a obsessão, pois o compromisso do poeta era, segundo José Castelo em seu
ensaio ―O Homem Sem Alma‖, “fazer da palavra uma lâmina capaz de tocar, remover, esculpir o mundo real”
É um longo poema de 88 estrofes de 4 versos (típica estrofação de sua obra). “Considerado um texto altamente
conceitual, elaborado em torno de três elementos – faca, bala, relógio – de que são extraídas, como proposta ético-
existencial, as noções de agressividade, carência e interiorização obsessivas, vistas como armas frente à diluição
empobrecedora do dia-a-dia, como contundência frente ao torpor e à alienação.”(Antonio Carlos Secchin)
Assim como uma bala ao de um relógio vivo
enterrada no corpo, e também revoltoso,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto; relógio que tivesse
o gume de uma faca
assim como uma bala e toda a impiedade
do chumbo mais pesado, de lâmina azulada;
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado; assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
qual bala que tivesse se transformasse em parte
um vivo mecanismo, de vossa anatomia;
bala que possuísse
um coração ativo qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
igual ao de um relógio habitando num corpo
submerso em algum corpo, como o próprio esqueleto
de um homem que o tivesse, de homem que se ferisse
e sempre, doloroso contra seus próprios ossos.

Quaderna (1959)
Publicado em Lisboa, inaugura uma série de poemas sobre a mulher e sobre o universo feminino. Ainda existem
referências importantes à Espanha, como ocorre em poemas como ―Estudos para uma bailarina andaluza‖, onde é nítida
a comparação da mulher com o fogo.

Paisagem pelo telefone mais bem, somente as desveste


Sempre que no telefone de toda sombra ou neblina,
me falavas, eu diria deixando que livres brilhem
que falavas de uma sala os cristais que dentro tinham
toda de luz invadida,
Pois, assim, no telefone
sala que pelas janelas, tua voz me parecia
duzentas, se oferecia como se de tal manhã
a alguma manhã de praia, estivesses envolvida,
mais manhã porque marinha,
fresca e clara, como se
a alguma manhã de praia telefonasses despida,
no prumo do meio-dia, ou, se vestida, somente
meio-dia mineral de roupa de banho, mínima,
de uma praia nordestina,
e que por mínima, pouco
Nordeste de Pernambuco, de tua luz própria tira,
onde as manhãs são mais limpas, e até mais, quando falavas
Pernambuco do Recife, no telefone, eu diria
de Piedade, de Olinda,
que estavas de todo nua,
sempre povoado de velas, só de teu banho vestida,
brancas, ao sol estendidas, que é quando tu estás mais clara
de jangadas, que são velas pois a água nada embacia,
mais brancas porque salinas,
sim, como o sol sobre a cal
que, como muros caiados seis estrofes mais acima,
possuem luz intestina, a água clara não te acende:
pois não é o sol quem as veste libera a luz que já tinhas.
e tampouco as ilumina,

A Mulher e a Casa
Tua sedução é menos pelo que dentro fizeram
de mulher do que de casa; com seus vazios, com o nada;
pois vem de como é por dentro pelos espaços de dentro,
ou por detrás da fachada. não pelo que dentro guarda;

Mesmo quando ela possui pelos espaços de dentro:


tua plácida elegância, seus recintos, suas áreas,
esse teu reboco claro, organizando-se dentro
riso franco de varandas, em corredores e salas,

uma casa não é nunca os quais sugerindo ao homem


só para ser contemplada; estâncias aconchegadas,
melhor: somente por dentro paredes bem revestidas
é possível contemplá-la. ou recessos bons de cavas,

Seduz pelo que é dentro, exercem sobre esse homem


ou será, quando se abra; efeito igual ao que causas:
pelo que pode ser dentro a vontade de corrê-la
de suas paredes fechadas; por dentro, de visitá-la.

É perceptível no poeta uma nova temática que passa a surgir: a da poesia erótica, baseada na noção plástica da
descrição de cenas onde é nítida a presença feminina.

Serial (1961)
Na mesma linha de Paisagens com Figuras (1955), este livro é, parte Nordeste, parte Espanha. Um dos poemas mais
importantes é uma homenagem-dedicatória a Graciliano Ramos, verdadeira confissão do poeta sobre o modo de
composição dos dois.

Graciliano Ramos
Falo somente com o que falo:
Com as mesmas vinte palavras De toda uma crosta viscosa,
Girando ao redor do sol Resto de janta abaianada,
Que as limpa do que não é faca: Que fica na lâmina e cega
Seu gosto de cicatriz clara. E onde estão os solos inertes
De tantas condições caatinga
Falo somente do que falo: Em que só sabe cultivar
Do seco e de suas paisagens, O que é sinônimo de míngua.
Nordestes, debaixo de um sol
Ali do mais quente vinagre: Falo somente para quem falo:
Quem padece sono de morto
Que reduz tudo ao espinhaço, E precisa um despertador
Creta o simplesmente folhagem, Acre, como o sol sobre o olho:
Folha prolixa, folharada,
Onde possa esconder a fraude. Que é quando o sol é estridente,
A contra-pêlo, imperioso,
Falo somente por quem falo: E bate nas pálpebras como
Por quem existe nesses climas Se bate numa porta a socos.
Condicionados pelo sol,
Pelo gavião e outras rapinas:

A Educação pela Pedra (1966)


Um obra nitidamente dividida em duas partes: Nordeste e Não-Nordeste. Também pode ser dividida em: ―temas
pernambucanos‖ e ―temas diversos‖. Os versos começam a aparecer mais longos.
O título da coletânea A Educação pela Pedra (1966) indica a depuração atingida. A abordagem da realidade exige um
contínuo processo de educação: os poemas devem ser trabalhados de forma rigorosa e sistemática para obterem a
consistência e a resistência de uma pedra. Nesse processo, não cabem metáforas: o poeta deve buscar a simetria entre a
estrutura da linguagem e da realidade representada.

A Educação pela Pedra


Uma educação pela pedra: por lições; Cartilha muda), para quem soletrá-la.
Para aprender da pedra, freqüentá-la;
Captar sua voz inenfática, impessoal Outra educação pela pedra: no Sertão
(pela de dicção ela começa as aulas). (de dentro para fora, e pré-didática).
A lição de moral, sua resistência fria No Sertão a pedra não sabe lecionar,
Ao que flui e a fluir, a ser maleada; E se lecionasse, não ensinaria nada;
A de poética, sua carnadura concreta; Lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
A de economia, seu adensar-se compacta: Uma pedra de nascença, entranha a alma.
Lições da pedra (de fora para dentro,

Tecendo a Manhã
1. Um galo sozinho não tece uma manhã: para que a manhã, desde uma teia tênue,
ele precisará sempre de outros galos. se vá tecendo, entre todos os galos.
De um que apanhe esse grito que ele 2. E se encorpando em tela, entre todos,
e o lance a outro; de um outro galo se erguendo tenda, onde entrem todos,
que apanhe o grito de um galo antes se entretendendo para todos, no toldo
e o lance a outro; e de outros galos (a manhã) que plana livre de armação.
que com muitos outros galos se cruzem A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
os fios de sol de seus gritos de galo, que, tecido, se eleva por si: luz balão.

O galo pode ser o poeta, que precisa ―acordar‖ outros poetas, mas também pode ser o homem que vê a necessidade de
―acordar‖ os semelhantes e propiciar a mudança social.

Catar Feijão
1. Catar feijão se limita com escrever: 2. Ora, nesse catar feijão entra um risco:
joga-se os grãos na água do alguidar o de que entre os grãos pesados entre
e as palavras na folha de papel; um grão qualquer, pedra ou indigesto,
e depois, joga-se fora o que boiar. um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo, toda palavra boiará no papel, Certo não, quando ao catar palavras:
água congelada, por chumbo seu verbo: a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
pois para catar esse feijão, soprar nele, obstrui a leitura fluviante, flutual,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco. açula a atenção, isca-a como o risco.

No poema, o artista, assim como o catador de feijões, deve selecionar os melhores grãos, a fim de construir uma
poesia que fale, não pelo excesso, mas pela contenção, desfazendo- se de tudo o que for leve e oco, palha e eco. O que
já foi dito não interessa repetição.

Museu de Tudo (1975)


Neste livro encontram-se poemas dispersos escritos a partir de 1966. O autor não gostava da ‗cara‘ de ‗colcha de
retalhos‘ da obra. É o momento de maior tematização metalingüística do conjunto da obra cabralina, sem, todavia, a
originalidade dos poemas anteriores.

Artista Inconfessável
Fazer o que seja é inútil. que é inútil e que seu sentido
Não fazer nada é inútil. não será sequer pressentido,
Mas entre fazer e não fazer fazer: porque ele é mais difícil
mais vale o inútil do fazer. do que não fazer, e dificil-
Mas não, fazer para esquecer mente se poderá dizer
que é inútil: nunca o esquecer. com mais desdém, ou então dizer
Mas fazer o inútil sabendo mais direto ao leitor Ninguém
que ele é inútil, e bem sabendo que o feito o foi para ninguém.

Perceba que no poema existe uma intertextualidade com o poema ―Lutar com Palavras‖ de Carlos Drummond de
Andrade. A metalinguagem serve para explicar ao leitor a dificuldade artesanal de trabalhar secamente a poesia.

Resposta a Vinícius de Moraes


Camarada diamante!
Não sou um diamante nato quer de toda forma evitá-lo,
nem consegui cristalizá-lo: senão com o melhor, o claro,
se ele te surge no que faço do diamante, com o impacto:
será um diamante opaco que incapaz de ser cristal raro
de quem por incapaz do vago vale pelo que tem de cacto.

Lindíssima poesia dedicada ao amigo, poeta e diplomata Vinícius: ―camarada diamante‖. O poeta diz que não é um
diamante/poeta nato (precisa se esforçar para ser). Incapaz do vago (por seu estilo direto e objetivo de trabalhar a poesia
– oposto do ―poetinha‖ Vinícius). E termina em um seco tom ―confessional‖: já que não consegue ser um ―cristal raro‖,
pelo menos tem o valor do cacto. (Da secura, da aspereza e do espinho – nordestinos)

A Escola das Facas (1980)


O poeta acreditava que este seria seu último livro. Era para se chamar ―Poemas Pernambucanos‖. O livro apresenta
poemas de tom memorialista em que o autor expõe fatos que marcaram a sua vida, como o nascimento ou a descoberta
da literatura e do prazer de ler quando os trabalhadores da fazenda traziam os folhetos de feira para que ele lesse
(―Descoberta da Literatura‖, já vista no início deste resumo)

Autocrítica
Só duas coisas conseguiram Um, o vacinou do falar rico
(des)feri-lo até a poesia: e deu-lhe a outra, fêmea e viva,
o Pernambuco de onde veio desafio demente: em verso
e onde foi, a Andaluzia. dar a ver Sertão e Sevilha.

O desejo do poeta era ser crítico de arte e literatura. Não seguiu este caminho, mas se fez um dos mais críticos poetas
da Literatura Brasileira. Um jogo de aproximação entre as duas tendências da lírica cabralina (a secura de Pernambuco)
e o erotismo (de Sevilha).

Descoberta da Literatura
No dia-a-dia do engenho, nos crimes, no amor, nos lances,
toda a semana, durante, e soassem como sabidas
cochichavam-me em segredo: de outros folhetos migrantes,
saiu um novo romance. a tensão era tão densa,
E da feira do domingo subia tão alarmante,
me traziam conspirantes que o leitor que lia aquilo
para que os lesse e explicasse como puro alto-falante,
um romance de barbante. e, sem querer, imantara
Sentados na roda morta todos ali, circunstantes,
de um carro de boi, sem jante, receava que confundissem
ouviam o folheto guenzo , o de perto com o distante,
a seu leitor semelhante, o ali com o espaço mágico,
com as peripécias de espanto seu franzino com o gigante,
preditas pelos feirantes. e que o acabassem tomando
Embora as coisas contadas pelo autor imaginante
e todo o mirabolante, ou tivesse que afrontar
em nada ou pouco variassem as brabezas do brigante.

Faz parte da cultura popular nordestina a presença dos ―Livros de Feira‖, os famosos cordéis. A literatura de cordel é
um tipo de poesia popular, originalmente oral, e depois impressa em folhetos rústicos ou outra qualidade de papel,
expostos para venda pendurados em cordas ou cordéis, o que deu origem ao nome que vem lá de Portugal, que tinha a
tradição de pendurar folhetos em barbantes. No Nordeste do Brasil, herdamos o nome (embora o povo chame esta
manifestação de folheto), mas a tradição do barbante não perpetuou. Ou seja, o folheto brasileiro poderia ou não estar
exposto em barbantes. São escritos em forma rimada e alguns poemas são ilustrados com xilogravuras, o mesmo estilo
de gravura usado nas capas.
Neste poema, da linha autobiográfica (como ―Autobiografia de um só dia‖), o autor conta como foi inserido (e ajudou
a inserir outros) na literatura popular através dos cordéis que eram trazidos para que ele lesse aos analfabetos
trabalhadores de sua casa na infância pernambucana.

As frutas de Pernambuco
Pernambuco, tão masculino, Sem nada guardar-se, de puta.
Que agrediu tudo, de menino, Mesmo nas ácidas, o açúcar,

É capaz das frutas mais fêmeas É tão carnal, grosso, de corpo,


E da femeeza mais sedenta. De corpo para o corpo, o coito,

São ninfomaníacas, quase, Que mais na cama que na mesa


No dissolver-se, no entregar-se, Seria cômodo querê-las.

Um poema que revela o erotismo do autor a se referir às frutas nordestinas, com destaque especial às de sua
Pernambuco natal. Realmente é uam festa de cores, aromas e sabores já cantadas, desenhadas e estudadas por
sociólogos (Gilberto Freyre), artistas do ―Brasil Holandês‖ e poetas populares.

AUTO DO FRADE (1984)


- poema para vozes -
(excertos: falas de Frei Caneca)
-Acordo fora de mim ao que em nosso redor gira.
como há tempos não fazia Mesmo quando alguém acorda
Acordo claro, de todo, para um fiapo de vida
acordo com toda a vida, como o que tanto aparato
com todos cinco sentidos que me cerca me anuncia:
e sobretudo com a vista esse bosque de espingardas
que dentro desta prisão mudas, mas logo assassinas,
para mim não existia. Sempre à espera dessa voz
Acordo fora de mim Que autorize o que é a sua sina,
como vida apodrecida. Esses padres que as invejam
Acordar não é de dentro, Por serem mais efetivas
acordar é ter saída. Que os sermões que passam largo
Acordar é reacordar-se Dos infernos que anunciam.

O poema enfoca a análise dos momentos finais vividos pelo Frei Caneca, mártir da Confederação do Equador. Frei
Caneca foi líder em dois momentos da história de Pernambuco: a Revolução de 1817 e a de 1824. Foi fuzilado em 1825.
Nesta obra, o autor passa do social (Morte e vida Severina) ao histórico, sem que haja uma negação do primeiro, mas
sim a sua incorporação, não através de uma apreensão de incidentes apenas anedóticos (o que, sem dúvida, compõe
também o quadro da narrativa histórica), mas pela exploração poética das tensões básicas, encarnadas por Frei Caneca,
entre a razão pragmática do político rebelde e as elucubrações mais abstratas, lógicas, retóricas, filosóficas.

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