neoliberalismo com o conjunto de práti- cas que definem o capitalismo contem- porâneo em sua capilaridade globalizada. Isso dificulta o trabalho de circunstanciar críticas e analisar problemas locais, tornando as objeções ao neoliberalismo o enfrentamento de um inimigo mais podero- so do que ele realmente é. O problema inverso também deve- ria ser evitado, subdimensionar o neoliberalismo apenas como uma teoria econômica nascida nos anos 1930, expressa na obra de autores como Walter Lippmann, Von Mises e Hayek, reno- vada pela Escola de Chicago (Stigler, Friedman) nos anos 1960 e adaptada por governos em forma de políticas de austeridade, privatização e monetarização a partir dos anos 1980. Nesta zona intermediária entre uma etapa difusa do capi- talismo e uma teoria econômica bem definida, propomos que o neoliberalismo é uma forma de vida. Enquanto tal, ele com- preende uma gramática de reconhecimento e uma política para o sofrimento. Ao passo que liberais clássicos, descendentes de Jeremy Bentham e Stuart Mill, consideravam que o sofrimento, seja do trabalhador, seja do cidadão, é um problema que atra- palha a produção e cria obstáculos para o desenvolvimento e para o cálculo da felicidade como máximo de prazer com mí- nimo de desprazer, a forma de vida neoliberal descobriu que se pode extrair mais produção e mais gozo do próprio sofrimento. Encontrar o melhor aproveitamento do sofrimento no trabalho, extraindo o máximo de cansaço com o mínimo de risco jurídico, o máximo de engajamento no projeto com o mínimo de fideli- zação recíproca da empresa, torna-se regra espontânea de 284 uma vida na qual cada relação deve apresentar um balanço. Dessa forma não existem zonas protegidas "fora do mercado", e quem é contra isso é contra o neoliberalismo, e quem é contra o neoliberalismo é a favor do Estado. Tudo é mercado. Educação é investimento. Saúde é segurança. Relações são networking. Ima- gem é marketing pessoal. Cultura é entretenimento. Pessoa é o empreendedor de si mesmo. Nos anos 1990, quando o neoliberalismo passava por amplas e efetivas implementações ao redor do mundo, ele es- tava marcado por práticas como o downsizing , redução de cus- tos, reengenharia e flexibilização de funções. A deslocalização da produção incide de tal forma que a competição deveria ser deslocada para o interior da própria empresa, cada setor tendo que se justificar pelo seu acréscimo ou déficit de valor agregado. Ao mesmo tempo cada um deve se ocupar individualmente de aumentar sua produtividade e garantir sua empregabilidade. Essa nova lei culminou no escândalo imobiliário dos bônus e das maquiagens de balanços. Curiosamente, nesse mesmo período emergiu um novo quadro psicopatológico: personali- dade limítrofes ou borderlines. Descritas no fim dos anos 1930, contemporâneas da invenção teórica do neoliberalismo, tais personalidades estão marcadas por uma espécie de contradição fundamental entre mecanismos esquizoides e funcionamentos narcísicos, de tal forma que elas obedecem à lei desobedecen- do-a. Nos anos 1960 havia um modelo de resistência que estava baseado na transgressão da oposição à lei constituída. Todavia, há outras maneiras de resistências, por exemplo, pelo exagero da obediência à lei, pelo deslocamento crítico de seu contexto de aplicação e pela superidentificação com seus ideais. Isso sugere que talvez tenham sido as artes e a política, an- tes das ciências psicológicas, que captaram essa deriva e transformação de nossos modos compulsórios de sofrer e 285 de exprimir nosso sofrimento, bem como elas que nos provêm novas formas e linguagens para novas maneiras de sofrer. Todos nos preocupamos em ser reconhecidos pelos outros e nos tornamos cientes de que nosso valor depende de como os outros nos veem. O reconhecimento não é apenas amealhar gratificações narcísicas em torno da imagem de si, mas uma ex- periência envolvendo conflito e negociação em torno de como e por quem queremos ser reconhecidos. A maneira pela qual conquistamos reconhecimento é mediada pelas regras funda- mentais da troca social: dar, receber e retribuir. Estabelecer os termos, o momento e a forma como a experiência de reconheci- mento se dá pode envolver a descoberta de que existem reconhe- cimentos falsos, como os que provêm de nossas ilusões, como também os falsos reconhecimentos, baseados no cumprimento de expectativas supostas pelo Outro. Procurar mais reconheci- mento toma-se assim um objetivo específico e gramática geral de nosso desejo. f: o que Lacan, Kojeve e Hegel chamavam de luta pelo reconhecimento ou luta por prestígio. A luta para fazer reconhecer nosso próprio desejo ao Outro, mas também a luta por descobrir nosso próprio desejo em meio ao mar de aliena- ções, demandas e identificações ocasionado por seus diferentes tipos de objetificação. Para uma personalidade borderline, esse cultivo da insatisfação com o que o outro oferece, em termos de amor e desejabilidade, é extrapolado ao extremo. Insaciável, ele vive atormentado pelo vazio e pela iminência de ser abandonado. Curiosamente, quando obtém sinais de que sua demanda está sendo respondida, isso desencadeia reações agressivas e de ódio, incompreensíveis para o outro. Talvez isso ocorra porque ao agir- mos assim estamos sancionando a lei contra a qual o borderline se revolta e aceita exageradamente. Outro exemplo. Para a 286 forma de vida liberal todos nós podemos trabalhar muito esperando grandes momentos de férias e prazer. Para o borderline neoliberal, essa alternância intermitente é um problema. Por que não trabalhar divertindo-se e divertir-se trabalhando? Por que manter essa linha demarcatória tão rígida? Isso confere com sua imagem diagnóstica de um sujeito frequentemente envolvido em conflito com a lei, seja pelo abuso de drogas, seja por sexo ou consumo errático que o levam a dívidas. Segundo a última versão do Manual Estatístico e Diagnóstico de Transtornos Mentais, de 2015, o Transtorno de Personalidade Borderline envolve um padrão de instabilidade interpessoal e relacional que afeta a ima- gem de si, afetos e impulsividade, começando na adolescência e marcado por cinco ou mais dos seguintes traços:
1) Esforços frenéticos para evitar o abandono real ou imagi-
nário. 2) Relações instáveis marcadas pela alternância entre ideali- zação e decepção. 3) Preocupações com identidade, imagem e senso de si. 4) Impulsividade autodestrutiva em duas destas áreas: consu- mo, sexo, drogas, bebida ou alimentação. 5) Pensamentos, atos suicidas ou de automutilação. 6) Reatividade e labilidade de afetos, alternância entre excita- ção e irritabilidade, ansiedade e agressividade. 7) Sentimento crônico de esvaziamento. 8) Raiva intensa e incontrolável. 9) Sentimentos de perseguição e sintomas dissociativos.
Borderline é um nome clinicamente péssimo. Ele não está entre
a neurose e a psicose em uma espécie de situação intermediária ou de no man's land. Contudo, é um significante perfeito para designar o sofrimento padrão daquele momento neo- 287 liberal. Alguém que desafia limites, mas também que não se prende a territórios fixos, compromissos identitários e funções definidas. Essa flutuação livre, leve e solta é apenas o exagero da norrnalopatia de sua época. Quando borderline começou a rimar demais com os que cruzam fronteiras, por exemplo, terroristas, imigrantes, refugiados e demais subjetividades indetermina- das, o quadro desapareceu do interesse teórico. Mas aqui está o ponto crucial. Ele desapareceu porque de certa maneira todos nós nos tornamos borderlines; essa modalidade de sofrimento integrou-se ao comum da vida como um novo paradigma de norrnalopatia. Este não é um processo novo, mas uma espécie de sincro- nia repetitiva entre teorias econômicas e sociais e modalidades preferenciais de sofrimento. As neuroses e sua problemática com a lei e com a paternidade foram um paradigma clínico até os anos 1950, com sua clara e definida linha que separava a deso- bediência e a obediência à borderline paterna. Algo análogo ocor- re com as personalidades narcísicas, com seus sentimentos de esvaziamento, fragmentação e inautenticidade durante os anos 1970, tal qual foi descrito por Christopher Lasch em seu clássico A cultura do narcisismo.9 Seu estudo baseia-se nas personalidades narcísicas caracterizadas pela "sensibilidade terapêutica", fun- dada na confissão, no sentimento de irrelevância e vazio inte- rior, na evasão do espaço público, na espetacularização da vida, no ponto de vista resignado sobre o mundo, na renúncia à rea- lização da vida e seu recuo para o ideal de sobrevivência social. Contra essa existência menor se ergue a figura do herói e seu sis- tema de idealizações, a experiência da vida como 9 Christopher um teatro ou como um jogo e o valor onipresente Lasch, A cultura do narcisismo. e indiscutível da segurança. Apesar de criti- são Paulo: 288 cado, o ideal de vida burocrático e a cultura Imago, 1 983. do entretenimento preenchem quase todos os quesitos da per- sonalidade narcísica. Derivada de uma instrumentalização dos valores ligados à familia e à autenticidade, a personalidade nar- císica dos anos 1960 surgiu de uma reformulação do sistema es- colar e universitário, com suprema ascensão dos valores ligados ao mérito. A educação como mercadoria teria desacreditado o sistema de formação de autoridade e aberto caminho para uma permissividade na qual a conquista do amor é mais importante do que o real desafio representado pela competição entre indiví- duos em uma sociedade agonística. Surge assim a nostalgia em tomo do pai ausente e da autoridade legítima, efeito específico da trivialização das relações pessoais e da emergência da rela- ção de desempenho como gramática geral de reconhecimento. O horror à velhice, a emergência da problemática da diferença entre gêneros, o medo do descenso social e o ideal de ascensão de classe geram um complexo generalizado de impostura e a de- manda por um paternalismo, seja estatal seja legalista, sobre a regulação administrada do mundo. Fazia parte do sofrimento pós-revolucionário de 1968 uma onda de intenso desejo de adaptação, conformidade e ajusta- mento, como no chamado paradigma das donas de casa ansio- sas, dependentes e infantilizadas, consumidoras contumazes e crônicas de Valium, sofrendo dentro da borderline da adequação feminina. É porque tornamo-nos "todos neuróticos" que o so- frimento histérico (paradigma da neurose) tornou-se invisível. Lembremos que a histeria caracterizava-se em sua descrição moderna, por Charcot e Freud, pela presença de ausências de consciência, por espasmos que denunciam a autonomia do cor- po sobre a mente, pela desrazão melancólica ou hipocondríaca e pela fraqueza da experiência de si. É também porque torna- mo-nos "todos narcísicos" que o sofrimento com a imagem 289 de si tomou-se imperceptível. A partir de então a normalopatia exige a recusa da dignidade do sofrimento daqueles que não são suficiente ou exageradamente neuróticos ou narcísicos. Entre os anos 2000 e 2010 emergem duas novas normalopa- tias neoliberais: a depressão, de um lado, e as anorexias, de ou- tro. A primeira representa o colapso na produção e a segunda, no consumo. Os antigos devotos da crença na produtividade trou- xeram visibilidade ao fato de que nem todos poderiam entrar no novo sistema reduzido e flexível de produção. O que fazer com os excluídos senão atribuir-lhes uma dificuldade "individual"? A ascensão da salvação pelo consumo torna muito mais visível e problemático alguém que se recusa a comer (ou come exagerada- mente e vomita, como os bulímicos). A ascensão da adequação à produção torna explícito demais aqueles que se recusam a pro- duzir, como o depressivo (ou aquele que acumula ou consome demasiadamente, como o adieto e o acumulador}. Notemos que nesse ponto o neoliberalismo também sofreu uma pequena mo- dulação, com a entrada dos discursos sobre a emoção e o talento, com as práticas de coachin9 e com o marketing orientado para a experiência. Com a assimilação dietética e higienista de novos regramentos na borderline entre saúde e doença, o quadro tende a declinar. Ademais, o empuxo de produção e desempenho vem sendo suplementado por ingestão de substâncias, legais e ilegais, em forma de doping tolerado, se não estimulado em nome de re- sultados. Afinal, por que se contentar com seu filho que tira 6.o em História se ele poderia tirar 7.5 tomando metilfenidato? Depois dos Frankenstein, esquizoides errantes sem fron- teiras (no desejo}, e dos Fantasmas alienados que vagam da pres- são, descompressão e depressão (no trabalho), chegamos final- mente aos Zumbis (sem linguagem) que hoje se tornaram 290 nossa mais próxima normalopatia. Zumbis são gerados por um desrespeito ao trato dos vi- ventes, pela suspensão da relação de continuidade simbólica entre passado e futuro, pela violação da borderline entre vivos e mortos. É a normalopatia da vingança dos Brexits (pela qual a terceira idade rural e conservadora percebe que sair da União Europeia lhe é vantajoso). É a normalopatia das previdências abreviadas, dos imigrantes e refugiados deixados boiando no Mediterrâneo ou da devastação causada pela construção da hi- drelétrica de Belo Monte. É a normalopatia que sabe perfeita- mente que certas coisas são erradas, injustas ou falsas, mas... e daí? É contando com isso que um juiz em Brasília pode autori- zar o uso da tortura (corte de água, comida e comunicação, bem como o uso de aparelhos sonoros em alto volume) contra estu- dantes que ocupam escolas de Taguatinga em outubro de 2016. No fundo deslocamos o poder de quem faz as leis para uma bor- derline móvel de quem as aplica e manipula ao sabor da opinião pública, remetendo os descontentes ao estado de Zumbis, cuja palavra é livre, mas sem consequência. Essa nova normalopatia emerge no quadro de substitui- ção da cultura do narcisismo pela cultura da indiferença. Um Zumbi não pode ser propriamente morto, ele perdeu seu lugar simbólico de descanso em sua tumba. Ele só pode ser elimina- do com um tiro na cabeça, capaz de interromper sua mono- mania de devorar cérebros, dos quais se alimenta. Zumbis não falam, não se agrupam, apenas repetem sua própria inanidade. O mito haitiano dos Zumbis elabora uma explicação para a de- sigualdade a partir da arte de fabricar servos que trabalharão sem fim para seus mestres. Os ricos são ricos porque sabem fabricar Zumbis, e os Zumbis são aqueles que trabalham, sem saber que são Zumbis, para os seus senhores. Talvez um Zumbi seja feito quando alguém se apropria de um corpo 291 morto, particularmente de alguém que morre sozinho. De fato, a revolução haitiana de 1808 foi um exemplo de como uma colô- nia resistiu ao poderio francês de Napoleão. Liderados por Tous- saint Louverture, os haitianos estabeleceram um regime livre da escravidão, mas não conseguiram evitar o empobrecimento da antes próspera colônia francesa de São Domingos, vítima da retaliação comercial que se seguiu à revolução. Vê-se assim que os Zumbis são um exemplo narrativo compatível com um novo momento de nossas relações com o trabalho e com os novos ti- pos de sofrimento que eles elaboram.