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LITURGIA JUDAICA

Fontes, estrutura, oraçòes e festas


CARMINE DI SANTE

LITURGIA JUDAICA
Fontes, estrutura, oraçoes e festas

BIBLIOTECA DE ESTUDOS BIBUCOS

• H1stona pollca de lsrael. H Cazelles


• As cartas de Paulo. Tlago. Pedro e Judas. M Carrez IP Dornier I M Duma1s I M Tnn1alle
• Os safmos e os outros esrntos. W AA
• Jesus e as estrururas do seu tempo, E Monn Bibliot.eca Padre Vaz

lllH~ml ~I 1 ~ 1~1 ·l~~I


• Chave ptJra a Bibita A revelaçao. a promessa, a realizaçao. Wdfr1d J Hamngton
• Biblia. palavra de Deus Curso de mtroduçào à sagrada escmura. V Mannuco
• Jesus e a soctedade de seu tempo, J Mateos e F Camacho
• Ltberrando Paulo A 1us11ça de Deus e a politica do ap6stolo, N. Elhott 20190050
• Asta Menor nos tempos de Paulo, Lucas e Joao. Eduardo Arens Li!urgia judaica: fontes, estrutJra. oraçOes
• Evangelhos ap6cnfos, Lu191 Morald1
• O Deus de Jesus. J Duquesne
• A t~log1a do ap6stolo Paulo. James D. G Dunn
• Jesus segundo o 1udaismo. B Bruteau
• Ltrurg1a 1uda1ca. Fontes, estrurura. oraçòes e festas. C. d1 Sante

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• O memoria! de Deus Htstona. memona e a expenéncia do dMno no Antigo israel. M S Sm1th
• A Bibita sem m1tos • Uma mrroduçao crlttca, E Arens
• Da reltgtJo biblKa ao1udalsmo rablntco Ongens da religiào de lsrael e seus desdobramentos
na h1st6r1a do povo 1udeu, Donizete Scardela1
• Comprt:ender o Ant1go Testamento Um pro1eto que se tornou promessa, G1lles Drolel PAULUS
Oidc:K lnttr~ION6 di! c.tologaçao N Pubkaç.IO (CIP)
(Catn.v• Br.W..• do L.rno, SP. Bra511l O homem é o ser que reza
DI S...te. Cèl<mtne. 1941· E é esta a sua grandeza
l.Jt.,rg<i iu<Wi<• fontes estiutur._ Ofa(òe5
e Il'\~ I,.,..,... I>' SM>te. tr..tuç)o Joao Anobal ~ So.lres ~·
- Sai> P.oulo, PMus, 2~
(A. dc Lamartinc, A queda dc wn anjo, vn• visio)

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lndoces P"'• c.at.lk>go ~tl(O


I Judaivno l.Jtutgta 296 4
2 l.ltUt~ 1ud.JQ 296 4

Tltulo originai
La preghiera dt Israele
C Manetll, Casale Monferrato, 1985
ISBN 88-211-8334-4

2• ed1çao, 2010

C PAUlUS - 2004
Rua Francisco Cruz. 229 • 04117-091 Se)() Paulo (Brasi!)
Fax (11) 5579-3627 • Tel ( 11) 5087·3700
www paulus com br • ed1tor1alOpaulus com br
ISBN 978-85-349-2259·3
PREFACIO

Le-se em D t Rabba 11 ,12 o seguinte: "As portas da oraçio


jamais se encontram fechadas "; siio estas simples palavras que
indicam ao homem o caminbo do seu dialogo mais direto com
Deus.
A forma pela qual o juda!smo nascente, e depois milenario,
sentiu e viveu este caminho, e corno continua até hoje a experi-
menca-lo, é apresentada com clareza por Carmine Di Sante em
seu estudo sobre a liturgia hebraica.
Talvez seja esta a primeira vez que da parte cat6lica se fez
a tentativa de penetrar no cspfrito da oraçio judaica, dentro e
além das suas estruturas cotidianas e festivas, a fim de aprescntar
pontos de partida e de fazer com que o cristiio reflita sobre al-
gumas fontes lirurgicas comuns, sem entretanto coloca-las em con-
fronto.
Como disse o mesmo autor, a finalidade do estudo é apre-
sentar a liturgia judaica no seu "vigor origina!", para que cada
um - judeu ou cristao - possa compreender "o quanto Jesus e
a comunidade primitiva sao dela dependentes ". ~ idéia muito boa,
principalmente hoje, à luz dos "Subsfdios para urna apresentaçao
correta dos judeus e do judafsmo ", publicados ultimamente pelo
Vaticano, onde se afirma peremptoriamente: "Jesus é judeu, e
o é para sempre ... é pienamente um homem de seu tempo e do
seu ambiente israelita palestinense do século I, tendo participado
de suas alegrias e esperanças".

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Uma tentativa de reavaliaçao do hebra1smo lirurgico de Jesus Sem entrar no mérito do estudo atento de cada uma das par-
foi feita por parte dos judeus, faz apenas alguns anos, com o tes, coisa que um rabino perito em liturgia podera fazer melhor
livro de R. Aron, Così pregava l'ebreo ]esu. Di Sante retoma do que eu, limito-me a sublinhar a interpretaçao existencial e an-
em certo sentido a redescoberta de Aron, e faz dela uma desco- tr0pol6gica de cada oraçio no seu sentido intimo, trate-se das be-
berta cristi, apresentando nao em forma hist6rico-cr1tica, mas teo- rakot ( bençios), do shema' ( escuta), da tefillah ( oraçao) ou da
16gico-hermeneutica, os aspectos mais importantes de conteudo qeri'at Torah (lei tura da Tori!) .
existencial da grande quantidade de oraçé>es e acontecimentos que, Sugerindo que a berakah da a possibilidade "de encarar o
a partir do capfrulo 13 do ~xodo, tornaram-se a caractedstica vital mundo cheio de esplendor espiritual" ( p. 54), ou que "trans-
da religiosidade hebraica . forma o profano em sagrado" ( p. 55 ), ou escrevendo que "com
Para o leitor judeu, as partes mais importantes do livro sao a bençiio nao nos permitimos o direito de propriedade das coi-
a introduçao e o primeiro capftulo, porque nelas se tenta restabe- sas" ( p. 56), transferindo toda propriedade a Deus e colocan-
lecer com clareza a relaçao original dos conteudos entre o mundo do-nos na disponibilidade do dom que Deus nos faz, o autor pe-
lirurgico judeu e o cristiio, na pessoa de Jesus e dos ap6stolos, netra na essencia hebraica da bençao, que define por si s6 o
resticuindo ao culto hebraico desde o infcio aquele sentimento relacionamento homem-Deus e Deus-homem, como · esca escrito
intimo de amor e comunhao com Deus, que o cristianismo lhe na oraçao de Ne'ilah: "Tu escolheste o homem desde o prindpio,
negou durante séculos. destinando-o a estat diante de ti ". J. Heschel observou de fato
Parece-nos ser justamente este o mérito do livro: o de ter que com a oraçao o homem "se entrega àquele ao qual perten-
reencontrado e renovado na oraçio judaica a sinceridade, a emoçao, cem seu ser e sua existencia, toma urna posiçao definitiva, parte
a hitlahavut (o fervor), diriam os hassidim, que foram sempre para fazer reclamaçoes diante de Deus, faz uma declaraçao, con-
especialistas da relaçao do judeu com Deus. Por isto, os rabinos fessa, empenha seu ser, torna posse e faz urna aliança".
da época de Jesus diziam: "Quando oras nao faças da tua oraçao Di Sante encontra este relacionamento homem-Deus/Deus-
um costume invariavel, mas urna invocaçiio de miseric6rdia e urna homem no signillcado intrinseco dos tres trechos do shema' e nas
suplica a Deus» ( Avot 11,17}; ou "Quem faz de sua oraçao urna bençaos. que o acompanham, onde ele salienta a diferença entre
coisa fbca, ela deixa de ser uma suplica " (Ber. IV, 4) ; e justa- as do dia: de louvor e de amor pelo dia que nasce, e as da tarde,
mente para evitar que as oraçées se tornassem "uma coisa fixa", quando se procura o repouso, a paz, a salvaçao das sombras
durante muitos séculos nao era permitido escreve-las, corno esca da noite.
escrito em Tos. Shabat 14,4: "Quem fixa por escrito uma oraçao Talvez o autor tenha deixado escapar apenas um aspecto no
comete o mesmo erro corno se tivesse queimado a Toni". comple:co ~undo liturgico dos judeus: o conceito da prece de
Talvez no desejo de penetrar e evidenciar seu sentido intimo, Deus, lSto e, de Deus que reza, conceito este que nio traz limi-
o autor deixou de sublinhar que, no final, o aspecto fixo da taçao a Deus, mas ao contrario, torna o relacionamento mutuo
oraçio triunfou, tornando-a assim "uma instituiçao religiosa". ainda mais fntimo e eficaz. Em Ber. 7• le-se de fato: " ( Assim reza
Mas esta fixaçao, na interpretaçao judaica através dos séculos, o Santo): Oxala minha vontade seja que a minha miscric6rdia
nao foi menos rica de significado que a oraçio espontanea. A este vença minha ira e que minha misericordia se sobreponha às mi-
respeito o perito contemporaneo J. Leibovich, defensor da oraçao ~as normas de juizo, para que eu me comporte com os meus
fixa, diz: "A grandeza e o poder da oraçao obrigat6ria e fixa filhos de a.corda ,.cor:i nos atributos de miseric6rdia e que eu volte
da halakah consiste no repudio, por parte do homem, de todos deles com mdulgenaa . .E a resposta que os judeus esperam, quan-
os interesses pr6prios e pessoais que procuram uma realizaçao do na prece do dia de kippur dizem duas vezes: "Responde-nos,
concreta, em formas e modos diferentes diante da consciencia da Senhor, responde-nos ".
pr6pria posiçio diante de Deus ... anular a vontade humana diantc . Esta omissao de aspecto tao particular na concepçio que os
do dever de servir a Deus" (J. Leibovich, Eliraismo, popolo Judeus fazem do se~ relacionamento com Deus, no qual, muitas
ebraico e stato d'Israele, Roma, 1980, 127). vezes se chega a senur que o homem é mais necessario para Deus,

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do quc Dcus é para o bomem (d. J. Hcschcl, Dio alla ricerca de
l'uomo), niio cmpobrcc.e a anal.ise aprescntada, mcsmo quando,
obviamcntc, cla scja fruto de posicionamento da liturgia cristi. INTRODUçÀO
Considcramos, ao invés, quc o panorama lirurgico judcu, corno
é aprcscntado no livro, niio apenas toca nos aspectos mais pc- A REDESCOBERTA DO HEBRAfSMO
culiarcs, mas pode levar muitos leitores cristaos a rcflctir sobrc
a pr6pria indifcrcnça e muitas vezes limitaç5es de jufzo a rcs-
peito dc ccrtos tcmas do judaismo e, conseqilentementc, a pcrgun-
tar-sc como podc tcr acontecido que os cristios, ao recitar dia-
riamcnte os salmos blblicos, escritos por hebreus e para hebreus,
que continuam a rcciu-los com a mesma emoçao com a qual
foram compostos, nao tcnham percebido e niio perccbam csta
intima reHgiosidade e comunhao com Deus, propria do judafsmo.
Esperamos, por isso, que este livro nos seus varios aspcctos e
com suas interpretaçoes e detalhes constitua novo e importante
passo no conhecimento cristao do judaismo, que no seu serviço
diario das sinagogas e nas suas f6rmulas familiares e individuais
permaneceu e permanece fiel àquela fé-confiança que, jorrando de O Concilio Ecumenico Vaticano II (1962-1965 ) representa,
um passado real, é a expressiio da esperança de um futuro de sem sombra de duvida, o acontecimento eclesial mais importante
paz, que um dia finalmente podera manifestar-se, se o homem do nosso século. As suas Constituiçoes, os seus Decretos e as suas
se empenhar "com todo seu coraçao, com toda sua alma, com Declaraçoes sao o ponto de chegada e de partida do novo modo
todas as suas forças " pela sua realizaçio. de compreensao da Igreja, seja na sua dimensao ad intra (a lgreja
vista em si mesma, em seus componentes teol6gicos fundamen-
26 dc junho dc 1985. tais), seja na dimensao ad extra (vista em rdaçio com o mundo,
Lea Sestieri tomado no seu sentido lato).
Este processo da nova autocomprecnsao s6 foi poss(vel, so-
br~h:1do, graças ao movimento blblico lirurgico e teol6gico, cujas
soliotaçOes foram acolhidas e inseridas nas ttes grandes consti-
tuiç5es conciliares, a saber: a da Liturgia, a da lgreja e a da
Revelaçlzo.
Mas nenhuma renovaçao pode acont(!(..'Cr senao attavés da
descoberta das raizes, daqude hl1mus hist6rico, espiritual e cul-
tural, no qual ele se destacou pela 16gica da diferenciaçio e da
indi~du;ùizaçio ..Isto ~ valido também para a Igrcja que, nascida
do JUdafsmo e Vtvenciada dutante varios decenios dentro do ju-
dafsmo - embora em posiçao dialética e às vezes enfrcntando
grandes conflitos - cla podc reencontrar sua identidade vital
som_ente à luz do hebrafsmo. Af é que se encontram a força e a
novtdade da Nostra Aetate 4, que, passados vinte anos do Con-
dlio, aparecem sempre com maior clareza.

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Uma reviravolta hist6rica sentido para o homcm de hojc? Apcsar do dcsafio de Bultmann
- o qual, na realidade, mais que à eliminaçao do mito, convida
Dizer que a Nostra Aetate 4 é uma reviravolta hist6rica, a uma correta decodificaçio e intcrpretaçio do mcsmo, pondo a
nao é frase de efeito. Essa frase é de autoria do cardeal J. Wille- descoberto o fundo simb6lico e o poder revclador bloqueado pe·
brands, presidente da Comissao para as Relaç5cs Religiosas com las racionalizaçOes inibidoras ou falsas2 - ou melhor, justamente
o Judafsmo, em 1974, num documento oficial assinado por elc por causa do desafio bultmanniano, a descoberta das categorias
e com o tltulo de: Orient(Jfoes e Sugestoes para a Aplicaçoo da originais hebraicas torna-se empenho teo16gico de imprescind.lvel
Declaraçoo Conciliar •Nostra Aetate 4•. importincia. Dc fato, ncstas catcgorias distantes simb6licas e mi·
Trata-se dc uma rcviravolta hist6rica nao s6 cm nfvel de tol6gicas ocultam·se palavras e dizcrcs que tem sentido, e que
ideologia, cnquanto obriga o cristianismo 1Ust6rico a rever a prO. uma vez acolhidos e ouvidos tem o poder de enriquecer e dc
pria cosmovisao (Weltanschauung) em cujo scio, infelizmentc, alegrar a existencia humana, inspirando e vivificando os modelos
o desprezo e o 6dio anti-semita eram afirmados e confirmados, expressivos e interpretativos. As categorias hebraicas sao redes-
mas também em nfvel tco16gico no sentido de obrigar - e nao cobertas a fim dc ouvirmos, na sua pureza originai, aquele logos
podia dci.xar dc obrigar - a repensar toda a teologia. de luz e de sentido que elas tinham de inkio.
Mas rcpensar a teologia s6 pode significar urna coisa: redes·
cobrir as categorias hebraicas, aque1as em cujo scio nasceu a
experiencia cristi, e onde suas teses foram desenvolvidas e depois A linguagem das origens
transmitidas. Significa que Jesus foi um "rabi n e nao um "padre" I
corno L. Swilder cscreveu, um "mestre" e nao um "reverendo"; 1! este o motivo mais profundo do desafio teo16gico lançado
que foi um judeu e nao uro cristio, que frequentou a sinagoga pela declaraçao Nostra Aetate: é necessario repenr.ar a teologia,
e nao urna igreja; quc celebrou o sabado e nio o domingo; quc e é necessario repensa-la com as catcgorias hebraicas, para que soe
pregou cm aramaico e nio cm grego nem latim, que leu o Antigo a v02 pura e purificadora das origens. Pura, isto é, nao contami·
Testamento e nao o Novo; que recitou os salmos e nao o ro- nada pelos sucessivos compromissos e mediaçOes; purificadora quer
sario; quc fcstcjou o pesa/:i (a pascoa hebraica)' shavu'ot (o pen· dizer capaz dc agir corno instancia critica ( do radical grego krinein,
tccostcs judcu) e sukkot ( tabernaculos) e nao o Natal ou a Qua· que significa avaliar/julgar) dc todas as outras "vozes" e pro-
rcsma ... "1 Todas cstas afirmaçOes tomam-se sempre mais comuns. postas reinterprctativas. Reafirmar a importincia das origens nao
Nao se tcm, porém, a coragem de tirar as conseqiiencias teol6gicas significa rcnegar o presente, tornando-se nostalgicos laudatores
dc tudo isto. Dc fato, afirmar que Jesus é judeu significa afirmar temporis acti (lamentar o tempo quc passou). Se assiro fosse,
( se nao qucrcmos nos contentar com expressé>es rct6ricas) quc o amor pelas origens seria fuga cm vez de operaçao teologica de
colocamos corno centro as categorias hebraicas, às quais n6s voi· purificaçio e de renovaçio. Na verdade, o amor pelas origens é
tamos e com as quais nos confrontamos cm todo esforço dc com- amor pelo presente, por uro presente pieno de qualidade e de
prccnsao do mistério cristao. sentido. Sob este ponto de vista as "origens" nio sao dimensio
Mas para que voltar às categorias judaicas? Por quc tornar meramente tempora!, mas, mais exatamente, ontol6gico-estrurural.
novamentc, com entusiasmo e empenho, modelos de pensamento Elas nao sao somente acontecimentos que se deram em tempo
arcaicos e mito16gicos, tao estranhos à mentalidade moderna cien· longlnquo, mas se constituem corno fondamento que sustém o
tffica e t~nica? E de que modo os paradigmas expressivos e presente. Redescobrir as origens nao significa afastar-se do hoje,
interprctativos da tradiçio bfblico-hebraica nos poderiam scr utcis, mas reencontrar as rafaes que o sustentam.
dcpois quc Bultmann se empenhou em poderoso projcto de dc- . Quais sao as ~ origens" das quais nasce o nosso "hoje n ecle-
mitizaçio, sem o qual a linguagem religiosa ficaria muda e scm s1al e sobre as qua1s se constr6i e se da contlnuidade?
l Cf. L. Swidlcr, in •Scfcr•, 15 (1981), 5-6. 2 Cf. P. Ricocur, Della interpretazione. Saggio su Freud, Milao, 1967, 330.

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A declaraçio Nostra Aelale 4 cita-as neste paclg:rafo: cspcculativa, mas da paixao e da força dc uma cxpcnenaa dc
Pois a Igrcja dc Cristo rcconhece quc os prim6rdios da /é vida marcada pela prcscnça e pela palavra dc Dcus. Por isso o
e dc sua eleiçao jii se cncontram nos Patriarcas, cm Moisés juda1smo nio tem, falando com exatidao, uma teologia, isto é,
e nos Profetas, scgundo o mistério salvffico dc Dcus. Con- uma reflexao sistematica e organizada sobrc Dcus, mas ncle tem
fessa que todos os fiéis cristaos, filhos dc Abraiio scgundo prioridade a açio e o linguajar parab6lico, a halakah e a haggadah.
a fé, cstavam inclu!dos no chamamento do mcsmo Patriarca Daf a primeira e fundamental import.ancia do momento li-
e que a salvaçio da Igreja estava misteriosamente prefigu- rorgico, tornado corno lugar simb6lko e imcdiato do encontto
rada no éxodo do povo eleito da terra da escravidao. Por com Deus, o lugar onde nao se /ala de Deus, mas se /ala a Deus,
isso nao pode a lgrcja csquccer que por meio daquclc povo, no qual nio se pensa em Deus, mas se pensa diante de Deus,
com o qual cm sua indizfvcl miseric6rdia Dcus se dignou onde Deus nao é objeto de re/lexao, mas sujeito que nos dirige
cstabclcccr a Antiga Aliança, cla recebcu a Rcvclaçiio do a palavra. É estc cspaço, feito de açOes, dc palavras, de musicas,
Antigo T eslamento e se alimenta pela raiz de boa oliveira, dc movimentos, dc atcnçio, de narraçécs, dc silencios, de mitos
na qual corno ramos dc zambujeiro foram cnxcrtados os e ritos, o espayo hist6rico privilegiado, no qual Israd fez a ex-
Povos. Pois ere a Igrcja, que Cristo, nossa Paz, mediante pcriencia do cncontro com Deus e aprendcu a compreender-se e a
a cruz, reconciliou os iudeus e os povos e a ambos unificou compreende-lo com as divcrsas categorias da cscolha, da aliança,
em si mesmo (n. 4) . da vocaçao, da reconciliaçio etc ...
Voltar às origcns deve entio significar, para a Igreja, voltar
As categorias de origem, que sao fundamcnto e sustentaculo a este espaço no qual Israel viveu sua expcriencia de povo de
do crisùanismo, sao as catcgorias judaicas da /é, da eleiçao, da Deus, entrar neste universo ritual ao qual também n6s, cristaos,
vocaçao, do povo, da escravidao, do Antigo Testamento, da Alian- estamos ligados. O in1cio da Nostra Aetate 4 reza textualmente:
ça, da raiz, da paz e da reconciliaçao. Estas categorias sao corno "Perscrutando o Mistério da Igreja, cste sacrossanto Condi.io
fontcs que, nos centros cm que se desenvolve a hist6ria crista do ( Mysterium Ecclesiae perscrutans), recorda o vfnculo pelo qual
lugarcjo, matam a sede dos scus habitantes e os alcgram. Afastar-se o povo do Novo Testamento esta espiritualmente ligado à estirpc
destas categorias é arriscar-sc a passar sede. de Abraio". O texto fala de um vinculo entte Igreja e Israel, de
Voltar a participar dc sua riqueza é reencontrar a força e o a/go que une um ao outro. Trata-se de um vfnculo nao acidental
scncido da vida. mas imorredouro e essencial, porque nao é periférico, mas dentr~
do pr6prio mistério da Igreja. De fato, é "perscrutando o seu
Mistério" que a Igreja descobre este "vfnculo ", esta estrutura
O universo liturgico de uniào. Perscrutando, perscrutans significa tanto a constataçio
de valores (a Igreja, enquanto perscruta a sua rcalidade descobre
Mas falar de catcgorias pode trazer consigo um risco: o de sua ligaçao ao ~vo de 1srael), como a do valor final ' (a Igrcja
comprecnde-las no scntido 16gico-racional. O termo categoria é descobre sua realidade dc nao poder menosprczar sua ligaçio com
certamente o produto dc urna atividade racional, mas o contcudo Israd) . Além das duas interpretaçOes que se integram reciproca-
aos quais ele se refere, sio, na tradiçao judaica e na pr6pria tra- mente, uma coisa fica clara: a identidade cclesial csta ligada cs-
diçio autenticamente cristi, dc carater existencial. Exprimem e truturalmentc a um cspaço teo16gico que a Igrcja tem em comum
ttansmitem realidades vitais e nao daboraçOes de conceitos. Palar com Israd. Este espaco se realiza sobretudo no universo liturgico
de /é, de escolha, de vocaçao, de éxodo etc ... nao significa ela- no qual Israel viveu sua fé, construiu sua imagem e elaborou
borar· conceitos nem confrontar idé.ias, mas recolher e condensar, suas categorias. O universo lirurgico é por excelencia o lugar no
na magra essencia de uma palavra ou de uma frase, a cxpcriencia qual se expressa e se transmite cste vinculo através do qual o
mais profunda da vida, quc é a do encontro com o mistério, povo do Novo Testamento esta ligado cspiritualmente à esti.rpe
com Dcus. A linguagem religiosa no judalsmo nio nasce da razio dc Abraao" (Nostra Aetate 4).

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Os cstudiosos cristios jamais levatam a sério o fato de que O segundo se refere ao julgamcnto drasticamente negativo
a experiencia cristi e sobretudo a liturgia cstavam ligadas às cs- dado sobre o culto hebraico.8 Pensando-se bem, trata-sc dc um
truturas do culto hcbraico. Se tomamos, por exemplo, alguns dos posicionamento l6gico: uma vez quc o culto hebraico fica reduzido
textos lirurgicos mais importantes dos Ultimos dccCnios,3 o esque- a csqueleto sem vida, nada resta senio decretar sua inutilidade
ma de procedimento ao defrontar-se com o problema das origens e seu fim.
da liturgia cristi parece ser o seguinte: Jesus Cristo é apontado
corno o iniciador da liturgia cristi, para alguns o iniciador abso-
luto tanto para o conteudo corno para as formas; para outros, Jesus e a liturgia hebraica
o iniciador dos conteudos, mas nio das formas, que foram em-
prestadas da tradiç.i o judaica. Est.a Ultima opiniio é a que pre- Com isto nio se quer negar os aspectos de originalidade e de
valece junto à maioria dos estudiosos cristios. particularidade de Jesus diante do hebra{smo de seu tempo nem
Na re.alidade, nenhum pesquisador informado pensa atual- diante da pr6pria liturgia, de cuja riqueza cle se a.liirentava. Co-
mente em encontrar as origens dos sacramentos cristios fora da mo todas as grandcs personalidades, Jesus nio fica limitado aos
tradiçio blblico-hebraica.4 Eia é justamente considerada como o compon:ntes ~spirituais e culturais de sua época. Existc ncle algo
"contexton ou o "lugar de origem" da liturgia cristi. Mas tem-se que o distanc1a de seus contemporaneos e quc constitui sua gran-
a impressio que este "contextons e este "lugar de origem",6 dos deza moral. Mas aqui faz-se necessaria uma observaçio funda-
quais se fala, sio aceitos corno fundo provis6rio polemico e secun- rnental: para confirmar a grandeza de Jesus nio ha necessidade
dario, e nio como humus positivo, vital e substancial. Esta im- de desqualificar e muito menos de caricaturar o judaismo do seu
pressio é comprovada por dois dados dificilmente contestaveis. te~po. !rata-se de urna at~tude indébita 9ue nio faz justiça nem
ao Jud~smo nem ao pr6pno Jesus, que fica reduzido, de acordo
O primeiro diz respcito à escassez de informaçbes sobre o com a unagem de L. Bouyer, "a um meteoro caido na Palestina" .9
culto intertestamentario do qual e de cuja espiritualidade Jesus
Trata-se de inverter este procedimento e de se acostumar a
se alimentou. Normalmente os autores citados se limitam a pou-
cas referencias terminol6gicas ( que no tempo de Jesus havia a afi~S: a grandeza e originalidade de Jesus nio fora ou contra
sinagoga, que se celebrava a Pascoa, se observava o sabado etc ... ). o JU~atSmo, mas com cle e dentro dele. O judafsmo nio é o
rnas sem a preocupaçio de dar informaç0es sobre a riqueza de n~ga.tiv? sobre o qual se faz sobressair o positivo dc Jesus e do
cns~arusmo, mas é a "divina melodia" cuja beleza nos da a
conteudo das referidas celcbraç0es. A conseqi.iencia disto é que
o leitor se encontra diante de residuos esqueléticos ou de estru- med1da da grandeza e da originalidade de Jesus e da cristandade.
turas antiquadas sem qualquer significado.7 , . Para. conseguir inverter seriamente este processo é neces-
sario ~abituar-se a ~onsiderar o judaismo e suas rnU.ltiplas mani-
festaç?C~ c?mo realidade aut8noma, e nio em funçao de Cristo e
3 M. Righetti, Manuale di Storia liturgica, 4! voi., Ancora, Milio, 1950;
A. G. Martimort (aos cuidados de) La chiesa in preghiera, Descléc, Roma - do cristtarusmo. Isto é possfvel através do conhecimento respei-
Paris etc..., 1966; VV. AA., Antimnesis. 2. Panorama hist6rico gera/ da toso e atençio desinteressada.
Liturgia, Ed. Paulinas, Sio Paulo, 1987; Nuovo Dizionario di liturgia, org. A ~turgia é o terreno privilegiado deste conhecimento e
por D. Sartore e A. M. Triacca, Paoline, Roma, 1983.
4 Como acontecia h6 alguns dec!nios: cf. p. ex., R. Reit:zenastein, Die desta a~tude de ~S:Uta. Nel.a, mais do que cm qualquer outra
Vorgeschichte der christlichen Tau/e, Lfpsia·BerHm, 1920; L. Loisy, Les ~xpressao .da tradiçao hebra1ca, estao resumidos e reunidos os
myst~res paiens et le myst~re chréìien, Paris, 1930. m~xau~fve1~ tesouros bfblicos e espirituais, que desde o inkio até
5 B. Neunbeuser "Storia della Liturgia", in Nuovo Dizionario di liturgia,
o.p cit., 1453. ho1e a mspiraram e alimentaram. Desta liturgia, dos seus simbolos
6 S. Marsili, in Anamnesis, op cit., 11 .
7 Por exemplo, S. Marsili, no volume acima indicado, em um par4grafo . 8 Sempre de acordo com o mesmo autor, que intituJa o padgrafo se·
intitulado "Cristo e a liturgia hebraica" (p.12) fala do culto da sinagoga e gumte (f?P· 14-17) de • Anuncio do fim do culto hebraico•.
do s4bado (apenas 4 linhas). mas sem dizer nem reconstituir o que estas 9 Cu.ado em M. Remaud, Chrétiens devant lsrai!I serviteur de Dieu,
formas de culto representavam realmente para a tradiçio hebraica. eerf, Paru, 1983, 28.

16 17
e dc scus ritos, dos scus ccos e do scu silencio, alimcntar~-sc o
pr6prio Jcsus, a Virgcm Maria, os Ap6~tolos, as. comurudadcs
primirivas, os primciros cristaos. Nas p~ scgwntcs, ~oltare­ 1
mos a ouvir algumas destas notas, as maLS rmP?rtantcs, nao para
compara-las com a liturgia cristi, mas par~ deLXar quc ncla rcs- AS FONTES DA LITURGIA JUDAICA
soe seu viço origina!. Quem quer que se1a quc se abandonc a
cstas antigas notas, podera compr~d:r o quanto Jcsus e .a co-
munidade primitiva devcm a ela, prmcralmcnten o quanto, 1u.sta-
mente elas constitucm parte daquele vinculo cntre a csurpe
de Abraio 'e a lgreja neotestamentaria, que a dedaraçao Nostra
Aetate coloca dentro do mistério edesial.

O Novo Testamento, isto é, o conjunto das escrituras cris-


tis que surgiram na segunda metade do século I , dio abundante
testemunho da existencia da liturgia judaica. Mas se trata de um
testemunho mais indicativo do que descritivo. Fala-se que no tem-
po de Jesus havia determinadas formas de culto, mas nao em
que elas consistiam ncm oomo elas se dcsenrolavam. O leitor do
Novo Testamento se encontta na mesma situaçao de um muçul-
mano ou de um hindu que lesse, num jornal cat6lico, que o
papa celebrou a missa, administtou o batismo e participou das
matinas. O pobre leitor é informado sobre a existencia da missa,
do barismo e das matinas, mas nao sobre seu conteudo, sua es-
trutura, nem sobre sua dinamica simb6lica e ritual. Se ele quisesse
conhecer a realidade dos termos lidos e cscutados, ele teria urna
Unica possibilidade: aproveitar-se de cxperiencias e de fontes di-
versas, seja participando diretamentc da liturgia da qual ouviu
falar, ou recolhendo e lendo textos e ritos lirurgicos em uso.
A situaçao seria totalmente outra se o mesmo jornal cafsse nas
maos de um cristao: para ele, os termos missa, batismo, matinas,
lembram experiencias e realidades imediatas que pertencem ao seu
horizonte cultura! quotidiano e quc, por isso, nao precisam ser
explicadas.
Os ap6stolos e os primciros lcitores das Sagradas Escrituras
cnconttavam-se numa situaçao hcrmcneutica privilegiada: !endo
as palavras sinagoga, sabado, pascoa etc... cnttavam ·cm contato

18 19
0s estudiosos cristios jamais levaram a sério o fato de que O segundo se refere ao julgamento drasticamente negativo
a experiencia cristi e sobrctudo a liturgia estavam ligadas às es- dado sobre o culto hebraico.1 Pensando-se bem, ttata-se de um
truturas do culto hebraico. Se tomamos, por exemplo, alguns dos posicionamento 16gico: urna vez que o culto hebraico fica reduzido
tcxtos litUrgicos mais importantes dos Ultimos decenios,3 o esque- a esqueleto sem vida, nada resta senao decretar sua inutilidade
ma dc procedimento ao defrontar-se com o problema das origens e scu fim.
da liturgia cristi parcce ser o seguinte: Jesus Cristo é apontado
corno o iniciador da liturgia cristi, para alguns o iniciador abso-
luto tanto para o contcudo como para as formas; para outros, Jesus e a liturgia hebraica
o iniciador dos conteudos, mas nao das formas, que foram em·
prestadas da ttadiçio judaica. Esta Ultima opiniao é a que pre- Com isto niio se quer negar os aspcctos de originalidade e de
valccc junto à maioria dos estudiosos cristios. particularidade de Jesus diante do hebra1smo de seu tempo nem
Na realidade, nenhum pesquisador informado pensa atual- diante da pr6pria liturgia, de cuja riqueza ele se allirentava. <:o-
mente em encontrar as origens dos sacramentos cristios fora da mo todas as grandes personalidades, Jesus niio fica limitado aos
ttadiçao biblico-hebraica.4 Ela é justamente considerada como o componc:ntes ~spirituais e culturais de sua época. &ciste nde algo
"contexto" ou o "lugar de origem" da liturgia cristi. Mas tem-se que o distanoa de seus contemporaneos e que constitui sua gran-
a impressao que cste "contexto "5 e este "lugar de origem" ,6 dos deza moral. Mas aqui faz-se necessaria uma observaçao fonda-
quais se fala, sao accitos corno fondo provis6rio polemico e secun- menta!: para confirmar a grandeza de Jesus niio ha necessidade
dario, e nao corno humus positivo, vital e substancial. Esta im- de desqualificar e muito menos de caricaturar o juda1smo do seu
prcssio é comprovada por dois dados dificilmente contestaveis. te~po. ,Trata-se de urna at~tude indébita 9uc nao faz justiça nem
ao JUd~smo nem ao pr6prio Jesus, que fica reduzido, de acordo
O primeiro diz respeito à escassez de informaçé>c:s sobre o com a unagem de L. Bouyer, "a um meteoro caldo na Palestina" .9
culto intertestamentario do qual e de cuja espiritualidade Jesus
Trata-se de inverter este procedimento e de se acostumar a
se alimentou. Normalmente os autores citados se limitam a pou-
cas referencias terminol6gicas ( que no tempo de Jesus havia a a~a: a grandeza e originalidade de Jesus niio fora ou contra
sinagoga, que se celebrava a Pascoa, se observava o sabado etc ... ), o JU~aismo, mas com ele e dentro dele. O judafsmo nao é o
n~ga_uv? sobre o qual se faz sobressair o positivo de Jesus e do
mas sem a preocupaçao de dar informaçé>es sobre a riqueza de
cns~arusmo, mas é a "divina melodia" cuja beleza nos da a
conteudo das referidas celebraç0es. A conseqiiencia disto é que
medida da grandeza e da originalidade de· Jesus e da cristandade.
o leitor se encontra diante de reslduos esqueléticos ou de estru·
turas antiquadas sem qualquer significado.7 . Para. conseguir inverter seriamente este processo é neces-
sario ~b1tuar-se a :onsidera~ o judafsmo e suas mwtiplas mani-
festaç~ C?mo reahdade autonoma, e niio em /unçao de Cristo e
3 M. Righetti, Manuale di Storia liturgica, 4! voi., Ancora, Milio, 1950; do cr1st1arusmo. Isto é possfvel através do conhecimento respei-
A. G. Martimort (aos cuidados de) la chiesa in preghiera, Desclée, Roma -
Paris etc... , 1966; VV. AA., An4mnesis. 2. Panorama hist6rico geral da toso e atençio desinteressada.
Liturgia, Ed. Paulinas, Sao Paulo, 1987; Nuovo Dizionario di liturgia, org. A liturgia é o terreno privilegiado deste conbecimento e
por D. Sartore e A. M. Triacca, Paoline, Roma, 1983.
'4 Como acontecia ha alguns decanios: cf. p. ex., R. Reitz.enastein, Die desta a_?tude de ~s~ta. Nd.a, mais do que cm qualquer outra
Vorgeschichte der christlichen Tau/e, Lipsia-Berlim, 1920; L. Loisy, Les ~ressao .da tradiçao hebnuca, estao resumidos e reunidos os
mystlres pa1ens et le mystère chrétien, Paris, 1930. m~xau~fve~ tesouros bfulicos e espirituais, que desde o inkio até
5 B. Neunheuser •storia della liturgia", in Nuovo Dizionario di liturgia,
o.p cit., 1453. hoJe a mspuaram e alimentaram. Desta liturgia, dos seus simbolos
6 S. Marsi.li, in Anamnesis, op cit., 11 .
7 Por exemplo, S. Marsili, no volume acima indicado, em um par4grafo . 8 Sempre de acordo com o mesmo autor, que intitula o paragrafo se-
intitulado ·cristo e a liturgia hebraica• (p.12) falà do culto da sinagoga e guinte (J?P· 14-17) de "Anuncio do fim do culto hebraico•.
do s4bado (apenas '4 linhas) , mas sem dizer nem reconstituir o que estas 9 Cu.a do em M. Remaud, Chrétien.s devant lsrael serviteur de Dieu
fonnas de culto representavam realmente para a tradiçio hebraica. Cerf, Pans, 1983, 28. '

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com realidades conhecidas e familiares, cuja beleza e complcxida- vcmos, portanto rccorrer a outras fontcs quc sao mais direta e
de elcs pcrccbiam, mas também as contradiç~s e ambigiii~ades,_ a explicitamente bebraicas. Com isso ja estamos indicando a estru-
riqueza simb6lica e cspiritual, bem corno os nscos de marupulaçao tura deste capftulo: num primeiro momento lcmbraremos algu-
e funcionalidade. I! por essa razio que, às vezes, os redatores do mas das muitas passagcns do Novo Testamento que atestam a
Novo Testamento divergcm ao confrontar os ritos da liturgia be- existencia de determinadas formas da liturgia hebraica, e em se-
braica. ~ uma polemica dura, às vezes violenta, mas ttata-se sem· guida faremos alusao às fontcs principais com as quais "rechea-
pre de uma polemica que nasce de quem conbece "por dentro " mos" e comparamos com as referencias às cscrituras cristiis.
a liturgia dos Santos Padres, e que justamente por ser conhecida
e amada, podc ser criticada, a fim de que ela seja experimentada na
sua pureza, e nio para ser renegada, corno a tracliçio profética
tinba ensinado desde o principio. INDICAçOES DO NOVO TEST AMENTO
O leitor moderno das escrituras cristas (e nao s6 o de hojc,
mas também o dos séculos anteriores) encontra-se numa posiçio
hermcneutica oposta: de desconforto e de risco. Dc desconforto: O templo e a sinagoga
porque entra em contato com termos totalmente estranhos ao seu
horizonte cultura!; de risco: porque é facilmente tentado a dar O Novo Testamento fala cerca dc 70 vczcs do templo. Al-
aos termos hebraicos conteudos a eles estranbos, que siio mais guns exemplos: Mt 21,12: "Entao Jesus entrou no templo"; Le
fruto de polemica do que de pesquisa honesta. Provavelmente é 22,53: "Eu estava convosco todos os dias no Templo"; Jo 7,14:
este o mecanismo que explica o seguinte fato curioso: os leitorcs "Jesus subiu ao Templo e começou a ensinar" ; At 3,1: "Pedro
cristiios siio mais indinados a considerar as Escrituras do Novo e Joao subiam ao Templo"; Mc 14,58: "N6s mesmos o ouvimos
Testamento corno anti-hebraicas do que os leitores bebreus. O li- dizer: 'Eu destruirei este Templo fcito por maos humanas e, de-
vro de R. Aron, Così pregava I ebreu Gesù ( traduzido recente- pois de tres dias, edificarci um outro, nao feito por maos buma-
mente para o italiano ) 1 é exemplo disto. Enquanto a maior parte nas' "; lCor 3,16: "Nao sabeis que sois um templo de Deus ... ?".
dos exegetas cristiios gosta de sublinbar, nas fontes neotestamcn- Destes exemplos fica claro o uso prevalentemente indicativo
tarias, o comportamento polemico de Jesus diante do culto hebraico, que o Novo Testamento faz do templo: indica-nos a realidade do
que fica superado pelo culto cristao, Aron, cientista judcu, cn- templo, sem nos dizer o que acontccia nele. Ao lado do uso in-
contra nelas uma espiritualidadc rica e profunda, simples e alcgrc, dicativo convém registrar também um uso metaf6rico/ reinterpre-
sem a qual seria impossfvcl comprecnder tanto Jesus, corno a ex- tativo, corno em Mc 14,58, onde se contrapc3c o templo materia!
periencia dc seus seguidores. ao templo "pessoal", quc é o corpo dc Jesus; e corno cm lCor
Este cxemplo é significativo. Ele demonstra dc maneira evi- 3,16, onde se contrapc3c o templo materia! à pcssoa dos cris-
dente, que os tcxtos do Novo Testamento podem ser lidos com tiios.
mentalidadc difcrente: em sintonia ou em contracliçio com as Também no quc toca à sinagoga, o Novo Testamento nos
categorias hcbraicas. oferece umas setenta passagcns, quase todas de caratcr indicativo.
No primeiro caso, os textos revelam, com surprcsa, novos Mt 4,23: "Jesus percorri.a toda a Galiléia, cnsinando cm suas
sentidos iluminados e recònditos; no segundo, ao contrario, eles sinagogas"; Mt 12,35: "Partindo dali, cntrou na sinagoga de-
se reduzcm a palavras sem vida, utilizadas polemicamente, cm les"; Mt 13,54: "Pos-sc a cnsinar as pcssoas quc estavam na sina-
vcz dc escutadas respcitosamente. goga"; Mc 1,21 : "Logo no sabado, foram à sinagoga"; Mc 6 .2:
Para nio comprccndcr as indicaçOes lirurgicas aprcsentadas "Comcçou de a ensinar na sinagoga"; Jo 6,59: "Assim falou ele,
pela literatura neotestamentaria dc modo estreito e limitado, dc- cnsinando em urna sinagoga dc Cafarnaum "; At 9 ,20: " ( Paulo)
comcçou a anunciar Jesus nas sinagogas"; At 13,5 : "(Paulo e
l Marietti, Cuale Monferrat.o, 1982. Barnabé) puscram-sc a anunciar a palavra dc Dcus (logon tau
20 21
Nestas passagens citadas, aparece o duplo uso do termo si-
T heou) nas sinagogas dos judeus". Mas o testemunho mais rico nagoga nas escrituras cristis: em parte é indicativo (corno no exem-
do Novo Testamento sobre a sinagoga encontra-se em Le 4,15-22 : plo: "Jesus foi à sinagog~" ) e em parte descritivo. Este Ultimo
"(Jcsus) cnsinava nas sinagogas e era louvado por todos. uso esclarece, sobretudo, um aspecto: a sinagoga é lugar de es-
Ele foi a Nazaré, onde fora cnado, e, segundo seu costume, tudo e de aprendizagem : dai o fato que J esus ia à sinagoga "para
cntrou em dia de sabado na sinagoga e levantou-se para ler. ensinar" , didaskon (d. Mt 4,23; Mt 13,54; Mc 1,21 ; Mc 6 ,2 ;
Foi-lhc cntregue o livro do profeta I safas; abrindo-o, cn- Jo 6,59 etc ... ) . A sinagoga, além de lugar de reuniao e de oraçao,
controu o lugar onde esta escrito: é lugar de ensino. Assiro aprendemos a ler e interpretar as escri-
'O Espirito do Senhor esta sobre mi.m, turas, orientados por Jesus, corno a vontade de Deus.
porque ele me ungiu
para cvangelizar os pobres;
enviou-me para proclamar a remissio o sabado
aos presos
e aos cegos a rccuperaçio da vista, Outra série abundantc dc textos (cerca de 70 ) faz referen-
para restituir a liberdade aos oprimidos cia ao sabado, dia festivo por excelencia da liturgia judaica. O uso
e para proclamar um ano de graça deste termo esta quase sempre ligado ao contexto sinagoga, e tem
do Senhor' ( Is 61,1-2). a maior parte das vezes funçao mais polemica do que descritiva.
Enrolou o livro, entregou-o ao servente e sentou-se. T?<1os Alguns exemplos : Mt 12,ls.: "Por esse tempo, Jesus passou,
na sinagoga olhavam-no, atentos. Entao começou a. dizer: num sabado, pelas plantaç5es. Os seus disdpulos, que estavam
'Hoje realizou-se essa Escritura que acabastes de ouv1r'. To- com fome, puseram-se a colher espigas e a come-las . Os fariseus,
dos testemunhavam a seu respeito, e espantavam-se das pala- vendo isso, disseram : 'Olha s6! Os teus disdpulos a fazerem o
vras cheias de graça que safam de sua boca. E d.iziam: 'Nao que nao é licito fazer num sabado' "; Mc 1,21: "Entraram em
é o filho de }osé?' ". Cafarnaum e, logo no sabado, foram à sinagoga. E ali ele ensina-
va "; Mc 3,4-5: "E perguntou: ·~ permitido, no dia de sabado,
Este tcxto é de particular impordncia porque é a fonte mais fazer o bem ou fazer o mal? Salvar urna vida ou matar?' Eles,
antiga e quc contém mais dados sobre a sinagoga judaica. Elc porém, se calaram. Repassando entao sobre eles um olhar de in-
informa de modo particular: dignaçao, e entristecido pela dureza do seu coraçao, disse ao ho-
- sobre a existencia de urna sinagoga em Nazaré; mem: 'Estende a mao'. Ele a estendeu, e a mao voltou ao estado
- sobrc o dia cspecial (sabado), no qual havia reuni5cs na si- normal"; Mc 2 ,27: "Entio lbes disse : 'O sabado foi fei to para
nagoga; o homem, e nio o homem para o sabado; de modo que o Filho
sobre o "direito" que cada participante tinha de lcr a Tora do Homem é senhor até do sabado' ".
(d. v. 16: "e levantou-se para ler "); Como dissemos, estes textos ( apenas alguns entre tantos ou-
- sobrc determinado trecho profético que tinha o nome de tros)demonstram o uso prevalentemente polemico da terminologia
ha/tarah, quc foi lido naqude sabado: Is 61 ,1-2; sabatica. Entretanto nao devemos pensar que este uso coincida
- sobre o modo dc usar e conservar o texto da Tora em rolos com a nao aceitaçio global do sabado. Como toda outra realidadc
de pergaminho, quc, dc acordo com o tamanho, eram abertos e ritual, o sabado corria o risco dc perder o seu dinamismo espiri-
fechados com a ajuda de servos; tual, scndo praticad~ apenas nos seus aspectos periféricos e for-
- sobre o costume de se hzerem comentarios explicativos ap6s mais. ~ contra esta mistificaçao, e nio contra o sabado enquanto
a leitura: "Hoje rcalizou-sc essa Escritura quc acabastcs dc tal, que se dirige a polemica de Jesus e da primeira tradiçio cris-
ouvir" (v. 21 ); ti. Pensando bem, trata-se daqucla dcn6ncia profética tao cara
sobre a reaçio positiva dos presentc:S, que ficaram admirados à grande cxperi~ncia bfblica antcs e dcpois do cxllio, cuja finali-
com as palavras dc Jcsus.
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dadc nao era abolir o ritual, mas, ao contrario, recuperar sua dadc das afirmaçOes dc Jcsus, mas melhor interpreta-las e dar-lhcs
autcnticidade. Se isto é vcrdade, a luta de Jcsus contra o saba~o, colorido mais exato.
cm vez dc ser intcrprctada como anti-hebraf~mo deve ser vista
O segundo motivo quc mostra a grande importincia quc a
como fidclidadc à sua mais autentica substincta. pascoa teve na comunidade cristi é a sua utilizaçiio metaf6rica:
Cristo é o novo cordciro pascal, os c.r istios sio os vcrdadciros
"az.imos ", ma~~ot ( cf. 1Cor 5,7 ), nos quais nio ha mais o "fer-
Pascoa e pentecostes mento" do pecado, mas a transparencia da vcrdadc. A pascoa ju-
daica - à qual os textos do Novo Testamento fazcm referencia
As fontcs ncotcstamentarias falam da pascoa cerca ~e trinta alusiva, porque pressup0cm o conhecimcnto de sua consistencia
vezcs, e quasc sempre num context? indi~ati~o e alus1vo. Por - é o to pos mais importante para comprcender a expcriencia
cxemplo Mt 26,2: "Sabeis quc daqu1 a do1s dias s~r~ a P..ascoa, cristi. Ela é o contcxto e o tcxto das origens cristiis.
e 0 Filho do Homcm sera entregue para ser crucific~do ; Mt Sobrc pentecostes ( literalmcntc qiiinquagésimo, porque a fes-
26,17: "No primeiro dia dos azimos, os disclpulos aproxunaram-se ta era celebrada 50 dias depois da pascoa) o Novo Testamento
dc Jcsus dizcndo: 'Onde queres que te prepare!llos p~r~ corner nos oferece pouquissimos testemunhos: At 20,16: "Paulo, efeti-
a Pascoa?' "; lCor 5,7-8: "Pois nossa Pascoa, Cristo, fo1 unolada . vamente havia decidido passar ao largo de :efeso, para nio se
Celcbrcmos, portanto, a festa, nio com o velho fermento de ma- retardar na Asia. Apressava-se a fim de estar, se poss{vel, no dia
lkia e pervcrsidade, mas com paes azimos: na pureza e na ver- de pentecostes cm Jerusalém"; lCor 16,8: "Entrementes, per-
dade". Vcja outras indicaç0es em Le 22,1; Le 22,14-18; Jo 2, manecerei em :efeso até pentecostes ". Apesar dos poucos tcste-
13 etc. munhos, a festa de pentecostes toma, na Igreja nascente uma im-
Sio poucas as informaç0es quc cstes textos nos ofcreccm portincia particular, porque ela coinddiu com a efusio do Espfri-
sobrc o verdadeiro descnrolar da pascoa. Sao apenas esboçados o to Santo, de acordo com o grande quadro que Lucas descrcvc
nome duplo da festa ( Pascoa ou azi~os~, um certo c~paço de nos Atos dos Ap6stolos (2,1-13 ).
tempo para prepara-la, alguns gestos ntuats (tornar o pao, aben- Também sobre pcntecostcs, como sobrc as outras festas, o
çoar, parti-lo, distribui-1<;>: cf. Le 2,2,14-1.8 ). Isto demonstra tam- Novo Testamento nio nos ofcrece informaçOes circunstanciais, li-
bém a grande importi.ocra quc a pascoa .tinha para Jcsus e para as mitando-se a registrar sua cxistencia, a accntuar sua importincia
comunidades cristis. Sio ao menos do1s mottvos que nos levam para a comunidade nascente, quc a cdcbra como festa do Espfrito
a isto: primeiro porquc é dentro do contcx_tc~ pascal. que Jesus Santo, por excelencia. Mas por que esta festa judaica - a mcnos
"instituiu" a Eucaristia de acordo com a tradiçao unarume do No- popular dentre as festas da peregrinaçiio - acabou tornando-se
vo Testamento: "Enqu~nto comiam, ele tomou um pio ... e distri- tao centrai para o cristianismo, de modo a atribuir-se a eia a for-
buiu-lhes dizcndo : 'Tornai isto é o meu corpo' ... " (d. Mc 14, maçiio da comunidade cristi? O que aconteccu para ela vir a ser
22-25 e par.). Apesar da s~a simplicidade, ex~getas e cs~~stas o "lugarn privilegiado do Espfrito Santo? Em que sentido é nela
em liturgia sabcm o quanto é difkil reconstrutr o real s1gnifrcado que nasce a lgreja corno comunidadc capaz de amor e de comuni-
destas palavras. O que tera acontecido durante a Ultima ccia. dc caçao, além das diversas &ontciras nacionais e culturais? As res-
Jesus? Em quc momento Jesus inseriu a sua ordc:m-memorial? postas a estas perguntas nio as encontramos nas fontes ncotesta-
O que ele quis comunicar realmente? E o quc os discfpulos, que mentarias. :e necessario recorrcr a outros documcntos mediante
o rodcavam, conseguiram entender? Para responder a cstas per- os quais se reconstr6i a evoluçio desta festa no tempo de Jesus.
guntas, apcnas as fontcs do Novo Testamento nio siio suficien- Somente assim teremos condiç0es dc comprecndcr a açio reinter-
tcs. Muita coisa poderia ser csclarecida através dc outras fontcs pretativa da comunidade cristi e a sua transformaçio no momento
que nos diio a conhccer a es~~a ~ o desenrolar da ccia p~sca!. da cfusio do Espirito Santo.
Rccorrer a cstas fontes nio significa ignorar nem negar a originali-

24 25
As ttndas ou os tabernaculos o começo". Com csta festa os judcus rccordavam o dia da purifi-
caçio e da nova consagraçio do templo dc Jerusalém, que tcvc
O evangelista Joio nos fala dela sob o nome dc slunopegia lugar cm 164 a.C., depois da inaudita profanaçiio dc Antfoco
(do grcgo sleenen, tenda, e pegnymi, fixar). t a assim chamada Epifinio, que no ano 167 a.C. tinha ofcrccido nele sacriffcios
festa das cabanas ou dos tabemaculos, na qual, cotte outtas coi- em honra dc Zeus.
sas, todo judcu piantava uma tenda na terra, para lcmbrar os ~as Também desta festividade o Novo Testamento nao nos di
dc pcrcgrinaçio dos scus pais no deserto. O quarto evangelista informaçOes sobrc seu contcudo. Daf a ncccssidade dc voltar-se
dcixa-nos dois testcmunhos. O primeiro em Jo 7,2: "Aproxima- a ?u~as fo~t~, quc cstranhamcntc sio quasc sempre omitidas e
va-se a festa dos judcus, chamada das tendas ... "; a segunda cm cu1a unportanoa nao é ncm scquer imaginavel. Trata-se da festa
Jo 7,37-39: "No Ultimo dia da festa, que é o mais solene (te do yom kippur, a festa da cxpiaçio, chamada tamhém de "Dia
mega/e tes eortes), Jesus, de pé, disse em alta voz: 'Se alguém do_ jejum" ou "O Dia por cxcelencia". Os Atos dos Ap6stolos
tem sede, venha a mim e beba. Quem ere em mim , corno diz a detxam-nos um testemunho cxplfcito dcla: "Havia decorrido muito
Escritura, do seu scio jorrarao rios de agua viva'. Elc falava do t~po,_ _; a ~vegaçao se tornava perigosa, porque até mesmo o
Esp(rito quc deviam receber os que nele crcsscm; pois niio havia Je1um Ja hav1a passado. Paulo os advcrtia: ... " ( At 27 ,9). Ainda
ainda Espfrito, porque J esus nao fora ainda glorificado". que as escrituras cris~s _em ncnhum outro lugar citem expressa-
Dcstcs testemunhos joaninos colhemos as seguintes informa- mcnte a festa da cxp1açao, - com exceçiio à carta aos Hebreus
ç5es: que i:o cap. 9,1-28 faz uma reinterpretaçio cristol6gica do se~
- o nome duplo da festa: "cabanas" ou "a festa por antono- conteudo - parece, todavia, que seu significado teol6gico im-
masia". Dc acordo com o testemunho rablnico c mishnaico, ~regnou profundamentc a pregaçao de Jesus. Marcos (e os sin6-
a festa das cabanas era a mais fantasiosa, a mais popular e a ucos em geral) resume assim a atividade cvangclizadora dc Cris-
mais alegre; to:"... veio Jesus para a Galiléia proclamando o Evangelho dc
- a reinterpretaçao que Jesus faz de alguns de seus elemcntos Deus: ·~ tempo esta realizado c o Rcino de Dcus esta pr6ximo.
(a libaçao da agua) sinal da efusao do Espfrito Santo: "Elc Converte~-v<;>s ~ crede no Evangelho'" (Mc 1,14-15). Um dos
falava do Espfrito que deviam receber os que nele cressem" temas p~mopais da pregaçao dc Jesus era a penitencia/metanoia
(v. 39); (metanozete). Estes ~e~?s sio a ttaduçio das palavras hcbraicas
a provavel e lenta superposiçao da festa dos tabernaculos com shuv/t_eshuvah que signilicam rctorno eque constitucm 0 centro e
a de pentecostes. Uma vez que esta festa era a do Espfrito o re~~o ~a festa ~o ~om. kippur. Neste dia o povo de Israel toma
por excelencia, ela acabou por absorver a pr6pria festa dos co~encra da s~ infideli~de ao projcto de Dcus e faz a teshuvah:
tabcrnaculos. Isto poderia explicar porque, das tres grandcs decide voltar atras no caminho do pccado. E impossfvel comprccn-
festas da liturgia judaica ( pascoa, pentecostes e tabernaculos), ~er o. brado dc Jesus à metanoia se nio se conhcccm os tcxtos da
esta Ultima desapareceu da tradiçio cristi. litur~ he?raica desta festividadc. Jesus alimcntou-se delcs e ne-
les se mspirou durante sua pcrcgrinaçio missionaria de aldeia em
aldeia da Galiléia e da Judéia.
A festa da dedicaçao e do yom k:ippur
O Novo Testamento também nos da testemunho da cxisten- A oraçao de berakah
cia de uma outra festa judaica: "Houve entao a festa da dedicaçao,
em Jerusalém. Era inverno . Jesus andava pelo Templo, sob o p6r- . A_berakah ( quc nas cscrituras cristas é traduzida como eu-
rico de Salomao" (Jo 10,22). O termo grego usado para dedi- cha:1stta ou eulogia e· em latim como benedictio ou gratiarum
caçao é egkainia, que em latim se translitera por encaenia. Etimo- a.etto), ~ra 7 é a oraçi~ por excelencia da liturgia e da espiritua-
logicamente a palavra significa "renovar~ "fazer tudo novo, desdc lidade Judaica. A oraçao por excclencia: que fixa o sentido e 0

26 27
contexto de toda oraçio, o dinamismo e horizonte de toda li- contrado cm Mc 8,6-7). O mesmo se diga de Mc 10,16, onde
turgia e de todas as festas. Consiste cm uma atitude que é, ao Jesus torna as crianças nos braços "bendizendo\ isto é, recitando
mesmo tempo, f6rmula de admiraçiio, louvor, agradecimento e uma berakah, e de Jo 11,41, quando Jesus eleva urna berakah
reconhedmento da benevolencia gratuita de Deus que ruida. de ao Pai pela ressurreiçio de Uzaro: "Jesus ergueu os olhos para o
seus filhos e os alegra com os frutos da terra e com toda sorte alto e disse: 'Pai, dou-te graças porque me ouviste. Eu sabia
de bens. A expressao da berakah, que com o correr do tempo que sempre me ouves .. .' "
tornou-se técnica e padronizada é a seguinte: "SC bendito, Senhor Se passamos dos Evangelhos aos outros textos do Novo Tes-
nosso Deus ", com a qual se inicia e se termina qualquer oraçao. tamento, também aqui encontramos muitos testemunhos. Sirva
As vezes a forma passiva ("se bendito, Senhor nosso Deus") de exemplo a passagem de Q 3,17: "E tudo (pan) que fizerdes
pode ser substitu{da pela ativa: "Eu te bendigo, Senhor nosso de palavra ou açao, tudo (panta) fazei cm nome do Senhor Jesus,
Deus". por ele dando graças a Deus, o Pai,,. De acordo com a tradiçio
O Novo Testamento tem muitos testemunhos de berakot, rabfnica o israelita piedoso devia recitar mais de 100 berakot
alguns explfcitos, e outros - a maior parte - implfcitos. Entre por dia. No convite de S. Paulo, "a fazer tudo,, rendendo graças,
os màis conhecidos encontramos o de Jesus, no qual ele da graças nio se pode deixar de ver esta sensibilidade. Diante de todas as
ao Pai por ter escolhido "os pequeninos" corno destinatarios de coisas (panta), sem exceçiio, tanto o judeu corno o cristio devem
sua revelaçao: pronunciar uma berakah. A Unica diferença é que o cristio deve
"Eu te louvo, 6 Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocul- faze-la "cm nome do Senhor Jesus ,,, ou "através dele ,,, isto é,
taste estas coisas aos sabios e aos doutores e as revelaste aos com a mesma intençio e a mesma densidade de Jesus. Igualmente
pequeninos. Sim, Pai, porque assim foi do teu agrado. Tudo significativo é o texto de Ef 5 ,18-20: ,, ... buscai a plenitude do
me foi entregue por meu Pai, e ninguém conhece o Filho Espirito. Falai uns aos outros com salmos e hinos e cinticos es-
senao o Pai, e. ninguém conhece o Pai senao o Filho e aquele pirituais, cantando e louvando ao Senhor cm vosso coraçio, sem-
a quem o Filho o quiser revelar" (Mt 11,25-27; d. também pre e por tudo dando graças ( eucharistountes pantote hyper pan-
Le 10,21-22) . ton) a Deus, o Pai, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo".
O cristio deve rezar berakot cm todo tempo (pantote) e por to-
Quanto às berakot implicitas, a mais célebre é a relatada das as coisas (hyper panton). ·
unanimemente pelos sin6ticos, dentro da narraçiio da chamada Além da importincia da berakah, as epfstolas de S. Paulo
"Instituiçio da Eucaristia": indicam também os motivos que lhe deram origem. Estes se resu-
"Enquanto comiam, ele tomou um pio, e tendo. recitado a mem em dois : a realidade das novas comunidades cristas e, so-
bençio, partiu-o e distribuiu-lhes, dizendo: 'Tornai, isto é o bretudo, o evento Jesus, proclamado e reconhecido corno Messias
meu corpo'. Depois, tomou um calice e, dando graças, deu- e como Filho de Deus. Se é necessario fazer uma berakah diante
lhes, e todos dele beberam. E disse-lhes: 'Isto é o meu san- de tod~s as coisas ~ defronte a qualquer evento, ela nio pode
gue, o sangue da aliança, que é derramado cm favor de mui- faltar diante dos do1s grandes eventos do cristianismo nascente: o
tos',, (Mc 14,22-24 ). pulular de cent~nas de comunidades, e a experiencia, de Jesus
Es.te trecho nos da testemunho da existencia de duas berakot, morto e ressusctado. Cf. por exemplo: lCor 1 4-9· Cl 1 3-5 e
principalmente Ef 1,3-14. ' ' '
uma sobre o pao e outra sobre o cilice, mas niio nos diz o seu
conteudo. Também aqui, corno nos outros casos, as fontes neo-
testamentarias nio sio suficientes.
Shema' Yisra'el e a tefillah
Urna outra passagem comprovando que Jesus fazia uso da
berakah é Mc 6,41, onde é inegavel a influencia eucaristica: "To-
mando os cinco pies e os dois peixes, elevou ele os olhos ao . O shema' Yisra'el é a confissao de fé mais importante do povo
céu, recitou a bençio, partiu os pies ... " ( este mesmo texto é en- Judeu, composta de tres bençios e de alguns versfculos biblicos.
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Entre estes se distingue Dt 6,4-9, o texto com o qual Jcsus responde à estrutura ideai da oraçio hebraica, a mesma quc cn-
responde ao escriba que lhe pergunta: "Qual é o primciro dc contramos, p. ex., nas oraçOes bfblicas, como a de Davi ( lCr
todos os mandamentos?" (Mc 12,28 e paralelos): "Jesus res- 29 ,10-20); urna berakah inicial, petiçé>es centrais e urna berakah
pondeu: 'O primeiro é: Ouve, 6 Israel, o Senhor nosso Deus resumida no final. Por este motivo é improvavel que o Pai-nosso
é o Unico Senhor, e amaras o Senbor teu Deus de todo o coraçio, termine com as palavras: "livrai-nos do mal". Parece mais fiel ao
de toda a alma, de todo o entendimento, e com todas as tuas texto originai a conclusao apresentada em alguns c6dices de Ma-
forças'" (Mc 12,29-30). teus que termina assim: "Porque teu é o reino, o poder e a
Além do shema' Ysra'el, o Novo Testamento comprova tam- gloria por todos os séculos dos séculos. Amém".
bém com muita probabilidade a existencia da tefillah, a oraçao ~ passarmos da estrutura à analise separada de cada parte
por excelencia da liturgia das sinagogas, conhecida também com do Pai-nosso, os laços com a liturgia hebraica tornam-se ainda
outros dois nomes: shemoneh 'e5reh ou 'amidah. Ela se comp0e mais evidentes:
de urna série de bençaos, sendo que as mais antigas remontam • Pai nosso: o qualificativo de Deus como pai é urna carac-
ao século II a.C. e eram recitadas em todas as sinagogas ja no ter~stica da oraçao hebraica. Este uso é comprovado, antes de
tempo de Jesus. Encontramos também nos Evangelhos traços de mais nada, pela Bfblia. Por exemplo em Dt 32,6 e em Is 63 ,
algumas destas bençaos, que compunham e comp0em a tefìllah. 16 Deus é chamado de pai de Israel e os israelitas seus filhos.
A primeira destas bençaos soa assiro: "Se bendito, Senhor Mas este uso é comprovac:l!o sobretudo na liturgia hebraica. De
nosso Deus, e Deus de nossos pais, Deus de Abraao, Deus de fato, no 'amidah ( ou Dezoito bençllos) aparece duas vezes: "Con-
Isaac e Deus de Jac6, Deus grande e forte e venerando ... " A se- verte-nos, pai nosso, à tua lei e reconduz-r:os nosso rei ao teu
gunda reza assim: "Tu és poderoso para sempre, Senhor que serviço ... " ( 5' bença_?); ~ Perdoa-nos pai no~so, pois Pecamos,
ressuscitas os mortos, que és grande ao conceder-nos a salvaçao ... absolve-nos, nosso re1, pois erramos" ( 6• bençao). Encontramos
fazes ressurgir os mortos com grande miseric6rdia... Quem é se- a expressao também na 2• bençao que precede o shema': "Pai
melhante a ti, 6 rei, que fazes morrer e ressurgir ... Tu és fiel ao nosso, ~osso :ei, por amor de nossos pais que confiavam em ti e
fazer ressurgir os mortos. Tu és bendito, Senhor, que ressuscitas aos quats ens10aste as regras de vida, se clemente e ensina tam-
os mortos". bém a n6s. Pai nosso, pai misericordioso, tem piedade de nos ...
É com a teologia destas duas bençaos, que Jesus responde Urna vez que és Deus, nosso pai, nosso Deus ... ". O atributo de
aos saduceus, quando foram até ele, provocando-o sobre a res- p~ é tam?ém muit.o usado na liturgia de Ano Novo e no yom
surreiçao dos mortos. "Quanto aos mortos que hao de ressurgir, kzppur (~;a ~a exp1açao). Invocaç5es tais- como: "Responde-nos,
nao lestes no livro de Moisés, no trecho sobre a sarça, como ~os~~ paz ; perdoa-nos, nosso pai 11 etc. sao comuns. O t~rmo
Deus lhe disse: 'Eu sou o Deus de Abraao, o Deus de Isaac e Pa1 ~centu! a ~é do pov~ na. misericordia divina, enquanto 0
o Deus de Jac6? Ora, ele nao é Deus de mortos, mas sim de pJur~ nosso salienta a solidar1edade da assembléia reunida pela
vivos' 11 (Mc 12,26-27; d. Le 20,27-40; Mt 22,23-33 ). oraçao. Se estas semelban~as sao levadas a sério, a oposiçao que
te6logos e exegetas ?ost~rta~ de encontrar entre a concepçao do
Deus de Jesu~ e~ a 1uda1ca fica, ao menos, problematica. Desde
O "Pai-nosso" quand? Jerem1as · defendeu a tese do 'abba' como caracterlstica
ex~lus1va de Jesus, esta oposiçao tornou-se ainda mais radical.
Também o "Pai-nosso" - do qual conservamos duas vcrs6es, Vejamos, p. ex., o que um exegeta escreve: "No aramaico de
a. de Lu~as 1.1,2-4 ~ a de Mateus 6,9-13 - sofre grande influen- Jesus a palavra pai devia ser expressa pelo termo 'abba', papai,
c1~. da liturgia da smagoga. Cont.radizendo certa tendencia apolo- term? esca~1aloso e quase blasfemo, quando aplicado a Deus por
ge~ca que se comp!az em sublinhar a radical originalidade do um Judeu . No entanto, eis como vem expresso num texto
P~1-nosso, u.ma analise atenta desta oraçao revela suas profundas
raizes hebraicas. Antes de tudo a estrutura do Pai-nosso. Ela cor- 2 J. Jeremias, Paro/es de /ésus. Le sermon sur la montagne Le Notr~
Père, Cerf, Paris, 1965, 83-87. ·
3 G. Ravasi, Gesù una buona notizia, SEI, Turim, 1982, 45.
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-
catequético: "Os judeus conheciam a Deus de modo ainda incom- mas principalmente o doro de sua vida "sacrificada" cm favor
pleto e impedeito: Deus era para eles o Onipotente, o Terdvel, de todos (cf. Mt 26,24; Le 22 ,19 ). Com a sua "morte na cruz",
aquele que condena e castiga. Foi ]esus que nos ensinou a chamar em obediencia à vontade do Fai, Jesus "santificou o Nome".
a Deus de "pai", ou ainda melhor de 'abba' ".4 Ora, nao levan- Da morte de Jesus na cruz, aos milhares de judeus que en-
do em conta que também a tradiçao hebraica conhece o termo traram nas camaras de gas, glorificando e invocando a Deus,
'abba' referindo-se a Deus (Talmud Bah. Taanit 23b), a diferen- corre o mesmo fio condutor: tanto um corno os outros "santifi-
ça entre 'ab (pai) e 'abba' (papai) niio deve ser exagerada. caram o Nome".
Mesmo admitindo que o uso de 'abba' pode ser principalmente • Venha o teu reino: encontramos também estas palavras no
cristao, isto no entanto nao se contrap<>e ao uso de 'ab, mas sig- qaddish: "Que ele possa .estabelecer seu reino durante vossa vida
nifica apenas uma acentuaçao mais delicada. e durante vossos dias e durante o tempo da casa de lsrael ... ".
• Que estas no céu: também esta expressao é frequente na Como se ve, trata-se de um reino que nao diz respeito ao que se
liturgia hebraica. Encontra-se na oraçao da manha: "Tu és o Se- encontra além da hist6ria ( meta-hist6ria), mas a esta hist6ria.
nhor, nosso Deus, que estas no céu e na terra ". No tratado 'Avot, O reino de Deus deve estabelecer-se neste mundo e nao somente
o mais importante e antigo tratado da Mishnah le-se: "Se forte no outro. Invocando o reino de Deus, Jesus pensa de certo modo
e cumpre a vontade de teu pai que esta no céu" ( 'Avot 5 ,23). num mundo à medida dos homens, no qual se possa viver numa
É 6bvio que a expressao tem valor metaf6rico e nao espacial. paz rica em obras e fraterna.
Ela exprime a transcendencia de Deus, seu ser totalmente dife- • Seja feita a tua vontade: esta expressao é encontrada em
rente cm relaçao ao homem. Se o termo "pai" expressa a proximi- !Mc 3,59-60: "Porquanto é melhor para n6s morrer em batalha
dade de Deus ao homem, a expressao "que estas no céu" lembra do que ter de contemplar as desgraças do nosso povo e do lugar
a sua irredutlvel diversidade. santo. Aquela, porém, que for a vontade no céu, ele a realizara".
• Santificado se;a o leu nome: a expressao evoca muito de A mesma atitude de abandono à vontade de Deus esta expressa
perto o qaddish, urna das oraçOes hebraicas mais antigas, com a na oraçiio que o judeu faz quando sente a aproximaçiio da morte:
qual se terminava a lei tura e o estudo da T ora, e mais tarde "Que a tua vontade seja a de curar-me, mas se minha morte esta
a cerimonia na sinagoga: "Seja engrandecido e santificado o seu decretada por ti, eu a aceitarei, com amor, de tuas maos".
grande Nome, no mundo que ele criou de acordo com sua von- • O pao nosso de cada dia da-nos hoje: enquanto as invo-
tade ". Além do qaddish, a expressao é encontrada também na caç6es anteriores tinham Deus corno objeto, as seguintes tem co-
qedushah, a terceira bençao da tefillah, na qual entre outras coi- rno objeto as necessidades do bomem. O pedido do "pao" faz
sas se le: "Fica conosco, seja engrandecido e santificado o teu parte da nona benç.ao da tefillah: "Abençoa, Senhor nosso Deus
Nome na terra, corno é santHicado no mais alto dos céus ". O pa- este ano, abençoa toda espécie de colbeita e da bençao a toda a
ralelo entre estes textos da liturgia hebraica e o Pai-nosso nos sur- terr.a. Sac~a o mundo com teus favores e i::oncede bençao e pros-
f reen?~ ainda mais se apro~ndarmos o significado da expressiio: per1dade as nossas obras. Abençoa nossos anos, para que sejam
santificar o Nome de Deus . "De que modo os homens podem anos felizes. se bendito, tu, Senhor que abençoas os anos ". Al-
santificar o nome de Deus? ", perguntam os mestres. E dao a guns comentadores gostavam de ver nesta bençao judaica urna
r~sP?sta: com a palavra, mas sobretudo com a vida. Quem fica alusao ao mana do deserto. Com razao, alguns Padres da lgreja
fiel a vontade de Deus, em detrimento da sua pr6pria, "santifica gostavam de ver no "piio cotidiano" do Pai-nosso urna alusiio
o seu Nome". A verdadeira "santificaçao do Nome" (qiddush à Eucaristia. Nao apenas textualmente, mas também hermeneuti-
ha-shem), o dom da pr6pria vida, é o martlrio. Assim comprecn- camente, o Pai-nosso esta ligado ao contexto da liturgia bebraica.
demos melhor a que co1sa Jesus fez alusao, quando diz "santifi- Além da alusao ao mana, poderia também lançar urna luz sobre
cado seja o teu Nome" Estas palavras exprimem toda sua fé, o diffcil termo ton epiousion: corno o mana devia ser recolbido
"de acor~o ~m o que cada uro comia n (Ex 16,21 ) porque o que
4 Il Regno di Dio ~ fra noi, Jaca Book, Milio, s~ ed., 1982. sobrava cr1ava vermes e apodrecia" (cf. Ex. 16,20), assim o

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2 · llr.el cm ormçlo
AS FONTES DA MISHNAH
pio que pedimos a Deus é o suficiente para um dia depois . do
outro e faz evitar a preocupaçio e o comércio. O mesmo conceito,
n6s o encontramos expresso em Pr 30,8: " ...nio me des nem ri- O Novo Testamento nos oferece muitlssimos comprovantes
queza nem pobreza, concede-me o meu pedaço de pio". da liturgia hebraica. Mas, corno ob~e.rvamos, trata-se mais de tes-
• Perdoa-nos as nossas ofensas assim como n6s perdoamos temunhos indicativos do que descnuvos. .
a quem nos tem ofendido: também o conceito do perdio encon- O Novo Testamento pressup0e a existencia do culto. heb,r~co,
tra-se expresso em uma ( a sexta ) das bençaos da tefillah: "Per- e por isso suas referencias ~ao na maioria. das vezes impltc1tas,
doa-nos, pai nosso, porque pecamos; absolve-nos, nosso rei, por- alusivas e insuficientes. Partmdo desta realidade, para compreen-
que erramos, urna vez que tu és bom e indulgente. se bendito, der as referencias litilrgicas do Novo Testament~ nada nos r.e~ta,
tu Senhor, que tens muita piedade para perdoar". T ambém a senio dirigir-nos a outras fontes, àquelas que diret~ e exphc1ta-
frase: "assim corno n6s perdo~os os que nos tem ofendido" mente nos ajudam a reconstruir todo o culto hebraico no tempo
tem sua origem no Antigo Testamento e na sinagoga. De fato , de Jesus e da comunidade cristi primi~va. Entre todas ~s fonte~,
eia pode ser encontrada na liturgia do yom kippur e em Edo a primeira e a mais importante é a Mis~ah, urna coleçao de leis
28 ,2: "Perdoa ao teu pr6ximo a inju.stiça, e entao, ao rezares, e normas judaicas, coleçao esta que surgiu no ano ~00 d ~·· mas
ser-te-ao perdoados os teus pecados". Esta maxima é encontrada cujo conteudo é antiqufssimo, antecedendo o pr6prto periodo de
também junto à maior parte dos rabinos, que ensinavam: "Se Jesus. "Embora escrita duas geraçoes depois do Novo Testamento,
perdoas teu vizinho, o Onico te perdoara; mas se nio perdoas a Mishnah contém relatos bastante confiaveis sobre os costumes
o vizinho, ninguém tera piedade de ti" .5 litilrgicos que prevaleceram durante o Novo Testamento. A maior
• Nao nos deixes cair em tentaçao, mas livra-nos do mal: parte das autoridades citadas na Mishnah viveu durante os 130
esta expressao é encontrada na sétima bençao da tefillah: "Olha anos da era crista.6
a nossa afliçao e defende-nos. Livra-nos logo, nosso rei, pela tua
gl6ria, porque tu és o salvador e forte. Bendito és tu, Senhor,
salvador de Israel ". Ou ainda mais fielmente, lemos no Talmud Os tratados liturgicos da Mishnah
Ber, 60b: "Nao me abandones ao poder do pecado, nem ao
poder da culpa, nem da tentaçao e da vergonha". É verdade que Urna das praticas mais importantes sobre as quais a Mishnah
o Talmud foi redigido muitos séculos depoìs de Cristo, mas mui- nos informa ampiamente é a que se refere à liturgia e ao culto.
to do seu materiai remonta a muitos anos atras, anteriores à Das seis partes que a comp0em duas sao dedicadas explicita e
pr6pria época de Cristo. exclusivamente a este tipo de costumes. Por este motivo elas
Paramos um pouco mais ao analisar as raizes hebraicas do sao urna fonte lirurgica necessaria para conhecer o modo concreto
Pai-nosso, nao para diminuir-lhe o valor e a riqueza, mas para de rezar e de celebrar do povo judeu, sobretudo no pedodo in-
melhor aprecia-lo e degusta-lo. Jesus invocou o mesmo Deus de tertestamentario e no tempo de Jesus.
seus irmaos judeus e se serviu das mesmas express0es. A sua A Mishnah nos informa concretamente:
originalidade é de ter realizado (d. Mt 5,17: "Nao penseis que • Sobre o culto sacrificai concentrado no templo de Jeru-
vim revogar a Lei e os Profetas. Nao viro revoga-los, mas dar-lhes salém. A este assunto é dedicada toda a quarta parte Qodashim,
pieno cumprimento" ) aquilo que os textos blblicos e lirurgicos "Coisas sagradas", que trata dos sacriflcios, das oferendas de fa-
proclamavam e exprimiam. A oraçao de Jesus nao se op0e à oraçao rinha e de bebidas, do abate dos animais, do ritual diario do
judaica, mas cumprindo-a, realiza-a. templo e de sua arquitetura. Na realidade, os grandes 11 tratados
desta parte pretendem responder às seguintes questé5es praticas:
5 Do Midrash Tan!Juma Genesi, citado em The Prayers o/ /esus in their
Contemporary Setting, publicado por Study Centre for Christian·Jewish Rela- 6 A. Cronbach, /ewish Worship in NT Times, in lnterpreter's Dictionary
tions, Londt'e$, 1977, 13. o/ IM Bible, vol. IV, Nashville, 1962, 895.

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quais sao as diversas espécies de sacrificio ( dos farinaceos, da também por sua colocaçao: como infcio, nao somente da primeira
reparaçao, de pombas etc ... )? com que inteoçé5es estes sacriffcios parte da Mishnah, mas de toda a Mìshnah, isto é, também das
sao oferecidos? corno devem ser abatidos os animais destinados outras cinco partes restantes. Trata-se de um infcio casual, ou po-
aos sacriflcios? e corno deve ser construfdo o templo, no qual es- de-se ver nisto algo de mais profundo? Muitos se perguntam por
tas ofertas devem ser imoladas à Divindade? Se bem que este que o tratado Berakot nao foi inserido na segunda parte, dedica-
tratado nao seja muito importante para compreender a liturgia da às festas, mas na primeira, dedicada às "Sementes", à agri-
neotestamentaria que, corno é de conhecimento geral, se inspira cultura. Trata-se de urna cscolha aparentemente il6gica, ou talvez
mais na liturgia da sinagoga do que na do templo: a primeira é sob aparente falta de l6gica se oculta urna l6gica superior? Para
difundida entre o povo e a segunda é especifica e eletiva ( diz quem conseguiu compreender o dinamismo da berakah e captar
respeito em especial à classe levitica e sacerdotal e s6 indireta- sua importincia para o universo biblico e judeu, nao ha duvida: a
mente ao povo). berakah esta no inicio da Mishnah (e do seu comentario no
Talmud) nao por acaso, mas por razoes teol6gicas. Estas sao
• Sobre as diversas festividades ou datas importantes do po-
vo judeu. A elas é dedicada toda a 2' parte, Mo'ed, que significa principalmente duas: urna que a justifica corno inicio de toda a
justamente "Festas ", "datas importantes ", e que trata: do shabbat Mishnah, a outra corno inicio do tratado referente às "Sementes".
( sabado) da pesai; ( pascoa)' do yom kippur (dia da expiaçao), Antes de mais nada, a berakah é o inicio da Mishnah no sentido
do sukkot ( tabernaculos), do rosh ha-hanah (Ano Novo) e do que ela nao é urna parte nem um momento, mas a raiz e o fun-
damento: ela a gera e constitui, explica-a e a justifica. Mais do
purim (do acadico pur, "sorte", "destino": a festa que lembra o
dia 14 de 'adar, fevereiro-março, no qual Aman, que havia lan- que um principio hist6rico-cronol6gico, trata-se de um inkio 16-
çado a "sorte " pela morte dos judeus, ve seu plano malograr, e gico-teol6gico. Toda a Tora encontra sentìdo na berakah: expres-
em vez de matar, foi morto). Ao contrario do tratado relativo sa-a e a solicita, lembra-a e propé>e-na. Mas é também o principio
do tratado das "Sementes", isto é, sobre os frutos do traballio
ao culto sacrificai, este tratado é particularmente importante para
o conhecimento da liturgia do Novo Testamento, urna vez que do homem e da terra. De fato, a berakah, mais do que agradeci-
mento genérìco a Deus, é o uso dos "bens da terra" de acordo
nos informa sobre toda a liturgia da sinagoga e sobre suas maiores
conexé5es e instituiç6es ( sabado, festas da peregrinaçao e festas com sua vontade. Ser capaz de berakah significa ser capaz de viver
menores). Como ja observamos, este tratado, embora redigido na l6gica do doro e da participaçao, da gratuidade e da partilha.
dois séculos depois de Jesus e das primeiras comunidades cristiis, Por isso, logo depois do tratado sobre Berakot vem os tratados:
faz entretanto referéncias a praticas lirurgicas e a rubricas que, Pe'ah ( "Angulo"), Demai ( "DUvìda"), Kil'aim ("Mistura") e
com toda probabilidade, estavam em uso no periodo intertesta· Shevi'it ("Ano sabatico"), tratando os dois primeiros e o Ultimo
mentarìo. sobre o direito dos pobres. l sto porque la, onde ha berakah nao
pode haver injustiça e pobreza, mas igualdade e fraternidade.
• Sobre a berakah (bénçao), que é a animaçao e expressao
da liturgia e da oraçao hebraica, sua força e seu tesouro inexaurf-
vel. Ao tema da berakah a Mishnah dedica nada mais que o pri- O Talmud
meiro tratado da primeira parte intitulado de Berakot cujos nove
capitulos sao assiro subdividos: os ttes primeiros desenvolvem o Logo depois de sua redaçao, a Mishnah se torna objeto de
tema do shema' Yisra'el; o quarto e o quinto falam da oraçao estudos e discussoes, nao somente na Palestina, onde eia apareceu,
em geral; o sexto, o sétimo e o oitavo da birkat ha-mazon (a ora- mas também oa Babilonia, onde havia academias importantes e
çao de bençao depois da refeiçao, a oraçio de bençao por excelen- florescentes ( Nehardea, Sura, Pumbedita, Mahoza e outra.s) . Nes-
cia, porque é de origem biblica corno testemunha Dt 8,10); o tas escolas, o modo de proceder e pesquisar era o seguinte: lia-se
nono e Ultimo capitulo trata ainda de outtas bençaos. O tratado um artigo da Mishnah, passando-se a aprofunda-lo, procurando o
sobre Berakot nao é apenas importante por seus conteudos, mas seu sigoificado através de discussoes e debates. O Talmud (da
36 37
raiz hebraica lmd, estudar), pode ser considerado como o grande Ambos os talmudes começam comentando o tratado das Be-
dossic destas discuss5es. Se a Mishnah era como o manual das akot (da primeira parte, apenas este tratado é aceito e estudado
academias o Talmud era seu comentario ampliado e critico. Por ~o Talmud babilonico). Trata-se ?e mina in~aurfvel para.com-
isso o Tahnud ( abreviaçao de Talmud Tora, estudo da Lei) com- preender a alma da liturgi~ hebraica. t particularmente ~co o
p5e-se de duas partes: a primeira que reproduz o texto da Mishnah, texto babilonico, do qual dispomos também de urna .tr~duçao em
e a segunda, que se comp5e de ané..lise e aprofundamento deste lingua italiana.' Nos capftulos que seguem, faremos mumeras ve-
texto, resolvendo suas contradiç5es intemas e integrando-o com zes referencia a ele.
a tradiçao hagadica. Esta segunda parte é chamada de Gemara,
palavra aramaica que significa interpretaçao, ou melhor, "com-
plemento". De fato, ela "completa" a Mishnah, esclarecendo-lh.e
as dificuldades e ampliando seu significado com o relato ml- O SIDDUR (OU LIVRO DE ORAçOES)
draxico.
O Talmud T ora, o cstudo da lei era feito nas grandes es- Mas também a Mishnah é insuficiente corno fonte para tcr
colas e academias. Urna vez que elas serviam de inspiraçao para os acesso à liturgia hebraica. Ela é, de fato, um tex~o pre~ominante­
dois grandes centtos do judafsmo da época, Babilonia e Jerusalém mente halaquico, jurfdico, e nao traz os textos mteg~a1s das ?ra-
( este Ultimo substitufdo depois de sua destruiçao por outros ç5es nem os ritos utilizados na sinagoga ou. ~a~ famllias. ~or tsso
centros; seus vizinhos: J~nia, Cesaréia, Séforis, Lida e Tiberfa- é necessario dar mais um passo, a saber, dir1gir-se aos Livros de
des ) , quando se sentiu a exigencia de passar para o papel as Oraçoes da liturgia hebraica, onde se encontram todos os t.extos
pesquisas feitas sobre o texto mixnaico, surgiu quase que natu- lirorgicos oficiais. É indispensavel familiarizar-se com estes hvros,
ralmente urna dupla redaçao. Poi assim que se chegou a dois
Talmudes, chamando-se um - embora impropriamente - Tal-
nao somente para conhecermos a liturgia judaica de hoje, mas tam-
bém aquelas da época de Jesus e da lgreja primitiva. Nao nos
mud de Jerusalém, redigido provavelmente no século V, e um entendam mal: sob o ponto de vista de redaçao, os livros de
outro, conhecido pelo nome de Talmud babilonico, redigido igual- oraçao siio muitos séculos posteriores aos escritos do Novo Tes-
mente no século V, na academia de Sura, tendo à sua frente tamento e muitas das oraç5es neles contidas, bem corno a ordem
corno presidente Rabbi Ashi ( m. 427 ) . Ao lado de muitas seme- na qual 'foram recitadas, sao de origem incerta sen~o muito ~­
lhanças, eles aprescntam também diferenças importantes. O Tal- ffcil estabelecer-lhes urna data. Mas vale. para o S1ddur aquilo
mude palestinense ( outro modo comum de indicar o de Jerusa- que foi dito a respeito da Mishnah, cujos materiais sao muito an-
lém) é escrito em lingua judaico-aramaica, com muitos termos teriores à época de sua redaçiio. O Siddur, corno o conhecemos
emprestados do grego falado na Siria e na Palestina; utiliza um hoje, remonta mais ou menos ao século X ~a era cristi. No en:
texto mixnaico diferente ( talvez mais antigo) do babilonico; tanto "muitas de suas oraçé>es - corno afirma J. Petuchowsk1
ele comenta apenas 39 tratados da Mishnah. Coloca-se com liber-
dade perante o texto, e tem um estilo especial a respeito do ba-
- cbtam do prin:eiro século, e outras da era cristi" .8 E ainda
com igual autoridade, o mesmo autor escreve: "Apesar da diver-
bilonico. O Talmude babilonico, ao contrario é escrito em judai- sidade ( dos ritos entre a liturgia babilonica e a palestinense)
co-aramaico orientai, com grandes trechos em hebraico, nao co- a estrutura fundamental do serviço sinagoga/ permaneceu constan-
menta muitos tratados mixnaicos (principalmente aqueles que te ao menos a partir do primeiro século, se ja nao antes". 9 Esta
dizem respeito ao templo e aos costumes leviticos, tratados sem afirmaçao explica por que neste capltulo dedicado à liturgia neo-
interesse para a vida judaica depois da destruiçao do templo); testamentaria fazemos referencia a um termo tao distante cronolo-
é extremamente rigido no que diz respeito ao texto, recorrendo
algumas vezes a técnicas muito sutis, para interpreta-lo sem acrés- 7 S. Cavalletti (org. por), Il Trattato delle benedizioni (Berakot) del
cimo nem modificaçé>es. Abre mais espaço sobretudo à tradiçao Talmud Babilonese. UTET, Turim, 1968.
hagadica. 8 J. Petuchowski, em The Lord's Prayer and fewsh Liturgy, org. por J. J.
Petuchowski-M. Brocke, Bums and Oates, Londres, 1978, 47.
9 Idem, 48.
38 39
gicamente das origens da igreja cristii. Voltamos a reperir: o destes ultimos do que às necessidades do povo. Poi por este
Siddur é o grande Livro dos hebreus amantes da oraçiio. No seu motivo que, logo depois do Siddur de Amram Gaon, o Gaon dc
seio e em muitas das pr6prias oraçOes podemos encontrar os ccos Saadia ( 882,942), o maior dos doutores da Acadcmia Babilonica
do pr6prio Jesus e de suas comunidades primitivas. Por isso ele de Sura - um dos maiores génios dos hebreus da Idadc Média
deve .ser considcrado, juntamente com a Mishnah, urna fonte in- - comp0s um outro Siddur. Como o pr6prio autor cxplica no
substttufvel para compreender as oraç5es de Jesus e os poucos prefacio do novo Siddur, sua coleçiio era motivada pelas cxigen-
dados neotestamentarios. cias concretas das comunidades bebraicas (e nao pela dos rabi-
nos, corno o Siddur dc Amram). Preocupado com a anarquia li-
rurgica quc ameaçava as comunidades judaicas, elc reuniu e orga-
Os primeiros Siddurim oficiais nizou "a ordem das oraçoes (quc deve ser) usada em todas as
partes e por todos,, . 10
Embora a tradiçao goste de atribuir ao pr6prio Moisés o pri- No seu trabalho, o Gaon de Saadia segue os scguintcs cri-
meiro "Livro da Oraçao" (no Talmud babilonico Rosh ha-shanah térios:
llb lé-se que Deus mostrou a Moisés o "Seder Tefillah") histori- • seleçao de textos, tendo por fundamento sua autoridade, pro-
camente, a primeira compilaçao autentica das oraç5es oficiais he- veniente dc seu uso incontestavel e documentado;
braicas foi feita por Rav Amram Gaon no ano 875 d .C. e foi • reduçao dos textos à sua forma originai, ainda niio contamina-
chamada "Seder" ( palavra hebraica que significa "ordem", "suces- da, tanto daqueles quc se referem aos perfodos anteriores ao
sao ordenada" ) ou "Siddur" ( "ordenaçao,. "colocada em or- exilio, corno dos quc surgiram mais tarde;
dem"), ou mais raramente Mahzor. O ter~o subentende urna • climinaçao dc partes quc foram acrcscentadas no decorrer dos
ou17a pala~ra: "Tef~ot" ( "oraç5es" ). A expressao completa dc- tempos, por pessoas, grupos ou escolas, referentes às exigencias
vena ser: Seder Tefillot": "A Ordem das Oraç0es". A partir do espedficas de comunidades, de centros ou de tendéncias;
século IX, é este o tfrulo que a maior parte dos hebreus da ao • acréscimo de alguns textos poéticos ( entre os quais alguns de
Livro da Oraçao. Excetuam-se os judeus da Alemanha e os sefar- sua autoria ) quc ampliam o repert6rio tradicional;
ditas, que o chamam simplesmente de Tefillah, "Oraç0es". • disposiçao dos tcxtos dentro de uma estrutura teol6gico-expli-
. . Amram era Gaon, isto é, presidente (Gaon literalmente sig- cativa, e sua subdivisao de acordo com o ritmo diario ( oraçOes
nifica O Grande, O Ilustre) da Academia de Sura em Babilonia e oficios de cada dia) e anual (liturgia para as festas).
e, enquanto tal, era naquele tempo o Chefe espiritual de todo~ Detemo-nos um pouco mais sobre estes dois Siddurim, niio
os he~reus do munda. o projeto de organizar em um unico texto somente porque ainda constitucm a estrutura fundamental do Li-
o conJunto das oraç5es usadas pelas diversas comunidades he- vro hebraico das Oraç5es, "essencialmente identico da China ao
brai~as dispersas em todo o mundo foi-lhe pedido diretamente Peru ", 11 mas principalmente porque des sao passagcm obrigat6ria
por ilustres judeus espanh6is, que pensavam que o fato de existir para se conhecer o universo lirurgico que desde o inkio, e ja ao
um "Livro das oraç5es" garantiria melhor a unidade do judalsmo tempo de Jesus, nutrlu o munda judaico.
e de seus valores espirituais.
~espondend.o a esta solicitaçao, Amram Gaon comp0s urna
coleçao que, dev1do. ao prestigio de seu autor, chamou a atençao Antes do Siddur de Rav Amram Gaon e de Saadia Gaon
de todo. o m~do 1udeu, propagando-se através de numerosissi-
mas c6p1as, m~Itas das quais - embora revistas e ampliadas _ Nao devemos pensar que antes de Amram e de Saadia Gaon,
perduraram at.e o. ano 1865, ano em que o manuscrito foi im- nao tivessem existido Siddurim, transmitidos oralmente e na for-
presso pela pr1metra vez, em Vars6via.
Urna vez,. porém, que o Siddur de Amram foi solicitado por 10 Citado por E. Garfiel, The Service of the Heart. A Guide to the
/ewish Prayer Book Thomas Yoseloff, Nova lorque·Londtu, 1958, 35.
um grupo de JUdeus letrados, ele correspondia mais às exigencias 11 E. Garfiel, The Service of the Heart, cit., 36.

40 41
ma dc anotaçé>es. Os Siddurim dc Amram c de Saadia sio na rca- e compos1çoes, conhecidos a maior parte das vezes pelo termo
lidadc uma compilaçio dc materiai pré-existente c antigo, c nio piyyufim, poemas, de origem grega._ cres~eram a t~ ponto, quc
uma criaçio "ex-nihilo". Foi baseado nisto que o letrado E. Gar- às vezes foi necessario editar os S1ddunm em. vartos vol~es,
ficl pòdc cscrcver: " ~ racionalmente certo que algumas formas como demonstra a seguinte confissio de um editor antes de un-
dc Siddurim tenham existido entre os hebreus dcsdc os primciros primir um Siddur de 1600: "Uma vez que o mater~ deste ,Uvro
dias do Segundo Templo, de 400 a.e. para ca. Esta ordem inclufa esta crescendo continuamente, e se torna um empecilho leva-lo à
a recitaçio de salmos. o Shema', provavelmente outras oraçOes c sinagoga, decidi, corno editor, com simplicidade de coraçio, im-
algumas leituras da Tora".u Estes Siddurim, compilados, aprendi- primir o Siddur em dois volumes ". 14
dos e transmitidos oralmente formavam-se e se aperfeiçoavam ao Esta superabundaocia de produçio, às vezes desordenada e
redor das "sinagogas ", naquelas reunié>es semanais que surgiram mediocre, levou, no século passado, a urna exigencia de revisio e
provavelmente durante o ex.ilio de Babilonia, quando os hebrcus, simplificaçio dos Siddurim. Assim sendo, sur~iu, por exemplo,
longe da mie-patria, encontram-se para ler a Tora e ouvir os Pro- 0 The Authorfr.ed Daily Prayer Book of the Umted Hebrew Con-
fetas. Também aqui, as opinioes dos letrados sobre a origem das gregation of the British Commonwealth, publicado em 1890, jun-
sinagogas sio as mais diversas. ~ certo porém, que ao lado do tamente com a traduçio inglesa, e revista recentemente em 1962.
culto no templo, exercido pela classe sacerdotal e distante das Simultaneamente surgiram também outros, a pedido de diversas
exigencias populares, se firmou depois da época do ex.ilio, uma naç5es e das novas correntes do pensamento hebraico ( judaismo
outra forma de culto, nio-sacerdotal e democratica, baseada nio reformado, ortodoxo e cc:mservador).
mais no sacriffcio, mas sobre a prece e sobre a Tora. ~ esta nova Nas paginas seguintes, faremos referencia a diversos Siddu-
forma de culto ( que mais tarde tomara o nome de "sinagoga!" e rim , sobretudo ao de J. Hertz,15 que em 1965 chegou à sua . duo-
que se formara no decorrer dos séculos que vio da reconstruçio décima ediçio. Para a versio italiana, porém, n6s nos serviremos,
do Segundo Templo, 520-515 a.e., até a sua destruiçio, no ano salvo indicaçio em contrario, do Siddur de D. Disegni. 16
70 d. e.), é ela que acabara firmando-se e impondo-se corno a Uma vez que, para o leigo no assunto, o Siddur se apresenta,
expressio mais verdadeira da liturgia hebraica, e que no primeiro numa confusao indecifravd17 - apesar do nome siddur significar
século da era cristi ja pode ser considerada corno suficicntemcntc "ordem" - convém apontar a estrutura que geralmente de toma.
estruturada: "na primcira geraçio depois da destruiçio do templo, Ele é dividido em tres partes: a primcira, relativa à liturgia
o culto nas sinagogas ja estava bastante firme, embora ainda nao diaria; a segunda, à liturgia do sabado c das festas; a terccira, a
houvesse nenhum Livro de Oraçoes que reunisse as oraçoes en- ocasi0es particulares, tais corno docnça ou morte.
tao em uso, nem qualquer coleçao escrita da ordem das diversas As oraçOes diarias estio distribufdas cm tomo dos t:rCs mo-
funçoes•. 13 mentos principais do dia ( manhi, mcio-dia e tarde) e incluem
~ esta liturgia, ja "organizada" e em parte estruturada quc sempre, além de urna série de textos preparat6rios e conclusivos,
desemboca nos Siddurim de Amram e de Saadia, e quc através o shema' Yisra' el (o ato de fé por excclencia) c a tefillah (a ora-
destes Ultimos chega até n6s. çio fundamental).
14 Idem, 40.
Os Siddurim recentes 15 The Authori:ed Daily Prayer Book, Revised edition. Hebrew Text-
English Translation with Commentary and Notes, org. por J. H. Hertz, the
La.e Chief Rabbi of lhe Britjah Empire, Bloch Publishlng Company, Nova
No decorrer dos séculos, os Siddurim dc Amram e de Saadia lorque, 12! ed., 1965.
16 D. Disegni (aos cuidadoa de) Preghiere dei giorni feriali e sabati
Gaon foram progressivamente enriquecidos de textos c ritos no- e secundo Il Rito italiano particola. e della comunitd ebraica di Torino, 2 voi ..
vos, principalmente depois da invençio da imprensa. Os anexos com traduçiio e notas explicativu, para o uso da Comunidade de Turim,
5.7()9..1949.
12 Idem, .32. 17 A frase ~ de G. E. Biddlc, tlreda de A. E. Millgram, /ewish Worshlp,
1.3 Idem, .3.3. Jewish Publication Society of America, Filad~Uia, 5.7.32-1971, 89.

42 43
A segunda parte do Siddur compreende as oraçé>es do sabado
e das festividades . Quanto ao sabado, os momentos rituais mais
importantes sao: o acender das Luzes, as "Boas-vindas" ao shabbat, 2
o serviço sinagoga! da sexta-feira e do sabado, as leituras, o desfc-
cho do shabbat e o havdalah {a despedida do shabbat). Quanto
A ESTRUTURA DA LITURGIA JUDAICA
às festas, o Siddur as apresenta na seguinte ordem: pesai) ( pascoa),
shavu'ot {pentecostes ), sukkot {tabernaculos), rosh ha-shanah
{ano novo) , yom kippur {dia da expiaçio ), l)anukkah (festa das
"Luzes" ) e purim (festa das "Sortes" ) .
A terceira parte do Siddur contém as oraç6es ligadas aos
acontecimentos mais importantes da vida: a refeiçio {com a
birkat ha-mazon, a oraçio de agradecimento por excelencia da li-
turgia hebraica ), o matrimonio, a doença, a morte, os funerais etc ...

G. E. Biddle, descrevendo o Siddur do ponto de vista de um


"estranho", fala justamente de urna confusio desconcertante: "Em
sua composiçao nao parece haver nenhum esquema, mas pouco
senso de ordem, nenhum ponto centrai ou culminante, pouca
atençao às proporç0es, nenhuma avaliaçao justa de valores. ne-
nhum traço saliente. Em urna palavra: nada que ajude ao leitor
( leigo no assunto) a co~preender de que se trata. Urna confusao
indestcinchavel, uma enorme miscelinea! Mas se nos achegamos
a ele com simpatia e respeitosa atençao, a confusao nao é assim
tao grande. O leitor entao descobrira gradualmente, sempre mais
ordem dentro do caos, e compreendera que, corno em qualquer
outro produto humano, este nobre volume pode ser explicado
sem grandes dificuldades, de acordo com o genio do povo ao
qual ele deve sua origem. O Siddur é para os judeus aquilo que é,
porque os seus redatores e autores eram aquilo que eram. Suas
paginas revelam abertamente aspectos bem marcantes, do carater
judaico ". 1
Se aparentemente o universo lirurgico judaico é sobreposto e
desordenado, urna observaçio mais atenta nos revela urna estru-
tura rigorosa e profunda. A prop6sito, é necessario distinguir na
liturgia judaica o seu nucleo gerador ou "pedra angular" 2 e a sua
1 Texto em .A. E. Millgram, fewish Worship, op. eh , 89.
2 A expressii.o ~ de A. E. Millgram, que define a berakah •a Foundation
Stone of Jewish Prayer", op. cit., 92. Preferim.os fatar aqui de nllcleo
gerador, imagem mais dinlmica e estruturante.

44 45
triplice estrutura. o nucleo gerador é a berakah e a estrutura que A IMPORTANCIA E O SIGNIFICADO DA BERAKAH
a sustenta é representada respectivamente pelo shema' Yisa'el,
pela tefillah e pela miqrat Torah (leitura da Tora}. Este conjunto
logico e ordenado, podemos visualiza-lo idealmente corno urna Berakah (normalmente traduzido corno bénçao ou também
série de tres drculos concentricos. admiraçao/louvor/agradecimeoto) é um dos termos ~ue. condensa
o primeiro centro representa a berakah, o nucleo gerador; toda a riqueza e originalidade do pensamento hebra1~0, talv~ ~
o primeiro circulo o shema' Yisra'el; o segundo a tefillah; o ter- termo por excelencia, no qual se res~me a antropologia fhebraica .
ceiro a miqrat Torah (leitura da Tora). A relaçao entre o nucleo do de colocar o homem diante de Deus e de roote ao
o seudo mo , li l -
De fato a berakah define a tnp ce re açao: com
Deus
· .' com.
e os diversos drculos nao é estatica, mas dinamica, e a rdaçao en-
tre os drculos nao é de justaposiçao, mas de retomada, de enri- ~:1undo e com'seus semelhantes. Mais porém do que a triplice r~­
quecimento e de ampliaçao. Como na obra musical o mesmo tema laçlio, trata-se, na realidade, de urna Unica relaçao, ~ue se poderia
é repetido em formas sempre novas e originais, assim as diversas definir corno triangular. A berakah nao s~mente 1mpede que se
estruturas (tanto principais corno secundarias) da oraçao judaica separe Deus do homem ( teologia especulattva) e do mun?o ( t~o­
expressam o sentido da berakah sempre de novo e de modo hle- logia desencarnada) , nem o homem de. J?eus ( antropologLa atéia)
xaurfvel. e do mundo (antropologia pseudo-espmtual} , nem o m.undo d:
Esta "arquitetura da oraçiio" fica sempre jgual a si mesma Deus (cosmologia secularizada) e. do ho?1e?1 ( cos~olog1a est~tl­
e pode ser encontrada ao centro de toda açiio lirurgica, pessoal zante) mas mantendo unidos e 10separave1s os tres p6los, fixa
ou na sinagoga: tanto na oraçao da manha, corno naquela do meio- suas c~ndiçoes graças às quais permanecem na verdade. Em r~
dia e na tarde; seja nos dias de férias, no sabado ou nas festas ou Iaçao ao home~ e ao mundo, Deus é "a fonte" .e a "norma":~1a
nos acontecimeotos particulares. Desde o tempo de Jesus (e ainda 0 homem e 0 mundo e estabelece sua modalidade de usu to
antes) até aos nossos dias foi e é esta, a estrutura interna da e de multiplicaçao. Em relaçlio a Deus e ao _m~d? o home~ é o
oraçao judaica em todos os pafses e em todòs os ritos e "nem intérprete e beneficiario: é objeto da atençao divma e desttnata-
variaçé5es secundarias nem acréscimos importaotes feitos em oca- rio dos bens da terra. Em relaçao a De~s C: ao .h~mem, o mundo
sié5es particulares, nem oraçé5es novas introduzidas pelas geraçé5es é sacramento e dom : sinal da benev'!len~1a ~vma. e dom con-
sucessivas podem oculta-la".3 creto para o homem. Com a oraçao de beoçao, ~ israelita re:onhece
Esta estrutura se renova infalivelmente, embora sempre com estes tres p6los e a qualidade de suas relaçoes. Pro~unaando a
modalidades novas e originais, seja no decurso da semana ( nas f6rmula: "se bendito, Senhor, pelos frutos d_a· terra... reconhece
terças, quintas e principalmente aos sabados), seja no decorrer a Deus como origem e "proprietario" das co1sas; o mundo. co~o
do ano (pesaJ:i, shavu'ot, sukkot etc ... ), tanto no ambito familiar dom que deve ser aceito e compartilhado; os h<:>mens corno trmaos
corno oa sinagoga. com os quais participa do Unico banquete da v1da. Deste ~odo, a
Se a estrutura da oraçao judaica é triplice, torna-se necessario berakah capta a verdadeira finalidade do mundo e se ~ ~mo
estuda-la à parte, começando com a berakah, que é seu segredo condiçao para a realiz~çao do Reino. ~m eia, o mu~do fica triste
e sua alma . Dai as quatro partes deste capitulo: primeiramente e opaco, fechado em s1 mesmo e desun~do _ao mal: quem usa .os
falaremos da berakah, em um segundo momento do shema' Yisra'- bens deste mundo sem recitar urna bençao, profana. ~ma co1sa
el, depois sobre a te/il/ah e finalmente sobre a leitura da Tora. santa" .4 Graças a ela, ele recupera seu esplendor or1gmal, des-
cobrindo em tudo a presença do Sentido, isto é, do Sagrado.

4 Talmud babilOnico (TB) Ber 35a; cf. E. Munk, Le monde des pri~res,
3 E. Garfiel, The Service o/ the Heart, op. cit., 49. Paris, 1970, 30.

46 47
A parabola do alfabeto A letta $ade apclou cm vio para o fato de scr a primeira letta
de $addiq ( que significa justo) porque havia a palavra $arot
A posiç3o ccnttal quc a berakah ocupa no pensamento hc- ( que significa desgraça) a dar-lhe conttatcstemunho.
braico, é muito bcm cxpressa pela seguintc parabola, quc tcm corno A letta Pe tinha a seu favor, Podeh ( Libcrtador), mas havia
personageos as 22 lctras do alfabeto hebraico. a palavra Pesha' ( ttansgressio) que a dcsonrava.
Ela nos convenccra quc nenhum csforço tematico e de re- 'Ain foi declarada incapaz, porque, se bcm que fosse a inicial
flexio, mesmo que fcito com empenho, conscguira transmitir tao de 'Anawah ( que significa humildade) é também a inicial de
bcm a importancia da berakah, corno esta parabola dc linguagem 'Erwah ( que significa imoralidade) .
poética e em forma dc fabula: Samek disse: "Rogo-te, Scnhor, começa a criaçao comigo,
Quando Dcus cstava para criar o mundo com a sua palavra, pois tu és chamado de Samek, aquele que sustém tudo que
as 22 lettas do alfabeto desceram da terdvcl e augusta Coroa cai". Mas Deus lhe respondeu : "Fica onde estas. Continua a
divina - na qual tinham sido gravadas com uma pena dc sustentar tudo aquilo que cai".
fogo incandcccntc - e se puseram em clrculo ao rcdor do A letta Nun começa Ner ( que significa "lampada de Deus") ,
trono do Pai Eterno. Urna ap6s a outta se puscram a falar isto é, o guia dos homens, mas pode também significar "a
e suplicar: "cria o mundo por meu intermédio!" A primeira lampada do mal ", sobre o qual Deus ttiunfara.
a adiantar-sc foi a letra Tau, que disse: "Scnhor do mundo! Mem é a inicial de Melek (Rei), um dos t.ltulos de Deus.
Eu te peço, cria o mundo por meu intermédio, porque sera Mas urna vez que é também inicial de Mehumah ( confusao)
attavés de mim quc daras a Tora a Israel, corno esta escrito: foi repudiada.
Moisés nos deu a Tora". Mas o Santo, bcndito seja clc, res- A reivindicaç3o de Lamed anulou-se por si mesma. Defen-
pondeu que nio. E a letta Tau perguntou: "por que nio?" deu-se dizendo ser a primeira !etra de Lubot, as tabuas ce-
E Deus: "porque um dia te escolherei corno sinal de morte lestes dos 10 mandamentos, mas esqueceu-se que Moisés as
na fronte dos homens".5 Logo que Tau ouviu cstas palavras tinha reduzido a pedaços.
da boca de Dcus, bcndito seja ele, retirou-se tristemente de A letta Kaf estava segura da vit6ria. De fato. Tanto a palavra
sua prescnça. Kisseh ( que significa Trono de Deus), corno Kavod ( que
Entao adiantou-se a letra Shin, e suplicou: "Scnhor do uni- significa Gl6ria) e Keter ( que significa Coroa), começam
verso, cria o mundo por meu intermédio, ja que o teu pr6prio com Kaf. Mas, deveis lembrar, que 4m dia, Deus teve que
nome, Shaddai, começa comigo". Mas urna vez que, infeliz. bater palmas ( que em hebraico se diz Kaf), tornado pelo
mente, Shin é também a inicial de Shaw ( que significa men- desespero, pelas desgraças que se abaterem sobre Israel.
tira) e de Sheker ( quc significa falsidade), isto impcdiu que A primeira vista pareceu que a !etra Y od seria a certa, urna
cla fosse ouvida. A letta Resh nio tevc mclhor sorte. De fato, vez que era a inicial de Y ah. S6 que havia um inconveniente
foi fcita a observaçao que cla era a inicial dc Ra' ( que signifi- de urna outta palavra, Y e$er ha-Ra' ( que significa ma inclina-
ca mau) e de Resha' ( que significa mal) e, cmbora fosse a çao) , que começava com a mesma ]etra.
primeira letta de Ral;ium (o nome dc Dcus que significa Mi- Tet era inkio de Tov ( que significa bom) . Maso verdadeiro
sericordioso), isto nio lhe valeu muito. bcm nao pertence a este mundo, mas ao futuro.
A letta Qof foi repudiada, porque, cmbora tivcssc o privilé- A Ietra lf et é a primeira de lf anun ( Benévolo ), mas isto nao
gio dc ser a inicial de Qadosh ( que significa Santo), é tam· é urna grande vantagem, scodo ela também a inicial de
bém a inicial de Qelalah ( que significa maldiçio) .
lfa!{a'ah ( que significa pecado).
5 O uso deste 1inal e o aeu 1ignificado t~m n::Jaçlo com Ez 9,2-7, A letta Zain lembra Zakor ( que significa mem6ria) , mas
onde se fata de •um homem veatido de linho•, que n::cebe da parte de lembra também arma, causadora de crimes.
Deua a ordem de •marcar com um tau a fronte daquelea que auspiram e
choram..." (v. 4). As lettas W aw e He formam o nome inefavel de Deus e

48 49
jiiP

ocupam urn posto muito alto, para ocuparem-se das coisas maravilhas em favor de nossos pais neste lugar". Qucm vir
mundanas. urn lugar do qual foi extirpado o culto estrangeiro deve dizer:
No que tange a Dalet, se ela fosse inicial apenas de Davar "Bendito seja quem extirpou o culto estrangeiro de nossa
( que significa palavra) teria sido escolhida, mas infelizmen- terra". No que tange a cometas, tcmpestades, trov0es, ventos
te ela é também inicial de Din ( que significa justiça), e urn e relimpagos deve dizer: "Bendito aquele cuja força e poder
mundo orientado apenas pela Lei, sem a Miseric6rdia, estaria enchem o mundo". Quando se tratar de montes, colinas, rios
fadado à rufua. e desertos deve dizer: "Bendito seja quem re.aliza a obra da
Finalmente também a letra Gimel foi posta de lado, porque criaçao". R. Jehudah diz: Quem ve o oceano deve dizer:
é a inicial de Gemul ( que significa Retribuiçao) , embora "Bendito seja quem fez o oceano", quando o ve de quando
haja também a palavra Gadol, ( que significa grande). em quando. A prop6sito das chuvas e de boas notkias deve-
Depois que as reivindicaç6es de todas estas letras foram re- se dizer: "Bendito aquele que é bom e benéfico", e a res-
futadas, aproximou-se do Santo, que ele seja bendito, a peito de mas noticias deve-se dizer:
letta Bet, fazendo a seguinte suplica: "Senhor do universo! "Bendito seja o Juiz amante da Verdade".
Cria o mundo, eu te peço, por meu intermédio, para que Quem construiu urna casa nova e comprou enxoval novo,
todos os habitantes do mundo te louvem todo dia, através deve dizer: "Bendito seja Quem nos deu a vida, no-la con-
de mim, corno esta escrito: "Bendito seja o Senhor todo dia serva até este momento". O homem deve bendizer (o Se-
para sempre. Amém. Amém". O Santo, que ele seja bendito, nhor) do mesmo modo, tanto pelo bem como pelo mal, e
de repente aceitou o pedido de Bet e disse: "bendito aquele - quem levanta brados ao Senhor pelo que ja passou, sua
que vem em Nome do Senhor". E criou o mundo através de oraçio é va.7
Bet, corno esta escrito: "Bereshit Deus criou o céu e a terra". Entre todas as bençaos que devem ser elevadas a Deus, tem
A unica letra que nao tinha feito reivindicaçoes era a peque- particular importancia as que estao ligadas aos frutos da terra.
nina !etra 'Alef. Mais tarde Deus a recompensou dando-lhe o Antes de alimentar-se com o pao da terra, o judeu reza: "Bendito
primeiro lugar no Decilogo.6 sejas, Senhor nosso Deus, rei do universo, que produzes o pao da
terra"; antes de beber um copo de vinho: "Se bendito, Senhor
nosso Deus, rei do universo, que criaste o fruto da videira "; ao
Tudo é razao para bendizer olhar o grao: "Se bendito, Senhor, que crias os alimentos da
terra"; ao utilizar-se de perfume: "Bendito sejas tu, Senhor que
A parabola do alfabeto exprime com a força de sua lingua- crìas as ervas perfumadas etc... '
gem descritiva a funçao centrai da berakah na oraç.ao e na espi- Nao existe, portanto, "algo" que nao seja ocasiao de urna
ritualidade hebraica. Entre todas as letras do alfabeto (metafora berakah. Também as realìdades negativas, tais corno a injustiça
de todo o universo de valores), o mundo foi criado com Bet ou a doença, em vez de levar ao enclausuramento sobre si mesmo
por ser ela a inicial de berakah. É um modo de dizer que o e ao desespero, sao motivo para a bençao e louvor. Nao se deve
mundo se ap6ia na berakah. Ela revela sua identidade e revela pensar que esta disposìçao à berakah seja urna caractedstica de
seu sentido somente a quem a sabe pronunciar. Por este motivo, pessoas ingenuas ou simples. Quando S. Y. Agnon (1880-1970)
de acordo oom a tradiçao judaica, precisa-se recitar urna bençio recebcu a noticia do premio Nobel ( 1966) , fez logo uma berakah:
diante de qualquer coisa. "Bendito sejas, Senhor, que és bom e fazes o bem". E quando
Quem ve um lugar no qual foram realizados milagres em chegou a Estocolmo para receber o premio Nobel, e viu o rei da
favor de Israel, deve dizer: "Bendito seja quem realizou 1 TB ~~ 5.4a. Texto italiano em S. Cavalletti (org. por), Il trattato
delle benedmom (B~rak-Ot) del. Talmf.fd Babilonese, UTET, Turim, 1968,
6 Texto em L. Ginzbcrg, The Legends o/ the fews, voi. 1, Jewish 350 51. De ora em diante sera c1tado s1mplesmente corno UTET seguido do
Publication Society of America, Filad~lfia 5728-1968, 5-8. nt1mero da pagina. '

50 ,1
Suécia, recitou esta outra berakah: "se bendito, Senhor, que fa. Bcndizcr a Dcus "pelo mal• nio é gesto de submissio ao destino
zes os mortais participarem de tua gl6ria". e à fatalidade, mas ato de rebeliio à sua l6gica dominante.
Destes exemplos, urna coisa fica bem clara: a berakah é a
expressiio de urna inteligencia transparente, capaz de ver toda a
realidade sob urna nova luz. Ela é a maior das atividades, porque A berakah e o milagre
tem o poder de "fazer novas todas as coisas" (cl. Ap 21,5 ) .
Se ela é continuamente recomendada, niio é pelo gosto de urna A prece dc bCnçio, motivada pelos bens da terra e pelo
casufstica infanti!, mas pela intuiçao de sua dimensiio reveladora. dom da Tora, pressupé>e e cxpressa o sentido de admiraçio e
Como na parabola evangélica, ela é o verdadeiro "tesouro" que de maravilha. Dc acordo com uma concepçio muito comurn,
torna qualquer outra coisa supérflua ou secundaria. "milagre" é tudo aquilo quc, contradizendo às leis naturais, se
configura como extraordinario (fora do ordirufrio ou comum).
O nascimento do sol nio é considerado "milagre" porque o fen6-
A berakah pela T ora meno acontece todo dia e é tido por norma!; o mesmo se diga
de urna fior que exala seu perfume, de um rio que deslisa através
O judcu, além de bendizer o Senhor pelos frutos da terra, de um campo de trigo. Entretanto, quando se presencia urna cura
o faz também pela Toré: "se bendito, Senhor nosso, rei do uni- instantanea, que parece suspender a ordem natural, se apela para
verso, que nos deu a Tora da verdade e que plantou em nosso o milagre, porque nio acontece "regularmente n' esta .. fora" do
meio a vida eterna". Bendiz-se a Tora, porque ela, do mesmo ordinario.
modo que os frutos da terra, alimenta e alegra o coraçiio do ho- Poucas concepçé>es corno esta diminuem e traem a mensagem
mem. Antes, ela nutre e alegra mais do que os frutos da terra. bfblica, segundo a qual o "milagre" nio esta fora do ordinario,
Estes, de fato, nio bastam por si s6s ao homem que "nio vive s6 mas no seu campo mais interior e secreto. O milag1'e nio é o
de pao, mas de toda palavra que sai da boca de Deus" (d. Dt excepcional, mas toda realidade ( desde a mais cotidiana e banal
8,3; Mt 4,4 ). A Toré é este "mais": niio é urn "mais" que se à mais rara e fantastica) tomada na sua Ultima finalidade que a
acrescenta aos frutos da terra, mas que revela sua plenitudc dc sa- anima e sustém. O mundo e as coisas no mundo tem face dupla:
bor e de sentido. Ela revela a finalidade dos bens da terra, media- urna imediata e aparente, a outra oculta e fundamental. Num
dores e dons da benevolencia divina. primeiro nfvel dc percepçao o pao é meio de sustento, e o sol
Se toda a Toré torna-se para Israel ocasiiio de berakah, o urna fonte dc luz; mas cm um nfvel mais profundo, eles sao
tornam de modo particutar os seus momentos fundamentais, tais "sinais" da bondade divina, mediaçé>es de seu amor criador:
corno o Pacto, o Templo, a Promessa messianica. Sao dc impor- além de sustentar e iluminar elas nos conduzem a um tu generoso
tancia particular as berakot ligadas a esta Ultima, para compreen- e magnanimo. No primeiro n{vel as coisas permanecem cotidianas,
dermos o imperativo rablnico, aparentemente ambiguo, segundo comuns; consideradas no segundo nfvel elas se revestem de novos
o qual, "deve-se bendizer o Scnhor pelo mal do mesmo modo significados, tornam-se "extraordinarias". Passar do primei.ro para
corno o bendizemos pelo bem" .8 O judeu é chamado a bendizer o o segundo nfvel, é obra da berakah; esta supera a fatalidade das
Senhor diante das situaçé>es dolorosas ou tragi~as, niio por que tc- coisas e introduz na sua interioridade, la onde elas vivem da
nha prazer no sofrimento, mas porque tem a esperança inabala- finalidade de quem Ihes deu o ser. A berakah é o reflexo desta
vel da esperança messianica. S6 é possfvel bendizer a Deus nas luz secreta das coisas. Onde ela esta presente cria-se o milagre;
situaçoes negativas ou diante delas, graças a esperança messianica. onde ela esta ausente se estende a opacidadc. O autor do livro
Com este ato de fé, o negativo é resgatado e vencido : vencedor do !xodo conta que numa tarde, quando os israelitas peregrina-
em nfvel hist6rico, ele é declarado vencido em nfvel escatol6gico. vam pelo deserto, codornizes cobriram o acampamento, e que
"pela manha havia urna camada de orvalho ao redor do acampa-
8 TB Ber 58b; UTET, 392-93. mento . Quando se evaporou a camada de orvalho que cafra, apa-
52 .53
......

reccu na superficie do deserto urna coisa miuda, granulosa, fina Enquanto capacidade de observar as coisas na sua uniao com
como a geada sobre a terra. Tendo visto isto, os filhos de Is- a divindade, o temor é, no entanto, ao mesmo tempo, intuiçao
rael disseram entre si: "Man hu': Que é isto? Pois nao sabiam o dos novos significados ocultos, atras de cada acontecimento.
que era. Disse-lhes Moisés: " !sto é o pao que }avé vos dara O significado do temor é tornar consciencia de que a vida
para vosso alimento" (Ex 16, 14-15 ) . se desenvolve sob vastos horizontes, que se estendem além
Diante de todas as coisas devemos saber perguntar, corno os do breve lapso de tempo de urna vida indiviqual ou até
israelitas no deserto diante do orvalho: "Man hu'? ", e como mesmo de urna naçao, de urna geraçao ou de ùma ép<>QS.
Moisés devemos saber responder: "é o pao que o Senhor nos O temor nos permite perceber no mundo alus5es ao divino,
deu para alimento". Para quem é capaz de berakah tudo é "mana", de sentir nas pequenas coisas o prindpio de um significado
tudo é milagre. De acordo com Baal Shem "o mundo esta cheio infinito, de sentir no que é comum e simples o que é essen-
de esplendor espiritual, cheio de segredos sublimes e maravilhosos. cial; de observar no fluir do transit6rio o silencio da eter-
Mas basta colocar uma pequena mao diante dos olhos, fica tudo nidade. Quando analisamos ou avaliamos um objeto, pensa-
escondido" .9 mos ou julgamos de acordo com um ponto de vista particular.
As berakot tem o poder de afastar esta "pequena mao " e O psicologo, o economista e o qulmico concentram sua aten-
de fazer ver o mundo "cheio de esplendor espiritual". çao sobre o mesmo objeto sob aspectos diferentes . A limi-
taçao de nossa mente é tao grande que jamais podemos
observar simultaneamente os tres lados de um edificio. O pe-
A berakah e o temor rigo começa quando, completamente limitados por urna pers-
pectiva, procuramos examinar urna parte corno se fosse o
"Bendizer" nao significa atribuir às coisas determinados po- todo. À luz incerta desta perspectiva, até a visao da parte
deres ou virtudes que anteriormente nao possufam - como su- fica alterada. É no temor que tomamos conhecimento daquilo
cede comumente na tradiçao crista, na qual se bendiz as coisas, que nao podemos compreender através da analise.11
cm vez de bendizer a Deus pelas suas coisas - mas revelar sua A berakah nasce do temor e produz o temor porque une as
identidade interior Ultima e profunda, que é a de estar cm re- coisas ao amor de Deus, colocando-as sob seu olhar criador e
laçiio com o Criador, de serem sinais sensfveis de sua atençao e previdente. A berakah transforma o profano em sacro, os objetos
solicitude. Esta percepçao das coisas operada pela berakah, e que em dons e as coisas em palavras de amor. Graças à berakah o
consiste cm uni-las à intençao de Deus ao cria-las, na Bllilia, é universo se torna um imenso santuario, em que 'se deve penetrar
expressa com a palavra temor, assim descrita por A. ] . Heschel: e atravessar com veneraçao e em estado contemplativo .
O temor é a intuiçao da dignidade das criaturas, comum a •
todas as coisas, e do grande valor que elas tem para Deus; A berakah e o dom
é o reconhecimento de que as coisas nao sao somente aquilo
que sao, mas implicam também, embora de longe, algo de
Querendo organizar racionalmentc o sentido desta nova pcr-
absoluto. O temor é a percepçao da transcendencia, perccp- cepçao possibilitada pela berakah, podemos distinguir varios nf-
çao do fato de que tudo, cm todo lugar faz referencia Àquele veis.
quc est& além das coisas. É urna intuiçao que se manifesta Antcs de mais nada, "bendizer a Deus pelo pao" é reconhc-
melhor no comportamento do que nas palavras.10
cer sua paternidade, em vcz dc atribuf-lo ao esforço e intcligencia
do homcm. O piio nao é do homem, mas de Deus, sendo o geni-
9 Citado por A. J. Heschel, Dio alla ricerca dell'uomo, Boria, Turim,
1969, 103.
10 Cf. idem, 93. Il Cf. A. J, Hescbel, Dio alla rU:erca dell'uomo, op. cit., 9J.94.

54
tivo "de Deus" nao de posse, mas de sentido. Com a bençao e agindo de acordo com sua finalidade. Concretamente, isto signi-
negamos ao bomem o direito de propriedade das coisas, e o fica que as coisas devem ser usadas niio de acordo com projetos
atribufmos a Deus; renundamos a urna relaçiio possessiva/produ- egoistas individuais ou nacionais, mas segundo o pr6prio projeto
tiva a elas e dedaramos sua origem, finalidade e significaçao fora de Deus, que é o de urna comunhao universal.
do pr6prio eu. A benç.ao possibilita assim, urna verdadeira ruptura Também as escrituras cristiis, centralizadas ero torno da ex-
"epistemologica": tira do bomem o poder sobre as coisas e as perienda de Jesus morto e ressuscitado, dio testemunho que a
confia às miios de Deus. Esta é a sua primeira conseqiiencia: a revelaçao da realidade, como dom, é o centro da mensagem bi-
passagem do proprio centro para Deus. blica: "Carissimos, o seu divino poder nos deu todas as condiçoes
Se Deus é o verdadeiro "proprietario" das coisas, a relaçao necessarias para a vida e para a piedade, mediante o conhecimento
do homem para com elas so pode ser de beneficiario. E assim daquele que nos chamou pela sua propria gloria e virtude" ( 2Pd
chegamos ao segundo nfvel de reestruturaçao operado pela bera- 1,3 ) . Jesus, dom supremo do amor de Deus ao homem, além de
kah: a passagem da posse à de aceitaçao. O mundo nao é do ho- revelar a realidade corno dom, resume-a em sua pessoa e no seu
mem, mas ele pode servir-se dele; as coisas niio lhe pertencem, mistério.
mas ele pode usa-las; a "casa" nao foi feita por ele, ele pode
porém, habita-la.
Mas dispor-se à acolhida, renunciando ao espfrito de autono- A berakah e a partilha
mia e de posse, exige disponibilidade ao dono, isto é, a capaci-
dade de aceitaçiio das coisas de acordo com urna l6gica de gra- A hermeneutica do dom, que precede a bençiio, nao se esgota
tuidade. E é este, o terceiro nivei de reestruturaçiio operado pela em urna dimensiio psicologico-individualista, mas exige empenho
bençao: a passagem de objeto a dom . A bençao restitui a criatura em profundo nfvel ético e se traduz em determinadas escolhas
à sua situaçao de dom, enquanto sua ausencia rebaixa as coisas sociais.
à sombria consistencia de instrumentos e de mercadoria. Este po- Quando os israelitas viram "urna coisa miuda, granulosa, fina
der de "transfiguraçao" da bençiio, sem o qual as criaturas sao corno a geada sobre a terra" (Ex 16,14 ) , "disseram entre si:
coisificadas e adquirem valor monetario, é ilustrado ironicamente man hu': que é isto? Pois niio sabiam o que era. Disse-lhes Moi-
pelo seguinte midrash referente a um dialogo entre Abraao e seus sés: 'É o pao que Javé vos dara corno alimento'" (Ex 16,15) .
hospedes: "Abraao hospedava os andarilhos e depois que eles Mas ao lado desta resposta explicativa Moisés acrescenta logo urna
tinham comido e bebido dizia-lhes: 'bendizei'. Eles perguntavam: condiçiio imperanva: "eis o que Javé vos ordena: Cada um
'Como?'. Ele respondia: 'Dizei: Bendito seja o Deus eterno, por- colha dele quanto baste para comer, um gomor por pessoa ( me.eli-
que comemos do que é seu'. Se eles aceitavam e bendiziam, co- da de cerca de 4 litros), segundo o nUm.ero de pessoas que se
miam e bebiam e iam embora. Se niio quisessem bendizer, di- acham na sua tenda" (Ex 16,16). O què foi dado nao pode
zia-lhes: 'Paga o que deves' ".U O sentido profundo do midrash é ser vendido, mas somente reconhecido e degustado de acordo
claro: onde ha bençao ha gratuidade, onde nio ha prevalece a com a propria capaddade. "E os filhos de lsrael assim o fizeram:
relaçao de mercado ( "paga o que deves" ) . . e apanharam uns mais, outros menos. Quando mediram urn go-
Ha finalmente urna quarta operaçio propiciada pela prece mor, nem aquele que tinha juntado mais tinha maior quantidade,
de bénçao: a passagem da manipulaçao à escuta obediente. De nem aquele que tinha colhido menos, encontrou menos: cada
fato, se as coisas sao dom de Deus, elas devem ser usadas respei- um tinha apanhado o quanto podia comer" (Ex 16,17-18).
tande docilmente à vontade do doador, reconhecendo seu amor Ao mandamento que profbe recolher mais do que suas neces-
sidades exigem, segue-se um segundo o qual profbe a negociaçio
12 Midrash Rabba Gen 49, 4~ ediçao itallana Commento alla Genesi do pr6prio presente! "Moisés disse-lhes: 'Ninguém guarde para a
(Bereshit Rabba). lntroduçllo, versao e notas de A. Ravenna, org. por T.
Federici, UTET, Tur;m, 1978. 387. De ora em diante serA citado: Bereshit manha seguinte' " (Ex 16,19). Nao somente niio se deve ter
Rabba, UTET, aeguido do o! da pAgina. "demais ", mas também niio deve haver preocupaçiio com o dia
56 f7
r
dc "amanhii ", porquc tanto o "demais" corno o "amanhii" con- "é coisa boa" (d. Gn 1,10) . Dc acordo com urna belissima lenda
tradizcm a l6gica do dom e impedem a alegria de se apreciar o hebraica, Deus tinha criado todas as coisas de tal modo "abraça-
presente. das" que ficou dificil separar "as aguas das aguas" ( Gn 1,6 ) :
U onde as coisas ficam acumuladas, segundo a l6gica do A separaçao das aguas foi o Unico gesto de separaçio que
"demais" e do "para amanhii ", elas perdem a sua espontaneidadc Deus executou na criaçiio, que, de resto, inclinava-se sempre
e a sua possibilidadc de aprecia-los, tornando-se sinais dc morte. à uniiio. !sto causou-lhe dificuldades. Quando Deus ordenou
Este é o ensinamento do relato biblico, que continua narrando a às 8guas que se separassem (Go 1,6 ) , algumas partes niio
desobediencia do povo às duas prescriçoes de Moisés e as conse- quiseram obedecer, e ficaram umas abraçadas às outras. En-
qiiencias daf decorrentes: "Mas eles niio lbe deram ouvidos, e tiio Deus se indignou e resolveu fazer tudo voltar ao caos.
alguns guardaram para o dia seguinte; porém dcu vcrmes e chei- O anjo do louvor entiio interveio e invocou: "Senhor do
rava mal. E Moisés indignou-se contra eles" (Ex 16,20) . A 16gica mundo, no futuro as tuas criaturas te louvariio para sempre,
da posse é destruidora sob dois aspectos: desfigura a aparcncia te bendiriio e glorificariio sem parar. Entre todos escolheras
das coisas ( "deu vermes e cheirava mal" ) , e provoca a ira pro- Abraiio, corno tua propriedade, chamaras um de seus filhos
fética ( "Moisés indignou-se"), destr6i a realidade e ofende a de Meu Primogénito, e os seus descendentes aceitariio o jugo
Deus. Destr6i a realidade, porque a priva de sua finalidade, quc do teu Reino sobre suas costas, e lhes dara a Tora ~omo
é aquela de ser alegria de todos; ofende a Deus, porque nega a presente. Por isso eu te peço: tem miseric6rdia do mundo
benevolencia com que ele cuida de todas as suas criaturas. e niio o destruas, porque se o destr6is, quem cumprira a tua
O marni partilhado ( simbolo de todos os bens da terra) é vontade?" Com estas palavras Deus se acalmou, deu ordem
pao de vida ( "é o piio que Javé vos deu para alimento"), cn- para que o munda niio fosse destruido e trancou as aguas
quanto o mana acumulado (simbolo de todas as formas de nc- desobedientes atras dos montes. Assim, o segundo dia da
gociaçao indevida e injusta) é germe destruidor ( "deu vermes criaçiio é Unico, porque nele se introduziu urna separaçio
e cbeirava mal" ) . onde tinha havido apenas uniiio. Por isso Deus niio pode clizer
~ urna parabola de rara eficicia, que condensa, talvez, um deste dia corno dissera dos outros, que "era bom". Urna
tratado intciro de mora! socia!. divisiio pode ser necessaria, mas niio boa.13 ·
A alegria nasce do abraço c6smico ou universal, da cons-
A berakah e a alegria ciencia de "estar abraçado com as coisas ", as quais sio presentes
da berakah.
A oraçao dc bençiio, além de ex.pressar a pcrccpçio do real
corno dom que deve ser aceito e participado, traduz tamhém sen-
timentos de alegria e bem-cstar. Ser capaz de "bendizcr a Deus", A relaçao entre berakah e petiçao
antes de scr um gesto de agradecimento, demonstra um sentido
de plcnitude: plenitude de quem, anuindo e realizando a ·vontadc Além da berakah, a liturgia judaica (bcm corno a cristii) se
de Deus sobre a terra, encontrou a casa do ser. A berakah é sinal estrutura em volta de um scgundo p6lo, que é a invocaçiio ou
de um coraçiio pacifico habitada e cheio de sentido. A alcgria pctiçio. O judcu, ao orar, niio louva a Dcus, somentc pclas suas
que a berakah traz é dupla: a alegria de sabcr que é objeto da maravilhas e por seus dons, mas também lhe suplica por suas
benevolencia de Deus, e a percepçiio do munda corno urna pa- necessidades e por suas infidelidades. Louvar e invocar, admirar e
rabola dc unidade e harmonia. pedir, agradecer e suplicar sio os dois p6los da prece hebraica,
Tudo aquila quc existc, dcsde a folhinha de erva até a galuia tanto da individuai corno da comunitaria. Siio estes mcsmos p6-
é a expressiio da vontade criadora e organizadora de Dcus, que
transforma o caos em cosmos, e que pode dizcr dc tudo isso: 13 L. Ginzbcrg, The Legends o/ the Jews, op. cit., vol. I, 14-15.

58 59
los que estruturam o livro dos salmos, muitos dos quais sio tiçao ( seja cura individuai ou a libertaçao de Jerusalém) é dc
hinos de louvor, outros preces de invocaçao, outros, por fim, pader cumprir a vocaçao de louvar e agradecer.
sao ao mesmo tempo de louvor e invocaçao. Mas estes dois p6los
siio de iniguaLivel valor e importincia. A oraçao de louvor, de
fato, é logicamente anteriore mais importante do que a de petiçiio. A f6rmula da berakah
A oraçao de bençao é a forma mais perfeita e completa da
prece. Ela define Deus e o homem na sua realidade ultima e A respeito das diversas formas de bençio, Maimonides as
ontol6gica: Deus corno Aquele que cria e da o bem, o homem classifica em tres, cada urna com urna estrutura pr6pria: bençios
corno aquele que o recebe e agradece por ele. Mas o homem, na motivadas por objetos ( "bens") concretos; bençaos, motivadas pe-
sua experiencia coticliana e hist6rica, niio faz semente a expe- la alegria de observar a Tara; e enfim, bençaos sem motivaçé>es
riencia do bem, mas também do seu oposto: as trevas, a injus- particulares, que expressam pedido ou agradecimento:
tiça, a opressao, o pecado, a morte etc ... ~ neste terreno , no
1 ) bénçaos motivadas por "bens" concretos: sao as bençaos
qual amadurece a consciencia da cisao entre o projeto de Deus
e a sua realizaçao, entre a criaçiio paradisiaca e a desobediencia mais simples que se iniciam com a f6rmula: Sé bendito, Senhor
de Adiio, é ai que nasce a prece de invocaçiio. Esta nao se con- nosso Deus, rei do universo e terminam com a mençao da coisa
trap0e à berakah, mas enquanto a pressup6e, a eia é orientada ou da experiencia que a motivou ; p. ex., no caso da bençiio antes
e a tem por meta. Quando o Messias chegar, ensinam os rabinos, da refeiçao: que tiras o pao da terra; ou antes de beber um
"todas as formas de prece cessariio, exceto a oraçao de agradeci- capo de vinho: que nos das alegria com o fruto da videira etc... ;
mento" .14 A prece de petiçao faz parte do tempo niio-remido, 2) bénçaos motivadas pela alegria da T ora: sao as bençaos
e responde a urna dupla exigenda. Antes de mais nada, da força recitadas antes de cumprir um mandamento e que se iruc1am
ao fiel diante da diferenciaçao entre o projeto de Deus e os seus com f6rmulas corno esta; Sé bendito, Senhor nosso Deus, que
desmentidos hist6ricos. A blblia sempre prometeu paz e bem-es- nos santificaste com os teus mandamentos e nos mandaste... Segue
tar aos homens justos, d6ceis e obeclientes à vontade de Deus. o mandamento especifico que vai ser observado; p. ex. acender
No entanto igualmente desde sempre os justos continuam a ser as luzes do sabado;
vencidos historkamente, corno testemunha o Livro de J6, parabola
de todos os homens justos ( os seis milhé>es de judeus sacrificados 3) bénçaos sem motivaçao espedfica e que exprimem peti-
nos cremat6rios nazistas nao foram os Ultimos) sobre os quais çao ou louvor; siio as bençaos mais comt.J.ns da liturgia publica
recaem o 6clio e a injustiça. A prece de petiçao da forças ao ou particular, e diferem das precedentes pelo conteudo e pela
"pobre" no seu calvario: conserva-lhes a fé em Deus e niio os forma. Quanto à forma, elas iniciam e terminam com a mesma
deixa sucumbir em face às decepçé>es; da-lhe certeza do triunfo final expressao: Sé bendito, Senhor. Quanto ao conteudo, trata-se de
da bondade divina e niio o deixa desesperar diante das derrotas. afirmaçoes diversas, que se encontram entre as duas bençaos de
Mas esta força que a oraçiio de petiçao nos da ( aqui chegamos abertura e de encerramento.
à segunda exigencia expressa desta forma de oraçao) termina sem- A prop6sito da f6rmula literaria da berakah, ainda falta fa-
pre com um louvor. Se o pobre invoca a ajuda de Deus, {para zer urna observaçiio. Normalmente eta se utiliza de duas formas
poder "louva-lo e agradecer-lhe melhor": "Volta-te, Javé! Liber- verbais: urna que se dirige diretamente a Deus ("Sé bendito,
ta-me! Salva-me por teu amor! Pois na morte ninguém lembra-se Senhor" ) , e a outra que o invoca na terceira pessoa ( "que nos
de ti. quem te louvaria no Xeol?" (SI 6 5-6; cf. também SI 30, santificou com os seus mandamentos ... "). Por que esta f6rmula,
10; 88,12s; 115,7; I s 38,18).· A finalidade profunda de toda pc- que sob o ponto de vista de linguagem soa tao mal? A explicaçio
dos rabinos é sugestiva: a parte pessoal da prece ("Sé bendito,
14 Cf W. G . Braude, The Mldrash on Psalms, voi. I. Yale University Senhor") traduz o relacionamento direto e dialoga! com Deus, a
Press, New Haven, 1959, 498. E o TB Ber 32a estabelece: •antes de rezar
se de.reria sempre louvar". consciencia da sua presença paterna! e amorosa. Mas por mais

60 61
pcrto que Deus esteja de n6s, ele permanece sempre o totalmente O oficiante lhes ensinava ( aos sacerdotes): "Recitai uma
Outro, irredutivel à 16gica humana e às suas instàncias. A se- bençiio". E eles recitaram. Depois leram as dez Palavras (o
gunda parte da prece, em forma impessoal ( "que nos santificou") decalogo ), o trecho "Escuta" (Dt 6,44-49), o trecho "e se
traduz esta segunda consciencia, que nao nega a outra, mas a de fato obedecerdes" (Dt 11,13-21) e a passagem: "o Se·
pressup0c e integra. nhor disse a Moisés" ( Nm 15 ,3 7-41 ) . Depois deram ao povo
A berakah expressa simultaneamente que Deus csta muito tres bençiios: a bençao "verdadeiro e estavel", a bençao do
perto de n6s, mas também muito distante, isto é, a sua imanencia "culto" ( para agradecer ao Senbor que nos permite pres-
e a sua transcendencia. Por meio dela, o fiel confessa que Deus tar-lhe culto no templo) e a bençao sacerdotal (Nm 6,24-26).
esta ao mesmo tempo presente e ausente, presente, embora au- Aos sabados acrescenta-se ainda uma benç.ao "pela guarda que
sente; ausente, embora presente. Um Deus que fosse unicamente se retirava n •16
"presença" se tornaria um "idolo" do bomem; em vez de servi-lo, Este texto é importante porque nos oferece muitas informa-
ele dele se serviria. Um Deus que fosse somente "ausencia", se çoes sobre o uso do shema', ainda na liturgia do templo: a leitura
tOrnfU'ia estranho ao homem; em vez de invoca-lo este o ignoraria. dos dez mandamentos, as tres passagens do shema', a bençao
Confessando-o simultaneamente pessoal ( "tu n) e impessoal depois do shema': "verdadeiro e estavel" e urna outra bençao an-
( "ele" ) a berakah delineia o espaço no qual o homem descobre tes do shema' identifiicada sucessivamente com a 'ahavah rabbah,
o Mistério, acolhendo-0 e adorando-o. "Grande Amor".1' Todos estes elementos, passam integralmente
à Sinagoga, exceto os dez mandamentos que foram suprimidos
depois da destruiç.iio do segundo templo ( 70 anos d .C.), para
desencorajar certos bereges, para os quais a leitura dos 10 man-
A PRlMEIRA UNIDADE ESTRUTURAL: SHEMA' YISRA'EL damentos, realizada na prece sinagoga!, dispensava da obrigaçiio
de observar os outros mandamentos da Tora.
Entre estes elementos, o que ocupa maior espaço dedicado
Se a berakah é a alma da oraçao judaica, o shema' Yisra'el é a seu comentario na Mishnah e no Talmud (Ber 13b, Suk 42a) é
sua primeira unidade estrutural: unidade, porque, embora sendo o primeiro versfculo do shema': "Ouve, 6 Israel: Javé nosso Deus
constituida de varias partes, apresenta-se, liturgicamente, corno é o Unico Javé" (Dt 6,4). Por isso, justamente ele é considerado
oraçao unitaria; estrutural, porque as partes que a comp0cm niio o nucleo mais antigo e gerador responsavel pela primeira unidade
sao justapostas, mas obedecem a urna dinamica de harmonia e coe- estrutural da oraçiio judaica, cujas fases de desenvolvimento po-
rencia. dem ser, com grande probabilidade, assiro reconstruidas:
• em um primeiro momento se recitava o primeiro versfculo de
1. Composiçiio e origem Dt 6,4: "Ouve, 6 Israel: Javé nosso Deus é o Unico Javé";
• em um segundo momento ampliou-se a leitura do primeiro
O shema' Yi~a'el comp0c-se de tres trechos bfblicos e de
verskulo de Dt 6,4, acrescentando-lhe os versiculos 5-9 ;
algumas bençiios que o precedem e o finalizam . Nao é facil recons-
truir corno e quando estes trechos bfblicos foram escolhidos· e en- • em um terceiro momento foram acrescentados os outros dois
trechos bfblicos, Dt 11,13-21 e Nm 15,37-41 , com as duas
quadrados por algumas oraç6es de bençao. Entretanto é certo que
berakot mais importantes: 'emet we-yafiV ( "verdadeiro e esta-
os seus elementos essenciais remontam à época pré-cristii, e foram
vel") e 'ahavah rabbah ("grande amor");
recitados pelo pr6prio Jesus e pela Igreja primitiva. 15 O primeiro
testemunho h ist6rico sobre a estrutura de sua composiçiio é apre- • em um ultimo momento foram acrescidas as duas outras berakot.
sentado pela Mishnah: 16 Mishnah Tamid 5,1; cf. também TB Ber llb, UTET, 138-39.
17 Sobre esta evoluçiio hist6rica do Shema', com respectiva documen-
15 CC. W. O. E. Oesterley, TM fewish Baçkgrourrd o/ the Christian taçlio, cf. L Jacobs, cm Encvclopedia fudaica, Keter Publishing House,
Liturgy, Oxford, 1925, 44. Jerusalém, 1971, s. v. Shema' Reading o/, 1370.

62 63
A tradiça-o 1D1XDaica
· · etalm'di : "A partir de quando se recita o shema' à tarde", mas como
u ca apresenta t bém · d" - 9
sobre as ocas16es e os modos de recitar o she::: N m icaçocs ,cita-lo. Como entender o versiculo 7'! do capitulo 6 do Deu-
Ber 4b, lemos este dito do Rabbi Joshua be Le .~ !~ud, !ronomio, parte do shema', que manda repetir os preceitos do
que se tenha recitado o shema' na sina n ~l. ~smo enhor aos pr6prios filhos "tanto quando estas sentado em casa,
de novo, até no pr6prio Le1"to,, De goga éunhlouvavel recita-lo :>mo quando caminhas na estrada, tanto quando deitas, corno
· ste testem o f" cl
uso do shema' em ocasi6es ctif . ' ica aro o uando te levantas"? Ao contrario de Shammai, Hillel propunha
particular. erentes: na smagoga e na vida ma leitura aberta do verskulo, para niio cair em situaç6es erra-
'.as ou insustentaveis, corno dernonstra a est6ria com urna ponti-
A Mishnah em Ber 1 a · di
~cl ~x~~~~t~ndob as dive~~=:~~~~scd~~dJarsat~~~l:n~: ha dc humor, de R. T arfòn. Deixando de lado a diversidade de
nterpretaçao das duas escolas, sobre uma coisa niio ha duvida: o
ai so re o modo de recitar o shema': lUcleo centrai do shema' é muito anterior à era cristi, e Jesus,
A escola de Shammai diz. "d d od , Virgem Maria, os Ap6stolos e as primeiras comunidades
20
cristiis
shema' deitados de manhi e tar e t . os devem recitar o lele se "nutriram" dia ap6s dia, de manha e à tarde.
dito: 'deitado e' de pé' (D~ ~e7pé),,' dEe acordol codm o .que foi
· "Tod ' · a esco a e Hillel
sma: os recitem o shema' a seu modo d d en- ~. O "credo" por excelencia do judalsmo
0 que e t' · • d , e acor o com
s a .escrito: ao an ares pela estrada' " is ~ . Os tres primeiros cap1tulos do tratado Berakot da Mishnah
que se diz: "deitado e de pé?" O .. assim .por-
"Na hora em que as pessoas costu~am d~: sequer dizer:
: do Talmud ocupam-se longarnente do shema' Yisra'el. Conside-
:ando-se que o tratado contém s6 nove capitulos, um terço dele
em que costumam levantar-se" R T rf' cli - ' ..e na hora ! dedicado aos problemas do shema'. Para se ter urna idéia mais
va-me a caminho d · · · · a on sse: encontra-
com a opiniao da :sc~:; d~st::.;e~itar :hem_a', de acordo
1 0 ::oncreta, lembremo-nos de que o Talmud de Babilonia lhe con-
sagra quase 200 paginas.21 Este interesse pelo shema' testemunha
dos assassinos ". Eles responderam '.""e corn. per1go por causa
go . · merecias estar em peri- quc ele é um ponto centrai na tradiçao e na espiritualidade he-
porque transgred1ste o ensinamento da escola de Hillel". braica. De fato, ele:
Este texto é importante b d0 é a profissao de fé que acompanha o judeu, desde a mais
mente data-lo. Hillel e Shan::m5~ r:tu .porque podernos facil- tenra idade até à sepultura. O shema' esta com ele, mesmo
judaismo pré-cristao e viveram s~o jo1d grandes mestres do quando de esta separado ou isolado dc todos os seus irmiios,
(37-4 a.C.) . O primeiro intello r:rna o ~ Herodes o Grande e o faz consciente de seu judaismo. O shema' esta na base do
à interpretaçao e adaptaçio d fen ,e e crftico, dava preferencia trabalho educativo dos pais, e em todos os lares hebraicos
rf~i~o~ defendia uma observan~ia ~~~~al ~C8l:1ndo, intransigente e ele é recitado quando se deita e se levanta. O shema' é o
histonca para datar o uso l1"tu' . d . hssim, temos urna prova
. . rg1co o s ema'. 'cul axioma do pensamento, e dirige a vontade tanto na sua vida
de eristo, 1a era considerada . .. , um se o antes particular corno na comunitaria. O shema' foi escolhido entre
ta-lo de manha e à tarde.19 como tradic1onal a obrigaçao de reci-
os 4.875 versiculos do Pentateuco para ser o sinal de reco-
A cliscussao entre Hillel e Sha . _ , nhecimento de Israel em todos os tempos e em todos os hori-
deve recitar o shema' de m h- da1 nao e sobre o fato se se zontes. Com o shema' os martires caminharam22em ctireçiio à
rada em todo o tratado Be::k at ou . e t;trulde ( esta questao é igno- fogueira e sofreram por Israel e por seu Deus.
o, CUJO nt o do capitulo primeiro
I~ O texto faz um jogo de al 20 Cf. B. Gehardsson, Du /udéo-christianisme a / ésus par le Shema',
heBbrBa1ca derek, que pode signifi~arav~~toco:, odduplo significado da palavra in VV. AA., /udéo-christianisme, volume dedicado ao Cardeal Jean Daniélou,
T er I la, UTET, 134. ra a corno modo. Cf. também
Paris, 1972, 21.36.
19 Segundo Fhivio Josefo o Shema' ·4 21 UTET, 65-222.
du~s ve.zes !10 dia: cf. D. Lattes J no tempo de Moisés era rec.itado 22 E. Munk, La voix de la Torah. Commentaire du Pentatcuque. Deu·
Editore, Ass1s/Roma, 1976, 576. • Nuovo Commento alla Torah, Carucci téronome, Fondation Samuel et Odette Levy, Paris, 3~ ed., 1981, 60.

64 6.5
l • braci em oraçlo
Jirmejah estava sentado diante de R. Hijja bar Abba e este
A confissao de que ha um s6 Deus
notou que o outro prolongava muito a pa.tavra Onico ('elµui).
"Ouve, Israel: o Scnhor, nosso Deus, é o Unico Scnhor": Entio lhe disse: " Depois que declaraste Deus corno rei das
estas palavras, que certamente sio as mais importantes para todo alturas e das planfcies e dos quatto ventos do céu, o preceito
o judafsmo, fixam o relacionamento do povo hebreu ~m ~us, da intençao nio subsiste mais" .25
um relacionamento definido sobretudo pelo termo berti, aliança. Mas o "que,. significa confessar "que ha um s6 Deus" e
De acordo com a l6gica da aliança, Deus e o homem. n~o se i~en­ parque esta confissio se reveste de urna importancia tio radical
tificam com a natureza, mas a transcendem e lhe dao senttd_?· na tradiçio bfblica e hebraica? Para compreender o significado
Definido Deus como Palavra que manda ( cf. a vocaçio de Abraao desta realidade é necessario despojar-se de toda preocupaçio filo-
Gn 12,1) e o homem como resposta obediente ( "ou~e, Israel.. ..": s6fica, tipica da mentalidade ocidental e entrar na perspectiva bi-
Dt 6,4) o judafsmo introduz no mund? uma c:_oncel'?o revoluoo- blica, que é aquela da experiència salvifica. Israel descobre que
naria da realidade: a concepçio da realidade nao mais abandonada Deus é Unico, nio através da argumentaçio racional, mas direta-
a si mesma por fatai necessidade ou auto-suficiente por força in- roente da sua hist6ria pessoal e comunitaria. Deus se revela
terna mas animada pela vontade livre e consciente de Deus, que corno Unico a Israel primeiramente através de seu coraçao e nio
a sus~ém com sua benevolència. Para a Bfblia, diferentemente da de sua inteligència; antes de revelar-se à sua atividade mental,
cosmobiologia;23 Deus nio se identifica com o mundo ( pan~efs­ comunica-se pela realidade existencial. Af, dentro de sua hist6ria
mo) nem é estranho a ele ( mecanicismo) , mas é sua alma onen- real ( na qual o momento racional representa um momento im-
tadora e criadora. Como um escrito ou corno um gesto de amor, portante de reflexio, mas nao fundamental) Israel descobre Deus
o mundo s6 se torna compreensfve! para quem capta a finalidade e sua singularidade: um ilnico Deus nao s6 para si, mas para todos
que o sustém, o projeto que lhe deu a existencia. ~i o imperati- os povos da terra. De fato, ao explicarem as palavras: "o Senhor,
vo: "ouve, Israel": um imperativo de tal modo importante e nosso Deus, é o unico Scnhor", os comenclrios dos rabinos cha-
abrangendo todos os outros, que Israel fara d~le seu ato de !é mam a atençio para o texto que diz: "o Scnhor, nosso Deus,
privilegiado. Mas "ouvir o què "? Qual é ~ ~bJeto dest~ aten~ao é o Unico Senhor,,, e nao "o nosso Deus, o Scnhor, é o Unico
tio radical? " O Senhor, nosso Deus, é o umco Senhor . O lm· Scnhor". Fazem isto para evitar que os outros povos nio pudes-
perativo é seguido de um indicativo. S6 ha um unico ('elµui) sem concluir que o seu Deus era também Unico corno o de Israel.
Deus. Ao lado da palavra shema' (ouve), 'eJ:iaJ (um) é talvez Dizendo ao contrario que "o Senhor ... é o unico Senhor". o texto
a palavra mais amada, venerada e cheia de mistério do judafsmo: se refere ao Senhor de todos e nio somente ao de Israel.26
ela preserva o segredo de Deus, o seu atrib~to mais ~rofundo e A afirmaçio da singularidade de Deus, se refere para Israel
caracterfstico. Por isso, o modo de pronuncia-la é ob1eto de re- à esfera do sentido: Deus é o Onico, Dio tanto porque é o Unico
flexao no Talmud que fala dos diversos modos • de prolongar que existe ( esta problematica é esttanha à sens1bilidade bfblica,
sua leitura e dos diversos beneficios dela decorrentes: sobretudo do Antigo Testamento), mas porque é o ilnico capaz
de produzir e dar sentido: o Unico que revela sua identidade
Foi ensinado: Simaco disse: "Quem prolonga a palavra Um pela realidade e no mundo brilha a mesma beJeza existente no
('ef:iad) tera prolongados seus dias e seus anos". Disse R. !J:ia, parafso terrestre. Afirmando de manha e à tarde que Deus é o
filho de Jaaqòb: "Quem prolonga a consoante de Uruco
Unico, o israelita piedoso confessava e reafirmava que em qual-
('ehad) tem seus dias e anos prolongados" . Rab Ashi disse: quer circunstancia, somente a adesao à sua vontade ( "projeto de
"0>ntanto que nio deixes de pronunciar a !etra J:iet). 24 Rabi amor") de Deus garantia a sua liberdade e auto-realizaçio. Mas
nao entendamos erroneamente essa reflexao sobre a singulari-
23 Para esta terminologia e tipologia cf. A. Rizzi, Differenza e respon- dade de Deus. Deus é o Onico, nio porque somente ele podc
sabilità, Marietti. Casale Monferrato, 1981. 22-23.
24 A tetra ~ faz parte da palavra 'e/:tad, cuja pronuncia, no uso popular,
n'luitas vezes niio era observada; cf. UTET, 153, n. 21. 25 TB Ber llb; UTET, 153.
26 Cf. E. Munk, La voix de I• Torah, op. cit., 60.
66 67
"satisfazer o coraçao humano ", conforme a interpretaçao agosti- Os sinais maiores da realeza divina, sao de fato, segundo a
niana ( "inquietum est cor nostrum donec requiescat in Te" ) , mui- tradiçao biblica e hebraica, a criaçao do mundo e a safda do
to enraizada sobretudo na area cat6lica. Deus criou os frutos da Egito. Transformando o mundo de caos em kosmos ( cf. Gn 1) e
terra e a mulher ( cf. Gn 1-2) para a alegria de seus filhos, para tirando o povo hebreu da escravidiio da opressao à liberdade da
satisfazer-lhe os desejos e alegrar seu coraçao. Por esta razao terra prometida ( cf. livro do :Bxodo) Deus realiza o seu senhorio e
nada esta tao longe da tradiçao biblica e hebraica do que apresen- manifesta sua realeza. Esta é o "poder" do amor que doa e faz
tar Deus corno concorrente ou antagonista do homem. Deus é o existir, a energia viva que nutre e resplandece, a intenç.iio Ultima
Onico em outro sentido: enquanto o Onico que garante a "arvore e secreta que da fundamento ao real e o ap6ia, tirando-o do poder
da vida" (cf. Go 2,9), o Onico no qual o mundo, aceito corno do mal. Este é o sentido da seguinte passagem do Talmud, segundo
doro e habitado de acordo com a intençao divina, torna a casa o qual o poder do shema' é tao grande que afasta as forças satani-
alegre e fraterna. Sob este ponto de vista, o pecado de Adao nao cas de quem o recita:
foi o de ter usufruido das coisas ero lugar de se alegrar com Deus,
mas foi o de ter querido usufruir dos bens contra a sua vontade. Disse R. Jishaq: "quem recita o shema' na cama, os fantas-
mas dele se afastam, conforme esta escrito: 'os filhos do re-
Nao somente para Israel, mas para todos os povos e todas lampago elevam o seu voo' (J6 5, 7), e a palavra "voar" s6
as culturas, também para aquela que eventualmente se definisse pode referir-se à lei, de acordo com o que foi dito: 'pousas
corno "secularizada ", "profana" ou até "atéia", Deus permanece sobre eleo teu olhar, e ele nao existe mais' (Pr 23,5 ). E a
o Onico: do qual haurimos a agua da salvaçao, sobre o qual fun- palavra 'relampago' nao pode referir-se senao aos fantasmas,
damos o sentido da vida. de acordo com o que foi dito: 'enfraquecidos pela fadiga e
devorados pelo relampago e pelo qeteb meriri, demonios do
meio-dia' (Dt 32,24)".28
A aceitaçao do "jugo do Reino de Deus"
A tese que o Talmud quer demonstrar é a seguinte: as forças
Proclamar que ba um s6 Deus significa abandonar-se à sua do mal ficam longe de quem recita o shema'. Esta tese é provada
vontade providencial e soberana. Esta consagraçao é também ex- recorrendo a urna série de verskulos, interpretados conforme o
pressa com a seguinte frase: " tornar sobre si o jugo do Reino de método midraxico rabfnico. O verskulo biblico, escolhido para
Deus (qabbalat malkut 'ol shamaim).n Esta expressao é urna sin- demonstrar a tese. é tirado de J 6 5,7: "os filhos do relampago
tese feliz de todas as conseqiiencias do shema', que o versfculo elevam o seu vòo". Mas em que sentido ele ajuda a compreen-
seguinte explica com o "amaras o Senhor teu Deus com todo teu der a tese de que quem reza o shema' afasta dele as forças do
coraçao, com toda tua alma e com todas as tuas forças" (Dt mal? Dai a necessidade de recorrer a dois outros verskulos da
6,5). Ela contém duas informaç5es fundamentais: de urna parte, Biblia: Pr 23,5 e Dt 32,24. À luz desteS, adaptados oportuna-
que Deus é "rei do universo"; da outra, que esta realeza niio é mente, o redator do Talmud expJica: J6 5,7: "os filhos do relam-
exercida automaticamente, mas através da resposta consciente do pago" sao os fantasmas, isto é, as forças do mal, enquanto "ele-
homem. Falando de realeza ( ou mais corretamente, de senhorio vam o seu vòo" significa que fogem por causa do "voo ", isto é,
real) eia deve ser entendida biblicamente: nao se trata da realeza da "Palavra alada" da Tora da qual o shema' é a parte centra!.
humana, quase sempre entremeada de injustiças e violencias, mas Deste modo ficou provada a tese: quem reza o shema' vence as
da realeza divina, criadora e promotora da vida e da liberdade. forças do mal. Semelhante exegese poderia fazer-nos rir, mas o
importante nao é o método, mas o resultado: e o resultado é que
27 Sobrc o uso que os rabinos faziam desta expressiio, cf. H. L. Strack·P. a oraçao do shema' representou e representa para lsrael uma ver-
Billerbeck, Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrash, dadeira experiencia de vitoria contra as forças do mal, às quais
voi. 1, C. H . Beck, Munique, 1974, 172ss. Note-se que a expressiio, mais
do que ao lugar no qual Deus reina, refere se ao fato/realidade, que Deus
reina. Por isso a melhor traduçio é talvez senhoria ou soberania real. 28 TB Ber Sa; UTET, 84.

68 69
nunca quis submeter-se. Tem também este mesmo sentido esta olhos, pronunciou com voz firme: "Escuta, 6 Israel, o Eterno,
outra passagem do Talmud, semelhante à anterior: nosso Deus, o Eterno é Uno. Amaras ao Eterno, teu Deus,
Disse R. Jishaq: "Todo aquele que recita o shema' no leito, é com todo o teu coraçiio, com toda a tua alma e com todas
corno se tivesse uma espada de dois gumes na mao, de acordo as tuas forças" .
com o que foi dito: 'eles glorificam a Deus com sua voz, e - Este homem é um feiticeiro, gritou Tfnio Rufo. Ele tem
tem uma espada de dois gumes em suas miios' " ( SI 149 ,6 ) .29 um talisma, que o torna insensivel às dores.
Entiio, os discipulos do rabino Aqiba se aproximaram do lu-
gar do suplkio, e Rabi Meir dirigiu-se ao martir com estas
Israel, testemunha de Deus palavras: "Rabi, rabi, o nosso coraçiio sangra ao ve-lo
sofrer assim tao atrozmente". "Meus caros filhos, respondeu
Israel descobre que ha um s6 Deus, nao exclusivamente para Aqiba, nao vos aflijais por mim! Finalmente cheguei ao cume
si, mas para toda a humanidade, Diante dela, Israel desempenha dos meus desejos . Ja fazem 24 anos que estou me consumin-
um papel importante: o de testemunha privilegiada. Testemunha do pela vontade de dar minha vida pela santificaçiio do Nome,
em hebraico se diz 'ed, que, juntamente com o shema' ( "ouve") corno esta dito: 'Amaras o Eterno, .teu Deus, com todo teu
e o 'ef:zad (''Uno"), forma uma das tres palavras-chave da profissao coraçiio, com toda tua alma e com todas as tuas forças'.
de fé da tradiçao hebraica. Nao é sem motivo que os comentarios Agora este momento chegou, e Deus seja louvado! ".
dos rabinos nos chamam a atençao para o fato de que a palavra Depois ainda murmurou: "Ouve, 6 Israel, o Eterno nosso
'ed é o resultado da Ultima letta de shema' ('ayin) com a Ultima Deus, o Eterno é Uno ". E pronunciando a palavra 'ef:zad
letta de 'ef:zad (dalet) . (Uno), foi tornado pelos estertores da morte e, num impeto
Por esta mesma razao, as duas letras 'ayn e dalet siio escritas supremo, sua alma voou em direçao às esferas celestes.30
em maiusculo no texto sem vogais da Tora. Trata-se de um modo Esta pagina do martiriol6gio judeu é urna das mais belas
sugestivo de demonstrar o valor universal do shema': que Deus express6es da alma religiosa hebraica, que da provas da força
é a Unica garantia do sentido da vida, mesmo quando as situaç6es do shema' e de seu poder de otimismo e esperança.
mais tragicas parecem desmenti-lo.
Por isso ele é recitado também nas situaç6es ou momentos 3. Os tres t6picos bfblicos
de fracasso e da morte: corno prova de que também nestes mo- O shema' comp5e-se de tres passagens bfblicas, tiradas do
mentos (e sobretudo neles) , Deus é o Onico que tem o poder Pentateuco ~ de algumas berakot que o precedem e o encerram.
de assegurar o sentido da vida, transformando a derrota em vi- Dos tres t6picos (Dt 6,4-9; Dt 11 ,13-21; Nm 15,37-41) o mais
toria, o negativo em positivo. importante é o primeiro, enquanto o segundo e o terceiro podem
Entre as muitas centenas de judeus que em cada século en- ser omitidos ou abreviados.
frentaram a morte e o patt'bulo cantando o shema', o caso do
rabino Aqiba é o mais célebre e sugestivo. Condenado à morte Obediéncia e liberdade
em 135 d.C. logo ap6s o fracasso da revolta de Simon bar Kozi-
ba, chamado Bar Kokba, "Filho da Estrela" (pela força da in- A primeira passagem tem uma série de imperativos, com os
terpretaçao messianica de Nm 24,17), o seu martirio foi urna quais Deus se dirige a seu povo ligando-o à sua vontade:
verdadeira celebraçiio do shema': "Ouve, 6 Israd: Javé nosso Deus é o Unico Javé! · Por-
O sol inundou a terra com seus doces raios, e o oriente se tanto, amaras a Javé teu Deus com todo o teu còraçao,
coloriu de ptirpura. Entao o rabi Aqiba, levando a mao aos com toda a tu a alma e com toda a tua força . Que estas
JO Texto in M. Lehmann, Rabbi Akiba, Merkos L'lnyonei Chinuch,
29 TB Ber Sa; UTET, 84. Paria, 1979, 299.

70
71
palavras, que hoje te ordeno, estejam em teu coraçao! Tu a5 compreendidos corno proibitivos ou restritivos, mas corno posi-
inculcaras a teus filhos, e delas falaras, sentado em tua casa tivos e reveladores. Ha de fato dois tipos de iroperativos ou man-
e andando em teu caminho, deitado e de pé. Tu as ataras damentos: urn, autoritario e patrona!, com o qual se priva a outra
também à tua mao corno urn sinal, e serio corno urn frontal pessoa de sua autonomia, absorvendo-lhe-o pr6prio poder; o ou-
entre os teus olhos; tu as escreveras nos umbrais da tua tro criativo e expressivo, dos dinamismos da pessoa, com o qual
casa e nas tuas portas " ( Dt 6,4-9 ) . se favorece sua realizaçao e crescimento. O engenheiro que ordena:
"a ponte deve ser construfda do seguinte modo", ou o médico que
Esta passagem contém: diz: "se voce quer ficar curado, deve fazer assiro", nao fazem
• a obrigaçio de crer que s6 ha um Deus ( v. 4 ) ; urna iroposiçio ou repressao, mas prestam um serviço e ajudam
na sua libertaçao. Os mandamentos divinos ( nao apenas os 10
• o dever de amar a Deus integral e radicalmente: "com mandamentos, mas toda a Tora) devem ser compreendidos deste
todo o teu coraçao, com toda a tua alma e com todas as suas segundo sentido: sao prescriç0es de vida e de liberdade, fora das
forças " ( v. 5 ) ; quais germinam a falta de sentido e a morte.
• o empenho de imprimir estes mandamentos "no coraçio",
isto é, nao so de observa-los formalmente, mas de interioriza-los
mentalmente ( v. 6) . A observancia da Toni nio é urn fato exterior A abunddncia e a fecundidade
e mecanico, mas deve corresponder a urna exigencia espiritual e,
por assiro dizer, conatural. Neste versfculo encontra-se todo o A segunda passagem biblica do shema' é a de Dt 11,13-21,

I cerne da mensagem profética contra os diversos formalismos, e


a contestaçio explfcita contra todos aqueles que acham que o
hebrafsmo seja uma religiio do temor e da exterioridade;
onde estio expostas as conseqiiencias positivas derivadas da fideli-
dade aos preceitos divinos e as negativas, conseqiientes do seu
nio cumprimento:
• a obrigaçio de transmitir fiel e continuadamente ( seja "Portanto, se de fato obedecerdes aos mandamentos que hoje
sentado, caminhando, deitado e em pé) este patrimonio espiritual vos ordeno, amando a Javé vosso Deus e servindo-o com todo
aos filhos e aos filhos dos pr6prios filhos ( v. 7 ) . Esta obrigaçSo o vosso coraçao e com toda a vossa alma, darei chuva para a
fundamenta o valor da tradiçao e faz de cada pai urn mestre e dc vossa terra no tempo certo: chuvas de outono e de primavera.
cada famllia urna esco/a; Poderas assiro recolher o teu trigo, teu vinho novo e teu
• a obrigaçao de aprofundar continuamente as normas divi- 6leo. Darei erva no campo para o teu rebanho, de modo
nas precedentes ( vv. 8-9) , adaptando-as às sempre novas circuns- que poderas corner e ficar saciado. Contudo, ficai atentos a
tancias. O devcr de "atar à mao corno urn sinal e à fronte corno v6s mesmos, para que o vosso coraçao nao se deixe seduzir
um penduricalho" ( v. 8 ) e de "escrever nos umbrais da c?.sa e e nao vos desvieis para servir a outros deuses, prostrando-vos
nas portas" ( v. 9) seja compreendido sobretudo metaforicamente, diante deles. A colera de Javé se inflamaria contra vos e ele
mesmo se na tradiçao hebraica foi reconhecido o uso de tornar bloquearia o céu: nio haveria mais chuva e a terra nio daria
concreta esta obrigaçio com objetos particulares: os tefillin, isto o seu produto: deste modo desaparecerfeis rapidamente da
é, involucros que continham escritas as quatto passagens da Tora boa terra que Javé vos da! Colocai estas minhas palavras no
(Ex 13,1-10; Ex 13,11-16; Dt 6,4-9; Dt 11,13-21) e quc se vosso coraçSo e na vossa alma, atai-as corno urn sinal em
amarram ao braço esquerdo e ao redor da fronte durante a oraçio vossa mio, e sejam corno um frontal entre os vossos olbos.
da manha; a mezuzah: caixinha contendo as passagcns de Dt 6,4-9 Ensinai-as aos vossos filbos, falando delas sentado em tua
e Dt 11,13-20 e que se aplica nos umbrais das portas, à direita casa e andando em teu caminho, deitado e de pé; tu as es-
de quem entra. creveras nos umbrais da tua casa, e nas tuas portas, para
Urna vez que o shema' contém urna série de imperativos, que os vossos dias e os dias de vo"ssos filhos se multipliquem
irop0e-se uma obser\raçio sobre seu valor. Eles nio devem scr sobre a terra que Javé jurou dar aos vossos pais, e sejam

72 73
tao numerosos corno os dias cm que o céu permanecer sobrc "entio se inflamaria a ira do Senhor ... nao haveria mais chuva ...
a terra. a terra nio daria mais seus frutos e morredeis" ( v. 17 ) .
Este trecho se estrutura cm tomo de tres proposiçOes prin- • A terceira proposiçio é constitufda por uma série de im-
perativos ( vv. 18-21 ), que repetem substancialmente a passagem
cipais:
de Dt 6,6-9: a obrigaçào de ter sempre presentes os mandamentos
• A primeira é urna proposiç~o condicional da reali~a1e: divinos ( v. 18) também fisicamente com os tefillin; a obrigaçao
"se obedecerdes... eu darei... farei... ( v. 13-15 ) . As condiçoes de ensina-los e transmiti-los dia ap6s dia aos pr6prios filhos ( v.
sio obediencia e amor ao Senhor ( v. 13 ) ; a conseqilencia, dada 19); a obrigaçio de guarda-los na propria casa ( vv. 20-21 ) ,
corno certa é a fertilidade (v. 14) e colheita abundante (v. 15) . recorrendo até ao uso da mezuzah.
Estes versf~los estao talvez entre os mais profundos e originais
da Tora: em primeiro lugar, porque promet.em um futur? _de ri·
queza e de saciedade, em segundo, porque fixam as condiçoes ~e A "assinatura" de Deus
realizaç.i o. A abundancia de "trigo, vinho e 6leo" (v. 14) nao
depende das "estaçé5es" ( que seriam proporcionadas através do A terceira passagem bfblica do shema' é Nm 15,37-41 no
culto aos fdolos ) nem do traballio do homem ( que seria possibi- qual se fala da obrigaçao de "se fazerem borlas ", para lembra-
litado através de maior empenho ou aumento das forças produti- rem-se melhor dos mandamentos do Senhor, e da auto-apresen-
vas), mas pelo amor ao Senhor e pela obediéncia a seus manda- taçao de Deus, corno Deus do exodo:
mentos. Também aqui se deve evitar urna compreensio erronea
deste relacionamento, que nào é extrfnseco (do tipo: se fores bom Javé falou a Moisés e disse: "Pala aos filhos de lsrael: tu
dar-te-ei urna recompensa), mas intrinseco (do tipo: se regares a lhes diras, para as suas geraçé5es, que façam borlas nas pontas
pianta ela fiorini). Obedecer os mandamentos do Senhor e ama-lo das suas vestes, e ponham um fio de purpura violacea na
significa viver o relacionamento com a terra e com seus semelhan- boria da ponta. Trareis, portanto, uma borla, e vendo-a vos
tes de acordo com o seu projeto. Quando isto acontece, la onde a lembrareis de todos os mandamentos de Javé. E os poreis
"terra" é aceita corno dom de Deus, e os homens corno irmios, em pratica, sem jamais seguir os desejos do vosso coraçào e
ali se experimenta a alegria do prazer ( "tu comeras", v. 5) ~ dos vossos olhos, que vos tem !evado a vos prostituir.
do bem-estar ( "seras saciado ", v. 15). Deus concebeu a humaru- Assim v6s vos lembrareis de todos os meus mandamentos
dade corno um "paraiso ", corno um "éden " (d. Gn 2 ). Mas a e os poreis em pratica e sereis consagrados ao vosso Deus.
felicidade e a harmonia que aqui podemos collier, s6 amadurecem Eu sou Javé vosso Deus, que vos tirei da terra do Egito, a
sobre o terreno da responsabilidade e da obediencia à vontade de fim de ser vosso Deus, eu, J avé vosso Deus".
Deus. Fora desta docilidade "a arvore da vida" (d. Gn 1,9) se Sao tres as afirmaçé5es principais deste trecho que encerra as
transforma em "espinhos e cardos" (cl. Gn 3,18 ) . leituras do shema':
• A segunda proposiçào constitui um longo imperativo exor- • Antes de tudo a ordem de vestirem o fallit, mantilha cm
tativo ( vv. 16-17 ) no qual sào expressos novamente de modo forma de escapulario e pouco maior ou menor, de acordo com as
negativo, os conceitos que na proposiçào anterior foram expressos tradiçé5es e ritos locais. O verskulo 38 descreve as caractedsticas
na forma positiva. De fato, o verskulo 16 explicita o conteudo desta mantilha (originariamente a veste comum usada pelos is-
do verskulo 13: "obedecer diligentemente aos mandamentos" e raelitas) e sua adaptaçao lirurgica: as borlas ou franjas com um
"amar e servir ao Senhor" significa "nào deixar-se seduzir", " nio fio de purpura violacea (#~it). ì
afastar-se", "nio servir aos deuses estrangeiros" e "nào prostrar-se • Os versfculos 39-40 explicllm o significado do tallit: nao
diante deles ". O v. 17, ao contrario, explicita mais ainda, o con- se trata de um amuleto, mas de uma lembrança: "vendo-as vos
teudo dos vv. 14-15: se nào forem obedientes ao Senhor e nào lembrareis de todos os mandamentos do Senhor ... " (v. 39). A
o amarem "com todo o coraçao e com toda a alma" ( v. 13 ) , funçao deste memoria! é tdplice: "pòr em pratica os mandamcn-
74 75
tos do Scnhor" (vv. 39-40), "nio seguir os desejos do vosso libertar-se da opressao (da qual a do Egito é urna experiencia
coraç.i o e de vossos olhos, que vos tem levado a vos prostituir- dolorosa, paradigmatica e metaf6rica), mas é de modo particular
des" ( v. 40 ) , serem "consagrados" ao pr6prio Deus ( v. 40 ) . incapaz de conservar e de alimentar a liberdade conquistada, es-
Falou-se de urna trfplice funçio. Mas trata-se de uma 6.nica rcali- tando continuamente ameaçada de "prostituir-se" (cf. v. 39) a
dade. O fallit recorda e proclama: "sereis consagrados ao vosso novos fdolos e a novos patr0es. Deus liberta Israel para que ele
Deus" (v. 40). Qucm é "santo• "nao se prostitui" (v. 39); "lhe pertença ": mas trata-sc de uma posse de nutriçio e nio de
quem "nao se prostitui" "p0e cm pratica os mandamentos do usurpaçao. Como as rafzes pertencem à terra, para que seu tronco e
Senhor" (v. 39) e quem "p0e cm pratica os mandamentos do seus galhos sejam fecundados, assim Israel pertence a Deus, para
Senhor" é "aquele que deles se lembra ". Como se ve o tallit que de de fundamento a seus valores e à sua vida. 1! por isso que
( como também os tefillin-filactérios dos quais se falou na passa- Israel, de manha e à tarde, "esteja cm casa" ou "caminhando"
gem anterior) obedece a uma l6gica teol6gico-pedag6gica: como (cf. Dt 6,7), esteja "deitando-se" ou "levantando-sc" (cf. ib.),
sinal e instrumento de santidade; mais do que simplesmente recor- proclama, com a prece do shema', sua obediencia e seu apego
dar o que o Senhor quer, faz viver cm santidade à qual o Scnhor ao Deus do exodo e da liberdade; pela sua descoberta ( que
chama. vale. niio somente para si, mas para todos os povos) que a arvorc
• O verskulo 41 pode ser considerado como a auto-apre- da liberdade e da paz cresce somente no te.rreno da fidelidade a
sentaç.i o de Deus e com a qual se conclui nio apenas o trecho do Deus, e somente sob a 16gica da aliança se realiza o sonho mes-
livro dos NW:neros, mas de todos os tres trechos do shema': sianico. ·
"Eu sou o Senhor vosso Deus, que vos tirei da terra do Egito,
a fim de ser vosso Deus, eu, o Senhor vosso Deus" (v. 41 ). 4. As bençaos da manha
Esta auto-apresentaçio divina compOe-se de tres momentos prin-
cipais: em primeiro lugar Dcus se apresenta a Israel corno seu Na liturgia da manha a reza do shema' é precedida de duas
Dcus: "Eu sou o Senhor vosso Deus • ( vem repetido duas vezcs, beraleo.t e seguida de uma, enquanto que na liturgia da tarde é
no inkio e no fim do versfculo, cm forma de conclusao). Com precedida de duas beraleot e seguida também de duas. Ao todo se
esta apresentaçao, Deus reivindica o seu senhorio sobre Israel, trata das 7 berakot que os rabinos gostam de juntar ao versfculo
que deste modo constitui-se sua "propriedade• (Ex 19,.5: segullah), 164 do salmo 119, onde se le: "eu te louvo sete vezes" (cf.
Ber llb) .
sua "herança" (cf. Ex 34,9; lSm 10,1;26,19), seu "povo" (cf.
Is 1,3), seu "servo" (cf. Is 44,21), seu "eleito" (cf. Is 45,4) , As duas bençiios da manha antes do shema' sao chamadas
seu "primogenito" (cf. Ex 4,22; Os 11 ,1 ), seu "rebanho" (cf. pelas suas duas primeiras palavras: yo$er'or ("Tu, que formas a
SI 95,7), sua "vinha" (cf. Is 5,7), seu "dominio" (SI 114,2), 1~" ) e 'ahavah rabbah ( "com grande amor" ) ; enquanto a beraleah
sua "esposa" ( cf. Os 2 ,4) etc. Em um segundo momento Dcus ftnal é chamada: 'emet we-ya$iv ("verdadeiro e estavel"). A Mish-
precisa a qualidade de seu senhorio: ele é Senhor de Israel, niio nah (Ber 1,4) e ~ ~almud falam expressamente destas bençiios,
como patrao, mas corno libertador "que vos fez sair do Egito" sendo que este Ultuno faz delas um grande comentario ( cf.
( v. 41 ) . Dcus exerce sua soberania, nio reprimindo, mas libertan- Ber 1.lh ). Mesmo que os textos tenham, no decorrer dos séculos,
do; nao tirando-lhe a liberdade, mas dando-lha, nao mortifican- receb1do acréscimos e tenham sido ampliados, o seu nucleo pri-
do-a, mas despertando-a. Em urn terceiro momento, Dcus explicita mitivo rcmonta, sem a menor sombra de duvida, ao primeiro
século da era cristi.
o sentido desta liberdade: Deus liberta Israel do Egito, niio para
deixa-lo numa autonomia completa, mas para "ser o seu Dcus"
( v. 41 ) . Deus liberta Israel para substituir a soberania egfpcia
pela sua, o poder do fara6 pelo seu amor. Isto significa que o
Senhor niio somente liberta Israel, mas que é também sua Unica
raiz e garantia. Longe de Dcus, Israel niio é apenas incapaz de

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maravilhas ele renova todo dia, em sua bondade, as obras
O milagre da criaçao
das origen~ corno esta escrito: Rendei graças a ele que cria
as grandes 'tampadas, por que eterna é a s;:a miseric6rdia!
Com a primcira bençio ( conhecida corno yo~er 'or), louya·sc Sé bendito, Senhor, que formas as lampadas.
a Dcus pela luz, sµnbolo da colorida riqueza da criaçio. ~~te
dela, quc nasce dc novo todos os dias,_ graças à bondadc div~, Para melhor compreensio do texto, leve-se em conta as se-
Isracl bcndiz e glorifica o Eterno, urundo sua voz à dos anJOS guintes observaçé>es: _ . . . . . .
celestcs e do universo intciro: • Antes de mais nada, as expressoes lillctats e finais (no
texto encontra-se em grifo), que se relacionam mutuamente, e
se bendito Senhor nosso Deus, rei do universo, quc formas entre' as quais se desenvolve o sentido e a riqueza da prece.
a luz e cri~s as trevas, geras a paz e crias todas as coisas; Este é um louvor solene a Deus, no qual esta expressa a crença
na tua miscric6rdia ilumina a terra e seus habitantcs; rcnova num Deus que "forma a luz e cria as trevas" e que "forma as
todos os dias corr: tua bondade, a obra das origcns. Quio lampadas". Deste modo aparece o tema centrai da berakah: um
grandes sio as' tuas obras, Se~or; fizeste tudo com. sabcdoria: louvor a Deus pelo dom da luz. A f6rmula inicial é tirada em
a terra esta cheia de tuas crtaturas. S6 tu és rei, cxaltado parte de Is 45 ,7: "Eu for~o a luz e cri? ~s_ trevasJ ~seguro ~
desde os tempos antigos, louvado, glorificado e cxaltado dcs· bem-estar e crio a desgraça , com a subsutu1çao do cna ~ mal
de sempre. Deus do universo, tem piedade de n6s, na tua ( expressio que se prestava a mas interpretaçé>es) por ~ cnas to·
grande misericordia! Tu que és a nossa força, a rocha _da das as coisas". Segundo alguns autores os hebreus quenam, c~m
nossa defesa, o escudo de nossa salvaçio, a nossa proteçao. esta conifssio de fé, fazer um contraste com a crença dualisuca
Deus bendito grande em sabedoria, criou e estabeleceu o persa na existencia de duas divindades: urna da luz e da bondade,
esplendor do 'sol, tudo que é bom ele fez para gl6ria dc a outra das trevas e da maldade.
seu nome, pòs as lampadas corno baluarte da sua fortaleza. • A luz, pela qual se entoa a Dcus um hino de louvor, é
As multid5es exaltam o Onipotente, e narram sem cessar a s1mbolo de toda a criaçio: nio s6 da terra e dos homens que a
g}6ria Ca santidade de Deus. se bendito, Senhor DOSSO Deus, habitam, mas também dos céus e das multid5es de anjos que o
no alto dos céus e sobre a terra, pela excelencia de tuas obras servem. A luz é o s1mbolo-realidade de todo o universo: terrestre
e pelas lampadas que criaste, as quais anunciam a tua gl6ria. e celeste, materiai e espiritual, humano e angélico. Os termos
se bendito, nossa rocha, DOSSO rei e redentor, que CIÌaS O~ usados para expressar a totalidade da criaçio sio varios: terra,
santos anjos. Seja louvado teu nome para sempre, nosso rct mundo, obras, riquezas, lampadas, multidé>es, anjos etc ... O con-
que formas os ministros! Todos os seus ministros cstao nas junto desta totalidade, simbolizada pela luz, constitui a criaçio.
alturas eternas, e fazem ouvir com temor e clamor as pala- • A criaçio é definida como "a obra ,, e "a riqueza de Deus,,.
vras do Deus vivo, rei do universo. Todos sio amados, todos Graças a este conceito, "as coisas" para os hebreus nio se identi·
cumprem com temor sua vontade; todos abrem a boca com ficam com a divindade (contra o pantefsmo) nem se lhe op5em
santidade e com graça, louvam, glorificam e santificam o (contra o dualismo) , mas se relacionam, diferenciando-se. R~­
nome do grande rei, poderoso e temfvel; e todos juntos acei· mente, relaçio e diferença siio os dois termos-chave, subcntendi-
tam o jugo do reino dos céus e se ap6iam mutuamente no dos no conceito de criaçio. Como obra de arte, o mundo é a
louvor do seu criador; em paz de espirito, com labios escolhi· exprcssio das intenç0es de seu autor: dc sua miseric6rdia e dc
dos e com santa suavidade, todos respondem em un{ssono, sua bondade: "na tua miscric6rdia (beraJ:ramim) ... com a tua bon-
com tremor, e dizem com veneraçio: Santo, santo, santo o dade (betuvo) renovas as obras do prindpio". ~m cstcs dois
Senhor dos exércitos! Toda a terra esta cheia da sua gl6ria.
De fato s6 ele opera grandes acontedmentos, faz coisas novas, 31 A traduçio, exccto aJsumu modificaç&s, 6 tomada de L. Della
é vencedor das batalhas, semeia a justiça, faz germinar a sal- Torre (org. por), Pregare l'eucaristia. Preghiere di ieri e di oggi per la
vaçio, faz curas, é temfvel para quem o louva; Senhor das caJech4ii e per l'orazione, Queriniana, Brescia, 1982, 31-32.

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termos, muito usados na literatura rabfnica, a tradiçao hebr.aica despontar da aurora. Como os anjos,,, Israel te~ .também o _dever
foca o estatuto da criaçao, revelando o seu valor e seu senudo: de "aceitar o jugo do reino dos céus e de glorificar em urussono
sinal do amor divino oferecido ao bomem corno dom. o Deus tres vezes santo.
• · Esta berakah fala mais de urna recriaçao - "tu renovas
as obras de tuas maos todos os dias" - do que da criaçao. A tra- O dom da Tora
duçao literal do texto seria: "cada dia a criaç~o é feita de no~o,
sempre a partir do infcio (bereshit) " .. T~o ?i~ .reyete-se o .m1la- Com a segunda bCnçao, conhecida também corno birkat ha-
gre da primeira criaçao, ou o bereshtt ( o tnlClo. ) das or1gens. Torah ou pelas suas primeiras palavras corno 'ahavah rabbah,
Nao se trata de simples jogo de palavras. Para o 1udeu crente, o Deus é louvado pelo dom da Tora tanto e até mais do que pela
mundo nao faz parte do "devido" nem do "necessario" i ao con- criaçao, pois a Tora é expressao concreta do seu amor por l srael
trario, é um "atestado" de amor que Deus nos oferece todos os e pela humanidade:
dias. Graças a isto, ele "pode encontrar a coragem de recomeçar
diariamente a viver livre do peso dos erros, dos fardos e dos Com grande amor nos amaste, Senhor nosso Deus; riveste
para conosco uma grande e copi~sa indulgen~ia. Pai nos~o,
pecados · assim cada manha ele pode olhar um mundo novinho,
criado por'
Deus' apenas para ele".32 nosso rei, por amor a nossos pa1s que conhavam em ti .e
aos quais ensinaste os estatutos da vida, se clemente e ens1-
• A surpresa e a alegria diante do mundo recriado pelo na-0s também a n6s. Pai nosso, pai misericordioso, tem pie-
amor divino sao tiQ grandes, que podem ser expressas somente dade de n6s; concede ao nosso coraçao discernir, compreen-
por um grito de exclamaçiio: "corno sao grandes as tuas obras, Se- der e entender, aprender e ensinar, guardar, fazer e cumprir
nhor, pois fizeste tudo com sabedoria ... " Além deste texto ~e com amor toda palavra proveniente do estudo de tua lei.
exclamaçao, tirado do salmo 104,24 o texto recorre a urna s.érie Ilumina nossos olhos com teus preceitos, faz que nosso co-
de termos de louvor, muitos dos quais sao retomados e rependos raçao esteja vinculado ao teu temor, une nosso coraçao ao
varias vezes: "se bendito ... Somente tu és rei, exaltado ... louvado, amor de teu nome, ja que o grande nome de tua santidade foi
glorificado, elevado ... " realmente proclamado para n6s. Esteja conosco, pelo teu no-
• Mas as palavras hurnanas parecem insuficientes para ex- me, grande e tem1vel; no tcu amor aumenta logo nosso poder,
pressar o louvor e a alegria diante do mundo recriado, razio reina sobre n6s e salva-nos pelo teu nome. Urna vez que
por quc o judcu religioso sente a necessidade ~e inv~ar ,.tod~s confiamos em ti, nao nos deixes fiar confusos, pois ja que
as cortes angélicas e de unir-se à sua voz que, dia e noue, acct- nos refugiamos no teu nome, nao nos deixcs enrubescer de
tando o jugo do reino dos céus .. , canta: "Santo, santo, santo ... " vergonha e que nio vacilemos nem agora, nem nuoca. Ja
(ls 6,3 ). Este texto angélico de particular beleza poética e teo- que és nosso pai, nosso Dcus, que a tua miscric6rdia e tua
l6gica niio deve scr intcrpretado literalmente. Os anjos na tra- piedade nao nos abandone perpetuamente e para sempre. Faz
diçiio hebraica, niio tem urna existencia autonoma e sobrc-huma- chegar até n6s a paz das quatro regi5es da terra e faz com
na. Por isso siio geralmente tidos corno inferiorcs aos homcns e que caminhemos de cabeça erguida em nosso pafs, pois tu
niio tem liberdadc. A sua funçao ( de acordo com o significado nos escolheste entre todos os povos e lfnguas, e nos tens
ctimol6gico da palavra anjo, que significa mensageiro) é o dc con- reconduzido ao teu nome santo no amor. Bcndito seja o Se-
crctizar de forma dramatica, determinados aspectos importantes nhor que escolhe seu povo de Israel com amor .33
da cxperiencia religiosa hebraica: p. ex., o amor dc Dcus ou a
sua justiça, lsrael e a Tora etc... Nesta bençiio do yo~er a funçio Seguem algumas obscrvaç5es importantes sobre csta segunda
dos anjos é a de exprimir a importincia radical e centrai do lou- beraie.ah quc precede e prepara o shema':
vor a Dcus, para o qual Israel é chamado diariamcntc, cm cada • O significado global da prece é indicado pela forma de
concluf-la: "Bcndito seja o Senhor quc cscolhc seu povo de lsrael
32 E. Garfiel, TM Service o/ tM Heart, op. cit., 83.
ll Traduçio in L. Della Torre, Pregare l'eucaristia, op. cit., 32.
80 81
no amor". A oraçao é um solene louvor a Deus por haver invocaçé>es: "ilumina os nossos olhos ... ","prende nosso coraçio ... ",
amado e escolhido lsrael como destinatario do dom da Tora. Ela .
"rema... ", .. salva-nos... " , "faz que nao
- vacilemos... " , "traze-nos a
constitui uma rica "teologia da Palavra" ou "da revelaçao", que paz ... "
completa e integra a precedente que se configura ~mo urna • Com esta berakah chega-se à soleira do shema', toman-
"teologia da criaçao". Criaçao e revelaçio sao as duas _Pilastras do do-nos dignos de pronuncia-la; justamente porque Deus "amou
judafsmo, e como ja no salmo 19, a natu~e~a ~ a lei, o ~undo Israel com grande amor", Israel, por sua vez é convidado, no she-
e a palavra divina nao se opé>em, mas se re1vmdicam e se CXJgem. ma', "a amar o Senhor teu Deus com todo o teu coraçao, com
O Sinai (o momento da revelaçao) nao se justap0e ao Genesis (o toda a tua alma e com todas as tuas forças" ( Dt 6 ,5 ) . ~ neste
momento da criaçao), mas o interpreta e compreende. A relaçio clima de aliança que o shema' é recitado. Este, enquanto a pres-
entre os dois momentos é port.anto, de carater hermeneutico: supOe, a expressa, também a acolhe e realiza.
graças à revelaçao (a Tora ) ? mundo criado 1'°~ Deus des~en.da
o seu sentido, que pede acolh1da e condescendenCia. Daf a d~plice
dimensao da Tora: de um lado, seu carater revelador ( indica-nos O sim da obediéncia e da fidelidade
o que é a criaçao e qual é a intençio a ela subjacente), do outro,
seu carater normativo ( diz-nos como da deve ser vivida e qual Com a terceira bençao, rezada dcpois do shema', cujo nome
é o modo de faze-la dar frutos). é formado pelas suas palavras iniciais: 'emet we-ya#v ( "verdadcira
• Contrariando um estere6tipo muito arraigado, a Tora (nor- e certa" ) , Israel confessa sua disponibilidade a Deus e sua "sub-
malmente traduzida por Lei embora erroneamente) é, para lsrael, missao" à Tora:
a expressio do amor d~ Deus: "com grande amor nos amaste,
Scnhor nosso Dcus ... ". A Tora é o sinal concreto e operativo Verdadeira e certa, est.avei e pereDe, reta e fiel, dileta e
deste "grande amor" ('ahavah rabbah) com o qual Deus acom- amavel, desejada e suave, venerada e sublime, querida e acei·
panhou 'lsrael desde o infcio. A Tora esta a serviço da vida ta, boa e bela é esta palavra quc nos foi proclamada eterna-
(l:zayim) e revela o amor de Deus, invocado perpetuamente corno: mente e para sempre. Verdadeiramente o Deus do universo
"Pai nosso ", "Pai piedoso ", "clementfssimo ", cheio de "grande é Dosso rei, a rocha de Jac6, escudo dc nossa salvaçio. Ele
e copiosa indulgencia", de "miseric6rdia", de "piedade" etc... Esta subsiste de geraçio em geraçao e o seu nome é est.avei, o
insistencia no amor de Deus, esclarece tàmbém um outro aspecto: seu trono é firmemente fundado e seu reino e sua fidelidade
o da gratuidade deste amor, de acordo com o texto de Dt 7 ,7-8: permanecem eternamente. As suas palavras siio vivas, per-
"Se }avé se afeiçoou a v6s e vos escolheu, nao é por serdes o manentes e fiéis nos séculos dos séculos para n6s, nossos pais
mais numeroso de todos os povos - pelo contrario: sois o menor e nossos filhos, para nossas geraçé>es e todas as geraç6es da
dentre os povos! - e sim porque }avé vos ama, e para manter estirpe de Israel, seus servos.
a promessa que ele tinha jurado aos vossos pais; por isso }avé Para os que nos precederam e para os que viriio depois dc
vos fez sair com mao forte e vos resgatou da casa da escravidao, n6s, esta palavra subsiste, na verdade e na fidelidade; foi
da mao do fara6, rei do Egito". determinado que ela nao passa. Verdadeiramente tu és o
• Desta consciencia de que a Toni é fonte de vida, nasce Senhor, Dosso Deus e Deus de nossos pais, nosso rei e rei
o insistente grito a Deus, para que além do dom da Tora, ihes dos nossos pais, nosso redentor e redentor dc nossos pais,
conceda sobretudo o dom de sua compreensao e penetraçio: "con- nossa rocha, rocha dc nossa salvaçao, nosso libcrtador e nosso
cede ao nosso coraçao discernir, compreender e entender apren- salvador: eterno é seu nome! Nao ha outro Deus fora de ti.
der e ensinar, observar, fazer e cumprir com amor toda pala- Tu foste desde sempre o auxilio de nossos pais c depois dclcs,
vra proveniente do estudo de tua lei". Esta invocaçiio, qQ.e com escudo e salvaçio dos seus filhos, de geraçao cm geraçio.
seus oito verbos explicativos descrcve como urna viagem ine'Xàu:- Tua morada é nas alturas eternas; c tcus jufzos e tua justiça
rfvel no universo da Tori, é retomada e recxplicada por outras vao até as extremidadcs da terra. Feliz do homcm quc es-

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cuta teus preceitos e pée tua lei e tua palavra no coraçao. Iembrança-experiencia que Israel tem do Egito, revivendo sua
Realmente tu és o Senhor do teu povo, rei poderoso ao sus- força jubilosa e libertadora.
tentar sua causa. Verdadeiramente tu és o primeiro e a Ul- Seguem algurnas observaç6es para urna melhor compreensao
timo e fora de ti nao temos nenhum rei e salvador. Verda- do texto:
deiramen te tu nos resgataste do Egito, Senhor nosso Deus, • Com esta bençao, a comunidade em oraçao da seu pieno
e nos libertaste da casa da escravidao; tu mataste todos os consentimento à palavra divina do shema', cuja inexaudvel riqueza
seus primogenitos e resgataste o teu primogenito, dividiste e fecundidade é dc.scrita com o auxilio de nada mais e nada me-
o mar Vermelho e nele submergiste os arrogantes, enquanto nos do que dezesseis adjetivos qualificativos: "verdadeira, certa,
fizeste passar os teus queridos, as aguas os afocaram a todos , estavel, perene, reta, fiel, dileta, amavel, deseiavel, suave, vene-
nao ficando um s6. Por isso os seus diletos louvaram e exal- rada, .su~lime, cara, ,aceita'. bo~, bela" . Ent.re todos estes adjetivos,
taram a Deus, os seus eleitos elevaram hinos, canticos e lou- o mais importante e o pruneuo (verdadetra, em hebraico 'emet),
vores, bençaos e aç6es de graças ao rei, Deus vivo e eterno, que, se~do a tradiçao, deve ser recitado, imediatamente e sem
excelso e elevado, grande e temivel, que abate os arrogantes nenhuma rnterrupçao, logo depois das duas Ultimas palavras do
até a terra e eleva os oprimidos até ao céu, solta os prisionei- shema': "o Senhor vosso Deus" ('Adonai 'Elohekem). Na tradiçao
ros e livra os aflitos, ajuda os pobres e responde a seu povo h~braic~, a "ve~d~de.", ma~s que caractedstica da inteligencia, é
quando este o invoca. Deus, altissimo, seja louvado: bendito dimensao da ex1stenc1a. É verdadeira" aquela existencia que co-
e digno de toda bençao! Moisés e os filhos de Israel te res- rno "urna arvore, que plantada ao lado de um rio" ( cf. SI 1,3 )
ponderam com urn cantico em grande alegria, e todos disse- produz frutos de sentido; é "falsa" a que1 embora rica de idéias e
ram: Quem é semelhante a ti entre os fortes, Senhor? "verdadeira" em nfvel 16gico-racional, é contudo incapaz de dar
Quern é semelhante a tl, sublime em santidade, temfvel por ~ut?s de amor ,e de paz. Ao. se juntar o termo 'emet às palavras
quem te louva, realizador de maravilhas? Com urn cantico fma1s do shema quer-se sublinhar que s6 Deus torna a existencia
novo os remidos louvaram teu nome, à beira-rnar todos em humana "verdadeira "; que somente em Deus ela descobre e rea-
urussono te renderam graças, te aclamaram corno rei e disse- liza seu sentido. De acordo com outra tradiçao as palavras do
ram: o Senhor reinara eternamente e para sempre! Rochedo shema' que sao 245, somadas às tres precedentes ( Senhor-Deus-
de lsrael, vem em auxilio de Israel e liberta, de acordo com verd~de) formam um tota! de 248 unidades, que correspondem
a tua promessa, Juda e lsrael. Nosso redentor, Senhor das à~ divcrsas partes .do. ~rpo humano.36 Nesta analogia o Midrash
multid6es; o seu nome é Santo de lsrael. Se bendito, Senhor, ve um profundo s1gnif1cado: se se é fiel ao shema', que é como
que redimes Israel.34 o Corpo de Deus, Deus sera fiel ao corpo do homem.37 Note-se
bem: ao "corpo" do homem e nao somente à sua alma. A ver-
Esta bençao, conhecida também corno birkat ·ge'ulah ( reden- dade, na Biblia, diz respeito a este "corpo", isto é, à totalidade do
çao-libertaçao) e ja testernunhada pelo Talmud,35 é sem duvida homem e da hist6ria: espfrito e matéria, logos (pensamento)
urna das mais belas oraç6es da literatura religiosa e lirurgica e sarx (carne) .
mundial. Ela é urna solene profissao de fé no valor eterno da • Deus é ~ ~ndamento. e garantia desta "verdade". As pa-
Palavra de Deus proclamada no shema', que, ontem corno hoje, lavras do shema sao verdadeuas, porque pronunciadas pelo Deus
continua a salvar lsrael, assim corno o salvou antigamente do
Egito. Da{ as duas partes da oraçao: a primeira centrada na Pala- 36 Mishnah Oholoth 1.8.
vra de Deus (o shema' recitado anteriormente) da qual se canta . . 37 Eis o trecho do Midrash: •Nao tomeis as palavras do Shema" super-
f1c1almente, porque ele tem 248 palavras, o mesmo numero dos membros
a beleza deslurnbrante e a segura eficacia; a segunda, centrada na do !1osso corpo. e corno se, de um certo modo, Deus dissesse: 'Se guardardes
aqudo que é f!leu, e~ guardarci aquilo que é vosso. (Serei para v6s)
34 Traduçio in L. Della Torre, Pregare /'eucaristia, op. cit., 34-35 e corno para Davi que mvocava o Eterno: guardai-me corno a pupila dos
UTET, 44042. olhos, e ao qual Deus respondeu: observa meus mandamentos e viverés' "·
35 TB Ber 11b; Tam 5.1. cf. E. Munk, Le monde des prières, op. cìt., 138. '

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que é "nosso rei", "o rochedo de Jac6", "escudo de nossa salva- 5. As bençios da tarde
çio", por Deus cujo "reino" e cuja "fidelidade" pcrmancccm eter- De acordo com Dt 6,7, o judeu religioso deve proclamar o
namente. shema' duas vezes ao dia: "Quando te deitas e quando te levan-
• Graças a este Dcus a Tora (da qual o shema' é o coraçio taS". Também nesta proclamaçio, corno naquda da manhi, o
e a sin tese) é "verdadeira" para sempre, "pelos séculos dos sé- shema' é precedido e seguido de algumas bençios. As que precedem
culos": para n6s, nossos pais e nossos filhos, para as nossas ge- sao duas, como de manhi: na primeira ("tu, que escureces as noi-
raçées e por todas as geraçées da estirpe de Israel ... , para aqueles tes ", ma'ariv 'aravim), agradece-se a Dcus pela chegada peri6dica
que vieram antes de n6s e para os que virio depois ". do dia e da noite; na segunda ("amor perene", 'ahavat 'olam)
• Esta afirmaçao da vitalidade-validade da Tora nio se ap6ia louva-se a Deus pelos mesmos motivos da ma.nha, embora isto
em um argumento racional, mas numa experiencia hist6rica de· seja feito em forma mais breve e esscncial.
terminada: "re.almente tu nos resgataste do Egito ... , nos livraste As bençaos que vem depois do shema' ao contrario do que
da casa da escravidao, fizeste morrer os seus primogenitos, res- acontece de ma.nha, sao duas: na primeira ( "verdade absoluta e
gataste o teu primogenito, dividiste o mar Vermelho, nele afogaste eterna", 'emet we-'emunah) proclama-se Deus corno libertador e
os arrogantes, enquanto fizeste os teus diletos atravessa-lo ... Moi- redentor; na segunda ( "faça descansair", hashkivenu), pede-se a
sés e os filhos te responderam... com grande alegria ". O evento Deus, urna boa noite e o afastamento de todo perigo. Fundamen-
fundamental da experiencia religiosa de Israel é o exodo, cujas talmente, a estrutura, o significado e o conteudo destas quatto
etapas principais a berakah relembra: a salda, a libertaçio, a berakot sio os mesmos da manhi. As diferenças (a maior parte
morte dos egfpcios, a pascoa, a travessia do mar Vermelho, o matizes) sio de duas ordens: trata-se de textos mais breves e ha
canto de vit6ria e de alegria depois de ter passado o mar Ver- maiores referencias ao horario da tarde, quando eles sfo recita-
melho etc ... dos. Apresentamos o texto de cada urna destas bençios e faremos
• Este evento fundamental cria a conscienda de um Dcus observaçées sobte suas caractedsticas principais.
"vizinho" ( "auxilio de nossos pais": com o qual começa a se-
gunda parte da berakah), que nao olha a hist6ria humana da parte
de fora , mas dela participa de dentro e com amor. Dar a diversi- As portas do nascer e do p~r-do-sol
dade de atributos com os quais Deus é sempre de novo qualifi-
cado e definido: "nosso redentor", "redentor de nossos pais", A primeira bençio é de louvor a Dcus pela noite que chegou.
"nossa rocha", "rochedo da nossa salvaçao", "nosso libertador", T amhém da, do mesmo modo que a Iuz da aurora, é "criatura"
"nosso socorro", "o primeiro e o ultimo", "escudo de nossa sal- de Deus, que exprime e realiza sua vontade:
vaçao". se bendito, 6 Senhor nosso Deus, rei do mundo, que pela
• A mem6ria do exodo, evento fundamental, nio somente tua palavra fazes escurecer a noite; com sabedoria abres as
torna possfvel um presente de fé e alegria ( "Bem-aventurado o portas (do nascer e do p0r-do-sol) e com inteligencia alternas
homem que ouve os teus preceitos e que p6e tua lei e tua palavra as estaçées e mudas os tempos. Com tua pr6pria vontade
no coraçio" ) , mas ab re o coraçlio à certeza da redençio messiini- fixaste as leis celestes para os astros, de modo que és o cria-
ca: "Rochedo de Israel, vem em auxilio de Israele livra ... I srael". dor do dia e da noite. Tu fazes que depois da luz venha a
A libertaçao passada torna-se segurança e garantia da libertaçao escuridio e depois da escuridao a luz, fazes passar o dia e vir
futura: corno Deus nos libertou da opressio dos egfpcios, assim a noite, tu fizeste a separaçio enttre o dia e a noite. O teu
nos libertara (e libertara todos os povos) das novas opressées. nome é Senhor dos exércitos, o teu nome é imortal e eterno
Entre a libertaçao passada e a futura, fica a suplica ( "Rochedo· de tu nos das nova vida eternamente. Se bendito, 6 Senhor;
I srael, vem em auxflio ... ") que finaliza o shema' e prepara para que escureces a noite.38
a tefillah.
38 Traduç!o in D. Disegni, Preghiere, op. cit., voi. J, 81.

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Sao très os aspectos particularmente importantes: A finalidade da vida
• O tema centra! é a "noite" (lailah), simbolo da nio-luz e
da anticriaçio. Por isso eia é o lugar das bestas ( Sl 104,20), da Com a segunda bènçio ('ahavat 'olam, "amor eterno") lou-
peste tenebrosa ( Sl 91,6), dos ladr0es e assassinos (]6 24,13-17). va-se a Deus, corno de manhi, pelo doro da Tora, que constitui
Embora o simbolismo da noite seja ambivalente, porque significa o esoopo da vida de Israel:
também o término do cansaço e repouso, entretanto, na experièn- Tu tiveste um amor perene por teu povo, a casa de Israel;
cia comum prevalece sua dimeosio obscura e terrificante. tu nos ensinaste leis, preceitos, estatutos e instituiç0es. Por
• Deus é prodamado "criador do dia e da noi te", aquele isso, 6 Senhor nosso Deus, ao deitarmo-nos, ao levantarmo-
cuja "palavra faz escurecer a noi te". Estas expressé5es de rara nos, inspira no nosso coraçao o gosto pela meditaçao dos es-
profundidade simb6lico-teol6gica devem ser bem entendidas. Afir- tatutos de tua vontade, de modo que nos alegremos e exulte·
mar que Deus é "criador do dia e da noite", da luz e das trevas mos no estudo constante de tua Lei e de teus preceitos,
nio significa colocar de modo dualistico urna segunda realidade uma vez que eles constituem o escopo de nossa vida e nos
( as noites-trevas) no mesmo plano que a primeira (o dia-luz) proporcionam loogevidade. Faz que meditemos neles dia e
corno entidade do mesmo valor e dignidade. Ao contrario signi- noite. Nao nos prives jamais de teu amor! Bendito sejas, 6
fica negar à noite-trevas qualquer valor absoluto, reconduzindo-as Senhor, que amas o teu povo de Israel.40
debaixo do senhorio de Deus, que corno no caos inicial ( cf. Gn
1, 1ss . ) afugenta seu poder com a força da luz e do kosmos ( cos- Para urna melhor compreeosio do texto podem ser uteis as
mos). Proclamar que Deus é criador da noite é dedara-la desen- seguintes observaç0es:
t
tronizada: eia nio o lugar-momento do terror e da morte, mas • O motjvo centrai que pede e fondamenta a atitude de
louvor e de agradecimento dian te de Deus é o "amor perene
do amor criador de Deus. Para o judeu religioso, cada aurora
que surge é urna nova criaçao na qual Deus, corno no primeiro que tiveste pela casa de Israel ". Observe-se o matiz que ha
dia domina as trevas, transformando-as em ordem. Por isso ele entre a expressio da manha ("grande amor", 'ahavah rabbah)
nio teme a morte e pode descansar cm paz, e sem medo pode e a da tarde ( "perene amor", 'ahavat 'oiam ). Segundo alguns
bendizer o Senhor porque "ele faz escurecer as noi tes", "abre as autores a dìferença é a seguinte: de manha fala-se de "grande
portas da aurora e da manhi", "alterna as estaç&s ", "faz a amor" enquanto a expressiio se refere à experiència presente
escuridiio vir depois da luz, e a luz depois da escuridao" ... do amor de Deus, manifestado no romper da aurora e da nova
vida; à tarde, ao contrario, se fala de "amor perene" ('olam;
• Urna vez que o shema' é rezado de tarde, oa escuridao da literalmente: futuro) enquanto a expressiio se refere à esperan-
noite, omite-se a qedushah dos anjos, que se encontra na bènçio ça/certeza de que o amor de Deus permaneça além da noite.
da manha. O motivo é que os anjos, segundo a tradiçiio midraxi- Esta niio contradiz o seu amor, mas a esdarece e a vence.
ca, podem glor~icar o Eterno somente de dia, e nuoca de noite: • O amor com que Deus amou Israel resume-se a um
"A qedushah, sendo a proclamaçao por excelèocia da gl6ria di- unico doro, o da Tora, cuja bènçao celebra a beleza e eficacia
vina, s6 pode ser recitada durante o dia, quando a natureza se através de varios nomes: "leis", "estatutos", "instituiçé5es". Esta
revela aos nossos sentidos em toda sua riqueza e esplendor. Tora é apresentada corno sinal da "vontade" divina e corno "es-
Por isso eia é omitida durante a noite, quando o mundo da copo da vida" de Israel.
criaçio fica velado à nossa percepçao" .39 • A Tora, por causa da qual Deus é bendito e invocado,
nio é uro peso a ser supor tado, mas urna fonte de alegria à qual
devemos nos entregar: " ...nos alegraremos e exultaremos para
sempre pelo estudo da Tora e dos teus preceitos ... eles ... nos
39 Cf. E. Munk, Le monde des prières, op. cit., 234. 40 Traduçào in D. Disegni, Preghiere, op. cit., voi. I, 81.

88 89
proporcionam longcvidade". É esta consciencia (a Tora como se- Quanto ao texto da manhi, sio estas as diferenças principais:
gredo da vida) quc suscita a dupla invocaçio com a qual se ter- • no centro das duas bençios esta a lembrança da libertaçio
mina a prece: "Faz quc med.itemos neles dia e noitc. Nao nos de lsrael da escravidao egfpcia: mas enquanto no texto da manhi
prives jamais de teu amor". o relato é feito com o verbo no passado ( "tu nos resgataste do
Egito ", "nos liv ras te", "mataste os seus primogenitos ", "resgatas-
te o teu primogenito", "dividiste o mar Vermelho", "afogaste os
A fidelidade de Deus arrogantes" etc... ), no da tarde é usado o presente, que implica
urna açio constante e contfnua.42 O motivo é simples: "de ma-
nhi, estamos cheios de gratidio por termos sido libertados das
Com a terceira bençio, que vem logo ap6s o shema' se rcco-
afliçé5es da noite escura e da depressio moral. A tarde, ao contra-
nhece a verdade e a eficacia da Palavra divina proclamada. O tcx-
to, atribufdo a Rab, é no fundo, semclhante àquele da manhii, rio, pensamos com esperança na futura redençao e nos lembra-
mos de sua proteçio e dos constantes cuidados que nio cessam
embora apresente diversas variaçé5es:
jamais. É por isso que para o texto da manhi foi escolhido o
Tudo isto é verdade e vcracidade, e é coisa dcfinida para n6s passado, tempo de retrospecçio cheia de reconhecimento; enquan-
que ele é o Senhor nosso Deus, e nio ha outro fora dele, e to para a tarde o presente e o futuro, tempos de expectativa con-
que n6s somos lsrael, seu povo. Ele nos libertou da mio do fiante ('emunahY ; 43 ·
rei; ele é nosso rei que nos redimiu do poder dos tiranos; ele • na bençào da manha, a invocaçio é a seguinte: "Rochedo
é o Deus que puniu nossos perseguidores e fez todos os nos- de Israel ... livra ... Juda e lsrael" ; na da tarde, ao contrario, ela
so.s inimigos pagarem a pena. Ele nos deu a vida, e nio per- tem a seguinte versio: "Quem, 6 Senhor, libertou Jac6 e o remiu
m1tç que nossos-pés vacilem, ele nos conduz aos lugares altos de um poder maior do que ele?" Os rabinos gostam de salientar,
de -?ossos inimigos, e nos faz vencer todos aqueles que nos em seus comentarios, a diversidade do nome do Patriarca: de
~etam. Ele é Deus, que realiza maravilhas por nos e exerce manhi é usado o nome "Israel ", nome de poder e de vit6ria
vmgança s~bre o fara6, operando milagres e prodigios na (de acordo com urna etimologia popular a palavra "Israel" podc
Terra dos filhos de Cam. Na sua ira, ele desferiu golpes em significar: "foi forte contra Deus ", d. Gn 32 ,2Jss); de tarde
todos os primogenitos e fez sair do seu meio Israel seu povo o no~e de Jac6 ~ue se encontra num estado de fraqueza e de
concedendo-lhe liberdade eterna. Ele fez passar todos os seu~ ne:e~s1dade. lsto e um modo de dizer que, de manha, o hebreu
filhos pelo mar Vermelho dividido e sepultou nos abismos reltgioso sente-se "forte" como Israel, porque enriquecido pelo
das aguas aqueles que os perseguiam e odiavam. Seus filhos dom de um novo dia, enquanto de tarde se sente "fraco" e
viram seu poder, louvaram e confessaram seu Nome e com "precisando de ajuda", corno Jac6, porque se encontra ameaçado
alegria aceitaram que ele fosse seu rei. Moisés e o~ filhos pelas trevas da noite.
de lsrael entoaram um canto a ti com grande alegria dizendo
todos : "Quem é corno tu, Senhor, entre os deuses: quem,
corno tu, temo esplendor de santidade, é venerado através de A oraçao por um "bom descanso•
l~uvores, tu, Senhor que operas prodfgios?" Os teus filhos
v1ram tua realeza, tu, que divides o mar diante de Moisés. Com a quarta bençao (hashkivenu, "Faz-nos repousar") tam-
"Este é o meu Deus" exclamaram e disseram: "o Senhor rei- bém ch8!11ada de "redençao prolongada" (ge'ulah 'arikatah), por
nara eternamente e por todo o sempre". E disseram também: ser cons1derada corno prolongamento da anterior, pede-se a Deus
"Q_uem, 6 Senhor. libertou Jac6, e o remiu de um poder
ma1or do que ele?" se bendito, Senhor, que redimes I srael.41 4~ Na traduçio italiana acirna citarla, tirarla da UTET, nio aparece
esta diferença, uma vez que os verbos foram traduzidos no passarlo Cf E
Munk. Le monde des prières, op. cit., 238. · · ·
41 A traduçiio in UTET, 442-43. 43 Idem, 239.

90 91
a proteçao dc Deus durante a noite, afastando de n6s os podcres significado simb6lico do "sair" e do "entrar" na noite: corno
advcrsos do mal: Deus protege nao semente aquelcs que moram na cidade santa,
mas também aqueles que estao fora dela, do mesmo modo protege
Faze-nos repousar em paz, Senhor nosso Deus, e faz, nosso nao apenas durante o dia ( simbolizado pela cidade de Jerusalém),
rei, que nos levantemos para a vida e para a paz. Estende mas também durante a noite ( simbolizada pelo estar fora de Je-
sobrc n6s a proteçao da tua paz e defende-nos. Oricnta-nos rusalém). A estes dois elementos de intcrpretaçio (o tempo c o
com um bom consclho que parte de ti, e salva-nos cm favor simbolismo ) a oraçio acrescenta ao salmo também urna expressio
do teu nome. SC uma proteçio que nos cerque e afasta dc explicativa, que é a mesma do inkio: "para a vida (le-J:iaim) e
n6s o inimigo, a peste, a espada, a fome, a ang\lstia, a afliçao: para a paz (le-shalom)". Ao começar a oraçao invocava-se a
afasta Satanas tanto da nossa frente corno de tras de n6s. Deus para que nos fizesse "levantar para a vida e para a paz";
Esconde-nos à sombra de tuas asas, porque tu és um Deus ao termina-la ele é invocado para que nos proteja "para a vida
que protegc e salva, um Deus que é rei, que nos trata com e para a paz" nao somentc quando nos levantamos, mas sempre,
graça e miseric6rdia. Protege-nos agora e sempre na safda e seja quando "saimos", seja quando "entramos ".
na entrada para a vida e para a paz.44 Assiro termina a oraçao vespertina do "shema' ". com a ima-
Tres sao as idéias fundamentais expressas na bençao: gem de Deus que fica sempre ao lado de seu povo "para a vida
• Antes de mais nada, pede~se a Deus um descanso sereno: e para a paz": de dia e de noite, na opressao e na liberdade.
"faz.nos repousar cm paz (le-shalom), Senhor nesso Deus ... esten-
de sobre n6s a proteçio de tua paz (shalomekah) ... esconde-nos à
sombra de tuas asas ... " ( cf. Sl 36,8).
A SEGUNDA UNIDADE ESTRUTURAL: A TEFILLAH
• O que significa concretamente um descanso em "paz"?
Significa ficar livre de todos os numerosos e terrf veis fantasmas
quc, segundo a concepçio antiga e a simbologia primitiva, povoam
a escuridio da noi te: "afasta de n6s o inimigo, a peste, a espada, A tefillah é, depois do shema', o segundo momento centrai
a fomc, a ang\lstia, a afliçio" . Estas forças negativas se resumcm da prece hebraica. Comp0e-se de uma série de bençaos breves ou
principalmente em urna: "afasta satanas tanto da nossa frentc co- oraç6es feitas tres vezes ao dia: de manha, ao meio-dia e à tarde,
rno dc. tras. de n?s" . Satanas é o simbolo do mal, por excclencia, e é a " Prece por excelencia" (A Oraçao: traduçao lireral do
do anupro1eto d1vino. Pedir a Deus que nos afaste de satanas é termo ha-te/il/ah) da liturgia hebraica . Intimamente ligada ao
um outro modo de pcdir-lhe que cada noite renove a obra da shema', de acordo com a tradiçao rabfnica, ela é recitada logo de-
criaçao, transformando o caos ( a noite ) em kosmos (o dia ). pois da bençao final do rhema', sem qualquer interrupçao. O moti-
• O repouso nao é pedido por si mesmo, mas em funçao vo desta uniio tem corno explicaçio, de acordo com o Talmud,
da criaçao de um novo dia, oa qual somos chamados a cooperar: o versfculo 5 do salmo 63: "Assim, vou te bendizer em toda a
" faz ... que nos levantemos para a vida (le-J:iaim) e para a paz minha vida, e em teu nome levantar as minhas mios" (para im-
(l~-shalom). Deus nos concede um novo dia le-l)aim (para a plorar-te ). o. versfculo se comp<>e de duas partes: a primeira na
v1da) e le-shalom (para a pa.z): simultaneamente um dom a ser qual se bendiz a Deus; a segunda na qual é feita a invocaçao.
acolhido e urna tarefa a realizar. O futuro ("O Senhor te guar- De ~cordo com o co mentario do Talmud, a primeira parte é deseo-
1

dara ·quando safres e quando entrares") se transforma cm: "pro- volv1da pelo shema, a segunda pela tefitlah. 45 Como o versfculo
tege nossa entrada e nassa saida "; eoquanto o significado literal do salmo forma urna unidade, a primeira parte preparando a se-
de "sair" e dc "entrar" ( que no salmo se refere ao sair e ao gunda, e esta rernetendo àquela, assim o shema' e a tefillah con~­
entrar dos peregrinos na cidade de Jerusalém ) se transforma no tituem uma unidade evocando-se e integrando-se harmoniosamente.

44 UTET, 4.33. 45 TB Ber 16b; UTET, 172.

92 93
1. Tres nomes diferentes significa "julgar", "observar ", "examinar". Na sua forma reflexiva,
itpallel, o verbo significa "julgar a si pr6prio", submeter-se à
Urna vez que a tefillah é composta de 18 bençaos ( emhora critica, fazer a "auto-anali.se". A tefillih é o substantivo com o
atualmente sejam, na realidade 19, pois a décima quarta foi divi- qual se designa este processo de auto-observaçao e de autocons-
dida em duas), ela é também chamada, principalmente pelos ciencia. Ela é normalmente ttaduzida corno "Oraçao": compreen-
asquenazitas, de shemoneh-'e§reh, que em hebraico significa 18. dida nao tanto corno expressao dos pr6prios sentimentos, mas
O nfunero subentende a palavra berakot, significando portanto: corno confronto com Deus e com sua Tora, através da qual a pessoa,
"As dezoito bençaos ". Ainda que historicamente se tenha chegado corno que trespassada pela luz do sol, descobre sua identidade, li-
ao nfunero 18 fortuitamente, a tradiçao midraxica gosta- de ver
bertando-se dos engajamentos e das mistificaçoes que a tomam alie-
nele motivos teol6gicos: "perguntaram a Moisés: 'corno podere-
nada. Ao contrario da opiniiio corrente, a oraçao, na tradiçiio
mos saber quantas vezes devemos rezar?' Ele respondeu: 'quantas
hebraico-crista, mais do que um alibi ou urna agradavel autogratifi-
vezes aparece o Nome lnefavel no salmo 29?' Responderam: 'De-
caçiio, é severo exame de consciencia que purifica o homem e
zoìto vezes'. Entio ele disse: 'Devemos oferecer Dezoito Bén-
contribui para sua regeneraçiio. Segundo a Mekilta ( 14,10) "a
çaos' "46 tefillah é mais forte que um exército": nao se ttata de urna força
Saadia ~aon ( 882-942), urn dos primeiros grandes compi-
magica, mas da conscientizaçao e da responsabilidade que a Torli
ladores do S1dur, encontra doze razoes sobre porque sao 18 as
proporciona.
bençaos da tefillah: porque os nomes dos Patriarcas "Abraao
É neste sentido que a força da oraçiio deve ser compreendi-
Isaac e Jac6" aparecem juntos 18 vezes; porque a Toni fala lS da, tema este tao caro tanto à espiritualidade hebraica corno à
vezes sobre formularios de oraçiio; porque os dias festivos do
cnsta. Deus ouve sempre as suplicas dos seus servos e nao deixa
calendario judeu sao 18 etc ...
seus clamores sem resposta:
Um segundo ~ome com o qual a tefillah é chamada, é 'ami-
dah, que em hebra1co significa "estar de pé". Ela é assim chamada Procurei a Javé e ele me atendeu,
porque é recitada "de pé", devendo a pessoa estar voltada para e dos meus temores todos ele me livrou.
Jerusalém, que é o lugar e o sfmbolo da santidade por excelencia. Contemplai-o e estareis radiantes,
Por-se de pé, diante de urna pessoa, é um modo de demonstrar-lhe vosso rosto nao ficara envergonhado.
a pr6p~i~ submissao e. disponibilidade. Recitando de pé o she- Este pobre gritou e Javé ouviu,
mor:eh- esreh, a comuntdade em oraçao expressa sua vontade de salvando-o de suas angilstias todas (SI 34 ,5-7).
acei~ar, e obedecer à vontade divina. Este costume, comprovado
por 1numeras passagens do Antigo Testamento (cf. Ed 50,13; Esd Como entender estes versfculos e corno concilia-los com estes
outtos do salmo 22:
2_0,21;38,10; Ne 8,5) sera retomado também pela tradiçao cris-
ta, tornando-se urna das posiç6es fundamentais na oraçiio eclesial. Meu Deus, eu grito e nao me respondes
Ao lado ?o
simbo~ismo da disponib~~ade, o "estar de pé" lem- de noi te, e nuoca tenho descanso ( Sl 22 ,J ).
bra tambem o da liberdade. Ao contrario do escravo, que é obriga-
do a prostrar-se, o homem livre se p0e diante dos outros sobre A te/illah, tomada corno autoconsciencia à luz da Palavra de
um mesmo, ~vel de _autor.iomia e de dignidade. Recitando de pé o Deus, pode ajudar a resolver esta contradiçao aparente: Deus
" ouve n sempre as nossas preces, mas nao no sentido que ele se
shemoneh- esreh, o ISraelita ao orar manifesta assiro além da sua
disponibilidade, sua concepçio da divindade: parc~a no dialogo adapte à nossa vontade, mas naquilo que esta de acordo com a
com quem se comunica respeitosamente e com amor. ' s~a. Pedir a Deus e invocar sua ajuda nao significa força-lo a
_Mas o nome mais comum para indicar a série de oraç6es vu de encontro aos nossos desejos, mas aceitar e aderir à sua
vontade. A pessoa que reza, abandonando-se à vontade de Deus
depots do shema' é tefillah, derivado do radical verbal pll, que
46 Em A. E. Millgram, fewish Worship, op. cit., 106.
pode dizer sempre: .. Procure_i ,a.Javé eeI:me atendeu"; enquan-
to que aquele que a acha dilicil dama: Meu Deus, eu grito e

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nao me respondes, de noi te e nunca tenho descanso". Estas duas as "petiç6es ", embora quase todas ja estivessem em uso an-
"vozes" escondem-se em todos aqueles que rezam, e a tefillah tes da destruiçio do Segundo Templo. Quanto à sua origem,
tem corno tarefa faze-los passar progressivamente do segundo para algumas das Dezoito Benç.aos foram tiradas do Templo, ou-
o primeiro estagio. "Se a tefillah pretende essencialmente elevar . tras foram compostas, inicialmente pela devoçio particular e,
a alma até a Divindade através do conhecimento de sua vontade, enfim, outras parece terem surgido na pr6pria Sinagoga. A
toda prece traz em si mesrna a sua resposta. Se o fiel ve que sua composiçao definitiva destas oraç6es foi feita pelos anos 100
oraçao nao foi aceita, por que prender-se a eia? Eia nao tem mais da era crista, sob a direçao do Patriarca Gamaliel Il.48
condiçé>es de expressar sua vontade nem seu desejo, porque nio
representa a vontade do seu Criador. É apenas em urna perspectiva
superficial que seu desejo nao é ouvido; na verdade, aceita ou Os principais testemunhos hist6ricos
nao, a oraçao alcançou sua finalidade: eia tornou a Presença e a
Vontade de Deus sensiveis".47 O texto basico, que oferece as maiores informaçOes sobre a
N6s nos delongamos um pouco nesta dimensao teol6gica do tefillah é o tratado Berakot da Mishnah, que dos seus nove capitu-
termo tefillah, porque em relaçao às outras duas, ela é mais im- los dedica dois deles à tefillah. Depois de haver falado do shema'
portante e origina!. Entremeando o dia com a reza das "Dezoito (cap. 1-3), a Mishnah passa a tratar da tefillah (cap. 4-5), vin-
Bençaos ", o judeu religioso purifica lentamente sua vontade, até do depois deles os capftulos dedicados às bençaos ( cap. 6-9), so-
adequa-la à vontade de Deus. bretudo à bençao depois das refeiç6es. Os capftulos 49 e 5~ da
Tornada transparente corno o cristal, a sua vontade torna-se Mishnah falam do como e do quando rezar a tefillah, trazendo as
o reflexo de urna outra vontade, a de Deus, seu Criador e Se- diversas opinioes dos rabinos. Por exemplo, no cap. 4,3 le~se:
nhor. "Seja feita a tua vontade": esta invocaçao com a qual se Rabban Gamaliel diz: "Todo dia recitam-se as dezoito ben-
abre o Pai-nosso ensinado por Jesus de Nazaré, pode ser tida çaos". R. Josua diz: "O resumo das dezoito bençaos". R. Aki-
corno a expressio que sinte·tiza com rnaior perfeiçao toda a tefillah. ba diz: "Quem tem pratica de recitar as preces, diz as dezoito
preces, quem nao tem diz um resumo delas" .49
2. Origem e estruturaçio
Um texto corno esse nos da muitas informaç6es importantes.
A maior parte dos entendidos esta de acordo, pelo menos na Em primeiro lugar delimita um espaço hist6rico facilmente data-
linha de prindpios, em datar a origem da tefillah no século II vel; de fato, Rabban Gamaliel R. Josua e R. Akiba pertencem
antes da era crista, se nao ero todas as suas partes, pelo menos à segunda geraçao tanaitica ( 70-135 d.C.) . Neste periodo ja era
em sua estrutura geral. Outros chegam até a data-la no século IV portanto difundida a pratica da tefillah. Ero segundo lugar o texto
antes da era crista, e seus COl'T'ponentes principais ja teriam feito nos fala de urna "ediçiio" dupla da tefillah; urna em versao inte-
parte da liturgia do Segundo Templo. grai ("dezoito bençios") a outra, urna versao reduzida ("0 re-
A prop6sito das origens da tefillah o rabino J. H. Hertz es- sumo das dezoito bençaos" ) . Em Jerceiro lugar o texto nos mostra
creve: urn notavel grau de fluidez e liberdade na reza da tefillah: de
Esta oraçao nao é produto de urna s6 mente, nem de um fato, alguns preferem a f6rmula integrai ( Rabban Gamaliel) ou-
unico periodo. As bençaos iniciais, que sao "louvores", sio tros, a reduzida ( R. Josua), outros ainda qualquer urna dela~, de
fruto do trabalho dos homens da Grande Assembléia no sé- acordo com determinadas condiç6es ( R. Akiba) .
\.Ulo IV a.C. As finais, que sao "agradecimentos", ~io me- Mas além do tratado da Misbnah, dispomos também de fon-
nos antigas, mas remontam sem duvida ao periodo macabeu, tes calmudicas, nas quais encontramos igualmente importantes in-
na metade do século II antes da era crista. Mais recentes sio formaç6es. Sao tres as passagens talmudicas de particular impor-
47 E. Gugenheim, Le juda1sme dans le vie quotidienne, Albin Miche!, 48 J. H. H~rt~, The Authorized Daily Prayer Book, op. cit. 130s.
Paris, 1978, 25. . , 49 O texto italiano em V. Castiglioni, Mislmaiot, voi. J, Tipografia Sabba·
dm1, Roma, 1962-572.2, 22.
96 4 • hrael em oraçlo
97
tancia. A primeira é Meg 17h, segundo a qual "Cento e vinte an- A tefillah nos dias ftstivos e feriais
ciaos, entre os quais muitos eram profetas, compuseram as dezoito
bençaos". O segundo é Ber 33a no qual se le que "os homens da A tefillah é composta de 18 benç.aos quando é rezada nos
Grande Assembléia instituiram para Israel bençSos e preces, santi- dias comuns, enquanto seu niJmero fica reduzido nos dias festi-
ficaç6es e havdalah ( oraçao do sabado à tarde) ". o terceiro é vos e aos sabados. Ficam sempre as primeiras très ( que sao ben-
Ber 28b, segundo o qual as dezoito bençaos seriam traballio de çaos de louvor) e também as Ultimas très ( que sao bençaos de
certo Simao, o Cardador: "Os nossos Mestres ensinaram que agradecimento) , enquanto sao eliminadas ou reduzidas as inter-
Simao ha-Pakuli organizou dezoito bènç.aos na presença de Rabban mediarias, que sao de petiçao.
Gamaliel em Jamnia". Mesmo que nao seja facil interpretar e con- O motivo desta supressao é que no dia de sabado o israelita
ciliar estas passagens ( principalmente as duas primeìras com a religioso ja vive na plenitude divina: esta nao deve ser espe-
ultima), no entanto elas parecem concordar no que diz respeito rada nem invocada, corno nos dias feriais, mas sim gozadas e
às datas, dificilmente contestaveis: que o uso de rezar estas ora- fruidas corno na era messianica. Na simbologia hebraica é comum
ç6es é muito anterior à primeira era crista, e que sua organizaçao a imagem do Sabado corno a "esposa" de Israel. Visitado pela
e fixaçao em niJmero de dezoito aconteceu cerca do ano 70 d.C., "esposa", que é a shekinah (a Vizinhança de Deus), Israel tende
apés a queda e a destruiçao do Segundo Templo. na Academia mais a gozar, louvar e a agradecer do que a "pedir". A oraçao
de Jamnia. Mas este trabalho de organizaçao em Jamnia deve ser de invocaçSo demonstra de fato a diferença entre o tempo pre-
bem entendido: mais do que as palavras exatas de cada urna das sente, ameaçado pelo pecado e o messianico, repleto de shalom
bençaos, foram estabelecidos seu numero, sua ordem e estrutura e de graça. O sabado, corno também as grandes festividades,
.
'
geral. Para se chegar às f6rmulas completas da tefillah sera neces-
sario esperar até ao século IX da era crista, quando apareceram os
enquanto imagem e antecipaçao do tempo messianico, nao po-
dem deixar de suprimir o tempo de petiç6es: se esta tem sentido
primeiros Siddurim. quando a esposa esta longe, para invocar sua beleza e presença,
A luz destas observaç&s é possfvel distinguir très fases di- eia perde o sentido quando a esposa esta presente, convidando a
ferentes no processo de formaçao das tefillah: cantar e gozar.
• A primeira fase é a que abrange o espaço de tempo do Ha portanto, dois tipos de tefillah: urna recitada nos dias
Segundo Templo: neste periodo surgiram algumas das principais comuns e composta de dezoito bençaos; outra rezada aos sabados
bençaos que compoem a tefillah; sem duvida as très primeiras e e nos dias de festa, composta de sete e às vezes nove bènçaos.
as tres Ultimas, conhecidas, de acordo com Tosef Ber 3,13, também Nestes dias as invocaçoes centrais sao substitufdas por urna
às duas escolas de Hillel e de Shammai. nova chamada qedushat ha-yom ( "santificaçao do dia"): "Se ben-
dito, Senhor que santificas o Sabado" ou "que santificas Israel
• A segunda fase coincide com a Academia de Jamrua, que e as festas ". Ela varia ligeiramente de acordo com as festas cele-
apareceu depois da destruiçao do Templo, no ano 70 d.C. Aqui, bradas. Por ex., a rosh ha-shanah (Ano Novo) soa: "Bendito ...
pela primeira vez, se fixa o numero das bènçaos e seus conteudos rei sobre toda a terra que santificas l srael e o dia memoravel
particulares. Nao se trata de um traballio criativo, mas de redaçao (yom ha-zikkaron)"; no dia da expiaçao: "Sè bendito ... rei que
e organh:açao. Os sabios de Jamnia mais que autores da tefillah perdoas e esqueces nossas iniqi.iidades. .. que santificas Israel e o
sao os que as receberam e compilaram. Dia da expiaçao"; etc... A bençao que substirui as invocaçoes é
• A terceira fase é a que coincide com os Siddurim que fazem sempre a mesma, com exceçao da festa de rosh ha-shanah e do
expressamente referencia ao texto das dezoito bènçaos. Também dia da Expiaçao que tem tres delas.
aqui foi feito um trabalho de compilaçao e nao de criaçao, razao Além da eliminaçao das invocaç6es centrais, a te/illah dos
por que estas f6rmulas e palavras sao o eco, mais ou menos fiel dias festivos é também caracterizada por algumas particularidades
e mais ou menos literal de antigas f6rmulas e palavras com as (musa/). Por exemplo na tefillah do dia de Sabado, a quarta
quais ja havia séculos os judeus invocavam e louvavam o seu Deus. bènçao é enriquecida de reflexoes teol6gicas particulares sobre o

98 99
significado espiritual do sabado. Na tefillah da tarde, o shabbat diz respeito ao homem e à sua bist6ria, ele é sempre sobcrana-
é apresentado corno "memorial da criaçio ", seguindo-se logo de- mente livre e transcendente; por isso na terceira b&içio ele é
pois a leitura de Gn 2,1-3; na tefillah da manha o sabado é proclamado e reconhecido corno ha-qadosh, Santo. Estas tres ben-
associado ao dom da Tora no Sinai e apresentado corno simbolo çaos constituem urna Unica unidade teol6gica e tematica e for-
da aliança entre Deus e Israel; na tefillah do meio-dia é sauàado mam um dos atos de fé mais belos e densos de liturgia hebraica.
corno o dia do repouso total, que antecipa e realiza o shalom e o As trés ultimas bénçaos sao o fecho da tefillah e estio con-
descanso da era messianica, "o dia que sera todo ele um shabbat" centradas no tema do agradecimento. Na realidade s6 a segunda
(Tam 7,4 ) . Estes textos foram escolhidos por expressarem tres desenvolve explicitamente o tema do agradedmento, enquanto a
aspectos cliferentes, mas complementares do Sabado: criaçao, reve- primeira exprime a esperança de que Deus restaure o culto do
laçiio e redençao, as tres pilastras do pensamento e da liturgia he- Templo de Jerusalém, e a terceira, que conceda abundantemente o
braica. Além destas variaç5es, ha ainda outra,. de acordo com os dom da paz. Apesar disso a tradiçao rabinica gosta de defini-la tam-
diversos ritos das diferentes comunidades. bém corno "bençao de agradecimento", sendo ele (o agradecimen-
No que tange à tefillah dos dias de féria, ela permanece to) completo e real somente quando houver a plenitude do culto
invaciavel durante todo o ano, com algumas exceçées em alguns e abundancia de paz.
periodos particulares. Por exemplo, na estaçao das chuvas, acres- As treze bénçaos intermediarias sao o coraçao da tefillah e
centa-se à segunda bençiio a mençiio de Deus que "faz soprar os constituem uma série de pedidos a Deus, a fim de que ele con-
ventos e cair a chuva "; para a festa de IJ,anukkah e purim, acres- ceda a seu povo tudo o que é necessario para a vida. Elas sao a
Il
centa-se à décima oitava bençao a lembrança dos milagres reali- Carta Magna do judaismo, através da qual conhecemos o que ele
.. zados na época dos Macabeus; nos dias de jejum, acrescenta-se
à décima sexta bençiio urna invocaçao pr6pria a Deus, para que
tem corno verdadeiramente importante. As treze suplicas nio sao
casuais, mas estruturadas conforme uma 16gica teol6gica e antro-
fique mais pr6ximo do que nuoca; se ha pessoas doentes pode-se pol6gica. Os trés primeiros pedidos dizem respeito a valores men-
acrescentar à oitava bençiio w:iia invocaçao expl.icita pela sua cura tais/espirituais: a inteligéncia, a penitencia e o perdao. A inteli-
etc ... gencia é a capacidade de penetrar (intus-legere, ler dentro) o
sentido das coisas, sua intima verdade e realidade; a penitencia
( teshuvah, retorno) é a capaddade de achegar-se progressivamen-
A estrutura da tefillah te da verdade descoberta e amada, satisfazendo cada vez a sede de
sua beleza e transparencia; o perdao é a capacidade de recomeçar
A tefillah é composta de 19 bençaos ( antigamente 18) tudo de novo, mesmo quando a verdade é transmitida com o
subdividida em tres grupos ou seçoes: pecado. Logo depois vém quatto outros pedidos que se referem
1) as tres pcimeiras bençaos; aos valores da liberdade, da saude corpora!~ da abundanda de
2) as Ultimas tres bençiios; alimentos e da Patria. Também aqui, trata-se de pedidos unidos
3) as treze bençiios intermediarias. com coerencia e bem estruturados: para que servem os bens, se
As tres primeiras bénçaos sfo urna introduçiio e se concen- falta a saude? Mas de sua parte, corno é possfvel o bem-estar do
tram no tema do louvor a Deus; elas glorificam a Deus por seus corpo sem a experiéncia da liberdade e da Patria? Liberdade,
tres atributos prindpais, que definem sua Intima realidade e pro- saude, bens e Patria formam no judaismo um quadrinomio indis-
fonda identidade: o seu amor (/J.esed), sua força (gevurah) e sua solUvel, onde um nao pode estar sem o outro.
santidade ( qedushah). O amor de Deus se manifesta principalmen- Depois destas sete suplicas vem outras seis, de carater mais
te em sua revelaçiio hist6rica aos Patriarcas e ao povo hebreu, comunitario e socia!. Se até agora a pessoa em oraçao fez pedidos
enquanto os sinais de seu poder siio a criaçao do nada e a recriaçiio para si mesma, doravante sua prece se focaliza sobre as necessi-
depois da morte, isto é, a ressurreiçao dos mortos. Mas Deus dades do povo, de toda a coletividade. Aqui os pedidos sao pela
é "maior" do que toda revelaçiio e do que toda criaçao; no que justiça integral, pela superaçao da injustiça, pela recompensa dos

100 101
justos, reconstruçao de Jerusalém, pelo advento do Mcssias e O modo de recitar a tefillah
atcndimento das prcces. Como os pcdidos antcriores também
cstcs scis tem além de sua aparencia, urna forte estr:itura uni- A tefillah deve scr recitada de pé e com os olhares vol-
taria. Os pr~eir,os. tres giram em tomo do tema da justiça, cn- tados para Jerusalém. Além do mais ela é rczada em perfeito si-
quanto os tres Ulumos ttatam do tema: era messiaruca. Anali- Jencio, individualmente e sem nenhuma interrupçio. A reza da pri-
san?o ?1ais profundamc:nte, o fid pede que o povo possa viver meira e da penwtima bençao é acompanhada de urna inclinaçao,
na !us~ça, e quc el_a .se~a piena e tota!. Viver na justiça significa gesto este de adoraçao e humildade. O Talmud Ber 34a motiva
a v1t~r1a sobre os 1n1mlgos e a recompensa dos justos, cnquanto esta prescriçao com o versfculo 48 do capftulo 24 do Genesis:
expcnmentar a plenitude messiaruca, significa a reconstruçio dc " Prosternei-me, adorei a Javé, Deus de meu Senhor Abraaon. A
Jerusalém, nao s6 materialmente, mas moral e espiritualmentc inclinaçao deve ser feita com harmonia e atençao: inclina-se a
na qual a vontade de Deus é a vontade do homem e toda oraçi~ cabeça quando se diz baruk 'attah ( "SC bendito "}, e imediatamen-
é sempre ouvida. te levantada quando se pronuncia o nome de Deus. O motivo
Do ponto de vista literario toda e qualquer bençao é com- é porque " Deus levanta aqucles que estio curvadosn , isto é,
po~~ ~e acord? com a estrutura pr6pria das bençaos: urna f6rmu- aqudes que estao sob o peso da provaçao e da dor. Neste simples
l~ trucial, técruc~ e padronizada ( "SC bendito, Senhor ... n) 0 mo- gesto o judaismo encerra toda urna sabedoria teologa! e espiritual.
tivo ou os mouvos que a requerem, e urna f6rmula final semc- No momento do sofrimento e da opressao, o hebreu vive humilha-
lhante à inicial e que resume os motivos apresentados. Urna vez do e "curvado"; mas por maiores que sejam os pesos que os
'? porém que toda a te/illah é urna unica oraçao a f6rmula inicial esmagam, o nome de Deus por eles invocado lhes restituì as for-
nao é repetida valendo para todas as outras. ' ças para se levantarem de novo. Por isso, ao pronunciar o nome
A composiç.ao e os conteudos da tefiltah podem ser resumi- de Deus é necessario levantar a cabeça: porque dizer Deus, é
dos no seguinte esquema geral: dizer liberdade, e invocar um significa fazer a outra tornar-se
presente.
l
A) As tr!s b!nçàos
iniciais
i I. Tu és Deus
2. Tu ~ onipotente
3. Tu ~ santo
Por isso te pedlmos:
O louvor
f a Dcus
Mas além da reza individuai e silenciosa da te/illah, da é
rezada em voz alta, urna segunda vez, quando ha um ntimero
maior de pessoas ( um minyan, um grupo de dez ). A repetiçao
da te/illah acontece da seguinre rnaneira: um leitor repete a te-
4. A inteligència
S. A penitència l Bens espiri-
tuais
fillah e a assembléia paracipa , em parte ouvindo e em parte in-
6. O perdiio cervindo com respostas apropriadas. Nesta repetiçao ( motivada pe-
7. A liberdade pessoal
' la exigencia de ensinar a te/illah aos que ainda nao a sabem de

~
8. A saude cor ) os textos das dezoito bençaos sao sempre invariaveis, mesmo
9. O bcm-estar Bens se algumas bençaos podem ser enriquecidas de conteudos mais
8) As treze petiç3cs 10. A unificaçiio dos materiais
centrais dispersos explfcitos e de formas mais dialogais . .b, por exemplo, o caso da
terceira bençao, que na primeira vez se limita à proclamaçao de
11 . A justiça integrai que Deus é "Santo" , mas na segunda desenvolve es te tema fa.

~
12. O castigo dos inimigos
13. A recompensa dos justos Bens zendo varias referencias a Is 6,3 e Ez 3,12 . Comparemos estas
14. A nova Jerusalém sociais duas f6rmulas:
I 5. O Messias
16. O stendimento das preces a) a f6rmula pessoal: " Proclamaremos de geraçao em gera-
çao, a realeza de Deus, porque s6 ele é excelso e santo. Que o
Portento: teu louvor, 6 Deus, nao seja diminufdo por nossos Iabios eter-

~
C) As trés Mnçiios { 17. R"""" o oulto do Jonmlém o agJ"Bdeci- namente, porque tu és um Deus rei, grande e santo. Se bendito,
finais 18. Accita o nosso agradecimento
19. Conccde-nos a paz mento a Deus Senhor, Deus santo";

102 103
b) a /6rmula da assembléia: Leitor: "N6s santificaremos o A primeira é conhecida corno 'avot ( " Patriarcas" ) porque se re-
teu Nome neste mundo, corno elas ( as multidées das alturas) fere a Deus corno "Deus dos Patriarcas" ; a segunda como gevur~t
o santificam no mais alto dos céus, conforme foi escrito pelo ( "poderes") porque celebra as maiores obras de Deus que maru-
Profeta: e elas gritavam e cliziam um ao outro: Assembléia: Santo, festam sua força e seu poder; a terceira corno '!edushat ha-shem
Santo, Santo o Senhor dos exércitos, toda a terra esta cheia da ( "santificaçiio do Nome") porque fala da sanudade e da sobe-
sua gl6ria! Leitor: E também aqueles que sao superiores a elas rana liberdade de Deus:
( às multidées celestiais) cliziam: Bendito. Assembléia: Bendita 1. Se bendito, Senhor nosso Deus e Deus de nossos pais,
seja a gl6ria do Senhor do lugar de sua casa! Leitor: E como estli Deus de Abraao, de Isaac e Deus de Jac6, Deus grande. e
escrito na tua Santa Palavra! Assembléia: O Senhor reinara para forte e venerando, Deus excelso, que das a recompensa e cnas
sempre, o teu Deus, 6 Siao, em todas as geraçées. Allelujah! todas as coisas; lembra-te da piedade dos pais e faz que o
Leitor: De geraçao em geraçiio proclamaremos a tua grandeza e redentor venha para os filhos dos seus filhos, ern favor do
por toda a eternidade cantaremos a tua santidade; o teu louvor, teu Nome, com amor. Rei libertador, que ajudas, salvas e
Senhor nosso Deus, jamais se afastara de nossa boca, porque tu defendes. Se bendito, Senhor, escudo de Abraao.
és Deus e grande rei e santo. se bendito, Senhor, Deus santo".50 2 . Tu és poderoso eternamente, Senhor que ressuscitas os
Da comparaçao das duas f6rmulas ficam evidentes tanto os mortos, que és grande ao conceder salvaçao (no verao se diz:
novos conteudos teol6gicos corno a nova estrutura literaria da "que fazes cair a geada" e no inverno: "que f azes soprar o
segunda em relaçao à primeira. vento e cair a chuva"). Ele alimenta os vivos por bondade,
Ha ainda uma outra rnodalidade de recitar a te/illah na sua faz os mortos ressurgirem com grande miseric6rdia, faz os
fase de repetiçao e que diz respeito à décima oitava bençao. que estao caindo manterem-se de pé, cura os doentes, }~berta
Nela, quando o leitor começa a pronunciar a f6rmula de agra- os prisioneiros, mantém-se fiel à sua promessa aos que Jazem
decimento, a assembléia em vez de ouvi-la em silencio, diz baixi- no rumulo. Quem é poderoso como tu? Quem é semelhante
nho urna outra oraçao de agradecimento. Esta pratica, de apa- a ti, 6 rei que fazes morrer e ressuscitar, e brotar para n6s a
rencia estranha é justificada pelo seguinte: o agradecimento nao salvaçao? Tu és fiel ao ressuscitares os mortos. se bendito,
pode ser delegado a ninguém, s6 pode ser pessoal. Senhor, que ressuscitas os mortos.
3. Proclamaremos a realeza de Deus de geraçao em geraçiio,
3. O texto e o comentario porque s6 ele é excelso e santo. O teu louvor, 6 nosso Deus,
A tefillah apresenta-se corno uma oraçao estruturada rigoro- nao seja diminufdo por nossos labios eternamente, porque
samente tanto do ponto de vista teol6gico corno antropol6gico. tu és um Deus rei, grande e santo.51
Além disso ela se relaciona com o shema' sendo seu p6lo comple- Estas trCs bençaos respondem à pergunta: quem é Deus para
mentar. Se de fato o shema' é a iniciativa de Deus para dialogar o homem e quem é o homem para Deus? A resposta da primeira
com Israel, chamado a escutar e obedecer, a te/il/ah é a resposta pergunta é dada recordando e elucidando os tres atributos fun-
de invocaçao e de reconhecimento. Justamente porque Deus falou damentais de Deus: gadol (grande), gibbor (forte) e qadosh
a Israel, este pode reconhece-lo e invoca-lo. (santo). A primeira benç.ao dcsenvolve o tema de Deus que é
grande no amor, èomo mostra a hist6ria dos Patriarcas; a segunda,
o tema dc que Deus é poderoso em suas obras, corno mosttam a
As tr€s b€nçaos de louvor criaçao e sobretudo a ressurreiçao dos mortos, nova e ainda mais
admiravel criaçao; a· terceira, o tema de Deus cujo nome é santo,
As trcs primeiras bençaos sao chamadas "bençaos de louvor" corno mostra a pr6pria corte celeste à qual a assembléia é convi-
porque nelas prevalece o tema da glorificaçao do nome de Deus. dada a unir-se ao seu trfplice canto de "santo, santo, santo".
.50 A traduçio ~. em parte, a de UTET, op. cit.. '4.5.5. 51 A traduçao 6, em parte, a de UTET, op. cit., ....

104 10.5
De acordo com urna provavel origem qadosh (santo) significa Jac6 nao ficam contentes com um conhecimento indireto de Deus,
separado e é sinonimo de transcendencia, de irredutibilidade. transmitido por seu pai Abraao, mas o tornam pr6prio através de
Deus, depois de ser definido corno "grande no amor" e "pode- urna procura pessoal. A experiencia de Deus pode ser testemunha-
roso nas obras ", é proclamado santo para indicar que todas as da e transmitida, mas nao transferida; cada um é chamado a
definiç5es que se lhe possam dar ficam sempre relativas e par- faze-la e refaze-la pessoalmente.
ciais. Deus é sempre maior do que os "nomes" que se lhe da, A segunda citaçao biblica é tirada de Dt 1O,17, onde Deus
e estes correspondem muito mais aos nossos nomes do que ao seu. é definido com o triplice atributo de gadol (grande) . gibbor
Por isso, na tradiçao hebraica, o verdadeiro nome de Deus é indi- (forte) e norah ( venerando-temivel), sinonimo de qadosh, e que,
zfvel. Esta consciencia é o cerne de toda verdadeira religiosidade; segundo a interpretaçao dos rabinos sao os tltulos por excelencia
onde ela desaparece ou se afrouxa, o homem se serve de Deus da realidade divina. Na pratica as tres benç.aos iniciais sao a con-
em vez de servi-lo, e a religiao passa a ser urna ideologia. Devemos tinuaçao dos tres atributos.
e podemos falar de Deus, dando-lhe nomes e encontrando defi- o centro semantico desta primeira bençao é a palavra besed,
niç5es, mas com urna condiçao: depois de termos falado, o chame- ( benevolencia ) , repetida duas vezes. Se Deus é gadol (grande) o
mos de qadosh, santo. sinal desta grandeza é seu amor, com o qual ele se revelou ao
Se a primeira pergunta é respondida através da enumeraçao homem e através do qual criou o mundo. A primeira bençao entoa
dos atributos divinos principais ( gadol, gibbor e qadosh), a se- louvores ao "De11s da hist6ria" ero vez de ao Deus da criaçao
gunda ( "quem é o homem") recebe a seguinte resposta: ele é porque, para Israel, a criaçao antes de ser sinal do poder de
.. aquele que deve reconhecer a realeza de Deus, proclamando sua Deus é sinal de seu amor, e pode ser compreendida s6 no con-
"grandeza", sua "força " e "santidade". Na terceira bençao é usa- texto da revelaçao. A consciencia deste amor leva à triplice e es-
... da a forma do plural ( porque embora seja urna Unica pessoa que plendida invocaçao, na qual Deus é chamado de 'ozer ( aquele que
- reza, ela esta realmente unida a toda a comunidade ) : "De ge- ajuda) , moshyah ( aquele que salva) e magen ( aquele que defende,
I
raçao em geraçao proclamaremos a realeza de Deus ... " Trata-se de onde, escudo ) ;
de proclamaçao nao somente verbal, mas sobretudo existencial. • Na segunda bençao prevalece o tema das grandes obras
Deus é aceito na sua "grandeza" quando se aceita seu amor (besed, de Deus, através das quais de manifesta o seu amor: o dom do
que aparece duas vezes na primeira bençao), interpretando a pr6- orvalho, do vento e da chuva; o doro do alimento; o apoio aos
pria existencia corno dom e vivendo-a em aliança com ele; é reco- fracos ( "mantém em pé os que estao caindo") , a cura dos cn-
nhecido em sua "força", quando se renuncia à pr6pria vontade de fermos, a libertaçao dos prisioneiros e sobretudo a ressurreiçao
poder e se encara a realidade da vida e da morte à luz de sua dos mortos. Esta Ultima é lembrada cinco vezes e é a que resume
vontade; enfim é reconhecido em sua "santidade", quando se todas as outras. Sao tres os nucleos tematicos de maior importincia
confessa sua insondavel grandeza e inexaurfvel profundidade (d. desta bençao. O primeiro é expresso pelo termo ;eshu'ah, salva-
Rm 11 ,.3.3-.35) adorando o Mistério, em vez de manipula-lo. çao: "Tu ...és grande ao conceder a salvaçao"; "quem se asseme-
A riqueza teol6gica destas bençios aparece ainda mais à luz lha a ti, ou qual é o rei que faz brotar para n6s a salvaçaor
de algumas observaçOes mais exatas: A salvaçio da qual aqui se fala é, de acordo com o pensamento
• Na primeira bençao, Deus é definido à luz de Ex 3 ,15 e hebraico, a salvaçao integral, que abrange a totalidade da pessoa
Dt 10,17. Na passagem de Ex 3,15, Moisés pergunta, com insis- humana e nao somente a espiritual. Por isso, na definiçao desta
tencia, a Deus que se revela qual é o seu nome. Deus responde: salvaçao entram çlementos corno o orvalho, o vento, a chuva,
"Assim diras aos filhos de Israel: 'Javé, o Deus de vossos pais, a cura das doenças e a libertaçio da escravidao.
o Deus de Abraao, o Deus de Isaac e o Deus de Jac6 me cnviou O segundo nucleo tematico é expresso pelo termo ressuscitar
até v6s. Este é o meu nome para sempre•" (Ex 3,15). A tra- os mortos (mebaieh ha metim). Embora a redundancia desta idéia
diçao dos rabinos gosta de se perguntar porque o nome de Deus possa ser explicada com motivos apologéticos ( excluir da comu-
é repetido ao lado de cada Patriarca, e a resposta é que Isaac e nidade aqueles que, corno os saduceus, questionaram a realidade

106 107
da ressurreiçao ), seu significado profundo aparece somente em Da analise atenta da qedushah surgem tres termos tematicos
n.fvel teol6gico. Ressurreiçao e criaçao no judafsmo, em vez de teologicamente importantes. O primeiro é qadosh, que aparece 9
se oporem, sao sinais convergentes do mesmo amor divino . Por vezes, sob diversas formas. Ao redor deste p6lo, corno clrculos
isso a bençao fala de Deus corno aquele que "nutre os vivos concentricos, movem-se rres atores principais: primeiramente o
be-J:iesed ("com amor") e "faz reviver os mortos be-ra/:tamim leitor, em seguida a assembéia, e por fim as multidé5es celestiais.
rabbim ("com grande misericordia "). Tanto a criaçao corno a res- Estes formam um Unico coro, terrestre e celeste, humano e divino,
surreiçao germinam no mesmo terreno: o J:iesed de Deus e os seus que "de geraçao em geraçao" e "por toda a eternidade" proda-
rahamim. Para Deus, " fazer o orvalho cair", "fazer o vento so-- mam: qadosh, qadosh, qadosh. É urna voz que nasce da pr6-
pr~r", e "ressuscitar os mortos" fazem parte de urna mesma ati- pria eternidade, e que, mais do que descrever Deus, lembra sua
vidade criadora, com a qual o caos do nada é vencido pela har- suprema majestade, sua universal e insondavel soberania e li-
monia do kosmos. Se nossa mente separa estas diversas "obras", berdade.
achando que umas sao 6bvias e naturais e que somente a Ultima O segundo termo é kavod, traduzido por "gl6ria "; "a terra
(a ressur reiçao dos mortos) é milagrosa e sobrenatural, certamen- esta cheia de tua gl6ria". Se qadosh define o Intimo mistério de
te isto nao é porque temos urna visao aguda e ampia, mas por Deus, kavod revela a profunda natureza da criaçao: ela nao se
falta de sabedoria e por cegueira. identifica com Deus, mas também nao se lhe op0e: é seu reflexo
o terceiro nudeo tematico é expresso pelo termo fidelidade: luminoso e sua pura transparencia.
"Tu és fiel (ne'eman) ao ressuscitar os mortos ". A atividade cria-
dora de Deus, da qual a ressurreiçao dos mortos é urna das maio-- Para quem sabe vero mut'ldo com os olhos da fé , para além
de sua fenomenologia e de sua propria contradiçao, pode entrever
...:.· res expressoes, é puramente gratuita, garantida somente pela sua
fidelidade. Se cada manha o sol voi ta a luzir e se cada ano a realizada a pr6pria beleza de Deus e seu inexaurfvel mistério.
primavera volta a fazer florir a terra, isto nao depende do ho- Nao é este o testemunho que os incansaveis pesquisadores da
mem, nem, além da explicaçao fenomenol6gica, de urna lei da matéria, tanto do macro corno do microcosmos, espectadores en-
natureza, mas porque Deus é fiel. Para aquele que ere. a obra cantados da sua indecifravel complexidade, nos dao?
criadora é fruto da "fidelidade divina " e a ressurreiçao dos mor- O terceiro termo é hll (halleluyah: "louvai o Senhor"), o
tos nada mais é do que o ultimo grau da fidelidade, através da termo por excelencia da alegria e do louvor. Se qadosh define a
qual todo dia sao renovadas nossas forças ffsicas e morais de natureza de Deus e kavod define a do munda, hll indica o justo
juventude e viço.52 relacionamento do homem para com um e· para com o outro. De
• Na terceira bénçao prevalece a atitude-resposta do homem fato, a tarefa do homem é louvar a Deus pelas coisas do mundo.
diante de Deus: a qedushah, a santificaçao do Nome divino a Assiro sendo, sao dois os p6los ligados ao louvor: Deus como
respeito da qual o rabino E. Munk escreve: "representa a pro- seu termo (louva-se a Deus) , o mundo corno sua motivaçao (lou-
clamaçao diaria da santidade divina da parte de Israel... Ela é va-se a Deus por causa do mundo). O louvor exige tanto um
rezada de maneira solen.fssima em coro alternado entre o leitor corno outro, e de ambos o homem é o intérprete idea!.
e a assembléia e s6 pode ser recitada se houver pelo menos
adultos presentes ... Esta prece é o ponto culminante da oraçao
publica. Seu conteudo é consagrado à glorificaçao da insondavel As treze petiçoes intermediarias
unidade da essencia divina... lsrael nao disp<>e de urna qedushah
particular diferente da dos coros ceJestes, nem procura formula-la Depois das tres bençaos de louvor, que formam a grande
de modo diferente. Ao contrario, ele harmoniza sua glorificaçlio ouverture da tefitlah, vem treze bençaos chamadas de "petiç0es ",
com a dos anjos" .s3 devido às suas caracterfsticas de pedido. Depois de ter definido
!12 E. Munk, Le monde des pri~res, on. cit., 152. Deus em seu relacionamento com o homepi, e este em seu rela-
53 Idem, 154. cionamento com Deus, o fiel em oraçao abre seu coraçao com fé,
108 109
formulando uma série de pedidos, pessoais e comunitarios, nos e justiça. se bendito, Senhor, rei que amas a caridade e a
quais encontra-se condensada a nata da sabedoria e da espiri- justiça.
tualidade hebraica. E!ita parte pode ser considerada como a Carta 12. Que nao haja esperança para os caluniadores e hereges, e
Magna dos valores judaicos: que todos morram num instante; que os teus inimigos sejam
imediatamente destrufdos, que eles sejam prontamente humi-
4. Tu concedes ao homem a graça de conhecer e das enten- lhados nos nossos dias. Se bendito, Senhor, que destrois os
dimento à criatura morta!. Concede-nos gratuitamente, conhe- inimigos e humilhas os soberbos.
cimento, entendimento e discernimento. se bendito, Senhor,
13. Senhor nosso Deus, renova tua misericordia para com os
que nos das a graça do conhecimento.
piedosos, os justos e o resto do teu povo, a casa de Israel.
5. Pai nosso, faz-nos voltar à tua lei e que nos apeguemos Concede generosa recompensa àqueles que verdadeiramente
aos teus preceitos. Faz, o nosso rei, que nos avizinhemos do confiam no teu Nome e faz que partilhemos com eles eterna-
teu culto, e que voltemos com o coraçao arrependido à tua mente. Faz que nao fiquemos confusos, porque confiamos
.presença. Se bendito, Senhor, a quem agrada a penitencia. em ti, 6 rei de todos os mundos. Se bendito, Senhor, apoio
6. Perdoa-nos, pai nosso, porque pecamos; absolve-nos, 6 e confiança dos justos.
nosso rei, porque nos rebelamos contra ti. De fato, tu és 14. Volta, com misericordia a Jerusalém, tua cidade; reedifi-
Deus bom e que perdoa. se bendito, Senhor, que és pie- ca-a corno edificio eterno, rapidamente, em nossos dias. Se
doso e perdoa-nos com magnanimidade. bendito, Senhor, que reedificas Jerusalém.
f'· 7. Olha, te pedimos, para nassa miséria, e defende nassa
... causa, e salva-nos imed1atamente, 6 nosso rei, pela graça de
15. Faz que o rebento de Davi, teu servo, floresça prontamen-
te, e exalta seu poder por meio da tua salvaçao, porque
teu Nome, porque tu és Deus poderoso e redentor. se esperamos todo dia na tua salvaçao. se bendito, Senhor, que
bendito, Senhor redentor de lsrael. fazes prosperar o poder da salvaçao.
8. Cura-nos, Senhor nosso Deus, e estaremos curados, sal- 16. Ouve nossa voz, Senhor nosso Deus, tem piedade e usa
va-nos e estaremos salvos, porque tu és a nassa gloria; tra- conosco de graça e misericordia. Aceita com misericordia e
ze-nos cura perfeita a todas as nossas doenças; de fato, complacencia nossa oraçiio e nassa suplica, porque tu és um
tu és Deus que cura, e misericordioso e fiel. se bendito,
I Senhor, que curas os males do teu povo de lsrael.
9. Abençoa, Senhor nosso Deus, esta colheita e todo tipo de
pai rico de grande misericordia. Ele é eterno, e nao voltare-
mos de sua presença de maos vazias,' porque tu és um Deus
que ouve a oraçao. se beodito, Senhor, que ouves as oraçOes.
colheitas para o nosso bem. Envia o sereno (e a chuva)
corno urna bençao sobre toda a superficie da terra e sacia Estas invocaçi5es, embora sendo diferentes umas das outras,
com tua bençao o munda inteiro. Concede bençao, abundan- formam na realidade um Unico pedido rigorosamente coerente e
cia e sucesso a todas as obras de nossas maos, e abençoa organizado, com o qual se pede a Deus a salvaçao messianica
nossas colheitas corno as melhores e mais abençoadas de to- completa. Os varios pedidos constituem os momentos fundamentais
das. Se bendito, Senhor, que abençoas as colheitas. desta salvaçiio integra!:
10. Faz que soe o grande shofar para a nassa liberdade, e le- • A quarta bençao, também chamada de da'at ( "conheci-
vanta a bandeira para reunir os nossos que estiio dispersos. mento") da palavra principal, pede a Deus o dom da inteligencia:
RetJ.ne-nos dos quatto cantos da terra na nossa Terra. Se ben- de intus legere, ler as coisas em profundidade, na sua dimensao
dito, Senhor, que reunes os dispersos do teu povo de lsrael. radical de verdade. O sentido desta "inteligencia" é expresso por
11. Faz voltar os nossos juizes, corno antigamente e nossos tres palavras: da'at ( "conhecimento"), binah' ( "compreensao") e
conselheiros corno foi no principio, e estabelece logo somcnte ha-sekel ("discernimento"). A inteligencia da qual aqui se trata
o teu reino sobre n6s, com graça e miseric6rdia, com caridade nao é somente a raci.onal, mas principalmente a existencial, que

110 111
faz compreender o sentido das coisas na sua finalidade que a liahah; onde aquela malogra, csta outra traz novamente fé e es-
sustém e anima. Poder-se-ia dizer que a palavra "conhecimento• pe;ança; onde aquela pode até perder-se, por~ue apoiada no"ho-
é usada cm lugar de "sabedoria" que vai a fundo na procura do roem esta é sempre vencedora, porque garanuda por Deus: Tu
bem e alimenta a paixao pela verdade (d. lRs 3,9; Jr 9 ,23). és, d~ fato , um Deus bondoso eque perdo~ ... se bendito ... tu que
Por este motivo, a oraçao do havdalah, no sabado de tarde é insc- tens piedade". Deus perdoa o hornem, nao porque este é bom,
rida aqui. Nela se ressalta a diferença substancial entre a luz, roas porque ele é bom IJanun). É esta certeza que acompanha o
simbolizada pelo sabado e as trevas representadas pelo nao-sabado. judeu na sua procura da Verdade e que lhe da forças para nao
Cornpreender esta diferença, vivendo para a prirneira e vencendo entregar-se a nenhuma derrota e a nenhuma fatalidade.
a segunda é dom da da'at, desta inteligencia que faz ver e ale- • A sétima bénçao, chamada ge'ulah ( "libertaçao"), pede a
grar-se nas coisas do ponto de vista de Deus, que as fundamenta e Deus que afaste de n6s todo sofrimento que impeça a liberdade.
sustenta. Fora de urna "inteligencia" corno esta, o rnundo fica Composta provavelmente no periodo da ~rseguiç~o de A;nt1oco
na escuridao corno que sem luz, indiferenciado e rnudo, seja ele Epifanes ( 215-163) , ela inaugura urna série de pedidos mais con-
cornpreendido racionalmente ou possufdo egoisticamente . .Por isso cretos e materiais: a .ù.berdade pessoal, a saude, o bem-estar, a
este pedido fica em primeiro lugar, e é o mais importante de patria. A primeira de todas é justamente a liberdade pessoal, sem
todos, pois ele precede e da sentido a todos os outros. E por a qual, as outras tres seriam insuficie~te.s e frageis. Se .todos os
isso o Talmud pode escrever: "Quao importante é o Conhecimen- indivlduos e todos os povos sao sens1vets ao tema da hberdade,
to, se ele é colocado no in1cio das oraç6es dos dias de féria" isto é verdade principalmente para o povo bebreu, que nasceu
(Ber 33a). ao ser libertado do Egito pela vontade de Deus. Urna caracteristica
.......t _• • A quinta bénçao, chamada de teshuvah ( "penitencia"), pe- fundamental do judafsn:o é a profundidade desta liberdade, ligada
- de a Deus o dom da conversao, dom da volta à verdade. Esta
bençio tem ligaçlio com a precedente, retomando-a, completando-a
diretamente à vontade de Deus , de onde eia surgiu. Por isso, na
bençao Deus é definido corno go'el, "Aquele que liberta": "Se ben-
e precisando seu conteudo e sua finalidade. O verdadeiro "conbe- dito, redentor de Israel". Justan:eote porque Deus é fonte de li-
cimento" é o que nos remete à Tora e nos leva ao serviço de berdade, esta é de modo tao importante para o homem, e é
11
Deus: "Faz-nos voltar à tua Lei (Tora) ... e ao teu culto ('avodah) • invocada e procurada corno o maior valor pessoal, condiçao de
Teshuvah, Tora e 'avodah sao os tres temas tematicos que estru- todos os outros valores. De fato, que sentido teria a saude, a
turam esta petiçao. Se a Tora é a expressao da vontade divina e o riqueza e urna patria, sem o sabor da liberdade interiore pessoal?
'avodah o sinal da disponibilidade do hornçm, a teshuvah ( que na • A oitava bénçao, chamada refu'ah ("cura"}, pede a Deus
linguagern bfulica significa voltar exatamente ao ponto de partida, a perfeita saude do corpo. O termo-chave desta bençio é o verbo
re-tornar) indica a progressiva adequaçio do segundo ao primeiro. rf', que significa restituir a saude, curar a enfermidade. Por duas
A medida que o homern, graças ao dorn do "conhecimento", des- vezes Deus é cbamado de rofe', literalmente, rrédico, que, ao
cobre a Verdade nao pode deixar de adequar-se à Tora, pondo-se contrario de todos os outros médicos, é ne'eman (fiel) e ral;aman
a seu serviço. Este processo de adaptaçao, lento e progressivo, (amoroso) . Aplicar a Deus a imagem de médico, poderia nos
que dura toda a vida, é o verdadeiro objeto do pedido desta parecer ridkulo. No entanto nada é mais querido de Deus do
bençao. que o corpo bumano, que é sua "imagem e semelhança" (Gn 1,
• A sexta bénçao, chamada seli!Jah ( "perdao "). pede a Deus 27). Deus cuida deste "corpo" com providencia carinbosa, corno
que nao leve em conta os seus pecados e sua infidelidade. Também Jesus de Nazaré, um dos intérpretes mais profundos do judafsmo,
esta bençao retorna e completa a precedente. Urna vez que no seu nos revela: "Nao vos preocupeis com a vossa vida, quanto ao
adequar-se à Verdade, o caminho do homern jamais é linear, mas que haveis de corner, nem com o vosso corpo, quanto ao que
conhece momentos de incerteza e de infidelidade, calha muito haveis de ve~tir. Nao é a vida mais do que o alimento e o corpo
bem a invocaçao: "Perdoa-nos ... porque pecamos; absolve-nos ... mais do que a roupa? Olhai as aves do céu; nao semeiam, nem
porque nos rebelamos ". Ao lado da teshuvah encontra-se a se- colhem, nem ajuntam em celeiros. E, no entanto, vosso Pai cc-

112 113
leste as alimenta. Ora, nao valeis v6s mais do que elas?" (Mt beta, e os que andam perdidos na terra da Assiria, hem corno
6,25-26). Depois da liberdade, a saude é o bem mais precioso os que estao desterrados na terra do Egito, virao ... "). A pa-
que se pode realizar ou invocar. lavra-chave desta bençao é qb$, reunir (de onde qibbu$), que
• A nona bénçllo, chamada birkat ha-shanim ( "bençao para ocorre tres vezes. Esta reuniao, anunciada e realizada, segundo
as colheitas"), pede a Deus estaç0es fecundas e colheitas abundan- a simbologia hebraica, através do soar do shofar ( trompa), refe-
tes. Este pedido se encaixa em dois momentos, urn mais geral e re-se em primeiro lugar a lsrael, disperso nos quatto cantos da
outro mais parcicular. No primeiro momento pede-se a Deus que te.rra; mas diz respeito também a toda a humanidade, da qual
abençoe "esta colheita e toda a espécie de colheita"; em seguida I srael faz parte e é representante. O recente Estado de Israel,
especifica-se em que isto consiste: "Da o sereno e. a chuva corno onde vivem judeus de 102 paises e que falam mais de 80 linguas
urna bençao a toda a superficie da terra" . Quem conhece o Oriente diferentes, é visto por muitos corno realizaçao do pedido desta
Médio pode avallar a necessidade de urna chuva, e corno a vida bençao. Mesmo que isto possa ser certo, a bençao apesar de tudo,
e a sobrevivencia dela dependem. Rezar pedindo chuva e rezar ainda é atual, nao somente porque a reuniao de lsrael pede a
para que os frutos da terra sejam suficientes para matar a fome reuniao de todo o mundo, mas especialmente porque a propria
de todos seus habitantes. Também a segunda bençiio se refere à r,euniao de Israel é uma realidade que, do ponto de vista espiritual,
"chuva", celebrando a Deus, corno aquele que "faz o vento soprar jamais e.sta totalmente completa, havendo sempre possibilidade de
e faz a chuva cair". Mas ali, "chuva" era citada corno sinal da se aperfeiçoar. Esta suplica por urna "patria " nao deve ser com-
atividade criadora de Deus que suscita a admiraçao e o louvor do preendida no sentido nacionalista e exdusivista; enquanto lugar
,, homem; ao passo que aqui é apresentada corno suplica a Deus, de identificaçao e de socializaçao, eia nao se op0e à patria dos
.... para que ele satisfaça as necessidades humanas. É importante res-
saltar que o termo do tema desta bençao, b r k é usado quatto
outros: é um bem precioso corno a liberdade, a saude e o bem-estar.
• A décima primeira bénçllo, chamada $edaqah ( "justiça "),
~'
vezes e com um novo sentido, di.ferente do uso mais comurn: pede a Deus a instauraçao de relaç0es sociais baseadas na solida-
"Abençoa esta colheita. .. da-nos urna bençao" etc... Neste con- riedade e no amor, completando assim a anterior. Para que serve
texto Deus é o autor da bençao, sendo que na formula técnica urna patria, se nela dominam os mais fortes, que a oprimem,
("Se bendito, Senhor ... ") o sujeito da bençao, embora nao expres- tiram partido dela e a violentam? Este pedido é feito em dois
so, é o homem. De fato ha dois tipos de "bençao": a que parte momentos. Em primeiro lugar roga-se a Deus para que mande
de Deus em direçao do homem, e aquela na qual o homem ben- governantes corajosos e leais, corno aqueles que dirigiram lsrael
diz a Deus. Mas a diferença entre as duas é essencial, porque antes da Constituiçao monarquica, dos quais a tradiçao popular
Deus "abençoa" o homem através dos bens concretos da criaçao lembrava corno santos e her6is : "faz que voltem nossos juizes co-
( estando a "chuva" corno pars pro toto), enquanto o homem rno antigamente".
bendiz a Deus através do reconhecimento e do louvor. A primeira Mas urna vez que também homens honestos corno os juizes
bençao é originaria e criativa, a segunda é urna resposta e de lou- nao estiveram livres de injustiças e de erros, passando do plano
vor. Esta nasce corno resposta e a outra se allmenta de sua hist6dco ao escatologico, a invocaçiio pede a Deus que ele pr6-
percepçao. Esta relaçao é expressa de modo muito daro pela for- prio seja o governante de Israel: " Estabelece logo somente o teu
mula conclusiva: "se bendito, Senhor, que abençoas as colheitas". reino sobre n6s". O texto nao invoca apenas o reino de Deus,
Deus é bendito, porque ele nos bendiz: e nao com palavras, mas mas precisa também seu conteudo. Diferindo dos reinados hurna-
com as "colheitas ", isto é, com as riquezas do mundo e com os nos, marcados pela injustiça e violencia, o reino de Deus é feito
frutos da terra . "de graça (/:iesed) e miseric6rdia ( ra/:iamim), de caridade ( $edaqah)
• A décima bénçllo pede a reunificaçao de Israel, de acordo e justiça ( mishpat)~
com o texto de Is 11,12 ( " Ele... reunira os banidos de Israel e • A décima segunda bénçllo, conhecida no Talmud como
ajuntara os dispersos de Juda dos quatro cantos da terra">' e birkat ha-minim ( "bençao dos hereges" ) pede a Deus a elimina-
Is 27 ,13 ( "Sucedera naquele dia que se tocara urna grande trom- çao radical do mal, personificado pela ttfplicc categoria dos "ca-
114 11.5
luniadores", "hereges" e " inimigos": "Para os caluniadores e os diqim), dos "piedosos" (/:l.asidim) e dos "prosélitos" (gere ha-$edeq,
hereges nao haja esperança ... todos os teus inimigos sejam ime- literalmente: os esttangeiros que se tomaram justos). Na verdade,
diatamente destrufdos ". Entre todas as bençaos é esta que apre- esta bençao exprime, em forma positiva, aquilo que a anterior ex-
senta maiores problemas, corno demonstram tanto as muitas mu- pressava de forma negativa. De fato, urna sociedade, na qual ha
danças e correçoes que ela sofreu no decurso dos séculos, corno "piedosos, justos e prosélitos ", é a alternativa daquela na qual
as adaptaç5es feitas pelos novos Siddurim, especialmente os refor- ha "caluniadores, hereges e inimigos"'. Aqui também, corno na
mados, sendo que alguns deles chegaram até a elimina-la.54 Os bençao anterior, as categorias citadas tem valor simbolico, e valem
motivos que tornam esta bençao problematica sao dois: um his- para todo o povo de Israel e - por que nao? - para toda a huma-
t6rico, outro teol6gico. Se a birkat ha-minim surgiu, corno parece nidade. A finalidade da oraçao é pedir a Deus um mundo no qual
provavel, corno oraçao contra os judeu-cristaos, que com sua con- s6 haja pessoas justas, cujo amor e comportamento reflitam o
cepçao da Tori e do Messias, punha em perigo a sobrevivencia amor e comportamento de Deus: "que os teus ra/:l.amim (miseri-
do judafsmo, perguntamos: ela ainda hoje tem sentido, ern um cordia) estejam atentos sobre os l:zasidim ( piedosos ... )" Nesta
clima historico-cultural profundamente mudado, no qual, embora belissima f6rmula se esconde o idea! de toda sociedade humana;
lentamente vao se afirmando os prindpios do respeito, do dialogo ela sera assim, quando os homens que a comp0em agirem com
e da toleraocia? Mas é sobretudo em nivei teologico que a birkat "miseric6rdia" (raJ:iamim) corno Deus, deixando transparecer seu
ha-minim apresenta diliculdades. Pode-se realmente pedir a Deus estilo (l:zesed), e por isso, dignos de serem chamados /:iasidim ( sent.
que "destrua" os proprios inimigos? As oraçoes de "maldiçao ", lit.: cheios de f:iesed). Com esta bençao se fecha o ciclo de pedidos
tao comuns na Bib.L.a (d. p. ex. Nm 10,35; SI 69,25-29; 59,14-15; relatlvos ao tema "patria": para que Deus a ret1na novamente
137 ,9), nao contradizem o valor da oraçao e a pr6pria fé em oo• bénçao)' a torne justa (1 p bénçao), capaz de vencer o mal
Deus? Procuraremos, a seguir, dar urna resposta a estas questoes. ( 12~ bénçao) e de real'.zar o bem ( 13' bénçao).
Aqui, basta observar que, mais do que contra os "inimigos" to- • A décima quarta bénçao pede a Deus a reconstruçao de
mados corno pessoas reais, a bençao visa eliminar o mal, cuja ati- Jerusalém, a fim de que ela torne a ser a sua cidade: "Volta com
vidade se torna um obstaculo ao advento do reino de Deus. Ela misericordia a Jerusalém, reedifica-a corno edifkio eterno". Mes-
pede a vitoria do amor e nao a derrata dos inimigos. Que diante mo que hoje Jerusalém tenha voltado a ser a cidade do povo
desta bençao (corno também diante dos outros textos de "mal- eleito, esta bençao conserva igualmente o seu valor. De fato, ela,
diçao") seja esca a consciencia judaica dominante, fica provado além da climensao historica tem antes de mais nada urna dimensao
pela seguinte passagem do Talmud, no qual, Beruria, a esperta escatol6gica. A Jerusalém que se pede a Deus que a reconstrua,
mulher do rabino Meir, contexta a oraçao do marido, que tinha muito mais do que a de pedras é a do coraçiio e mais do que a
pedido a Deus, a morte de dois criminosos: construl'.da pelos homens é a edificada por Deus, segundo o texto
de Zacarias 8,3: "Assim disse Javé: 'Voltarci a Siao e habitarei
Por acaso esta escrito que "os criminosos devem ser elimi- no meio de Jerusalém'" (Zc 8,3 ). Segundo urna narraçao mi-
nados"? Nao, pelo contrario esta escrito: "os pecados devem draxica, a Shekinah se afastou progressivamente dos homens de
de~aparecer". Isto, porque desejas miseric6rdia para com eles, acordo com seus pecados; rnas com a chegada dos patriarcas ela
a f1m de que fazendo penitencia, se convertarn. Somente des- voltou progressivamente a avizinhar-se, segundo os seus méritos
te modo os impios desaparecerao, tendo salvado suas vidas e de sua bondade. Assim, se de um lado o mal afasta a Shekinah,
(Ber lOa). o bem a chama de novo.55 Neste vaivém da Shekinah lsrael da
• A décima terceira bénçao pede a Deus o triunfo do bem, test~unho da vitoria do segundo sobre o primeiro: no final, a
representado sobretudo pela triplice categoria dos "justos" ($a- Shekmah volta sem afastar-se mais. Nao é sem razao que este
horizonte escatol6gico aparece no final dos pedidos formulados
54 Sch. Ben Chorin, Le judalsme en prière. La liturgie de la synagogue
anteriormente. Pecliu-se muitas coisas a Deus (urna boa colheita,
Du Cerf, Paris, 1984, 81. '
55 Pesikta de Rab Kahanah 1,1; cf. W. G. Brande·I. J. Kapstein, Pesikta
de Rab Kahna, Routledge and Kegan Paul, Londres, 1975, 4-6.
116 117
a patria, a justiça, a vit6ria sobre o mal etc ... ) . A comunidadc As trés bénçaos de agradecimento
em oraçio sabe, todavia, que todas estas "coisas" nio serio obtidas
automaticamente, pelo simples fato de terem sido pedidas; as di- As tres bençios quc cnccrram a tefillah sio chamadas "ben-
ficuldades, a ambigilidade e as lutas permanecerio corno antes. çios de agradecimento" porquc nela prevalece o tema do reconhe-
Mas apesar de tudo isto, ela continuara a viver, a trabalhar e a cimento e da gratidio a Deus. Na realidade, das tres bençios, s6
amar, graças à certeza de que Deus "voltara a Jerusalém", e a a do meio desenvolve explicitamente o tema do agra.dcci.mento,
" reedificara corno construçio eterna". enquanto a.s outras duas retomam o tema da invocaçio, pedindo
• A décima quinta bénçao, que pede a Deus a rcalizaçio a Deus respectivamente a restauraçio do culto do Templo e a
da era messianica, esta de tal modo unida à precedente, que o realizaçio do shalom, da paz. Historicamente, estas tres bençios
Talmud palestinense - ao contrario do da Babilonia - a con- tiveram sua origem na liturgia do Templo, fato este que explica
sidera corno parte dela. Inspirando-se no texto de Isafas 11,1, a sua unidade e dinamismo. A primeira bençio era um pedido de
bençio fala do "rebento de Davi" a fim de que "floresça" o aceitaçiio dos sacrifkios. Quando o templo foi destrufdo no ano
quanto antcs, realizando a plenitude da salvaçio: "e exalta scu 70 d.C., da foi modificada substancialmente, transformando-se
poder através da salvaçio ". A era messianica é aquela na qual em uma invocaçio, pedindo a Deus gue aceitasse a oraçio da
o agir humano se torna puro reflexo do divino; na qual Deus, sinagoga e restaurasse o serviço sacerdotal. A segunda permaneceu
que é u salvaçio n é acolhido pelo homem, transformando-o graças urna prece de agradecimento, enquanto a terceira retoma e conclui
a ela em "poder". Embora esta bençio apresente varios problc- a bençio dos kohanim ( "sacerdotes" ) sobre o povo, no final dos
mas de interpretaçio, sobretudo no que diz respeito à pessoa do sacrificios das oferendas:
Messias ( razio por que as liturgias reformadas preferiram fazcr
algumas modificaç5es) , pode-se convir ao menos numa coisa: rc- 17. Senhor, nosso Deus, oxala encontres agrado no tcu povo
zar pelo "rebento de Davi" é um modo diferente de pedir a Deus de Israel, e acolhas sua oraçio; restaura o teu culto no san-
um mundo mais humano, no qual, corno no éden terrestre, a tuario de tua casa, e aceita prontamente, com amor e bondade,
vida tenha pleno scntido. os sacrificios de Israel e sua oraçio. Seja sempre de teu agrado
• A décima sexta bénçao, a Ultima das petiçOes roga a Deus o culto de lsrael, teu povo. Que nossos olhos possam ver
que ouça a oraçio: "ouve nossa voz ... aceita nossa oraçio e a tua volta a Siio e a Jerusalém, tua cidade, com miseric6rdia,
nossa suplica". Nio é estranho encontrar esta bençio no final das corno era antigamente. se bendito, Senhor, que fazes voltar
suplicas, em vez de no principio?56 A resposta é quc ela deve scr a tua Presença em Siio.
interpretada à luz de Isafas 56,7: "todos os que se mantem fiéis 18. N6s te agradecemos porque és o Senhor nosso Deus e o
à minha aliança, tra-los-ei ao meu monte santo e os cobrirci dc Deus de nosos pais; ( n6s te agradecemos ) pela nossa vida,
alegria na minha Casa de oraçio ". Até agora a comunidade rezou confiada às tuas mios, e por nossas almas entregues a ti e
pedindo a Deus varias coisas. Mas enquanto da rezava mantinha pelos prodigios que operas diariamente conosco e pelas coisas
o olhar fixo na era messianica, o Unico espaço no qual a oraçio maravilhosas e pelas obras de bondade que realizas continua-
( toda oraçio) é verdadeiramente ouvida, coincidindo harmoniosa- mente, de tarde, de manhi e à meia-noite. De fato, tu és
mentc a vontade do homem com a vontade de Deus. Somentc bom, e tua miseric6rdia nio diminuì, tu és misericordioso,
neste " espa~o", ~ue l safas define corno "Casa de oraçio", avida e tua caridade nio se esgota jamais. Desde sempre esperamos
revela sua 1dent1dade e pode encher-se de alegria. i! por esta si- em ti e nunca nos deixastc desiludidos, Senhor nosso Deus,
tuaçio, que esta bençio define Deus como aquelc "que ouvc a nio nos abandonaste e nio desviaste tua face de n6s. se ben-
oraçio ". Com urna invocaçio semelhante a csta condui-sc a séric dito, Senhor, o teu Nome é o 6timo e a ti convém render
de pedidos e se abrem os caminhos para as be~çios finais. todo louvor.
S~ Talmud di Gerusalemme, Ber 2,4; cf. E. Munk, Le monde dei prUra,
19. Da-nos e a todo teu povo dc lsrael, paz, bens, bençio,
op. c1t .. 174. graça, caridade e miseric6rdia. Abençoa-nos, Pai nosso, a n6s
118 119
todos juntos, com a luz da tua face, urna vez que com esta mas pela graça divina: "oxala enconttes agrado (resseh) no teu
luz nos deste, Senhor nosso Deus, a Lei de vida, amor, graça, povo ... e acolhas sua oraçao". Mas do presente sua. mente corre
caridade, bençao e misericordia, e vida e paz. Que seja do ao passado e se volta para o futuro: "restaura teu culto" e "que
teu agrado abençoar-nos e a todo povo de Israel, sempre, nossos olhos possam ver tua volta a Siao". A oraçao pela tefillah
em todo tempo e bora, na tua paz. Se bendito, Senhor, presente leva à lembrança da oraçao pelos sacriffcios do templo
que abençoas o teu povo de Israel na paz. Amém. e suscita a oraçao pelo dia escatologico, quando a Shekinah vol-
A primeira destas bençaos é chamada 'avodah ( "serviço"), tara a Jerusalém. As liturgias reformadas preferiram eliminar as
porque nela se pede a Deus o restabelecimento do culto divino referencias ao templo e à restauraçao de Siao, conservando ape-
em Jerusalém; a segunda é chamada hodayah ( "agradecimento") nas a invocaçao para que Deus aceite as oraçi5es feitas a ele.
porque desenvolve o tema da gratidao pelos beneflcios recebidos Todavia, mesmo para as liturgias que conservam o texto integrai,
de Deus; finalmente a terceira é denominada birkat ha-shalom sempre é possfvel a interpretaçao escatol6gica, além da literal.
( "bençao pela paz") porque suplica de Deus prosperidade ·e bem- Pedir a Deus pela "restauraçao do templo" e pela "volta a Siao"
estar. Ja que em algumas ocasioes, esta ultima bençao é precedida é um modo de rezar pela manifestaçao de Deus no meio de Israel
da bençao sacerdotal ( atualmente recitada por um leitor) , ela é e entre os homens.
também denominada birkat kohanim ( "bençao dos sacerdotes" ) . • A décima oitava bénçao desenvolve o tema do agradeci-
Apesar de serem diferentes os temas desenvolvidos nas bençaos, a mento por extenso, retomado ero forma sintética e conclusiva:
tradiçao hebraica gosta de definir todas as tres corno "bençaos de porque o Senhor é "nosso Deus"; ('Elohenu), "Deus de nossos
agradecimento" . O motivo é que todo sentimento de gratidao é ne- pais"; porque a nossa vida esta confiada em tuas maos; porque
cessariamente ligado ao atendimento da oraçao e ao dom da paz. Deus é um Deus que realiza " prodfgios n, "coisas maravilhosas" e
Realmente s6 pode agradecer aquele a quem Deus escutou e inun- "obras de bondade n; e sobretudo porque Deus é um Deus "bom"
dou de paz. Assim sendo, a bençao central é tida corno o centro e "misericordioso" que jamais engana. Todos estes motivos se
de gravidade das tres bençaos finais, cujo sentido é resumido e encontram sintetizados na formula final : "se bendito ' Senhor·, o
condensado no termo modim ( da raiz ydh): "nos te agradecemos teu Nome é 6timo ( literalmente: 'o bom') e a ti convém render
porque ... " Os comentadores gostaru de observar que es te termo louvores ". Nos nao conhecemos o Nome de Deus, pois sua reali-
r~n_i tr~s significad,,ds lrin~ipais. ,,Modim , antes de mais nada, sig- dade é um mistério insondavel. Mas urna coisa sabemos: que es te
nifica prostrar-se , mclmar-se 57 ( de onde a prescriçao de fazer Nome é ha-~ov, o bem por excelencia, a fonte de tod0i bem.
urna ~d~~çao" no inicio ~ i:o fim desta bençao); em segundo Por isso a tarefa do homem é somente a de louvar (le-hodot).
lugar s1gnif1ca reconhecer , confessar" ; finalmente "ser grato", . f
• A éc!ma nona bénçao pede a Deus o dom da paz e esta
"~gradecer " . Urna vez chegados ao final de sua te/illah, a comuni- ligada à bençao sacerdotal de Nm 6,23-26, que se condui com es-
n.1dade repe~e .o se~ ~esto ?e adoraçao, de confissao e de agrade- tas palavras: "O Senhor volte sobre ti a sua face e te de a paz".
A assembléia retoma a Ultima palavra e responde com urna oraçiio
Cilllento, a umca-triphce autude de toda oraçao verdadeira.
Vejamos agora cada urna em particular: pela paz: "Concede paz, bem, bençao, graça, caridade e miseri-
cordia ... " a n6s e a todo teu Israel. A palavra-chave, bençao, é
• A décima sétima bénçao pede a Deus que as preces que shalom que, segundo os comentarios rablnicos é justamente a Ulti-
lhe estao sendo formuladas lhe sejam agradaveis. O termo chave ma suplica da te/illah, corno seu coroamento e realizaçao. Isto
é r$h, que significa seguir/acolher com amor e simpatia. De fato, a~o!1t~e quatro vezes, sendo explicado e enriquecido de muitos
corno as oraçi5es poderiam ser aceitas, se nao pela benevolencia smorumos e alguns exemplos: "Concede paz (shalom), bem (to-
gratuita de Deus? Até agora a comunidade em oraçao pediu; mas vah), bençao (berakah), graça (hen), caridade (hesed) e miseri-
ela sabe que se suas oraçi5es sao ouvidas, nao é por seus méritos, c6rdi~ ( raf:zamim) ... " Disso fica daro corno a p~ é, na tradiçao
hebra1ca, um valor plurissemintico, a reuniao de todos os bens
57 Targum 2 Sam 16,14; cf. E. Munk, Le monde des prières, op. cit., 180.
. .
portanto, mwto mais que mera ausencia de guerra. Nao é sem
'

120 121
razao que seu radical verbal significa "inteiro", "integra!" ,54 por- oraçao, a maldiçao e o anatema? Elas nao estao em contraste
que a paz existe onde ha inteireza e integridade. com a fé em Deus e no seu amor universal? Nao é facil responder
Além da riqueza dos sinonimos, a bençao lança ma~ tam- a estes problemas (principalmente ao primeiro) e entre os espe-
bém de urna dupla explicaçao da realidade da paz, relacl<~nada cialistas continuam a existir diversas soluçOes.
com a visao de Deus e com o dom da T ora: "Abt"nçoa a todos n6s
com a luz da tua face ... porque foi com a luz da tua face que nos
deste a Lei da vida (Torah IJ,ayim) ". "Ver a Deus" ( imagem bi- A fonte rabinica e suas interpretaçoes
blica que exprime o dialogo com ele) e cumprir ~ sua vontade,
que se manifesta na Tora, sao o segredo e , a raiz da. paz que O texto mais antigo que nos informa sobre a birkat ha-minim
germina e da seus frutos la onde o Se~or e !econheodo corno é o Talmud babilonico Ber 28h-29a:
Senhor da aliança e onde sua palavra e acolhida e observ~rd~.
'Adonai ("Senhor"), shalom e Toro formam urn trtnonuo mdi- Os nossos rabinos ensinaram: Shimon, o comerciante de li-
visivel e necessario, onde um, nao pode existir sem o outro. nho, pé)s em ordem as dezoito bençaos, diante de Rabban Ga·
maliel em Javne, na ordem que nao vigorava. Entao Rabban
4. A birkat ha-minim Gamaliel disse aos sabios: Ha alguém capaz de formular a
maldiçao dos hereges? Shmuel, o pequeno, levantou-se e
Entre as dezenove bençaos, a décima segunda merece atenç.ao formulou-a. No ano seguinte ele a havia esquecido e pensou
especial. Sobre ela escreveu o rabino E. Munk: " ...nao existe intensamente durante duas ou tres horas, tentando recorda-la.
nenhuma passagem do ritual, cujo sentido foi tantas vezes mal Mas nao o deixaram descer (do p6dio da oraçao) . Por que
entendido corno esta. No decorrer da evoluçao hist6rica, este texto nao o deixaram descer? Rab Jehuda nao disse em nome de
sofreu tantas rnudanças e correçé5es, que parece pouco provavel Rab: Se alguém se enganou em todas as berakot, nao o dei-
- chegar-se um dia a reconstruir seu sentido originai com certeza" .59
A bençao é conhecida corno "bençao dos hereges" (birkat
ha-minim), mas o texto termina com um louvor a Deus que ex-
xeis descer, mas se ele se enganou na bençao dos hereges,
deixai-o descer; de fato, devemos desconfiar que ele seja
um herege (min)! O caso, porém, de Shmuel, o pequeno,
termina os hereges. Além do mais a formulaçao em nossas linguas era outro. Ele de fato havia gravado a bençao contra os
se presta facilmente a ser dubia, podendo dar a entender, tanto minim. No mfnimo, ele podia ter mudado de opiniao. Abaje
o que Deus abençoa os hereges, corno também que os hereges lou- disse: aquele que é bom nao se torna mau (de improviso) !
vam a Deus. Para evitar mal-entendidos, seria melhor usar outra É verdade? Na realidade lemos: "se o justo renunciar à
traduçao. J akob ]. Petuchowski traduz "maldiçao dos hereges" sua justiça e fizer o mal" ( Ez 18 ,24) ! Estas palavras se
enquanto Schalom Ben Chorin prefere a expressao "oraçao contra referem a urna pessoa que é ma em suas rafzes, niio a alguém
os hereges ",UJ podendo esta Ultima ter uma apreciaçao menos ne- que é radicalmente bom. Curioso, niio? A tradiçao diz: Nao
gativa e mais condizeote. confieis em ti até o dia de tua morte. De fato, Jonachan, o
Os problemas fundamentais colocados pela birkat ha-minim sumo sacerdote, foi sacerdote durante oitenta anos, e por fim
podem reduzir-se a dois: um de carater hist6rico, outro de carater tornou-se saduceu.61
teol6gico. O primeiro pode ser formulado da seguinte maneira:
Quem sao estes hereges dos quais fala a bençao? Sera contra os Referindo-se a esta fonte de diffcil interpretaçao, Maimonides
judeu-cristaos que se lança o anatema, ou os .. hereges,, e maus assim a comenta: "No tempo do rabino Gamaliel, os ap6statas se
em geral? O segundo problema é este: Como justificar em urna multiplicaram em Israel; tornaram-se audazes e procuraram in-
citar Israel a abandonar o Eterno. O rabino reconhecendo, nesta
58 P. ex. qadd:sh shalem é o qaddish recitado integralmente, sem omitir
nenhuma de suas partes.
59 Le monde des prières, op. cit., 165. 61 Para esta traduçiio, cf. C. Thoma, Teologia cristiana dell'ebraismo,
60 Cf. Le judaisme en prière, op. cit., 73. Marictti, Casale Monferrato, 1983, 169-170.

122 123
situaçao, um grande perigo, o mais· grave de todos, interveio com vel" .65 Pode-se até nao se concordar com a primeira parte desta
a sua Beth-Din e criou urna nova berakah que pedia a Deus que condusao,66 mas pode-se e se deve estar de acordo com a se-
desbaratasse os ap6statas. Esta prece foi inserida no ritual para gunda: qualquer que fosse a bora em que a birkat ha-minim nas-
torna-la familiar a todos. É por isso que as oraçé5es do shemoneh- cesse, hlstoricamente, com explkita exdusao do cristianismo ju-
' dreh sao dezenove em vez de dezoito" .6'! A interpretaçao de daico, ela é rida corno de algum modo irrevogavel. Condenaçé5es
Maimonides foi retomada e posteriormente precisada, também por e excomunhé5es nao nascem do amor à verdade, mas sempre das
alguns peritos modernos, por exemplo, por J . Petuchowski, que incompreensé5es e do medo. Por isso elas podem ser superadas,
assim escreveu: "Eis em grandes pinceladas corno as coisas acon- alias, estao sendo superadas, corno tantos corajosos pioneiros do
teceram: de inicio as bençaos eram dezoito. Mas quando os ju- dialogo judeu-cristao estao a testemunhar.
deu-cristaos se tornaram um. perigo - que eram suspeitos de
serem colaboradores dos romanos - nao se confiava mais no
judeu que estava ao nosso lado na sinagoga; podia ser um ju- As variantes do texto
deu-cristao e portanto um "traidor". Devia-se inventar um modo
de tornar-lhes impossfvel a entrada na sinagoga. Mas isso nao era Conservam-se muitas versoes e parafrases da birkat ha-mi-
facil, porque o judeu-cristao tinha a ~esma aparencia e o mesmo nim. A mais antiga delas, digna de atençé5es, é a assim chamada
modo de viver dos hebreus. Entao introduziu-se uma forma de recensao palestina; um texto descoberto por Salomao Schechter,
maldiçao, que os judeu-cristaos nao podiam apoiar, respondendo nos anos 90 do século passado, na genizah do Cairo:
o "amém", porque estariam amaldiçoando a si mesmos ".63
De acordo com esta linha de interpretaçiio, a birkat ha-minim Nao haja esperança para os meshummadim ( infiéis, traidores
teria sido composta no sinodo de Jamnia {90/100 d C.). por ou até batizandos?) Extirpa logo do nosso meio o reino da
Samuel, o pequeno, por ordem do Patriarca Gamaliel II, contra soberba (malkut zadon) nos nossos dias. Que morram num
- os judeu-cristaos, corno expressao de separaçao e de excomunhao
nos seus confrontos.
instante os no$rim {nazarenos) e os minim (hereges, degenera-
dos) pereçam num instante. Que sejam cancelados do livro
Ao contrario, a interpretaçao de C. Thoma é mais sutil. da vida. Nao sejam registrados juntamente com os justos. Se
Para ele a prece contra os hereges nao foi composta em Jamrua bendito, Senhor, que humilhas os insolentes.67
o contra os judeu-cristlios, mas corno as outras bençaos ja teria Além desta versao palestinense ha a denominada babilOnica
c.. estado em uso em forma mais genérica e variada desde o infcio. que remonta ao século III d.C.:
Mais do que criada ex novo, em Jamrua, a birkat ha-minim teria
ali simplesmente sido fixada e ordenada. A tarefa de Samuel, o Nao haja esperança para os meshummadim. Que todos os
pequeno, teria sido de "atualiza-la" de modo que fizesse alusao hereges (minim) e traidores (mo$rim) pereçam num instante.
e eventualmente inclufsse também os judeu-cristaos. Mas estes Extirpa e esmaga imediatamente o reino da soberba nos nos-
nao teriam sido nem os primeiros nem os unicos a serem objeto da sos dias. sebendito, Senhor, que esmagas os ini.migos e
oraçao, formulada contra os ap6statas e os infiéis em geraJ.64 Par- humilhas os insolentes.68
t0do desta interpretaçao o autor conclui: "Portanto jamais exis·
tlu urna excomunhao dos judeu-cristaos declarada por todo o ju- Como se pode ver, os dois textos tem afinidades. A unica di-
dafsmo rabfnico. Os judeu-cristaos jamais foram julgados em todo ferença é que no texto babilonico nao se faz referencia aos ju-
o lugar corno ap6statas particularmente perigosos ... Portanto nem
65 Idem, 173.
a separaçao eotre o judafsmo e o cristianismo judaico é irrevoga· 66 Sch. Ben Chorin, p. ex., niio aceita a hip6tese de C. Thoma e
pensa que a Birkat ha·minim indique urna cisiio real entre a lgrcja ~ a
62 Em Munk. Le monde des prières, op. cit., 165. Sinagoga: cf. Le judalsme en pri~re, op. cit., 78ss.
63 Se~. Ben Chorin, Le juda1sme en prière, op. cii., 74. 67 Em C. Thoma. Teologia cristiana dell'ebraismo, op. cit .. 171.
64 Cf. C. Thoma, Teologia cristiana dell'ebraismo, op. cii., 170. 68 Em C. Thoma, Teologia cristiana dell'ebraismo, op. cit., 171.

124 125
deu-cristaos (no~rim), expressamente nominados na reccnsio palcs- prop6sito de uma hermeneutica correta destes textos de maldiçio,
tinense. O motivo é que os judeu-cristaos estavam prescntcs e eram jamais poderemos nos csqueccr dos dois seguintes princlpios fun-
importantes em Jerusalém, e nio na Babilonia. As f6rmulas utili- damentais.
zadas nas sinagogas variam de acordo com o pafs e a corrente Antes de mais nada, trata-se de evitar toda e qualquer inter-
hebraica. Por exemplo, o texto de mentalidade liberal Einheits- pretaçao literal. Na Biblia encontramos varias vezes express0es de
gebetbuch Deutschlands ( 1929) reza: maldiçio ( lembremo-nos dos salmos de maldiç.i o, corno, p. ex.,
Faz que os errantes encontrem o caminho que leva a ti, faz no salmo 21,89). Mas estas exprcss5es colocadas na boca de Deus,
que em nossos dias desapareça toda violenda da terra e a ou desejadas por ele, sio, corno todas as imagens aplicadas a ele,
soberba dos fmpios seja debelada. se bendito, 6 Eterno, que antropom6rficas, isto é, ana16gicas. lsto significa que das em parte
quebras a violencia e humilhas a soberba.69 sao "verdadeiras" e em parte " falsasn , que das tem algo de "ver-
daden, mas que este algo nio é o do sentido literal, que ao
A nova ediçio do ritual reformado americano Gates o/ Prayer rnesmo tempo em que é afirmado, deve ser entendido corno trans-
(Nova Iorque, 1975) adotou um caminho mais radical : suprimiu cendental e superado. Levando a sério esta hermeneutica, pedir
por completo a birkat ha-minim. Entretanto, na maior parte dos a Deus que maldiga "os caluniadores n, os "malfeitores n' "os ini-
rituais contemporaneos a prece apresenta-se assim: migos n etc ... nio significa invocar sua vingança contra eles ( Deus
Que nio haja nenhuma esperança para os caluniadores, e nio quer a morte do pecador, mas que se converta e viva!), mas
que todos os malfeitores pereçam num instante. Que todos expressar a sua e a nossa "c6lera" contra o mal e a injustiça.
sejam logo exterminados, e que os maus sejam expulsos (do Deus é amor radical, pureza transparente e insondavel; luz da-
meio do povo); esmaga-os, derruba-os imediatamente, nos tissima e energia vita! indomavel. Justamente por ele ser assiro,
nossos dias . Se bendito, Senhor, que destr6is os inimigos e nio pode nio "odiar n o mal. A prece de "maldiçio n exprime
humilhas os maus. 70 esta irredudibilidade entre Deus e toda forma hist6rica de sofri-
rnento, de injustiça e de opressio, que contradiz o seu mistério
de amor; traduz a distancia ontol6gica e de nenhum modo acessf-
A nao-aceitaçao do mal vel entre a santidade de Deus e o pecado do homem: a fim de
que a primeira triunfe e o scgundo diminua até desaparecer; para
-
o A maior dificuJdade que a birkat ha-minim apresenta é de
carater teol6gico: corno é possfvel pedir a Deus "que todos os
m_alfeitores pereçam num instante? Que todos sejam logo exter-
que se afirmem os poderes da vida e sejam reduzidos ao silencio
os da morte.
Mas embora se trate de evitar toda e qualquer interpretaçio
mmados ... ' esmagados' derrubados n? Como é possiveJ dizer: "se literal, nem por isso é necessario cair em generalizaçoes abstratas.
bendito, Senhor, que destr6is os inimigos"? Que express5es corno Ninguém experimenta o mal como entidade abstrata; o mal que
estas firam a sensibilidade moderna e que se prestem facilmente oprime e mancha de sangue é o concreto e cotidiano, que se en-
a se_rem mal-ent~ndid~s é. fora de qualquer duvida; é por cste carna bistoricamente e tem nomes pr6prios; "judeus" e "egipcios",
mouvo que mu1tas liturg1as reformadas preferiram substitu1-las "negros n e "brancos n, "minorias n e "grupos dominantes n, "ter-
por outr~s i:ziais genéricas e impessoais. Pondo de lado o problema ceiro rnundo" e "pafses ricos n' .. fracos n e "fortes n, " torturados"
da subsutu1çio do concreto ( "os inimigos") pelo abstrato ("o e " torturadores" nio podem ser colocados no mesmo plano. Se o
11
mal ) , que pode ser valido, o problema fundamemal levantado "mal" é universal, ele o é muito mais pelos artiI1cios que o se-
por estes textos fica sendo o da sua interpretaçio. S6 uma her- meiam do que pelas vf timas que faz. As oraçOes de "maldiçao"
meneutica correta pode salvaguardar o "tònus" e a verdade dos nos lembram a dramatica concretizaçao do mal e nos alertam para
mesmos, impedindo tanto sua diminuiçao corno falsificaçio. E a o risco de reduzi-lo a um conceito desencarnado.
69 Idem, 172. Mas é possfvel manter diante do mal (e diante das oraç5es
70 Cf. Sch. Ben Chorin, Le iudaism en prière, op. cit., 73. de "maldiçao ", que testemunham sua existencia) este duplo posi-

126 127
cianamento de universalidade e de concretude, o unico que nos taricia centrai na tradiçao hebraica é expressa mais pela lingua-
impede tanto de pratica-lo como de considera-lo inofensivo? A gem figurada do que pela argumentaçao racional. Entre essas fi-
experiencia dos autenticos homens de oraçao nos mostra que sim. guras, urna das mais belas é a da "arvore da vida". Segundo um
Nestes, realmente, a nao-aceitaçao do mal concreto e a Iuta contra midrash,n quando Adao e Eva deixaram o parafso terrestre rece-
ele vem sempre acompanhados de um grande amor real e uni- beram como dom de Deus a Tora, em subsrituiçao da arvore da
versai, corno nos mostra esta oraçao de Leo Baclc, o Ultimo grande vida. Deste modo a Tora torna-se um novo Éden: nao s6 porque
rabino alemao e testemunha do horror do bolocausto no campo mostra sua possf vel existencia, mas principalmente indica suas
de concentraçao de Theresienstadt, de 1943 a 1945: condiçé5es de realmçao e de entrada. A Tora é e$ ha-J:iayim ("a
arvore da vida") porque a mostra e a contém, a expressa e a realiza.
Paz aos homens de vontade ma, e que se ponha fitn a toda
vingança e a todo desejo de puniçao e de castigo ... Faz a Urna segunda imagem que exprime a posiçao centrai da
conta ( 6 Deus) de todas as vftimas, de todo seu amor ... de Tora é a do fundamento. No Pirke 'Avot, um tratado da Mishnah
todos estes coraçoes devastados, torturados, que, apesar de que elenca. os princlpios mais importantes dos mestres do judafs-
tudo, continuam fortes e confiantes diante da morte ... Tudo mo, le-se: "Simao, o Justo, foi um dos Ultimos membros da Gran-
isto, meu Deus, deve servir corno resgate ante tua Pace para de Assembléia. Ele dizia: O mundo se ap6ia sobre tres pilastras:
o perdao dos pecados a fim de que renasça a Justiça, levando a Tora, o Culto e as açoes inspiradas pelo amor" .73 Em vez de
em conta todo este bem que foi feito e nao o mal...71 tres pilastras, trata-se na realidade de urna unica pilastra: a Palavra
de Deus nasua trfplice e inseparavel expressao: a "Tora" (a Pa-
lavra revelada), o "Culto" (a Palavra reatualizada e ritualizada)
e as "obras de amor" (a Palavra vivida, inspiradora de vida).
A TERCEIRA UNIDADE ESTRUTURAL: A QERI'AT TORAH
Estas imagens sao importantes, também pela sua universalidade:

I
- Além do shema' Yisra'el e da te/illah, outro nucleo da li-
turgia hebraica é a qeri'at Torah (a "lei tura da Tora"), feita na
elas dizem respeito nlio somente a I srael, mas a 'adam, isto é, a
todos os homens, ao mundo inteiro. A Palavra de Deus fundamen-
ta nao so Israel, mas todos os povos e toda a realidade.
sinagoga às segundas-feiras, nas terças e aos sabados , nos dias fe.s-
tivos e semifestivos. Entre os varios imperativos do shema' ha um
-o particularmente impor tante: "Tu as inculcaras ( as palavras da
A qeri'at T orah, trés vezes por semana
Tora) aos teus filhos, e delas falaras sentado em tua casa e an- Devido à sua importancia, a Tora é lida e comentada na
dando em teu caminho, deitado e de pé" (Dt 6,7). Se o manda- sinagoga tres vezes por semana. Este uso é antiqiilssimo, e a tradi-
mento biblico quer inculcar o amor à Palavra de Deus em todas çao talmudica o faz remontar ao pr6prio Moisés. Comentando Ex
as geraçé5es, a qeri'at Torah, feita na sinagoga em determinados 15,22-25: "eles (os israelitas) se dirigiram para o deserto de Sur,
dias e de acordo com modalidades particulares, responde a estc e caminharam tres dias no deserto sem cncontrarem agua ... O povo
mandamento: com ela, o povo de Israel nutre-se da Palavra dc murmurou contra Moisés dizendo: 'Que havemos de beber?' ",
Deus, lendo-a e comentando-a. o~ ~estres do T ~ud compreendem a palavra "agua" como si-
n?rumo de Tora: Israel, tendo caminhado no deserto por tres
A arvore da vida dias sem ter a Tora, começaram a murmurar. Por este motivo os
profetas se levantaram e deram ordem que aos sabados às terças
Nao se pod~ c?mpreender o judafsmo sem a Tora, quc é e quintas-feiras fosse feita a leitura da Tora, de modo que o
sua alma e substanc1a, seu segredo e seu fasclnio. A sua impor-
72 C~. L. Ginzberg, The Legends o/ fews, voi. I, op. cit., 81.
71 Cf. Sch. Ben Chorin, Le judaism en pri~re, op. cit., 84-85. 73 Pirke 'Avot 1,2; traduçio italiana: Massime dei Padri de E Piattelli
Tipografia Sabbadini, Roma, 1968-5728. ' ·
128 129
.5 • !araci em oraçlo
povo jamais ficasse ttes dias seguidos sem ouvir a Tora" .74 Dci- T ora, T argum e Midrash
xando de lado o valor hist6rico deste midrash agadico, seu signi-
ficado teol6gico e espiritual é claro: corno o ser humano, depois Mais do que lida e ouvida, a Tora deve ser estudada e pes-
de ttes dias, sofre com a falta de agua, correndo risco de vida, quisada; ela revela seu sentido lenta e pacientemente mediante o
assim Israd perde o sentido da vida, se por mais de tres dias empenho pessoal e comunitario. Nao deve ser concebida corno
nio se nutre da Tora que, corno a agua no deserto, mata a sede urna "palavra magica " que descc do alto, mas corno urna "semente"
e faz crescer. que deve ser cultivada para poder frutificar: "es te mandamento
As tres imagens lembradas acima demonstram quao errados ( a Tora ) que hoje te ordeno nao é excessivo para ti, nem esta
es tao aqueles que identificam a T ora com o legalismo e a formali- fora do teu akance. Ele nao esta no céu... e nao esta no além-mar ...
dade. Segundo alguns autores, o radical de Tora é yrh que, entre a palavra esta muito perto de ti: esta na tua boca e no teu co-
outros sentidos pode significar "fecundar", "gerar".75 A Tora é a raçao, para que a coloques em pratica" (Dt 30,11-14). Na tra-
44
semente" que gera o homem conduzindo-o ao estado de adulto, diç.ao rabinica interroga-se atentamente sobre o sentido destas
à sua maturidade. A melhor traduçao da palavra Tora, para o palavras e prevalecem duas correntes de interpretaçao: urna que
portugues, em vez de Lei deveria ser Sabedoria ou Vida, dois acentua o aspecto magico-sacra!, a outra o esforço hermeneutico-
dos principais attibutos que a lgreja primitiva aplicou a Jesus comunitario. De acordo com a primeira interpretaçiio, as palavras
(cf. lCor 1,24; Jo 6 ,35) . Abstraindo-se dos tons polemicos rela- "nao esta no céu" sao entendidas do seguinte modo : a Tora esta
tivos aos textos do Novo Testamento redigidos em épocas ante- "perto de n6s" no sentido de que é imediatamente compreensfvel,
riores, o cristianismo primitivo nao contestou a Tora compreen- sem haver necessidade de pesquisa nem investigaçiio. Segundo a
dida em seu espfrito, mas amou-a a ponto de identifica-la com outra corrente, as mesmas palavras tem o seguinte significado: a
Jesus. Tora esta "perto de n6s" no sentido de que para ser compreendida
Justamente por ser a Tora Sabedoria e Vida, da é o centro ela requer o esforço e o estudo da comunidade. Das duas inter-
de todo culto na sinagoga: "O serviço da sinagoga ap6ia-se sobre pretaç0es deve prevalecer a segunda, corroborada pelo seguinte
a leitura da Tora. As partes lirurgicas que a precedem e aquelas midrash que narra urna grande controvérsia havida entre os ra-
que a seguem sao corno que o engaste da j6ia, cuja funçao é a dc binos Eliezer ben Orkanos e Yermeya a respeito do texto supra-
fazer ressaltar o diamante" .76 lsto quer dizer que das tres unida- citado do Deuteronomio:
des estruturais que compé)em a liturgia hebraica, a da Tora é a Naquele dia o rahino Eliezer deu todas as respostas possfveis
que mais influencia a vida e a mais importante; nao apenas por- e imaginaveis (para explicar as palavras: nao esta no céu),
quc tanto o shema' corno a tefillah sao uma coleçao das passagens mas os Mesttes nao as aceitaram. Ele lhes disse: "Se a lei esta
da Tora, mas principalmente porque tanto uma corno a outra ama- de acordo com minha explicaçiio, que esta alfarrobeira o com-
durecem no terreno da Tora. À medida que esta é estudada e prove!" A alfarrobeira se descompos em cem braços; outros,
desvendada, a comunidade dos fiéis obedece ao seu Senhor, aman- sustentam que foi em quatrocentos. Responderam-lhe: "Nao
do-o com todo o coraçao, com toda a alma e com todas as forças" se pode provar isto com urna alfarrobeira ". E ele lhes disse:
(shema') e vive em abandono confiante à sua vontade, pedindo-lhe "Se a lei esta de acordo com minha explicaçiio, que este
e invocando-o nas suas necessidades (tefillah). Se a Tora é corno c6rrego o comprove". E a agua se pé)s a correr no sentido
urna arvore, o shema' e a tefillah podem ser considerados corno contrario. Disseram-lhe: "Nao se pode provar isto com um
os frutos mais maduros, que, enquanto sao sustentados e alimen- c6rrego". E ele, continuando disse-lhes: "Se a lei esta de
tados, exprimem sua riqueza e fecundidade. acordo com minhas palavras, que as paredes desta escola o
74 E. Munk, Le monde des prières, op. cit., 204. comprovem". As paredes se inclinaram e iam cair. O rabino
75 Cf. M. Jastrow, Dictionary o/ Talmud Babli, Yerushalmi, Midrashic Jeoshua' censurou-lhe, dizendo: "Se os estudiosos disputam
Literature and Targumim, Nova lorque, 1950, voce yrh. entrc si sobre sua lei, por que entrais na conversa?" As
76 C. Perrot, La lectu. e de la bible. Les anciennes lectures palestiniennes
du shabbat et des /2tes, Verlag H. A. Gerstenbcrg, Hildesheim, 1973, 15. paredes, nio cafram em respeito ao rabino Jeoshua', mas nao

130 131
se levantaram, ficando inclinadas, em respeito ao rabino tigaçio e aprofundamento. O Talmud, obra enciclopédica do 49
Eliezer. Este continuou e lhes disse: "Se a lei esta de acordo ao 5<? século da era crìstii, é o maior testemunho desta atividade
com minha interpretaçio, que o céu o comprove!" Saiu urna interpretativa (hagadica) e atualizante (halaquica) pela qual o ju-
voz divina que disse: "Por que v6s todos estais contra o rabi- dafsmo se empenhou por quase mil anos; realmente, Talmud, abrc-
no Eliezer? Em todas as quest0es a halakah esta conforme a viatura de Talmud Torah, significa estudo, ensinamento da Tori.
minha opiniio!" O rabino Jeoshua' se levantou e disse: O enorme trabalho da Tora foi feìto sobretudo através dc
"Nao esta no céu!" (Dt 30,12). Que significa isto? Ora- dois canais privilegiados: o targum e o midrash.
bino Yermeya disse: "Nao podemos dar valor a urna voz T argum (do radical trgm, traduzir, explicar) significa "tra-
divina, porque esta escrito na Tora: nio tomaras o partido duçio ", "explicaçio ", "interpretaçao", e com ele entende-se a
da maioria (Ex 23 ,2) . O rabino Nati encontrou o profeta traduçio dos livros blblicos do hcbraico para o aramaico. Depois
Elias, a quem perguntou: "O que Deus fez naquele momen- da volta do exilio babilonico, ja a lfngua aramaica vinha progressi-
to" (isto é, naquele momento, quando os Mestres respondc- vamente substituindo o hebraico, tomou-sc consciencia da neces-
ram: nio damos ouvidos a urna voz que vem do céu?) Res- sidade de traduzir o texto bfulico para torna-lo compreensivd a
pondeu-lhe: "Sorriu e disse: os meus filhos me venceram, todos. A leitura da Tora e a sua traduçio eram feitas simultanea-
os meus filhos me venceram! "77 mente, verskulo por versfculo, na presença de um leitor oficial
(qore') e de um tradutor (meturgheman). Segundo urna fonte do
O significado do midrash esta claro. O rabino Eliezer defende século X, que se refere a uma pratica provavelmente pré-cristi,
a sua interpretaçio recorrendo a provas sobrenaturais, mas os o targum era feito da seguinte maneira:
Mestres nio se deixam convencer refutando-as corno inaceitaveis.
Para eles a interpretaçio da Tora é verdadeira quando a ela se A pessoa, que é chamada para ler a Tora, l~ . enquanto urna
chega através de argumentaç0es sensatas, e nao se forem com- outra traduz versfculo por versfculo . Entre o leitor e o tra-
provadas por intervenç6es sobrenaturais. E quando o rabino Eliezer dutor fica urna terceira pessoa ... para ajudar a urn e a outro,
insiste, chamando ero sua causa o pr6prio Deus, que se p0e do e para fazer sugest5es antes que um deles leia ou fale ... Se
seu lado, o rabino Yermeya, representante da tradiçio, contradiz ha alguém que nio sabe ler bem ou que é tfmido, essa pessoa
até Deus, que aceita a contestaçio e reconhece haver errado. o ajuda. Aquele porém que nao sabe ler nada, nio pode ser
O midrash quer portanto ensinar que a interpretaçao da Tora chamado para ler nem para traduzir ... Se o leitor se engana,
a nao é privilégio de alguns poucos, "feiticeiros" ou "magos", o tradutor nao pode corrigi-lo . Do mesmo modo, se o tra-
e: mas pertence a todos aqueles que a estudam e a amam, conforme dutor se engana, nio compete ao leitor corrigi-lo. Somente a
urna das maximas do Pirke 'Avot, que reza: "A Tora pertence a terceira pessoa pode corrigir tanto o lei tor corno o tradutor .79
~uem? A quem mais a estuda".78 Além disso ela eosina que a A introduçao do targum na liturgia da sinagoga nao foi
u_iterpretaçio da Tora nao pode ser garantida por nenhuma auto- feita sem dificuldade; alguns julgavam o aramaico incapaz de
ndade: que nao seja a da mediaçao racional e l\ do confronto exprimir a beleza do hebraico (cf. Talmud bab., Sot 33a ), ou-
comunitario. ( "Nao tomaras partido da maioria"). Trata-se de urna tros porém achavam-no com a mesma dignidade ( cf. Talmud bah.,
grande advertencia a todas as hermeneuticas exageradamente fun- Sanb 21b). Mesmo nio considerando a soluçao encontrada, que
damentalistas ( interpretaçao apoiada na "letta") ou sacrais (in- consiste num tipo de traduçao nem muito literal nem muito livre
terpretaçio apoiada somente pela "hierarquia"). ( "quem traduz um verskulo na sua forma literal é um falsificador
J?s:amente .porque a Tora pertence "a quem a estuda mais", e quem lhe acrescenta qualquer coisa é um blasfemo": Meg 4,41),
a tradiçao hebra1ca fez dela objeto constante de pesquisa, inves- a literatura targilmica da testemunho de urna coisa muito impor-
tante: que no judafsmo a Tora deve ser compreendida e inter-
. 77 TB Bav~ M&fi'a 59b; tcxto italiano em J. Zegdun, li mondo del pretada por todos.
M1drash, .Carucct, Roma, 1980, 76-77.
78 Pirke 'A vot 6,2; texto italiano em Massime dei Padri, op. cit. 79 A. E. Millgram, / ewish Worsl1ip, op. cit., 113.
132 133
Estes targumim ( reescritos sucessivamente em épocas dill- o a por u.m e, obtendo assim uma palavra nova J:ierut, que signi-
ceis de datar talvez até pré-cristis), constituem o primeiro nfvel fica "liberdade". Qual a finalidade desta mudança? Para cnsinar e
de comentari~s e de interpretaçéies da Tora, e contèm diversos demonstrar que a palavra de Deus é urna fonte de garantia e
materiais hagadicos e halaquicos, que nao s6 ajudam a compreender liberdade.
as passagens dificeis e controversas da Escritura, mas integram Mas, o que da legitimidade a semelhantes interpretaçOes, im-
as pr6prias fontes da Mishnah e dos midrasbim. . pedindo-as de serem arbitrarias e bizarras? A resposta s6 pode
Mas o instrumento principal para estudar a Tora foi o as- ser urna: nao a retidao do argumento racional, mas a maturidade
sim chamado midrash, o método de exegese hebraica usado pelos da experiència espiritual. Vivendo dia e noite em contato com a
escribas ( 400 a.C. - 10 d .C.), pelos tanaftas {até o ano 220 Tora, o darshan descobriu sua força de vida e de liberdade pela
d.C.) e pelos amorreus (cerca do ano 500 d.C.), até o fim do qual se deixou impregnar e transformar, e graças à qual ele pOde
Gaonato ( 1040 d.C.). O termo deriva do radical drsh, que signi- transfigurar feref em feruf e J:iarut em l;terut, abrindo novos hori-
fica "pesquisar", "investigar", "indagar", e sua finalidade é en- zontes e criando novos sjgnificados.
contrar o sentido oculto dos trechos da Tora, revelando seu Ja que a meta cio darshan é apresentar motivaçéies de vida
espfrito profondo e atual, que inunda com sua paz os evc:ntos e de esperança, sua linguagem é intencionalmente cheia de figuras
pessoais e comunitarios. O midrash nao nasce, de fato, das exigèn- e imagens, de paradoxos, de narraçéies, de parabolas, de jogos de
cias racionais {compreender corno o texto biblico foi formado), palavras, de anedotas e de provérbios, a fon de atrair as massas e
mas das razéies existenciais ( em que o texto biblico nos ajuda a prender sua atençao. Para conseguir isto, ele lança mao de afirma-
viver e sobreviver). Deste ponto de vista ele é um método de
,, exegese que poderia ser definido de "espiritual ", para ser di.fe-
çOes extravagantes, absurdas ou insensatas. Conta-se que o rabino
:;,.. Jehuda Hannasi. que compilou a Mishnah, para acordar o publico
renciado do método hist6rico-critico moderno, praticado nos am- que começava a cochilar, afirmou, de improviso: "Aconteceu urna
bientes academicos sobretudo ocidentais. Por exemplo; um mestrc vez no Egito, que urna senhora deu à luz 600 .000 filhos". Uma
responde ao grande problema da dor, da seguinte forma: "Esta vez despertos e movidos pela curiosidade, os presentes ouvem a
escrito: 'Ele da alimento (teref) aos que o temem, lembrando-se resposta: "Esta senhora era Jochéved, que deu à luz Moisés, que
sempre da sua aliança' " (SI 111 ,5). O rabino Jeoshua' ben Levi valia por 600.000 pessoas juntas"81

! -

e:
disse: "Ele deu afliçéies ({eruf) àqueles que o temem, neste mun-
do, no futuro porém lembrara eternamente de sua aliança" (Be-
reshit Rabba 40,2). O darshan (o exegeta) troca a vogai do ter- A leitura da Escritura nas sinagogas
mo feref, que significa alimento, para feruf, que significa afliçao.
Assiro ele obtém um significado novo do verskulo, graças ao A Tora era lida, nao conforme as diviséies vigentes atualmente
qual ele pode dar urna explicaçao convincente da dor do homem: (em cap!tulos e versfculos), mas segundo um sistema diferente que
se os justos sofrem neste mundo e siio corno aflitos, Deus porém compreendia uma série de trechos chamados parashot ( plural de
nao se esquece deles, lembrando-se de sua aliança. Deste modo o parashah) que significa "parte", "seçao" (etimologicamente:
drama do sofrimento e da injustiça perde sua evidencia e sua "quantidade ", "massa" ) . De acordo com o uso palestinense, es-
fatai necessidade, sendo inserido num ambito de interpretaçao que ses trechos eram 153 e duravam tres anos, enquanto o costume
torna possfvel uma resignaçao e uma provavel soluçao. Ou 1 co- babilònico, que finalmente prevaleceu, eram 54 e duravam um
mentando o verskulo: "a mensagem de Deus estava gravada ano, lidos uma vez na semana: na manha de segunda, de quinta-
nas tabuas" o exegeta diz: "nao se leia l:zarut ( gravada), mas feira e de sabado, nos dias festivos 1 semifestivos e de jejum. Estas
l;erut (liberdade ), porque a 'escritura de Deus', isto é, a Tora, parashot que os judeus asquenazitas substituem com o termo sidrah
da ao homem a verdadeira liberdade" .WJ Diante da palavra l:zarut (do radical seder, ordem) recebem seu nome da palavra inicial
ele faz duas coisas: isola-a do seu contexto imediato, e substitui
81 Cf. idem.
80 Cf. J. Zegdum, Il mondo del midrash, op. cit., 19.
134
tando-os às necessidades da comunidade. A derashah obcdecia,
ou de urna das palavras iniciais do trecho. Por exemplo, a parashah normalmente, a um esquema preciso: a homilia procurava unir a
intitulada Noah vem da frase "esta é a hist6ria de Noé ", do capf- parashah (citando os primeiros versfculos com? intt~uçio) à
tulo 6 9 do ~nesis e termina com o Ultimo verskulo do capf- ha/tarah, servindo-se dc alguns verskulos biblicos urados dos
tulo 11.'
Hagi6grafos e dos Salmos e chamados peti/:t.tot (do radical pt/J.,
A primeira parashah, inritulada bereshit tem inkio com a abri.r), porque "abria ", isto é, revelava o sentido dos trechos
chamada simal;uzt Torah ( "alegria da Toni" }, que cai no dia 23 de lidos. Deste modo o orador realizava concretamente a uniio da
rishri ( setembro-outubro) no final da festa de sukkot ( taberni- Torli, dos Profetas e dos Hagi6grafos ( as tres coleçOes da Blblia
culos). A ultima, intitulada we-zot ha-berakah, é lida no mesmo hebraica), utilizando toda a Escritura.
periodo festivo, a fim de que o fim e o inkio coincidam, corno cm C. Perrot, autor dc um estudo muito conhecido sobre a lei-
um clr~o. Nisto, muitos comentadores gostam de ver um sfmbolo tura da B.blia nas antigas sinagogas, escreve: "O seder ( isto é, a
da Tora, nio corno um peso para ser carregado, mas corno uma parashah) a ha/tarah e a homilia, acompanhada das petil;tot, sao
coroa real para se enfcitar. as tres pilastras da liturgia da Escritura e seus elcmentos se fun-
Nos cultos da manha do sabado, dos dias festivos, do dia 9 de
dem intimamente cm urna unidade organica, que da a cada sa-
av ( julho-agosto) e no culto da tarde dos dias festivos ou dc
bado um carater particular, e ao ciclo inteiro urna fisionomia ori-
alguns dias de jejum, depois da leitura da um trecho da Tora,
ginai" .82 Nenhuma citaçio melhor que esta, para ilustrar ~ im-
é feita a leitura de um segundo ttecho, sendo este tirado dos
portancia da leitura da Biblia nas sinagogas, e sua fecundidade
Profetas., Esta passagem é chamada haftarah, um termo difkil dc
para a tradiçio e para a liturgia hebraica, à qual a liturgia cristi
ser explicado, sendo geralmente interpretado tanto como "con-
ficou profundamente ligada, sobretudo na primeira parte da missa.
clusio ", corno "abertura" ( ptr = abrir), no sentido de que qucm
participa da liturgia da sinagoga, enquanto é obrigado a man~er
silèncio durante a leitura da Tora e dos Profetas, nao precisa Problemas historicos
mais guardar silencio depois da haftarah. Segundo urna outra ex-
plicaçio, a leitura dos Profetas foi chamada haftarah, porque ha- O costume de ler a Tora em publico é com certeza antigo
via substitufdo a leitura da parashah, proibida por Antioco Epffa- e de origem pré-crista. Entretanto as fontes nio nos permitcm
nes (168-165 a.C.), isentando assim ( um outro dos poss{vcis sig- datar com precisio a origem e o desenvolvimento desta pratica,
nificados de ptr) da obrigaçao de recita-la. ficando por isso, os pareceres dos especialistas muito discordantes
A haftarah nio era escolhida casualmente, mas em relaçio uns dos outros. Os dados hist6ricos dos quais dispomos sio os
com a parashah, unindo-se a da através de urna palavra, urna seguintes:
frase ou de um ou mais temas comuns. Por exemplo, por ocasiio a) Dt 31,10-13: "Moisés ordenou-lhes: 'No fim de cada
da parashah Noa/:t. ( Gn 6-11) foi escolhida corno ha/tarah Is 54, sete anos, precisamente no ano da Remissio, durante a festa das
por causa do versfculo 9 que fala de Noé: "Como nos dias de Tendas, quando todo Israel vier apresentar-se diante de Javé teu
Noé, quando jurei que as aguas de Noé nunca mais inundariam Deus no lugar cm que ele tiver escolhido, tu proclamaras esta
a terra, do mesmo modo juro agora que nunca mais me encoleri- Lei aos ouvidos de todo Israel. Retme o povo... para que ou-
zarei contra ti, que nio mais te ameaçarei ". A escolha das parashot çam ... ' ". Este texto pode ser considerado corno a referencia mais
e das haftarot, tanto no que diz respeito ao seu tamanho, corno antiga a urna leitura publica da Tora, feita cada sete anos, na
aos critérios de ligaçio, variava de regiio para regiio, dependendo festa dos Tabernaculos. Mas nio nos informa quais os t6picos
das sinagogas, sendo padronizada somente mais tarde, impondo-sc escolhidos nem a modalidade corno foram lidos.
corno pratica li rurgka quase universal. b) Ne 8 ,1-8: "Era o primeiro dia do sétin:o mes ... ele leu o
Depois da parashah da Toni e da haftarah dos profetas, vi- livro na praça ... E Esdras leu no livro da lei de Deus, traduzindo
nha um terceiro elemento importante, que era a derashah, o co-
mentario dos textos, destinado a atualiza-los explicando-os e adap- 82 C. Perrot, La lecture de la bible, op. cit., 21.

136 137
e dando o sentido: assiro podia-se compreender a leitura". Esdras, dividido em 153, 155 ou 157 sedarim (perfcopes ou partes).
junto com Neemias, grande protagonista da restauraçio politica Mas, uma vez que quem da o testemunho é o Talmud e nio a
e religiosa de brad depois do cativeiro da Babilonia, "escriba Mishnah ( que de resto esta cheia de informaçùes escrupulosas e
vérsado na Lei de Moisés" ( Esd 7 ,6), aponta urna hist6rica. reu- minuciosas ) , pode-se pensar que esta pratica tenha sido imposta
niio publica na festa dos Tabernaculos ( talvez no ano 444 a.C.) recentemente, a partir do terceiro sé:ulo da era cristi.86
na qual le a Tora, a traduz ("com explicaç6es do sentido") e a f) O Talmud babil6nico Meg 31b: "O rabino Simon ben
explica ao povo. Muitos autores vèem neste versfculo a origem do Eleazar disse: 'Esdras mandou que lsrad lesse as maldiçùes do
targum e do midrash. 83 Deixando de lado o significado preciso Levitico ( 26,15-31) antes da festa de shavu'ot e as maldiçOcs do
destes versfculos, muitos acham que é a partir de Esdras que, Deuteronomio ( 27 ,16-26; 28,15-68) antes de rosh ha-shanah' ".
com boa probabilidade, foi-se afirmando o uso de ler a Tora nas Segundo es te testemunho do rabino Simon ben Eleazar, um com-
principais festas judaicas. temporaneo de Juda Ha-Nasi, nio somente existira em Israel um
c) Le 4,16-19 e At 13,15. Urna vez que a pericope de Lucas ciclo de leituras anuais de 54 perkopes, mas isto remontaria dire-
ja foi analisada,84 basta que aqui façamos referencia somente ao tamente a Esdras.
trecho dos Atos: "Depois da leitura da Lei e dos Profetas, man- Estes poucos dados dos quais dispomos nos dio testemunho
daram-lhes dizer (a Paulo e seus companheiros): 'Irmios, se ten- do uso antigo de ler e comentar trechos da Tora e dos Profctas
des algurna palavra de exortaçao ao povo, falai' ". Através deste por ocasiio de determinados dias e festas! Testemunham também
texto, sabemos com certeza que, no século I da era cristi ja estava a provavd existència de dois ciclos, um anual e outro trienal,
difundido nas sinagogas o triplice uso da parashah, da haftarah e sendo que sua origem e seu desenvolvimcnto ficam imprccisos.
da derashah. Esta ultima (At 13,16-41) é o exemplo mais antigo Embora fiquem tantas perguntas cm aberto87 e as opini6es dos
de homilias, historicamente datado, e esta entremeado de citaç0es especialistas sejam muitas e discordantes - sobretudo accrca do
......, tiradas do Saltério (Sl 2,7; 66,10) e dos Profetas ( ls 55,3; Ab uso da leitura continua da Tora e dos ciclos a eia ligados,18 uma
l ,5 ). Infelizmente desconhecemos a passagem exata da parashah coisa é certa: A Qeri'at Torah ocupa na sinagoga uma posiçio
e da ha/tarah sobre a qual Paulo fez a sua derashah; nem, ao con- central, na qual a Biblia é lida, traduzida e comentada, corno mos-
trario do que alguos afirmam,&5 esta passagem é suficiente para tram de modo evidente as duas passàgens do Novo Testamento
provar que, no tempo de Jesus e de Paulo, ja existia um ciclo (Le 4,16-19 e At U,15ss). Embora seja diffcil determinar a
de leitura definido e estandardizado usado pdas sinagogas. data desta pratica, da remonta, sem duvida alguma, a muitos
d) A Mishnah Meg 3,4-6: Aqui e em outras passagens se ates- séculos antes da era crista.
ta a leitura regular da Tora nas segundas, quintas e sabados, nas
festas, incluidas a de /:zanukkah e de purim e nos dias de jejum.
Parece entretanto que ainda nio tinha sido fixado o tamanho das As bénçaos pela T ora
perfcopes, deixando isto a critério dos diversos responsaveis pela
sinagoga. A mesma Mishnah (Meg 4,1-2) testemunha também a A Qeri'at Torah é precedida e scguida de duas bençios pr6-
existencia da haftarah. prias. A primeira reza : "se bendito, Senhor, nosso Deus, rei do
e) O Talmud babil6nico Meg 29b: "Os judeus do Oeste universo, que nos escolheste entre todos os povos e nos deste a
(Palestina) lèem a Tora em tres anos". Este texto faz mençio Torli. se bendito, Senhor, que nos deste a Tora". O texto da se-
à existencia de um ciclo de leitura durante très anos, sendo sub- gunda é O seguinte: "se bendito, Senhor DOSSO, rei do universo,
83 Cf. J. Mann, The Bible as read and preached in the Old Synagogue. 86 Cf. R. Le Déaut. lntroduction cl la literature targumique, lnstitut Bi-
A Study in the Cycles o/ the Readings f rom Torah and Prophets, as well blique Pontificai (ad usum privatum), Roma, 1966, 50.
as /rom Psalms, and in the structure o/ the Midrashic Homilies voi. I Ktav 87 Cf. C. Perrot, La lecture de la bible, op. cit , 22-23.
Publishing House, Nova lorque, 1971, XIV. ' ' 88 Cf. idem. l2; R. Le Dtaut, lntroduction à la Uterature targumique,
M Cf. supra, 13. op. cit., 48-51.
85 J. Mann, The Bible as read.. ., op. cit., XVII.

138 139
que nos deste a T ora da verdade e piantaste cm nosso meio a É a vida completa, cm oposiçio à nio completa ( assim co-
vida eterna. se bcndito, Senhor, que DOS das a Tori·. roo se diz de uma 6pera ou um quadro csta inacabado ou aca-
C.Om cstas bençios o judeu fiel proclama a Deus como noten bado) a vida realizada cm oposiçio à dispersa e fragmcntada, a
ha.Torah, dando/ doando a Tora. O participio presente (noten vida fecunda, oposta à estéril e a.rida. Esta vida, diz o tcxto da
ha.Torah) quer esclarcccr a continuiclade da açio de falar e rc- bCnçio, Deus "a plantou cm nosso meio• .
velar de Dcus, cujo ambito nao é mais nem o passado ncm o A imagem de "plantar" eosina que a "vi~ eterna" (ou ~a
futuro, mas hic et nunc ( aqui e agora). Participando das leituras usar uma outta expressio, o "par also terrestre ) é uma poss1b1-
na sinagoga é corno se o fiel hebreu anulasse a distincia tempora! lidade antropol6gica, confiada à liberdade e responsabili~ade pes-
e se tornasse presente à aliança do Sinai, quando Deus cnttegou a soais. C.Omo a 1irvore nio se carrega de frutos sem o cwdado e o
Mois6 a Tora. tt11balho do homem, assim a vida nio se torna "eterna" sem o
Além de afirmar que a Tora é de origem divina, as duas seu empenho e colaboraçio. A funçio da Torli nio é aJ>?1!S de-
bençios afirmam a qualidade de seu contc\ldo e sua finalidade: monsttar esta possibilidade, mas indicar também as condiçoes de
ela é definida como Torat 'emet (Tora da verdade) e sua finali- realizaçio. Colocada cntre a libertaçio do Egito e a enttada na
dade é de dar lµyye 'olam (a vida eterna ). A "verdade• na Bf- terra prometida, a Tora mostra o caminho que faz ~air do dc;erto
blia, mais do que um prcdicado ou de uma idéia (mais ou menos e introduz no pais "belo e espaçoso ... onde corre lette e mel (d.
falsa) é o prcdicado de uma pessoa ou de um objeto: se é mais Ex 3,8 ).
ou menos forte. O radical de 'emet é 'mn que significa ser forte/scr Uma Ultima afirmaçio sobre as bençios é a que diz respeito
estlivel, tanto no sentido passivo ( estar de pé) como no ativo ao tema da eleiçao: "Se bendito, Senhor, DOSSO Deus ... que llOS
( manter de pé) . A prop6sito, algumas refer&tcias bfblicas podem escolheste entte todos os povos". Poucas noç0es, corno esta da
ser elucidativas. No 21! Livro dos Reis, 18,16 fala-se das co- eleiçio, se prestaram e prestam a correr o risco de mas,. e às
IL
lunas do templo como 'omenot ( estruturas que sust!m) e no vezes também de perigosas intcrprctaçOes. A !Xnçiio prcasa o
...•• 2' Livro de Samuel, 4 ,4 fala-se da baba como 'omen, litcralmente: scntido e a extensio desta eleiçio: "Tu nos escolheste cotte
• qucm carrcga aos braços e é capaz de garantir os cuidados ma- todos os povos e nos deste a tua Tora". Deus escolheu Israel
para scr depositilio da Torli, portant?, nio Pai:8 domina-lo, ~
- tcrnos•. Qualificar a Torli corno 'emet significa afirmar scu valor
cx:istcncial: cla, como as "colunas• do templo, sustcnta a vida, e
como as mios da mie doa e enriquccc a vida.
para que desse frutos, e nio no senndo c:xciu~1vo ~ s6 Israel ~01
escolhido e os outtos nio), mas no se.nudo inclusivo ( também
Torat 'emet, a Palavra de Deus é dada ao homcm para que Israel foi escolhido como todos os outtos) . Comprccndida deste
lhe abra lµy}e 'olam, a vida eterna. Poucas expresséics foram tio modo, a eleiçio de Israel mais do que privilégio que o distingue,
mal comprccndidas e interpretadas como essa pela ttadiçio tardia é autoconsciencia radical do humano: este nio é terreno neutro
cristi. O termo 'olam ( etemidade). na Bfblia, nio se opéic ao nem estanque ao divino, mas seu lugar de nasccnça; nele soa a
tempo hist6rico, mas constitui seu conteudo e plcnitude. Para voz de Deus que interpcla e chama a um relacionamento de alian-
cla, a • vida eterna" nio é aqucla que vem depois da morte, mas ça. O humano s6 desabrocha na sua totalidade e belcza quando
aquela que, superando sua vaidade exterior e cronol6gica, faz é vivido na 16gica da aliança, dc acordo com o plano divino quc
desabrocbar toda sua beleza e sentido. Nio é sem razio que, de o anima.
acordo com algum autores, o radical de 'olam é '/m, que significa Também a leitura dos Profetas (haftarot) é prccedida e se-
esconder e por isso 'olam significarla propriamente " tempo ocul- guida de bCoçios. Urna delas, a Ultima das quatro recitadas de-
to ", • tempo escondido ". A vida "eterna" é a vida tomada na sua pois do haftarah diz:
profundidade "oculta ", que a sustem contra aqucla puramente
materiai, mcdida pela sucessio tempora!. A vida "eterna" é a vida Pela Tora, pelo privilégio do culto, pelos Profctas e por este
plena de scntido, nio somente subjetivo, mas objetivo, ao contrli- sabado que tu , Scnhor, nos deste; pela santificaçio e pelo
rio daqucla que é marcada pelo vazio. repouso, pela honra e pela gl6ria, n6s te rèndemos graça e te

140 141
louvamos, Senhor nosso Deus. Que teu nome possa ser lou- um espaço de tempo de cerca de 500 anos pela escola de Hillel
vado continuamente e para sempre por toda criatura vivente. e de Shammai (cerca de um século antes da era crista). O primeiro
se bendito, Senhor, que santificas o sabado. capftulo desta coletinea ( Piska 1 ) reproduz algumas homilias
feitas por ocasiao da festa de f:t,anukkah, quando se lia urna parte
A Qeri'at Torah termina com este belo texto, que a assem- do Livro dos NW:neros, que se inicia com estas palavras: "No dia
bléia canta, quando o rolo da Tora é guardado novamente na em que Moisés tcrminou de erigir a Habitaçao, ele a ungiu e a
arca: consagrou ... " ( Nm 7 ,1 ) . O trecho relata a oferta de carros e de
Eu vos dei uma doutrina perfeita; nao abandoneis minha bois que os chefes de Isracl ofcrcceram a Moisés, depois da ere-
Tora. Ela é urna arvore de vida para aqueles que a cla çao e consagraçao do Tabernaculo. ·
aderem; felizes daqueles que a observam. Seus ca.minhos sao Por que esta perfcope era lida por ocasiio da festa dos f:t,anuk-
caminhos que dao alegria e todas as suas veredas sio veredas kah, e que interpretaçio lhe era dada? Para responder esta per-
de paz. gunta, sigamos algumas paginas do Piska 1.90
O darshan ( quem faz a homilia) inicia seu comentario ci-
Entrelaçado de cxpressé5es tiradas do livro dos Provérbios tando um versfculo do Cantico dos Canticos: "Ja vim ao meu
(3,17; .3 ,18; 4,2), estc canto resume muito bem o significado tco- jardim, minha irma, noiva minha" ( 5 ,1). Para ele, o sentido do
l6gico e antropol6gico que a Tora tem para Israel: "arvore da versiculo do Iivro dos Numeros é dado pelo sentido do versfculo
vida" (e$ f:t,aym) que abre perspectivas para a possibilidade e do Cantico dos Canticos. Mas que tipo de relaçao pode haver
realidade do éden. entre estes dois textos, aparentemente tao diversos em seu con-
teudo e contexto?
O darshan explica isto somente no final de sua homilia, de-
Um exemplo de homilia midrashica pois de haver aguçado a curiosidade do seu audit6rio e ter con-
... A Tora é lida e ouvida, nao por mera curiosidade intelcctual,
servado viva e suspensa a atençio desde o inkio até o fim da
palestra:
mas por raz0es existenciais. Ela, corno "lampada para os meus
pés" (SI 119,105), desvenda o sentido dos acontecimentos, ofe- Ja cheguei ao meu jardim, minha irma, esposa minha. O ra-
recendo chaves de lcituras e interpretaçé5es alternativas. Tora e bino Azariah, citando R. }uda, filho do rabino Simon, contou
vida cotidiana nao sao dois p6los que nao tem relaçao cntre si, a parabola de um rei que ficou a tal ponto com raiva de sua
mas, ao contrario, um cxiste em funçao do outro; a primcira in- esposa, que a repudiou e a expulsou de seu palécio. Com o
terpreta a segunda, e esta fomcce substancia àquela. Se sem a passar do tempo ele repensou e resolveu traze-Ia de volta e
Tora a vida se torna cscura corno a noitc ou arida corno o de- reabilita-Ia. Mas a rainha mandou-lhe dizer: "eu volto so-
serto, sem a vida a Tora se torna alma sem corpo, idéia sem mente sob a condiçao de quc, por amor a mim, conserves-me
referente corpora!. Tarefa da derashah, ou homilia midraxica, man- o mesmo privilégio que tinha antes (quando aceitavas de
ter unidos estes dois p6los, impedindo tanto a sua separaçio mim tudo que te oferecia) ". Assiro, no passado (quando o
corno ~ua . identificaçao. Apresentamos a seguir um exemplo ti·rado Santo se retirou da terra, indo para o céu), ele aceitava as
da Pes1kta de Rab Kahana, urna coleçao de comcntarios e exposi- ofertas dos mortais somcnte do alto, segundo o que foi dito
çé5es so~r: alguma~ passagens bfuli_cas li~s no culto da sinagoga da oferta de Noé: " (do alto) }avé respirou o agradavel
cm ocas1çoes espec1a1s.89 Esta coleçao, atrtbufda ao rabino Kahana odor" ( Gn 8,21 ) . Agora, ao contrario, ele restabeleceu o
no século V da era crista traz muitos textos de homilias feitas cm antigo costume de aceitar as suas ofertas direta.mente dos
lugares baixos, estando junto deles, dc acordo com as pala-
89 Pesikta de Rab Kahana. R. Kahana's CompilaJion o/ Discourses /or vras do Gantico dos Canticos: "Ja cheguei ao meu jardim,
Shabbaths and Festivals Days, vertido do hebraico e do aramaico por W. G.
(Genon zev) Brande and I. J. Kapstein, Routledge and Kegan, Londres, 1975. 90 lde.m, 5-15.

142 143
minha irma, esposa minha ". Deste modo, a Tera, embora também pecou; a Shekinah saiu entao do quarto para o
apenas casualmente, ensina também as boas maneiras. Por quinto céu; vieram entao os sodomitas, que também peca-
exemplo, ensina que nao fica bem para o espose entrar na ram; entao a Shekinah se retirou do quinto para o sexto
camara da esposa, sem que ela primeiro lhe tenha dado per- céu. Vieram depois os egipcios, do tempo de Moisés, e tam-
missao para tanto . De fato, primeiro esta escrito: "Entre o bém estes pecaram. Entao a Shekinah se retirou do sexto
meu amado em seu jardim" (Ct 4,16 ) e somente depois: "Ja para o sétimo céu.
cheguei ao meu jardim" ( Ct 5, 1 ) . ( Sobre a presença dè Contra estes homens maus, surgiram sete homens justos,
Deus na terra, no inkio dos tempos), o rabino Tanhum ... que fizeram que a Shekinah voltasse à terra. Foi graças aos
observa que o Cantico dos Canticos nao diz: "cheguei ao méritos de nosso pai Abraao que a Shekinah desceu do séti-
jardim", mas "cheguei· ao meu jardim" (ganni). Em vez de mo para o sexto céu. Depois, foi graças aos méritos de Isaac,
ganni ( meu jardim) le ginnuni, que significa "camara nup- que a Shekinah desceu do sexto para o quinto céu. Depois
cial ", a minha moradia e do homem no qual desde o inicio veio Jac6, e graças aos seus méritos a Shekinah desceu do
dos tempos foi plantada a Raiz Divina. Realmente, no inicio, quinto para o quarto céu. Em seguida, graças aos méritos
a Presença de Deus manifestava-se na terra. O verskulo do de Levi a Shekinah desceu do quarto céu para o terceiro.
Genesis: "Eles ouviram o passo de J avé Deus que passeava Depois veio Kohat, e graças aos seus méritos, a Shekinah
no jardim" ( 3,8) ,91 de acordo com o que o rabino Abba eo- desceu do terceiro para o segundo céu. Em seguida, foi graças
sina, prova que desde o inkio Deus habitou com sua presença aos méritos de Amram, que a Shekinah veio do segundo para
a terra. "o texto na realidade nao quer dizer que passeava, o primeiro céu. Finalmente veio Moisés e graças aos seus
mas, foi embora, e se refere nao a Adao, mas a Deus que, méritos, a Shekinah foi reconduzida à terra. Dal a referencia
zangado com o pecado de Adao, afastou-se dele voltando ao feita a Moisés no versiculo inicial: "no dia em que Moisés
-~I céu desgostoso ". Depois disso "Adao e sua mulher se escon-
t ~. terminou de levantar o tabernaculo ... " que significa: "no dia
deram" ( Gn 3 ,8) porque, segundo a explicaçao do rabino nupcial de Israel, Moisés levou à piena realizaçao a volta de
Aibu, Adao naquele instante foi deposto do seu alto encargo Deus à terra, iniciada nos dias de Abraao".
e a sua estatura se reduziu 100 c:Ubitos. (A respeito daquilo
que traz Deus de novo à terra) , o rabino Isaac ensinou: Af vao algumas observaçOes para compreender melhor o con-
"Esra escrito que os justos vao possuir a terra e nela habita- teudo e as passagens desta derashah que, a urna primeira leitura
rao para sempre (SI 37 ,29). Mas onde habitarao os maus poderia ficar obscuro e sem nexo:
que talvez nao queriam ir embora? O importante do versi- a) O darshan quer explicar o sentido da festa de l)anukkah
culo nao é a moradia dos justos ou dos maus, mas que la à luz do trecho do Livro dos N6meros lido naquela ocasiao. De
h:ibitarao para sempre, o que significa: os justos fazem que toda a perkope que foi lida ele focaliza as atenç5es sobre apenas
o eterno habite na terra. um versfculo: "no dia em que Moisés terminou ( kallot) de erigir
No inicio, portante, a Shekinah fixou suas rafzes na terra, a Habitaçao" (Nm 7,1). Nestas palavras o darshan ve oculto o
mas depois que Adao pecou, ela se retirou para a primeira significado profundo do acontecimento celebrado, passando do
esfera celeste. Depois de Adao, veio a geraçao de Henoc, e significado literal do versfculo a um mais universal e espiritual.
ela também pecou; entao a Shekinah se retirou do primeiro Esta passagem é submetida à técnicas particulares, conhecidas e
para o segundo céu. A seguir veio a geraçao da dispetsao de valorizadas pelos frequentadores da sinagoga. Urna das mais usa-
Babel, e ela também pecou; entao a Shekinah se retirou do das é associar kallat (festa nupcial) a kallot (levar à realizaçao
tercefro céu passando para o quarto. Em seguida veio a ge- completa, terminar) e de interpretar este Ultimo à luz do pri-
raçao dos egipcios, no tempo de nosso pai Abraao, e ela meiro.
91 Na realidade niio se trata do texto biblico, mas do Targum Jonathan
Nao se trata de um procedimento bizarro e casual, mas de
referente a Gn 3,24. urna operaçiio complexa, intuitiva e originai. Graças ao seu grande

144 145
conhccimcnto da Tora, que é cor:ti.nuamcnte lida, cstudada, apro- de viver na Prcsença ( Shekinah) divina. Mas o pccado dc Adiio
fundada e pesquisada, o orador ve um aspccto novo da festa de e das outras geraç6es obrigou Dcus a retirar-sc progressivamente
lµznukkah. C.Omo o poeta e o artista, ele vai além do véu das da humanidade, que assim veio a perder sua condiçiio real. Isto
aparencias e aprecnde as coisas na sua luminosidade. É esta scnsi- nao foi porém um acontecimcnto irreparavel. C.Om o aparecimento
bilidade (e niio o capricho) que é o fondamento desta interprc- de homens justos como Abraiio, Isaac, Jac6 e outros, Deus come·
taçiio .e que lhe pcrmite cstabelecer nexo entre duas palavru çou a voltar para a terra. O ultimo destes justos foi Moisés, gra-
aparcntemente cstranhas.92 ças ao qual a Shekinah voltou a estabelccer-se definitivamente na
b) O darshan inicia com um verskulo do Cantico dos Cin- terra.
ticos: "Ja cbeguei ao meu jardim, minba irma, esposa minha • d) Mas qual é a relaçiio desta parabola com o verskulo do
( 5 ,1 ) . Ele nao tem nenhuma ligaçiio explfcita com o verskulo Cantico dos Cinticos ( "cheguei ao meu jardim, minha irmii,
dos Nllmeros, mas de fato ha urna relaçiio, embora a assembéia esposa minha") còm o qual foi iniciada a homilia? É neste ponto
niio a conheça, pois eia tera dareza sobrc isto s6 no fim da que o enigma começa a desvendar-sc: o sujeito de "cbeguei" é
derashah. Assim ela ficara atcnta durante toda a homilia, esfor- Deus que, graças às aç5es dos justos, sobretudo graças a Moisés,
çando-se por conhecer a relaçao entte as palavras do livro dos volta para a terra; o "jardim ", devido à leitura de ganni ( meu
Numeros e as do Cantico dos Canticos, e decifrar o enigma que jardim) ser al terada para ginnuni ( camara nupcial), simboliza a
prende seu interesse. É daro que este método, além de tcol6gico relaç.ao de amor existente entre Deus e o homem, no infcio da
é sobretudo psicol6gico e pedag6gico, pelo fato de favo.recer a criaçao; finalmente Israel representa a humanidade em meio à qual
capacidade receptiva e de mem6ria do audit6rio. Que isso cxer- Deus restabelece sua aliança de amor. Se a parabola falava de
cia fasclnio sobre a multidao é comprovado por muitas teste- um rei e de uma rainha que, depois da separaç.ao, decidiram voltar
munhas. A respeito do rabino Johanan ( que viveu cerca de 250 a viver juntos, e se o rei é Deus e a rainha é Israel, o verskulo
d.C.), conta-se, p. ex., que as pessoas safam correndo de casa, do cantico dos Cinticos ( sendo-lhe acrescentado ao "cheguei"
para pegar um lugar na sinagoga ou no salao onde ensinava. "che.guei de novo") exprime eficazmente esta nova realidade: co-
E sobre alguns pregadores, Cris6stomo recorda com urna ponta de rno um esposo, Deus volta à sua esposa Israel, simbolo da huma-
inveja que o C?tusiasmo e os aplausos que eles arrancavam do publi- nidade.
co eram semeihantes aos aplausos da platéia dos teatros.9l e) Uma vez esclarecida a relaçao entre o verskulo do can-
--.
Cl.~ c) Uma vez citado o verskulo do Cintico dos Canticos o tico dos Cinticos e a parabola, começa também a ficar clara a
darshan em vez de explici-lo, parece te-lo esquecido e dei.x~do relaçao entre tudo isto e o vcrskulo dos Nllmeros a ser comen-
de lado, sem estabelecer qualquer nexo com aquilo que o precede tado: "no dia em que Moisés terminou de erigir a Habitaçiio".
(sempre aparentemente ) e conta uma hist6ria de um rei e urna A "habitaçiio" oao é outra, seniio a nova relaçiio de amor en-
rainha. C.Onta que puseram fim à sua relaçao de amor mas de- tre Deus e a humanidade, uma relaçiio de amor comparavel à
pois se reconciliaram. Acentua principalmente esta ul~a. Antes relaçao nupcial. Assim, a ligaçiio entre o verskulo do Cantico dos
de voltarem a viver juntos a mulher diz que volta de novo sob Caoticos e o dos Numeros fica clara: com a substituiçiio de ganni
urna d~terminada condiçiio, a saber: que, como era no infcio, ( meu jardim ) por ginnuni ( cimara nupcial), o verskulo do livro
ele aceite com prazer e com as pr6prias maos tudo o que eia dos Nllmeros se torna a chave hermeneutica do verskulo do
lhe oferecer. Cantico dos Caoticos. A "habitaçiio" significa "minha camara
. N~ infcio dos tempos a humanidade, como urna rainha, vivia nupcial ", sendo o lugar no qual Dcus se une novamente à hu-
no Jardim do parafso numa situaçao real, gozando do privilégio manidade.
f) Mas o nexo entre o versiculo do livro dos Nllmeros e o
.9~ Sobre o sìgni.ficad:> e a extensao deste método, cf. J. Smeets, Alcune do Caotico dos CAnticos nao é apenas tematico. Além da relaçao
so,m1gl1anze [ra tecniche letterarie e tecniche haggadiche, in •Quaderni dì
V11a Monashca", 36 (1983), 87-112. de conteudo, a passagem do Livro dos Numeros ganha urna nova
K 93 Cf. inm_>duçio de G. Braude e de I. . J. Kapstein à Pesikta de Rab lei tura sobretudo textualmente: "assim o termo kaJlot ( que signi-
ahana... op. c1t , XXX.
146 147
fica "levar a efeito" ) recebe nova .vocalizaçao e interpretaçiio como Baseando-se nesta anal.ise, pode-se deduzir corno a homilia
kallat ( que significa "festa nupcial" ) e o verskulo completo se midraxica era de um lado simples e sugestiva, por outro comple-
transforma de "no dia em que Moisés terminou (kallot) de erigir xa e elaborada. Simples por sua força narrativa, entremeada de
a Habitaçao" em "no dia nupcial (kallat) de lsrael, Moisés com- narraçé5es e parabolas; complexa pelo entrelaçamento dos mais di-
pletou (a volta de Deus para a terra, que fora iniciada no t'empo versos versfculos bfblicos que sao aduzidos e interpretados. Deste
de Abraao) ". modo, a homilia midraxica conservava sua duplice fidelidade: ao
g) Mas o que tudo isto tem com a festa de IJ.anukkah? Para povo de lsrael e à palavra de Deus, às exigencias do homem e
as pessoas que conheciam a origem da festa l:zanukkah, surgindo à profundidade da Tora. Graças à sua linguagem figurada, ela, de
agora corno reconsagraçao do templo profanado por Antfoco IV fato, falava ao coraça:o· de todos, cultos ou niio, iluminando-lhes a
Epffanes ( 167 a.C.), a resposta era facil: corno a ereçao do ta- existencia cotidiana; mas ao mesmo tempo era mediadora da ri-
bernaculo por Moisés representou a volta da Shekinah ao melo queza inexaurfvel e sempre atual da palavra divina, graças às mais
de toda a humanidade, assim a purificaçao do templo profanado variadas conexé5es entre as passagens bfblicas, relidas e interpre-
foi, para Israel, o retorno da Shekinah junto à sua esposa. Este tadas sempre de novo. Atualmente também somos chamados a
paralelo entre a ereçao do tabernaculo por parte de Moisés e a esta dupla fidelidade: para que o homem nao seja privado da
reedificaç.ao do templo realizada pelos Macabeus é o nucleo funda- palavra divina e para que a palavra divina nao seja trafda pelo
mental da derashah. Um paralelo, obviamente nao s6 hist6rico homem.
e literal, mas antes de tudo teol6gico e espiritual; com isso quer-se
ensinar "o amor de Deus por Israel, e, através deste, por toda a
humanìdade. Mesmo que Deus se afaste do homem de tempos em

.. tempos, por causa dos seus pecados, as suas boas açOes o impe-
lem a voltar sempre de novo e habitar em seu meio" .94
h) Acompanhando este fio condutor fundamental, o darshan
.. l..; ~ealiza outras ope~açé5es exegéticas e apresenta outras informaçé5es
.....
f-- mteressantes. Ass1m, para demonstrar que depois do pecado de
--··. Adao, Deus niio aceita mais diretamente as ofertas do genero
a.: humano, ele faz referencia ao Genesis, capfrulo 8, verskulo 21;
para sublinhar o papel decisivo de Israel o darshan coloca a
o:
citaçiio "cheguei ao meu jardim" de Ct 5, l como se fosse falada
1

por Deus, antes da outra citaç.ao "entre o meu amado no meu


jardim" de Ct 4,16 posto nos Iabios do povo eleito; para provar
que lsrael é o "lugar" nupcial de Deus, ele interpreta a citaçao
"c~egue.i ao meu jardim" (ganni) por "cheguei à camara nupcial
(gtnnum); para demonstrar que Deus se afastou da terra depois
do pecado do homem, recorre a uma citaçao do rabino Kahana,
segu_ndo o qual o versfculo de Gn 3 ,8 nao seja compreendido no
sent1do que Deus "passeava ", mas no sentido de "Deus foi em-
bora"; _para de~onstrar que a Shekinah volta à terra graças às
boas açoes dos JUStos, ele recorre à interpretaçao do Salmo 27 29
de acordo com a versiio do rabino lsaac. ' "
94 lntroduçlio de G. Braude e de I. J. Kapstein à Pesikta de Rab
Kahana... op. cit., XXXIII.

148 149
rior teologal. Ao analisa.rmos o shema', e tefillah ~a qeri'at T orah,
vimos muitas destas berakot, umas longas e organizadas, outras
3 curtas e resumidas, todas tendo urna caractedstica fundamental
comum: seu valor publico e oficial. AJém destas, porém, o judeu
MOMEN1DS PESSOAIS E COMUNITARIOS religioso conhece outras bençiios, relaciooadas sobretudo à hora
DA ORAçAO JUDAICA de acordar e de deitar ou a acontecimentos particulares no decor-
rer do dia.

Ao acordar pela manha

O ato de levantar-se - pelo qual se volta da noite à vida


- deve ser acompanbado de urna série de bençaos. O Talmud
babilonico descreve minuciosamente as diversàs fases que caracte-
rizam a passagem do sono ao estado de vigilia: 1) acordar; 2)
ouvir o canto do galo; 3) abrir os olhos ; 4) levantar-se e sentar-se
O shema' Yisra'el, a tefillah e a qeri'at Torah nao se esgotam na cama; 5) vestir a primeira peça de roupa; 6) levantar-se
em urna unica faixa da existencia judaica, mas animam toda sua da cama; 7) tocar a terra; 8) ficar de pé; 9) calçar os sapatos;
vida publica e particular. Sao os seguintes os setores nos quais o 10) apertar a cintura; 11) pòr o turbante; 12 ) pòr as franjas;
judeu vive sua religiosidade: o pessoal, o familiar e o comunitlirio. 13) colocar os filactérios; 14) lavar as maos ; 15 ) lavar o rosto;
Cada um destes espaços, embora apresentando minucias e caracte-
... e cada urna destas aç5es é acompanhada de uma bençao espedal:

- dsticas particulares, obedece a urna logica teol6gica e espiritual .


Nas paginas seguintes falaremos em primeiro lugar das ora-
ç5es individuais que o judeu recita a s6s no decorrer do dia;
Ao acordar diga : "Meu Deus, a alma que me deste é pura;
tu a formaste em mim, tu a inspiraste em mim, tu a conservas
depois as familiares, que sao feitas diariameote durante as refei- em mim, e um dia tu a tomaras de mim e me devolveras no
ç5es, semanalmente aos sabados e anualmente por ocasiao da festa futuro; por todo o tempo quc a alma csta dentro de mim,
da Pascoa; por fim, as oraç5es rezadas comunitariamente nas si- eu te dou graças diante de ti, Senhor meu Deus, e Dcus
nagogas nos dias comuns, nos festivos, e por ocasiao de aconteci- dos meus pais, Scnhor dc todas as almas. se
bendito, Scnhor,
mentos especiais. que fazes as almas voltarem aos corpos mortos" .
Passando de um setor ao outro, muitas vezes serao ouvidas Ao ouvir o cantar do galo, diga: "Bendito seja aquelc que
as mesmas vozes, ora de modo repetitivo, ora de maneira inova- deu inteligencia ao galo, para distinguir o dia da noite".
dora. Mas compreenderea::os logo que nao se trata bem de repeti- Ao abrir os olhos , diga : " Bendito aquele que da ao cego a
ç5es, mas de diversos pontos de vista. A oraçao é corno a vida: capacidade de ver ".
de um lado é sempre identica, mas de outro, é sempre nova. Ao se levantar e sentar-se na cama, diga: "Bendito aquele
que liberta os prisioneiros ".
Ao se vestir, diga: "Bendito aquele que veste os nus".
Ao se levantar, diga: "Bendito aquele que eleva os que estao
BERAKOT INDIVIDUAIS curvados".
Ao se descer da cama, tocando a terra, diga: "Bendito aquele
que estendeu a terra sobre as aguas n.
As berakot, enquanto f6rmulas ou express5es usadas nas ora- Ao se ficar completamente em pé, diga: "Bendito aqucle que
çoes, sao o fruto e a expressao da berakah, enquanto atitude inte- disp5e os passos do homem ".

150 1.51
Ao se calçarem os sapatos, diga: "Bendito aquele que satisfaz suas narinas um halito de vida, e o 'homem se tornou um scr
as minhas necessidades". vivente" (Go 2,7). Esta interpretaçao nao contradiz a cientffica
Ao apertar a cintura diga: "Bendito aquele que cinge Israel (e portanto nem pode ser por da contestada ) que explica a pas-
com força". sagem do sono à vigilia através de mecanismos cerebrais e neuro-
Ao envolver a cabeça com o sudario, diga : "Bendito aquele quimicos, mas constitui sua possibilidade e seu fundamento.
que coroa Israel com majestade". Quando de manha acordamos e nos pomos em relaçao com o
Ao se vestir com uma roupa provida de franjas, diga: "Ben-
mundo, o importante nao é saber corno isto se da, mas que, se
dito aquele que nos santificou com seus mandamentos e de-
isso acontece, é pelo amor de Deus que cria e recria. No voltar
termiou que vestfssemos roupas guarnecidas de franjas". à vida consciente, é Deus que devolve "a alma ao corpo morto";
Ao se colocar os filactérios no braço, diga: "Bendito aquele
no cantar do gaio, é Deus que redistribuì e da ao tempo seu
que nos santificou com seus preceitos e nos mandou colocar
ritmo novamente; no abrir os olhos, é ele que "restituì a vista
os filactérios" ; ( quando pé>e os filactérios na cabeça ) : "Ben-
aos cegos"; no levantar-se, é ele que concede novamente a liber-
dito aquele que nos santificou com seus preceitos e nos deu
dade de movimento; no vestir-se, é Deus que "veste os nus" ; no
o preceito dos filactérios" .
tocar os pés no chao, é ele que "estende a terra sobre as aguas,, ;
Ao lavar as maos diga: " Bendito aquele que nos santificou
no calçar dos sapatos, é ele que "satisfaz as minhas necessidades"
com seus preceitos e nos mandou lavar as maos ".
etc... lniciar o dia com este modo de ver as coisas, com este ato
Ao lavar o rosto, diga: "Bendito aquele que desata os laços
de fé , nao é pura poesia: para o fiel é certeza fundamental, da
do sono dos meus olhos e a sonolencia de minhas pal.pebras,
qual a berakah é eco ontol6gico e expressao literaria.
e que tua vontade, Senhor meu Deus, seja que tu me habitues
As bençaos, das quais tratamos acima, deviam ser rezadas
.. à tua Lei e faças que eu esteja apegado aos teus preceitos; e
nao me faças cair no poder do pecado, da iniqilidade, da
tentaçao e da vergonha, e dobres minha indole para que te
pelos judeus em particular, pela manha ao se levantarem. Mas
uma vez que muitos judeus nao as sabiam de cor, nem as podiam
sej~ submissa; afasta-me do homem mau, das mas compa- aprender, por falta de textos escritos, prevaleceu o costume de
~--=
.-. nhi~ e torna-me afeiçoado à boa indole, a um bom compa- recita-las, na sinagoga, antes do culto lirurgico propriamente dito .
--
.......
--'
cc·
nherro no teu mundo, e faze sim, que hoje e todos os dias
eu encontre graça, caridade e misericordia aos teus olhos e
Um leitor as recitava ero voz alta, e os presentes respondiam com
o tradicional amen, havendo assim ocasiao de memori.za-las. Este
-
a a~s olhos daq~eles q~e me veem; e realiza boas obras por
minha causa. se bendito, Senhor, que re.alizas coisas boas ero
costume permaneceu também mais tarde, mesmo quando se dispu-
nha de textos, corno os "Livros de oraç5es". Ainda hoje eles sao
beneficio de teu povo de lsrael ".1 rezados nas sinagogas e constituem a introduçao do culto da sina-
goga, chamada birkat ha-shakar ( "bençiio ao amanhecer") enri-
, . Destas quinz~ berakot, as mais importantes sao a primeira e a quecida de varios modos e encaixada de acordo com os ;itos e
Ulttm.a . ~sta bendiz a J?eus por haver livrado o corpo dos "laços as comunidades hebraicas. Atualmente· e em quase todos os lu-
do sono (para os ant1~os, o sono era uma antecipaçao e figura gares o culto se inicia com o hino 'ad.on· 'olam, atribuido ao grande
da morte), e "!e pede aJud~ e proteçao para o novo dia ; aquela o poeta espanhol Salomon lbn Gabirol (1021-1058):
ag~adec:e por . ter. ~evolv1do a alma ao corpo", pois ela é o
prmdp1? de v_:da divma, da qual o homem usufrui . Acordar e tor- Se~or Deus _d o universo, antes da criaçao de qualquer coisa,
n~r .a viver ~~o é para o judeu religioso nem fato natural, nem tu Ja eras rei; e, quando por tu.a vontade tudo foi criado
dire1to adqumdo, mas milagre do qual ele é diariamente teste- tu foste proclamado rei. Quando rudo deixara de ser soment~
munha e beneficiario. Cada manha Deus renova a criaçao primeira tu, reinaras na gl6ria. Tu estiveste, estas, e estaras ;empre na
quando "modelou o homem com a argila do solo, insuflou err: gl6ri~. Tu és o unico, e nenhum outro pode ser comparado
contigo, ou posto ao teu lado. Sem principio e sem fim tu
1 TB Ber 60b; UTET, 407-408. és a força e o poder. Tu és o meu Deus, o meu salv;dor
152
15.3
vivo e a rocha do meu refUgio nas adversidades. Tu és mcu do empenho e da responsabilidade - corno da noite - simbolo
estandarte, meu refUgio, meu protetor no dia em que te in- da suspensao de toda atividade.
voco. Em tuas mios confio o meu espi.rito, quando me deito O conteudo da invocaçio é duplo: de um lado, o pedido de
e quando me levanto. E com o meu espi.rito, também o mcu um bom descanso ( "seja tua vontade, que me faças deitar em
corpo. Deus, tu estas comigo, nio temo nenhum mal.2 paz"), do outro o pedido de nio ser perturbado nem pelos "so-
nhos" nem pelos "maus pensamentos ". Dai se conclui que a noi te
Com este texto poético, que de um lado celebra a infinita é o simbolo das forças das trevas e do mal: as forças do caos e
grandeza de Deus, e de outro sua radical proximidade a toda do nada, da anticriaçio e do antiamor, mas ela se encontra sob
criatura humana, o judeu religioso inicia seu dia. Consciente da o dominio de Deus ( "aquele que prende com os laços do sono" ) .
transcendencia e da imanencia de Deus, ele torna em suas mios O judeu religioso transforma a noite, de topos de medo e de amea-
a obra da criaçio para leva-la à consumaçio. ças em topos de descanso e de intimidade. Para ele a noite nao é
mais a metafora do caos que prevalece sobre o "dia da criaçao"
mas da recuperaçio das energias, com as quais, de manha ele re-
Ao deitar-se à noite toma o " trabalho da criaçio ", para leva-la à consumaçao, de acor-
do com o designio de Deus. Certamente também ele fica exposto
A oraçio da noite compé)e-se de duas unidades fundamentais: a cair na tentaçio de submeter-se ao poder da noite, esquecendo-se
a reza do shema' e urna bençao especlfica. O Talmud babilonico do seu significado e enchendo-a de fantasmas. Mas por isso ele
da testemunho claro de ambos . Quanto ao shema' ele prescrevc: reza, sendo a oraçio, de acordo com os ensinamentos dos rabinos
....... "mesmo quando se recitou o shema' no rito da sinagoga, é um "urna espada de dois gumes" ( cf. SI l 49 ,6 ) que vence todos os
:~.1
,:.
~:
.. ato de piedade reza-lo de novo na cama" .3 Quanto à bençio es-
pecifica o texto prescrito é o seguinte:
inimigos, nao apenas os do dia, mas também os da noite.

Bendito aquele que faz cair os laços do sono sobre mcus Durante o dia
olhos, e a sonolencia sobre minhas palpebras ... Seja tua von-
tade, Senhor meus Deus, que me faças deitar em paz ... Quc A bençao caracteriza também outros momentos do dia, tan-
os sonhos e os maus pensamentos nio me perturbem, e quc to os de trabalho quanto os de recreaçio. Nao existe coisa ou
o meu leito esteja sem mancha diante de ti. Ilumina meus açio que n.io possa ser transfigurada pela berakah,· até para as
olhos com o temor, para que nao adormeça na morte ... Ben- necessidades fisiol6gicas existe urna que diz:
dito aquele que ilumina o mundo inteiro com seu esplendor.4
Se bendito, Senhor nosso Deus, rei do mundo, que formaste
Esta oraç.i o é ao mesmo tempo urna cqnfissio de fé e um o homem com sabedoria e criaste nele orificios e canais. Tua
pedido de ajuda. Se pela manha Deus é invocado corno "aquele gloriosa majestade sabe que se wn deles se fechasse ou se
que desfaz os laços do sono dos olhos" e "a sonolencia das pal- rompesse, nenhuma criatura poderia viver nem um instante!
pebras ", aqui ele o é corno "quem faz cair os laços do sono Se bendito, Senhor, que cuidas da saude de todas as criaturas,
sobre os olhos e os da sonolencia sobre as palpebras". Deus é fazendo isto de modo maravilhoso.5
o autor tanto da vigilia quanto do sono, tanto do dia - simbolo A bençao agradece a Deus por ter criado o homem "com
sabedoria" (be-hokmah) e eia consiste em have-lo dotado de "ori-
2 Traduçio do frances in E. Munk, Le monde des pri~res, op. cit. 33. ficios e canais ,,·, que lhe garantem a saude e o bem-estar. Urna
Embora no originai a oraçio scja dirigida a Deus na terceira pessoa ("foi
proclamado rein, "foi e estaré na gl6rian etc ...) preferimos aqui o uso da oraçao destas poderia parecer-nos ridicula, podendo até ser in-
segunda pessoa.
3 TB Ber 4b-5a; UTET, 82·83. 5 Traduçio in D. Di Segni, Preghiere... op. cit.. voi. I, 3 A b8nçio 6
4 TB Ber 60b; UTET, 406. encontrada também em TB Ber 600, UTET, 405.

154 155
conveniente. O judeu nao pensa assiro. Ele ve no harmonioso O moribundo, que sente seu fim aproximar-se, deve fazer
funcionamento do corpo humano o reflexo do amor e da perfeiçio urna confissao de fé corno a seguinte:
divina. Por isso o Talmud trata dele por extenso, e o Siddur pOc Senhor meu Deus e Deus de meus pais, reconheço que tanto
esta oraçao entre as bençaos familiares no ofkio matutino da minha saude corno minha morte estao em tuas rnaos. Oxala
sinagoga, para dar a todos a possibilidade de conhece-la e memo- seja tua vontade que eu me cure totalmente. Mas caso minha
riza-la. morte ja foi determinada por ti, quero aceita-la com amor.
Durante o dia agradece-se a Deus nao apenas "pelo bem ", Que ela seja urna expiaçlio de todo tipo de pecado, de mal-
mas também "pelo mal", porque segundo a maxima do Talmud dade e de transgressoes pelas quais me sinto resposavel dian-
"tudo aquilo que Deus faz, fa-lo visando o bem": te de ti. Derrama sobre mim abundante felicidade reservada
aos justos. Faz-me conhecer o caminho da vida: na tua pre-
Disse Rab Huna, em nome de Rab, em nome de R. Mefr, sença encontra-se a plenitude da alegria; à tua direita a felici-
e assim também foi ensinado em nome de R. Aqiba: O ho- dade eterna.
mem deve acostumar-se a dizer sempre: "Tudo aquilo que Tu, que és o Pai do 6rfao e o juiz da viuva, protege os
Deus faz, o faz visando o bem". Certa vez, Aqiba encontra- meus queridos, que slio parte de mim. Nas tuas maos confio
va-se em viagem. Chegou a urna cidade e procurou hospe- meu espfrito, meu redentor, Senhor Deus fiel. Amém.
dagem, e ninguém lhe deu ; entao ele disse: "Tudo aquilo Amém".7
que Deus faz, o faz visando o bem ". Prosseguiu a viagem e
pernoitou ao relento. Ele trazia consigo um galo, um jumen- Embora este texto seja deveras recente, composto de expres·
to e urna candeia. Veio um vento e apagou a candeia; veio soes tiradas as mais das vezes do Shulkan 'aruk ( séc. XVI), seu
um gato e comeu o galo; veio um leao e comeu o jumento. conteudo faz parte da mais genuina tradiçao hebraica, de Abraao
... E ele disse: "Tudo o que Deus faz, o faz visando o bem" .
Durante a noite vieram as tropas inimigas e prenderam os
a Jesus, até os dias de hoje. O abandono incondicional à vontade
de Deus, na convicçao de que nele se oculta o sentido e brota a
cidadaos. E ele lhes disse: Nao vos havia dito: "Tudo aquilo salvaçao, é o ponto de apoio da religiosidade judaica. A morte é
que Deus faz, o faz visando o bem? "6 a situaçao-limite idea! na qual este ato de abandono é renovado e
radicalizado, nao através de urna resignaçao fata!, mas por urna
A parabola de R. Aqiba prova, em sua inocente simplici- inabalavel esperança que Deus é mais forte do que a morte, ca-
dade, corno também nas circunstancias mais adversas encontramos paz de derrota-la e vence-la. É o que Paulo de Tarso, mais tarde
valores positivos. Ser obrigado a pernoitar ao relento e perder as can tara, refletindo sobre a experiencia de Jesus de Nazaré e sobre
coisas mais caras nao se apresentam corno fatos irreparaveis, mas sua ressurreiçao:
ocultam em seu interior urna salvaçao inesperada. Nao existe
"mal" em cuja profundidade nao se oculte um "bem", sendo Deus "A morte foi absorvida na vit6ria.
o senhor também do "mal". Se o mal esta sob o dominio de Deus, Morte, onde esta a tua vitoria?
o seu poder embora amplo e destruidor nunca é definitivo; a sua Morte, onde esta o teu aguilhao?" (lCor 15,54-55).
palavra ainda que seja a penwtima, jamais pode ser a Ultima.
Como Abraao, no monte Moria, em vez de perder o filho o
reconquistou, e corno Jesus, no Calvario, no fundo da derrota en-
Para casos espedficos controu a ressurreiçao, assim o judeu religioso ve paradoxalmente
na sua morte a vida: "Ensinar-me-as o caminho da vida, cheio de
Deus é louvado também em ocas1oes especra1s, tais corno alegrias em tua presença e delicias à tua direita, perpetuamen-
um.a viagem, urna doença ou na proximidade da morte. te" (SI 15,11 ).

6 TB Ber 60b; UTET, 409. 7 Traduçiio de J. H. Hertz, The Authorized Prayer Book, op. cit., 1065.

156 157
T ambém por ocasiao da doença o judeu religioso bendiz a 1. A Birkat ha-mazon
Deus:
A refeiçiio familiar representa, para o judafsmo, o ato reli-
"Na minha enfermidade, volto-me a ti, Senhor, porque sou gioso por excelencia. Por isso, mais do que qualquer outro ato do
obra de tuas maos. A tua força e a tua coragem estao no meu dia-a-dia ela é acompanhada de urna série de bençaos espedficas.
espfrito, e o poder de cura esta dentro de meu corpo. Oxala Esta· posiçao centrai da refeiçio passou do judafsmo para o cris-
tua vontade seja a de restituir-me a saUde. Urna vez doente, tianismo, de modo que este Ultimo fez do piio e do vinho, na
aprendi o que é grande e o que é pequeno. Sei muito bem o celebraçao eucadstica os seus s1tnbolos fundamentais ( embora de-
quanto sou dependente de ti. Foram as penas e os sofri- va-se acrescentar que o cristianismo desfamiliarizou a eucaristia,
mentos que mo ensinaram. Urna vez curado, que eu nao me colocando-a no ambito do sacerd6cio e do "templo"). Por que a
esqueça jamais deste conhecimento precioso. refeiçiio familiar tem tanta importancia?
Conforta-me, Senhor, e protege-me com teu amor. Cura-me
e serei curado; salva-me e serei salvo. Se bendito, Senhor,
curador fiel e misericordioso".8
O simbolismo do ato de comer
Do mesmo modo, pode-se recitar bençios por ocasiiio de
um aniversario, de um empreendimento, de urna viagem, por ter Alimentar-se é o ato mais comum e prunano do homem,
escapado de um perigo, por um encontro decisivo, por um acon- - que nao apenas satisfaz suas necessidades fundamentais, garantin-

l ;....~
..
tecimento significativo etc... do sua sobrevivencia, mas é a condiçiio indispensavel para qualquer
outra atividade mental e espiritual. Onde ha falta de pao para
matar a fame, la também nao ha possibilidade de se fazer oraçao.
:"-'..
~ Como ja disse o salmista, Deus s6 pode ser louvado pelos vivos,
A LITURGIA FAMILlAR enquanto niio o pode ser por aqueles que ja desceram ao rumulo
u..: (d. SI 113 ,17) .
f- Para o judeu, corner é algo mais do que urna agradavel sa-
e:
::3
o-:i
O primeiro lugar sagrado da liturgia hebraica é a casa, tida
corno "um santuario": "Niio se trata de exagero poético. Para o
tisfaçao fisica e nutritiva, tornando-se o piio para ele realmente,
e niio metaforicamente, um dom de Deus. Nele - simbolo de
e: judeu a casa era realmente um templo. A mesa da famflia era con- todos os bens - encontramos de fato urna intençao benévola,
siderada um altar; as refeiçoes como um rito sagrado; e os pais que fundamenta sua verdade e seu sentido: o amor com que Deus
corno os sacerdotes celebrantes. O culto familiar acompanhava mui- alimenta suas criaturas, corno os verskulos 14 e 15 do salmo 104
tas ocupaçées cotidianas e transformava as relaç6es biol6gicas e expressam maravilhosamente:
socias do grupo familiar em uma realeza espiritual" .9
No "santuario" familiar sao tres as principais celebraç6es: fazes brotar relva para o rebanho
urna cotidiana, ligada à refeiçao; a segunda era semanal, ligada ao e plantas uteis para o homem,
shabbat; a terceira, anual, ligada à festa de pesa/:i. Estas "celebra- para que da terra ele tire o piio
ç6es" se relacionam e se integram reciprocamente, esclarecendo-se e o vinho que alegra o coraçiio do homem;
e enriquecendo-se mutuamente. para que ele faça o rosto brilhar com o oleo
e o piio fortaleça o coraçao do homem.

8 Traduzido de Forms o/ Prayers /or fewish Worship, voi. I, a cargo da O salmista descreve Deus corno um benfeitor generoso que
Assembly or RAbbis of the Reform Synagogues of Great Britain, Londres, presenteia o homem com o jardim do mundo, para nutri-lo e
5737-1977, 292-93. alegra-lo.
9 A. E. Millgram, fewish Worship, op. cit., 290.

158 159
A oraçao dc louvor, a ser rezada antes e dcpois das rcfciçOea Nao ha nada melhor do quc a Iuta pelo pao cotidiano para
tcm e.s~ funçio poética e transformadora: abrir uma brecha ~ tornar o bomem egoista e faze-lo sentir os outros como ri-
matcr.talidadc dos bcns com os quais somos alimcntados a fim de vais ... Por isso os rabinos deram urna importancia cspecial ...
nos fazer cntrcvcr o "tu" divino que os cria e da sentido. Foi à refeiçio em comum. Eles mandarn quc, quando tres ou mais
essa a intuiçio de todas as grandes tradiçOes rcligiosas ao falaicm pessoas comerem juntas, um deles deve convidar os outros a
de "refciçOes sagradas" ou de "banquetes sagrados ". Corner ten- rezar com ele a berakah. Deste modo, se lhes tornara fami-
do a con~encia de que as coisas sao presentes de Dcus, é, mais liar a idéia de que eles sao iguais uns aos outros, graças ao
do que a sunples absorçio de energias vitais; no fundo é a reali. amor do mesmo Deus e que justamente este mesmo amor
zaçio dc ~ acontecimc;,nto,, interpessoal no qual duas pcssoas se cheio de solicitude é a razao permanente da sua existencia.
revelam e dialogam! O tu de Deus, benéfico e amoroso, com 0 Esta oraçao comunitaria a urn Unico Deus, igualmente pr6-
"tu" do homem, reconhecido e agraciado. A oraçao dc bençio ximo de cada um, corno Providencia bcnéfica desfaz toda
cria csta comunhao, cria o milagre do encontro entrc Deus e 0 idéla de compctiçao invejosa e inspira, ao contrario, um sen-
bomem. timento de fraternidade. Nao nos sentimos diminufdos pela
prospcridade de nosso pr6ximo, porque sabemos que o Pai
'Sob este ponto de vista, a berakah expressa verbalmente a nos ama de tal modo que da a cada um o que lhe é util
mesma mensa~em que, no ambito do templo o sacriffcio expressava e born. 11
através dos rttos. Oferecer a Deus as primlcias ou o primeiro fi.
lhote do rebanho era um modo de reconhece-lo corno fonte dos Finalmente ha um terceiro simbolismo referente ao ato de
produtos da terra, acolhendo-0 com amor e proclamando sua corner: é o da atividade responsavel. Se é verdade que "Deus faz
gratuidade. Por isso, tanto o sacrificio corno a berakah realizam a brotar a relva para o rebanho .. ./o vinho que alegra o coraçao do
comunhao: "A idé~a de oferecer ficou truncada e desvirtuada, por homem,/pa.ra que ele faça o rosto brilhar com o 6leo/e o pao que
causa do termo laun~ da qual é derivada. Oferecer vem do latim fortaleça o coraçao do homem " ( SI 104,14-15 ) , é também ver·
offe~r~, c:1q.u~to,,, o termo bebraico qorban vem de qarov, quc dade que tudo isto exige o trabalho do homem. Encarando as
s1g~f~c~ vizin;?o , e é por isso que Buber e Roscnzweig falam coisas corno dom e corno condivisao, a berakah nao anula o es-
dc v12inhança . De fato, quando se come as oferendas avizinha-sc forço do homem, mas o libcrta da ang1lstia, dando-lbe um novo
de Deus pela comunhao ". 10 significado : nao corno autoprojeçiio que constr6i ex nihilo, mas
No "pio", graças à berakah e ao sacrificio, tornado corno corno tarefa responsavel com a qual ele consente e colabora. O
dorn, o homem se avizinha de Deus e Deus se avizinha do homcm· "pao" é o resultado de duas intenç5es, a divina e a humana: a
os dois se encontram e vivem/ revivem a sua aliança. ' primeira exclusiva e fundamental, a segunda receptiva e obediente.
O " piio" surge, onde estas duas intenç5es se encontram e dialo-
Além do simbolismo do dom, o ato de corner nos lcmbra gam; onde, corno na obra de arte, o homem aceita e transforma
também o ato de condividir: reconhecer Deus corno origem dos a maté.ria que lhe é dada. O t,rabalho é o lugar desta criatividade;
frutos da terra, significa afirmar que eles sao destinados a todos obra humana, ela assume e realiza a intençao divina; graças a elc
tirando do homem o direito de posse e de venda dos mesmos~ o projeto de Deus chega a realizar-se, fazendo cresce.e do solo
Se o "pao " é de Deus'.o homem niio pode apropriar-se dele, toda espécie de arvores formosas de ver e boas de corner" ( Gn
~~s .apcnas des~ru~ar dele Jui;itamente com outros, que nao sao 2,9 ).
1Illm1gos nem nva1.s, mas amigos, porque siio beneficiados pela
~esma graça. Motivando o porque da obrigaçao do zimun {a
bzrkat ha-mazon deve ser recitada por todos juntos) o rabino
S. Hirsh escreve: '

10 Sch. Ben Chorin, Le /udaism en prière, op. cit., 102. 11 In E. Munk, Le monde des prières, op. cit., 245-246.

160 161
6 • hrael em oraçlo
A Birkat ha-mo$i Ela é considerada con:.o a mais antiga e a mais importante de
todas as bènçaos do ritual hebraico, urna vez que é a unica bençao
A refeiçao é acompanhada de duas berakot: uma brevissima, expressamente prescrita pela Tora: "Comeras e ficaras saciado,
que a precede; a outra, mais longa e sistematizada, que a encerra. e bendiras a Javé, teu Deus, na terra que ele te houver dado" (Dt
A primeira, conhecida corno birkat ha-mo# (do radical y$h, sair, 8,10). Ela se compé>e de tres bençaos ( atualmc:;nte de quatro)
partidpio de causa; aquele que faz sair) reza assim: "$e bendito através das quais se agradece a Deus pelo alimento, pela terra
Senhor nosso Deus, rei do universo, que tiras o pao da terr~ e por Jerusalém. Sua origem remonta, com grande probabilidade,
(ha-mo$i lel:zem min ha-'ares)". Com estas palavras, tiradas do ao periodo do segundo Templo, embora a tradiçao do Talmud
salmo 104,14, Deus é reconhecido corno "aquele que faz o pio atribua sua paternidade respectivamente a Moisés, Josué e Sa-
sair da terra" . lomao:
A palavra-chave desta bènçao é lel:zem, que pode ter seman. A primeira bençao da birkat ha-mazon, que se inicia com as
ticamente muitos significados. O sentido fundamental é o dc palavras " tu que nutres n, foi feita para Israel, por Moisés,
"pao ", o alimento do homem, tirado do trigo. Ligado a es te, mas no periodo em que o mana caiu do céu. A segunda foi
com um sentido mais amplo, lel:zem pode significar a refeiçao em composta por Josué, quando os judeus tomaram posse da
geral. Esta acepçao permanece ainda hoje entre os arabes em cuja terra. Finalmente, foram Davi e Salomao que instituiram a
lingua lal:zma, correspondente etimologicamente ao hebraico lel:zem terceira, que termina com as palavras: " tu, que construiste
significa "carne a ser comida", o prato mais comum e abundantc Jerusalém" (Talmud bab. Ber 48b).
de suas refeiç5es. Agradecer a Deus pelo pao, significa, portanto,
expressar-lhe a gratidao e o reconhecimento por todos os frutos Eis o texto destas bènçaos:
da terra, graças aos quais os homens se alimentam e se alegram. Se bendito, Senhor nosso Deus, rei do universo, que em tua
Mas lel:zem lembra também, na tradiç.iio biblica hebraica, as bondade nutres o mundo inteiro, com favor, graça e mise-
carnes dos animais sacrilicados, chamados le/:tem 'Elohim (Lv 21, ricordia, que das o alimento a toda criatura, porque tua graça
6), "o pao de Deus" e o mana, lel:zem min-ha-shamaim, "o pio é eterna. Por tua grande bondade, jamais nos faltou ali-
do céu ". Estas duas acepçoes, em vez de se contraporem às duas mento e jamais faltara . Pdo teu grande nome, tu alimentas e
anteriores, sao um aprofundamento e exegese das mesmas. Tanto conservas todas as coisas, concede a todos teus beneflcios e
o sacrificio corno o mana sao um modo de reconhecer e afirmar o prepara alimento a todas as criaturas que criaste. Se bendito,
que Deus quer com os bens da terra. Eles estao à disposiçio do Senhor, que alimentas todos os seres. 12
homem para seu alimento, mas alcançam sua veracidade e desem-
penham sua potencialidade soirente se assumidos de acordo com Esta bençao ( conhecida ·Como birkat !Ja-zan, bènçao para o
o dinamismo que os orienta. f: esta a funçao da berakah, que alimento) celebra Deus corno "anfitriao" do universo, que ali-
expressa e assume novamente a mesma l6gica do sacrificio e do menta por amor todas as cri:aturas. O acento deste t~to recai
mana. Reconhecer, antes da refeiçao, que Deus é o autor do "pao" sobre este "todas" ( em hebraico kol), que é repetido seis vezes.
que se esta comendo é realizar toda vez um sacrificio e reviver o Assiro, é celebrado, nao somente o universalismo antropol6gico
milagre do mana. ( além de Israel, Deus alimenta todos os outros povos) do amor
divino, mas também o cosmol6gico ( Deus alimenta todo ser vivo,
seja do mundo animal, seja vegetal, pertença ele tanto ao macro
A Birkat ha-mazon como ao microcosmos) . Sentair-se à mesa para se alimentar signi-
fica, para o hebreu religioso, sentir-se em comunhao com todos os
Mas a berakah por excelencia referente à refeiçao é a berakah seres viventes. Para ele, o comer vai além de urna simples funçao
depois da refeiçao, chamada Birkat ha-mazon, bençao sobre os materia!: antes de sustenta-lo, os frutos da terra falam-lhe dc
alimentos ( mazon significa alimentos). 12 Traduzido por E. Munk, Le monde des pri~res, op. cit., 246.

162 163
Deus e de sua graça; antes de interessarem s~u corpo, interessam çoso" do qual o f.xodo fala, nao é aquelc que florcsce milagrosa-
a seu coraçao e seu espirito. A berakah exprune esta passagcm e mente pelas privilegiadas condiçOes naturais, mas aquele quc da
realiza esta metamorfose, transformando o " pao da terra " (le/:iem frutos para todos através de urna co-rcsponsabilidadc quc se con-
min ha-'ares), em "pao do céu" (leJ:iem min-ha-shamaim), pao do tenta com o necessario e é capaz dc condividir. O "pa!s" se torna
mana. " belo e espaçoso" , capaz de alimentar e alegrar, se a aliança e a
A segunda bençao que comp0e a birkat ha-mazon, conhecida Tora forem cultivadas nele.
tamhém como birkat ha-'ares ( bençao pela terra ), agradecc a A terceira bençao, conhecida corno boneh Jerushalaim ("tu
Deus pelo belo e espaçoso pa!s dado a Israel: que reconstruiste Jerusalém "), invoca Deus e lhe agradece corno
"reconstrutor" de Siao:
Rendemos-te graça, Senhor nosso Deus, por haver dado. a
nossos pais um pa!s delicioso, belo e grande; de t~r-nos feuo Senhor, nosso Deus, tem picdade dc Israel, teu povo, de
sair do Egito, Senhor nosso Deus, e de ter nos libertado da Jerusalém, tua cidade, tabernaculo da tua gloria, do reino da
escravidao; pela aliança que selaste na nossa carne, pela lei casa de Davi teu ungido, da grande e santa casa sobre a
que nos deste, peios mandamentos que nos fizes~e conhecer, qual foi proclamado o teu Nome. Nosso Deus, DOSSO Pai, se
pela vida, piedade e demencia com que nos prerruaste e ~Io nosso pastor, alimenta-nos, conserva-nos, satisfaze nossas ne-
alimento que nos proporcionaste constantemente, todo dia, cessidades, redime-nos, libcrta-nos logo de todas as tribula-
sempre e em qualquer lugar. Senhor nosso Deus, n6s te çoes, Senhor nosso Deus. Nao permitas que necessitemos de
agradecemos e te bendizemos por tudo. Que teu nome seja ajuda dos bomens, nem de seus préstimos, mas somente de
bendito pela boca de todos os viventes sempre e por toda tua mao, cheia, aberta, santa e generosa ... E reconstr6i logo,
eternidade, conforme esta escrito: "Quando tiveres comido a partir de hoje, Jerusalém, a cidade santa. Se bendito Se-
e estiveres satisfeito, bendiras o Senhor teu Deus pelo pafs nhor, que na tua miseric6rdia reconstr6is Jerusalém. Amém.14
que te deu ". Se bcndito, Senhor, pela terra e pelo alimento.U
Enquanto a primeira bençao agradece a Deus pelo alimento e
Partindo da bençao cosmica e universal {corno era a birkat a segunda pela terra que deve ser aceita e trabalhada de acordo
l:za-zan) ela se torna aqui hist6rica e particular. Agradece-se a com a Tora, esta terceira é urna invocaçao a Deus para que
Deus pela terra prometida, pela libertaçiio do Egito, pelo dom da conserve sempre sua miseric6rdia ( ra/:zem, " tem misericordia") pa-
aliança e pela circuncisao. Por que, em uma oraçao de agradeci- ra com o povo de Israel. O objeto da invocaçao é triplice: a
mento depois da refeiçao, faz-se referencia a temas teo16gicos tao proteçao de Jerusalém, sua reconstruçao, e entre urna e outra, a
densos e estranhos ao contexto de uma refeiçao? O motivo é satisfaçiio das necessidades individuais ( "alimenta-nos, conserva-
profundo, embora nao seja imediatamente individualizado. Se é nos, satisfaze nossas necessidades ... "). Qual é o sentido destes
verdade que Deus alimenta todos os seres viventes, corno celebra pedidos em urna oraçao de agradecimento depois da refeiçao? A
a primeira bençao, é no cotanto verdade que esta sua atividadc lucida consciencia de Israel de que o pao que mata a fome é o da
exige a responsabilidade e a solidariedade de grupos humanos. responsabilidade e da solidariedade é acompanhada da igualmente
A referencia que a segunda bençao faz à Tora sublinha este as- lucida consciencia de seu pecado de egoismo e infidelidade. Da! a
pecto de extrema importancia: o pao que da alegria e que mata a invocaçao e o pedido de perdao: "tem piedade". Se o pao que
fome nao é o acumulado ou comprado egoisticamente, mas aquelc foi comido foi comprado injustamente, "tem piedade n; se foi ti-
que é dividido, conforme a 16gica da aliança que profue a in- rado do pobre, "tem piedade n; se enquanto n6s nos alimentamos
justiça e funda a fraternidade. A terra pela qual se agradece a outros morrem de fome, "tem piedaden. !sto significa: que n6s
Deus na segunda bençao, nao diz respeito ao puro dado geografico, possamos compreender o quanto isto é detestavel; e corno tu és
mas o dom de Deus que é conseqiiencia da libertaçao do Egito ( rel:zem) misericordioso para conosco ( rel:zem significa topos vi-
e do pacto realizado. Dentro desta l6gica, "o pa!s belo e espa- tal, utero) faze que possamos nos tornar misericordiosos para
13 Idem, 248. 14 Idem. 249.

164 165
com os outros. Este é o sentido de: "nao permitas que ncces~itc­ ambiente ou rito, sofreram acréscimos na introduçio, no corpo
mos da ajuda dos homens ... mas somente de tua mao, chcia, ou na sua parte final.
aberta, santa e generosa". O acréscimo na introduçao, que talvez faça parte da propria
A birkat ha-mawn, até o século I da era cnsta, era com. esttutura fundamcntal, consiste cm urna cspécie de dialogo que
posta apenas das tres bençaos acima mencionadas, consideradas se da entre o chefe da casa ( ou um h6spede de honra) e os
corno urna unica oraçao bem sistematizada (por isso a Ultima outros comensais.
terminava com o amém final). A estas, porém, foi acrescentada Dirigindo-se a cstes ele diz: "rabbotai nevarek, Senhores, re·
urna quarta berakah, conhecida corno ha-fov we-ha-mefiv ( "quc citcmos a bençao ". Os participantes respondem: "Seja ben~to o
és bom e fazes o bem"), composta em J avne pelo rabino Gama- nome do Senhor agora e sempre". O chefe da casa conttnu~:
liel, quando os romanos permitiram que os mortos na batalha dc "com a aprovaçio dos presentes, queremos louvar aquele de cu1.a
Bethar, depois da revolta de Bar-Kochba, fossem sepultados: generosidade participamos". Segue de novo a ~esposta .d?~ paru·
Se bendito, Senhor nosso Deus, rei do universo, Deus, cipantes: "Seja bendito aquele de cuja ,,genero~1dade part1C1J?'._llilOS
nosso pai, nosso rei, nosso protetor, nosso criador, salvador e através de cuja bondade n6s vivemos . Terminando este ~alogo
nosso, o nosso formador, nosso santo e santo de Jac6, nos- recitam-se as bençaos da birkat ha-mazon, contante que ha1a um
so pastor e pastor de Israel, rei bom e amavel para todos, minimo de tres pessoas, homens e mulheres.17
que todos os dias nos premiou com o bem, premia agora Quanto aos acréscimos intermediarios, um de rara beleza é
e premiara sempre. Ele nos cumulou, cumula e cumulara aquele conhecido corno ha-ra/:iamon ("O misericordioso"), que
sempre de favores, de graça, de misericordia, de prospcri- consiste numa série de invocaçoes optativas:
dade, de libertaçao, de vit6ria, de bençaos, de saude, dc
socorro, de subsistencia, de alimento, de miseric6rdia, dc Que o Deus de miseric6rdia reine para sempre sobre n6s.
paz e de todo bem. Ele nao nos deixa faltar nada.15 Que o Deus de miseric6rdia seja bendito no céu e na terra.
Que o Deus de miseric6rdia seja louvado de geraçio em gc-
S surpreendente que, apesar do enorme fracasso da revolta raçao e que seu nome seja exaltado por n6s para sempre e
do ano 1.35, os rabinos tenham acrescentado à birkat ha-mazon por nos glorilicado de eternidade em eternidade. Que o Deus
esta bençao, que é um bino ao amor divino. Urna das explica- da eternidade nos de urna vida digna. Que o Deus de mi·
çoes é para que servisse de exemplo "àqueles que, descontentcs seric6rdia quebre o jugo que esta sobre n6s e nos faça cami-
ou desiludidos por seus desejos nao terem sido atendidos, acha- nhar em direçao do nosso pafs. Que o Deus de misericordia
vam que podiam deixar de expressar sua gratidao à Providencia envie urna bençio abundante sobre esta casa e sobre esta me-
divina. Esta bençao nos lembra o tempo em que nossos pais cs- sa da qual participamos. Que o Deus de miseric6rdia nos
tavam tao profundamente infelizes, que lhes foi suficiente a li- mande o profeta Elias, caro à nossa mcm6ria, e que seja
cença de enterrar os mortos, para que explodisse esta expressao portador de boas e confortadoras notkias. Que o Deus de
ardente de reconhecimento" .16 miseric6rdia abençoe meu pai, chefe desta familia, e minha
A quarta bençao nos eosina que é necessario saber "contcn· mae, senhora desta casa. Abençoa-os, sua casa, sua posteri·
tar-se", e isso nao significa renunciar às coisas, mas estabeleccr dade, os seus bens, juntamente conosco e nossos bens. Que
com elas urna relaçao diferente, pois é deste e nao daquele quc nos abençoe a todos n6s juntos com urna bençao perfeita as-
nascem a alegria e a gratidao. As quatro bençaos constituem a siro corno foram abençoados os nossos pais Abraao, Isaac e
estrutura fundamental da birkat ha-mazon que, de acordo com o
17 Enquanto que para as outras oraçOes exigem-se ao menos 10 pcssoas
15 Idem, 252. e somente do sexo masculino (minyan) para a birkat ha·mazon bastam tr!s
16 Idem, 253. Para uma outra explicaçiio, cf. A. Epstein·A. Neher·E. pessoas, mesmo que sejam mulheres. !sto demonstra a importancia desta
Sebban, Etmce1les. Textes rabbiniques traduits et commentés, Albin Miche!, oraçiio e sua "superioridade" em relaçiio às outras: cf. E. Garfiel, The
Paris, 1970, 16-17. Service of the Heart, op. cit., 205.

166 167
Jac6 em tudo, por tudo e com tudo. Que ele nos abcnçoc a um rei que mandou fazer um anel para si mesmo. E o que
todos juntos com uma bençio pedeita. Amém. 18 faltava nele? O selo. Assim, que coisa faltava no mundo?
O sabado. 19
Os acréscimos na parte final da birkat ha-mar.on consis- A parabola contada no M_idrash Rabba pa_r11 C:plicar Go 2,2
tcm cm alguns verskulos, a serem recitados individualmente e cm ( "Deus concluiu no sétimo dia a obra qu~ .fizera _), cstabelecc
silencio. Entre estes, os versiculos 11 e 25 dos salmos 34 e 37 a relaçio entre os seis dias da semana e o settmo: nao ~e trata dc
respectivamente, que rezam: " ...nenhum bem falta aos que pro- urna relaçio sucessiva e tempora/ (o sabado vem depo1s dos ou-
curam Javé" e "Fui jovem e ja estou velho, mas nunca vi um tros seis dias ) , mas deu urna relaçio hermeneutica e fundamental
justo abandonado nem sua descendencia mendigando pio n. ( 0 sabado interpreta e da sentido ao tempo) . ~ fato, de acordo
com o relato, ha entre o sabado e os outros dias da semana, a
mesma relaçio entre o baldaquim nupcial e a esposa, e entre o
2. A festa do shabbat
anel e o selo do rei.
O baldaquim nupcial, embora cronologicamente venha antes
Se o primeiro nucleo da liturgia familiar surge e se cstru- da esposa, é teleologicamente oriemado e tem por m~ta a esposa.
tura ao redor do "pion, simbolo da mesa e dos frutos da terra, Do mesmo modo um anel nio é importante por s1 s6, mas na
o segundo é formado ao redor do shabbat, sfntese e simbolo dc perspectiva de qu~ alguém o assuma corno selo. Na sua s~plici­
todos os bens dos quais Israel experimentou. dade inocente o midrash condensa um tratado completo de filoso-
É impossivel compreender a espiritualidade hebraica sem pe- fia do tem~: para que o tempo, e co!Do dar-lhe o ~entid??
netrar nos meandros luminosos e fascinantes do shabbat, que é Ao contrario do negro pessimismo dos vanos ramos do existenoa-
sua fiel expressio e seu fruto eficaz. Começando com urna berakah lismo moderno1 angustiados pela ameaça do vazio que tudo de-
pronunciada pela mae e terminando com outras tres bençaos cha- vora e destr6i, 0 judafsmo vive o tempo corno conteudo positivo,
madas de havdalah e recitadas pelo pai, a celebraçio do sabado lugar de signilicado e fonte de realizaçio. "O que faltava ao
tem scu momento culminante na reza do qiddush feita sobre um mundo? O sabado": corno a esposa enche a casa, sendo seu fim
copo de vinho antes da refeiçio familiar. O acender das velas, e causa, assim o sabado justifica o mundo, tornando-se seu fun-
o qiddush e o havdalah sio os tres ritos principais que acompa- damento e sentido. Na experien"cia biblica, o tempo é "incompleto"
nham a famflia judia no dia de sabado. Através destcs ritos o e por conseguinte um espaço amcaçador e voraz sem o "sabado";
shabbat mostra sua luminosidade e, "corno lampada para scus enquanto torna-se definido e cheio de sentido, se relacionado a
passos" (cf. SI 119,105 ), clareia o caminho de Israel, revelando este. O sabado é o aio-tempo (a eternidade, diriamos n6s) en-
e fortificando sua identidade. quanto fundamento do tempo, o tempo das origens enquanto
origem do tempo, o ser dentro do vir a ser.
Se quisermos traduzir em conceito o que a imagem da es-
A imagem da esposa posa e do anel real exprimem simbolicamente, devemos dizer que
o sentido do tempo esta incluido na pr6pria etimologia do termo
Somente através do midrash Israel conseguiu represcntar a shabbat. Em hebraico ele tem dois significados: "parar de tra-
profundidade do significado do shabbat: balhar" e "descansar". Negativamente, indica a ausencia de fadiga
Genibah disse: Semelhante a um rei que tinha preparado o e do sofrimento; positivamente, a plenitude do usufruto e do
baldaquim nupcial e o tinha enfeitado, mas algo lhe faltava: prazer. O usufruto de que falamos aqui, nio é aquele subjetivo
a esposa, para poder introduzi-la nele. Assim, que coisa fal- baseado nos recursos pessoais, mas o usufruto objetivo, muito
tava no mundo? O sabado. Nossos mesttes disseram: É corno mais aquele que da fuodamento do que é fundado: Entio "Deus

18 Traduçao de E. Munk, Le monde des prières, op. cit., 2SS. 19 Midrash Rabba Go 9,9; UTET, 89.

168 169
concluiu no sétimo dia a obra que fizera e no sétimo dia dcscan- sinagoga, para acolher o sabado juntamente com a comunidade),
sou, dcpois dc toda a obra que fizera" (Go 2 ,2-3 ) . O relato do reza assim:
Gencsis, pondo o sabado divino como fundamento do sabado
humano, faz daquele mimesis deste, define o tempo corno possi- Senhor do universo, vou cumprir o dever sagrado de acender
bilidade objctiva de sentido do qual é mais aquele que usufrui as luzes em honra do Sabado, ja que esci escrito: " ...chaman-
do que o que projeta. do o sabado 'deleitoso' e 'vcneravel' no dia santo de Javé ... "
A afirmaçao do sentido objetivo do tempo nao tira a rcs- ( Is 58,13). Que corno recompensa do cumprimento deste
ponsabilidade do homem, mas a exige e possibilita, corno mostra mandamento, desça sobre miro e sobre os meus, um rio de
este outro relato tirado também da Midrash Rabba: vida abundante e de benç3os celestes. Se benévolo conosco e
que a tua Shekinah habite em nosso meio. Pai de miseric6r-
O rabino Simeon ben Jochaj disse: "quando foi terminada dia, continua a ser misericordioso comigo e com meus filhos.
a obra da criaçao, o Sétimo dia (o Sabado J lamentou-sc: Torna-me digna de (educar meus filhos de modo que pos-
Senhor do universo, tudo aquilo que criaste, o fizeste aos sam) caminhar na estrada que leva a ti, fiel à tua Tora e
pares: e deste um companheiro a todos os dias da semana; pronta para as boas aç5es. Afasta de n6s toda a sorte de
s6 eu fiquei sozinho. E Deus lhe respondeu: A Comunidade vergonha,de dores e de preocupaçao e faz que a paz, a luz
de Israel sera a tua companheira" .']J) e a gl6ria habitem sempre em nossa casa. De fato, tu és a
Comentando este midrash, A. J. Heschel escreve: "Apesar de fonte da vida; é em tua luz que vemos a luz. Amém. 21
sua grandeza, o sabado nao é auto-suficiente, a sua realidade es- Depois desta oraçao, a mae de familia acende as velas, e,
piritual reclama a participaçao do homem. Uro desejo ardente in- logo ap6s, diz a bençiio: "Se bendito Senhor, rei do universo,
vade o mundo: os seis dias necessitam de espaço, o sétimo pre- que nos santificaste com teus mandamentos e nos ordenaste que
cisa do homem. Nao é bom que o espirito fique sozinbo; por acendessemos as luzes do sabado".
isso, Israel foi destinado a ser o companheiro do Sabado". A Sao duas as raz5es que pedem esta bençao: a santificaçao
claridade do tempo, subentendida no vir-a-ser humano, s6 é revc- ( "porque nos santificaste com teus mandamentos") e o acender
lada àqueles que a procuram anuindo a ela. o sabado, tempo quan- das velas ( "porque nos ordenas te acender as luzes do sabado" ) .
titativo, torna-se shabbat, tempo qualitativo, somente para qucm
Santificaçao ( do radical qdsh) significa separaçao/diferen-
se torna seu "companheiro ". Esposa do mundo, ela ( em hcbraico
ciaçao, e é por esta que Israel beodiz o Senhor. Mas ela nao
shabbat é feminino) descobre os seus tesouros de amor e de belcza
deve ser compreendida em relaçao aos outros povos, mas em re-
somente a quem sabe acolhe-la com a candura e a paixao de um
esposo. laçao ao tempo: Israel é di/erente ("santo ") nao por ser superior
aos outros, mas porque é capaz de interpretar e usufruir o tempo
esclarecidamente, nao corno a aparencia do vazio, mas corno o
O acender das velas tempo da plenitude que lhe da sentido.
A "santidade" niio consiste cm um ac-Umulo de boas obras
O sabado se inicia em casa com o accnder das velas pela que faz as pessoas moralmente melhores ( isto é apenas urna con-
mae da familia. A luz, que nao se apaga mais, é a expressao seqiiencia), mas no acesso ao fondamento do tempo no qual se
materia! da beleza e do sentido oculto no dia-a-dia; o seu csplen- esconde e do qual se desprende a luminosidade do ser. O acender
dor e o seu calor lembram o esplendor e o calor do sabado quc das luzes apresentado corno segunda motivaçao da bençao ("man-
deve ser acolhido e apoiado. daste-nos acender as luzes do sabado" ) nao diferencia da santifi-
Antes de acender as velas, a mae, cercada dos filhos mais caçao ( "nos santificaste com teus mandamentos" ) , mas é urna
novos ( enquanto o pai com os filhos mais velhos se encontra na
2 1 Traduçio de J. H. Hertz, The Authorized Daily Prayer Book, op. cit.,
20 In J. Zcgdun, li mondo del midrash, op. cit., 121. 343.

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cxplicitaçao e uma cxpressao material: a luz que rcsplandccc é 0 amor nos deste corno herança o teu Sabado santo. se
bendito,
simbolo da cxistencia objetiva, do sentido que inere ao tempo. Senhor nosso Deus, que santificas o Sabado.
De origem quase certamente anterior aos Macabcus,22 o accn- se bendito, Senhor DOSSO Dcus, rei do universo, que tiras O
der das luzes constitui urna verdadeira introduçao ao sabado no pio da terra.25
quc cfu rcspeito a seu inicio e à sua linguagem. Graças a cla 0 De acordo com as palavras da berakah do meio, Dcus é louva-
Sabado faz "o céu descer em todas as casas dos judeus, ench~­ do porque "santifica o sabado" (meqe.ddesh ha-shabbat) e explica
do-as de urna paz de ha muito esperada e saudada com alegria; a novidade radical a respeito do tempo que o precede e que o
fazendo de cada casa um santuario, do pai um sacerdote, e da segue. O sentido desta novidade é cxpresso simbolicamente, pelo
mie que acende as velas um anjo de luz ".23 copo de vinho, sobre o qual é pronunciada a berakah. Na tra-
diçao bfblica (cf. Gn 9,20} e na cultura grega, o vinho ocupa
lugar importante, porque é o simbolo da gratuidade e fonte de
O qiddush alegria. Diversamente do pao, que é necessario para a sobreviven-
cia, o vinho é usado para se alcançar a alegria e a liberdade de
De acordo com a tradiçao rabfnica, o qiddush remonta aos espfrito. Como diz o salmista, ele "alegra o coraç.iio do homem"
teropos dos Homens da Grande Assembléia (cerca <io século V ( Sl 104, 15 ) e evoca a dimensao humana na qual se é "mais"
. ~ - a.C.), e é .recitado pelo pai de familia, ao redor da mesa prc-
parada fest1vamente, sobre a qual a mie acendera anteriormente
do que as pr6prias necessidades ffsicas: a dimensiio da finalidade,
da plenitude e do sentido. O Sabado é tudo isto: expressa a bon-
as luzes. 24 Ele consiste na bençao e distribuiçao de um cooo cic dade fundamental do real, que, para além do absurdo e das der-
vinho e na bençao e divisao de um pedaço de piio, seguindo-sc rotas, pode continuar igualmente a ser amado e apreciàdo; deixa
logo depois a verdadeira ceia, que é tomada entre cantos e alegria. intuir que o destino do homem nao é o trabalho brutal, mas o
Trata-se de urna das oraç0es mais importantes da liturgia judaica. prazer da convivencia; abre urna brecha nos muros do destino e
Com .ele declara-s~ a. santidade do sabado (qiddush ha-yom) e a da fatalidade, projetando a possibilidade de uro mundo totalmente
sua diferença qualitauva e substancial dos outros dias da semana. renovado.
Por isso o Sabado é "memorial da criaçao": exprime o
. O texto. se compé5e de tres berakot: com a primeira e a tcr- mundo na sua dimensao de criaçao, quando, pela primeira vez,
ce1ra se bcncfu a Deus pelo fruto da videira e pelo pao da terra;
saiu, harmonioso e resplandecentc das maos de Deus, antes do
com a do meio, mais especlfica e dividida, bendiz-sc a Dcus pelo
pecado do homem. Mas ele é também memorial "da safda do
dom do sabado, sendo lembrados seus diversos significados:
Egito ". Por maiores que sejam os erros do homem, eles nao
se bendito, Senhor nosso Deus, rei do universo que criaste o podem destruir a manha da primeira criaçao; eles podem oculta-la,
fruto da videira. ' mas nao elimina-la. A salda do Egito, evento fundamental da es-
se ~.ndito, Senhor nosso Deus, rei do universo, que nos piritualidade e da cultura hebraica, exprime esta certeza, e o sa-
santificaste com os teus preceitos e nos mostraste tua mise- bado, que o comemora, a retoma e reforça.
ric6rdia. Por amor a n6s, nos deste corno herança o teu santo O qiddush, ao proclamar o sabado de santo, e colocando-o
Sabado, memoria! da criaçao e primeiro dia de festa memoriaJ corno meta-tempo, corno fondamento de todos os tempos, pode
de nossa safda do Egito. ser considerado corno o despontar e a voz da profundidade do ser
Tu nos escolheste entre os povos para santificar-nos, e por que se revela a modo de salvaçao.
Por este motivo, os Falashas - populaçao da Eti6pia se-
22 Cf. idem, 344. tentrional - separados por muitos séculos de todo contato com
. 23 B. Jacob, in J. H. Hertz, The Authorized Daily Prayer Book, op. cit ..
343 25 Traduçao Livre de J. H. Hertz, The Authorized Daily Prayer Book,
24 Cf. A. E. Millgram, /ewish Worship, op. cit., 297. op. cit., 606.

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as outras comunidades hebraicas, gostavam de responder a quem A oraçao final, que precede à tradicional Birkat ha-mazon
lhes perguntava quem tinha sido o seu salvador: "O Salvador é tirada do canto Salmo 126, shir homma'alot: "Quando Javé
dos hebreus é o Sabado". E justamente pelo mesmo motivo, fez voltar os exilados de Siao, ficamos corno quem sonha ... " A ale-
Achad Ha-am escreveu: "Em vez de lsrael ter conservado o Sa. gria dos exilados na Babilonia foi tao grande ao voltarem para
bado, foi o Sabado que conservou Israel". N6s poderemos acres- sua patria no ano 537 a.C., que lhes parecia um sonho. Os judeus
centar: e conservou o mundo. De fato, enquanto o Sabado for revivem a mesma alegria e a mesma atmosfera, na sexta-teira à
posto corno seu fundamento, ele nao podera vacilar.26 tarde, pela sua entrada na " terra» do sabado. Este, corno a Je-
Além do qiddush, a chegada do Sabado é caracterizada por rusalém hist6rica para os exilados, é a verdadeira patria do ho-
outras oraç6es, algumas introdut6rias e outras conclusivas. Entre mem que evita a dispersao e garante a identidade.
as primeiras sao particularmente belas a bençao do pai a seus fi.
lhos, o canto shalom 'alekem e o hino às mulheres. Voltando da
sinagoga e entrando em casa, o pai impoe as maos sobre a cabeça A havdalah
de cada um dos filhos, seguindo a ordem, e os abençoa como
fizeram os patriarcas dois mil anos antes da era crista. Ha sé- Como o infcio do sabado é caracterizado por alguns ritos, as-
culos, que as palavras que acompanham a bençao sao as mesmas sim também é o seu fim. A cerimonia é chamada de havdalah
que aquelas sacerdotais: "O Senhor te abençoe e te guarde. O ( separaçao-distinçao), porque marca a diferença entre o sabado,
.....- Senhor faça resplandecer sua face sobre ti e te seja propkio ... "
( Nm 6 ,24-26). Poucos gestos corno es te exprimem o poder sa-
que esta por terminar, e os dias comuns que vao se iniciar. De
origem antiqufssima e considerada corno originaria dos Homens
cerdotal dopai de familia judeu, bem corno o profondo sentimento da Grande Assembléia,28 a havdalah compoe-se de quatro breves
de segurança transmitido aos filhos. berakot pronunciadas sobre um copo de vinho, sobre hervas per-
Depois vem o hino aos anjos: "Sede bem-vindos , anjos ser- fumadas e sobre a luz, os tres sfmbolos da beleza e do poder
vidores ", introduzido no século XVI pelos cabalistas e inspirado transformador do sabado. A introduçao às bençaos é urna oraçao
em urna Baraita na qual se conta: "quando um homem volta da composta de varios versiculos bfblicos tirados de Isafas, do Livro
sinagoga para casa, acompanham-no dois anjos, um bom e outro de Ester e dos Salmos:
mau. Ao chegar em casa, encontrando as velas acesas e a mesa
"Ei-lo, o Deus da minha salvaçao:
preparada, o anjo bom diz: "Que pela vontade de Deus, também
no pr6ximo sabado possa acon tecer o mesmo" . E o an jo mau, sinto-me inteiramente confiante, de nada tenho medo,
contra sua vontade, responde "Arrém ". Se pelo contrario nao es- porque Javé é minha força e o meu alegre canto.
tiver nada preparado para o sabado, o anjo mau diz: "Que pela Ele é minha salvaçao.
vontade de Deus , também no pr6ximo sabado possa acontecer o Com alegria tirareis agua das fontes da salvaçao." ( Is 12,2-3).
mesmo . Mas desta vez o anjo bom responde 'Amém' contra sua "A salvaçao vem de Javé!
von t ade .27 Com esta para'bola, mantem-se
JJ , . na memoria
viva , . be- E sobre teu povo, a tua bençao!" (SI 3,9).
braica a importancia do shabbat que deve ser preparado e aceito "Javé dos Exércitos esta conosco,
com amor e espfrito festivo. nossa fortaleza é o Deus de Jac6!" ( Sl 46,12).
"Javé dos Exércitos, feliz o homem que confia em ti" .
Finalmente o pai pronuncia palavras de bom agouro e de Senhor, salva-nos! Tu que és rei, responde-nos quando te
admiraçao pela mulher, elogiando-a com o texto do Livro dos invocamos.
Provérbios, 31 ,1 0-31 : "Quem encontrara a mulher talentosa? VAle Os hebreus tiveram luz: e felicidade, alegria e honra.
muito mais do que as pérolas ... " Que conosco aconteça sempre assim.
26 Para as duas citaçoes cr. idem, 341.
27 CL E. Garfiel, The Service o/ the Heart, op. cit., 145. 28 TB Ber 33a; UTET, 272.

174 17'
"Erguerei o cllice da salvaçao Soberano do universo, pai de miseric6rdia e de perdao, da
invocando o nome de Javé" (SI 116,13). que comecemos em paz os dias de trabalho que estao se apro-
ximando: livra-nos de todo pecado e de toda infidelidade;
Logo ap6s vem as quatto berakot: purifica-nos de toda ini·qilidade, malvadeza e malkia; empe-
se bendito, Senhor nosso Deus, rei do universo, que crias nhados no esrudo da tua Tora e com a firme intençao de
o fruto da videira. realizar boas obras.
Se bendito, Senhor nosso Deus, rei do universo, Que na semana em que entramos, recebamos somente nodcias
que crias as diversas ervas aromaticas. de alegria e felicidade. Que ninguém tenha inveja de nos e
se bendito, Senhor nosso Deus, rei do universo, que nem n6s tenhamos inveja de nenhuma ourra pessoa. Nos-
so rei , nosso Deus, pai de misericordia, abençoa e enriquece
que crias a luz do fogo.
se bendito, Senhor DOSSO Deus, rei do universo, que distin- o trabalho de nossas mlios. Pai que amas e Senhor que or-
guiste o sagrado do profano, a luz das trevas, Israel dos denas, abre-nos nesta semana e na semana que vem as portas
outros povos, o sétimo dia dos seis d ias de traballio. se da luz e da bençao, da redençao e da salvaçao, da ajuda celeste
bendito, Senhor, que distingues o sagrado do profano.29 e da alegria, da santidade e da paz, do estudo da Tora e da
oraçao.
Quando o sabado esta terminando, o judeu gosta de lembrar Faze que se cumpram a nosso respeito as palavras da Escri-
9ue Deus é o criador do sagrado, da luz, de lsrael e do sabado, tura: "corno sao belos nos monres os pés do mensageiro de
1sto é: que a realida9e é cheia de claridade ( é es te o significado noticias alegres que ammcia a paz, do mensageiro do bem,
da polaridade sagrado/profano, luzes/trevas ) para quern co- que anuncia a salvaçao, que diz a Siao: Reina o teu Deus ".30
rno lsrael sabe acolher e respeitar ( é este o significado da polari-
dade Israel/outros povos, sabado/outros dias) . Em outras pala-
vras, dirfamos que o judeu gosta de lernbrar-se que Deus criou o 3. O seder pascal
homem para uma vida cheia de sentido, para o jardim do Eden
( as ervas aromaticas fazem alusao ao paraiso terrestre), e que é Trata-se "do mais sugestivo, do mais alegre e do mais ines-
seu dever realizar esta possibilidade, fugindo da tentaçao do quan- quecivel de todos os ritos familiares do judafsmo" .31 Nele se celebra
titativo até a seu pr6prio respeito, e favorecendo a procura da o acontecimento fuodamental da historia e da espiritualidade ju-
,,., qualidade, fruto de urna intençao justa e fraterna. O havdalah, daica, o fon da escravidao e o inicio da liberdade, e consiste na
separando o tempo sagrado do tempo profano, o tempo "vazio" participaçao em urna refeiçlio simbolica ( antes da refeiçlio real ),
do tempo "pieno", convida a recorneçar a vida com responsabili- no qual cada elemento lembra um aspecto da noite, na qual Deus
dade e empenho, na consciencia de que nao é o progresso materia! "com mao forte" e "com braço poderoso" tirou seu povo do Egito
das horas e do trabalho que da sentido, mas o projeto interior e o introduziu na Terra Promeuda. As ervas amargas lembram os
que a anima e sustém. sofrimentos dos antigos pais. debaixo da fiscalizaçao dos patr6es
Onde este projeto reflete o divino, a vida produz frutos egipcios; a pata do cordeiro assado, o sacrificio do cordeiro pascal
abundantes, corno a videira, o vinho, a luz e o calor, as plantas que obriga o anjo da morte a "passar adiante" nas portas dos
e o perfume. judeus; o /:zaroset, um doce feito de mel e nozes, a alegria e a
doçura da liberdade etc ...
No rito sefardita, o havdalah termina com esta bela oraçao O texto que descreve minuciosamente todas as coisas a se-
para a nova sernana que esta por iniciar: rem ditas e feitas durante a ceia pascal é chamado de haggadah,
29 Traduçio de The Traditional Prayer Book for Shabbat and Festivals, 30 Traduçao de W. W. Simpson, /ewish Prayer and Worship. An In·
org. por D. De Sola Pool, sob a direçio do Siddur Committee of the Rabbi- troduction /or Christians, SCM P.ress LDT, Londres, 1965, 43-44.
nica) Council of America, Behrman House, Nova lorque, 1960, 630. 31 A. E. Millgram, The /ewish Worship, op. cit., 313.

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que significa conto/narraçio (do radical ngd, relatar) , o livro he- 2. Ur/:ia§ ( abluçio das mios). Lavam-se as maos, sem entre-
braico, impresso o maior nu.mero de vezes e, ao contrario de todos tanto recitar as bençaos comuns, porque a refeiçio propriamente
os outros, quase sempre ilustrado. Dificilmente alguém podera dita nao se inicia logo.
dizer que conhece o judafsmo, sem jamais ter participado da ce- 3. Karpas ( sentem-se). Come-se urna folha de erva· molhada
lebraçio do seder pascal. Aqui se condensa, com grande pene- no vinagre, corno lembrança da amargura da escravidio.
traçao e com rara beleza, a fé e a hist6ria, o pensamento e 0 4 . Ya/:ia§ ( dividir ) . Pegam-se os tres paes azimos, quebra-se
folclore, o coraçao e a inteligencia do povo hebraico de todos os ao meio o que esta no centro, pondo urna metade novamente no
tempos. centro e escondendo a outra metade em qualquer lugar, por exem-
plo, debaixo da toalha.
5. Maggid ( narrador). Enche-se um segundo copo de vinho,
A estrutura do seder e antes de bebe-lo narra-se a libertaç.ao do Egito, explicando o
A refeiçio da noite de Pascoa, a mais solene e a mais rica seu sentido e a atualidade com trechos da Bfulia e com narraç6es
entre todas as refeiç6es hebraicas, acentua tres momentos parti- midraxicas, hinos, clnticos e salmos. É a parte mais importante
culares: 1) a ceia real e propriamente dita realizada na abundan- e especifica do seder pascal.
cia e na alegria; 2) um longo momento simb6lico-ritual, que a 6. Ro/:z§ah ( abluçao ). Lavam-se as maos com a bençao hahi-
precede, no qual se revive e se explica, sohretudo aos mais jo- tual, ja que esta por iniciar-se. a ceia propriamente dita.
... vens, a significaçio perene da noite pascal; 3) outros momentos 7. Mo/:lsi' ma§$ah ( bençao dos azimos). Abençoa-se o pao
simb6lico-rituais nos quais prevalece o agradecimento e o canto. corno de costume, sendo que desta vez é o pao azimo, isto é,
A importancia desta refeiçio é tanta, que nela cada parte é atenta- sem fermento, e come-se um pedacinho.
mente prevista, descrita e motivada. A tradiçao rabfnica estabe- 8. Maror ( erva amarga) . Come-se urna follia de erva amarga
com um pouco de l:zaroset, o doce composto de maçis rapadas e.
...••. lece 14 pontos, com urna formula mnemonica (de dificil traduçio),
nas quais cada palavra exprime um elemento particular do ritual: de nozes recorda corno os hebreus, com sua coragem e seu amor
1. Qaddesh. É o in.lcio da celebraçao pascal, e consiste em pela liberdade, conseguiram mitigar a escravatura egipcia.
urna berakah pronunciada sobre um copo de vinho, que é bebido 9. Korek ( envolver) . Agora come-se urna folha de erva amar-
~o final da oraçao. Com eia, declara-se ter chegado o tempo da
ga, desta vez, com um pedaço de pio azimo.
liberdade, longe da opressio e da escravidio ( lembre-se do radical 10. Shul/:l.an 'Orek (ceia). É a hora da ceia, que se inicia,
qadosh. que significa separar) : "tempo da liberdade" expresso pelo tendo corno entrada um ovo ou outros alimentos especiais, ricos
copo de vinho e celebrado em todo o periodo pascal. O texto da de conteudo simb6lico mais ou menos universal.
be~akah é o seguinte: "se
bendito, 6 Senhor nosso Deus, rei do 11. $a/un ( escondido ) . Come-se o pedaço de azimo que es-
uruverso, que nos escolheste entre todos os povos e nos exaltaste tava escondido e que, com um termo de explicaçio incerta, é
sobre toda lingua e nos santificaste mediante os teus mandamen- chamado de afiqoman. Ele é comido em mem6ria do cordeiro pas-
tos. No teu amor para conosco, tu nos deste, 6 Senhor nosso cal, e depois dele é proibido corner qualquer coisa até o dia se-
Deus, momento~ de alegria de festas, tempos de alegria, este dia guinte . É um momento de particu1 .r importancia principalmente
de fest~ dos azimos, este belo dia de reuniio sagrada, festa dc para os meninos, que sio convidados a advinhar onde a metade
nossa liberdade, sagrada reuniao em mem6ria da safda do Egito. do pio azimo esta escondida.
Realmente tu nos escolheste e consagraste entre todos os povos 12. Barek ( bençao) . T erminada a refeiçio, lavam-se as maos
e nos deste tuas santas festas para vivencia-las na alegria e rego- corno de costume e se rP.Cita a Birkat tradicional ha-mawn, en-
zijo" .32 chendo o terceiro copo e bebendo-o. no fim.
13. Hallel (louvor) . Entio agradece-se a .Deus pela ceia pas-
,32 .Traduçiio in O. Carena, Cena pasquale ebraù:a per comunitt) cristiane, cal através da qual se reviveu o milagre da liberdade. Enche-se
.l'._!an~tti,
Casale .Monferrato, 2~ ed., 198.l, 20. Também os textos seguintea
aao tlrados daqw. um copo de vinho (o qµarto), que se bebe depois de ter recitado

178 179
os salmos 115-118, chamados de hallel. No fim de tudo abre-se & na-se, para estes escravos exilados no Egito, a festa da libcrdadc
porta, para favorecer a entrada de Elias, o mensageiro da era mes- que relembra e faz reviver o fim da opressio e o infcio de um~
sianica. nova identidade._ Esta "li~dade ", primavera da bist6ria, da qual
14. Nir$ah ( aceitaçao). Anuncia-se o final do seder pascal e a da natureza é unagem ef1caz, é o conteudo do haggadah.
pede-se a Deus que seja sempre o libertador de I srael. Se se qui- No infcio do maggid, os participantes mais jovcns fazem qua-
ser, pode-se entoar cantos populares e cliversas historietas ( " Meu tto perguntas ao chcfe da famllia:
pai comprou no mercado um cabrito por dois dinheiros ", "O que Por que em todas as outras tardes n6s nao molhamos nem
é o que é, um ... ?" etc ... que de um lado servem para manter a urna vez, enquanto que nesta n6s molhamos duas vezes?
atençao dos panicipantes , e de outro transmitem , através da lin- Por que em todas as outras tardes comemos pio fermentado ...
guagem popular e simples, os valores perenes da tradiçao hebraica. e nesta comemos paes azimos?
Por que em todas as outtas tardes comemos qualquer verdura
ao passo que nesta, somente ervas amargas?
Do éxodo à Terra Prometida Por que em todas as outras tardes comemos e bebemos sen-
tados ... e nesta tarde devemos estar apoiados no cotovelo?
O seder pascal completo, nos seus vartos momentos e com
seus inexaur(veis componentes simb6licos, de ritos, gestos, narra- O longo texto do maggid responde a estas perguntas primei-
tivas e mitologias, celebra o acontecimento fundamental do povo ramente em geral, depois cm particular:
judeu: seu nascimento para a liberdade através do rompimento
com a escravidao. E nascimento nao apenas do povo judeu, mas N6s fomos escravos do fara6 no Egito, mas o Senhor nosso
de todos os povos e de cada individuo. De fato, no fim do maggid Deus nos fez sair de la com mao forte e braço estendido.
le-se que "o homem (1adam, portanto nao somente o judcu) em Se o Santo - que ele seja bendito - niio tivesse tirado
todas as geraç0es tem o direito de considerar-se corno se ele pr6- nossos pais do Egito, n6s, nossos filhos e os filhos dos nossos
prio tivesse saldo do Egito". filhos ainda seriamos escravos do fara6 no Egito. Por isso,
A celebraçao desta liberdade acontece através da linguagem mesmo que todos n6s fossemos sabios, todos inteligentes,
sirob6lica da festa da primavera, relida e reinterpretada em chave todos peritos na Lei, ainda assiro seria nosso dever ocupar-nos
hist6rica e com novos elementos. Com eia, os povos amigos cele- com a safda do Egito; ao contrario, quanto mais pararmos
bravam a volta da vida, do silencio e do &io do inverno à beleza para refletir sobre a salda do Egito, tanto mais somos clignos
e riqueza das formas e das cores. Esta passagem, sencid; e vivida de louvor.
corno passagem da morte à vida, era expressa por diversos sfmbo- Aquila que se celebra na noite de pascoa e que a torna dife-
o
los, .corno os azimos e o cordeiro. azimo, um pao sem fermen to, rente de todas as outras é o fato que "fomos escravos do fara6
realizava cm metafora aquila que a primavera realizava natural- no Egito; mas o Senhor nosso Deus nos fez sair de la".
mente: o fi m do velho, portador da morte, e o inkio do novum, Mais tarde, esta resposta geral é retomada, ampliada e pro-
portador de vi~a. O me~mo se diga do cordeirinho, o primogenito va~a pela citaçao de diversos trechos bfblicos lidos, interligados
do r~banho, CUJO aparecllnento era o reaparecimento da vida que e interpretados segundo o método midraxico.
veneta a morte.
Depois desta resposta genérica, v€m as especfficas.
. Sob.re este simbolismo natural, l srael insere ·urna intuiçao
mais radical, aprofundando-o e reinterpretando-o: corno a natureza Por que comemos o cordeiro pascal? "Por que o Santo,
passa do inverno à primavera, assiro o povo hebreu passou da es- que ele seja bendito, passou diante das casas dos nossos pais
cravatura ~ liberdade: mas diferindo da primeira, cuja passagem no Egito, corno esca escrito: 'respondereis: ~ o sacrificio da Pas-
é automatica, o nascunento para a liberdade é um caminho de coa (pesalJ) para Javé que passou (pasal:z) diante das casas dos fi-
empenho e de responsabilidade. Assim, a festa da primavera tor- lhos de lsrael no Egito, quando feriu os cgfpcios, mas livrou as

180 181
nossas casas. Entio o povo se ajoelhou e se inclinou!" (Ex 12, as dcz pragas etc... ), com parabolas do Midrash, com cxplicaçOcs
27). simb6licas (de pesai), m~~ah e maror: sobre as quais Rabbàn Ga-
Por que comemos piies 8zimos? "Porque nossos pais nio ti- maliel, mestte de Paulo, dizia: "nio celebra a pascoa quem nio
veram tempo de deixar a massa fermentar-se, urna vez que o Rei pronuncia estas ttes palavras" ) e com o canto de hinos e salmos.
dos Reis, o Santo - que ele seja bendito - manifestou-sc e O conju.nto destas respostas é formulado e dosado de tal modo
os libertou de repente, como esta escrito: 'Cozeram paes azimos que o menino, aprendcndo o vcrdadeiro significado de pesa/:t, se
com a farinha que haviam !evado do Egito, pois a massa niio cs- torne teoricamente "o homem da liberdade".
tava levedada: expulsos do Egito, nao puderam deter-se e nem Realmente, o maggid fala de quatro filhos que simbolizam
preparar provis6es para o caminho" (Ex 12,39 ). quatto figuras ou arquétipos: o sabio (J:iakam), o mau (rasha'), o
Por que comemos ervas amargas? " Porque os eg1pcios amar- ingenuo (tam) e aquele que niio sabe fazer perguntas. O arquétipo
guraram a vida de nossos pais no Egito, corno esta escrito: 'e positivo é o primeiro, enquanto quc o segundo é o negativo;
tornavam-lhcs amarga a vida com du.ros trabalhos: a prcparaç.ao entte estes dois sao colocados cada judeu e cada homem, que tem
da argila, a fabricaçao de tijolos, varios trabalhos nos campos, a possibilidade de se tornar um ( sabio), ou outro ( mau).
e toda espécie de trabalhos aos quais os obrigavam' " (Ex 1,14 ). O "sabio" é aquele que conhece a pascoa, e experimenta sua
Por que bebemos apoiados no cotovelo? "Porque é nosso dc- liberdade e alegria; o homem que levanta problemas justos, para
ver agradecer, louvar, celebrar, glorificar, exaltar, engrandccer os quais sabe achar as respectivas respostas justas. Ele diz: "Quais

·- aquele que fez por nossos pais e por n6s todos estes grandes
prodfgios: nos tirou da escravidao para a liberdade, da submissio
à redençao, da dor à alegria, do luto à festa , das trevas a urna
sio os preceitos, os estatutos e as leis que o Senhor nos orde-
nou? "33 E a resposta s6 pode ser urna: "aprende os preceitos da
Pascoa "; isto quer dizer: penetra sempre mais na realidade do
luz fulgurante. Proclamamos portanto dian te dele: Allelujah ". pesai), a casa e o fundamento da liberdade e da verdade. O "mau"
A alegria que a pascoa traz é expre.ssa, durante toda a ccia, é exatamente o contrario: desconhecc a pascoa e ignora a expe-
pelos quatto copos de vinho, o primeiro no qaddesh, o scgundo riencia da liberdade. ~ incapaz de "perguntar ", e conseqiiente-
u: n.o maggid, o terceiro no barek e o quarto no hallel. Se o copo é mente incapaz de aprender : "Que coisa, diz o malvado, significa
smal de alegria porque "o vinho al egra o coraçao do homem" para voces esta cerimonia?" Para vocés, nao para ele. Exclu.indo-se
(SI 104, 15), os quatto copos (o nfunero quatro, por ser o nume- da comu.nidade, ele nega o fundamento da religiao. Voce faz que
ro do tetragrama indizivel, é o simbolo da totalidade ) exprimem ele se cale respondendo-lhe : "Por aquilo que o Senhor me fez,
sua plenitude unica e maxima. quando tirou-me do Egito ". Fez a mim e nio a ele: se tivesse es-
tado la, nao teria sido salvo". ~ importante observar aqui a defi-
niçao que se da do "mau" (rasha'): nao aquele que faz o mal, mas
Os quatro modelos de homem aquele que nao foi libertado, é escravo, e por consegu.inte pessoa
impedida, " bloqueada ", "deficiente". O mal nasce antes de um
A ceia pascal, além de memoria! da liberdade, é também ios- estado existencial deficitario, do que da liberdade; antes de erro
ttumento de aprendizagem: liberdade niio existe, mas sim homcns ético é doença antropol6gica, por isso deve suscitar miseric6rdia
concretos que a procuram e defendem. A finalidade principal da e solidariedade, em vez de marginalizaçao e condenaçao.
haggadah (relato ), composta com sabedoria pedag6gica, é de fa- Se o "sabio e o mau" representam dois tipos possfveis dc
zer nascer nos rapazes, a cada ano que passa, o amor e a paixio homcns, o "ingenuo" e o "nao-ingenuo ", sao duas imagens peda-
por este . val~r irren~nciavel. Se ja dissemos que o ponto ccntral
do maggrd sao as crtanças, scndo que a menor delas faz urna séric 33 O Talmud de J erusal~m interpreta assim Dt 6.20: "Ouais siio os
preceitos, os estatutos e as leis que o Scnhor vos deu?" Para o comentairio
de perguntas às quais os chefes da familia e os outros comcnsais deste versiculo e sobre a substituiçiio do "vos deu• pelo "nos deu", cf. R.
respondem com confiss0es de fé ( "fomos escravos no Egito ... "), Nerson, La Haggadah commentée. Traduction et commentaire du text inté-
com narraç0es bfblicas (Js 24,2-4; Gn 15,13-14; Ex 8ss sobrc gral de la Haggadah de P8que. Pr~face d'A. Neher, Librairie Colbo Paria
1978, 18. , '

182 183
g6gicas através das quais se realiza urna ou outra. O "ingenuo" O homem sabio é aquele que, corno o rabino Levi Y~J:iaq,
é o homem superficial, incapaz de "perguntas verdadeiras", incapaz esta de tal modo consciente do mistério da vida, que nio sabe
portanto de progredir, de mudar e de caminhar. É o homem quc nem "o que perguntar" mas, ao mesmo tempo, confia a tal ponto
pergunta "Por que ìsto? ", mas corno urna figura ret6rica e nio nos seus confrontos com ele, de modo a deixar-se continuamente
por exigència real. É a pessoa que acha que sabe, e que por .educar e transformar-se por ele. A sabedoria habita no coraçao
isso, vftima de sua ilusao, fica condenada à ignorincia: " Nenhum de quem é sens1vel e receptivo ao mistério, mas a malvadeza, no
homem comete pecado voluntariamente, nem é por sua vontadc daquele que se tem por auto-suficiente, mas é ignorante.
que pratica açé>es mas e feias , mas todos aqueles que as praticam
o fazem por ignorincia. Pois ninguém continua realizando de mo-
do imperfeito as coisas que ele sabe e ere haver possibilidade dc Dayenu
realiza-las de modo mais aperfeiçoado; e o deixar-se vencer por
si pr6prio, nao pode ser outra coisa senao ignorància, bem corno O bomem "sabio,", que a haggadah propé>e coma Unico mo-
o conseguir vencer-se a si pr6prio nao pode ser outra coisa, senio delo antropol6gico valido, caracteriza-se por uma descoberta fun-
sabedoria ".34 O homem "ingenuo" é por conseguinte, aquele quc damental: que ele vaie nao por aquila que faz, mas por aquilo
se expé>e ao risco de tornar-se " malvado "; é o "caminho errado", que lhe é feito. Antes de ser sujeito da aç.ao, o homem "sabio"
a "pedagogia errada" que fazem o " mau " (rasha'), o "malvado", compreende-se corno objeto de atençao e amor. Nele se realiza

~
·- o mal.
O " nao ingenuo" é "aquele que nao sabe fazer perguntas ",
que sabe que nao sabe, mas que esta disposto a aprender: "Para
urna radical descentralizaçao do pr6prio eu para um outro no qual
ele confia e ao qual se abandona. A haggadah é a narraçao en-
tusiasmada desta aventura surpreendente e liberadora: "eu tirei
~· I aquele que nao sabe fazer perguntas, comece voce mesmo em scu de la vosso pai Abraio e o conduzi através de todo este pafs de
....~·J.....: I lugar, corno esta escrito: " naquele dia assiro falaras a teu filho:
'eis o que Javé fez por mim, quando saf do Egito' (Ex 13 ,8) ".
Canaa"; "é a Providencia divina que amparou nossos pais e a
n6s, pois nao foi apenas um que se insurgiu contra n6s para nos
Ele é a imagem do "caminho certo" da pedagogia bem sucedida destruir; em todos os séculos, aparece, de fato, alguém para nos
"1-l
F-·- que conduz à experiència do èxodo e da liberdade. É a imagem exterminar, mas o Santo - que ele seja bendito - sempre nos
--a:..
c
...J
do relacionamento correto ao encarar a vida e ao encarar o pr6-
prio Deus: "O rabino Levi Yi~J:iaq de Berditchev acrescentava
salva de suas maos"; "tornei-te exuberante corno a erva dos cam-
pos, tu cresceste, te ttornaste urna mulher: os teus seios forma-
e.e ao trecbo da Haggadah, que fala dos quatto filhos, e !endo a ram-se, os teus cabelos te revestiram, tu foste esplendidamente
parte dedicada ao quarto filho - aquele que nao sabe o que enfeitada, enquanto antes estavas nua e descoberta"; "o Senhor
perguntar - dizia: 'Aquele que nao sabe o que perguntar, sou nos fez sair do Egito com mao forte e braço estendido, com
eu, Levi Yi~l;taq de Berditchev. Nio sei corno dirigir-me a ti, terror, com sinais e prodfgios"; "eu passarci pela terra do Egito:
Senhor do mundo, mas mesmo que o soubesse, nao teria condi- eu mesmo, nao um anjo; golpearei todo primogenito: eu, e nio
çé>es de fazè-lo. Como ousaria perguntar-te ... por que fomos em- um serafim; e farei justiça a todos os deuses do Egito: eu e
purrados de um ex:ilio para outro, ou por que nossos inimigos nao um enviado; eu sou o Senhor: eu e nenhum outro". Como se
tèm a possibilidade de atormentar-nos tanto?' Mas a haggadah, observa a ènfase é sempre colocada sobre Deus, do qual se cele-
citando a Tara onde esta escrito: 'assiro falaras a teu filho .. .' faz bram o amor gratuito e as obras poderosas.
com que o pai daquele que nao sabe perguntar, ele mesmo de Descobrindo-se corno objeto de amor, o homem bfblico acha-se
urna resposta ao filho. 'Senhor do munda, dizia Levi Yi~l;taq de também capaz de alegria e de gozo: este é o segredo e o sentido
Berditchev, nao sou, por acaso, teu filho?' ,, .35 da sua sabedoria. Embora haja dias escuros, mesmo que sua
escravidao seja amarga e por mais que o "fara6 seja poderoso" ...
34 Este texto dc Platiio esta transcrito no Haggadah di PesalJ. Ricordare Deus jamais se esquece da sua miséria ... do seu grito ... de seus
per essere liberi, org. por R. D. Segni, Carucci, Roma, 2! ed., 1979, 23.
35 Idem, 22. sofrimentos" (cf. Ex 3,7). Por isso, em toda e qualquer circuns-

184 185
tincia o homcm bfblico pode cnconttar motivos dc scntido, scm e nao nos houvesse dado a Lei,
lamentar o passado e scm fugir para o futuro, como sugerc cstc dayenu.
admi.ravcl tcxto dayenu ( isto bastaria), quc é cantado antcs dos Se nos tivesse dado a Lei
salmos dc aleluia: e nio nos tivesse feito entrar na terra de Israel,
Quantos bencffcios devemos ao Scnhor! dayenu.
Se clc nos tivesse tirado do Egito Se nos tivesse feito entrar na terra de lsrael
e nio tivessc feito justiça a eles e niio nos tivesse construldo o Templo,
dayenu. dayenu.
Se tivessc feito justiça aos egfpcios Dayenu: nesta palavra-refrao tao simples se encerra toda a
e nio aos seus deuses, antropologia bfblica, a antropologia do gratuito, que substitui o
dayenu. "foi-me dado" pelo "foi-me devido", e que mata pela raiz o
Se tivcsse feito justiça aos seus deuses desejo do "mais" e a 16gica da posse.
e nio tivesse matado os seus primogenitos,
dayenu. Ela eosina a contentar-se com o "momento" , nio pela re-
Se tivcsse matado seus primogenitos nuncia ao "melhor ", mas porque o " mel hor" pode ser encontrado
e niio nos tivesse dado suas riquezas, a cada momento.
··- dayenu. Estas palavras poderiam parecer pura ret6rica, se nao tivésse-
~ Se nos tivesse dado suas riquezas, mos o testemunho de milhòes e milhòes de judeus, que, durante
~·· 1 e niio tivesse dividido o mar para n6s, todos os séculos e nos pr6prios guetos e nos pr6prios campos de
t.-< 1 dayenu.
Se tivesse dividido o mar para n6s,
concentraçao nao tivessem parado de cantar dayenu: nao a ilusao
do nada, que torna tudo absurdo, mas a claridade do sentido
.i.;
e nio nos tivessc feito passar no seu meio de pés erurutos, percebido para além de codos os sem-sen tidos, e que da a coragem
dayenu. de continuar a crer e lutar.
--5a:. Se nos tivessc feito passar pelo meio do mar de pés enxutos
e nio tivesse afogado os nossos perseguidores,
Esta "clareza de sentido" nao somente inspira caminhos de
esperança e de libertaçio, mas enche a alma de paz, de alegria
dayenu.
e de gratidiio inexprimiveis, corno mostra esce outro texto com o
Se tivesse afogado ali nossos perseguidores qual se encena todo o seder pascal:
e niio tivesse provido nossas necessidades oos 40 anos
de deserto, Mesmo se a nossa boca estivesse cheia de hinos, como o mar
dayenu. é che.io de agua, a nossa lingua repleta de cantos corno sio
Se tivesse provido nossas necessidades nos 40 anos dc deserto numerosas as suas ondas, se os nossos labios fossem cheios dc
e niio nos tivesse dado o mana para comermos, louvor corno o firmamento esca esteodido, se os nossos olhos
dayenu. fossem luminosos corno o sol e a lua, se nossos braços fossem
Se nos tivesse dado o mana para corner estendidos corno as asas da aguia 1 e se os nossos pés fosscm
e niio nos tivesse dado o sabado, velozes corno os do cervo, nio poderiamos agradecer-te, 6
dayenu. Senbor nosso Deus, nem bendizer o teu Nome, 6 nosso Rei,
Se nos tivesse dado o sabado por um Unico dos mil milhares e midades de beneffcios de
e nio nos tivesse conduzido ao monte Sinai, pr~gios e de maravilhas que realizaste por n6s, e por no;sos
dayenu. pais no decorrer da nossa hist6ria ... Por isso, os membros
Se nos tivessc conduzido ao monte Sinai que nos deste, o halito e a rcspiraçio quc em n6s insuflaste, a

186 187
lingua que puscste em nossa boca, agradecem, bendizem, lou- membros da comunidade. O minyan é tao importante, que é a
vam, exaltam, cantaro o seu nome, 6 nosso rei, para scm- Unica condiçao requerida para a ce1ebraçao do culto sinagoga!.
Na sinagoga o culto é celebrado diariamente e em ocasi0es es-
pre... "36 .
peciais. Embora a estrutura fundamental da celebraçao fique fun-
damentalmente a mesma, ha sempre pcquenas alteraç6es e diver-
A LITURGIA DAS SINAGOGAS sos acréscimos.

1. Nos dias uteis


Além das oraç0es feitas em particular e no ambito familiar,
o judeu reza em comunidade, no ambito da sinagoga. Sinagoga Na sinagoga o culto é celebrado de manha (sha}:zrit), ao
(do grego syn-agoge, reuniao/convocaçao), é a traduçao do he- meio-dia (minl;zah) e à tarde (ma'ariv) além da reza do shema', da
braico bet ha-keneset, que significa casa da assembléia. Nao foj te/il/ah e da qeri'at Torah (por exigencia de brevidade, lida apenas
sem razao que o parlamento do recente Estado de Israel deno- de manha, nas terças, quintas e sabados) comp0e-se de outras
minou-se com este antigo nome, surgido na diaspora. oraç6es, corno mostra o esquema que segue:
Diferentemente do templo, definido a partir de um determi-
nado lugar e por sua santidade, a sinagoga é caracterizada pela I. Sha}:zrit (liturgia da manha)
comunidade, que constitui seu sentido e sua substancia. Onde um
grupo de pessoas se encontram com a intençao de rezar e de ou- 1. Bençaos e salmos preliminares
vir e estudar a Tora, ali sim, forma-se a sinagoga, quaisquer que 2. Qaddish
3. Shema' (com as bençiios que o precedem e as que o
sejam o lugar e suas dimensoes.
seguem)
Podemos reduzir a tres as principais caracterfsticas da sina- 4. Tefillah
goga. A primeira diz respeito a sua "laicidade". Nela os "sacer-
dotes " e os "levitas", os responsaveis pelo culto por direito de 5. Qaddish
6. 'AJenu
nascença e de casta, estao no mesmo plano que todos os outros
7. Qaddish da pessoa em luto
participantes e nao gozam de nenhum privilégio particular. Cada
8. Oraç6es finais
pessoa, independentemente do papel e da classe socia! pode animar
a oraçao, entoar um canto, ler a Tora ou tornar a palavra, supon- II. Min}:zah ( Liturgia do meio-dia)
do evidentemente que tenha um minimo de idade ( 12-13 anos)
e capacidade de faze-lo. 1. Salmo
A segunda caractedstica - derivada da anterior - é o sen- 2. Qaddish
timento de igualdade. Dentro da sinagoga nao ha hierarquia, e 3. Tefillah
todos gozam dos mesmos direitos e deveres. É por este motivo 4. 'AJenu
que muitos, corno Salomon Freehof, um dos rabinos mais influen- 5. Qaddish
tes do juc;laismo reformado americano, gostam de sublinhar que III. Ma'ariv (Liturgia da tarde)
com a sinagoga se inicia a experiencia da democracia.37
A terceira refere-se ao ntimero indispensavel para formar a 1. Breves leituras de salmos
sinagoga corno tal: dez adultos do sexo masculino ( minyan) que 2. Shema'
com a confirmaçao (bar mi:;wah) tornam-se, com todos os direitos, 3. Tefillah
4. Qaddish
36 Traduçiio de O. Carena. Cena p~quale, op. cit., 42. 5. 'AJenu
37 Cf. Scb. Ben Chorin, Le /uda1sme en pri~re, op. cit., 35; A. E.
Millgram, /ewish Worship, op. cit., 558-560. 6. Qaddish da pcssoa de luto

188 189
O qaddish nome por todos os séculos dos séculos" tirada quase ao pé da
!etra de Daniel, cap. 2, versfculo 20.
Entre estas oraçoes o qaddish e a 'alenu tem urna importancia O resto do texto teria se desenvolvido em épocas sucessivas
especial. e por diversos motivos ao redar deste texto centra!. De acordo
Sao tres as oraçoes lirurgicas cujo nome derivam do radical com uma possivel reconstruçao, o qaddish se teda formado em
qc.dosh, santo: qedushah, qiddush e qaddish. A qedushah corres- tres etapas: inicialmente se teria usado, corno formula breve de
ponde ao triplice Sanctus do qual fala Isafas e que é recitado despedida, no final de urna leituia bfblica ou de um comentario,
varias vezes ao dia durante a tefillah. O qiddush é a oraçao de corno mostra a seguinte oraçao 'al Yisra'el we-'al rabbenu.
santificaçao do sabado e dos dias de festa, pronunciada sobre um Por Israel e por 'nossos mestres, por seus disdpulos e por
copo de vinho, simbolo da nova realidade a ser inaugurada. O todos os disdpulos dos seus disdpulos, por aqueles que es-
qaddish é a doxologia mais célebre da liturgi~ hebraica. tudam, aqui ou em outro lugar: que recebam uma paz abun-
Urna das "grandes pilastras do judaismo ",38 por sua hist6ria dante, o favor, a graça e a misericordia; que recebam a pros-
complexa e dificil de se refazer, o qaddish, proclama a santidade periaade e a libertaçao do Pai do céu e da terra. Dizei:
de Deus magnificando sua grandeza e invocando, sobre o mundo, Amém.40
a plenitude de sua consolaçao e paz:
Em seguida, o qaddish teria saido do amb;ente escolar e
Que o seu grande Nome seja exaltado e santificado no mundo começado a ser usado na sinagoga, corno formula final do serviço
que ele criou segundo sua vontade; que o seu reino venha limrgico ou de suas unidades principais ( p. ex., depois das ben-
durante a vossa vida e os vossos dias e durante a vida de çaos preliminares, ou depois do shema' e da tefillah).
toda a casa de Israel, dentro em breve e nos proximos tem- Num terceiro momento, ele se teda tornado a oraçao por
pos. (Diz-se:) Amém. excelencia para as pessoas enlutadas, recitada pelos filhos, depois
Que o seu grande nome seja bendito por todos os séculos da morte dos pais, pelo esposo depois da morte da esposa, pelo
dos séculos. Seja louvado, glorificado, exaltado, elevado, de- pai, depois da morte de qualquer uro de seus filhos. Embora
clarado excelso, levantado e celebrado o Nome do Santo, nao seja facil explicar corno o qaddish, no qual nao se faz ne·
que ele seja bendito; ele esta acima de toda bençao, canto, nhuma mençao da morte, tenha-se tornado a oraçao por exce-
louvor e palavra de consolaçao que se pronuncie no mundo. lencia dos "6rfaos" (qaddish yatom), sabe-se entretanto, que duas
(Diz-se:) Amém. raz5es fundamentais contribuiram para isso. A primeira é a obri-
Concede a nos e a Israel grande paz celeste e vida prospera. gaçao de louvar a Deus sempre, mesmo quando se pass~ por u~a
Amém. provaçao, corno J6: "O Senhor o deu, o Senhor o tuou: se1a
Aquele que estabelece a paz nos lugares altos, estabeleça, bendito o Nome do Senhor" (Jo 1,21 ) . Louvar a Deus quando
na sua misericordia, a paz sobre n6s e sobre todo Israel. perdemos um ente querido é um ato de fé e de abandono à von-
Amém. tade divina, o ato de fé mais puro e desinteressado. Mas além do
Bendizei o Senhor, digno de louvor. abandono incondicional à vontade divina, o qaddish é também,
Bendizei o Senhor, digno de louvor eternamente e para sem- implicitamente, fé na ressurreiçao dos mortos. De fato, o pedido
pre.39 do "reino" ( "que o seu reino venha durante a vossa vida e os
De acordo com os pedtos, a parte essencial e mais antiga vossos dias e durante a vida de toda a casa de Israel dentro em
desta oraçao é a resposta da assembléia: "Seja bendito seu grande breve e nos pr6ximos tempos"), incluindo a vitoria de Deus sobre
todo o mal em perspectiva escatologica esta muito ligado à res-
surreiçao dos mortos e à vitoria sobre a morte: "nao bavera mais
38 P. Bimbaum, A Book of /ewish Concepts, Hebrew Publishing Co.,
Nova lorque, 1964, 538.
39 Traduçio em UTET, 449. 40 Traduçio de Sch. Ben Chorin, Le /udaisme en prière, op. cit., 94.

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a morte" (Ap 21,4). "A pessoa enlutada, depois de ter louvado ç6es, mas também urna das mais antigas" .44 E cita Mendelssohn,
o Nome de Deus, pedindo a vinda do Reino divino, faz indireta- o filosofo e o pai do iluminismo judeu: "urna prova dc sua anti-
mente alusiio à ressurreiçiio e à derrota da morte, mesmo se estas guidade é o fato de nela niio se fazer a mfnima alusiio nem à res-
palavras niio se encontram expressamente no texto lirorgico" .41 tauraçiio do Templo, nem ao Estado hebraico. Seria diflcil encon-
Pondo de lado sua evoluçiio, o qaddish se apresenta, atual- trar urna explicaçiio para essa omissiio, se a oraçio fosse com-
mente, ern cinco formas diversas: 1) O qaddish de-rabban (o posta depois da destruiçiio deles ".45
qaddish dos mestres), rezado logo ap6s urna leitura do Talmud, O texto da oraçiio:
na presença de um minyan, um quorum de 10 pessoas; 2 ) O É nosso dever glorificar o Senhor do universo, louvar a gran-
qaddish shalem (o qaddish completo), recitado por um leitor, deza do Criador das origens: que nio nos deixou ficar iguais
no final de urna cerimonia lirorgica importante, sobretudo depois às outras naç6es da terra e niio nos reservou o mesmo lugar
da tefillah; 3 ) O ha# qaddish (o qaddish pela metade ), recitado dos outros povos do mundo; que niio reduziu nossa parte
por um leitor ao cabo de breve unidade liturgica; 4) O qaddish à mesma medida da deles e que nio aproximou nosso destino
yatom (o qaddish dos 6rfiios) rezado no final de serviço de culto à desordem deles. Quanto a n6s, n6s nos inclinamos, nos
na sinagoga, por pessoas enlutadas que perderam um ente querido; prostramos e rendemos graças ao rei dos reis, de todos os
5 ) O qaddish de-itJ:r.adta (o qaddish das exéquias), rezado no reis, ao Santo, bendito seja ele. Ele habìta nos céus e sua
cemitério, quando do sepultamento do cadaver. moradia é nas alturas. Ele é nosso Deus; nio ha nenhum ou-
Nunca se acentuara demais a importancia do qaddish na tra- tro. É verdadeiramente rei e nada existe sern ele, corno esta
diçiio judaica. "Reunindo as geraç6es no amor e no respeito, a escrito na Tora: " reconhece hoje, e medita em teu coraçiio:
prece do qaddish foi descrita corno um fio sagrado em Israel. Javé é o unico Deus, tanto no alto céu, corno ca embaixo
O qaddish faz bater eternamente em unissono os coraç6es dos na terra. Niio existe um outro" (Dt 4,39). Por isso, Senhor,
pais e dos filhos" .42 nosso Deus, esperamos ver logo a grandeza de tua vitoria,
de ver os idolos de rnadeira desaparecerem sobre a terra.
Que desapareçam os falsos deuses e sejam exterminados da
A 'alenu terra. Que o mundo seja fiel ao reino do Onipotente. Que
toda carne invoque teu Nome, e que todos os pecadores da
Desde o século XIV a liturgia sinagoga!, tanto nos dias fe- terra se voltem para ti. Que todos os habitantes da terra
riais corno nos festivos, termina com a oraçiio 'alenu, a primeira venham e te reconheçam; que todo joelho se dobre diante de
palavra com a qual da se inicia, e que significa "compete a n6s ", ti e toda lingua testemunhe fidelidade a ti. Senhor nosso
"é nosso dever". Nela se proclama Deus, corno supremo rei do Deus, faz que os povos se prostrem diante de ti, e rendam
universo e corno Deus de toda a humanidade reunificada. Quanto gloria à majestade de teu Nome. Tomem sobre si o jugo do
à sua origem, os pareceres dos especialistas siio discordantes. Mes- teu reino, e que tu reines para sempre sobre eles em todos
mo que a tradiçiio goste de atribuf-la a Josué, que a teria com- os tempos e por toda a eternidade. Pois teu é o reino, tu
posto no momento de sua entrada no pafs de Canaii, a pesquisa seras rei de gl6ria por todos os séculos dos séculos. Como
hist6rica di.z que eia apareceu com Rav Abba Areka ( 160-247 esta escrito na tua Tora: "Javé reinara para sempre n ( Ex
d.C.), o fundador da sinagoga babilonica de Sura, e disdpulo dc 15,18 ); e "sera rei sobre todo o pais; naquele dia, Javé sera
Yuda ha-Nasi, o redator da Mishnah.43 Para o rabino Hertz esta o ilnico, e seu Nome o unico" (Zc 14,9).46
oraçiio "oio é somente uma das mais elevadas das nossas ora-
44 Daily Prayer Book, op. cit., 208.
45 Idem. 208.
41 Idem, 96. 46 A traduçio foi feita em parte do texto frances de Sch. Ben Chorin,
42 P. Birnbaum, A Book o/ /ewish Concepts, op. cit., 539. Le /udaisme en prière, op. cit., 87-88, e em parte do texto ingJSs de J. H.
43 CC. Sch. Ben Chorin, Le judaisme en prière, op. cit., 87. Hertz, The Authorized Daily Prayer Book, op. clt., 209-11.

192 193
7 • lsrael em oraçio
2. Durante o shabbat
O texto se comp<)e de duas partes: a primeira desenvolve o
tema da eleiçao; a segunda o do messianismo universal. A afir- Os judeus freqi.ientam a sinagoga nos dias uteis, mas princi-
maçiio principal a respeito da eleiçao é a inicial na qual Deus é palmente aos sabados. Para o shabbat a liturgia é enriquecida de
glorificado porque "nao nos fez iguais aos outros povos da terra elementos simb6licos e de textos especiais, sendo entre eles os
e niio nos reservou o mesmo lugar dos outros povos do mundo; mais importantes: a qabbalat shabbat (a acolhida do sabado), o
nao reduziu nossa parte à mesma medida da deles e nao aproxi- nishmat kol /:iay ("a alma de tudo que vive") e a leitura da Tora.
mou nosso destino à desordem deles ".
Estas palavras, que corno poucas exprimem com lucidez a
consciencia que Israel tem de si corno povo eleito, foram histori- A qabbalat shabbat
camente causa de numerosos equivocos, sobretudo pelo desprezo
que parecem gerar nos confrontos com os povos pagaos. Por isso, Denomina-se qabbalat shabbat ( literalmente: "recepçao do
as liturgias reformadas preferiram modifica-las, substituindo-as por sabado") uro conjunto de salmos e de poemas que se recita à
frases mais genéricas e tolerantes. tarde da sexta-feira na sinagoga, corno inicio da festa do sabado.
A afirmaçao que diz respeito ao messianismo universal esta, O sabado é a esposa que, Israel, o esposo, acolhe com ale-
ao contrario, resumida nestas palavras, que sao consideradas jus- gria porque ela é de urna beleza extraordinaria e fonte de alegria.
tamente o centro de toda a oraçiio: "Que o mundo seja fiel ao A qabbalat shabbat comp6e-se dos seguintes momentos principais:
reino do Onipotente" (le-taqen 'olam be-malkut shadday). Po- 1 ) seis salmos de introduçiio (do 95 9 ao 99~ e ainda o salmo 29),
de-se traduzir de dois modos: que o mundo se prepare para aco- escolhidos por Moisés Cordovero, um cabalista da escola de
lher o reino do Onipotente; mas também: que o mundo mude Luria; 2 ) o canto mistico leka dodi ( "vem, meu caro", de Sbelo-
pelo reino do Onipotente. Ambas as traduç6es conservam o sig- mo ha-Levi Alkabez, discipulo de Luria; 3) os salmos 92 e 93,
nificado fundamental: o reino de Deus se realiza se os homens corno término da cerimonia; 4) em algumas comunidades inclui-se
estiio prontos a colaborar. O reino de Deus, reino de perfeiçao ainda a leitura do Cantico dos Canticos.
e de paz, substitui o reino do homem , reitio de injustiças e de Os salmos introdut6rios sao 6, representando cada um um
violencias, se o plano do primeiro é acolhido pela vontade do dia de trabalho. Eles celebram Deus corno criador do universo e
....J segundo, tornando-se seu alimento e sua substancia. De acordo introduzem à felicidade da época messianica, da qual o sabado é
o: com os Evangelhos, Jesus gostava de definir-se corno aquele cujo um reflexo e urna antecipaçao. A seguir, damos o texto do canto
"alimento" era fazer a vontade do Pai ( cf. Jo 4,34 ), corno aquele leka dodi liqra'at kalah ( "vem, meu caro, ao encontro da es-
no qual o projeto do Pai coincidia com sua vontade e suas obras. posa") , que celebra o sabado corno a esposa e a rainha de Israel:
Onde isto acontece, floresce , corno por Jesus, o novo mundo, o
mundo messianico: "os cegos recuperam a vista, os coxos andam, Vem, meu caro, ao encontro da esposa
os leprosos sao purificados e os surdos ouvem, os mortos ressusci- queremos acolher o sabado.
tam e os pobres siio evangelizados" ( Mt 11 ,5 ) . A obediencia e a lembrança,
A mensagem centrai da 'alenu esta no anuncio deste mundo corno se fossero um s6 mandamento
radicalmente renovado, no qual desaparecerao "os idolos de ma- que nos fez ouvir o Deus unico.
deira " e "os deuses falsos ". O Senhor é um s6, e seu nome é uro
A contraposiçao entl,"e povo de Israel e os outros diz res- pela fama, pela gloria , pelo louvor.
peito primeiramente ao pr6prio Israel, s6 depois aos pagaos. De Vinde, vamos ao encontro do Sabado,
fato, também o coraçao de Israel, corno o dos "pagiios" é cha- ele é fon te de bençaos,
mado a libertar-se dos deuses falsos. O "paganismo" (isto é, o consagrado desde o principio, desde os antigos tcmpos
mal) nao se encontra fora de Israel ( nem da Igreja), mas dentro fecho da obra da criaçao,
de seu coraçao ainda nao purificado. mas em primeiro lugar no pensamento divino.
Santuario de rei, cidade real,
194 195
levanta, sai da obscuridade rainha, nossa noiva". A es te convite, os amigos respondiam: • En-
nio fiques mais deitado no vale do pranto, tra, Sabado, nossa rainha, nossa noiva". 41
Ele tera piedade de ti. Sao dois os personagens do poema, Israel e o Sabado, quc
Sacode a poeira das costas, levanta, personilicam os amantes do cantico dos wticos: Israel, o es-
veste as roupas da tua gl6ria, povo meu. poso, o Sabado a esposa. Em um primeiro momento o poeta se
Por meio do filho de Isaf de Bet Lehem dirige ao esposo a fim de que ele va ao cncontro da esposa:
Aproxima-se de mim a redençao. · "Vinde, vamos ao encontro do Sabado"; ele usa a primeira pes-
Ressurge, vamos, ressurge, soa do plural, porque ele mesmo, enquanto parte e voz do povo,
porque chegou a tua luz: levanta, brilha, acorda logo, sente-se esposo do shabbat. Em um segundo momento, no final,
depressa, entoa um canto: ele se dirige ao Sabado, "coroa do esposo ", a fim de que seja
a gl6ria de Deus se manifesta cm ti. ela que venha e se alegre: "Vem em paz, 6 coroa do esposo/e
Nao te envergonhes, nao te enrubesças, em regozijo, cm cantos de alegria/ao meio dos fiéis do teu povo
por que estas humilhada, por que estas perturbada? predileto,/vem, 6 esposa, vem, 6 esposa". O poema, corno o
O meu pobre povo tera confiança em ti, Cantico dos Canticos, é um convite ao esposo e à esposa, para
e a cidade sera reconstruida sobre suas rufnas. que eles se comuniquem, e dialoguem, pois é deste encontro que
Serao espoliados aqueles que te depredaram, nasce o shalom, a paz.
todos os teus perseguidores serao afastados. Entre o primeiro convite dirigido ao esposo ( "Vinde, vamos
O teu Deus estara contente contigo, ao encontro do Sabado") e o ultimo, dirigido à esposa ( "Vem,
como o esposo esta feliz com sua esposa. 6 esposa, vem, 6 esposa" ) se desenvolve a parte centrai da poe-
Tu cresceras à direita e à esquerda sia, na qual se fala da beleza da esposa, isto é, da riqueza do
e daras gl6ria ao Senhor, sabado ("fonte de bençaos ... fecho da obra da criaçiio, mas no
e através de um homem pensamento divino cm primeiro lugar" ) e da atitude que o es-
da descendencia de Perez poso deve ter para com ela: "levanta ... sacode a poeira ... ressur-
nos alegraremos e exultaremos. ge... acorda... nao te envergonhes". Além de pedir urna atitude
Vem cm paz, 6 coroa do esposo, de abertura à esposa/ shabbat, o poeta apresenta seus motivos: a
e em regozijo, em cantos de alegria, esposa/ shabbat, imagem divina, é portadora da salvaçao ( "Ele
ao meio dos fiéis do teu povo predileto, tera piedade de ti" ) , de redençao ( "aproxima-se de mim a re-
vem 6 esposa, vem 6 esposa. dençao" ) , de luz ( "porque chegou a tua luz" ) , de gl6ria ( "a gl6-
Ao meio dos fiéis do teu povo predileto, ria de Deus se manifesta em ti"), de vit6ria ( "todos os teus per-
vem, 6 esposa, rainha Sabado.47 seguidores serao afastados" ) , de alegria ( "O teu Deus es tara con-
O texto se comp5e de um refrao ( "Vem, meu caro ao en- tente contigo, corno o esposo com sua esposa"), de expansao
contro da esposa, vamos acolher o Sabado") e de nove estrofes ( "cresceras à esquerda e à direita") etc ... O shabbal, corno urna
em acr6stico (formando o nome de Shelom6 ha-Levi, o autor da "fada" tem o poder de transfigurar o esposo Israel, trazendo-lhe
poesia) e se inspira no cantico dos Canticos e em parabolas do a plenitude da paz.
Talmud. De acordo com esta ultima, os rabinos Hanina e Yannai Este texto1 que Heinrich Heine chamou de "bino nupcial" ,49
punham vestes festivas na sexta-feira à tarde e se dirigiam a seus "é talvez um dos trechos mais delicados da poesia religiosa co-
amigos dizendo: "vinde, vamos ao encontro do Sabado, nossa nhecida "50 e apesar de sua origem tardia e da oposiçao dos dr-
47 Traduçiio in Preghiera serate del sabato. Kabalat Shabbat: inni per 48 Para a parabola cf. TB Shabbat e Baba qamma 32a e b.
accogliere il Sabato. Arvlth shet Shabbat: preghiera vespertina del Sabato. 49 Cf. Scb. Ben Chorin, Le /udoJsme en prière, op. cit., 117.
Textos escolbidos e traduzidos por A. Toaff, Comunidade israelita de Roma, 50 A. Schechter, in J. H . Hertz, The Authorized Daily Prayer Book,
1968/69, 2-3. op. cit.. 356.

196 197
culos inscns{veis ao misticismo, entrou em todo o mundo na maior pertas quem adormece, das de novo a palavra aos mudos,
parte dos rituais judaicos. libertas os prisioneiros, ap6ias quem cai, levantas quem csta
O rito da qabbalat shabbat termina com a reza do salmo 92 curvado. Somente a ti n6s rendemos graças e prestamos ho-
o salmo do sabado, por excelencia (mizmor shir le-yom ha-shabbat): menagem! ...51
e do salmo 9 3. O primeiro é um hino de louvor ao Scnhor ( • 2
bom ceJebrar a Javé e tocar ao teu nome, 6 Altlssimo"); o se- Trata-se de um hino antiqillssimo, que urna lenda curiosa
gundo uma profissio de fé no senhorio / realeza de Deus ( "Javé ~ atribui a Pedro, que o cornpòs em sinal de arrependimento, de-
rei, vestido de majestade ... "). Com a leitura destes dois salmos pois de ter trafdo a Jesus (Mt 26,72-74 ). Embora sem funda-
considera-se efetuada a entrada no sabado, tempo divino que cU mento hist6rico, a lenda da testemunho da antiguidade desta ora-
fundamento e sentido ao tempo humano. çao, que, atestada pelo Talmud (Pesa/:zim 118a e Beraleot 59b)
ja devia ser conhecida no século I da era crista.52
Alérn da particularidade do poema nishmat kol J:iay, a liturgia
Nishmat leol bay matinal do sabado é caracterizada pela ampliaçao da primeira das
duas bençaos que precedem o shema', um hino de louvor a Deus
A liturgia do sabado começa na tarde de sexta-feira com a pela criaçao da luz, simbolo do universo. Aos sabados este tema
qabbalat shabbat, vindo logo ap6s o offcio da tarde (ma'ariv le- é retomado e enriquecido por urna referencia explicita à instituiçao
shabbat), com exceçiio de pequenas omissoes e acréscimos espe- do shabbat:
• ciais ( p. ex., a referencia explicita do shabbat na te/il/ah e o ( as multidoes celestes cantam) o Onipotente, que no sétimo
qiddush realizado também na sinagoga, para facilitar aqueles quc dia parou o seu trabalho, elevou-se para assentar-se no trono
nao podiam fazer ern casa ) . da sua gl6ria. O Senhor se revestiu de majestade no dia de
Tambérn a prece do dia seguinte segue o esquema da oraçio repouso, no shabbat, que denominou de dia de delicias. Aqui-
diaria com apenas algurnas alteraçé5es importantes, tanto de ma- la que determina a honra do sétimo dia é que Deus descan-

-
~

::;..
....
;s
,
nha (shaf:zarit le-shabbat), corno ao meio-dia (minf:zah le-shabbat),
corno também à tarde, quando a oraçao é chamada mO$$e shabbat
( safda do Sabado).
Na oraçio da manha, um elemento novo é o bino nishmat
sou do seu trabalho; por isso este dia celebra, ele pr6prio,
o Criador, cantando o hino do shabbat: "corno é bom 1ouvar
o Senhor!" Portanto, que todas as criaturas glorifiquem e

-. leol }Jay ("a alma de todo ser vivente"), um convite a todo ser
vivente a louvar e agradecer o Senhor por suas maravilhas dc
bendigam a Deus, que elas reconheçam a grandeza e a magni-
ficencia do Senhor, do rei criador do universo, que na sua
santidade concede ao povo dc Israel o repouso do shabbat,
criaçao e de amor: dia santo. Que o teu nome, 6 Eterno, nosso Deus, seja santi-
A alma de todo ser vivente bendira o teu nome, 6 Senhor ficado; que a tua lembrança, 6 nosso rei, seja honrada no
nosso Deus e o espfrito de toda criatura glorifique tua lem- céu corno na terra. Se bendito, nosso salvador, pelas obras
brança para sempre, nosso rei. sublimes da tua mao, e seja celebrado para sempre pelo es-
Tu és Deus de eternidade em eternidade e fora dc ti , para plendor da luz criada por ti .53
n6s, nao ha outro rei que nos salva, proteja, redima e libertc. Deus é louvado pelo dom do shabbat, ponto culminante, lem-
Es tu que nos sustentas e que na calamid!!de e na afliçao nos brança e imagem do esplendor da criaçio.
presenteias com tua miseric6rdia. Somente tu és nosso rei,
Deus de todos os séculos, soberano de todas as criaturas, 51 Este hino é o mesmo com o qual se terrmìna a haggadah de Pascoa,
e que em parte ja foi transcrito: cf. supra p. 170.. Aqui a t~aduçiio foi
mestre de todas as geraçé5es, tu que és celebrado por inumc- feita do texto francès de E. Munk, le monde des prières, op. c1t., voi. lii.
raveis louvores e que governas o universo e as tuas criaturas Les Prières du Shabbat, 25.
com a tua graça e miseric6rdia. Eterno, tu , que nio dormes 52 Sobre o significado desta tenda cf. Sch. Ben Chorin, Le /udalsme en
prière, op. cit., 121.
nem cochilas, mas ao contrario, tu acordas quem dorme, des· 53 Traduçiio de E. Munk, Le monde des prières, voi. lii, op. cit., 28.

198 199
A leitura da T ora No sabado, a Tora niio é lida somente de manhii ( em shal)arit
le-shabbat) , mas também ao meio-dia ( em minl)ah le-shabbat). Nes-
O. sabad~ é dedica~o de modo particular à lei tura da Tora: ta hora siio lidos geralmente os mesmos trechos ja lidos de manhii,
nest~ dia a _lettura é mais ampla e solene, seja pelas perfcopes es sobre os quais se reflete aprofundando-os através da· discussiio e
colhidas, seJa pelas oraç5es que a acompanham. - confronto com outros textos dos rabinos.
Em alguns meses do ano, principalmente no veriio, o apro-
A_ T ora é lida em rolos de pergaminbo escri tos a mio e fundamento biblico é feito pela leitura do Pirke 'Avot, urn dos
envolvidos numa mantilha, geralmente de veludo e decorados 00 tratados mixnaicos mais importantes, que é uma seleta de maxi-
ornamentos e_ campainhas de prata ou de outro ~aterial precio: mas religiosas e morais atr1bufdas a grandes doutores ou Padres
Estes rolos sao guardados num lugar especial chamado ' h · do judafsmo pré-cristao e imediatamente p6s-cristiios. Eis algumas
d h (" d n aron a-
qo es . . arca sagra a ), uma espécie de tabernaculo quase sem- delas, da autoria de Hillel, quase contemporaneo de Jesus, que
pre artisticamente trabalhado, que é o centro ideal da sinago
da aten~~o da asse_mhléia . Quando se abre a arca, 0 Ieitor g: : morreu em cerca do 1O a.C.
assem~Jei.a can~ Juntos alguns versfculos do livro dos Numeros Hillel afirmava: "Nao te afastes da comunidade; nem confies
e. d~ livro de Isa1as; 54 enquanto o rolo da Tora é !evado em pro- em ti mesmo até no dia de tua morte; nao julgues teu com-
assa? da arca para o p6dio, para ser lido em voz alta, os presentes panheiro enquanto nao te encontrares nas mesmas condiç<Scs
conunuam a cantar: que ele; niio penses ser imposs1vel ouvir alguma coisa, pois
·-- Tu~, Senhor, é a grandeza e o poder, a gl6ria, a vit6ria e 8
no final ela sera ouvida; niio digas: estudarei quando tiver
tempo; talvez niio tenhas tempo". Ele costumava dizer: "0
~a1estade. f: teu, Senhor, tudo aquila que se encontra nos homem sem cultura niio teme o pecado; o homem ignorante
ceus e na rc:rra. Teu, Senhor, é o reino, e a supremacia sobre niio pode tornar-se piedoso; o timido niio pode aprender,
todas as c01sas. Exaltai o Senhor nosso Deus, e prostrai-vos nem o irasdvel ensinar; nem aquele que se dedica muito ao
aos se~s pés: ele é santo. Exaltai o Senhor, nosso Deus, e comércio pode se tornar urn sabio. Onde nao ha homens,
prostrai~vos no seu monte santo: o Senhor nosso Deus é procura ser homem ".56
santo ...
Por meio destes ditos simples e imediatos, Israel procura
. Um~ vez ~o p6di~, o r?lo da Tora é proclamado por um ficar fiel à pr6pria identidade espiritual, d6cil à voz de Deus e
leitor (ba al qore ou ba al qert'ah) devidamente preparado. Antiga- à tradiçao dos Patriarcas.
mente ~u~lqu:r pessoa podia ser convidada a ler a Tora, de acordo
com. a tndicaçao ~e Megillah 23a, mas com 0 tempo, seodo 0 texto
biblico sem voga1s nem pontuaçiio, s6 um perito tinha condiçOes O musa/
de ler corretamente o texto.
d .Depois da lei tura da Tora vem a leitura da ha/tarah ( trecho Além de algumas variaçOes e acréscimos cspcdficos, inseridos
~vro dos Profetas), lida atualmeote niio de um rolo escrito
0 na estrutura tfpica da oraçiio cotidiana, a liturgia da sinagoga aos
à mao, ma.s de u~ livro impresso corno qualquer outro. Esta di- sabados se enrjquece com urna parte especlfica totalmente nova,
ferença existe. a fam d~ sublinbar o nfvel de importancia das tr& chamada musa/ ( que significa "apendice" ) , que foi colocada logo
P,artes da. Biblia hebraica: em primeiro Iugar o Pentateuco (a To- ap6s a leitura da Tora da manha. Esta oraçiio "complcmentar"
ra) , depo1s os Profetas, e por fim os assim denominados de Hao16- se comp<Sc de urna tefillah de sete bCnçiios, de urna qedushah mais
grafos. &"'
ampia e desenvolvida do que a norma! ( e por isso chamada qe-
dushah rabbah) e de alguns canticos e hinos consagrados à uni-
54 Nm 10.35-36; ls 23,3. dade e à gl6ria divina.
55 Traduçiio de W. W. Simpson, fewish Prayer and Worship, op. cit., 38. 56 Traduçiio de A. A. Piattelli, Mau/me dei Padri 2.5-6, op. clt.
200 201
Acrescida historicamente como lembrança do sacrificio suplc- A berit-mila
mentar que se fazia no templo aos sabados (d. Nm 28,9-10) e
comprovada ja pela Mishnah (Berakot 4,7 e Ta'anit 4,1), a ora- A cerimonia lirurgica referente ao nascimento de um menino
çao musa/ foi tirada das liturgias reformadas, tanto por seu caratcr é chamada berit-mila ( "aliança da circuncisio"), e por eia o re-
redundante ( sendo urna variante da tefillah anterior) como por cém-nascido torna-se "filho de Abraao ", isto é, beneficiario e her-
sua relaçio aos sacrifkios do templo, considerada atualmentc co- deiro dos bens da aliança. O rito é atribufdo diret amente a Deus
mo pr6pria daquela época, estando portanto ultrapassada. Outru (d. Gn 17 ,9-12 ) e acontece no oitavo dia de vi~a. A c.riança do
liturgias, cm vez de elimina-la preferiram modifica-la, conservando sexo masculino é levada à sinagoga, onde é receb1da fesnvamente,
seu carater hist6rico, mas atualizando-a cm moldes modemos: "Quc com as palavras do salmo 118,26: " Bendit~ aqu~I: que v~ em
a tua vontade, Senhor nosso Deus, seja que voltemos com alegria nome do Senhor" . Logo depois passa-se à c1rcunc1sao propriamen-
ao nosso pafs, e que encontremos morada dentro de suas frontci. te dita, feita por duas pessoas qualificadas: o mohel ( "circunci-
ras, la onde nossos pais te ofereceram o sacrificio rirual" .57 sor" ) que efetua no menino a pequena operaça~, ~ .o s~ndaq
A festa do shabbat termina à tarde, com a oraçao do havdalah. ( "padrinho" ) que o carrega nos braços. Para a cerimonia sao ne-
Embora esta oraçao (corno o qiddush) seja recitada na sinagoga cessarias duas cadeiras: urna para o sandaq e outra para o profeta
( para dar ocasiao àqueles que nao puderam celebra-la cm casa), Elias que, de acordo com a tradiçao popular, esci prese~te e~
o seu ambiente verdadeiro e de origem é o familiar. Este, com todas as circunstancias para proteger o menino de eventua1s per1-

- sua realidade concreta e cotidiana é o lugar ideai para encontrar-sc


com o shabbat, contemplando sua beleza e deixando-se transfigu.
rar, durante a semana, pelo seu sentido.
gos ou desgraças.
O rito da circuncisao é acompanhado de algumas berakot
que o explicam e interpretam. Quando o sandaq torna o recém-
nascido nos braços o mohel reza : "Sé bendito, Senhor nosso
Deus, rei do universo, que nos santificaste com os teus manda-
3. Por ocasiao de acontecimentos particulares mentos e que nos ordenaste fazer o rito da circuncisao ". Ter-
minada a circuncisao, é rezada urna outra oraçao, e desta vez, pelo
Nascer, tornar-se adulto, casar-se e morrer sao também para pai: " Se bendito, Senhor nosso Deus, rei do univers~, que ~os
I srael, corno para todas as religi0es, momentos impor tantes mar- santificaste com teus mandamentos e nos ordenaste mtroduz1-lo
cados pela oraçao comunitaria feita na sinagoga. (o menino) na aliança de nosso pai Abraao". Os presentes res-
Por ocasiao destes eventos, a sinagoga, juntamentc com a pondem: "Como ele começou a participar da aliança, que ele
famllia se torna o lugar fundamental da celebraçio. possa participar do estudo da Tora, do baldaquino nupcial e do
Mais do que por ritos particulares ( a maior parte tomados mundo das boas obras". O ritual termina com um qiddush espe-
do ambiente semita dentro do qual o judaismo nasceu e amadu- cial recitado pelo mohel: " ...Nosso Deus e Deus de nossos pais,
receu) , estes acontecimentos sao caracterizados pela leitura cspc- proteja este menino... Que ele possa dar alegria aos seus pais.
cial que Israel faz, à luz da sua experiencia de fé. Lingilistica- Que eles lhe revelem, com amor e sabedoria, o significado desta
mente esta leitura é feita com a categoria da berakah, da qual ja aliança na qual ele hoje entrou, de modo que possa praticar a
falamos longamente. lsrael pronuncia a berakah perante aquelc justiça, procurando a verdade e caminhando nos caminhos da paz.
que nasce, se torna adulto, se casa ou morre. Deste modo ele Que este menino possa crescer em humanidade, corno bençao
une o acontecimento à vontade divina, lendo-o e aceitando-o de para sua familia, a familia de l srael e a famllia humana ... 11
acordo com a intençio de Deus, que lhe confere valor e scntido. Assim, aparece com clareza o sentido da circuncisao, sinal
lnterpretados deste modo, nascer e viver, crescer e morrer, supc- corp6reo - e por isso irrevers{vel - de pertença a um povo cha-
ram as dimens5es de simples acontecimento e se transformam cm mado a viver segundo a l6gica da aliança. Em vez de ser um
projctos de vida a serem re.alizados com responsabilidade. gesto magico, a circucisao é "introduçao" cm um mundo que é
57 Cf. Sch. Ben Chorln, Le judaisme en pri~re, op. cit., 128. dom e tarefa, usufruto e colaboraçao; abcrtura a um projeto de

202 203
v_ida ~ado por um "coraçio" nao voltado para si mcsmo, mas a Tora". Em algumas comunidades ele tcm que fazer também
smtoruzado com o pr6prio coraçao divino: "Circuncidai, pois, 0 um comentario sobre o texto lido, ou urna cxposiçio mais gené-
vosso coraçao, e nunca mais reteseis a vossa nuca! ... pois Javé ... rica e personalizada, demonsttando assim que tomou consciencia
faz justiça ao 6rfao e à viuva, e ama o estrangeiro, dando-lhc piio de suas novas responsabilidades. }unto aos sefarditas, o acesso
e roupa" (Dt 1~ 1 16-18 ~· A circuncisiio, ao introduzir na aliança, ao estado de adulto é marcado nao tanto pela leitura da Tora,
faz quc o pr6pno coraçao se assemelhe ao de Deus: "faz justiça mas pelo fato de carregarem os tefilin na sinagoga, durante a ora-
ao 6rfao etc... " çao da manha dos dias utcis .
Além do rito da circuncisao, a ttadiç.ao judaica conhccc tam- Além do bar mi$wah, recentemente, sobretudo nas comuni-
~ outro rito suplemcntar conhecido como "Resgate do primo- dades dos judeus liberais, celebra-se também urna bat m#wah
gcruto". quando o menino circuncidado é o primogenito, clc é (bat em aramaico é o feminino dc bar e significa "filha" ) para as
levado à sinagoga no 31 '! dia de vida para "ser resgatado ", isto é, moças que fizeram 12 anos. 59
para rcconhecer sua pertença ao Senhor e para ser-lhe consagrado.
Expressamente testemunhada pelos evangelhos (Le 2,21) e
~piamente documentada pelo Talmud ( Shab 13 7b), "pode-se O rito do matrimonio
dizer que a .circuncisao é o rito que os judeus, qualquer quc seja
sua ~c~denc1a, conservaram com maior fidelidade. Apesar das pcr- Nas fontes bfulicas nao ha vcstfgios dc urna liturgia matti-

·- segu1çoes, eia se tornou a pedra de toque da pertença ao povo


judeu ~ o sin~ dc fidelidade daqueles que sabem que - qualqucr
monial. No Talmud, ao contrario, ela é ampiamente testemunha-
da, bem corno sao fixados seus elementos fundamentais: o qiddush,
a f6rmula de consagraçao, a ketubah (o "contrato" matrimonial),
que se1am as ctrcunstancias - 'o povo judeu vive e sobrevive eter-
namente' ".58 as birkot !Jatanim ( "Bençaos dos esposos" ) e a quebra de um
copo cheio de vinho.
A f6rmula do qiddush é a usual, pronunciada sobre um copo
O bar mi$Wah de vinho. O esposo e a esposa bebem dele juntamente, corno
sinal de um destino comum de alegrias e esforços. Casar-se é
No Talmud, bar mi~wah se refere ao judeu adulto quc, cn- participar do "copo da vida": na sua felicidade e nas suas res-
quanto tal, tem a obrigaçao de observar todos os m#wah (man- ponsabilidades. Depois do qiddush o esposo p0e a aliança no de-
damC?tos ~ da Tora. Com o tempo, a expressao passou a indicar do da esposa pronunciando estas palavras referidas no Talmud:
a cenmorua com a qual, desde os primeiros séculos da era cristi "Eis, com este anel tu estas consagrada a mim, de acordo com
o rap~ judeu se tornava .adulto, assumindo assim as obriga~ a lei de Moisés e de Israel" ( Kid 5b). Em muitas sinagogas li-
requer1das pela Tora . O ntual é celebrado normalmente na sina- berais a f6rmula é recitada também pela esposa, referindo-se ao
goga, no primeiro sabado depois de o rapaz completar os trcze esposo.
anos: Entao o pai pronuncia uma bençao com a qual declara por Depois da f6rmula de consagraçiio vem a leitura e a assina-
termtnad? sc,.u papcl ~e cducador, reconhecendo ao filho sua plcna tura da ketubah, um documento legai que garante os direitos e
~utonom1a: se bendito, Senhor, que me liberaste da responsabi- deveres dos esposos, e sobretudo da esposa, em caso de div6rcio
ltdadc sobre cste rapaz". Uma vez reconhecido corno adulto o ou viuvez. Logo depois rezam-se as sete berakot, um hino de lou-
rapaz dirige, totalmente ou em parte, a liturgia da sexta-fcir~ à vor a Deus pelas suas maravilhas, sendo que a maior delas é "a
tarde e d~ sabado de manha, e, pela primeira vez cm sua vida, invençao do casal ", a criaçao do homem e da mulher, um para o
ele é conv1dado ~ ler um trecho da Tora bendizendo a Deus "por outro.
havcr-nos cscolhido entre todos os povos da terra para dar-nos
5.9 CC. Forms o/ Prayer /or /ewish Wor:ship, org. pela Assembly of
Rabb1s of thc Rcform Synagoguc of Creat Creat Britain voi. I. Dai/y,
58 A l'ecoute du /uda1:sme, op. cit., 57. Shabbat and Occasionai Prayers, Londrcs, 1977, 291. '

204 205
se bcndito, Scnhor DOSSO Deus, rei do universo, que criaste Quando uma pessoa morre, sua morte é anunciada com uma
o fruto da videira. bençio: "Bendito seja o Juiz da verdade" e sio reci~das uma
se bendito, Senhor nosso Deus, rei do universo, que tudo série de oraçOes, algumas na cimara mortuaria, outras durante a
criaste para tua gl6ria. procissio ao cemitério e finalmente outras no cemitério, antcs do
se bendito, Senhor DOSSO Deus, rei do universo, que criaste enterro do cadaver. Normalmente o corpo nio é !evado à sina-
o homem. goga, mas diretamente ao cemitério, onde a liturgia é realizada.
se bendito, Senhor nosso Deus, rei do universo, que criaste Da camara mortuaria ao cemitério, sio recitados os versku-
o homem à tua imagem e semelhança, dando-lhe a mulher los do salmo 91, enquanto que, chegados ao cemitério, celebra-se
como companheira perene. Sé bendito, Senhor, que criaste o o rito propriamente dito chamado ~idduq ha-din ( "justificaçio do
homem. Que Siio, a estéril, exulte e se alegre quando seus ju.lzo divino" ) inspirado nas palavras dç rabino Hanina b. Tera-
filhos se retl.nem ao seu redor, cheios oe alegria. se
bendito, dion e da sua familia, dtadas no Talmud.
Senhor, que alegras Siio com o dom dos filhos.
Faze que estes companheiros, que se amam, muito se alegrem, Os romanos conduziram o rabino Hanina b. Teradion ... para
como alegraste antigamente a tua criatura no jardim do éden. que fosse queimado, a mulher para que fosse matada e a filha
Sé bendito, Senhor, que das alegria ao esposo e à esposa. para que fosse violentada ... Saindo do tribuna! os tres dc-
Sé bendito, Senhor nosso Deus, rei do universo, que criaste clararam sua submissio ao justo ju.lzo de Deus. O primeiro
disse : "Ele é a Rocha, e sua obra é pedeita, pois toda a sua
alegria e felicidade, o esposo e a esposa, contentamento e
jubilo, prazer e ddfcia, amor, fraternidade, paz e amizade. conduta é o Direito" (Dt 32,4) . A mulher continuou: "~
Ressoe rapidamente nas cidades de }uda e nas ruas de Jc· Deus verdadeiro e sem injustiça, ele proprio é Justiça e
Retidio " (Dt 32,4). A filha porém disse: "Tu és grande
rusalém a voz da alegria e do jubilo, a voz do esposo e a da
esposa, a voz dos esposos do seu baldaquino nupcial e dos em conselho, poderoso em açOes, cujos olhos estao abertos
jovens das suas festas de cantos. Sé bendito, Senhor, quc sobre todos os caminhos dos homens para retribuir a cada
alegras o esposo com a esposa.60 um segundo a sua conduta e segundo o fruto dos seus atos"
(Jr 32,19 ) .61
O rito do matrimonio termina com a quebra de um co-
po de vinho: a finalidade é lembrar aos esposos que ninguém Finalmente, quando o rumulo vai ser fechado recita-se um
( nem des pr6prios) pode ter uma feliddade definitiva e comple- qaddish, que é um bino de louvor purissimo à soberania de
Deus e uma confissio explkita na futura ressurreiçio dos mor-
ta; bem corno nio deixa-los esquecer que nio ha alegria com-
pleta enquanto o "templo de Jerusalém" (simbolo da presença tos: "Que seu nome seja engrandecido e santificado no mundo
divina) nio for reedificado. que ele esci por criar de novo, no qual ele acordara os mortos
e os fara ressurgir para a vida eterna ... "
Durante o rito matrimonial o esposo e a esposa ficam dc-
baixo da }Juppah, um baldaquino nupdal, s.lmbolo da e.amara nup- Com estas palavras, o judeu aprende a reler e a ressignificar
cial, o local sagrado da fecundidade. a morte em um horizonte de confiança, de acordo com esta su-
gestiva narraçio do Talmud:

Os funerais Os dois filhos do rabino Meir morreram no mesmo dia, em


um sabado, depois do almoço, quando ele se encontrava na
Diante da morte o judeu reafirma sua submissio à vontadc sinagoga. Quando ele voltou, a mulher, a célebre Berugia,
divina. Ele nio reconhece nela um ato de injustiça, mas um ato nio tinha coragem de comunicar-lhe a triste notkia, para
de amor e de sentido da parte de Deus. nao estragar-lhe a alegria do shabb.at. Esperou entao até à
tarde e, aproximando-se temerosa do seu esposo, lhc disse:
60 Traduçio dc J. H . Hertz, The Authorized Daily Prayer Book, op.
cit., l01l. 61 TB 'Abodah Zarah 17b-18a.

206 207
"Tenho uma pergunta a te fazer. Faz tempo, um amigo meu Com a imersio o prosélito se torna "um recém-nascido "65
pediu-me que guardasse para ele algumas j6ias, mas hojc e se acrescenta ao seu non:e antigo um outro: aos do scxo mas-
pediu-me que as devolvesse. Que devo fazer?" "Por que mc culino Abraao ( "filho de Abraio") aos do sexo feminino Rute
fazcs esta pergunta? Nao ha razao de duvida. Devolvc·lhc ( "filha de Rute" ).
as j6ias". Entio eia o conduziu ao quarto de cima, ·onde O rito da imersio é importante para se compreender o ba-
os dois filhos jaziam mortos, fazia bastante tempo. " Eis as tismo cristio que, segundo a teologia de Paulo de Tarso, é morte
j6ias que devo restituir!" , disse ela. E o rabino Meir, solu- do "homem velho" (palaios anthropos) e apariçio da "novidade
çando, repetiu com J6 : "O Senhor o deu, o Senhor o tirou, de vida" (kainoteti zoes). 66
bendito seja o nome do Senhor" .62

Para a admissao dos prosélitos

Antigamente os judeus faziam proselitismo, e aqucles quc


se convertiam eram introduzidos na religiio israelita através de
um periodo de preparaçao e um rito de iniciaçio. De fato, sc-
gundo o tratado rab!nico Gerim ( "prosélitos"),
quem quer tornar-se prosélito, nio é admitido de imediato.
Algumas perguntas devem-lhe ser feitas: "O que te lcvou a
unir-te a n6s? Sabes que entre todas as naçé5es a nossa é a
mais espezinhada e atingida, e que n6s estamos sujeitos a
infinitas doenças e sofrimentos? ... " Se o candidato responde:
"Nio sou digno de assumir as obrigaçé5es daquele - que clc
seja bendito - que criou o mundo com sua simples palavra ",
seja ele imediatamente admitido. Caso ele responda de outro
modo, deixa-o perder-se e que se va.63
Urna vez verificadas as intençé5es do convertido e depois dc
um adequado periodo de formaçao e de estudo, celebra-se o rito
duplo da circuncisio e o da imersio, na presença de ao menos
très pessoas. Caso se trate de urna mulher é feito apenas o rito
da imersio. Durante a imersio, o prosélito reza duas beraleot:
"Sè bendito, Senhor nosso Deus, rei do universo, que oos santifi-
caste com os teus mandamentos e nos mandaste celebrar o rito
da imersao.
Se bendit~, Senhor nosso Deus, rei do universo, que nos
conservaste a v1da, nos preservaste do mal e nos fizeste chegar a
este tempo favoravel ".64
62 In J. H. H~rtz, The Authorized Daily Prayer Book, op. clt., 270. 6S TB Yevamoth 48b.
63 Cf. A. E. M1Jlgram, /ewish Worship, op. cit., 32S·26. 66 Cf. sobretudo Rm 6,J.J I, onde se cncontra a teologia batismal mais
64 Traduçào de idem, 326. profunda do Novo Testamento.

208 209
neira alguma ser colocadas no mesmo plano das precedentes, que
constituem a verdadeira estrutura do ano lirurgico judeu.
4 A celebraçao destas festas é feita, a maior parte das vezes,
na sinagoga, através de acréscimo de alguns textos peculiares,
A CELEBRAç AO DAS FESTAS sejam eles bfblicos ou eucol6gicos, na triplice estrutura cotidiana
de shaf:zarit (Liturgia da manhii) , minf:zah (Liturgia da tarde) e
ma'ariv (Liturgia da noi te).

AS FEST AS DA PEREGRINAç.l.O

A festa é o sinal do divino na hist6ria, a "palavra" que a


resgata de suas derrotas e que nos permite entrever, do outro
Jado do seu conteudo absurdo e monotono, a claridade e o sentido.
Niio é sem motivo que o radical da palavra "festa", seria, se-
Como todos os povos e religi5es, também o israelita faz coin- gundo alguns autores, phainom·ai, que significa mostrar-se, apare-
cidir algumas de suas festas com o ciclo do tempo. Estas festas cer: justamente porque ela deixa aparecer um novo horizonte
podem ser de tres tipos: as festas propriamente ditas, denomi- de valores e de significados, sem os quais seria impossivel viver
nadas de festas da peregrinaç1Jo (pesa/:z, shavu'ot e sukkot); as e ter esperanças. Como todos os povos. Israel também tem suas
festas austeras (rosh ha-shanah e yom kippur) e as festas menores festas e as celebra. De um lado elas tem o mesmo significado
(/:zanukkah e purim). de qualquer festa, por outro, elas adquirem um novo sentido,
mais expHcito e radical, à luz- da experiencia religiosa do Deus
A diferença entre os tres tipos de festa esta no seu con- do exodo e da aliança. Por isso, antes de falar sobre as tres festas
teudo teol6gico. As festas da peregrinaçao ( as ilnicas que mere- da peregrinaçao em particular, é necessario tocar no sentido da
cem o nome de /:zag, festa) celebram e atualizam o maior evento festa em geral e na releitura que a tradiçiio hebraica fez delas.
salvifico de Israel: o exodo, a aliança e a entrada na Terra Pro-
metida; por isso sao as mais importantes e sao chamadas "da
peregrinaçao" (regalim) porque ja nos tempos bfblicos, elas eram O sentido da festa
caracterizadas por um grande afluxo de partìcipantes no templo
de Jerusalém, a cidade santa. As festas austeras, mais do que o A festa afirma a bondade do mundo, raziio por; que o homem
evento divino, celebram o evento do mau uso da liberdade hu- pode usufruir dele, e porque Deus lhe da o fundamento. Eia se
mana; lembram a infidelidade do homem à fidelidade de Deus, organiza sempre inconscientemente e na fase pré-reflexa, cm tor-
e sao dias de grande arrependimento, e de profunda conversao. no de tres p6los interdependentes e correlatos: o hornern, o mun-
Sao portanto chamadas austeras, porque nelas o confronto critico do e Deus: o homem como sujeito bom, o mundo corno objeto
consigo e com Deus prevalece ao sentimento de alegria. As festas bom, e o divino corno fundamento da bondade de um e do outro.
menores sao assim chamadas porque nao tem sua origem num É sobretudo este Ultimo que a festa afirma e destaca: o mundo é
mandamento da Tora e se referem a acontecimentos secundarios born e o homem pode habita-lo corno patria, porque é fruto da
da hist6ria dos judeus. Embora ricas de muitos elementos, so- vontade e da manutençao do sagrado e sobre o sagrado. Aqui se
bretudo folcl6ricos e populares, estas festas nao podem de ma- encontra o segredo de toda festa, na qual, para além das aparen-
21 0 211
cias, tomamos novamente consciencia do valor positivo da exis- do somente com os seus e sem ajudar os marginalizados, nio
tencia, corno espaço completo de usufruto e de sentido. experimentaria da alegria da mifwah, mas somente a satis-
Como explicadora do sentido, a festa se forma através de façiio que a comida proporciona ". Foi por isso que o pro-
tres momentos. feta Oséias disse: "os sacriffcios nao lhe serao agradaveis.
Sera para ele corno o pao de luto, todos os que o comerem
No primeiro ela é a rejeiçao do negativo e da morte. A vida
se tornarao impuros. Porque o seu pao satisfaz apenas o seu
particular e de grupo é marcada pela dor e pela privaçao, pela
apetite" (Oséias 9,4). 1
pobreza e injustiças, violencia e absurdo. Em vez da harmonia
originai, eia parece movida por urna ameaça constante que torna Este texto resume muito bem os dois aspectos fundamentais
vaos todos os esforços e as orientaçoes; em vez de movida por da alegria anunciada e realizada pela festa: o usufruto das coisas
um telos benéfico, ela parece levada por um demonio maléfico ( "corner e beber" ) e a condivisao fraterna ( cuidar do necessario
com maos e olhos de thanatos. A festa é a suspensao desta ordem, ao estrangeiro). Contra a alegria tomada somente no seu sentido
é confissao de fé que este mundo, assiro corno ele é, nao é o psicol6gico ou pseudo-espiritual, a festa reforça seu carater "cor-
verdadeiro mundo (kosmos), mas sua negaçio (caos) ou sua con- p6reo" e a ligaçao com os bens da terra . Contra urna reduçio
trafacçao: nao é a casa do homem, mas seu deserto ingrato. egofsta ( "somente para mim") , a festa afirma seu carater geral
A festa é a contestaçao do primado do mal e de que ele seja reali- e nao excludente. A verdadeira alegria é aquela que nasce dos
dade Ultima ; é a rebeliao contra seu poder perverso e definitivo, dois encontros: com os frutos da terra e com os irmaos. Onde
o sinal que da a certeza de que ele pode ser tirado do trono e urna destas condiçoes faltar, a alegria passa de fim a meio, de
vencido. Por isso a festa é a maior riqueza dos povos, sobretudo expressiio de vida a instrumento de satisfaçao. A alegria da festa
dos mais pobres, porque ela com seus ritos e seus mitos guarda e é, na realidade, a plenitude do ser em harmonia com as coisas do
condensa a semente mais fecunda de esperança e de Iuta da his- mundo e com seus habitantes, é o fruto do paraiso reconstru1do
t6ria humana. Enquanto se tem a capacidade de festejar ter-se-8 no qual o Adiio e a Eva de outrora, sfmbolos dos homens e das
também a capacidade de viver e de se esforçar. mulheres de todos os tempos, vivem reconciliados entre si, com
Num segundo momento a festa é a afirmaçao da qualidade o jardim e com Deus.
de vida, a definiçao do seu aspecto positivo, contra o negativo Em um terceiro momento, o mais qualificante, a festa é a
precedente. Mas qual é esta "qualidade" que a festa exprime, afirmaçao do fondamento ontol6gico da bondade do homem e da
através nao de conceitos, mas concreta e corporalmente? Embora sua significaç.ao. A rebeliao contra o poder do mal e a procla-
sejam muitos os termos que a descrevem, um deles parece-nos ser maçiio do triunfo do positivo sobre o negativo sao a voz do de-
mais importante: alegria "por ocasiao das tuas festas, tu te alegra- sejo impotente e enganador, ou sao o eco da verdade que vence
ras" ( Dt 16, 14) . A alegria da qual aqui se fala é bem diferente a mentita e vence o auto-engano? A festa revela toda sua pro-
da que habitualmente se entende em nassa sociedade opulenta. fundidade corno resposta positiva a esta pergunta; por ela a
O texto do Deuteronomio continua! "E ficaras alegre com tua vida humana tem um sentido para além das derrotas hist6ricas
festa, tu, teu filho e tua filha, teu servo e tua serva, o levita e de toda privaçao, nao porque preenchida subietivamente por
que vive em tua cidade, e o estrangeiro, o 6rfao e a viuva que cada um em particular, mas porque esta apoiada obietivamente
vivem em tua cidade" ( v. 14) . Comentando este texto o rabino no sagrado e pelo sagrado. Assiro, a festa niio s6 afirma a cxis-
Munk escreve: tencia do sentido, mas fixa ao mesmo tempo as condiçOes de sua
realizaçao. Ele cresce e floresce porque e se inserito em um hori-
Os homens devem corner carne e beber vinho, porque sao zonte diferente e que transcende o profano: o horizonte divino,
estas coisas que contribuem sobretudo para sua alegria. Mas o horizonte sagrado. A festa, através dos relatos mfticos e dos
enquanto n6s comemos e bebemos, é nosso dever cuidar do ritos ritualizantes, relembra e representa esta raiz fundamental,
necessario para o estrangeiro e a viuva, o 6rfao, isto é para
todo indigente. Quem fechasse a porta a sete chaves, comen- 1 cr. Le monde des pri~res, op. cit., 295.

212 213
segundo a qual o comportamento humano supera sua fragmenta- simbolicamente tres conceitos e atitudes fundamcntais: 1) os
riedade vencendo o caos e encontrando o kosmos: a ordem a frutos recolhidos sao de Deus, que é seu Senhor e patrao; 2) eles
força, a motivaçao e o modelo. A festa é realmente aboliçao 'da sao dados de presente ao homem para a satisfaçao de seus desejos
ordem constituida ( lembremo-nos das transgressoes das normas e para seu bem-estar; 3) tornando isto corno os "estatutos" dos
t1picas em cada festa) nao em razao de extravagàncias e do caos bens da terra, eles sao usufruidos nao de acordo com a logica de
mas em obediencia a urna ordem superior, mais pr6xima e mai~ posse e de compra, mas segundo a vontade de .Deus que os
fiel à ordem divina. A festa é o avesso do mundo, a sua recriaçio mantém. Quando Israel oferecia ao Senhor parte da propria co-
de acordo com o modelo divino. lheita, por ocasiao das tres importantes estaç6es do ano, reforçava
esta estrutura de convicçao e de escolha; confessava que o "pao"
e o "vinho" da terra prometida nao eram devidos ao seu proprio
As festas agrkolas e sua historici:r.açllo esforço, nem a particulares técnicas magicas que eles tinham,
mas à benevolencia criadora de Deus; e renovava seu empcnho
As tres festas principais de Israel ( pascoa, pentecostes e de condividi-lo em espirito fraterno. Dai a insistencia sempre
ta?ernaculos), segundo o testemunho unanime dos peritos, tem rcnovada do texto bfblico a fim de que nestes dias de festividades
or1gem agrfcola, e seu significado olio esci muito longe do de nao haja situaçoes de carencia, mas que todos tenham e desfrutem
cada festa, .corno acabamos de esboçar. Ligadas às mais impor- de tudo. "E ficaras alegre com a tua festa, tu, teu filho e tua
tantes ~olhe1tas das tres estaç6es produtivas do ano, elas exprimcm filha, teu servo e tua serva etc ... " ( Dt 16,14) . Esta insistencia
a alegria profonda do povo, guiado e nutrido por Deus. A pascoa sobre "pobres saciados" é antes urna conotaçao teologica do
celebra .a colheita da cevada na primavera; a festa de pentecostes que sociol6gica: Deus destinou os frutos da terra para a alegria
a colhe1ta do trigo no verao; a dos tabernaculos a dos frutos ·0 0 de todos ; por isso, se nao somente os ricos, mas também os
outono. De acordo com o costume religioso conhecido e testemu- pobres gozam deles, isto quer dizer que o seu reino esta se rea-
nhado quase universalmente, o cerne de cada urna destas festas lizando, que sua vontade vai-se concretizando. Condividir os bens
consistia na oferta de parte destas colheitas à divindade. O livro da terra nio é apcnas um imperativo social, mas é a pr6pria alma
~o Deuteronomio documenta expressamente esta pratica a prop6- do indicativo teologa! "amaras a Javé, teu Deus, com todo o teu
s1~0 da festa ,de ~tecostes e das cabanas, que, ao contrario da coraçao, com toda a tua alma, e com toda a tua força" ( Dt 6 ,5 ) :
pa~coa, que e ma1s lembrada e historicizada, as duas primeiras sendo que "amar a Javé" significa obedecer à sua vontade, aca-
detxam transparecer melhor seu fundo agricola antigo: "Celebra- tando-a e reproduzindo-a historicamente.
ras entao a festa das Semanas (pentecostes) em honra de Javé, Também o sacriffcio dos animais, que no templo de Jeru-
teu Deus. A o/erta espontànea que a tua mao fizer devera ser salém ocupava um lugar privilegiado, no fundo tem o mesmo
proporcional ao modo corno Javé, teu Deus, te houver abençoa- significado duplo das ofertas das primkias: reconhecimento do
do ....; celebraras a festa das Tendas durante sete dias ap6s ter re- senhorio divino sobre o reino animai e disponib;lidade de alimen-
colhido o produto da tua eira e do teu lagar... ; e ninguém se tar-se em espirito de co-participaçao e nao de compra: corno
apresente de ?1a~s vazias di~nte de Javé; cada um traga seu dom, dom para todos e nao corno privilégio de alguns. 2
conforme a bençao que Jave, teu Deus, te houver proporcionado•
(Dt 16,10.13.17). . 2 Esta concepçiio de sacriffcio se op()e, porta.nto, a interpretaç6es mes-
Que sentido tem urna oferta destas, expressao e fondamento qumhas, corno aquela de Renan, p. ex., que diz: "O sacrificio ~ o erro
mais velho, mais grave e mais diHcil de ser erradfoado, entre aqueles
da _festa e de sua alegria? Oferecer a Deus os produtos da terra que nos foram transmitidos pelo estado d.e loucura no principio da huma-
m;us do que u,ina autoprivaçao ( ren~ciar a alguma coisa par~ nidade. O homem primitivo (sem distinçiio de raça) achava que o modo de
da-la a Deus) e um gesto de autodefm1çao e dc reconhecimcnto: agradar às forças desconhecidas que o oercavam, era de ganhé-los corno se
ganham os homens, oferecendo-lhes alguma coisa. Ni.5$0 ele era multo coe-
os bens da ~e~~a. pcrtenccm ao Senhor, e os homens podem usa-los re!1te, urna vez que os deuses, que ele queria cativar, cram maus e interes-
corno beneficianos. Na essencia do gesto da oferta condensam-se sc1ros. Este absurdo impressionante, que a primeira manifcstaçio do bom

214 21.5
Israel tomou do ambiente semitico circunstantc as tres fes- ainda, radicalizando um dos seus aspcctos fundamcntais. Ofcre-
tas agrfcolas supramcncionadas. Mas, corno. é 6bvio, nio se ~­ ccndo a Deus parte dos seus produtos da estaçao, os primitivos
tou a rcproduzi-las passivamente, mas ~s. cm~u dc novo ~m ongi- reconhcciam-no corno pai e os aceitavam corno dons. lsracl aceita
nalidadc, enriquecendo-as com sua espmtualidade especlf1ca. Cos- esta l6gica, mas compreendendo melhor sua dinamica e exigC.ncias.
tuma-se usar para este processo de reinterpretaçao o termo histo- Para que os frutos da terra sejam verdadeiramente dons e bençios,
ricizaçao, entendendo com ele o fato de as ce~ebraç5es passarcm niio é suficiente acolhe-los como tais, mas sim condividi-los de acor-
a ser centralizadas nao mais em eventos natura1s, mas sobrc fatos do com um projeto de justiça e responsabilidade. Justiça e fecun-
hist6ricos particulares: a libertaçao do Egito na festa da pa~; didade da terra forrnam um "matrimonio indissolUvel" no qual
o dom da Tora na festa dc pentecostes; os seus frutos de alcgna os dois p6los se iluminam reciprocamente. A originalidade de
na festa dos tabernaculos. Que em Israel as festas agdcolas foram lsrael é ter superado urna visao puramente "natural" da natureza
historicizadas nao resta a mcnor duvida; mas é necessario entendcr e ter relacionado a abundancia dos frutos à liberdade de suas es·
corrctamentc este processo, quc nio é nem contraposiçiio ncm su- colhas, corno M. Buber muito bem intuiu e descreveu. 3
peraçao do scntido das festas agrfcolas, mas sua ulterior explicita-
çao e radicalizaçiio. O evento central da hist6ria hebraica é o
exodo da escravidao egfpcia, organizada sobre um unico tr{plicc A festa de pesa/J: o esplendor das origens
movimento de: safda/dom da Tora (ou aliança)/cntrada na Terra
Prometida. Israel é libertado da escravidao e é introduzido no
"pais belo e espaçoso" dc Canaii, mas esta entrada nao é automli- Pesa/:z é a maior festa judaica, nao somente do juda{smo p6s-
tica nem trocada, uma vez que entre a salda e a entrada se in- blblico, que lhe dedica urn tratado especial da Mishnah (Pesa/:zim),
tcrpé>e o monte Sinai, o local da aliança, onde a Tod é ofcrecida mas do proprio Antigo Testamento. Originariamente urna festa agri-
e aceita. Aqui esta o epicentro e o segredo de toda a hist6ria e cola, ela se tornou em Israel a comernoraçao por excelencia da
originalidade do povo judeu: a descoberta que a terra produziri libertaçao do Egito.
"leite e mel" em abundancia (d. Ex 3,8.17; Nm 13,27; Dt 6,3; Apesar de abundantes, os dados do Antigo Testamento nao
11 ,9 etc ... ) nao espontaneamente, mas somente se e à medida qu nos permitem reconstruir com precisao corno e quando se deu
Israel for fiel à aliança. Esta relaçao entre fertilidadc da terra e esta passagem. R. De Vaux, no seu estudo sobre Festas Antigas
obcdiencia à Tora é expressa limpidamente por um texto dcscon- de Israel, resume do seguinte modo suas pesquisas sobre a pesa/J:
certante corno Lv 26,3-6. Texto desconcertante porque os frutos,
dos quais fala, niio silo bens dc, quem sabe, certos mundos es- A Pascoa era provavelmente urna festa pré-israelita. A dos
peciais, mas sao os produtos normais das arvores dc qualqucr Azimos talvez fosse de origem canaanita, mas tornou-se israe-
rcgiao da terra. Mas para quc sirvam realmente para alcgria dc lita. Ambas eram celebradas na Primavera. Em urna certa
todos e se tomem sinais de comunhao cm vez dc dcstruiçio, pOe primavera deu-se urna esplendida intervençao de Deus, a li-
uma condiçao divina precisa: sercm cultivados e consumidos dc bertaçao do Egito, a qual marcou o infcio da hist6ria de Is-
acordo com a 16gica da aliança, isto é, reconhcccndo scu caratcr rael corno povo, e povo eleito de Deus, e se concluiu com
dc dom e concordando com seu destino univcrsal. sua instalaçao na Terra Prometida. As festas da Pascoa e dos
Se esta "historicidadc" é o aspecto peculiar da cxperiencia Azimos serviram de comemoraçao deste acontecimento domi-
israelita, compreende-se quc cla nio contradiga o sentido da festa nante da salvaçao. Este significado uniu-se muito rapidamente
- corno foi compreendida anteriormente - mas a esclarcça mais às duas festas, a cada urna de modo independente, segundo
as mais antjgas tradiçOes; mas este valor comum tornava qua-
senso religioso deveria ter jogado no lixo, foi transformada num ato de se inevitavel no futuro a uniao de ambas. 4
sujeiçio, uma espécie de homenagem do homem para com a divindade... •
(citado por R. De Vaux, Le istituzioni dell'Antico Testa~nto, Marletti, 3 M . Buber, Israele, un popolo e un paese, Miliio, 1964, lOs.
Turim, 1964, 433-454). 4 R. De Vaux, Le istituzioni del/'Antigo Testamento, op. cit., 473.
216 217
Deixando de lado as clifkeis raz5es hist6ricas para rcconstruir e o outto objetivo ( "as festas") ; a santificaçlio é um evento que
a ligaçio destas duas festas de primavera com a libertaçio do envolve nao somente o aspecto individual/espiritual, mas tamhém
Egito, resta o aspecto teol6gico fundamental que ja foi lembrado: o hist6rico/temporal. Por isso Deus nao santifica nem Israel nem
a celebraçao do novo evento niio cancela o sentido das festas o tempo separadameote, mas os dois juntos, nao podendo um
anteriores, mas o acolhe e aprofunda. desprezar o outro, pois corno Israel necessita do tempo, assiro o
Entre a nova pascoa hebraica que celebra a libertaçiio e as tempo precisa de Israel.
pascoas agrkolas, que celebram a fecundidade dos rehaohos e Um segundo elemento caracteristico da liturgia pascal da si-
dos campos maduros nlio ha justaposiçao oem contraposiç.ao, mas nagoga é a reza do hallel (SI 113-118) feita depois da tefillah da
manhii. As vezes estes salmos siio chamados de hallel egipcio,
nova compreeosao e reinterpretaçao.
a cont_ar do primeiro versfculo do salmo 114, que fala do brodo
Ja falamos do sentido da Pascoa e do seu dinamismo dc do Egao.
liberdade ao comentarmos o seder, o coraçio da liturgia familiar.s Um terceiro elemento que a distingue é a leitura de uma
Se nesta Ultima a celebraçiio de pesa~ é rica, cheia de fantasia e das cinco megìllot ( rolos ): o Cantico dos Cinticos. O elo cotte
de sugest6es, na sinagoga ela é essencial e concisa. este poema de amor e a pascoa parece ser baseado em um dos
A liturgia da manhii, do meio-dia e da tarde tem a mcsma pr6pr:os verskulos do Cantico, no qual o esposo compara sua
estrutura de cada dia, salvo algumas exceç5es: a ampliaçao da amada à "égua da carruagem do fara6" ( 1,9). Mas além desta

- béoçao centrai da te/illah, do hallel e das leituras especiais, liga-


das ao evento celebrado.
rela~iio su~rficial d~ texto, h~ ~ma razao mais profunda que
motiva a leitura do hvro do Cantico dos Canticos no tempo da
..l Uma bénçiio conhecida apresenta assim o sentido teol6gico
da pascoa:
pascoa. É a intuiçao de que na raiz da beleza e do amor cantados
nele e das express5es universais do humano esci a liberdade con-
J
... Se bendito, Senhor nosso Deus, rei do universo, que nos
escolheste entre todos os povos, nos distinguiste entre todas
cedida por Deus. Somente Deus, libertando o homem da escravi-
dao, o torna capaz daquele amor iluminado da amante e do amado
.: as linguas, nos santificaste com os teus mandamentos e que, no Cin?co dos Cinti.cos. Somente Deus com o " milagre" do brodo
-',. no teu amor, nos deste as festas para nossa alegria: este dia e da aliança proporCiona o dom daquela subjetividade simbolizada
--... da festa dos azimos, dia de nossa liberdade e dia de felici-
dade, consagrado a urna santa assembléia e à lembrança da
pelo "meu dileto" e pela "minha dileta" do Cantico.
,, ~ttos elementos caracterfsticos da celebraçiio da Pascoa siio:
- safda do Egito. Tu és quem nos escolheu, nos santificou a bénça~ sacerdotal, rese~vada aos kohanim; a oraçiio pelo orva-
acima das outras naç5es e nos deste corno herança, alegria lho (tej1llat fal), que, mais do que nunca substitui neste periodo
e jubilo. Se bendito, Senhor, que santificas lsrael e as festas.6 a. ~raçao pela chuva; a contagem do 'omer, que em hebraico sig-
nifica "medida ~ e cujo significado esta ligado à festa de pente-
O texto re6ne inteligentemente os aspectos naturais ( "este costes; e os assun chamados piyyufim, poemas liturgicos de cara-
dia da festa dos azimos")' os aspectos hist6ricos ( .. dedicado a ter popular, que acentuam determinados aspectos da celebraçao
uma assembléia santa e à lembrança da safda do Egito") e os da pascoa.
interpretativos da pascoa ("dia da nossa liberdade e dia de felici-
dade"), inseridos em um contexto de eleiçao e de santificaçio:
"se bendito, Senhor, que santificas Israel e as festas ". Note-se o A festa de shavu'ot: a o/erta das primfcias
binomio "Israel e as festas", no qual os dois termos siio colocados
no mesmo plano. A santificaçao - a volta das coisas à sua ver· . Pentecostes é a festa das primicias por excelencia, e a dos
dade - se realiza através dos dois p6los: um subjetivo ( "Israel") azunos (da pascoa ) nlio é outra coisa senao sua preparaçao, eo-
quadrando urna e outra o tempo da ceifa.7 A ligaçiio entre pascoa
5 cr. supra, sobrctudo às pp. 163-165.
6 Traduçio de E. Munk, Le monde des prières, op. cit., voi. lii, 309. 7 Cf. R. Dc Vaux, Le istituzioni dell'Antico Testamento, op. cii., 472.

218 219
e pentccostes cncontra-se na pr6pria raiz etimol6gica d~ta Ultima: lém ... Os govemadores, os chefes e tesoureiros do templo iam
pentecostes significa qiiinqua_gés~mo ( ~ubentende-se ~a) em re- ao seu encontro ... e sempre ao som da flauta subiam o monte
laçao à pascoa, que seria o prtmezro (dia). A observaçao vale tam- do templo ... Até o rei Agripa carregava urna cesta sobre os
bém para o nome hebraico shavu'ot, que quer dizer ~semana~": a ombros, levando-a até o patio do templo. Uma vez chegados
festa que se celebra depois de sete semanas a partlr do dia de ao patio do templo, os levitas entoavam o canto: "Senhor, te
pesaf?. Mas a ligaçao entre as d~as festas é definida sobretu.do exaltarei, porque me .libertaste e nao deixaste meus inimigos
pela contagem do 'omer, cuja prauca é testemunhada pelo Levitico alegrarem-se sobre mim" .9
com as seguintes palavras: "A partir do dia seguinte ao sabado, Quando o templo de Jerusalém foi destrufdo, a festa de pen-
desde o dia em que tiverdes trazido o feixe de apresentaçao - tecostes perdeu este carater agrkola e passou a acentuar o hist6-
com o rito de agitaçao (isto é a partir do dia depois da pascoa) rico, isto é, a festa do dom da Tora, zeman natan toratenu, corno
- contareis sete semanas completas. Contareis cinqtienta dias at~ reza a bençao central da tefillah. Mas com esta nova dimensao,
o dia seguinte ao sé timo sabado e oferecereis entao a J avé urna pentecostes nao renega a festa das primfcias, mas explicita sua
nova oblaçiio" (Lv 23,15-16). condiçao principal: a responsabilidade de realizar a justiça e a
Esta ligaçao entre as duas festas é importante porque ajuda solidariedade, sem a qual os frutos da terra, se transformam de
a compreender corno elas obedecem urna mesma 16gica teol6gica: bençao em maldiçao. No Deuteronòmio, 26,1-11 a festa das pri-
o reconhecimento de Deus como benfeitor da terra e como senhor mfcias é acompanhada de urna confissao de fé: "Meu plli era ara-
da hist6ria, como esta expresso na passagem admiravel de Dt 26, meo errante ... Os eglpcios, porém nos maltrataram ... Entao grita-
1-11. mos a Javé ... E Javé nos fez sair do Egito ... dando-nos esta terra,
Poucos textos corno este exprimem com sobriedade e profun- urna terra onde mana lei te e mel ". A terra onde "mana lei te e
didade o sentido das festas agrkolas e sua reinterpretaçao hist6rica mel " nao é a terra geografica de Canaa, mas a teologica, isto é,
realizada pelo povo biblico. Como qualquer urna das festas de aquela na qual se vive de acordo com a aliança, de acordo com a
primkias, a de pentecostes expressa a atitude consciente de Is- Tora. É esta, e nao a fertilidade da zona, que faz "manar leite e
rael, de que os frutos da terra sao dons de Deus: "Eis que eu mel "; é esta que, para além da metafora, produz frutos abun-
apresento as primicias dos frutos do solo, que tu, Senhor, mc dantes para alegria de todos, e nao para a satisfaçao de alguns.
deste".8 Até a destruiçao do Templo (70 d.C.) era esta a di- Pentecostes, de festa das prim1cias, tor.oa-se assim, por urna
mensao que prevalecia, e era celebrada com um ritual rico e im- integraçao na tural e aprofundamento, festa da T ora principalmente
pressionante, assim descrito pela Mishnah: para os rabinos e estudiosos do livro sagrado. Com esta finalidade
Como as primicias (bikkurim) eram levadas a Jerusalém? Os adornam-se as sinagogas de ramos verdes, que lembram tanto as
habitantes das cidades que formavam um distrito se reu- primkias corno, principalmente, a revelaçao do Sinlli 10 e a arvore
niam em um lugar, e passavam a noi te ao relento, sem entrar da vida do paraiso ( Gn 2,8) e do Livro dos Provérbios (3 ,18);
nas casas. De manha cedo o oficial chamava: "Vinde, suba- nas casas comem-se manjares especiais, principalmente leite e mel,
mos o monte de Javé" ( I s 2,3). Aqueles que habitavam per- que fazem recordar a Terra Prometida ("onde mana lei te e mel" )
to de Jerusalém, levavam figos frescos e cachos de uva, en- e a Tora ( "mllis desejavel que o ouro, ouro muito refinado; suas
quanto aqueles que habitavam mais longe traziam figos se- palavras sao mais doces do que o mel escorrendo dos favos ":
cos e uvas passas. A caminhada era aberta por um boi de SI 19 ,11 ); e dedica-se muito tempo à lei tura de passagens bfuli-
chifres adornados de ouro e com uma coroa de oliveira na cas pr6prias, corno Ex 19, Nm 28 e Dt 14.
cabeça, enquanto tocava-se a flauta até as portas de Jerusa- Nesta ocasiao le-se também a megillah ( "rolo") de Rute, urna
das mllis belas hist6rias, cheia de poesia e encanto. Sao talvez
8 E interessante observar a insistencia sobre o verbo "dar" (ntn), sobrc
o objeto direto •pafs/terra" ('ere$) e sobre os complementos dos termos 9 Bikkurim J.2-4.
•te" (li) e "nos" (lanu), que definem reciprocamente Deus e o homem: o 10 Cf. Sch. Ben Chorin, le judalsme en pri~re, op. cit., 139.
primeiro corno doador da terra, o scgundo corno aquele que dela usufrui.

220 221
-
dois, os motivos que levaram a esta escolha: o fato dc quc ncla Dcus os faz sair do Egito para fazer-lhc o dom da Tora. O exodo
se fala de ceifa e de messe, e principalmente o fato de sua pro- do Egito nao é urn fim em si mesmo, mas é ordcnado ao Sinai.
tagonista ser descendentc dos moabitas, os tradicionais adversa- Nele Israel passa da dependencia do fara6 à obediencia coram
rios de Israel. C.om esta narraçio tinha-se a intençio de sublinhar Deo; do viver para si, que é escravidao, ao viver segundo Dcus,
o universalismo do pentecostes judeu; isto é, a Tora embora dada que é liberdade; em urna palavra: da escravidao ao serviço.
a Israel, ela é para todos; sua promessa vale também para os Festa das prim.kias e da Tora, pentecostes celebra duplo
pagaos; quern, corno Rute, se dei.xa inspirar pela bondade, ja faz acontecimento: o da fecundidade da terra e o da obediencia do
parte do povo eleito. homem; e o celebra corno eventos separados, mas interdependen-
Mas ha ainda urna outra razao para a escolha do livro dc tes e correlatos: a terra é fecunda se o homem que nela vive
Rute: "para ensinar que a Tora s6 é dada através da pobrcza colabora de acordo com a justiça, isto é segundo a aliança. Co-
e do sofrimento ... Por isso no inkio do livro de Rute esta es- raçao justo e frutos abundantes sao dois p6los necessarios e in-
crito: 'no tempo em que os J ul.zes govemavam houve no pafs substitufveis. Somente do seu encontro floresce a alegria da festa;
urna fome' ". 11 A Tora é a verdadeira resposta à "fome", ela é a somente do seu casamento nasce o canto do parafso.
Unica capaz de vence-la. De fato, onde na terra se vive de acordo
com a Tora, isto é, conforme o c6digo da aliança, coma por Rute, Se n6s enchessemos o oceano de tinta,
ha "comida à vontade" (d. Rt 2,14) para todos. A multiplicaçao se transformassemos em penas todos os filamcntos das crvas,
dos paes, narrada pelos evangelistas (Mt 14,13-21; Mc 8,1-9 se o mundo todo fosse de pergaminho
etc... ) nao podia ser vista também por este angulo? e todos os homens fossero escritores por profissao;
Alérn de ser conhecida corno festa das primfcias e da Tora, para descrever o amor de Deus
pentecostes recebe também o nome de 'a!jeret, "conclusao", sc- nao bastaria a tinta do oceano
gundo o significado da palavra hebraica. O porque deste nome nero o pergaminho seria suficiente,
é duplo: pcimeiramente porque a festa de shavu'ot, ern nivei agri- mesmo que fosse estendido de Horizonte a horizonte. 13
cola, termina o ciclo das ofertas primiciais, iniciado com a ceifa Este hino, cantado antes da leitura da Tora, e atribufdo a um
da cevada e com a festa das ma!J!jOt; mas sobretudo porque, em autor medieval do século XI, é a sintese mais eficaz da ciqueza
nfvel hist6rico, condui o sentido da pascoa, que se consuma no e da beleza da festa de shavu'ot, festa das primfcias e do dom
doro da Tora. Eis com qual eficacia Maimonides exprime este Ul- da Tora.
timo aspecto:
(para chegarmos a shavu'ot), contamos os dias que nos sc-
param da festa precedente (da pascoa), do mesmo modo co- A festa de sukkot: a alegria da colheita
rno alguém, que espera um grande amigo num dia marcado,
conta os dias e até as horas. O motivo porque entre o anivcr- Sukkot, geralmente traduzido corno tendas ou tabernaculos
sario de nossa partida do Egito e o do dom da Tora n6s é a festa por excelencia das festas da peregrinaçao e da colheita
contamos os dias que passam da oferta do orner é o seguintc: do ano (d. Lv 23,39; Nm 29,12; Ez 45 ,25; lRs 8,2.65). Defi-
o dom da Tora é a finalidade do exodo do Egito.u nida por Flavio Josefo corno "a festa mais santa e maior dos
hebreus " 14 e com sernelhantes palavras por Plutarco,15 ela se carac-
O dom da Tora nio é um momento que vem logo ap6s à teriza por urna grande alegria popular, que se estende por sete
libertaçio do Egito ( em primeiro lugar Deus faz Israel sair e dias e termina nurn oitavo dia, significativamente chamado de
depois lhe da a Tora) rnas é sua razao interna, que a motiva: simlJat Torah, "Alegri a pela T ora e para ela ". Se a palavra-chavc
LI Em E. Munk. Le monde des p·ières, op. cit., voi. Ili, 327-328. 13 Idem. 87.
12 Em W . W. Simpson, Light and Reioicing. A christian's Understanding 14 Em R. de Vaux, Le istituzioni dell'Antico Testamento, op. cit., 476.
of ,'Jewish Worship, Christian Joumals Ldt, Belfast, 83. 15 Idem.

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da pesai) é bodo/libcrdade e a de shavu'ot, dom da Tora, a pa- No pr6prio evangelho de J oao ( 7 ,37-39) enconttamos teste-
lavra-chave de sukkot é alegria por causa da Tora, como est.a dito munho do rito da libaçio de agua, e o clima de festividadc era
explicitamente na b&çio centtal da tefi/lah. Antigamente, nesta tal, que, segundo a Mishnah, "quem nao viu a alegria de tocar a
festa as moças de Jerusalém safam de vestes brancas e encontta- agua (simbat bet ha-sho'evah) jamais experimentou cm sua vida
vam-se nas vinhas para dançar cantando: "Jovem, levanta a vista o que seja alegria " (sukkah 5,1 ). O rito se desenvolvia da scguinte
e ve aquda que queres escolher". 16 E DO tempo do Novo Testa- maneira: os sacerdotes carregavam, por toda a noite, a agua cm
mento os homens religiosos e importantes da cidade dançavam no garrafas douradas, da fonte de Siloé até o atrio do templo, acom-
atrio do templo, cantando e segurando nas maos tochas acesas.11 panhados pela populaçao em festa, que trazia tochas e lanternas,
Festa da Ultima colheita do ano, sobretudo do vinho e do dançava, cantava, recitava salmos de peregrinaçio ( 124-1.34) e
6leo, suldeot era celebrada com um rirual muito rico e originai. tocava instrumentos musicais. A agua era utilizada, de manha,
Tinham particular importincia o assiro chamado rito de /u/av e a corno libaçao durante o culto da manha. De origem incerta e re-
/ibaçao da agua. mota, talvez este rito no inicio teria servido para invocar e tornar
O rito de lu/av esta ligado ao mandamento do Levitico, se- favoraveis o dom de urna agua abundante. Este rito desapareceu
gundo o qual a festa das tendas deve ser celebrada do scguinte com a destruiçao do templo, mas ficaram leves traços na liturgia
m?'1o: "No primeiro dia, tornai frutos de cedro, ramos de palma, da sinagoga, na assim chamada tefillah geshem, oraçao pela chuva.
feIXes de mirto e dos salgueiros das ribeiras, e alegrai-vos diante Mas corno as outras festas de peregrinaçao também esta de
.. do Seohor, vosso Deus, durante sete dias". 18 Fiéis a estas normas, sukkot passou em lsrael por urna releitura teol6gica e urn apro-
os peregrinos se dirigiam ao templo de Jerusalém, trazendo na fundamento sapiencial. A Ultima festa da colheita, depois da qual
mao esquerda um cedro ( em hebraico 'etrog) e na mao direita vem logo o inverno, tinha mais necessidade do que as outras de
urn ramo de palma ( em hebraico lulav) entrelaçada com mirto e acentuar o sentido de dependència do homem dos frutos da terra.
salgueiro; e cantando o hallel (SI 113-118) os agitavam no ar Se estes &utos tivessem sido abundantes, o inverno passarla sem
na dircçio dos quatto pontos cardeais. Do templo, este rito pas~ maiores transtornos, do contrario era de se esperar que houvesse
sou para a sinagoga, onde é ainda conservado corno um dos ritos fome e ameaças. Mas para Israel, marcado pela esperiencia hist6-
mais alegres e populares, com interpretaç5es simb6licas e ricas de rica da revdaçio divina, a colheita nao era a resultante de forças
sabe?oria. Segundo urna destas interpretaçOes, o cedro, a palma, fortuitas ou naturais, mas dom de Deus e fruto da logica da
o muto e o salgueiro representariam quatto diversos tipos huma- aliança, l6gica de submissao e dc serviço à sua vontade.
.O.
?os . ~o, que tem gosto e cheiro, representa aqueles que tcm É esta l6gica que a festa de sukkot faz aparecer, através de
urna série de elementos simb6licos e rituais.
mteligenaa e bondade; a palma, que tem gosto, mas nio cheira,
aqu_eles que tem inteligencia, mas nao tem bondade; o mirto, que O primeiro elemento é a armaçio de tendas pequcnas -
cheira, mas nao tem sabor, representa aqueles que tem bondade, feitas em casa - sobre os terraços ou em volta das sinagogas,
mas sao scm inteligencia; e finalmente o salgueiro que nao tem para lembrar o caminho de Isracl através do deserto. Originaria-
odor nero sabor reprcsenta aqueles que nio sao inteligentes nem mente era um pequeno refUgio feito de ramos apanhados pelos
tem bondade. camp_oneses nos vinhedos e pomares durante a vindima, a tenda
De ~cordo com ou?'a interpretaçio, lulav e 'etrog represen- adquire urn carater simb6lico e de valor teol6gico: "habitareis
tam as ~versas categonas de Israel e do genero humano, que, durante sete dias em cabanas. Todos os naturais de Israel habi-
embora diferentes umas das outras, formam todavia urna s6 rca- tarao em cabanas, para que os vossos descendentes saibam que eu
lidade e unidade. fiz os filhos de Israd habitar em cabanas, quando os tirei da
terra do Egito, eu sou Javé, vosso Deus" (Lv 23,42-43). Diante
16 E~ R. de Vaux, Le istituzioni de/l'Antico Testamento, op. cit., 476. da colbeita, Israel se p0e com a mesma consciencia amadurecida
O autor mterpreta corno festa dos tabemaculos Jz 21,19.21. durante a travessia do de~erto: consciencia de haver vencido "a
17 Idem. 476.
18 Lv 23,40. A traduçio Coi feita dirctamente do texto hebraico. sede e a fome" graças À Shckinah, de tcr enttado no pafs "belo

224 225
a· Ilnld cm oraçlo
e espaçoso" (Ex 3,8) por dom de Deus e niio pela pr6pria inte· Israel esta sob a proteçao da Shekinah, corno os filhotes do
ligencia. ninho sob as asas da mae. A colheita, antes de ser fruto do tra-
Esta experiencia de gratuidade e de dependencia radical dc balho, é sinal da benevolencia desta Shekinah; eia é conservada e
Deus marcou de tal modo ao povo biblico, que ele fez do deserto utilizada, niio corno fonte de segurança, mas corno dons a serem
urna imagem quase arquétipa, o simbolo por excelencia do en- compartilhados fraternalmente.
contro com Deus (d. sobretudo o profeta Oséias). Para ele, ls-
rael é chamado a viver da gratuidade divina niio apenas no de- A reinterpretaçiio de sukkot através da categoria do deserto
serto, mas também quando suas colheitas forem abundantes e seus e pelo livro de Coélet, nao constitui, portanto, um redimensiona-
celeiros estiverem cheios. lmagina-los corno se fossem fruto do mento de seu carater festivo e popular, mas um novo embasa-
trabalho de suas miios seria idolatria, tal corno se Israel pensasse mento originai e radical: se a alegria do povo é grande pela co-
que sobreviveu no deserto às custas de seu talento. lheifa abundante, o é ainda maior porque isto lhe é sempre dado
O outro elemento de interpretaçao é dado pela leitura do de nt>vo. A raiz profunda da alegria niio é a colheita enquanto
Eclesiastes ou Coélet: "vaidade das vaidades, tudo é vaidade" ( 1, tal, mas o amor divino do qual a Tora é proclamaçao e tes-
2). Aparentemente pode ser estranho ler esta megillah no tempo temunho. E por este motivo que os sete dias festivos de sukkot
de pentecostes, festa alegre e popular, mas, contrariamente à apa- terminam com um oitavo, chamado siml:zat Torah ("a alegria pela
rencia, ele niio é um livro de pessimismo, mas de sabedoria hu- Tora"): isto é, a alegria cujo fundamento é a Tora.
mana e espiritual. :f: verdade que eosina que "tudo é vaidade", A sim/J.at Torah, "o dia mais alegre de todo o ano" ,~ com-
mas porque este "tudo" esta separado de Deus. De fato le-se ali: preende dois rituais importantes. O primeiro consiste na procla-
"Estou convencido de que a felicidade é para aqueles que temem maçiio final e inicial do sofer Torah: le-se a ultima parte do
a Deus, porque o temem, mas niio bavera felicidade para o fmpio. Deuteronomio, e imediatamente depois as primeiras paginas do
Ele niio tera longa vida; pelo contrario, sera igual à sombra, Genesis, para niio interromper o ciclo da Tora, e para afirmar
porque nao teme a Deus" ( 8,12-13). Coélet ensina o caminho que eia nio é um "fardo ", mas uma "coroa" que se quer carregar
do "temor de Deus", isto é, do abandono à sua vontade, do com alegria para o resto da vida. O leitor que proclama a seçio
mesmo modo que a teologia do deserto, ele inculca a fé na pre- final do Deuteronomio recebe o nome de l:zatan Torah ( "esposo
sença da Shekinah. Reforçado por ocasiiio da colheita mais abun- da Tora") , enquanto aquele que tem o privilégio de ler a pri-
dante, este ato de fé impede que Israel se deixe vangloriar pela meira seçio do Genesis é chamado de /J.atan bereshit ( "esposo do
riqueza acumulada e o leve a confiar exdusivamente em Deus, Genesis" ) . A simbologia é dara: a Tora é corno urna "esposa ",
corno exprime o hino com o qual se abre a liturgia sinagoga! da qual I srael s6 se torna "esposo" a pleno dtulo, quando a assi-
dos tabernaculos: mila do principio ao fim. Por isso somente o leitor do Ultimo
trecho recebe o nome de /J.atan Torah, enquanto o leitor do Ge-
Que a tua vontade, Senhor meu Deus e Deus de mcus pais, nesis é chamado simplesmente de /J.atan bereshit.
seja a de deixar que tua Shekinah habite em nosso mcio.
Estende sobre n6s o tabernaculo de tua paz, Mas o momento culminante da festa se da quando se fazcm
sobrc n6s, que somos fiéis ao teu preceito sete voltas em procissiio ( hakkafot, voltas ) em tomo da sinagoga.
de armar o tabernaculo T odos _os rolos conservados na Arca siio tirados dela e carregados
com o qual afirmamos com temor e com amor nas maos, enquanto a multidiio, principalmente as crianças dan-
a unidade de teu nome santo e bendito. çam e agi tam bandeirinhas com dizercs corno este "vibrando de
Prot.ege-nos com a luz da tua gl6ria, pura e santa, alegria, por causa da Tora". No Estado de I srael csta se impondo
que se estenda sobre as nossas cabeças recentemente o costume de levar os rolos da Tora nos lugares
corno a aguia estende suas asas sobre o ninho ...19 publicos, cantando e dançando a céu aberto.
19 Traduçio de J. H. Hertz, The Authorized Daily Prayer Book, op.
cit., Stl. 20 W. W. Sìmpson, LJght and Rejoicing, op. cit., 89.

226 221
Quando os rolos da Tora sio lcvados cm procissio cm voltn ccdcntes e dando a toda comunidadc judaica a possibilidadc dc
da sinagoga, des siio acompanhados de preces em forma de ladai- conhecer com exatidio o infcio dos mescs e das fcstas:
nha feitas de frascs bfblicas mais ou mcnos literais. Deste modo,
através do canto, da oraçio e da dança, o povo exprime sua R. Zcra disse: ...agora conhccemos muito bem o sistema
familiaridade com Deus, cuja vontade de amor inclui todos os para fixar o infcio da lua nova, mas apesar de tudo conti-
frutos da terra, e cuja palavra de salvaçio, revelada na Tora, é nuamos a observar os dias fcstivos ... Mas se agora conhccc-
fonte de alegria e de vida. mos muito bem o sistema de fixar o infcio da lua nova, por
que ainda observamos dois dias? A razio é que recebemos
na Palestina este cnsinamento: cuida das tradiçOes que te
O acréscimo de um novo dia festivo na diaspora foram transmitidas ( Bezah, 4b).
O Talmud justifica o perpetuar-se deste costume através do
A festa da pascoa dura sete dias, desde a tarde do dia 15 principio a respeito da Tradiçio: "Cuida das tradiçOes que te
de Nisan até à tarde do dia 21; a de pentecostes, somente um foram transmitidas •.
dia, o dia 6 de Sivan; a dos tabemaculos durava oito dias, de
15 a 21 de Tishri. Estas datas valem someote para o Estado de Atualmente, o dia festivo adicional ainda é observado pclas
Israel, e, antigamente para a comunidade que residia em 'Eres comunidades ortodoxas, enquanto foi abolido pelas comunidades
Yi~ra'el. · reformadas, que o consideram como duplicata inutil.
Na diaspora, porém, a pascoa dura oito dias; pentecostes,
dois; e a festa dos tabernaculos nove dias; isto quer dizer que a
cada festa foi acrescentado um novo dia, chamado Y om tov sheni AS FESTAS A USTE RAS
shel galuyot, o "segundo dia festivo da diaspora n.
O motivo desta discrepincia, entre a pratica lirurgica da
diaspora e a da patria-mie, encontra-se na comple:xidade do ca-
lendario hebraico e de seu ciclo duplo: lunar e solar. Sendo as Além das festas de peregrinaçio, o ano lirurgico judaico é
festas hebraicas de origem agricola, e obedecendo, corno todas as marcado pela rosh ha-shanah (ano novo) e yom kippur (dia de
festas antigas, ao ciclo lunar, para marcar sua data era necessario expiaçio ), dois acontecimentos particularmcnte solenes e impor-
determinar com exatidio o infcio do novo mes. Antigamente isto tantes, que, por seu carater penitcnciai, sio denominados • festas
era verificado empiricamente, através da observaçio direta do sur- austeras• ou "de austeridade ". Comparando-se com as festas pesa/:i,
gir da lua nova. Depois esta tarefa foi assumida pelo patriarca shavu'ot e sulekot, sio duas as diferénças principais: nio se refe·
palestino, que, uma vez definido o infcio do novo mes, comuni- rem, como estas wtimas, a fatos particulares hist6rico-naturais,
ca~a-o a todas as comunidades através do acender de fogueiras-si-
nem sao dominadas por um espfrito de festividade, mas pela cons-
nais, repassadas de um monte ao outro do territ6rio judeu. ciencia e pela confissio dos pr6prios pecados.
Este método. porém, era impossfoel de ser praticado pelas A categoria principal, expressa e subcntendida pela rosh ha-
com.~~ades da diaspora, ~mo, por exemplo, as do Egito e da shanah, pela yom kippur e pela teshuvah ( que literalmente signi-
B~bilorua. P~a estas comurudades eram enviados emissarios que, fica "volta") com seu duplo significado de: consciencia de ter
nao conscgumdo chegar a tempo em todas as comunidades, so- quebrado a aliança e vontade de restabclece-la; consciencia da in-
bretudo nas mais retiradas, tornou-se necessario criar um dia fes- fidelidade à Tora, e voltar a se submeter à sua autoridadc.
tivo adicional, o yom tov sheni shel galuyot. Pilastra insubstitufvel tanto da tradiçao hebraica corno cristi
Este costume permaneceu, mesmo quando no século IV da a teshuvah afirma que o m!ll nao pcrtence, por erro ou fatalidade:
era cristi, o patriarca Hillel II publicou um calendario baseado ao projeto da criaçio, mas à responsabilidade humana que, corno
nos calculos astronomicos, ficando assim superados os métodos prc- o gera através da desobcdiencia, assim pode cancela-lo através da
228 229
fidelidade de uma nova obediencia. De acordo com a insuperavel Rosh ha-shanah
r
pagina do Genesis, cap. 3, Deus expulsou 'Adam do paraiso por
motivo de sua desobediencia, e fechou suas portas para que ele Israel, corno outros povos antigas ou oontemporancos conhecc
nao pudesse mais voltar ali. A teshuvah é a esperança - que é diversos ciclos anuais. Rosh ha-shanah é um dos anos-novos dos
certeza - que estas portas nao estao irremediavelmente fechadas; judeus, o religiosamente mais determinante.23 Termo usado a par·
que 'Adam, imagem de todo ser humano de todos os tempos, tir da Mishnah, significa nao tanto o inicio cronol6gico do ano
pode passar novamente por ela, e que a beleza da criaçao pode quanto seu conteudo fundamental. Co~? .nas outras. religi5es, nele
brilhar novamente. o inicio tempora! é metafora de um m1c10 ontol6gtco, atemporal.
Rosh ha-shanah e yom kippur - um celebrado no dia pri- Por este motivo, rosh ha-shanah lembra, em primeiro lugar, a
meiro de tishri (setembro/outubro), o outro no dia dez - for- criaçao do mundo, o bereshit bara' 'Elohim et ha-shamaim we-et
mam juntos, no periodo que os separa, os assiro chamados 'aseret ha'arez (Gn 1,1) e a sua bondade constitutiva, o wayar' 'Elohim ...
yeme teshuvah os "Dez dias penitenciais", e sao chamados yamin we-hinneh tob me'od (Gn 1,31): "Deus vilu ... e era muito bom".
nora'im, "Dias terrfveis" ou "Dias de temor", porque neles se Os anos q~e passam no ritmo dos calendarios, nao sao embala-
decide a pr6pria posiçao a favor ou contra Deus, a serviço da gens vazias nem ameaçam a exist@ncia humana, mas dons e pala-
sua palavra criadora ou da pr6pria vontade destruidora: vras ricos de significado. Todo ano novo, corno na primeira ma-
nha da criaçao, Deus faz o mondo de novo e o confia ao homem,
No rosh ha -shanah todos os habitantes do mundo passam para que colaborando possa aproveitar-se dele e dele desfrutar.
diante de seu criador, como as ovelhas diante de seu pastor. Mas rosh ha-shanah além da criaçao é também o inkio dos eventos
Tres livros sao abertos, nos quais se le o destino do Bom, salvfficos: é no dia de rosh ha-shanah que Deus se recorda de
do Mau e de quem nao é bom nem mau. O nome do }usto Sara, que lsaac é gerado e que Ana da à luz Samuel etc ... Ele é,
esta escrito no Livro da Vida enquanto o do mau é riscado portanto, a afirmaçao de que a raiz do tempo nao se encontra no
dde. Aqueles que nao sao bons nem maus da-se-lhe um prazo tempo, mas no agape de Deus que o quer e cria. Compreendido
de dez dias até o yom kippur. Estes dez dias nos quais se neste nfvd, o tempo é "salvaçao", revela sua dimensao de valor e
decide o destino da maior parte da humanidade sao chama- de sentido; do contrario, ele é "perdiçao ", isto é, desespero e
dos yamin nora'im. Dias terriveis. 21
vazio.
Dada a importancia destes yamin nora'im, prepara-se para Além de rosh ha-shanah, o ano novo é também chamado de
eles antecipadamente e com oraç5es especiais chamadas selif:iot yom teru'ah, dia do soar do shofar, chifre de carneiro, que antiga-
"invocaçoes penitenciais "' rezadas durante todo o mes de ,elul, mente era usado para convocar os habitantes de um lugarejo ou
que precede tishri. O verskulo 3 do capitulo 6 do Cantico dos de urna cidade. No ambito lirurgico, o sho/ar torna-se o simbolo
Canticos diz: " 'ani le-dodi u-dodi li": "Eu sou para o meu dileto da voz de Deus, que, corno no monte Sinai (cf. Ex 19,16), se
e o meu dileto é para mim ". Lido acrosticamente, as iniciais desta revela a seu povo, obtendo dele sua obediencia e fidelidade: "Tudo
quadra formam a palavra 'elul. Este modo sugestivo serve para quanto o Senhor ordenou, n6s o faremos e o ouviremos ".24 Por
inculcar a idéia de que a festa de rosh ha-shanah era o lugar de meio de seu som, triste e penetrante, o povo judeu é convocado
encontro e de amor entre Deus e o homem. 22 de novo ao monte santo para renovar sua aliança. Segundo M.
Maimonides o soar do sho/ar é corno urna voz que assiro fala
aos presentes:

23 Para os outros anos-novos, cf. Tishri, op•. cit., 13.


24 Para t•aduçiio e comentario deste versfcuJo, traduzido de modo ~ì­
21 Citado em Tishri. Textes pour servire à la préparation des /ltes de verso das Bfblias cristiis, cf. E. Munk, La voix de la Torah, Comment01re
Rosh Hashanah, Kippour et Sukkoth, ed. des E. I. F., Paris, 1945, 14. du Pentateuque. L'Exode, Foundation Samuel et Odette Lévy, Paris, 3! ed.,
22 Cf. E. Wiesenberg, s. v. 'Elu/, na Encyc/opedia /udaica, Jerusalém, 1980, 294-295.
1971, 690.
231
230
V6s, que estais dormindo, acordai, acordai do vosso sono! para serem examinados sobre suas aç5es, tendo por base o c6digo
V6s, que estais sonolentos, despertai do vosso torpori Exami- da aliança. Este "jufzo" nao é para condenaçio, mas para a con-
nai vossas aç5es, fazei penitencia e lembrai-vos do vosso cria- versao e o perdao: "Certamente nao tenho prazer na morte do
dor. V6s, que tendes esquecido a verdade perdendo-vos nas impio, mas antes, na sua conversao, em que ele se converta do
loucuras do tempo, e durante todo o ano errastes no vazio e seu caminho e viva (Ez 33,11). Deus " julga" para que a beleza
na vaidade, sem proveito e sem vos salvardes, pensai em vos- da sua criaçao nao fique ofuscada pelo pecado e possa usufruir
sas almas. Aperfeiçoai as vossas obras e os vossos caminhos. dela totalmente; para que o homem "fora do paraiso" volte de
Abandonai, cada um de v6s, o caminho do mal e os maus novo para "dencro ,, dele, habitando-o com alegria. Esta ligaçio
pensamentos .25 inseparavel entre origem do mundo e anuncio do juizo é subli-
Um terceiro nome para rosh ha-shanah é yom-zikkaron, dia do nhada por todos os textos de rosh ha-shanah, sobretudo por aquele
"memoria! " ou da "recordaçao ", corno esta expresso na bençao final acompanhado do som do shofar:
centrai da tefillah: "SC bendito, tu, que santificas Israel e o dia Hoje é aniversario da origem do mundo; hoje, Deus convoca
do memoria! ". Rosh ha-shanah é o dia no qual "se recorda ": mas ao seu tribuna! todas as criaturas da terra, seja corno filhos,
quem e o que recorda? Nao é o homem que "se recorda" de seja corno servos ... T u te lembras de tudo que aconteceu no
Deus, mas antes, Deus que "se recorda" do homem. Este aspecto munda, tu premias as criaturas dos tempos mais remotos, tu
surpreendente é sublinhado por todos os textos desta festa, prin- conheces todos os mistérios e segredos da criaçao; nada é
cipalmente pelos textos blblicos: Go 21 ,1-4 e l Sm 1,19-20, lidos esquecido ou oculto diante do trono do teu esplendor, ne-
no primeiro dia e Go 22,1 e Jr 31,20, lidos no segundo dia. nhum ser foge de tuas vistas. O teu olhar, 6 nosso Deus
Mas o que quer dizer Deus se recorda do homem? "O Senhor Eterno, se estende até o firn dos séculos. Tu estabeleceste a
visitou Sara, corno havia dito e fez em Sara o que havia prometi- lei da "Recordaçao" para passar revista a todos os seres.
do. Sara concebeu e deu à luz e a Ahraao, um filho na sua ve- Desde os primeiros tempos declaraste que hoje é aniversario
lhice, no tempo em que Deus havia fixado (Gn 21 ,1 ). A "lem- da criaçio ... :E: urna lei para I srael, um decreto do Deus de
brança" de Deus é o amor criador que acolhe e socorre. sustentan- Jac6. Neste dia toda criatura é julgada e destinada à vida ou
do no deserto da esterilidade o milagre da fecundidade. :E: certo à morte ... Feliz aquele que nao se esqueceu de ti, o filho de
que também o homem deve se "recordar" de Deus, mas a recor- Adao que p5e em ti a sua força! Pois aqueles que te pro-
daçao do homem é a "recordaçao de Deus" : ele nao deve esque- curam jamais desfalecerao, aqueles que esperam em ti nao se
cer que Deus "se recorda" dele: ama-o e o protege, fazendo-o envergonharao jarnais.26
repousar em "verdes pastagens" e conduzindo-o "às aguas tran-
qiiilas" ( cf. SI 2 3 .2ss ). No que diz respeito à liturgia de rosh ha-shanah, sao tres os
A "recordaçao do homem é aceitaçiio da "recordaçao" dc elementos tipicos principais que a caracterizam, esclarecendo seu
Deus, abandono à sua surpresa e às suas exigencias: sentido e o que lhe é especifico: a tefillah, o musa/ e o soar do
shofar. A estrutura dos dois primeiros é a mesma de toda tefillah
Sera Efraim para mim um filho tao querido, e de todo musa/; mas os textos em forma eucol6gica acrescidos
urna criança de tal forma preferida, sao tantos, que nao é facil encontra-la.
que cada vez que falo nele A primeira bençio da tefillah é enriquecida de urna oraçio
quero ainda lembrar-me dele? pela vida:
.:E: por isso que minhas entranhas se comovem por ele,
que por ele trans borda minha ternura (Jr 31 ,20) . Conserva-nos com vida, 6 rei que amas a vida, e inscreve-
nos, por teu amor na arvore da vida;
Enfim rosh ha-shanah é também chamado yom ha-din, dia de
jufzo, no qual todos os homens sao chamados pelo J uiz divino 26 Traduçio cm R. Aron, Cosi pregava l'ebreo Gesù, Marietti, Casale
Monferrato, 1982, 167-168.
25 Em A E. Millgram, /ewish Worship, op. cit., 239.

232 233
enquanto a intermediaria é enriquecida com urna longa invocaçao
à soberania de Deus:
começar o culto da manha, corno convite à teshuvah até o dia do
yom kippur.
1

Desde a revolta de Bar Kokhba ( 13.5 d.C.) o soar do shofar


r
Deus nosso, e Deus de nossos pais, que tu reines na tua gloria
sobre todo o universo, que sejas exaltado sobre toda a terra ... foi transferido para o culto dentro da sinagoga, para evitar que
de modo que tudo que foi feito, conheça que foi feito por ti; os romanos o interpretassem corno instigaçio à revolta. Atualmen-
te ele é tocado durante a celebraçao do musa/, respectivamente
e tudo que foi criado, saiba que foi criado por ti; e tu.do que depois da reza de malkuyot, zikronot e shofrot.
respira possa dizer: "0 Senhor Deus de Israel é rei e seu
dominio se estende sobre todo o universo. Deus nosso, e Finalmente, urna caractedstica peculiar de rosh ha-shanah é a
Deus de nossos pais, santifica-nos com os teus mandamen- cerimonia chamada tashlik ( " tu lançaras" ), uma procissao feita
tos e torna-nos participantes da tua Tora . Purifica os nossos no primeiro dia da festa, antes do par-do-sol, às margens de um
coraçé>es para que possamos servir-te na verdade, porque tu, rio a fim de jogar ali os pr6prios pecados, de acordo com as
na verdade, és Deus e a tua palavra é verdadeira e dura sem- palavras de Miquéias: " .. .laoçara no fundo do mar todos os nossos
pre. Sé bendito, Senhor. rei de toda terra, que santificaste pecados! Concederas a Jac6 a fidelidade, misericordia a Abraao,
Israel e o dia da Recordaçao" .27 corno juraste a nossos pais desde os dias de antanho" ( 7 ,19-20).
Tendo eles chegado à margem, recitavam-se os salmos 33 e 130,
A tefillah é seguida de urna outra oraçao conhecida corno juntamente com esta oraçao:
'Avinu malkenu ( "nosso Pai, nosso rei"), urna ladainha de 44
invocaçé>es, muitas delas atribufdas a R. Akiba, através das quais Ninguém como tu, 6 Onipotente, suporta os pecados e per-
se dirige a Deus, corno "nosso Pai e nosso rei": doa a rebeliao. O Senhor nao guarda raiva, porque ele se
compraz em ser clemente.
Nosso Pai, nosso rei, n6s pecamos contra ti. Ele vira ao nosso encontro, tera piedade de n6s, tirarli os
Nosso Pai, nosso rei, olio temos outro rei além de ti. nossos pecados e lançara nas ondas do mar as nossas iniqiii-
Nosso Pai, nosso rei, trata-nos com benevoléncia por amor dades . Que elas sejam lançadas num lugar do qual elas ja-
de teu nome. mais poderao voltar, nem poderao ser mais contadas, nem
Nosso Pai, nosso rei, faz que comecemos um ano novo e jamais lembradas.29
feliz ...
Nosso Pai, nosso rei, sé bom para conosco e responde- Segundo o Zohar "tudo aquilo que é jogado nas profundezas
nos ... ".28 esta perdido para sempre" .30 Lançando simbolicamente os pr6prios
pecados na correnteza do rio, a comunidade expressa seu desejo/
Um segundo elemento caractedstico de rosh ha-shanah é vontade de renovar-se profundl}mente, separando-se do pr6prio
musa/, no qual sao inseridas trés oraçé>es conhecidas como mal- passado de pecados.
kuyot ( "soberania") zikronot ( "recordaçé>es") e shofrot ( "som Rosh ha-shanah tem muitos significados: festa da cnaçao,
do shofar"): a primeira desenvolve o tema da realeza divina, a dos acontecimentos salvllicos, do jufzo e de ano bom. Entretanto
segunda o da sua recordaçao/amor por Israel; a terceira, o tema eles nao se opé>em, nem se justap0em, mas sao acentuaçé>es de
de alguns eventos da hist6ria da salvaçao. Sao oraçé>es muito lon- urna Unica intuiçao: que o tempo, vivido de acordo com Deus,
gas, quando se lembra que a liturgia da manha de rosh ha-shanah nao é ameaça, mas sede do bom senso. Por este motivo rosh ha-
dura normalmente seis horas. shanah, além de sua intensa densidade penitencial é caracterizado
Um terceiro elemento dpico da liturgia desta f·!stividade é o por uma alegria intensa, embora encoberta, corno demonstram: a
som do shofar. De infcio ele era tocado ao amanht.-cer, antes de bençao dos diversos tipos de mel, sfrnbolos de felicidade e bem-
27 Traduçio de A. E. Millgram, /ewish Worship, op. cit., 233-234. 29 Traduçao de E. Munk, Le monde des pri~res, op. cit., 334.
28 Traduçiio de A. E. Millgram, /ewish Worship, op. cit., 344. 30 Em P. Bimbaum, A Book o/ /ewish Concepts, op. cit., 561.

234 23.5
estar; o uso das vestes brancas, simbolo de pureza e de beleza Também Jesus, havia expresso e acentuado o mesmo prin-
e a troca de augilrios para estarem inscritos "no livro da vida" dpio ja ha algum tempo:
(sefer !Jayim). Sao imagens eloqiientes, que exprimem positiva-
mente o significado teol6gico e antropologico desta festa e da "Pertanto se estiveres para trazer a tua oferta ao altar e
teshuvah, sua categoria principal: o aparecimento da dimensao ali te lembrares que o teu irmao tem alguma coisa contra ti,
positiva e paradisiaca e vontade de voltar a habitar nele, com deixa a tua oferta ali, diante do altar e vai primeiro reconci-
responsabilidade. liar-te com teu irmao, e depois viras apresentar a tua oferta.
Assume logo urna atitude conciliadora com o teu adversario,
enquanto estas com ele no ~ar:iIDho, .P~ra nao. a~onte~r q.ue
Yom kippur o adversario te entregue ao JUlZ e o JUIZ ao ofic1al de Justlça
e, assiro, sejas lançado na prisiio ( Mt 5 ,23-25 ).
f: o momento culminante e final dos 'aseret yeme teshuvah, O perdiio de Deus é pertanto ligado ao perdio do irmao;
dos "dez dias de penitencia", iniciados com rosh ha-shanah, dia do yom kippur reconcilia com Deus, se em rosh ha-s~an~h e nos
jufzo divino. Para quem o aceita e se renova através da teshuvah outros dias penitenciais n6s nos reconciliamos em prune1ro lugar,
segue o yom kippur ou yom a-kippurim, o dia do Grande Perdao. com os irmaos. A relaçiio entre o perdao de Deus e o perdao ao
Também chamado de o Grande Sabado (Shabbat Shabbatot, o irmiio nao é causativa, mas reveladora ; niio significa: "Deus te
mesmo que o Sabado dos Sabados: Lv 23,32) ou simplesmente perdoa porque tu perdoaste"; mas "se tu perdoaste o irmiio, quer
O Dia, Y oma da Mishnah, é a festa na qual o povo se sente dizer que tu ja estas dentro do ~~dao d~ Deus ". O ~erdiio ao
purificado (do verbo kipper que significa expiar, de onde kippur) irmao é sinal e fruto do perdiio div100 acetto e consenudo.
de todos os seus pecados, segundo a promessa profética:
Se com a criaçiio Deus entregou ao bomem o f:den "para que
Mesmo que os vossos pecados sejam corno escarlate, o cultivasse e o guardasse" ( Gn 1,15), com o perdiio, ele o cria
tornar-se~ao alvos corno a neve;
novamente para o homem e lho presenteia de novo, mesmo de-
Ainda que sejam vermelhos corno o carmesim pois de ele o ter desfigurado e ro~bado. O perdiio é a fo~ça r~­
tornar-se-ao corno la (Is 1, 18 ) . criadora de Deus que nao se res1gna com a queda da h1st6na
Esta eliminaçao/purificaçao nao é obra do homem, mas dom humana; é o Amém do Sentido e da vida repetido a todo nao do
de Deus, que renova a sua promessa de criaçao e de aliança, sem homem cego e ingrato. A consciencia desta realidade fez do
considerar as infidelidades de seu parceiro. Graças a este perdio, yom kippur a festa mais universalmente observada do "judafsmo"31
na~ se pode mais considerar o projeto da criaçao corno falido, e tao rica de elementos lirurgicos e rituais "que habitualmente
urna vez que ha sempre de novo a possibilidade de quebrar as duravam o dia inteiro, desde cedinho até o pòr-do-sol" .32
cadeias da fatalidade, recomeçando tudo de novo. Os principais elementos que a caracterizam sao a assiro cha-
o perdao do qual falamos aqui, nao é urna formula magica mada kol nidre, a confissao dos pecados, as leituras bfblicas, musa/
que tira a responsabilidade, mas um dom exigente, que desperta a e o rito final, conhecido corno ne'ilah.
consciencia para suas opç0es. O tratado da Mishnah, dedicado ao
yom kippur, comentando o Levitico 16,30 ( "Ficareis puros de A festa do yom kippur começa com um rito, cuja origem é
todos os vossos pecados, diante de Javé") determina com lucidez: diffcil de ser reconstrufda e que consiste em encontrar-se, antes
do pòr-do-sol, diante do tribuna! do rabino na sinagoga onde é
yom kippur procura o perdio semente das transgress0es co- feita a confissao de cancelamento de kol nidre, isto é de "todos
metidas entre o homem e Deus; para as transgress0es come- os votos":
tidas pelos homens entre si, yom kippur so procura o per-
dio, se um deles fez, antes, as pazes com seu irmao ( Y oma 31 A. E. Millgram, /ewish Worship, op. cit., 244.
8,9). 32 Idem.

236 237
N6s nos arrependemos de todos os votos, contratos, jura- amaldiçoamos, fomos in1quos, {mpios, insolentes, caluniado-
mentos e anatemas que fizemos ... Que eles sejam considcra- res, maquinadores, mentirosos, zombeteiros, rebeldcs, blas-
dos corno abolidos, esquecidos, anulados, revogados ... Quc os femos, perversos, depravados, prevaricadores, obstinados,
votos nao continuem sendo votos, nem os contratos, contra- corruptos; praticamos açOes abominaveis, desviamos pessoas
tos e quc os juramcntos percam a força de juramcntos ...ll do bom cruninho e as enganamos; enfim, afastamo-nos dos
Este texto é cantado tres vezes e ouvido em silencio, scndo teus mandamentos e das tuas leis, sem jamais estarmos coo-
porém respoodido pela assembléia logo em seguida, também tres tentes. Tu és o nosso justo juiz sobre tudo o que acontecc
vezes: "ele sera perdoado a toda a comunidade dos filhos dc Js. conosco, pois tu ages com veracidade, enquanto n6s somos
rael e de igual modo ao estrangeiro que reside no mcio dclcs culpados. Que coisa podemos d.izer para oos desculpar, 6
pois que todo o povo agiu por inadvertencia n ( Nm 15 ,26) . I
tu, que és o altissimo? O que podemos confessar-te, tu que
O cancelamento de que aqui se trata nao diz respeito aos reinas oas regioes excelsas? Nao conheces todos os mistérios,
compromissos tomados com o pr6ximo, mas os tomados com corno as coisas mais claras? Tu conheces os mistérios do
Deus, corno, por exemplo, de abster-se de certos prazeres ou dc universo e os segrcdos mais ocultos de todo ser vivo. T u
determinados ritos. A acusaçao feita aos judeus, baseada neste perscrutas o pensamento intimo do homem e sondas os
t~xto , de que eles sao pérfidos e corruptos, niio se podcndo con-
sentimentos do seu coraçao; nada fica escondido de ti, nada
fiar cm suas palavras, é, pertanto, ilegftima e injusta. Sao dois, é mistério diante de ti. Digna-te, 6 Senhor nosso Deus e
os motivos desta "desobriga dos votos": a afirmaçao da sobcrana Deus de oossos pais, conceder o perdilo e o indulto a todos
gr~tuidade do perdio de Deus, que olio esta ligado às promessas
os nossos pecados, culpas e erros.
e JUramentos do homem, e a consciencia de que o homem deve se Pelo pecado ('al J:r.e/') cometido impelido por força maior
empenhar verdadeirameote cm cumprir nao os compromissos com ou por ioadvertencia,
Deus, mas os feitos com seus semelhantes. Embora atualmente o Pelo pecado cometido na tua presença, por cndurecimcnto
judafsmo rcformado _tenha eliminado o ritual dos kol nidre, cle do coraçiio,
permanece quase uruversalmente corno um dos momentos mais Pelo pecado cometido na tua prescnça, por ignorincia,
impressionantes e mais densos da liturgia judaica. Franz Rosenz- Pelo pecado co~ a lingua cometido na tua presença,
weig foi por ele tocado no longinquo ano de 1913, de modo a re- Pelo pecado de 1mpureza cometido na tua presença
converter-se ao judafsmo e tornar-se um dos seus melhores mes- Pelo pecado cometido aberta ou ocultamente na tua ~reseoça ...
tres, por seus livros e ensinamento. Por todos esres pecados, Deus do perdao, perdoa-nos, con-
cede-nos a graça e da-nos a remissao .34 _
. Mas ~ cor.açao do yom kippur é a confissao dos pecados
(~tdduy), ~ser1da oa tefillah, e repetida cinco vezes durante o Esta lista continua com rigor implacavel, enumerando 44 tipos
~a. A conf1ssao dos pecados é feita com longa f6rmula penitcn- de pecados confessados em coojunto e batendo no peito.
c1al, composta de duas partes: 'ashamnu ("pecamos") e 'al hel' Uma terceira caractedstica de yom kippur é a tefillah de
( "pelo pecado quc comctcmos" ) : · musa/, na qual se recorda o solene ritual sacerdotal realizado cm
Jerusalém, quando o kohen gadol ( "o Sumo Sacerdote") confes-
O Dcus _nosso e ~us de nossos pais, quc a nossa oraçio sava os pecados em nome de todo o povo, pronunciava o Tetra-
cheguc diante de t1 e ouvc a nossa suplica, ;a quc nao somos grama, e, entrando - a unica vez durante o ano - no Sancta
°:cm .arrogantes nem obstinados a ponto dc dizer diantc dc Sanctorum rezava assim:
U~ 6 Scnhor nosso e Dcus de nossos pais: somos justos e
nao pecamos, mas coofessamos haver pecado. Sim, fomos Q?e a tua vontade, Senhor nosso Dcus e Dcus de nossos pais,
culpados ('ashamnu): cometemos infidclidade, usurpamos, seJa a de conceder-nos que este ano, ora iniciado, seja para n6s

33 Idem, 2"6. A 34d T!aduf~o deladaR.d Aron, Cosi pregava l'ebreo Gesù, op. cit., 169-170.
1ra uçao 01 tras a para aqui com Ugeiras modificaçOes.

238 239
e para todo teu povo a casa de Israel, um ano de muita ri- guagcm poética e mitol6gica, fala da soberania de Deus e do
queza; umano de bençao, no qual queiras abenço~. ~ nosso seu amor por todas as naç5es; fala também da possibilidade que
sair e o nosso entrar ... um ano de paz e de tranquilidade ... todo ser humano tem, independentemente de raça ou nacionali-
um ano, no qual o teu povo, a casa de I srael, niio tenha dade, de arrepender-se e de se converter; e da dureza de coraçio
necessidade de ajuda um do outro, nem de um outro povo, de Jonas, que niio ere nem no perdio de Deus nem na conver-
urna vez que tu abençoaras a obra de tuas maos.35 siio dos ninivitas e que Deus o contesta e desmente.
O Ultimo elemento caracterfstico de yom kippur é a liturgia
No que diz respeito às leituras bfblicas, em yom kippur siio da ne'ilah, abreviatura de urna frase mais longa, ne'ilat she'arim,
escolhidos diversos trechos biblicos, entre os quais Lv 16; l s que significa "fechar as portas" e que lembra a oraçao que se
57 ,14-58 e o livro de Jonas. costumava rezar em Jerusalém, quando as portas do templo eram
Levitico 16,1-34 fala do ritual do templo no dia de yom fechadas no fim do dia. Com a destruiçiio do templo, este rito
kippur, do papel do kohen gadol e em especial do assim chamado passou para a liturgia da sinagoga, corno fecho do yom kippur.
"bode expiat6rio " , o bode carregado simbolicamente dos peca- Neste contexto, o "fechamento das portas" adquire um valor sim-
dos do povo, mediante o rito da imposiçiio das miios e depois b6lico: corno imagens das "portas do céu ", abertas no dia de
levado ao deserto, num lugar afastado do convivio humano. rosh ha-shanah e fechadas depois de 10 dias da festa do Grande
Embora cheio de elementos magkos, este relato é lido na liturgia Perdio. O "fechamento das portas" niio significa que para Israel
da sin'<lgoga, corno lembrança historica e sobretudo corno imagem a graça divina é acess!vel somente no periodo dos 10 dias peni-
de uma{urificaçiio ética e pessoal, entregue à propria responsabi- tenciais, estando essa sempre à sua disposiçiio. Antes de mais
lidade. isso que a enérgica haftarah de Isafas acentua, criticando nada a imagem sublinha a radicalidade e a urgencia da resposta
o jejum pelo jejum e acrescentando-lhe o valor de instrumento humana, que niio pode mais ser adiada impunemente.
moral: O rito se desenvolve à tarde antes do pòr-do-sol, e, entre
outras pre<:es, reza-se o salmo 145, a tefillah e alguns textos poé-
...a razao esta em que jejuais para entregar-vos a contendas
ticos, isto é dos piyyufim. A respeito da oraçiio da manhii, a
e rixas,
para ferirdes com punho perverso.
tefillah da ne'ilah sofre alteraç0es significativas: por exemplo:
no lugar de "estar inserito no livro da vida", le-se: "estar selado
Niio continueis a jejuar corno agora ...
no livro da vida" enquanto os piyyutim desenvolvem o tema das
Por acaso é este o jejum que escolhi ,
"portas a serem abertas". O rito se conclui com urna nota prolon-
um dia em que o homem mortifique sua alma? ...
gada do shofar, que simboliza o perdiio de Deus, graças ao qual
Por acaso niio consiste nisto o jejum que escolhi:
Israel se renovou e pode viver o novo ano "inserito e selado no
em romper os grilh0es da iniqilidade, livro da vida n.
em soltar as ataduras do jugo
e pòr em liberdade os oprimidos
e despedaçar todo o jugo? (Is 58,4-6).
Se se considera que yom kippur é o Unico dia do ano carac- AS FESTAS MENORES
terizado por um jejum rigoroso e total de 24 horas, de urna
tarde à outra, compre.ender-se-a a enorme força provocatoria desta
haftarah. Além das festas da peregrinaçao e das austeras, a tradiçiio
Mas o texto mais originai lido em yom kippur é o livro dc hebraica tem outras, chamadas "menores" ou "pequenas ", por-
Jonas, um dos mais belos e mais ricos da Biblia que, com lin- que elas niio siio citadas na Tora. Entre estas, as mais importantes
sao a festa de /:lanukkah e de purim, ligadas a dois eventos his-
35 Traduçio de A. E. Millgram, /ewish Worship, op. cit., 254. t6ricos especiais: a primeira refere-se à re<:onquista do templo na

240 241
9 - lsrael em oraçio
guerra contra a Siria ( 165 d.e.), e a se~da à libertaçiio da cs- (/;ianukyyah) aceso dc novo e brilhando cm toda sua bclcza é o
cravidao persa graças à coragem e à oraçao de Ester. Como se simbolo do templo de Deus consagrado dc novo, dc sua volta a
ve ambas as 'festas celebram um acontecimento de libertaçio, scu esplendor inicial (d. 2er 29, 17 ) : reconsagraçiio que é mais
se~elhante ao da pesai;, que lhes serve de fundamento e de mo- dom de Deus do que façanha dos Macabeus, corno pretende a
delo. Elas, se de um lado lembram todas as tentativas hist6ricas lenda do Talmud, segundo a qual a pcquena lamparina de 6leo
de aniquilar o povo hebraico ( dos persas aos romanos at~ ao na- encontrada no templo dcpois dc sua profanaçiio durou milagrosa-
zismo) testemunham ao mesmo tempo a força dos filhos de mente oito dias, até que cla fosse encontrada de novo. O ato dc
Israel, que sustentados por Deus, consegui-am sobreviver. e triun- acender as velas é acompanhado do canto de um hino muito bo-
far. Embora os inimigos de Israel sejam numerosos e v1olentos, nito e popular, sur ma'oz ( "rochedo de minha força" ) atribufdo
J:ianukkah e purim reavivam sempre de novo s~a lcmbrança de a Mordekai, um autor alcmao dc cerca do ano de 1250:
que Deus é sempre mais forte do que eles e que e sempre poss{vcl
Rochedo de minha força, minha cidadela,
hberta-los de sua escravidao. Tu, a qucm n6s honramos com doçura
Embora o significado destas duas festas seja fundamcntal-
mente o mesmo, sua celebraçao lirurgica é bem diferente: a pri- restituì ao tcu povo ficl
meira mais s6bria e séria; a segunda mais alegre e popular. o seu templo para prestar-te honras.
Urna vez vencidos
os nossos malvados inimigos
festejaremos
lfanukkah e cantaremos
o teu Altar novamente consagrado ...36
No século II a.e., Antioco IV Epifanes, rei da Sfria, tentou
helenizar o judalsmo, proibindo a todos as praticas religiosas fun- . Um segundo elemento lirurgico importante é a oraçiio conbc-
damentais: o ritual do templo, o ensino da Tora, a observancia Clda corno 'al ha-nissim ( "pelos milagres") inserida na tefillah
do sabado e a circuncisao dos meninos. A vìolencia alcançou seu e na birkat ha-mazon: '
auge no ano J67 a.e. , quando o monarca sfrio penetrou no tem-
plo de Jerusalém, oferecendo nele sacriffcios a Zeus e profanan- N6s te agradecemos pelos milagres que fizeste em favor dos
do-o. Esta enorme abominaçao provocou urna revolta dirigida pela nossos pais naqueles dias ... quando o iniquo império heleruco
familia Asmonéia e sob a liderança de Judas Macabeu, que no se sublevou contra o teu povo dc Israel, para faze~lo esque-
ano 165 a.C. conseguiu derrotar os sfrios, reconquistar o templo, cer-se dc tua Tora ... Tu defendeste sua causa sustcntaste os
e consagra-lo novamente com urna grande festa . Esta, sendo reoc- seus direitos, e vingaste as injustiças sofridas~ Tu entregaste
tida cada ano, tornou-se a festa de ~ianukkah, "dedicaçao ", conhe- o forte nas maos do fraco, os que eram muitos nas maos de
cida também corno "festa das luzes ", cclebrada durante oi to dias, paucos, o impuro nas maos do puro, o mau nas maos do
a partir de 25 de Kislev, isto é, de dezembro. JUSto e o arrogante nas maos daqueles que estavam atentos à
Tora.37
Embora os peritos nao estejam de acordo sobre a recons-
truçao hist6rica de diversos elementos litU.rgicos de l;ianukkah, eles Quanto às leituras bfblicas que acompanham a celebraç.ao dc
convergem principalmente na reconsagraçao do templo profana- /Janu~kah, deve-se notar que entre elas nao se encontram trechos
do por Antioco IV, e permanecendo praticamente os mesmos, ~os livros" d?s Macabeus, porque cles nao sao contados eutre os
quando, destrufdo o templo, eles passaram para o culto na si- l~vros canom~os dos judeus. Em vez deles, le-se o capfrulo 79 do
nagoga. livros dos Numeros, no qual se fala da consagraçao do altar no
O elemento ritual de maior importancia da festa de l;ianuk-
kah é o acender das velas, de inkio feito no templo, e atual- ] 61.Traduçiio de Sch. Ben Chorin, Le juda1sme en prière, op. cit.,
160 6
mente na sinagoga, e depois em casa. O candelabro de oito braços 37 Traduçio de A. E. Millgram, /ewish Worship, op. cit., 271.

242 243
tempo de Moisés, e como haftarah,. Zc 2,14-4,7, ?nde se fala dc Embora a festa purim, entre todas as festas, tenha sido a que
"um lampadario todo de ouro, com um reservat6rio ~ sua parte mais desenvolveu traços profanos, até tornar-se uma espécie de
superior; sete lampadas estio sobre este reservat6no. e,,sete ca- carnaval, e ainda que o livro de Ester nio mencione nem uma
nais para as lampa~s que. estic;> em sua parte supenor ( 4,2), vez o nome de Deus, razio por que nio figura no Cinone de
que evidentemente nao podia deixar de lembrar o candelabro ice- Qwnra, sua esttutura religiosa é a mesma de todas as fe~tas ju-
so e consagrado de novo pelos Asmoneus, depois da profanaçio daicas: Deus livrou os filhos de lsrael do poder de Ama corno
do templo. A haftarah termina com estas p~lavras: ".nao pelo po- antigamente o havia libertado do dominio egfpcio e de qualquer
der nio pela força mas sim por meu espfr1to - disse Javé dos outro tirano.
Exércitos" ( 4 ,6 ) . A festa de l:zanukkah é a celebraç.ao desta cer- Os elementos littirgicos mais importantes que a qualificam
teza: que lsrael nao pode sucumbir: nao pela pr6pna força, mas sio a oraçio 'al ha-nissim ( "pelos milagres") inserida na tefillah,
pela força de Deus. Por este motivo el~ lhe deu co~gem para e a leitura da megillah de Ester, a megillah por excelencia da
lutar contra a injustiça e a opressio, esttmulou o movimento de época da Mishnah. A oraçao 'al ha-nissim é o agradecimento a Deus
volta ao 'eres Y iSra'el e é um eficaz baluarte contra a tentaçio por haver libertado os hebreus das maos de Ami:
e os Tiscos chi assimilaçao incondicionada e acritica.
Nos te agradecemos também pelos milagres, pelas grandcs
obras e pelos atos salvificos, que operaste nos tempos lon-
Purim gfnquos, e nesta cstaçao, por nossos pais. Nos tempos de
Mardoqueu e de Ester, na cidade de Susa, a capital, quando
A festa de purim esta ligada a um fato bist6rico contado por o malva.do Ama se insurgiu contra todos os judeus e pro-
urna das cinco megillot ( "rolos"), a de Ester. Os judeus que se curou destruf-los, tornando-os escravos e tentou mata-los:
estabeleceram na Pérsia pelo século V a.C. foram ameaçados de jovens e velhos, crianças e mttlhercs ... tu, na tua grande mi-
extermlnio pelo 6dio de Ami, um vizir plenipotenciario do rei seric6rdia, tornaste vios os seus planos, fazendo que eles se
Assuero ou Xerxes. Mas a intervençao de urna jovem judia, Ester voltassero contra ele proprio.38
( que significa "Estrela"), urna 6da, sobrinha de Mard09ueu, .que, Mas o coraçao da liturgia de purim é a leitura da megillah,
pela sua extraordinaria beleza, tomou-se mulher do rei e ramh~, feita duas vezes por dia, urna de manha e outra de tarde, em clima
impediu esse projeto de extermlnio, virando completamente a s1- alegre e barulhento, de modo que quando o nome de Ama aparece
tuaçio: Ami é impedido de executar o seu plano, Mardoqucu é acompanha.do de vaias, e diversos ruidos que exprimem desprezo
toma o seu posto e os hebreus massacram seus inimigos. e zombaria; enquanto o nome de Mardoqueu e de Ester sio
A festa de purim lembra esta vitoria e esta reviravolta: o saudados com aplausos e gritos de alegria e jubilo. Os rabinos em
perdedor torna-se vencedor, e este, ao contrario, perdedor. O por- seus ensinamentos insistem no significado positivo destes gestos.
que deste nome (pur/ purim) é explicado pelo pr6prio livro de Sua finalidade "nao é celebrar o 6dio, a vingança e a reprovaçao
Ester: "Ama ... o perseguidor de todos os judeus, tinha plane- dos inimigos, mas conservar sempre viva em nossa mente a es-
jado a sua morte e lançara o pur, isto é, as sortes, para sua confu- perança da vitoria final daquilo que é justo"; 39 nao criar scnti-
sio e rufna ... Essa é a razao pela qual esses dias foram chamados mentos negativos, mas alimentar a fé/certeza que "a Gl6ria dc
de purim, da palavra pur" (Est 9 ,24-26). Mas ja que Deus mu- Israel nao mente nero se atrepende 1 porque nao é homem para se
dou esta "sorte" de morte em triunfo de vida, "Mardoqueu en- arrepender" (1 Sm 15 ,29 ) .
viou cartas a todos os judeus que se encontravam nas provfncias ... A leitura da megillah termina com urna berakah prescrita pelo
ordenando-lhes que celebrassero a cada ano o décimo quarto e o proprio Talmud (Meg 21b) e, depois do meio-dia, por um hino
décimo quinto dia de Adar ( fevereiro / março) ... e esse mes é que termina assiro:
aquele em que para eles, a afliçao deu lugar à alegria, e o luto
às festividades ... " (Est 9 ,20-22) . 38 Jdem, p. 273.
39 W. W. Simpson, Light and Rejoicing. op. cit., 91.
244 245

.
Maldito Ami, que queria destruir-me
mas bcndito Mardoqueu, o judeu;
Maldita Zeres, a sua mulher que me horrorizava 5
mas bcndita Ester, a minha patroa.40
Muitos autores observaram que purim é uma espécie de car- DA IGNORÀNCIA AO CONHECIMEN10
naval judeu no qual se celebra a transgressao, a desordem, o mun- E À COLABORAçÀO
do de cabeça para bahco, revirado. lsto é verdade, dependendo
do modo como se entende o signilicado deste mundo "de cabeça
para bahco" : nio naqude onde reina uma nova desordem, mas
naqude no qual reina a verdadeira ordem, aqucla querida por
Deus. Purim contesta o mundo baseado na injustiça e na opres-
sio dos varios Amis, e anuncia a possibilidade de um novo mun-
do no qual reine a beleza e harmonia de "Ester" . Purim p0e o
mundo de cabeça para baixo, para coloca-lo em pé, porque o
mundo normalmente "em pé ", na realidade esta dc "cabeça para
bahco" .

Jules Isaac, historiador judeu-frances , marcado profundamen-


te pelo "drama da iniqi.iidade" do genocidio nazista, que atingiu a
maior parte de seus entes queridos, da mulber até os filhos ,
denunciou, um ano antes de sua morte - que se deu em 1963
- com O ensinamento de desprew, a atitude perversa das igrejas
cristas, que disseminaram incompreensao, repulsa, Odio, maus tra-
tos e perseguiçi5es contra os judeus. O enorme esforço deste pro-
feta do nosso século nao ficou estéril, tendo sido premiado pelo
fruto da Nostra Aetate, em parte devido aos seus sofrimentos
e à sua coragem.1 Hoje, passados mais de 20 anos da promulga-
çao deste documento conciliar, "a ideologia do desprezo ", voltada
a desqualificar e demonizar a imagem dos judeus, foi definitiva-
mente vencida e vai-se firmando a exigencia e a consciencia de
um novo relacionamento com o povo hebreu . Mas se o "despre-
zo" acabou, nao acabou a "ignorancia" que havia gerado o des-
prezo; ignorancia nao somente em relaçao ao assim chamado An-
tigo Testamento - que muitos te6logos ainda consideram secun-
dario, prepatat6rio e tipol6gico - , nao somente nas comparaçi5es
hist6ricas - muitos ainda creem que o judafsmo desapareceu com
a queda de Jerusalém no ano 70 d.C. - , mas sobretudo em

. I S?b~ a figura ~est.e ~rande judeu e sobre sua obra pioneira no dialogo
JUdeu-cnstao, cf. M. Vm,g1am, fules lsaac, em VV. AA., Ecumenismo Anni '80,
40 Traduçlo de A. E. Millgram, fewish Worship, op. cli., 274. Il Segno, Verona, 1984, 323-338.

246 247
relaçiio à liturgia, da qual a crista herdou muitos elementos e A esta altura, se torna inevitavel a pergunta: por que despen-
modelos. der tanta força para procurar tao longe as verdadeiras fontes
da liturgia crista, evitando encontra-las bem petto, através de
urna verdadeira ginastica? 5
Liturgia ;udaica e liturgia crista
Ha varias respostas para esta pergunta,6 mas certamente a
"Judaismo e cristianismo podem ser comparados a dois estu- ignorancia dos textos lirurgicos judeus é a mais importante: nao
dantes, que vem do mesmo ambiente e que foram encarregados se trata tanto de uma ignorancia hist6rica, mas de sua articulaçao,
de executar a mesma tarefa": esta afirmaçao de D. Flusser2 vale e densidade espiritual e teol6gica. Por causa do atavico preconcei-
niio somente para o "ambiente" teol6gico/espiritual, mas princi- to anti-semita, os textos judaicos sao inconscientemente considera-
palmente para o liturgico/cultual, que tentamos reconstruir nas dos "farisaicos" (com tudo o que de negativo é atribwdo a este ter-
paginas anteriores, conduzindo o leitor através do universo com- mo), incapazes de e.xpressar e condensar a beleza do dialogo com
plexo e fascinante da oraçao judaica. A liturgia crista tomou deste Deus, e se esquecendo que Jesus rezou através destes textos, eque
universo mais elementos do que se possa imaginar, e que somentc o mesmo fizeram a Virgem Maria, os Ap6stolos, e a lgreja pri-
urna ignorancia obstinada pode esconder. Mesmo que hoje faltem mitiva o fez por muitos decenios . A categoria do "farisaismo",
pesquisadores de peso que sublinhem e procurem os laços profun- arma comoda e destruidora das igrejas cristas nao desfigurou
dos da liturgia hebraica com a crista,3 continua ainda valido o somente o judaismo intertestamentario e rablnico, mas a pr6pria
que L. Bouyer escreveu ha dois decenios: liturgia, impedindo aos cristaos que dela se aproximassem corno
de "aguas vivas", do mesmo modo corno o Novo Testamento se
A permanencia ou a persistencia desta atitude de espirito relaciona com o Antigo. Esta "fariseizaçao da liturgia" é talvez
( isto é a ignorancia das origens da liturgia crista) mesmo a verdadeira responsavel pelos sentimentos de estranheza e de
tratando-se de peritos, tanto quando sao profondamente intui- separaçao dos cristaos ao se defrontarem com textos eucol6gicos
tivos, corno quando ampiamente documentados, é preciso quc judeus.
se diga, é no mllùmo desconcertante. Quando se pensa no Por estranheza entende-se um sentimento de desarmonia e
enorme esforço de Odo Casel em procurar os antecedentes de distanciamento, pelo qual se sente mais à vontade com os te.x-
do mistério do culto cristiio nos ritos pagaos mais incompa- tos de oraçao "paga" do que com os judaicos. Sempre a respeito de
tfveis, e o pouco interesse que ele demonstrou para com os Odo Casel, L. Bouyer escreve que:
antecedentes judaicos menos contestaveis, a gente se pergun-
ta corno fai possivel, que uma pessoa de espirito tao aberto, ele de modo ·algum desconhecia os textos judaicos com os
tenha sido pouco acessivel a certas evidencias.4 quais os textos cristaos impunham urna comparaçao, antes do
que com qualquer outro. Ele os cita, e destacou seus parale-
O mesmo autor, logo depois se pergunta: lismos mais surpreendentes. Mas para ele trata-se apenas de
paralelos consideraveis, sem chegar a suspeitar que a origem
2 lntroduçiio a C. Thoma, Teologia cristiana dell'ebraismo, Marietti,
Casale Monferrato, 1983, XXIV. e a explicaçao daquilo que mais ha de sui generis na euca-
. 3 Cf. W. O. E. Oesterley, The /ewish Background of the Christian ristia crista ali se encontra. Ele pesquisa urna e outra, e s6
L1turgy, Oxford, 1925; F. Gavin, The /ewish Antecedents of the Christian consegue imagina-las nos mistérios pagaos.7
Sacraments, Londres, 1928; G. Dix, The Shape of Liturgy, Londres, 1945;
L. Ligìer, Les origines de la prière eucharistique. De la cène du Seigneur
t) Eu_charistie, in Questions Liturgiques 53 (1972), 181-201; S. Cavalletti,
Mas, se deixarmos os textos lirurgicos judaicos falar, abando-
Ebraismo e spiritualitéi cristiana, Studium, Roma, 1965; C. Giraudo, La nando-nos à sua poesia e beleza, e sobretudo ao seu dinamismo
st~utura letteraria della Preghiera Eucaristica. Saggio sulla genesi letteraria
d1 una forma. Toda veterotestamentaria, Berakah ebraica Anafora cristiana,
Biblical Institute Press, Roma, 1981. ' 5 Idem, 23.
4 L. Bouyer, Eucharistie. TMo/ogie et spiritua/ité de la pritre eucha- 6 Cf. L. Bouyer, Eucharistie, op. cit., 23-24.
ristique, Dcsclée, Tournai, 1966, 22. 7 Idem, 22.

248 249
jnterior e espiritual, n6s tomamos consciencia de sua surpreenden- colas (e qual festa nao é "agrkola"? ), assim, a festa crista nio
te atuilidade e proximidade. Qual cristao nao se reconheceria nas anula, mas reassume e radicaliza o sentido das festas hebraicas: o
berakot, na tefillah, na leitura e comentario da Tora, no qiddush jardim do ~den ( que é este mundo, de acordo com o projeto da
do sabado, no havdalah, no dayenu, no nishmat kol J:iay ("a alma criaçao) floresce e produz seus frutos semente onde se vive com
de tudo que vive"), na espirituilidade de pesa/:i, de shavu'ot, de Jesus e como Jesus, o Messias e o Filho de Deus.
sukkot, de rosh ha-shanah, de kippur etc.? Qual cristiio nao cn-
contraria ili os traços de fé e de abandono de Jesus ao Pai?
Conseqiiéncia da estranheza e seu Ultimo derivado é a ruptura Judeus e cristaos rezam ao mesmo Deus e pelo mesmo Reino
da liturgia crista com suas raizes hist6ricas naturais.
Sempre segundo Bouyer: Um segundo nivel de ignorancia é pensar na liturgia corno
documento hist6rico de um povo extinto, e nao como oraçao de
Imaginar que a liturgia crista tenha sua origem numa espécie uma comunidade ainda viva e cheia de fé. Shalom Ben Chorin
de geraçao espontinea, sem pai nern miie corno Melquisedec,
fez recentemente urna declaraçao que deveria levar os cristaos a
ou atribuir-lhe cegarnente qualquer paternidade putativa quc refletir intensamente:
cancelasse para sempre a percepçiio de sua genealogia auten-
tica, reduziria antecipadamente todas as reconstruç0es a urna Posso afirmar, pela minha experiencia pessoal, de ter ficado
armaçao mais ou menos erudita e engenhosa de contra-sensos.1 muitas vezes profundamente desconcertado diante de pergun-
Mas corno seria possfvel a ekklesia sem a sinagoga, a liturgia tas que os cristaos me fazem com toda boa fé. No final de
da Palavra sem a qeri'at Torah, a prex eucharistica sem a berakah, uma reuniao semanal dedicada a uma introduçao ao judafsmo,
o ciclo de leituras sem as parashot e as haftarot, o batismo sern a urn dos participantes me fez esta pergunta: "No judafsmo, rc-
miqweh, a ceia sem a birkat ha-mazon, a pascoa sem pesa/:i, pente- za-se a Deus?" Uma alta personalidade eclesiastica, abadc dc
costes sern shavu'ot, o domingo sem o shabbat, o offcio divino um mostciro alemao me pcrguntou: "Depois da fixaçiio do
sern o tehillim ( hinos e salmos), a conversiio sem o yom kippur, canone do Antigo Testamento, o judafsmo teve algum pro-
as traduç5es littirgicas sem os targumin, a homilética sem os mi- gresso teol6gico? n ...9
drashim etc ... ? É necessario que os cristaos realizem urna transformaçao men-
Afirmando estes laços, niio queremos negar a originalidade ta!, tornando consciéncia de que a liturgia hebraica nao é um
da liturgia crista, reduzindo-a a um produto e prolongamento da fato do passado, e que nela se presta culto ao mesmo Deus e pela
judaica, mas delimitar o seu verdadeiro lugar de nascimento e mesma causa. Um texto de peso, corno o Catecismo dos JovenS'
de confronto. A novidade da liturgia cristii nao consiste em urna "Nao s6 de pao", de 1979, fala da Instituiçao da Eucaristia
criaçao ex nihilo, mas na interpretaçiio cristol6gica dos dados hc- nestes termos:
braicos; nao no seu cancelamento, mas na sua diferenciaçao. Esta
reflexao é importante, principalmente para compreender o sentido Quando um pai de famllia judeu, celebrava com os scus, a
das festas cristas. Geralmente costuma-se dizer que, corno o ju- ceia pascal ... a Lei exigia quc ele lhes explicasse o quc csta-
dafsrno fez das festas agrfcolas, festas hist6ricas, assim a Igreja va fazendo ... A ceia com os paes sem fermento era interprc-
as cnsttanizou, celebrando no natal, pascoa e pentccostes a mc- tada como participaçao atual dos hebreus na salvaçao rcili-
m6ria do nascimento, morte e ressurreiçao, e presença de Jesus zada por Deus em favor de Moisés e de seu povo. Era o "me·
no dom do Espfrito Santo. A afirmaçiio é verdadeira, contante morial" daqueles antigos feitos de libertaçao. O rito porém,
que ela seja entendida nao corno esvaziamento dos significados da parecia mais urna representaçao simb6lica, do que urna efc-
festa judaica, mas corno sua reafirmaçiio e realizaçao. Como a festa tiva participaçio daquela salvaçiio ... 10
judaica nio aboliu a densidade materia! e terrestre das festas agrf- 9 Le judaisme en prière, op. cit.. 173.
10 N~n solo pane. Il Catechismo dei giovani, Commissione episcopale per
8 Idem, 21. la Dottrina delJa fede, la catheçhesi e la cultura, CEI, Roma, 1979, 127-128.

250 2.51
Expressa-se de maneira identica o Catecismo dos adultos "Sc- no e dominador: Dio porquc é patrio, mas porquc é fonte dc
nhor, a quem iremos?", dc 1981: vida. A qedushat ha-shem é, sim, afirmaçio da santidadc dc Dcus
nio em si mesma, mas enquanto fundamento e garantia da {cli~
O rito ( judcu) prescrevia ao pai de famflia quc cxplicassc aos cidade do homem. No hino de Isalas, ao triplice "santo", segue
filhos o significado profondo dos alimentos quc comiam. Por a constataçio: "A terra esta cheia da sua gl6ria" . A terra é bela,
que as ervas amargas, por que os azimos, e o cordeiro as- habitavel, geradora de vida e nio de morte, nio pela força do
sado? As ervas recordavam a opressio da escravidao; os 8zi- bomem, mas porque eia é "gl6ria de Deus ", isto é, exprcssio con-
mos a pressa com a qual os judeus deveriam deixar o Egito .. .1 1 creta de seu amor. Sem esta "gl6ria", a terra é vazia e deserta,
~and~ se fala do rito hebraico, fala-se sempre do passado, corno aquela de Adao pecador; eia é como o Éden, cheio de "toda
p_ara evtden~1ar, de um ponto de vista hist6rico em geral e cris- espécie de arvores formosas de ver e boas de comer" ( Gn 2,9).
tao em parttcular, a evoluçao de um "primeiro" a um "depois" A qedushat hashem nio é portanto uma inocente figura de ret6-
correndo assiro o risco de que se possa supor que atualmente d~ rica: sua missao é levar o mundo, desfigurado pelo pecado, à sua
tenha desaparecido, nao se levando em conta o fato de que ele é beleza original; é atrair ao céntro da terra a "gloria de Deus" a
hoje uma experiencia espiritual para milh0es de judeus religiosos fim de que eia af permaneça; é despedaçar as cadeias da injustiça
12
contemporaneos. Ao contrario, lembrar-se de que esta fé continua e da violéncia que causam o afastamento da Shekinah.
a ser vivida ainda hoje, pode ajudar a lgreja a Dio "se csqueccr Para realizar es te "milagre" nio sio necessarios esforços nem
de que recebeu a revelaçio do Antigo Testamento por intermédio capacidades especiais:
daquele povo, com o qual, Deus, em sua inefavel miseric6rdia se Toda vez que vamos beber um copo de agua, lemhramo-nos
dignou fazer a Antiga Aliança" (Nostra Aetate 4) , e que, ~mo do eterno mistério da criaçao: "se bendito, Senhor, que deste
escreve o Ap6stolo Paulo, "os dons e a vocaçao de Deus sao scm existéncia a tudo por tua palavra "... Quando desejamos co-
arrependimento" ( Rm 11,29). C.Onhecer a liturgia judaica nio é
rner um pedaço de pio, uma fruta, ou tamhém experimentar
s6 aumentar a propria bagagem hist6rica e cultura!, mas sobrctudo um perfume agradavel, ou degustar um ailice de vinbo, ao
penetrar na alma cm oraçio do povo judeu, que através dos sé- saborear pela primeira vez a fruta da estaçio, ao contemplar
culos eleva sua voz de louvor e de invocaçio a um Deus que é o o arco-iris, o oceano; ao observar as arvores em fior, ao en-
mesmo Deus de Jesus e dos cristios, o Unico Deus de todos os contrar um provérbio na Toni ou na cultura leiga, ao receber
bomens de todas as religi5es. boas ou mas noncias, foi-nos ensinado invocar o seu grande
i! com certeza neste nfvel que a liturgia judaica e cristi en- Nome e a nossa consciéncia dele. Até mesmo ao realizarmos
contram, ~m? "irmas ", os seus maiores pontos de contato e uma funçio fisiologica dizemos: "se bendito, tu, que curas
consoninaa: isto porque tanto uma corno a outra anunciam o toda carne e fazes maravilhas." Esta é urna das metas para a
Reino de Deus, prodamam e santificam o seu Nome louvam-no
qual se inclina o viver hebraico: sentir os atos mais banais
agra~~~-lhe e invocam seu advento. A qedusha; hashem, ~ corno aventuras espirituais, e perceber o amor e a sabedoria
san~1~çao do No~e é o coraçio tanto da liturgia bebraica corno
que se escondem em todas as coisas.13
da cr1sta, o verdadeiro ponto de cncontro e de confronto dos dois
povos da aliança. Se é verdade, corno vem sendo denunciado por varios lados e
" Os judeus na te/il/ah e os cristios na missa proclamam: com insistencia, que o mundo jamais esteja como nos dias de hoje
santo, santo, santo, é o Senhor dos exércitos. Toda a terra esta tao ameaçado pela banalidade e pela crise da falta de sentido, a
ch~ia da sua gloria" ( ls 6 ,3) . C.Onfessar que Deus é qadosh liturgia cristi principalmente a liturgia judaica centralizada na
urundo-se ao coro dos anjos significa rcconbecer seu poder sobera: berakah, sio a resposta mais adequada a esta situaç.ao de emer-
. 11 Signore da chi andrmio? Il catechismo degli adulti Commussione 12 Cf. supra, pp. 144-145.
episcopale per la Dottrina della fede, la catechesi e la cultu~a CEI Roma
1981, 88-89. • • • 13 A. J. Heschel, Dio alla ricerca dell'uomo, op. cit., 68-69.

252 253
gencia, ajudando a descobrir "o amor e a sabedoria que se cn- 1NDICE
contram em todas as coisas". OOS PRINCIPAIS TERMOS HEBRAICOS E ARAMAICOS
Judeus e cristaos sao chamados a colaborar pela afirmaçio
deste "amor" e desta "sabedoria" condensados nos nossos textos
lirurgicos que, embora diferentes se atraem e se influenciam, co- 'Adom 'olam ( "Senhor do universo": hino lirurgico usado nas
rno notas de um unico canto: o canto do amor de Deus, funda- sinagogas), p. 153
mento e garantia do amor pelo homem. IAfiqoman ( pedaço de pao azimo e.scondido)) p. 179
'Ahavah rabbah ("grande amor": 2! hençao do shema' da manha),
pp. 63, 77, 81, 89
'Ahavat 'olam ( "amor perene" : 2! hençao do shema' da tarde),
pp. 87, 89
'Alenu ("é nosso dever" : oraçao feita na sinagoga), pp. 189,
192, 194
'Al ha-nissim ( "pelos milagres ": oraçao de agradecimento na festa
de ]Janukkah), pp. 243, 245
'Al J:iet' ("pelo pecado ": oraçao penitencial de yom kippur), p. 240
'Al Y isra'el we' al rabbenu ( "por Israel e por nossos mestres":
f6rmula de despedida de uma leitura biblica), p. 191
'Amidah ("o estar de pé": um dos nomes da tefillah), pp. 30,
31, 94
'Aron ha-qodesh ("arca santa"), p. 200
'~eret ( "assembléia final ": um dos nomes de Pentecostes), p. 222
'~eret yeme teshuvah ( "os dez dias de arrependimento ": o grande
periodo penitencial entre rosh ha-shanah e yom kippur), pp.
210, 236
'Ashamnu ( "pecamos": formula penitencial de yom kippur), p.
238
'Avinu malkenu ( "nosso pai, nosso rei": uma ladainha de 44
invocaçé5es recitadas para rosh ha-shanah) , p. 234
'Avot ( "Pais": tratado da Mishnah e nome tematico da 1~ bençao
da tefillah); pp. 32, 105

Ba'al qeri'ah (leitor que anuncia a Tora na sinagoga), p. 200


Ba' al qore' (leitor que anuncia a Tora na sinagoga), p. 200
Bar mi$wah ( "filho do mandamento": cerimonia através da qual
um rapaz se torna adulto e responsavel ), pp. 188, 204, 205
Berit-mila ( "aliança da circuncisao": rito da circuncisao), p. 203
Birkat ge'ulah ( "bençao pela redençao": a 3~ hençao do shema'),
p. 84
Birkat ha-'are$ ( "hençao pela terra": a 2~ das qua tro bençaos da
birkat ha-mazon), p. 164

254 255
Birkat ha-mazon ( "bénçao pela refeiçao": a mais lmportante de
todas as bénçiios), pp. 36, 44, 159, 160, 163, 164, 166,
167, 168, 175, 243, 250
l H a-ralµzmon (" O misericordioso": a palavra inicial dc uma das
oraçOes acrescentadas à birkat ha-mazon), p. 167
Hashkivenu ( "faze-nos repousar ": a 4~ bénçao do shema' da tar-
Birkat ha-minim ( "oraçiio contra os hereges": uma das 18 .bén- de), pp. 87, 91
çaos da tefillah), pp. 115, 116, 122, 123, 124, 125 lfatan bereshit ( "Esposo do Génesis": o leitor que no Ultimo
Birkat ha-mo# ("que tiras": a bénçao antes da refeiçiio), p. 162 dia de sukkot le a parte inicial do Génesis, reabrindo o ciclo
Birkat ha-shalom ( "bençao pela paz": a ultima bénçiio da tefillah)
I das leituras anuais), p . 227
p . 120 fJatan Torah ("esposo da Tora": quem lé em sukkot o Ultimo
Birkat ha-shanim ( "bénçao pelas colheitas ": a 9~ bénçao da te- trecho da Tora, concluindo o ciclo an·ual), p. 93
fillah) I p. 114 Ha-tefillah (" A oraçao": o nome por excelencia das dezoito bén-
Birkat ha-Torah ( "bénçao pela Tora n: a 2~ bénçao do sbema') I çaos ou 'amidah), p. 93
p. 81 Ha-fov weha-me(iv ( "que és bom e que fazes o bem": a 4~ bénçao
Birkat ha-zan ( "bénçao pelo alimento": a primeira das 4 bénçaos da birkat ha-mazon), p. 165
da birkat ha-mazon ) , pp. 16 3, 164 H avdalah ( "separaçiio" : a cerimonia de encerramento da festa de
Birkat kohanim ( "bénçiio dos sacerdotes": a Ultima bénçao da sabado), pp. 44 , 99, 112, 168, 169, 170, 202, 250
tefillah), p. 120 H odayah ( "agradecimento ", do radical ydh: a 18~ bénçiio da te-
fillah), p . 120
Dayenu ("bastaria": um bino cantado no seder), pp. 186, 187,
250 Kol nidre (" todos os votos": f6rmula de cancelamento de deter-
Derashah ( homilia/comentario da Torli ), pp. 136, 138, 142, 146, minados compromissos na festa de yom kippur), p . 238
148
Leka dodi ( "vem, meu caro": hino com o qual se da as boas-vin-
'Emet we-'emunah ( "verdade e estabilidade": a primeira das duas das ao sabado, corno a urna esposa), p . 195
bénçaos depois do shema' da tarde ), pp. 77, 83, 87
'Eme/ we-ya$iv ( "verdadeiro e estavel": a terceira bénçao do Ma'ariv ( oraçao vespertina ), p. 211
shema'), p. 63 Ma'ariv 'aravim ("tu, que fazes a escuridao da noi te": a 1~ bénçao
que precede o shema' vespertino), p. 87
Ge'ulah'arikatah ( " redençao prolongada": outro nome da 4~ bén- Ma'ariv te-shabbat (culto lirugico do sabado à tarde), p. 198
çiio do shema' da tarde), pp. 91, 92 Maggid ( "narrador/orador ": um dos momentos do seder) , pp.
179, 180, 181, 182, 183
Haftarah ( trecho brblico tirado dos profetas ou dos hagi6grafos), Mahzor ("ciclo": o ciclo das fes tas lirurgicas), p. 40
pp. 136, 138, 141, 200, 240, 244 Malkuyot ( "reinos" : urna das oraç5es de musa/ de rosh ha-sha-
Hakkafoth ( "voltas": as sete voltas feitas por ocasiiio da sukkot nah), p. 235
ao redor da sinagoga carregando os rolos da Tora ), p. 227 Mew:r.ah ( estojo contendo trechos da Torli que sao colocados
Hallel (recitaçiio dos salmos de louvor: um dos momentos do nos umbrais da porta, à direita de quem entra), pp. 72, 75
seder), pp. 179, 182, 218, 219 Min/:zah (culto liturgico ap6s o meio-dia), p. 211
# anukkah ( "Dedicaçiio": a reconsagraçiio do templo de Jerusa- Minf:zah le-shabbat ( oraçiio depois do meio-dia do sabado), p. 201
lém profanado por Antioco IV Epifanes) , pp . 44, 100, 138, Minyan (o nUmero de 10 pcssoas necessario para a oraçao lirur-
143, 146, 148 , 210, 24 1, 242, 243 gica) P• 192
I

F:fanukiyyah (o candelabro de oito braços que se usa na festa de Mmj!ie shabbat ( "saida do sabado": cerimonia de eocerramento
fJanukkah), p. 243 da festa de sabado) P• 198
I

256 257
Musa/ ( • acréscimo": oraçOcs adicionais quc se rccitam nos dias Qiddush ha-yom ( "santificaç.ao do dia" : a bCnçio é rezada pelo
fcstivos e nos dias cspcciais ), pp. 99, 201, 202, 234, 235, pai de familia sobre um copo de vinho, aos sabados ou numa
237, 239 festa), p . 172
Rabbotai nevarek ("senhores, bendigamos": f6rmu1a introdut6ria
Ne'ilah (rito dc cnccrramcnto dc yom kippur), PP· 237, 241 com a qual os comensais sao oonvidados à birkat ha-mazon),
Nishmat kol J:iay ("a alma dc tudo quc vive": hino cantado nas p . 167
oraç5cs do sabado de manha), pp. 195, 198, 199, 250 Regalim ( festas de peregrinaçao) , p. 210
Rosh ha-shanah (ano novo), pp. 36, 44, 99, 139, 210, 229, 230,
Parashah ( pericope da Tora, anunciada na sinagoga), pp. 136, 231, 232, 233, 234, 236, 237, 241 , 250
137, 138
Pesah (pascoa) , pp. 12, 36, 44 , 46, 158, 181, 182. 183, 210, Seder ( ordem de oraç0es ou livro das oraç5cs), pp. 177, 178
·211, 224, 229, 242, 250, 251 180, 187, 218 '
Petihtot ( "versfculos dc abertura": versfculos dos hagi681:af~s Seder Torah ( "livro": indica o rolo da Lei ou Pentateuco), p . 227
· com os quais se abrem os midrashim excgéticos e homilén- Shabbat shabbatot ("o sabado dos sabados" : outro nome de yom
cos), p . 137 d kippur), p. 236
Piyyufim ( "pocmas" : composiç5cs. ~ticas que acentuam eter- Sha/:irit (culto lirurgico da manha) , pp. 189, 211
minados aspcctos das festas liturg1cas), pp . 43 , 219, 241 Shal;zarit le-shabbat (culto liturgico da manha nos sabados), pp.
Purim ("sorte": uma das festas menores) , pp. 36, 44, 100, 138, 198, 201
210, 241 , 242, 244, 246 Shalom 'tdekem ( "paz a v6s": o hino aos anjos recitado durante
o qiddush de sabado), p . 174
Qabbtdat shabbat ( "acolhida do sabado": rito com o qual se inicia Shavu'ot ( "semanas": a festa de pentecostes que é celebrada 7
a festa do shabbat ), pp. 195, 198 semanas ou 50 dias depois da pascoa ), pp. 12, 44, 46, 139,
Qaddesh ("consagraçio": um dos momentos do seder ), pp. 178, 210, 220, 222, 224, 229, 250
182 Shema' Yisra' el ( "ouve l sracl" : a confissao de fé por excelencia da
Qaddish ("santo": oraçio para o advento do Reino de Deus ), liturgia). pp. 30, 36, 43 , 46, 62, 65, 128, 150
pp. 32, 33, 189, 19~ , 192 . Shemonh-'e§reh ( dezoito bCnçaos: outro nome para tefillah) , pp.
Qaddish de-it/:iadta (qaddish das exéquias), P: 192 . 30, 94, 124, 234
Qaddish de-rabban (qaddish dos mestres, rec1tado depo1s de urna Shofrot ( oraç5cs rezadas durante o musa/ de rosh ha-shanah) p.
leitura do Talmud), p. 192 235, 236 '
Qaddish shalem ("qaddish com_?let?~: ~ q~e é recitado por um $idduq ha-di.n ( "justifica~ao do jufzo divino": o rito pr6prio e
leitor no final de uma seçao liturgica unportante, sobretudo verdadell'o das exéqwas, celebrado no cemitério antes de en-
depois da tefillah), p. 192 . terrar o cadavcr ), p . 207
Qaddish yatom (• qaddish dos 6rfaos": é aqucle que é rcc1tado no Siddur ( ordem das oraçOes ou livro das oraç0es) pp. 39 40 41
final do culto nas sinagogas pclas pcssoas que estao de luto ), 42, 43, 44, 45 , , ' ,
p . 191 Sidrah ( "seçOes": nome dado pclos asquenazitas às parashot),
Qedushah rabbah ("a grande qedushah": a de musa/, maior e mais p . 136
dcscnvolvida em rclaçao à normal), p. 201 Sim/:tat bet ha-sho'evah (" a alegria por chegar até a 8gua": o
Qedushat ha-shem ( "santificaçao do Nome": a 3~ bençao da te- . rito da libaçio da agua na festa de sukkot), p. 225
fillah), pp. 32 , 105, 252 Stml;zat Torah ("a alegria pela Tora": a primeira parashah com a
Qedushat ha-yom ( "santificaçio do Nome": a bCnçao centra! da qual cm sukleot se abre o ciclo das leituras brhlicas) pp. 136
tefillah que nos dias festivos substitui as pctiçOcs) , p . 99 224, 227 ' •

2.58 2,9
Sukkot (tabernaculos), pp. 12, 36, 44, 46, 136, 210, 223 , 224 , Y oma ("O dia": um nome para yom kippur), p. 236
205, 250 Y o~ser 'or ( "que cria a luz": a primeira das duas bençiios quc
precedem o shema'), p. 78
Tallit ("mantilha em forma de escapulario"), p. 75
Tashlik ( " tu lançaras ": cerimonia com a qual em rosh ha-shanah Zikronot ( "recordaç5es": uma das oraç5es de musa/ de rosh ha-
os pr6prios pecados sao jogados no rio), p. 235 shanah), p. 235
Tefillah ( "oraçao": a oraçao por excelencia composta de 18 ben- Zimun (formula de convite para a bençiio depois da rcfciçao),
çaos), pp. 30, 32, 33, 34, 40, 43, 45 , 46, 86, 93-105, 120, p. 160
121 , 128, 130, 150, 189, 191, 198, 201, 202, 218 , 219,
221, 224, 227' 229, 233, 238, 241, 243, 245, 250, 252
T efillah geshem ( oraçao pela chuva), p. 225
Tefillah tal (oraçao pedindo orvalho), p. 219
Tefillin ( inv6lucros contendo trechos da Tora), ·pp. 72, 76, 205
T efillot ( "oraç5es": su bentendendo siddur ou seder esta em lugar
de livro de oraç5es), p. 40
Torah (Lei, ensinamento, pentateuco), pp. 32, 52, 53, 69, 72,
73, 74, 81, 82, 86, 90, 95, 99, 112, 116, · 122, 128, 129,
130-137, 140, 141 , 149, 163, 189, 195, 200, 203 , 204, 205,
216, 221-224, 227 ' 229, 241, 249

Widduy ( "confissao dos pecados": a parte central da liturgia de


yom kippur), p. 238
W e-zot ha-berakah ( "esta bençao": a Ultima parashah do ano),
p. 136

Y amin nora'im ( "dias terdveis ": os dez dias de penitencia de


rosh ha-shanah em yom kippur), p. 230
Y om ha-din (" o dia de juizo": um dos nomes de rosh ha-shanah),
p. 232
Y om a-kippurim ("o dia da expiaçao": outro nome para yom
kippur), p. 236
Y om ha-xikkaron ("o dia memoravel": outro nome de rosh ha-
shanah), pp. 99, 230
Yom Kippur (" O dia da expiaçao": a maior das festas de peni-
tencia, chamada também de "grande sabado" ou simplesmente
"O dia"), pp. 26, 27, 34, 44, 210, 229, 230, 235, 236-241 ,
250
Yom teru'ah ("o dia do som": outro nome para rosh ha-shanah),
p. 231
Y om fov sheni shel galuyot (o segundo dia de festa cm uso na
diaspora), p. 228

260 261
fNDICE GERAL

7 Prefacio
11 Introduçao: a redescoberta do hebralsmo
12 Urna reviravolta hist6rica
13 A linguagem das origens
14 O umverso littirgico
17 Jesus e a liturg1a hebraica

19 I. AS FONTES DA LITURGIA JUDAICA

21 INDICAçOES DO NOVO TESTAMENTO


21 O templo e a sinagoga
23 o sabado
24 Pascoa e Pentecostes
26 As tendas ou os tabernaculos
26 A festa da dedicaçao e do yom kippur
27 A oraçao da berakah
29 Shema' Yisra'el e a tefillah
30 O "Pai-nosso"

35 AS FONTES DA MISHNAH
.35 Os tratados lirurgicos da Mishnah
37 O Talmud

39 O SIDDUR ( OU LIVRO DE ORAçOES)


40 Os primeiros Siddurim oficiais
41 Antes do Siddur de Rav Amram Gaon e de Saadia Gaon
42 Os Siddurim recentes

45 II. A ESTRUTURA DA LITURGIA ]UDAICA

47 A IMPORTANCIA E O SIGNIFICADO DA BERAKAH


48 A parabola do alfabeto
50 Tudo é razao para bendizer
52 A berakah pela Tora
5 3 A berakah e o milagre
54 A berakah e o temor
55 A berakah e o dom 128 A TERCEIRA UNIDADE ESTRUTIJRAL:
57 A berakah e a parùlha A QERI'AT TORAH
58 A berakah e a alegria
59 A relaçao entre berakah e petiçao 128 A arvore da vida
61 A f6rmula da berakah 129 A qeri'at Torah, tres vezes por semana
131 Tora, Targum e Midrash
62 A PRIMEIRA UNIDADE ESTRUTURAL: SHEMA' 135 A leitura das Escrituras nas sinagogas
YISRA'EL 137 Problemas hist6ricos
139 As bençiios pela T ora
62 1. Composiçao e origem 142 Um exemplo de homilia midrashica
65 2. O "credo" por excelencia do judaismo
66 A confissao de que ha um s6 Deus 150 III. MOMENTOS PESSOAIS E COMUNITARIOS
68 A aceitaçiio do "jugo do Reino de Deus" DA ORAçAO ]UDAICA
70 Israel, testemunha de Deus
71 3. Os tres t6picos bfblicos 150 BERAKOT INDIVIDUAIS
71 Obediencia e liberdade
73 A abundancia e a fecundidade 151 Ao acordar pela manha
75 A "assinatura" de Deus 154 Ao deitar-se à noite
77 4. As bençaos da manha 155 Durante o dia
78 O milagre da criaçao 156 Para casos espec.i'.ficos
81 O dom da Tora
83 O sim da obediencia e da fidelidade 158 A LITURGIA FAMILIAR
87 5. As bençiios da tarde 159 1. A Birkat ha-mazon
87 As portas do nascer e do pòr-do-sol 159 O simbolismo do ato de corner
89 A finalidade da vida 162 A Birkat ha-mo~i
90 A fidelidade de Deus 162 A Birkat ha-maz-0n
91 A oraçao por um " boro descanso" 168 2. A festa do shabbat
168 A imagem da esposa
93 A SEGUNDA UNIDADE ESTRUTURAL: A TEFILLAH 170 O acender das velas
94 1. T res nomes diferentes 172 O qiddush
96 2. Origem e estruturaçiio 175 A havdalah
97 Os principais testemunhos hist6ricos 177 3. O seder pascal
99 A tefillah nos dias festivos e feriais 178 A estrutura do seder
100 A estrutura da tefillah 180 Do exodo à terra promctida
103 O modo de recitar a tefillah 182 Os quatro modelos dc homctL
104 3. O texto e o comentario 185 Dayenu
104 As tres bençiios de louvor
109 As treze petiçoes intermediarias 188 A LITURGIA DAS SINAGOGAS
119 As tres bençaos de agradecimento 189 1. Nos dias uteis
122 4. A birkat ha-minim 190 O qaddish
123 A fonte rabfnica e suas interpretaç5es 192 A 'alenu
125 As variantes do texto 195 2. Durante o shabbat
126 A nao-aceitaçao do mal 195 A qabbalat shabbat

...
198 Nishmat kol }:iay
200 A leitura da Tora
201 O musaf
202 3. Por ocasiao de acontecimentos particulares
203 A berit-mila
204 O bar miswah
205 O rito do. matrimonio
206 Os funerais
208 Para a adm.issao dos prosélitos

210 IV. A CELEBRAçAO DAS FESTAS

211 AS FESTAS DA PEREGRINAçAO


211 O sentido da festa
214 As festas agrfcolas e sua historicizaçao
217 A festa de pesali: o esplendor das origens
219 A festa de shavu'ot: a oferta das primfcias
223 A festa sukkot: a alegria da colheita
228 O acréscimo de um novo dia festivo na diaspora

229 AS FESTAS AUSTERAS


23 1 Rosh ha-shanah
236 Yom kippur

241 AS FESTAS MENORES


242 J:lanukkah
244 Purim

247 V. DA IGNORANCIA AO CONHECIMENTO


E A COLABORAçAO

248 Liturgia judaica e liturgia crista


251 Judeus e cristaos rezam ao mesmo Deus e pelo mesmo Reino
25 5 fodice dos principais termos hebraicos e aramaicos

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