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«O que nos importa, é o deslocamento»


(Jean-Pierre Faye, 1997, p. 92).

RESUMO: Neste artigo, procuramos questionar a retirada no início dos anos 80 de um dos conceitos fundamentais
para a Análise do Discurso de orientação francesa, a saber, o de formação discursiva. Perguntamo-nos mais sobre
quais são os recursos interpretativos inicialmente veiculados por essa noção e focalizamos, então, nossa atenção
sobre o que Julian Bourg (2002) chama, no momento em que ele caracteriza o espírito de maio de 68, de
transvaliação imanente.

PALAVRAS – CHA
ALAVRAS VE
VE:: Discurso; História; Interpretação; Interdiscurso e Formação Discursiva.
CHAVE

RÉSUMÉ: Notre objectif dans cet article est d’interroger la mise en retrait d’une notion cardinale de l’analyse du
discours sur la base des sources d’archive de l’analyse du discours elle-même. Nous nous demandons plutôt sur
quelles sont les ressources interprétatives initialement véhiculées par cette notion et nous focalisons alors notre
attention sur ce que Julian Bourg (2002) appelle, au moment où il caractérise l’esprit de mai 68, la transvaluation
immanente.

TS – CLÉS : Discours ; Histoire ; Interpretation ; iInterdiscours et Formation Discoursive


MOTS
MO

O exercício intelectual que consiste em relação de nossos primeiros estudos concretos com
sustentar uma reflexão sobre seu próprio trajeto a definição canônica de formação discursiva
de pesquisa em análise de discurso, estendendo- (HAROCHE, HENRI, PÊCHEUX, 1971) em sua
se ao longo de um período de mais de trinta anos, articulação com o marxismo.
certamente não é fácil, mesmo se ele compreender - De outro lado, a retomada de críticas que
o grupo dos primeiros historiadores do discurso. se iniciaram no fim dos anos 70 em colaboração
À primeira vista, pareceu-nos, apoiado em diversas com Denise Maldidier, no quadro de uma história
pausas reflexivas desse trajeto, que a noção- da análise de discurso.
conceito de formação discursiva muito presente A respeito dessa informação, não se trata
em nossas primeiras pesquisas, desapareceu muito de propor uma narrativa de transformação, que,
rapidamente logo no início dos anos 80 e de ao entrelaçar a fonte inicial e a fonte crítica, nos
maneira definitiva no momento da volta efetiva, faria caminhar pelas primeiras verdades marxistas
em 1983, no seminário “História e lingüística”, até verdades mais atuais, emprestadas todas do
para nossos primeiros trabalhos. pós-modernismo, trajeto que justificaria a não-
Nosso objetivo presente é, então, questionar operatividade da noção-conceito de formação
essa retirada da noção fundamental da análise discursiva no início dos anos 80 nos textos dos
de discurso da base das fontes de arquivo da historiadores do discurso. Não se trata mais de
análise da própria análise de discurso. saber se a noção de formação discursiva é
De fato, dispomos de dois tipos de fontes: consubstancial à análise do discurso, isto é, se
- De um lado, os textos iniciais dos ela faz parte das categorizações fundamentais
historiadores, essencialmente Régine Robin e eu dessa nova disciplina. Perguntamo-nos mais sobre
mesmo, sobre o discurso como objeto da história, quais são os recursos interpretativos inicialmente
no qual se formula, no início dos anos 70, a veiculados por essa noção e focalizamos, então,

1
Agradecemos imensamente ao Prof. Jacques Guilhaumou por sua generosidade intelectual nos cedendo este
texto para publicação. Tradução Roberto Leiser Baronas e Nilton Milanez.
2
Professor – Pesquisador do Laboratório sobre os discursos políticos CNRS/ENS-LSH de Lyon – França.

Edição nº 003 - Junho 2005


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nossa atenção sobre o que Julian Bourg (2002) na ENS de Saint Cloud como ouvinte, renuncio a
chama, no momento em que ele caracteriza o essa colaboração para me dedicar inteiramente à
espírito de maio de 68, de transvaliação imanente. preparação do concurso.
Transvaliação no sentido em que valores de Caberá, portanto, à Régine Robin refletir
emancipação se transmitem no interior mesmo do sobre a posição problemática do historiador do
deslocamento da noção de formação discursiva discurso, no capítulo 4, intitulado “formação
para seu esgotamento conceitual. Imanência na social, prática discursiva e ideologia” - notaremos
medida em que o gesto constitutivo da análise de a ausência da noção-conceito de formação
discurso, sua inscrição na materialidade da língua, discursiva nesse título -. Ela o faz em um longo
se faz sempre presente. comentário da principal citação de Haroche/Henry/
A mobilização inicial dos recursos do Pêcheux de 1971 (“As formações ideológicas
marxismo ao redor da noção-conceito de formação comportam necessariamente como um de seus
discursiva sofreu, então, metamorfoses em alguma componentes uma ou várias formações discursivas
coisa que não é sua negação, pelo fato mesmo interligadas que determinam o que pode e deve
de conservar a materialidade e as potencialidades ser dito...”), o que nos distancia de Foucault. Era
de emancipação da análise de discurso. o momento inaugural em que considerávamos as
No entanto, descrever a transmutação formações discursivas como componentes de
dos valores supõe o emprego de uma narrativa formações ideológicas, ligadas a sistemas de
com o objetivo de manter permanente o percurso representação, portanto, a suas condições de
da narração do conceito na linha de horizonte do produção no interior de uma realidade social
sujeito falante. Pareceu-nos, portanto, possível marcada pela ideologia dominante. A primeira
construir uma narrativa no interior do círculo restrito aproximação crítica (Guilhaumou, Maldidier,
dos historiadores do discurso, na medida em que 1979) desse desenvolvimento teórico inaugural
o elemento formação-discursiva se desloca para sublinha que a espécie discursiva estava assim
chegar ao momento do acabamento de sua classificada em gênero ideológico e que a questão
operatividade na principal formulação do horizonte do sentido remetia-se a um exterior ideológico.
do sujeito falante em análise de discurso, com a Falou-se, freqüentemente, então, que esse
expressão de “deslocamento tendencioso do fantasma da teoria do discurso existiu somente por
3
sujeito” , enunciado por Michel Pêcheux. um período muito curto, porque, desde Les Vérites
4
de la Palice (1975) , ele é significativamente
I – A formação discursiva confrontada com evocado por Michel Pêcheux nos anexos em auxílio
a complexidade dos agenciamentos a uma correção que, destacadamente, interessa-
discursivos (os anos 70). nos:

Tudo começa, para o historiador do Seria absurdo fundar uma nova disciplina ou
discurso, com História e lingüística de Régine uma nova « teoria », a teoria materialista do
Robin, obra publicada em 1973, mas elaborada discurso. Alguns de nós têm muitas vezes em-
pregado esta formulação, mas é muito mais
em condições particulares, às quais estou
para delimitar as fronteiras de uma nova região
intimamente ligado. No início, o contrato com científica do que efetivamente para designar
Armand Colin foi assinado por Régine Robin e elementos conceituais (antes do conceito de
eu, quando acabava de sair do meu trabalho de formação discursiva) (PECHEUX, 1975, p. 266).
maîtrise sobre o discurso de Père Duchesne, de
Hébert. Dedicamos o verão de 1971 para reunir Notemos aqui a designação explícita do
os materiais da segunda parte intitulada caráter transvaliador da noção-conceito de
“Quelques méthodes d’approches des textes”. formação discursiva, enquanto elemento julgado
Começo, então, a redigir dois capítulos, sobre a estável na perspectiva de um dado imanente, a
lexicometria e os campos semânticos. Depois, materialidade significante.
solicitado para preparar a agregação de história Régine Robin, por sua vez, destaca a relação

3
Em francês: “délocalization tenencielle du sujet”
4
Em português Semântica e Discurso, Tradução Eni Orlandi, et al, 1995.

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com a conjuntura, portanto, o confronto das po- acontecimento de maio de 68, Charléty, que se
sições discursivas, certamente consideradas de formula mais claramente esse deslocamento:
maneira marxista com posições dos agentes no
campo das lutas sociais e ideológicas. Ela firma Assim, colocando-nos ao nível estritamente for-
sua posição em um texto de 1974, publicado em mal e sem prejudicar processos semânticos em
1976, discurso político e conjuntura, no qual relação com a ideologia e o interdiscurso, ve-
mos que, no aparelho imprensa, a formação
encontramos uma formulação programática em
retórica que é o editorial coloca em jogo efei-
seu artigo Dialétiques (1978), com Michel Grenon tos de conjuntura que remetem a uma estraté-
sob a seguinte forma: gia discursiva (1994, p. 62).

O estudo das formações discursivas em uma Trabalhando também com o aparelho


formação social, em suas relações de
imprensa, mas em uma conjuntura de 1793, faço
hegemonia, de alianças, de antagonismo e de
seus deslocamentos estratégicos, em uma con- nada mais que descrever estratégias discursivas,
juntura dada, está em via de elaboração (p.29). conservando a perspectiva do interdiscurso
jacobino. Um caso exemplar consiste na estratégia
Opera-se, assim, um deslocamento maior da de mascaramento por efeitos populares do
definição de formação discursiva no interior do discurso jacobino do Père Duchesne, de Hébert,
discurso como objeto da história em direção de em contraste com a ideologia da “democracia
uma problemática das estratégias discursivas. direta dos jornalistas raivosos”, em particular,
Tinha igualmente notificado (1975a) esse Jacques Roux ao longo da Revolução francesa”
deslocamento em meu primeiro artigo “sintético”, (GUILHAUMOU, 1975b).
publicado no mesmo número de Dialéticas, sob o Numa retomada crítica, escrevíamos, então,
ème
título de minha futura tese de 3 cycle, Denise Maldidier, Régine Robin e eu, em 1989:
Idéologies, discours et conjoncture en 1793
(1978a). Ao lhe dar o sub-título de Quelques Essa conceitualização – o interdiscurso – de-
signa o espaço discursivo e ideológico no qual
réflexions sur le jacobinisme, designava, então,
se deslocam as formações discursivas em fun-
uma temática, o jacobismo, que nunca abandonei ção das relações de dominação, subordinação,
desde então, inclusive em sua relação com o contradição; ela encontraria nossas próprias
marxismo, como prova o título de um artigo interrogações a partir de pesquisas concretas
recente (2002): Jacobinisme et marxisme : le nas quais estávamos engajados. Por isso, uma
libéralisme politique en débat. situação contraditória. Tentávamos utilizar todo
De fato, a noção-conceito de formação aparelho conceitual da teoria do discurso. Mas
discursiva se complexifica nos trabalhos concretos toda taxionomia se chocava com a complexida-
dos historiadores do discurso com base nas noções de dos agenciamentos discursivos (p. 55).
de efeito de conjuntura e e de estratégia discursiva.
Certamente a formação discursiva está ligada, em
meus primeiros trabalhos, a um interdiscurso Citávamos, então, um extrato de um texto
jacobino que tento, na apresentação do Nº. 2 inédito sobre Lingüística e análise do discurso.
(1975) do Bulletin d’analyse de discours de Lille Leitura de uma crise, do qual destaco o fato de
III, representar espacialmente, assimilando-o a uma querer “isolar no corpo complexo dos discurso dos
visão matricial do discurso montagnard enquanto elementos simples tais como o discurso burguês/
discurso dominante no seio do universo jacobino. discurso feudal, disvurso jacobino/discurso sem-
Mas Régine Robin e eu introduzimos também a culote”. Esse texto tinha sido dirigido em janeiro
noção de formação retórica que tende a substituir de 1978 em seguida ao seminário do México, de
aquela da formação discursiva para designar as novembro de 1977, que introduz, iremos ver, um
estratégias discursivas descritas enquanto efeitos segundo deslocamento.
da conjuntura, manifestações do momento atual. Mas terminemos sob um resumo, sob a pluma
Falo realmente da maneira mais extensiva de efeitos de Denise Maldidier, do primeiro deslocamento:
do momento da conjuntura e do acontecimento.
Vindo da história, Régine Robin e Jacques
Não é, portanto, por acaso, se é nesse estudo,
Guilhaumou refletiam sobre a relação entre
publicado em 1976 e conduzido conjuntamente ideologia e discurso, mas confrontados, em sua
por Denise Maldidider e Régine Robin, sobre um prática de historiadores, com a materialidade

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complexa dos textos, acentuavam o Seguindo sempre Pêcheux, convinha acabar


intrincamento das formações dicursivas. Fala- com uma concepção da formação discursiva
vam de estratégias discursivas, de como um bloco homogêneo relacionado a uma
enfrentamentos, de alianças (PÊCHEUX, 1990, ideologia dominante: ela é tomada de agora em
p. 55).
diante como não idêntica a ela mesma, em
referência à categoria spinozista de contradição.
II – Uma transvaliação no horizonte da
Tratava-se, então, de colocar a questão da
materialidade dos textos (os anos 80).
presença no seu interior da ideologia dominada.
Enuncia-se, também, nessa nova conjuntura, um
A seqüência de nossa narrativa mostra
destaque na referência à tradição marxista:
como, no início dos anos 80, a transvaliação se
acentua-se mais a história dos grupos sociais
aproxima de seu fim, o desaparecimento
subalternos, ao exemplo de Gramsci nos Cahiers
relativamente rápido da noção-conceito de
de prison (GUILHAUMOU, 1979).
formação discursiva em proveito de uma nova
Por um aparente paradoxo, é no momento
maneira de fazer da história do discurso.
em que todos os elementos são reunidos para
A seqüência de nosso texto mostra como no
dessecar a operatividade inicial da noção-conceito
início dos anos 80, a transvaliação se realiza com
de formação discursiva, que encontramos, sob a
o desaparecimento relativamente rápido da noção-
pluma de Jean-Jacques Courtine (1981) e de
conceito de formação discursiva em proveito de
Jean-Marie Marandin (1979) - enquanto eles
uma nova maneira de fazer a história do discurso.
acabam de produzir uma descrição situada do
Michel Pêcheux opera no México, em 1977,
discurso comunista em sua respectiva tese - um
um retorno a Foucault em um texto intitulado
último esforço para precisar o que há do trabalho
Remontos de Foucault à Spinoza e republicado
teórico sobre esse conceito. “Consideramos uma
mais tarde (1990). Da minha parte (1978b),
formação discursiva como heterogênea a ela
proponho uma análise sintética dos trabalhos
mesma”, concluem eles em sua intervenção no
sobre os discursos políticos contemporâneos que
seminário sobre as Matérialités discursives
têm no seu centro o trabalho de Jean-Pierre Faye
(CONEIN et alii, 1981).
e suas noções de aceitabilidade do discurso e de
A noção-conceito de formação discursiva é,
efeito de narrativa que representam de agora em
assim, tomada in fine no heterogêneo, ela não
diante um papel decisivo nas análises discursivas
remete mais a lugares enunciativos referentes a
do lado da história. Os historiadores do discurso
um exterior ideológico. A descrição do
criticam a partir desse momento o uso da noção-
deslocamento dos sujeitos, da passagem de um
conceito de formação discursiva. Essa noção deixa
lugar enunciativo a outro se torna primordial.
um grande espaço, segundo eles, para a tentação
Assim, o metadiscurso sobre as posições
taxionômica, tipológica, ela reproduz uma
enunciativas desaparece em proveito de uma
aproximação totalitária e extrema da formação
atenção a que Pêcheux chama, na introdução do
discursiva dominante que contrasta totalmente com
seminário Materialités discursives, “o
a maneira que Jean-Pierre Faye descreve os
deslocamento tendencioso do sujeito enunciador”
mecanismos de aceitabilidade da ideologia nazista
no interior mesmo da materialidade dos textos.
(1972). Não é possível, portanto, se apoiar na
Essa formulação teórica se traduzirá em meus
caracterização das formações discursivas como
primeiros estudos empíricos sobre os porta-vozes
sistemas de representação que somente fazem
jacobinos – do qual apresentamos uma primeira
sentido no discurso dominante.
síntese em 1991 – por uma acentuação do
Em outros termos, já asseveramos
contraste com a palavra dominante dos atores
anteriormente que a conexão entre fatos discursivos
legítimos a priori. É, com efeito, ao longo dos
e práticas não discursivas foi limitada a
anos 80 que conduzo uma vasta pesquisa nos
homologias em referência a uma exterioridade.
arquivos departamentais dos Bouches-du Rhône
Com efeito, tenho lido trabalhos de estudiosos
com o objetivo de restituir os recursos
alemães sobre pragmática histórica textual,
interpretativas dos próprios atores, cuja finalização
fortemente marcada pelas análises de Koselleck,
é a publicação de minha obra sobre Marseille
acerca do que chamamos atualmente de a conexão
républicaine (1992).
empírica entre a realidade e o discurso
Para dizer a verdade, a crítica do historiador
(GUILHAUMOU, 2001).

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do discurso remete, então, essencialmente, sobre histórico e aplicáveis de maneira mecânica à rea-
o peso do metadiscurso que tende a colar o lidade da Revolução francesa. São as categorias
analista de discurso em uma exterioridade explicativas da história da Revolução francesa tais
ideológica. Duvidosa em veicular insidiosamente como elas são elaboradas reflexivamente pelos
esse metadiscurso, portanto, em tornar inacessível pensadores contemporâneos do acontencimento
a materialidade própria dos textos, a noção de revolucionário, tanto alemãs como franceses, de-
formação discursiva cai em desuso. pois traduzidas nos primeiros textos de Marx, que
Além do caso dos historiadores do discurso, são levadas em conta no interior da leitura mar-
a formação do grupo de pesquisa “análise de xista do jacobismo. Trata-se das categorias de
discurso e leitura de arquivo”, em 1982, sob a entusiasmo/simpatia de aspiração, de porta-voz/
direção de Michel Pêcheux , marca bem o língua popular, de movimento popular/movimen-
momento em que essa noção desaparece do to revolucionário, e de terror/revolução perma-
campo de reflexão dos analistas do discurso sempre nente (GUILHAUMOU, 1996).
tão preocupados com a materialidade discursiva. Reivindico, então, abertamente (Guilhaumou,
Uma nova operação de leitura, a leitura de 1993), minha participação na virada interpretativa
arquivos, retornando à concepção de arquivo para e hermenêutica (DOSSE, 1995) sobre a base de
Foucault, é singularmente valorizada. Ela tem a uma leitura de Foucault, “novo arquivista”
vocação de validar, problematizando-o, o trabalho (DELEUZE, 1986), da referência maior à
do arquivo dos historiadores do discurso. É a época tradutibilidade das linguagens e das culturas para
em que, simultaneamente, chego ao fim de minhas Gramsci. E de uma tomada de consciência, graças
pesquisas sobre a questão das subsistências no ao sociólogo Bernard Conein, que trabalha um
século XVIII, de um lado, e sobre a propagação período sobre a Revolução francesa (1981), da
das palavras de ordem na descrição discursiva, etnometodologia e de sua concepção da
em 1793, ao redor de acontecimentos maiores, reflexividade das descrições sociais. Da formação
por exemplo a morte de Marat, de outro lado, discursiva ao enunciado de arquivo, trata-se do
valorizando sua publicação sobre um longo sujeito da enunciação, do objeto discursivo e da
período (1984b, 1986, 1989, 2000a), maneira noção-conceito em uma relação intrínseca ao
de sublinhar sua importância. próprio enunciado. Todo discurso faz parte de um
Assistimos, portanto, a uma retirada do enunciado, a distinção entre texto e contexto perde
conceito de formação discursiva e de sua imposição sua pertinência.
externa em proveito dos recursos interpretativos Foi, então, quando minha intervenção de
internas ao arquivo: toda uma série de categorias 1983, no seminário História e lingüística (1984a),
descritivas tomam o lugar do metadiscurso, tornou-se significativa ao mesmo tempo pelo
entregue ao julgamento de saber da historiografia. mecanismo de transvaliação presentemente
Não se trata, em nosso caso, de um abandono descrito e pelo seu resultado, o eclipse não
da referência ao marxismo. explicitado da noção de formação discursiva.
Ao contrário, a própria tradição marxista Reescrevo, aqui, o itinerário de dez anos de um
assume um valor de dimensão interpretativa, historiador do discurso sem nunca usar a noção
acrescendo-se de suas primeiras formulações, de formação discursiva, na medida em que abordo
portanto, da Revolução francesa para o jovem a questão da redescoberta dos textos sob os
Marx, pelo fato da tradutibilidade entre a auspícios de uma descrição empírica da
linguagem política francesa e a filosofia prática materialidade da língua no interior mesmo da
alemã, como indiquei, em 1996, em um artigo- discursividade do arquivo.
balanço significativamente intitulado: Révolution Podemos assim constatar a seguinte evolução:
française et tradition marxiste: une volonté de - De um procedimento de verificação de
refondation. Defino, então, um vasto campo de hipóteses já-lá com objetivo referencial,
análise que se estende tanto sobre a filosofia alemã, tendo como único objetivo situar, no nível
de Kant à Marx, quanto sobre os próprios discursos discursivo, efeitos de conjuntura já repertoriados
revolucionários. A partir desse momento, não há em uma história das ideologias,
mais necessidade de um corpo de conceitos - de um procedimento de descoberta da
“marxistas” (modo de produção, luta de classes, historicidade mesma dos enunciados de arquivo
revolução burguesa etc.), vindos do materialismo sobre a base da noção do trajeto temático que

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abre um leque interpretativo na configuração dos tanto, mais facilmente com uma história das prá-
recursos vindos da materialidade própria dos ticas linguageiras, evitando, assim, a taxionomia
enunciados. a priori dos discursos X,Y,Z que seriam a mesma
Situo, então, minhas pesquisas na articulação coisa que formações discursivas.
entre a descrição dos enunciados de arquivo que Lembremos, mais uma vez, que não estamos
configuram um trajeto temático, na colocação em aqui em uma narrativa de transformação. Não se
evidência dos efeitos de sentidos recuperáveis na trata de justificar o abandono de um conceito,
análise de um momento de corpus e da valorização inicialmente ligado à relação complexa entre
de uma série de categorias explicativas da Foucault e o marxismo, em proveito de uma única
Revolução francesa no interior mesmo da tradição descrição dos recursos textuais em uma perspectiva
marxista. hermenêutica, constatação do fato de que essas
Reformula-se, então, com um aumento de verdades iniciais estavam presas em um
vigor e do lado dos lingüistas, portanto, em metadiscurso exterior aos textos. A contrario, nossa
colaboração estreita com Denise Maldidier, nosso narrativa de uma transvaliação imanente aponta
interesse maior para funcionamentos lingüísticos a parte imanente de uma análise histórica dos
precisos tais como a coordenação, a tematização discursos, sua relação com a materialidade da
e a negação, a título de ancoragem do discurso língua, valorizando as configurações textuais de
na materialidade da língua. Essa preocupação acontecimentos emancipadores, lá onde se auto-
está no centro da obra que publicamos, Régine legitimam porta-vozes distintos dos atores legítimos
Robin e eu, em 1994, sobre nossos trabalhos em a priori, portanto, sempre deslocados em relação
comum com Denise Maldidier, seguida de seu a um posicionamento inicial. Ele sublinha somente
desaparecimento brutal. que o encontro, para dizer a verdade acidental,
entre Foucault e a tradição marxista, baseada na
Conclusão noção de formação discursiva, produziu mais
efeitos sobre o devir da análise de discurso que
É preciso, portanto, concluir que voltar aos de outras noções desse campo de pesquisa.
usos “ antigos” da noção-conceito de formação Colocar a atenção sobre o fato mesmo da
discursiva não tem sentido na perspectiva presente acidentalidade que gera um processo de
do historiador lingüista? De fato, essa noção, deslocamento de valores consiste em romper com
tendo representado um papel essencial no seu a concepção usual da construção científica de
tempo, não está mais verdadeiramente em uma nova disciplina sobre a base de categorias
adequação com a história lingüística dos usos necessárias.
conceituais (GUILHAUMOU, 2000b) tal como a Assim, ao encontro de uma análise de discurso
concebo atualmente no horizonte de uma conexão como disciplina constituída que se interrogava
empírica entre a realidade e o discurso. Uma sobre a necessidade de conservar tal ou tal de
conexão que destaca a distinção entre os fatos seus conceitos iniciais e, presentemente, aquele
reais e os fatos do discurso, determinando que o de formação discursiva, o historiador do discurso
conhecimento da realidade histórica passe pela se inscreve mais em uma tradição interpretativa,
descrição de suas condições linguageiras de construída ao redor do marxismo e, mais
existência (GUILHAUMOU, 2001). Chegando a amplamente, no espírito de maio de 68, no qual
conclusão de formulação central de “deslocamento se conserva a importância emancipatória da
tendencioso dos sujeitos enunciativos”, sob a análise de discurso em relação a sua forma
pluma de Michel Pêcheux, a noção de formação transvaliada de um momento a outro de seu trajeto.
discursiva deixa, de agora em diante, o lugar para Longe de qualquer desencantamento, ficamos,
o sujeito empírico, um sujeito ao mesmo tempo portanto, em uma narrativa de metamorfoses, de
ancorado em blocos de realidade e tomado em transmutações, no interior mesmo da tradução
seus efeitos discursivos transversos. A dimensão entre a teoria e a prática, resumindo, na
teórica da análise de discurso se investe de transvaliação imanente que permitiu estabelecer
construções abstratas vindas de materiais empíricos um dispositivo relativamente estável da análise de
– na ocorrência dos elementos da língua empírica discurso do lado da história, sem renúncia à
– coletadas com base em um espírito de pesquisa postura marxista inicial. Ao encontro de todo
junto aos atores históricos. Ela se articula, por- estado de coisas existente, a descrição da

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materialidade dos textos focaliza nossa atenção COURTINE J.J. Analyse du discours politique. Le
sobre as práticas discursivas de sujeito de discours communiste adressé aux chrétiens,
enunciação tomadas em relações de reciprocidade Langages, n. 62, 1981.
no horizonte de uma atividade livre, portanto,
emancipatória. A atenção é colocada sobre a COURTINE J.J. Analyse du discours politique. Le
dimensão inventiva, portanto, interpretativa, do discours communiste adressé aux chrétiens,
enunciado. Langages, n. 62, 1982.
Quer-se dizer que ao redor do uso de
conceitos a respeito daquele de formação DELEUZE G. Foucault. Paris: Editions de Minuit,
discursiva no horizonte do marxismo, existiram 1986.
recursos interpretativos, uma tradução do
conceitual na prática, que abriram possibilidades DONZEL A. Guilhaumou J. Les acteurs du champ
e permissões para novos experimentos discursivos. de l’exclusion à la lumière de la tradition civique
A palavra emancipada dos dominados está bem marseillaise, Exclusions au cœur de la Cité, D.
no final desse percurso. Tentei mostrá-lo em minha Schnapper éd. Paris: Anthropos, 2001. p. 69-100.
obra sobre La parole des sans (1998b). Mas seria
preciso, então, levar a termo um itinerário DOSSE F. L’empire du sens. L’humanisation des
complexo, mantendo os valores éticos da análise sciences humaines. Paris: La Découverte, 1995.
do discurso. Sempre me desviei do hábito de
reproduzir o estado das coisas em proveito de um FAYE J-.P. Langages totalitaires. Paris: Hermann,
destaque da intencionalidade do analista de 1972.
discurso, afirmada até na construção de sua
problemática emancipatória com os recursos FAYE J-.P. Qu’est-ce que la philosophie? Paris:
próprios dos atores, dos objetos e das noções- A. Colin, 1997.
conceitos. Isso ocorre com o nosso presente
trabalho, em colaboração com Béatrice Mesini et GRENON M. et Robin R. Alice dans le droit
Jean-Noël Pelen (1999), sobre as “narrativas de chemin ou la transition dans les superstructures.
vida” dos ditos excluídos da sociedade Dialectiques, n. 24-25, 1978. p. 15-28.
contemporânea e da relação com suas ações
emancipatórias na tradição cívica originária da GUILHAUMOU J. Discours, idéologie et
Revolução francesa (DONZEL, GUILHAUMOU, conjoncture en 1793, Dialectiques, n. 10-11,
2001). 1975a. p. 33-58.

Aceito para publicação em 25/02/2005. GUILHAUMOU J. Moment actuel et processus


discursif : Hébert et Roux. Bulletin du centre
d’analyse de discours, n. 2, Presses Universitaires
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS de Lille, 1975b. p.147-173.

BOURG J. Les contributions accidentelles du GUILHAUMOU J. Discours, idéologies et


marxisme au renouveau des droits de l’homme en conjoncture. L’exemple des discours
ème
France dans l’après-68, Les libéralismes au regard révolutionnaires (1792-1794), Thèse de 3 cycle,
de l’histoire, F. Gauthier et J. Guilhaumou éds., Université de Provence, M. Vovelle dir, 1978a.
Actuel Marx, n. 32, 2002. p. 125-138.
GUILHAUMOU J. Les discours politiques
contemporains (autour de Jean-Pierre Faye),
CONEIN B. La position de porte-parole dans la
Cahiers d’histoire de l’Institut Maurice Thorez, n.
Révolution française, Peuple et pouvoir. Essais de
28, 1978b. p. 40-79.
lexicologie, M. Glatigny et J. Guilhaumou éds.,
Presses Universitaires de Lille, 1981. p. 153-164. GUILHAUMOU J. Hégémonie et jacobinisme dans
les Cahiers de prison. Gramsci et l’histoire de la
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