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VIRGILIO, Paul. LOTRINGER Sylvere. Guerra Pura. Trad.

Elza Miné e Laymert Garcia


dos Santos. São Paulo: Brasiliense. ps. 158.

GUERRA PURA

Eis aqui um livro desconcertante de um autor inusual. Paul Virilio arquiteto e


urbanista, dedicado ao estudo dos fenômenos da tecnologia e da guerra. Cristão católico
obcecado pelo apocalipse nuclear e crítico implacável da metamorfose que transformou o
míssil no messias do final dos tempos. Praticamente desconhecido no Brasil, esse escritor
paradoxal é um dos mais destacados teóricos dos movimentos ecológicos e pacifistas que
vêm empolgando multidões crescentes na Europa e Estados Unidos. A lucidez e a
contemporaneidade epidérmica dos seus ensaios caem como relâmpagos sobre o cotidiano.
Diante dele, os nossos políticos de carreira parecem tão deslocados com relação ao instante
presente quanto os marinheiros do Capitão Gancho a bordo do porta-aviões Nimitz.
Esse livro, breve, ágil, controvertido, é organizado na forma de uma entrevista
fornecida a Sylvere Lotringer. Outro grande personagem esse Sylvere. Francês, residente
em Nova York, professor da Universidade de Columbia e editor da revista Semiotext (e),
ele vem atuando como uma verdadeira ponte entre o pensamento francês e euopeu de
vanguarda e os meios intelectuais americanos. Profundo conhecedor da obra de Virílio e
perfeitamente sintonizado com o cenário cultural e político do momento, suas perguntas
conduzem o entrevistado a uma recuperação completa dos temas centrais de sua reflexão,
ressaltando ao mesmo tempo seus aspectos mais polêmicos.
Comecemos pelo tema da tecnologia. Segundo Virilio, uma das tendências decisivas
que tem acompanhado a transformação da nossa civilização tem sido a do incremento da
velocidade nas comunicações, velocidade na produção, velocidade nas decisões. E ela se
torna uns exércitos mais eficazes que outros e estabelece as relações de dominação entre os
grupos. Curiosamente, segundo ele, os cientistas sociais tem prestado atenção quase que
exclusivamente para o fenômeno da riqueza, desconsiderando o fato que o aumento dessa
riqueza é diretamente proporcional ao aumento da velocidade e vice-versa. Vide as
revoluções industriais e tecnologias dos séculos 18, 19 e 20, do vapor aos circuitos
eletrônicos e ao laser. Daí sua iniciativa de reavaliar a experiência humana pela perspectiva
da “dromologia”, que vem de domos, corrida, e investigar essa “lógica da corrida”. Aqueles
que objetivarem que essa perspectiva é injustificável por ser inusitada ou muito recente, ele
remete ao general chinês Sun Tzu que no seu livro A Arte da Guerra (traduzida e publicado
no Brasil pela editora Cultrix/pensamento), escrito 500 anos antes de Cristo, já vislumbrava
com serena convicção que “A rapidez é a essência da guerra”.
E a guerra tem sido a essência da experiência humana, completaria Virilio. Sim,
porque o Estado formou-se em função da constituição de uma máquina-de-guerra. As
cidades nasceram para ser as sedes desse aparato bélico complexo. Seu símbolo são as
muralhas que precedem a formação da cidade. É a cidade que protege as muralhas e não o
contrário como pode parecer. Mas, contraditoriamente, o desenvolvimento extremo da
velocidade nos nossos dias pelos jatos, pelos computadores, pelos satélites, conduz à
desurbanização e à desterritorialização do Estado. Ele lembra como os aeroportos se
tornaram verdadeiras cidades. “Em Dallas-Fort Worth servem trinta milhões de passageiros
por ano, no final do século serão cem milhões. As pessoas não são mais cidadãs, são
passageiros em trânsito. Quando sabemos que diariamente há mais de cem mil pessoas no
ar, podemos considerar isso uma prefiguração da sociedade do futuro ...” Pode-se ir de
Paria a Nova York em poucas horas, pode-se assistir na Ásia aos Jogos Olímpicos que estão
se realizando naquele instante na América do Norte. Nossa civilização não se estende mais
no espaço e sim no tempo.
O lado perverso dessa história consiste no processo pela qual toda essa tecnologia é
apropriada e posta a serviço da máquina-de-guerra do Estado, constituindo o chamado
complexo industrial-militar. A famosa frase de Clémenceau – “A guerra é séria demais para
ser confiada aos militares” – já é sintomática da perda do controle do poderio militar pelos
políticos. A política nasceu com a cidade e tende a desaparecer com ela, a menos que saiba
se reformular para controlar o tempo e desacelerar a velocidade. Enquanto isso não ocorre,
o controle das decisões passa cada vez mais para a máquina-de-guerra computadorizada, no
interior da qual o gesto decisivo e final escapa dos limites de qualquer ser humano. Com os
jatos, o apocalipse era decidido numa questão de horas – podia-se pensar. Com os mísseis,
são minutos, com o laser serão frações mínimas de segundo: a máquina decidirá sozinha o
destino de todos.
Mas esse teatro infernal tem uma nota tragicômica: é que a guerra nunca vem. Tudo
se resume na dissuasão. O inimigo está sempre na frente, é preciso reunir todos os esforços
para supera-lo. A impossibilidade da guerra se transformar na eterização fantasmal da
ameaça e a administração pública cede lugar à logística. Segundo o Pentágono, “logística é
o procedimento conforme o qual o potencial de uma nação é transferido para suas forças
armadas, tanto em tempos de paz como de guerra”. Assim, a máquina-de-guerra ocupa o
lugar da política e procede à vampirização da sociedade, sugando todos os seus recursos
para acelerar a corrida armamentista em direção ao suicídio coletivo incontrolável. O
Estado-militar passa a colonizar o seu próprio território e população, condenando a
sociedade ao crescimento-zero, à estagnação e à indigência.
A inversão dessa precipitação sinistra só pode partir, segundo Virilio, da resistência
popular. Não a resistência armada, que conduziria à militarização dos inconformados e
significaria uma reprodução amplificada da calamidade. Seu repúdio ao terrorismo é
visceral. Só a paz pode negar a guerra, só a não-violência pode contestar a violência, só a
lógica do freio pode desacelerar e democratizar a velocidade. Não se trata de conquistar
espaços, pois a geo-política tornou-se obsoleta, mas de interromper o tempo, resgatar o
instante, pensar o fragmento. Seu exemplo é o sindicato Solidariedade que rejeitou as armas
e adotou a greve. Sua inspiração é a morte, o limite final. Ela ensina que tudo é sório, que o
que se organiza deve preverá sua própria dissolução, que toda energia deve refluir. Só é
vivo o que morre, o que permanece mumifica. O próprio pensamento de Virilio se organiza
por fragmentos, pequenos vórtices que se consomem ao invés de progredirem
continuamente. Sua leitura, por isso, pode ser angustiante, mas é obrigatória para as
consciências que não estão definitivamente seladas.
(Niclau Sevcenko, professor de Historia Moderna e Teoria na PUC/SP, USP e Unicamp.)

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