PUC – SP
São Paulo
2018
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC – SP
São Paulo
2018
BANCA EXAMINADORA
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Este trabalho contou com financiamento do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico (CNPq).
Dedico este trabalho a todos os brasileirinhos
e brasileirinhas que aguardam por uma vaga na
creche. Que suas vozes e suas ações sejam ouvidas
e vistas por todos!
AGRADECIMENTOS
À irmandade formada, ao longo dessa trajetória, com Ana Carolina Salgado Jardim,
André Felipe C. Santos, Denise M. Alexandre, Elizabeth Feffermann, Márcia Gouveia
Lousada, Nadja R. da Silva, Tânia Regina B. P. Morgado e Vanusa R. Coêlho.
À querida amiga Iria Helena Bertolin, pelos socorros às questões práticas da vida e
à sua torcida sempre animada.
À querida Professora Helena Lima, que durante todo esse percurso fez parte da
torcida ativa que vibrava, lia os textos e sempre trazia palavras de consolo, força e valiosas
considerações para o texto.
Aos familiares e amigos que, de perto ou de longe, contribuíram e torceram para que
esse dia chegasse.
À minha sobrinha, Isadora B. Maruca, que, do alto dos seus sete anos, impôs-se a
tarefa de ler e “corrigir” o texto dos agradecimentos, e, ainda, pelo orgulho sempre demonstrado
por ter uma tia professora.
Ao meu filho, Theo Biasoli Stanich, minha eterna gratidão por ter sido sempre tão
companheiro e compreensivo. Ao longo desses seis anos de estudo, assistimos a várias aulas,
participamos de congressos, demos conta das orientações, fizemos inúmeras pesquisas em
bibliotecas e os aprendizados compartilhados nesse percurso foram tantos! Você foi o melhor
acompanhante de mestrado e doutorado que eu poderia ter tido nessa vida! Uma alegria, ao final
desse processo, ouvir sua conclusão sobre a temática contando com apenas onze anos de idade:
“Mãe, coloca na tua tese que o governo precisa cuidar melhor da Educação, porque as crianças
são o futuro desse país!”
RESUMO
The right to Education of children from 0 to 3 years old and the daycare center/nursery space:
social representations of students in the Pedagogy course
In Brazil, the Federal Constitution of 1988, together with the Law on Guidelines and Bases
(Law 9.394 / 1996), constituted the first initiatives for the construction of a public policy that
would ensure, among social and fundamental rights, the Education of children from 0 to 3 years
old in daycare center/nurseries. Covered by the status of subjective public law, of a universal
character, equated with the right to life and freedom, the right to education of children from
0 to 3 years old has become legally enforceable in cases of non-offer or non-regular offer
by the competent public entity. In spite of the legal innovations, what happened in practice
was a mismatch of the normative aspects and the real conditions of the public equipment that
could not even meet the demand for access. Considering that Law is configured as a scientific
knowledge that carries a symbolic dimension, it is verified that its effectiveness is conditioned
to the struggles and negotiations undertaken through communication in the social sphere.
Moreover, such communications involve specific concepts about their ownership that include
conceptions of children, education and representations about the role of the family and the very
space of the daycare center/nursery that may differ according to the group and their spatio-
temporal insertion. Based on the theoretical and methodological contribution of the theory of
social representations, the present study had as objective to offer an explanatory frame about
the way in which the students of the Pedagogy course, of a university situated in the city of
São Paulo, understood and represented the right to education of children from 0 to 3 years
old, as well as the daycare center/nursery space. Data was gathered through the application
of three instruments: a questionnaire/survey to find out the participants’ profile; another
questionnaire/survey containing open questions with the aim of capturing students’ opinions
on the objects entitled to “education” and “daycare center/nursery”; and a third questionnaire/
survey, composed of three scenarios designed in the form of problem-situations in order to
capture the representations of these students from the three dimensions that constitute a social
representation: information, image and attitude. For the systematization and analysis of the
data collected, the content analysis procedure was used. The results indicated that there is no
representation built by this group of students on the right to education of children from 0 to 3
years old, but there are other representational families that are articulated around the concept of
education, the role assigned to families and to the space itself of daycare center/nursery.
Au Brésil, la Constitution Fédérale de 1988, ainsi que la loi des lignes directrices et des bases
(Loi 9.394 / 1996), se sont constituées comme les premières initiatives pour la construction d’une
politique publique qui assurerait, parmi les droits sociaux et fondamentaux, l’éducation des
enfants de 0 à 3 ans dans les garderies. Revêtu par le statut du droit public subjectif de caractère
universel, équivalent au droit à la vie et à la liberté, le droit à l’éducation des enfants de 0 à 3 ans
est devenu exigible devant les tribunaux en cas de non-fourniture ou de fourniture irrégulière
par l’entité publique compétente. Malgré les innovations juridiques, ce qu’on a vérifié dans
la pratique a été un écart entre les aspects normatifs et les conditions réelles des équipements
publics qui ne pouvaient même pas répondre à la demande d’accès. Si l’on considère que le Droit
se configure comme une connaissance scientifique qui comprend une dimension symbolique,
on vérifie que son efficacité est soumise aux luttes et aux négociations qui sont entreprises à
travers la communication dans la sphère sociale. De plus, ces communications impliquent des
concepts spécifiques au sujet de la titularité qui comprennent des conceptions sur l’enfant,
sur l’éducation et sur les représentations à propos du rôle de la famille et de l’espace de la
garderie lui-même qui peuvent différer en fonction du groupe et de son insertion espace-temps.
Développée à partir des apports théoriques et méthodologiques de la théorie des représentations
sociales, cette étude a visé à offrir un panorama explicatif de la façon dont les étudiants du cours
de Pédagogie d’une Université située dans la ville de São Paulo comprenaient et représentaient
le droit à l’éducation et à l’espace de la garderie des enfants de 0 à 3 ans. Le recueil de données
a été réalisé à travers l’application de trois instruments : un questionnaire pour la vérification
du profil des participants ; un autre questionnaire contenant des questions ouvertes dans le but
d’obtenir les opinions des étudiants sur les objets « droit à l’éducation » et « garderie » ; et
un troisième questionnaire composé de trois panoramas organisés sous forme de situations-
problèmes afin d’identifier les représentations de ces étudiants à partir des trois dimensions
qui constituent une représentation sociale : information, image et attitude. Pour l’utilisation
et l’analyse des données recueillies, la procédure de l’analyse de contenu a été utilisée. Les
résultats ont indiqué qu’il n’y a pas de représentation construite par ce groupe d’étudiants sur
le droit à l’éducation des enfants de 0 à 3 ans, mais d’autres familles de représentations qui
s’articulent autour du concept d’éducation, du rôle attribué aux familles et à l’espace de la
garderie lui-même.
Gráfico 9. Etapas que compõem a Educação Básica, segundo os participantes ............... 102
Gráfico 10. Idade em que a matrícula de crianças se torna obrigatória segundo os par-
ticipantes.................................................................................................................. 103
Gráfico 13. Para que existe a creche pública, segundo os participantes............................... 111
Gráfico 14. Para quem a creche pública foi feita, segundo os participantes........................ 114
LISTA DE TABELAS
Tabela 2. Proporção de pessoas com 60 anos de idade ou mais, com limitação funcio-
nal para realizar atividades de vida diária (AVD), conforme o sexo e grupos
de idade..................................................................................................................... 36
Tabela 4. Cargo ou função – participantes que não atuam na área da Educação............ 100
LISTA DE QUADROS
Quadro 1. Organização das etapas da Educação Básica, segundo art. 2.º da Resolução
3, de 3 de agosto de 2005........................................................................................ 58
INTRODUÇÃO........................................................................................................................... 15
APÊNDICES
INTRODUÇÃO
Por esse motivo, delimitou-se a temática do presente estudo, entre as áreas do Direito
e da Educação, com o objetivo de oferecer uma melhor compreensão sobre o modo como os
estudantes de Pedagogia compreendem e representam o direito à educação de crianças de 0 a 3
anos e o espaço da creche como local onde se exerce tal direito.
1
Termo utilizado por Bobbio (2004) para indicar as reivindicações por direitos empreendidas na esfera social,
as quais surgiram a partir da fixação dos direitos humanos à vida e à liberdade e se desdobraram em reivin-
dicações especificamente voltadas para assegurar a fruição desses primeiros, constituindo-se nas diferentes
gerações de direitos humanos que se observam na atualidade (direitos fundamentais, sociais e difusos ou
coletivos).
16
tentativa de assegurar a vida e a dignidade humana, marcada por um espaço simbólico de luta e
ação, empreendido na esfera social (PIOVESAN, 2006, p. 37).
No Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, entre os anos de 2006 a 2008, das 485
decisões proferidas relacionadas ao direito à educação 175 diziam respeito à educação infantil
e 83% delas estavam relacionadas à demanda por vaga em creche (SILVEIRA, 2010, p. 109).
preceito jurídico se situa no interior de grupos sociais específicos e é por estes compreendido e
vivenciado.
Do ponto de vista do Poder Judiciário, tais demandas que visavam assegurar o direito à
educação de crianças de 0 a 3 anos passaram a ser norteadas de forma positiva, sobretudo após o
posicionamento do Supremo Tribunal Federal ilustrado pelos históricos julgamentos proferidos
pelos Ministros Marco Aurélio e Celso de Mello, que, em sede de Recurso Extraordinário
respectivamente representado pelos julgamentos números 431.773,2004 e 410.715-5, de
2005, trataram de reforçar a prioridade do acesso à educação infantil, da qual a creche é parte,
afastando, de plano, quaisquer justificativas que tivessem o claro objetivo de, dolosamente,
exonerar o Poder Público do cumprimento de suas obrigações constitucionais.
Conforme preceitua o artigo 208, inciso IV, da Carta Federal, consubstancia dever
do Estado a educação, garantindo o atendimento em creche e pré-escola às crianças
de zero a seis anos de idade. O Estado – União, Estados propriamente ditos, ou seja,
unidades federadas, e Municípios – deve aparelhar-se para a observância irrestrita dos
ditames constitucionais, não cabendo tergiversar mediante escusas relacionadas com
a deficiência de caixa (Recurso Extraordinário 431.773/2004).
[...] não se mostrará lícito, contudo, ao Poder Público, em tal hipótese, criar obstáculo
artificial que revele – a partir de indevida manipulação de sua atividade financeira e/
ou política – administrativa – o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar,
de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e
dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência. [...] a cláusula da “reser-
va do possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não
pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se dolosamente, do
cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta
governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de di-
reitos constitucionais [...] (Recurso Extraordinário 410.715-5/2005).
Contudo, o que não se observa nessas decisões que asseguraram o direito à educação de
crianças de 0 a 3 anos é, justamente, o aspecto factual que comporta as condições de acesso ante
a estrutura dos equipamentos públicos e recursos humanos disponíveis na esfera social, bem
como as implicações de tais decisões na lista de cadastro já realizada por ordem cronológica, uma
vez que impelem prioridade absoluta no atendimento daqueles que demandaram judicialmente
em detrimento dos demais que, já cadastrados, não buscaram o Poder Judiciário, bem como
prioriza o acesso sem considerar a questão da qualidade do serviço que será ofertado.
família. Integrada à área da assistência social numa perspectiva que aliava cuidados e saúde
voltados aos filhos de famílias que se encontravam em estado de extrema vulnerabilidade ou
da classe trabalhadora, na qual as mulheres estavam inseridas. Caracterizava-se esse espaço
como local de acolhimento e custódia, com uma estrutura nem sempre adequada e altamente
dependente de ações filantrópicas e de caridade para a complementação dos recursos financeiros
necessários à sua manutenção (VIEIRA, 2016).
2
Adotada pela Assembleia das Nações Unidas, de 20 de novembro de 1959, e ratificada pelo Brasil, pelo art.
84, XXI, da Constituição, e tendo em vista o disposto nos arts. 1.º da Lei 91, de 28 de agosto de 1935, e 1,º do
Decreto 50.517, de 2 de maio de 1961.
3
Para saber mais sobre as políticas públicas voltadas à primeira infância na América Latina, acesse o site do
Sistema de Información sobre la Primera Infancia en América Latina, organizado com o apoio da Unesco.
Disponível em: <http://www.sipi.siteal.iipe.unesco.org/>.
19
Nesse momento, no Brasil o espaço da creche, pelo menos na esfera jurídica, deixa
de se constituir como local de tutela e parte de uma política de suporte às famílias operárias e
vulneráveis para tornar-se o lócus onde se exerce o direito à educação de crianças de 0 a 3 anos.
Nesse cenário, apesar dos dispositivos legais e dos novos paradigmas implementados
envolvendo o direito à educação das crianças de 0 a 3 anos e o próprio espaço da creche, o que
se verificou na prática foi que a sua inclusão no rol dos direitos fundamentais, como direito
público subjetivo da criança e de caráter universal, acabou por não se concretizar conforme
inicialmente planejado na medida em que a estrutura dos equipamentos públicos disponíveis
não apresentava capacidade para acolher toda a demanda.
Nesse cenário, em que o normativo se choca com os fatos gerando conflitos de toda a
ordem, para o presente estudo delimitou-se o objetivo geral de analisar quais as representações
que os estudantes de Pedagogia têm sobre o direito à educação de crianças de 0 a 3 anos e sobre
a constituição do espaço da creche como local onde esse direito é exercido.
4
Para conhecer as modalidades de atendimento, vide portfólio de serviços disponível em <http://www.icbf.gov.
co/portal/page/portal/PortafolioICBF/all/hogares-comunitarios-integrales>. Acesso em: 20 nov. 2016.
5
Vide trabalhos desenvolvidos por Santos (2012), Nazareth (2011) e Urra (2011) que analisaram a imagem do
espaço da creche e sua clientela retratada na mídia impressa.
20
Tal abordagem foi inaugurada pela Sociologia da Infância que situa a criança não
como um devir, mas explicita seu papel geracional como potência para a criação de uma cultura
própria e desvela o pacto geracional que se estabelece entre as diferentes gerações enquanto
unidade estruturante da vida social. Esses aspectos se aproximam dos novos paradigmas legais
nacionais: Constituição Federal de 1998; Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990; Lei de
Diretrizes e Bases da Educação, 1996.
6
A partir do Centro Europeu das Nações Unidas, sediado em Viena, em 1991, um conjunto de relatórios sobre
a situação de crianças em vários países foi editado e apresentado por Jens Qvortrup, constituindo-se “uma
referência essencial (um marco miliário) do campo” (SARMENTO, 2013, p. 16).
21
Tendo em vista a delimitação das duas primeiras dimensões do conflito, situa-se uma
terceira dimensão que se debruça sobre o modo como esse conflito está sendo compreendido
pelos estudantes de Pedagogia, numa perspectiva psicossocial de análise proporcionada por uma
abordagem dialógica interacionista7 (MARKOVÁ, 2017) que se encontra fundamentada por
meio da Teoria das Representações Sociais (MOSCOVICI, 2011; 2012; MARKOVÁ, 2017).
7
Abordagem dialógica – tendo como premissas a interdependência e a interação entre o Ego (sujeito) e o Alter
(Outro/Estado/Lei) e a “experiência engajada” enraizada no “pensamento de senso comum e no conhecimento
socialmente compartilhado” (MARKOVÁ, 2017, p. 23).
Epistemologia interacionista volta-se para o estudo dos “modos como os homens constroem e criam sentido e
entendem os fenômenos sociais constituintes da realidade social em que vivem” (MARKOVÁ, 2017, p. 118).
22
metodológica para a análise dos conflitos que, de modo semelhante ao tratado neste estudo,
chegam à esfera judicial.
Essa dimensão mantém proximidade com a luta por reconhecimento proposta por
Honneth (2009), no qual o foco volta-se para as questões que envolvem a validação social de
um direito normativo e suas implicações na construção da justiça social (MENDONÇA, 2007),
sintetizando uma teoria ética da justiça para a análise dos conflitos sociais que se incumbe do
campo de negociação e dos processos de reconhecimento do direito social que resultam (ou
não) naquilo que definiu como autorrespeito, ou seja, na possibilidade da expressão simbólica
concedida socialmente ao demandante e que lhe permite reclamar direitos social e coletivamente
compartilhados, justificados e validados por todos, o que não se confunde, definitivamente, com
a capacidade distributiva do direito em si.8
Para tanto, foram selecionados estudantes dos 3.º/4.º e 5.º semestres que já tivessem
cursado alguma disciplina relacionada à educação infantil, bem como alguma disciplina
relacionada à legislação nacional que regulamenta a educação básica.
8
Com relação à Teoria do Reconhecimento trazida Honneth (2009), cabe esclarecer a ideia de que as desi-
gualdades sociais se encontram estruturadas muito mais em padrões simbólicos de não reconhecimento, que
afetam a autorrealização dos sujeitos (composta por sua autoconfiança, o autorrespeito e autoestima), do que
no seu caráter distributivo, em termos de redistribuição de recursos materiais, conforme propõe sua principal
opositora Nancy Fraser (MENDONÇA, 2007).
23
Esses dados foram examinados utilizando-se a análise de conteúdo proposta por Franco
(2008), atendendo, por conseguinte, aos objetivos propostos por este estudo que se organiza em
quatro capítulos a saber.
9
Instrumento amplamente utilizado na área da avaliação educacional que permite, segundo Santos (2017, p.
146), “a estruturação de descritores na caracterização do objeto investigado, permitindo, por conseguinte, ao
pesquisador melhor delimitar o seu estudo focalizando específicos pontos do objeto/fenômeno investigado”.
24
Sociais (MOSCOVICI, 2011; 2012; MARKOVÁ, 2017) e suas inter-relações com os estudos
desenvolvidos por Honneth (2009), Béal et al. (2014), Oliveira (2010) e Inaudi et al. (2014),
que resgatam os aspectos simbólicos envolvidos na luta pelo reconhecimento de direitos sociais,
numa perspectiva psicossocial que contempla contradições, avanços e retrocessos presentes
em tais processos, sem desconsiderar a complexidade implicada no fenômeno sobre o qual se
debruça este estudo.
1
A CRIANÇA, A INFÂNCIA E A EDUCAÇÃO: CONTRIBUIÇÕES DA
SOCIOLOGIA DA INFÂNCIA E DA FILOSOFIA
Se alguém disser que as crianças são seres humanos, ninguém discordará, embo-
ra esse status seja constantemente colocado em dúvida, visto que as capacidades e
competências infantis são supostamente incompletas se comparadas às de uma pes-
soa completamente crescida; as crianças também não são cidadãs, no sentido mais
abrangente do termo, pois não têm, por exemplo, a oportunidade de atuar como mem-
bros de uma sociedade democrática; elas têm direitos, mas estão longe de ter todos os
direitos dos quais os adultos dispõem.
Qvortrup
Este capítulo tem por objetivo apresentar o conjunto teórico que fundamenta os
conceitos de criança e de infância que se colocaram visíveis a partir da Constituição Federal
de 1988 e da Lei de Diretrizes e Bases (Lei 9.394/1996), bem como explicar o lugar social da
infância, contemplados numa perspectiva tanto sociológica, por meio dos estudos desenvolvidos
por Qvortrup (1999; 2011a; 2011b; 2014), quanto filosófica, a partir da análise proposta por
Arendt (1989; 2007; 2011) acerca das condições, atividades e esferas que compõem a vida
humana. Coloca-se, nessa perspectiva, o objetivo de oferecer uma melhor compreensão sobre
o percurso que resultou, nos marcos legais vigentes, na consideração das crianças e da infância
como centro de uma política pública.
Para tanto, foram delineadas algumas perguntas com o intuito de nortear a jornada
proposta para este capítulo: 1. Como se deu o processo de reconhecimento da criança e da
infância, como sujeitos de direitos e categoria geracional e onde tal processo se apoia? 2. Em
quais espaços a infância desfrutava de visibilidade? 3. Quais processos resultaram em sua
invisibilidade? 4. Como e onde a luta por uma educação universalizante foi empreendida? 5.
Quais os reflexos dessa luta e sua relação com o atual paradigma proposto nos textos legais
nacionais vigentes?
modos de produção, mas modificou a própria estrutura social colocando em xeque a infância
em relação às demais etapas geracionais, modificando os espaços a ela destinados, sua própria
ação e pertença dentro da esfera pública.
O primeiro constructo proposto por Qvortrup (2014) que norteia de início a investigação
é o de infância sociológica como unidade de observação, o que significa situar o ponto de
partida para pensar nas crianças de 0 a 3 anos pela sua caracterização como etapa geracional
a partir das relações que estabelecem com as demais gerações, e não do delineamento de suas
características individuais compostas pelas especificidades do seu desenvolvimento emocional,
cognitivo e social.
Perspectiva essa também apresentada por Arendt (2011) quando situa os recém-
chegados por nascimento enquanto etapa geracional que só se estabelece por meio das relações
empreendidas com as gerações antecedentes e pela manutenção de um mundo comum. Mundo
esse que é sempre velho e anterior às suas chegadas e, por isso, implica a iniciação dos mais
jovens por meio da mediação irrenunciável dos adultos a fim de que possam, ao mesmo tempo,
receber esse mundo como um legado e empreender algo novo que permita a continuidade dele.
[...] o mundo comum é aquilo que adentramos ao nascer e que deixamos para trás
quando morremos. Transcende a duração de nossa vida tanto no passado quanto no
futuro [...]. É isto que temos em comum não só com aqueles que vivem conosco,
mas também com aqueles que aqui estiveram antes e aqueles que virão depois de nós
(ARENDT, 2007, p. 64-65).
No entanto, os conceitos trazidos por Qvortrup (2014) e Arendt (2011) dizem respeito
a uma época anterior ao período da industrialização. Referem-se ambos ao papel desempenhado
pela infância e pelos mais jovens em sociedades agrícolas, profundamente alterado após a
modificação dos modos de produção.
À medida que Qvortrup (2011a) centra sua análise na separação entre reprodução e
produção observada com o início da industrialização e o lugar que a infância ocupou nesse
cenário no tocante à manutenção do pacto geracional, Arendt (2007), por sua vez, dirige
sua análise a partir da consideração do modo como esse mesmo processo de industrialização
27
Retomando a história, até o início do século XIX as crianças eram consideradas úteis
aos processos da produção agrícola, como mão de obra e força de trabalho no campo e, nesse
cenário, “quem não tinha filhos era percebido como desprovido de um papel ativo nos esforços
comuns da comunidade, colocando em risco a possibilidade de receber provisão financeira e
cuidados” (QVORTRUP, 2011a, p. 327).
Explica Qvortrup (2014, p. 36) que as crianças não eram visíveis a partir de suas
individualidades ou necessidades, mas consideradas como força de trabalho necessária à
manutenção de sua coletividade e, por essa razão, precisavam ser conservadas não no aspecto
privado de suas vidas, mas como força de trabalho, dentro do tecido social, na esfera pública.
As crianças, abrangidas dentro de tal lógica utilitarista, passaram a ser vistas como
desnecessárias e até mesmo como um peso para suas famílias, uma vez que, retirada sua força
de trabalho, não mais representavam benefícios imediatos à comunidade, mas as inseriam nos
processos de sobrevivência dentro de seus núcleos familiares, o que foi um grande equívoco,
que talvez tenha se constituído como a mola propulsora para o resgate observado nas legislações
a partir dos anos 1900.
[...] na perspectiva dos adultos, as crianças perderam sua posição como pessoas úteis
quando foram finalmente transferidas das atividades manuais das eras pré-industriais
para as atividades mentais das escolas, no início da industrialização (QVORTRUP,
2014, p. 32).
Por meio da distinção que Arendt (2007) propõe entre os conceitos de labor, trabalho
e ação, condições estas nas quais “a vida foi dada ao homem na Terra” e que constituem o que
a autora define por vita activa – como aquela na qual “a vida humana se empenha ativamente
em fazer algo” –, têm-se na modificação das esferas privada, social e pública algumas respostas
sobre o apagamento da infância como etapa geracional que explicariam as razões do atual
movimento de resgate por meio da legislação.
[...] a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano, cujos cres-
cimento espontâneo, metabolismo e eventual declínio têm a ver com as necessidades
vitais produzidas e introduzidas pelo labor no processo da vida. A condição humana
do labor é a vida. [...] O labor assegura não apenas a sobrevivência do indivíduo, mas
a vida da espécie (ARENDT, 2007, p. 16).
Por fim, apresenta-se a ação como a “única atividade que se exerce diretamente entre
os homens sem a mediação das coisas ou da matéria” (ARENDT, 2007, p. 15) e, sendo a única
atividade a prescindir a existência de uma sociedade, está condicionada à ideia de pluralidade
que consiste no fato de que homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo, sendo
seu espaço de desenvolvimento a esfera pública.
[...] mas esta pluralidade é especificamente a condição [...] de toda a vida política.
[...] A pluralidade é a condição da ação humana pelo fato de sermos todos os mesmos,
isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha
existido, exista ou venha existir (ARENDT, 2007, p. 15-16).
29
É o conjunto dessas atividades que Arendt (2007, p. 16) define por vita activa, haja
vista que o labor garante a permanência da espécie, o trabalho assegura certa permanência e
durabilidade à vida e a ação preserva a manutenção de corpos políticos e “cria a condição para
a lembrança, ou seja, para a história”, que garantirão a imortalidade humana de um mundo
comum, apesar da mortalidade do homem.
O labor e o trabalho, bem como a ação, têm também raízes na natalidade, na medida em
que sua tarefa é produzir e preservar o mundo para o constante influxo de recém-che-
gados que vêm a este mundo na qualidade de estranhos, além de prevê-los e levá-los
em conta. Não obstante, das três atividades, a ação é a mais intimamente relacionada
com a condição humana da natalidade; o novo começo inerente a cada nascimento pode
fazer-se sentir no mundo somente porque o recém-chegado possui a capacidade de ini-
ciar algo novo, isto é, de agir. Neste sentido de iniciativa, todas as atividades humanas
possuem um elemento de ação e, portanto, de natalidade (ARENDT, 2007, p. 17).
Traçar tal delineamento acerca das atividades humanas, das condições necessárias ao
seu desenvolvimento e dos espaços em que acontecem atende à necessidade da explicação sobre
o modo como a infância deixou de ser parte das esferas macroestruturais em que desfrutava de
visibilidade e prestígio por sua força de trabalho, para tornar-se responsabilidade exclusiva de
sua família, na estreiteza de uma vida domiciliar, invisível aos olhos públicos.
Tem-se nesse conjunto conceitual a explicação de que a esfera privada, como lócus do
desenvolvimento do labor, comportava o papel do homem na manutenção da sobrevivência de
sua prole e a mulher, por meio do parto, a continuidade da espécie.
No espaço público prevalecia a ação, na qual o homem, justamente por ter se “libertado do
labor e do trabalho, e tendo superado o anseio inato de sobrevivência comum a todas as criaturas
vivas, deixava de ser limitado ao processo biológico da vida”, poderia assumir a responsabilidade
e o ônus implicados na manutenção de um mundo comum (ARENDT, 2007, p. 46).
Retomando a ideia da separação entre produção e reprodução trazida por Qvortrup (2011a),
compreende-se que a lógica utilitarista imposta pelo processo de industrialização modificou as
esferas que estruturavam as atividades humanas apresentadas por Arendt (2007). Retirou-se da
infância o espaço da esfera pública, limitou sua atividade a do labor, num progressivo processo
de reclusão à estreiteza do lar que resultou sua invisibilidade na esfera pública.
escolar. Na mesma medida, novos mecanismos foram criados a fim de assegurar a provisão dos
idosos que se encontrava desvinculada dos benefícios e cuidados oferecidos pelos mais jovens,
por exemplo, os fundos previdenciários.
[...] os pais continuam sendo responsáveis pelas principais despesas para com a edu-
cação das crianças, a sociedade em geral, e a sociedade empresarial em particular,
permanecem como os principais beneficiários dos investimentos que os pais realizam.
Assim, considero que o faux pas mais gritante foi este: o que se pode esperar de um
sistema, em termos de possiblidade de sobrevivência a longo prazo, quando aqueles
que nele investem não se beneficiam dele, ao passo que aqueles que se beneficiam são
justamente os que não investem? [...] os investimentos da família nas crianças, em
termos de tempo e dinheiro, representam contribuição considerável para a sociedade
empresarial (em termos de força de trabalho futura) e para sociedade em geral (em
termos de geração de recursos para pensões e aposentadorias, em especial) (QVOR-
TRUP, 2011a, p. 326-327).
Nesse cenário, Qvortrup (2011a, p. 326) esclarece que o trabalho das crianças não
desapareceu, apenas mudou sua natureza. Seu tempo e seu esforço continuaram sustentando a
estrutura econômica e social, na medida em que o trabalho manual foi substituído pelo trabalho
escolar que produz frutos no futuro. Continuaram os recém-chegados por nascimento a produzir
frutos, com a implicação de que esses mesmos frutos não mais se revertiam imediata e diretamente
às suas famílias, tampouco se traduziam na melhoria das condições de vida das próprias crianças.
Tal realidade sugere que (1) o trabalho infantil não desapareceu, mas é imanentemente
realizado sob um novo sistema, ou seja, por meio do trabalho escolar e, portanto, refe-
re-se ao Estado e não à família como economia relevante; (2) não são mais as crianças
biológicas que, pessoalmente, fornecem e cuidam dos pais idosos; [...] mas o chamado
sistema de contribuição previdenciária. (QVORTRUP, 2011a, p. 330).
31
Com a alteração da natureza do trabalho manual para o trabalho intelectual, foi dado
o primeiro passo para a invisibilidade produtiva das crianças, na medida em que as atuais
atividades infantis, dentro da lógica utilitarista, deixaram de ser consideradas úteis, tornando-se
desqualificadas e custosas, porque, em termos materiais, não resultavam em frutos imediatos,
e sim na atomização da família nuclear e no obscurecimento da reciprocidade intergeracional.
[...] nas sociedades pré-industriais. Nelas, os seres infantis eram unanimemente ce-
lebrados como membros úteis. Suas atividades podiam assumir várias formas, a de-
pender do modo de produção, mas eram semelhantes no sentido de que, independen-
temente do lugar onde se desenvolviam, eram úteis ou funcionais à sociedade ou à
cultura em que eram desenvolvidas. Em outras palavras, o trabalho infantil era ima-
nente ao sistema. Essa utilidade foi reconhecida não só em termos do status atribuído
às crianças que trabalhavam, mas também a partir dos elevados níveis de fertilidade
verificados (QVORTRUP, 2011a, p. 327).
Nesse sentido, explica Qvortrup (2014, p. 40) que, se a relação entre a reprodução e
a produção, até então, era considerada dentro da esfera pública “como empreitada comum e,
nesse sentido, sendo pública, era apoiada por uma ordem social na qual reprodução e produção
eram inseparáveis”, no período industrial, com o avanço da industrialização e a alteração da
força produtiva dos mais jovens, tal relação deixa de ser assim compreendida e as motivações
que antes eram favoráveis à fecundidade foram pouco a pouco desaparecendo.
Observou-se na prática que a infância não se constituía mais como um assunto de interesse
público e, desse modo, “tanto pais quanto filhos passaram a ser considerados como estranhos em
nossa civilização, como se a reprodução não tivesse qualquer relação com a produção e o bem-
estar na sociedade moderna”, sinalizando o desequilíbrio que se instalava no pacto geracional
(QVORTRUP, 2014, p. 40) que, entre outras coisas, resultou no esfacelamento da esfera pública
e na ampliação da esfera social e na substituição da ação pelo labor e pelo trabalho.
Assim, de forma completamente oposta ao espaço antes ocupado pela infância na esfera
pública, o que se observava no controle estabelecido dentro da esfera social era a regulação dos
comportamentos e no desenvolvimento do trabalho, na qual a individualidade, construída por
meio da ação, é substituída pela necessidade de manutenção da sobrevivência e da igualdade
social dos membros da comunidade.
Nessa seara, em meio à luta empreendida na esfera social em que a barganha, a força de
determinados grupos e as relações de poder definem os modos de sobrevivência da espécie sem
qualquer forma de preocupação com o mundo comum, a infância volta à reclusão do seu domicílio
ou ingressa em instituições criadas para sua segurança, afastando-se, gradativamente, do convívio
com os adultos que permitiriam sua iniciação no legado cultural do qual são herdeiras.
Um exemplo dessa luta social foi justamente a constituição do direito à educação das
crianças de 0 a 3 anos atrelado às lutas dos movimentos feministas que, embora relevantes,
trouxeram a discussão sobre a educação dessa etapa geracional de forma residual e escamoteada
nas demais questões que envolviam os direitos das mulheres trabalhadoras.
33
Esse aspecto pode ser ilustrado com o estudo de Alves (2015), no qual se constatou
que, no Brasil, o progressivo aumento da população idosa (com 60 anos de idade ou mais), que
não corresponde mais à taxa de reposição de jovens economicamente ativos que possam dar
suporte às obrigações e recompensas que deveriam ser distribuídas entre as diferentes gerações,
fenômeno intitulado “Tsunami grisalho”.
Fonte: World Populations Prospects: The 2012 Revision. Dados organizados por Alves (2015).
34
Fonte: Projeções Populacionais do IBGE (Revisão 2013) – Dados organizados por Alves (2015)
Nesse cenário, Soares (2015) oferece uma perspectiva ainda mais complexa relacionada
às questões dos cuidados dispensados reciprocamente entre as diferentes gerações, em especial
no que diz respeito ao que denomina de pacto de cuidados, ou seja, as práticas sociais que,
apoiadas numa relação de interdependência entre aquele que cuida e aquele que é cuidado, dão
suporte para a manutenção da vida humana.
Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas (DPE), Coordenação de População e Indicadores Sociais (Copis). Dados
coletados e organizados por Soares (2015).
Tabela 2. Proporção de pessoas com 60 anos de idade ou mais, com limitação funcional
para realizar atividades de vida diária (AVD), conforme o sexo e grupos de idade
Grandes Regiões e Proporção de pessoas com 60 anos ou mais de idade com limitação funcional
situação do domicílio para realizar Atividades da Vida Diária – AVD (%)
Total Sexo Grupos de idade
Masculino Feminino De 60 a 64 De 65 a 74 De 75 anos
anos anos ou mais
Brasil 6,8 6,1 7,3 2,8 4,4 15,6
Fonte: IBGE, PNAD 2013. Dados coletados e organizados por Soares (2015).
Nesse cenário, o resgate do direito à educação como forma de iniciação dos recém-
chegados por nascimento deve ser analisado a partir do sentido construído socialmente, haja
vista que a luta por direitos tem sido travada na esfera social e, conforme explica Sarmento
(2013, p. 17), o reconhecimento da infância parece estar longe de se concretizar, apesar dos
esforços empreendidos no estudo de suas peculiaridades e na positivação de seus direitos.
37
Constata-se que os dados do IBGE sobre a frequência das crianças de 0 a 3 anos apre-
sentam-se mais elevados do que os dados coletados pelo Censo Escolar. Essa variação
pode ser explicada por um conjunto de fatores, como as diferenças metodológicas na
delimitação da idade da criança e na data de referência das informações, ou ainda em
razão das distintas interpretações atribuídas à variável “frequência à creche”. [...]. Ou-
tro aspecto a ser destacado em relação aos indicadores para monitoramento das metas
e estratégias de acesso à educação infantil no PNE, sobretudo às creches, refere-se à
ausência de dados precisos que permitam a comparação entre a frequência à escola
e os dados populacionais. [...]. Outra fonte de informação é a Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (Pnad). Esta apresenta anualmente 14 dados sobre caracterís-
ticas demográficas e educacionais da população brasileira, dentre outras, mas não é
possível utilizá-la para mensurar a taxa de frequência da população de 0 a 3 anos onde
mais interessa, ou seja, nos municípios brasileiros, pois os dados não são desagregá-
veis nesse nível de detalhamento (XIMENES; GRINKRAUT, 2014, p. 94-95).
Aspecto semelhante foi apontado por Rosemberg (2015, p. 210) assinalando que na
cidade de São Paulo os espaços públicos e a mobilidade urbana não consideram as crianças
de 0 a 3 anos como cidadãs, colocando-se o município como um lugar hostil aos bebês, haja
vista que a locomoção é prejudicada por não serem pensados os espaços por onde milhares de
crianças transitam diariamente; sua condição cidadã não é colocada como ponto de partida para
o planejamento urbano.
A criança pequena, o bebê, não é um cidadão, não parece pertencer à nação. [...]
Crianças pequenas, bebês, são populações cativas, cuja locomoção depende de adul-
tos. Se não dispuserem de espaços alternativos à casa, viverão seus anos de pequena
infância nas condições restritas do domicílio.
38
Tal situação não se observa em relação à etapa da creche, por se constituir como etapa
facultativa para as famílias e como dever apenas para o Estado, ficando evidente que, ainda que
seja um dever do Estado prover o atendimento educacional às crianças de 0 a 3 anos, não tem
se constituído como prioridade política.
Fonte: Microdados do Censo Demográfico 2010 – IBGE. Dados coletados e organizados por Ricoldi e Artes (2015)
Tecidas as devidas considerações sobre o conceito de infância e seu papel como etapa
geracional e as implicações que seu apagamento do tecido social acarretam, destaca-se o papel
desempenhado pela educação dos mais jovens, a partir de uma perspectiva mais abrangente
que não se volta às análises psicológicas de suas peculiaridades e individualidades, tampouco
às especificidades das ações e conteúdos trabalhados dentro do espaço da creche, mas retoma
a ideia de que tais espaços foram estruturados a partir de uma lógica utilitarista, no âmbito da
esfera social.
Nas sociedades industriais, a educação, segundo Arendt (2011), deixou de ser o espaço
de iniciação dos recém-chegados por nascimento ao mundo para se constituir como o local onde
a pobreza e a desigualdade deveriam ser exterminadas por meio de um projeto de ensino que
contemplasse a inovação própria dos mais jovens e descartando tudo o que fosse considerado
velho e ultrapassado, justamente por não ter sido capaz de acabar com a pobreza e com a
desigualdade.
Nesse sentido, imaginando ser possível criar um mundo absolutamente novo por meio
dos recém-chegados por nascimento, configurou-se a educação como elemento político e a
política como elemento educativo, sem a clareza de que tanto a primeira colocação quanto a
segunda estariam absolutamente equivocadas.
40
Assim, a educação não pode ser vista somente considerando o futuro, uma vez que ela
trata justamente da mediação entre um passado e um presente. Ela diz de um mundo histórico
que já existia antes de nós e continuará existindo após a nossa morte. Ela trata da memória e
do passado e, portanto, apresenta um caráter conservador no tocante ao legado cultural e às
tradições históricas e, a partir desse legado, prepara a continuidade entre o passado e o futuro.
A infância e sua educação passaram a ser submetidas aos interesses dos grupos
dominantes que lutavam na esfera social pela manutenção de seus próprios interesses e de sua
própria sobrevivência. Desse modo, deixou a infância de se constituir como interesse público,
ficando relegada às esferas privada e social. O pacto geracional sustentado entre as gerações
mais velhas e mais novas foi quebrado na medida em que não havia mais a defesa de um mundo
comum, mas apenas a defesa de interesses privados de grupos específicos.
A autoridade exercida pelos mais velhos nos processos de iniciação dos mais jovens
foi também substituída pela ideia de que seria possível às crianças tomar a decisão por suas
ações, sob o pretexto de que se criava um novo mundo que ofereceria respostas aos problemas
da pobreza e da desigualdade. “As relações reais e normais entre crianças e adultos, emergentes
do fato de que pessoas de todas as idades se encontram sempre simultaneamente reunidas no
mundo, são assim suspensas” (ARENDT, 2011, p. 230).
dos adultos (autoridade epistêmica), na medida em que estes passaram a ser meros observadores
da pseudoinovação que se colocava em prática nos grupos infantis.
A autoridade que diz às crianças individualmente o que fazer e o que não fazer repousa
no próprio grupo de crianças [...] gera uma situação em que o adulto se acha impotente
ante a criança individual e sem contato com ela. Ele apenas pode dizer-lhe que faça
aquilo que lhe agrada e depois evitar que o pior aconteça (ARENDT, 2011, p. 230).
Considerando que a ação política só pode ser exercida por adultos, e que já se encontram
educados, às crianças restaria nesse modelo a tirania de uma maioria que não se dá em termos
de “iguais”, mas no âmbito de quantidade e da maioria tal qual se observa na esfera social,
contra as quais pouco há para se opor, excluindo-se por completo o fato de que necessitam do
contato com os adultos, representantes do mundo, para serem iniciadas no legado cultural do
qual são herdeiras.
Assim ao emancipar-se da autoridade dos adultos, a criança não foi libertada, e sim
sujeita a uma autoridade muito mais terrível e verdadeiramente tirânica, que é a tirania
da maioria. [...] o resultado foi serem as crianças, por assim dizer, banidas do mundo
adulto. São elas, ou jogadas a si mesmas, ou entregues à tirania de seu próprio grupo,
contra o qual, por sua superioridade numérica, elas não podem se rebelar, contra o
qual, por serem crianças, não podem argumentar, e do qual não podem escapar para
nenhum outro mundo por lhes ter sido barrado o mundo dos adultos (ARENDT, 2011,
p. 231).
Nesse sentido, a convivência simultânea entre adultos e crianças nos espaços públicos
que deveria “preparar a criança para o mundo dos adultos foi extinta em favor da autonomia do
mundo da infância [...] sob o pretexto de respeitar a independência da criança, ela é excluída do
mundo dos adultos e mantida artificialmente no seu próprio mundo” (ARENDT, 2011, p. 233).
[...] jamais se deveria permitir, porém, que tal linha se tornasse uma muralha a separar
as crianças da comunidade adulta, como se não vivessem elas no mesmo mundo e
como se a infância fosse um estado humano autônomo, capaz de viver por suas pró-
prias leis (ARENDT, 2011, p. 246).
[...] as crianças perderam sua visibilidade legítima no espaço público quando foram
confinadas a uma variedade de formas institucionais de infância: uma infância fami-
liar, uma infância escolar, uma infância pré-escolar, uma infância de lazer etc. Re-
42
sumindo, mesmo que a infância tenha ganhado mais visibilidade no interior desses
confinamentos, tornou-se distante de um encontro mais abrangente com a idade adul-
ta, sociologicamente falando. As crianças, portanto, perderam a visibilidade, isso se
não foram de fato extirpadas do interior dos setores mais dominantes do tecido social,
emblemáticos para os adultos, como o mundo dos negócios e do trabalho, as áreas
urbanas, e os setores políticos e administrativos (QVORTRUP, 2014, p. 28).
Logo, o que se vislumbrou em nome de uma proteção aos mais jovens foi a
desconsideração do papel da natalidade10 (o nascer para o mundo comum, social e político),
marcado exclusivamente por ações e palavras que garantirão, para além da preservação da
espécie humana, a continuidade de um mundo comum a todos e, por essa mesma razão, a
imortalidade desse mundo comum por meio das ações e feitos empreendidos pelos homens que
por esse mundo passaram.
Controle não é uma negação da proteção, mas sua versão autoritária e paternalista.
Quando alguém assume essa versão extrema de proteção, está, ao mesmo tempo, me-
nosprezando a habilidade das crianças de empregar sua capacidade e sua competên-
cia, e reforçando a ausência de confiança, entre adultos, em relação a essas qualidades
das crianças (QVORTRUP, 2014, p. 30).
Pensar na educação escolar implica, portanto, uma reflexão mais abrangente. Não se
trata, como diz Arendt (2011, p. 227), de responder à pergunta “Por que Joãozinho não sabe
ler”, mas analisar o papel que a escola desempenha dentro de uma estrutura mais ampla que
considere, também, o papel das crianças na divisão do trabalho, por exemplo.
[...] uma ênfase extrema na suposta vulnerabilidade pode ser utilizada por segmentos
mais poderosos como pretexto para silenciar e marginalizar as crianças. A escolari-
zação, conforme mencionado anteriormente, é um bom exemplo. Havia, é verdade,
muitas boas razões para abolir o trabalho infantil clássico, entre elas a proteção. No
10
Distinção necessária com relação à ideia de nascimento enquanto uma vida biológica que, comum a qualquer
espécie animal, garante apenas a perpetuação de dada espécie e limita-se à condição do labor, não desempe-
nhando qualquer ação que possa adquirir a imortalidade empreendida por ações e palavras na esfera pública.
43
entanto, essas boas razões não são suficientes para negligenciar ou desvalorizar o
novo trabalho das crianças nas escolas. Não é difícil de entender por que defensores
influentes do trabalho escolar, como o Estado e as corporações, interpretam a escolari-
zação como um presente para as crianças e os pais e, assim, a ignoram como uma im-
portante contribuição das crianças para o tecido social como um todo. Qualquer coisa
diferente disso implicaria retornos massivos para as crianças e seus pais. Enfatizar
medidas de proteção e de socialização ao custo de interpretar a escolarização como
a participação das crianças na divisão social do trabalho foi, dessa forma, o interesse
maior, irresistível, e mesmo assim um meio de suprimir as contribuições das crianças
(QVORTRUP, 2014, p. 34).
No cenário delineado por Arendt (2011) e Qvortrup (2014), poder-se-ia pensar o espaço
da creche não como local de segregação, mas como lugar de integração com o mundo adulto.
Na medida em que a transição da esfera privada à esfera pública exige a mediação dos adultos,
constitui-se o espaço público da creche como o lócus onde tal transição se torna possível, pelo
reconhecimento do pertencimento dessas crianças no mundo comum que une o passado e o
presente, considera e resgata sua iniciação como o conjunto de realizações humanas, das quais
essas crianças são herdeiras.
Não se trata de criar algo novo, mas de posicionar os adultos como intermediários
entre o mundo tal qual ele se coloca e os mais jovens, de modo que a partir do conhecimento
desse mundo lhes seja possível empreender algo novo. Trata-se de assumir novamente uma
postura de responsabilidade compartilhada entre os adultos e a infância, de restabelecer o elo
entre o passado e o futuro.
Aos adultos cabe a dupla função de proteger a criança e ao mesmo tempo apresentar-
lhe o mundo tal qual ele é. São os adultos em relação às crianças que respondem por esse
mundo, são eles os representantes desse mundo, e não o contrário (ARENDT, 2011, p. 239).
Longe de se conceber desigualdade com segregação, tal qual se observa nas redes
de proteção destinadas às crianças e nos oásis infantis, a escola deve ser a instituição que se
interpõe entre o domínio privado do lar e o mundo.
Somente após tal mediação é que a desigualdade entre os mais novos e os adultos
poderá ser superada, por meio do conhecimento sobre esse mundo e da apropriação de seu
legado histórico e cultural, para que, então, possam os mais jovens assumir, por si próprios, a
responsabilidade que lhes é devida ante o pacto geracional (ARENDT, 2011, p. 239).
Na medida em que não consideram essa etapa geracional como parte de suas
responsabilidades, descomprometem-se, em igual medida, pela manutenção de um mundo
comum.
Esse descompromisso público com o mundo comum, embora possa ser dissimulado
por meio da formulação de políticas de atendimento e com a positivação de direitos voltados à
infância, mostra-se ainda mais perverso e nefasto, por não serem institutos capazes de modificar
a situação das crianças que permanecem, na insignificância de uma vida privada e condicionadas
ao labor, em listas de espera aguardando por uma vaga que lhe conceda um espaço onde sua
ação e sua palavra possam consideradas relevantes.
A não consideração da inserção das crianças de 0 a 3 anos na esfera pública por meio da
educação impede o processo de reificação dos artifícios humanos que assegurariam condições
para sua manutenção como categoria social, posto que sua invisibilidade é retroalimentada na
medida em que o seu não reconhecimento implica a não realização e a não materialização de
suas ações, tornando-as invisíveis, consumíveis e insignificantes para a esfera pública.
Sem a ação e a palavra no espaço público, possibilitadas por meio da educação, essa
etapa geracional não deixa memória, não pode ser recordada, tampouco ficará como marca
para os que virão.
45
Sem a ação para pôr em movimento no mundo o novo começo de que cada homem é
capaz por haver nascido, “não há nada que seja novo debaixo do sol”; sem o discurso
para materializar e celebrar, ainda que provisoriamente, as coisas novas que surgem e
resplandecem, “não há memória”; sem a permanência duradoura do artifício humano,
“não haverá recordação das coisas que têm de suceder depois de nós”. E sem o poder,
o espaço da aparência produzido pela ação e pelo discurso em público desaparecerá
tão rapidamente quanto o ato ou a palavra viva (ARENDT, 2007, p. 216).
Na ação e no discurso, os homens mostram quem são, revelam ativamente suas identi-
dades pessoais e singulares, e assim apresentam-se ao mundo humano, enquanto suas
identidades físicas são reveladas, sem qualquer atividade própria, na conformação
singular do corpo e no som singular da voz. Esta revelação de “quem”, em contrapo-
sição a “o que” alguém é [...] está implícita em tudo o que se diz ou faz (ARENDT,
2007, p. 192).
Não se considera aqui apenas o espaço público da creche, marcado por suas paredes,
da qual essas crianças carecem, ou um ambiente físico que possa recebê-las. A não oferta de
vagas diz, antes de tudo, da ausência de sua representatividade na esfera pública, tomando-se a
ideia apresentada por Arendt (2007, p. 210-211):
46
Não à toa Qvortrup (2011a, p. 329) propõe que seja oferecido às crianças e suas
famílias um suporte que se destine à melhoria da qualidade de suas vidas, uma vez que se
encontram inseridas na esfera social, em que o poder de troca excluiu o papel das crianças na
divisão do trabalho e na manutenção do pacto geracional, tornando-as invisíveis nas discussões
estabelecidas nas estruturas macroeconômicas, históricas e políticas.
Enquanto só se solicitar aos pais que assumam a responsabilidade pela existência das
crianças, não haverá uma sustentação forte que reivindique a atores que não são pais,
incluindo os corporativos, que se responsabilizem pela construção e reconstrução da
infância, entendida como uma forma estrutural. [...] Dado o fato inegável de que a
sociedade corporativa é dependente da reprodução da força de trabalho, e o fato igual-
mente irrefutável de que todos, incluindo pessoas sem filhos, são dependentes de uma
geração subsequente para produzir suporte e cuidados na velhice, permanece incon-
sistente que esses atores continuem a exigir o direito de serem indiferentes à infância
(QVORTRUP, 2014, p. 40).
Ante todo o exposto, a partir da definição daquilo que compõe a condição humana,
buscam-se os elementos necessários à proposição de uma nova análise da situação das crianças
de 0 a 3 anos que aguardam, em lista de espera, no isolamento de suas vidas privadas e sob a
violência da esfera social, uma vaga no sistema público de ensino.
Olhar para os espaços públicos pensados para essas crianças implica olhar o direito à
educação a partir dessa perspectiva, implica redistribuir as riquezas que advêm do seu trabalho,
deixar de punir as famílias que optaram por ter filhos e reintegrar o pacto geracional, como
prioridade política.
No desenho atual, os lucros dos pais e os investimentos das crianças são apropria-
dos pela sociedade empresarial, pela sociedade em geral e pelos adultos sem filhos,
embora o grosso das despesas permaneça com os pais. No entanto, esses lucros não
são produtivos a longo prazo, já que favorecem o parasitismo e a desmotivação da
reprodução, por parte dos adultos, em detrimento da rentabilidade a longo prazo da
sociedade. Com base nas experiências históricas, também a economia moderna deve
reconhecer a reprodução como indispensável para seu desenvolvimento. Nossa eco-
nomia moderna é, provavelmente, a primeira na história a ignorar o fato de que a
reprodução é condição sine qua non para sua sobrevivência, em consonância com a
ideia de que os investimentos devem estar de acordo com os benefícios [...] Para tal,
trata-se de assegurar, para esses pais, um padrão de vida um pouco à frente daquele
desfrutado por pessoas sem filhos. Como fazê-lo e implementá-lo é tarefa da adminis-
tração política (QVORTRUP, 2011a, p. 330).
Examinar a situação das crianças de 0 a 3 anos que aguardam por uma vaga na creche
impõe, necessariamente, um debate acerca do que, exatamente, entende-se por educação para
então analisar de que modo se constituiu como um direito. Tem-se, portanto, no próximo capítulo,
o aprofundamento sobre como se instituiu o direito à educação de crianças de 0 a 3 anos.
47
2
O DIREITO À EDUCAÇÃO COMO DESDOBRAMENTO DOS
DIREITOS HUMANOS
A ampliação dos direitos humanos e sociais não aconteceu de uma só vez, mas
decorreu do campo das negociações sociais e políticas, empreendidas em diferentes épocas e
em territórios distintos, por meio do avanço das sociedades democráticas e do surgimento de
variados carecimentos dessas sociedades (BOBBIO, 2004, p. 11).
[...] o desenvolvimento dos direitos do homem passou por três fases: num primeiro
momento, afirmaram-se os direitos de liberdade, isto é, todos aqueles direitos que
tendem a limitar o poder do Estado e a reservar para o indivíduo, ou para os grupos
particulares, uma esfera de liberdade em relação ao Estado; num segundo momen-
to, foram propugnados os direitos fundamentais ou políticos, os quais concebendo
a liberdade não apenas negativamente, como não impedimento, mas positivamente
como autonomia, tiveram como consequência a participação cada vez mais ampla,
generalizada e frequente dos membros de uma comunidade no poder político (ou li-
berdade no Estado); finalmente, foram proclamados os direitos sociais, que expressam
o amadurecimento de novas exigências – podemos mesmo dizer, de novos valores –,
como os do bem-estar e da igualdade não apenas formal, e que poderíamos chamar de
liberdade através ou por meio do Estado (BOBBIO, 2004, p. 20).
48
Nos primeiros esboços daquilo que seria denominado direitos humanos, encontra-se na
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789)11 a mais forte expressão da soberania
nacional que, aliada ao rol dos direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem e do cidadão,
explicitou uma primeira contradição, uma vez que tais direitos, embora se referissem ao
“Homem”, eram protegidos e assegurados apenas aos cidadãos franceses, deixando à margem
de sua proteção grandes massas humanas, que, durante a Primeira Guerra Mundial, destituídas
de seus territórios sob tal declaração não encontravam mais guarida (ARENDT, 1989, p. 262).
O resultado prático dessa contradição foi que, daí por diante, os direitos humanos pas-
saram a ser protegidos e aplicados somente sob a forma de direitos nacionais, e a pró-
pria instituição do Estado, cuja tarefa suprema era a de proteger e garantir ao homem
os seus direitos como homem, como cidadão – isto é, indivíduo – e como membro
de grupo, perdeu a sua aparência legal e racional e podia agora ser interpretada pelos
românticos como a nebulosa representação de uma “alma nacional” que, pelo próprio
fato de existir, devia estar além e acima da lei (ARENDT, 1989, p. 262).
11
Elaborada, após a Revolução Francesa, pela Assembleia Nacional composta por representantes do povo fran-
cês.
49
de direitos, conquanto, fora de seus países de origem, tornavam-se apátridas e perdiam o direito
de ter direitos (ARENDT, 1989, p. 300-301).
Passaram a ser, minimamente, consideradas por meio dos Tratados de Paz e das
Minorias, que “entregaram à Liga das Nações a salvaguarda dos direitos daqueles que, por
motivos de negociações territoriais, haviam ficado sem Estados nacionais próprios, ou deles
separados, quando existiam” (ARENDT, 1989, p. 305).
Tal fato não contribuiu para que os sem Estado pudessem retornar aos seus países de
origem, por razões diversas, que envolviam desde as disputas pelo território, que passavam de
uma mão à outra a cada momento e, até mesmo, a abolição tácita do direito de asilo, que até
então era um dos símbolos dos Direitos do Homem (ARENDT, 1989, p. 313).
Durante a Segunda Guerra Mundial, a já difícil situação dos apátridas ou sem Estado
tornou-se mais aguda, na medida em que restaram a essas massas, quando muito, os campos
de internação para a resolução dos problemas advindos da falta de domicílio, passando a ter
sua existência ignorada, posto que as autoridades substituíram-lhes o status de “sem Estado”
por “pessoas deslocadas”, implicando o não reconhecimento de sua situação, mas impondo
esforços no sentido de repatriá-las, ainda que seus Estados de origem se negassem a aceitá-las
de volta, como no caso daqueles que haviam sido desnaturalizados pelo governo, ou quando os
Estados as quisessem de volta para aplicar a justa punição (no caso daqueles que, supostamente,
se mantiveram contra o regime vigente em seu Estado de origem) (ARENDT, 1989, p. 313).
Sendo considerados socialmente “fora da lei”, não era de surpreender que estivessem
submetidos e vulneráveis a toda sorte de abusos e ilegalidades, praticadas pelos Estados que
os recebiam e pelos cidadãos que os viam como anomalias não previstas na lei geral. Assim, o
Estado-nação, “incapaz de prover uma lei para aqueles que haviam perdido a proteção de um
governo nacional, transferiu o problema para a polícia” (ARENDT, 1989, p. 317-321).
50
Portanto, o que se criou foi uma rede de direitos internacionais que, atrelados aos
direitos civis e políticos dos Estados, atendiam apenas aqueles que estavam ligados aos seus
Estados de origem, mas de nada serviam àqueles que haviam sido destituídos de tal prerrogativa.
Minorias pouco ou nada contribuíram para a efetivação de tal inclusão, situação essa que, até
hoje, permanece pendente de solução mais assertiva.
A calamidade dos que não têm direitos não decorre do fato de terem sido privados da
vida, da liberdade ou da procura da felicidade, nem da igualdade perante a lei ou da
liberdade de opinião – fórmulas que se destinavam a resolver problemas dentro de
certas comunidades – mas do fato de já não pertencerem a qualquer comunidade. Sua
situação angustiante não resulta do fato de não serem iguais perante a lei, mas sim de
não existirem mais leis para eles; não de serem oprimidos, mas de não haver ninguém
mais que se interesse por eles, nem que seja para oprimi-los (ARENDT, 1989, p. 329).
No entanto, se a situação dos apátridas pouco evoluiu ao longo do tempo, no que diz
respeito a uma rede de proteção efetiva, o mesmo não se observou em relação à evolução e
refinamento dos carecimentos que surgiam entre aqueles que, considerados cidadãos, exigiam
não mais o direito à liberdade, à igualdade e à fraternidade, em seu aspecto declaratório, mas
o desenvolvimento de condições que amiúde garantissem a efetividade prática dos direitos
preconizados.
Institui-se, assim, a segunda geração dos direitos humanos que impunha uma atuação
positiva do Estado, de modo que, por meio de políticas públicas governamentais, tais direitos
pudessem ser efetivamente desfrutados.
nacional, impõe-se como um conjunto de normas primárias aos demais direitos, compromete-se
em assegurar o gozo ao direito à vida, à liberdade, à igualdade, à justiça, à segurança, à família,
à propriedade, ao trabalho, à saúde, à educação e à cidadania, a todos os cidadãos, dentro do
território nacional.
Ao contrário dos direitos humanos [...] os direitos fundamentais precisam estar inscri-
tos no ordenamento jurídico pátrio para terem seu valor reconhecido juridicamente.
[...] os direitos fundamentais são os direitos humanos que passaram por um proces-
so de legislação [...] que se refletirá em sua própria aplicação em termos positivos
(ARAUJO, 2012, p. 47-48).
E a última geração dos direitos humanos, que se caracterizou por um maior detalhamento
que, no caso da Educação, não se resume a declará-la ou positivá-la em termos gerais, mas
exige o delineamento dos processos e ações que deverão ser empreendidos para que se efetive
sua fruição não apenas aos cidadãos de forma individual, mas que abranjam seu gozo por toda a
coletividade, representados por meio dos direitos de natureza coletiva ou difusa, que sustentarão
o desenvolvimento de políticas públicas.
Essa evolução dos direitos humanos, no Brasil, atingiu o seu ápice na década de 1990
com a sua adesão à Declaração dos Direitos da Criança, a partir da qual se constituíram todos
os dispositivos legais de proteção e atendimento à infância e à adolescência, por meio do
delineamento de ações e políticas públicas de atendimento, que incluíram a educação no rol dos
direitos fundamentais e sociais e definiram, entre outras coisas, o espaço da creche onde esse
direito pode ser usufruído por todas as crianças de 0 a 3 anos.
apresentados por Arendt (1989), podemos concluir que aqueles que se encontram em listas
intermináveis de espera não vivenciam apenas limitações do exercício pleno de seus direitos
sociais, mas têm, antes disso, a negação das condições essenciais que permitiriam a fruição do
direito de pertencer à comunidade humana e ao princípio universal da dignidade humana.
Pensar as crianças de 0 a 3 anos como categoria social e analisá-la a partir das relações
estabelecidas com as demais categorias implica reconhecê-las, enquanto categoria, como grupo
minoritário, na acepção proposta por Moscovici (2011, p. 21), a partir da desigualdade de sua
participação na distribuição do poder e da renda, que em nada se configura com a quantidade
dos integrantes que a compõem.
visibilidade, ficam à margem do artifício humano e tornam-se parte da “raça humana da mesma
forma como animais pertencem a uma dada espécie de animais” (ARENDT, 1989, p. 335).
O paradoxo da perda dos direitos humanos é que essa perda coincide com o instante
em que a pessoa se torna um ser humano em geral – sem uma profissão, sem uma
cidadania, sem uma opinião, sem uma ação pela qual se identifique e se especifique
– e diferente em geral, representando nada além da sua individualidade absoluta e
singular, que, privada da expressão e da ação sobre um mundo comum, perde todo o
seu significado (ARENDT, 1989, p. 335-336).
A igualdade perante a lei, no caso das crianças de 0 a 3 anos, cujas famílias sinalizaram
o interesse por uma vaga em creche, remete à ideia da igualdade entre os animais da obra
de Orwell (1994, p. 93), bem lembrada por Moscovici (2011, p. 27), na qual se verifica que
embora todos sejam iguais perante a lei, alguns são mais iguais que outros. Se o direito à
educação é um direito de todos, apoiado nos princípios postulados pelos direitos fundamentais
e humanos, os mecanismos que privilegiam determinadas etapas de escolarização e educação,
em detrimento de outras, confirmam a igualdade dos animais de Orwell (1994, p. 93), que
justificava o tratamento diferenciado e privilegiado destinado a alguns grupos de animais, e não
a outros.
Tal qual os apátridas que somente eram reconhecidos como sujeitos de direito quando
cometiam algum delito e sua situação necessitava da intervenção da polícia e do Poder Judiciário,
parte das crianças de 0 a 3 anos que se encontram em lista de espera, da mesma forma, só
se torna visível aos olhos públicos por meio das demandas que se instalam no Judiciário ou
quando sua situação de vulnerabilidade atinge patamares extremos, exigindo a intervenção
estatal. Portanto, a não previsão, por parte do poder público, de suas chegadas com a oferta de
espaços públicos nos quais essas crianças possam ser vistas e ouvidas retira-lhes parte daquilo
que compõe o direito humano à vida e à dignidade.
[...] aquilo que devemos chamar de “direito humano” teria sido concebido como ca-
racterística geral da condição humana que nenhuma tirania poderia subtrair. Sua perda
envolve a perda da relevância da fala [...] e a perda de todo relacionamento humano
[...], isto é, a perda, em outras palavras, das mais essenciais características da vida
humana (ARENDT, 1989, p. 330).
Implica, dessarte, como ponto de partida para tal análise, localizar o direito à
educação à luz do seu marco jurídico máximo, a Constituição Federal do Brasil de 1988, ao
qual todos os demais dispositivos jurídicos encontram-se subordinados, sob pena de serem
declarados inconstitucionais e, portanto, sem qualquer reflexo jurídico no caso de se mostrarem
incompatíveis com os preceitos da Carta Magna.
(DNCr),12 incluíam-se: o desmame antecipado das crianças; uma estrutura física precária e
insalubre que favorecia a propagação de doenças; a ausência de manuais de preparação dos
alimentos que resultariam em distúrbios nutritivos e raquitismo (VIEIRA, 2016).
Nessa perspectiva que poderia ser considerada assistencial e utilitária, a creche surge
marcada por um campo de tensões que, longe de estabelecer um consenso, acaba por estigmatizar
sua clientela, na medida em que destacava a incapacidade das famílias de cuidar adequadamente
dos seus filhos. Nesse cenário, com relação às crianças, tem-se como ponto de partida o chamado
Código de Menores (1979)13 que, atrelado ao direito criminal, envolvia questões concernentes à
violência, ao abandono, à mendicância, exigindo um papel intervencionista do Estado.
As situações judiciais que prevaleciam nesse cenário diziam respeito a famílias pobres
que demonstravam não serem capazes de garantir o mínimo de cuidado com sua prole, sobretudo
nos casos que abrangiam crianças em situação de mendicância, envolvimento na prática de
pequenos delitos ou em situação de total abandono emocional e material. Assim, o direito se
revestia de feições criminais, compreendendo um público marginalizado para o qual o espaço
da creche se mostrava a última instância de atendimento a fim de remediar um problema social,
antes que outras medidas de controle social tivessem que ser acionadas, tais como: os processos
de retirada das crianças de seus lares, o encaminhamento dos menores para instituições de
custódia e a perda do pátrio poder.
12
Criado pelo Decreto-lei 2.024, de 17 de fevereiro de 1940, subordinado ao Ministério da Educação e Saúde e
ao Ministro de Estado, tendo seu foco de atuação voltado para as questões relacionadas à saúde, à higiene e
à alimentação das crianças. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-
-lei-2024-17-fevereiro-1940-411934-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 20 fev. 2017.
13
Código que regulamentava questões relacionadas à assistência, proteção e vigilância de crianças compreen-
didas entre 0 e 18 anos que se encontrassem em situação considerada irregular nos termos no art. 2.º: en-
contrar-se privado das condições essenciais a sua subsistência, saúde e instrução obrigatória; ser vítima de
maus-tratos ou castigos imoderados; estar em perigo moral (encontrando-se em ambiente contrário aos bons
costumes; praticando atividades contrárias aos bons costumes); apresentar desvio de conduta, em virtude de
grave inadaptação familiar ou comunitária; e/ou ser autor de infração penal. Nesse cenário, atribuía-se res-
ponsabilidade exclusiva à família e, em sua ausência, aquele que se encontrasse em seu poder e companhia,
exercendo as funções de vigilância, direção e educação (art. 2.º, parágrafo único). Texto na íntegra disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/1970-1979/L6697.htm>. Acesso em: 10 jan. 2016.[
57
sobretudo, como espaço mantido pela iniciativa privada, custeado por meio da caridade e da
filantropia (VIEIRA, 2016, p. 189-190).
No entanto, tal situação permaneceu inalterada, mesmo após a criação dos parques
infantis públicos (voltados ao atendimento dos filhos da classe operária) e do Jardim da
Infância (que atendia aos filhos da elite paulistana) no ano de 1935, na cidade de São Paulo,
que, coordenados e mantidos pelo Departamento de Cultura,14 destinavam-se às crianças de
3 a 7 anos de idade e, embora apresentassem forte preocupação com os aspectos educativos,
assistiam a públicos distintos: os parques infantis, assumindo uma perspectiva de atendimento
assistencial na área da saúde, e o Jardim da Infância, inaugurando um trabalho educativo para a
infância na Escola Normal (KHULMANN JÚNIOR, 1991; MONARCHA, 2001; 2016).
Tem-se, nesse sentido, a fixação da família como responsável pela educação das crianças
entre 0 a 3 anos, cabendo ao Estado uma atuação mínima e de caráter apenas compensatório
nos aspectos relacionados à sobrevivência, ao que Qvortrup (2014) intitulou de processo de
familiarização, que permaneceu inalterado, em termos de aspectos legais, até o advento da
Constituição Federal de 1988.
14
Departamento esse dirigido por Mário de Andrade entre os anos de 1935 a 1938 (VIEIRA, 2004).
58
Ao ser incorporado ao rol dos direitos sociais e fundamentais, Souza (2010, p. 19)
explica que o direito à educação se configurou como “processo de reconstrução da experiência
e atributo da pessoa humana” e representou “uma garantia primária para a consolidação de uma
série de outros direitos dos cidadãos, além de constituir-se em um direito em si” (BITTAR,
2014, p. 17), e por essa razão
[...] constitui regra de conformação do sistema jurídico, ditando o conteúdo de toda
normatização infraconstitucional, devendo ser objeto de máxima efetividade, assegu-
rada por meio de leis, atos normativos e posturas administrativas, vedada qualquer
limitação ao seu alcance, sob pena de indevido retrocesso (SOUZA, 2010, p. 19).
Quadro 1. Organização das etapas da Educação Básica, segundo art. 2.º da Resolução 3,
de 3 de agosto de 2005
Etapa de ensino Faixa etária prevista Duração
Fonte: <http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/rceb003_05.pdf>.
(Dados organizados pela autora)
15
“O atual Conselho Nacional de Educação – CNE, órgão colegiado integrante do Ministério da Educação, foi
instituído pela Lei 9.131, de 25/11/95, com a finalidade de colaborar na formulação da Política Nacional de
Educação e exercer atribuições normativas, deliberativas e de assessoramento ao Ministro da Educação. As
Câmaras de Educação Básica e de Educação Superior, que compõem o Conselho, são constituídas, cada uma,
por doze conselheiros, sendo membros natos em cada Câmara, respectivamente, o Secretário de Educação
Fundamental e o Secretário de Educação Superior do Ministério da Educação, nomeados pelo Presidente da
República.” Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/observatorio-da-educacao/323-secretarias-112877938/
orgaos-vinculados-82187207/14306-cne-historico>. Acesso em: 16 jan. 2018.
59
[...] assinalou uma perspectiva mais universalizante dos direitos sociais e avançou na
tentativa de formalizar, do ponto de vista do sistema jurídico brasileiro, um Estado de
bem-estar social numa dimensão inédita em nossa história.
Considerando que o direito à educação, por meio do Título II – Dos Direitos e Garantias
Fundamentais, em seu art. 6.º, caput, observa-se, pela primeira vez, a inclusão do direito à
educação no rol dos direitos sociais constitucionalmente assegurado e derivado do princípio
constitucional da dignidade da pessoa humana:
Art. 6.º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia,
o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a
assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Alterado pela Emenda
Constitucional n.º 64, de 04.12.2010.)
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida
e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da
pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
No art. 205, nota-se que, da amplitude dada ao direito à educação, para além da
responsabilidade compartilhada entre a família, a sociedade e o Estado, no conjunto interpretativo
do texto constitucional se encontra a sua equiparação ao direito à vida, à saúde e à dignidade,
sendo-lhe atribuído absoluta prioridade, confirmando e consagrando sua fundamentalidade
material e formal (COSTA, 2011, p. 49), conforme se extrai do art. 227, caput:
Art. 1.º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Esta-
dos e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direi-
to e tem como fundamentos:
[...]
III – a dignidade da pessoa humana.
Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;
III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições
públicas e privadas de ensino;
IV – gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;
61
acesso na idade própria; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 59, de 2009.)
(Vide Emenda Constitucional n.º 59, de 2009.)
II – progressiva universalização do ensino médio gratuito; (Redação dada pela Emen-
da Constitucional n.º 14, de 1996.)
III – atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferen-
cialmente na rede regular de ensino;
IV – educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de ida-
de; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 53, de 2006.)
V – acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística,
segundo a capacidade de cada um;
VI – oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando;
VII – atendimento ao educando, em todas as etapas da educação básica, por meio
de programas suplementares de material didático escolar, transporte, alimentação
e assistência à saúde. (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 59, de 2009.)
§ 1.º O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo.
§ 2.º O não oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta
irregular, importa responsabilidade da autoridade competente.
§ 3.º Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-
lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela frequência à escola.
Tem-se, portanto, por meio da Emenda Constitucional 53, de 2006, uma série de
alterações no posicionamento relativamente à creche e ao atendimento das crianças de 0 a 3 anos
que denota o atendimento a outros carecimentos, agora mais voltados à infância considerada
como etapa geracional e aos seus interesses.
O rol dos sujeitos legitimados para a sua exigibilidade não se restringe apenas às mães
trabalhadoras, mas engloba iniciativas sociais com diferentes protagonistas, incluindo o próprio
Ministério Público e entidades legalmente constituídas e imbuídas na prestação de serviços
destinados à sociedade.
art. 208, que necessitam ser abordados, entre os quais se destacam a constituição do direito à
educação como direito à creche, haja vista que não há outra política de atendimento educacional
às crianças de 0 a 3 anos e a equivocada interpretação de que a creche não teria sido incluída no
rol da educação básica obrigatória e gratuita, especificada no inciso I do referido artigo.
Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:
I – educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de
idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram
acesso na idade própria. (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 59, de 2009.)
(Vide Emenda Constitucional n.º 59, de 2009.)
Tal aspecto necessita ser analisado e revisto no âmbito das políticas públicas, uma
vez que sua estrutura atual não comporta a universalização pretendida, tampouco se presta
ao atendimento prioritário das camadas mais vulneráveis, configurando-se como um “tiro que
saiu pela culatra”, uma vez que seu acesso de forma universal foi normatizado sem que antes
houvesse uma estrutura que, de fato, pudesse atender a tal propósito. Conforme demonstram
os dados obtidos pelo IBGE na Pnad 2015, a não frequência de crianças em creche ou escola
representa 90,2%, enquanto nas regiões mais ricas do País, como no Sul, a menor proporção
atinge 65,9% das crianças entre 0 a 3 anos (FMSCV, 2017, p. 85).
16
Para saber mais sobre as políticas públicas voltadas à primeira infância na América Latina acesse o site do
Sistema de Información sobre la Primera Infancia en América Latina, organizado com o apoio da Unesco.
Disponível em: <http://www.sipi.siteal.iipe.unesco.org/>.
17
Para conhecer as modalidades de atendimento, vide portfólio de serviços disponível em <http://www.icbf.gov.
co/portal/page/portal/PortafolioICBF/all/hogares-comunitarios-integrales>. Acesso em: 20 nov. 2016.
64
Segundo a variável renda familiar per capita, o acesso para os 20% mais pobres é da
ordem de 21%, ante 53% para os 20% mais ricos, totalizando uma diferença de 32
pontos percentuais. Ainda de acordo com o estudo, diferentemente da disparidade
entre crianças ricas e pobres, os percentuais de brancos, pardos e pretos, na faixa de
0 a 3 anos, que frequentam creches no Brasil não são tão distantes entre si: 34% das
crianças brancas, 26,4% das pardas e 33% das pretas estão na educação infantil (FM-
CSV, 2017, p. 85)
A esse respeito, Souza (2010, p. 48) esclarece que o referido artigo “não traça qualquer
hierarquia ao enumerar as diversas áreas de atuação do Estado na seara educacional, limitando-
se a defini-las como deveres a serem cumpridos pelo Poder Público, na medida em que a
demanda social assim o impuser”, haja vista que a chamada “Educação Básica” compreende a
educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio (SOUZA, 2010, p. 56).
A distinção que se extrai do art. 208 diz respeito ao dever/obrigação das famílias de
matricular suas crianças e adolescentes, compreendidos entre os 4 e os 17 anos, sob pena de
serem os pais submetidos a normas punitivas no caso de descumprimento, enquanto a matrícula
em creche, das crianças de 0 a 3 anos de idade, coloca-se como uma faculdade às famílias, não
desonerando, em hipótese alguma, o Estado de sua obrigação de ofertá-la àqueles que assim o
desejarem.
como mera liberalidade a decisão sobre a matrícula da criança, sem que isso implique qualquer
espécie de desoneração por parte do Estado na prestação do serviço àqueles que o demandarem
(SOUZA, 2010, p. 56).
Estando contemplado, portanto, como parte da educação básica, por meio do inciso
IV do art. 208 da Constituição Federal, o atendimento educacional em creche integra-se aos
demais preceitos que se encontram inseridos em normas constitucionais “de eficácia plena,
consagradoras de direitos fundamentais de fruição imediata e de natureza intangível, possuindo
todas as crianças [...] autêntico direito de crédito em face do Poder Público para que venha a
receber a prestação devida” (SOUZA, 2010, p. 55).
Portanto, não há o que falar em “incremento paulatino da oferta”, uma vez que a
própria Constituição Federal, conforme explica Souza (2010, p. 62), “impede que seja oposto
qualquer condicionamento ao pleno exercício de direito fundamental”, não podendo a lei
infraconstitucional “trazer comando que se desvie da objetividade da norma fundamental, sob
pena de patente inconstitucionalidade.”
Neste tópico, cabe também esclarecer outro equívoco que tem permeado a concepção
de atendimento obrigatório em creche, a ideia de que a Meta 1, definida pelo Plano Nacional de
Educação (PNE), instituído pela Lei 13.005, de 2014, teria força normativa para justificar a não
oferta de vagas às crianças que aguardam em lista de espera.
Por ser o PNE lei que se subordina aos preceitos constitucionais, tem-se que sua
análise deve ser realizada com cautela, tomada como parte de um plano de implementação
gradativa de vagas, mas que não obsta, em hipótese alguma, tampouco justifica a recusa pelo
poder público em atender àqueles que demandarem judicialmente por uma vaga ou, ainda,
limitando o atendimento a apenas 50% da demanda cadastrada.
O novo PNE não é uma ilha no universo normativo. Há todo um arcabouço consti-
tucional, legal e jurisprudencial que o antecede e coloca-se hierarquicamente acima
de seu conteúdo. Ou seja, todas as disposições do PNE, principalmente suas metas e
estratégias, precisam ser interpretadas conforme a Constituição (XIMENES, 2014, p.
81).
66
O STF, nesse sentido, vem afirmando o direito à educação infantil como prerrogativa
constitucional indisponível deferida às crianças, sendo que esse direito não depende
de regulamentações para ser exigível, já que seu conteúdo básico pode ser extraído
diretamente do texto da Constituição. [...] O planejamento jurídico da política educa-
cional, no entanto, não esvazia a força da dimensão subjetiva do direito à educação.
Ou seja, não adia para 2024 a possibilidade de se exigir o direito de acesso a creches
de qualidade, em ações individuais ou coletivas. Interpretar o PNE dessa forma seria,
além de errado do ponto de vista técnico-jurídico, contrário à Constituição, que em
seu art. 208, IV, é taxativa quanto ao dever do Estado à garantia desse direito (XIME-
NES, 2014, p. 81-82).
Art. 7.º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à
melhoria de sua condição social:
[...]
XXV – assistência gratuita aos filhos e dependentes desde o nascimento até 5 (cinco)
anos de idade em creches e pré-escolas. (Inciso alterado pela Emenda Constitucional
n.º 53, de 19.12.2006.)
familiarismo” nos cuidados com as crianças pequenas, ou seja, contra uma prática que mantém
as crianças escondidas em suas famílias e “inacessíveis aos olhos do público”.
No tocante ao § 2.º do art. 211, cabe esclarecer que o atendimento à educação infantil,
de modo prioritário pela esfera municipal, não implica, conforme explica Souza (2010, p.
86), “carta de isenção de responsabilidade” às demais pessoas públicas (União e Estados).
Permanecem estes obrigados a agir de modo subsidiário e não condicionado “no sentido de
assegurar a universalidade do atendimento imposto” pelo art. 208, IV.
Em face do exposto, caso o Município mostre incapacidade para realizar o atendi-
mento universal no ensino infantil, possuindo outra Pessoa Política condições efetivas
de abarcar ao menos parcela da demanda remanescente, terá o dever inarredável de
fazê-lo, com o espeque de garantir a efetividade do direito fundamental (SOUZA,
2010, p. 86).
No mesmo sentido, segue o art. 30, VI, que, alterado pela Emenda Constitucional 53,
de 2006, determina a cooperação financeira e técnica da União e do Estado na manutenção de
programas de educação infantil promovidos pelos Municípios.
No que concerne aos mecanismos de efetivação da cooperação, imposta pelo art. 211,
entre União, Estados e Municípios, observa-se, nos arts. 212 e 213, o detalhamento dos recursos
a serem investidos pelas diferentes esferas, sendo à União definido o percentual nunca inferior
a 18% de sua receita e, aos Estados e Município, o mínimo de 25%.
Art. 212. A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Dis-
trito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante
de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desen-
volvimento do ensino.
§ 1.º A parcela da arrecadação de impostos transferida pela União aos Estados, ao
Distrito Federal e aos Municípios, ou pelos Estados aos respectivos Municípios, não
é considerada, para efeito do cálculo previsto neste artigo, receita do governo que a
transferir.
§ 2.º Para efeito do cumprimento do disposto no caput deste artigo, serão conside-
rados os sistemas de ensino federal, estadual e municipal e os recursos aplicados na
forma do art. 213.
§ 3.º A distribuição dos recursos públicos assegurará prioridade ao atendimento das
necessidades do ensino obrigatório, no que se refere a universalização, garantia de
padrão de qualidade e equidade, nos termos do plano nacional de educação. (Parágrafo
alterado pela Emenda Constitucional n.º 59, de 11.11.2009 – DOU 12.11.2009.)
§ 4.º Os programas suplementares de alimentação e assistência à saúde previstos no
art. 208, VII, serão financiados com recursos provenientes de contribuições sociais e
outros recursos orçamentários.
§ 5.º A educação básica pública terá como fonte adicional de financiamento a
contribuição social do salário-educação, recolhida pelas empresas na forma da lei.
(Redação alterada pela Emenda Constitucional n.º 53, de 19.12.2006.)
§ 6.º As cotas estaduais e municipais da arrecadação da contribuição social do salário-
educação serão distribuídas proporcionalmente ao número de alunos matriculados na
educação básica nas respectivas redes públicas de ensino. (Parágrafo acrescentado
pela Emenda Constitucional n.º 53, de 19.12.2006.)
Art. 213. Os recursos públicos serão destinados às escolas públicas, podendo ser di-
rigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, definidas em lei, que:
I – comprovem finalidade não lucrativa e apliquem seus excedentes financeiros em
educação;
II – assegurem a destinação de seu patrimônio a outra escola comunitária, filantrópica
ou confessional, ou ao Poder Público, no caso de encerramento de suas atividades.
§ 1.º Os recursos de que trata este artigo poderão ser destinados a bolsas de estudo
para o ensino fundamental e médio, na forma da lei, para os que demonstrarem
insuficiência de recursos, quando houver falta de vagas e cursos regulares da rede
pública na localidade da residência do educando, ficando o Poder Público obrigado a
investir prioritariamente na expansão de sua rede na localidade.
§ 2.º As atividades de pesquisa, de extensão e de estímulo e fomento à inovação
realizadas por universidades e/ou por instituições de educação profissional e
tecnológica poderão receber apoio financeiro do Poder Público. (Parágrafo alterado
pela Emenda Constitucional n.º 85/2015, de 27.02.2015 – DOU 27.02.2015.)
69
Consolidado como parte dos direitos sociais, com o status de direito público subjetivo,
o art. 208, §§ 1.º e 2.º, prevê mecanismos de “tutela coletiva e sua defesa mediante a participação
de entidades associativas e do Ministério Público” (BITTAR, 2014, p. 18-30) e impele aos
dispositivos periféricos e seus princípios norteadores os mesmos mecanismos de exigibilidade
nos casos de não oferecimento ou oferta irregular por parte do Poder Público, implicando
responsabilidade da autoridade competente, haja vista que, por meio do art. 37 caput, do Texto
Constitucional, estão os entes públicos obrigados à observância dos direitos fundamentais
e submetidos ao princípio da boa administração pública, devendo empregar todos os meios
disponíveis para a efetivação dos direitos fundamentais.
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União,
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de lega-
lidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
(Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 19, de 1998.)
Conforme explica Silveira (2008, p. 539), considerar a educação como direito público
subjetivo significa que sua constituição como instrumento jurídico de controle da ação estatal
é assegurada a todo cidadão que, investido legitimamente de seu direito, detém o poder para
exigir seu cumprimento e, ao Estado, a obrigação de promovê-lo.
pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal”
(MIRANDA, 2013, p. 5).
ADI 1.484/DF, Rel. Min. Celso de Mello, v.g. – A inércia estatal em adimplir as impo-
sições constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela autoridade da Consti-
tuição e configura, por isso mesmo, comportamento que deve ser evitado. É que nada
se revela mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem
a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o
propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem ajus-
tados à conveniência e aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses
maiores dos cidadãos. A intervenção do Poder Judiciário, em tema de implementação
de políticas governamentais previstas e determinadas no texto constitucional, nota-
damente na área da educação infantil (RTJ 199/1219-1220), objetiva neutralizar os
efeitos lesivos e perversos, que, provocados pela omissão estatal, nada mais traduzem
senão inaceitável insulto a direitos básicos que a própria Constituição da República
assegura à generalidade das pessoas. Precedentes (STF, 2.ª T., ARE 639337 AgR/SP,
Rel. Min. Celso de Mello, j. 23.08.2011. Disponível em: <http://www.crianca.mppr.
mp.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=318>).
Conforme observa Ranieri (2009, p. 45), tal reivindicação não se restringe apenas
à garantia ou tutela do interesse individual, mas é ampliada para demandas que envolvam
“interesses coletivos e públicos, de grupos de pessoas indeterminadas, como as gerações futuras,
por exemplo”, atribuindo caráter inovador à legislação que regulamenta a Educação no Brasil,
pois conforme explica Oliveira (1999, p. 7)
[...] para além de uma maior explicitação dos direitos e de uma maior precisão jurídi-
ca, [...], há a previsão dos mecanismos capazes de garantir os direitos anteriormente
enunciados, estes, sim, verdadeira novidade. São eles, o mandado de segurança cole-
tivo, o mandado de injunção e a ação civil pública
direitos públicos subjetivos em geral [...]”, não sendo exclusivos apenas à tutela do direito
educacional.
O mandado de segurança, conforme art. 5.º, LXIX e LXX, constitui-se como remédio
específico contra a violação ou ameaça de violação de direito líquido e certo, causado pela
omissão ou ação de autoridade pública, contra um indivíduo ou uma coletividade, e que não
seja amparado por habeas corpus.
Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantin-
do-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
LXIX – conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo,
não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegali-
dade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercí-
cio de atribuições do Poder Público;
LXX – o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por:
a) partido político com representação no Congresso Nacional;
b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em
funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou
associados.
O mandado de injunção, por seu turno, encontra-se descrito também no art. 5.º, LXXI,
e destina-se aos casos em que a falta de norma ameace ou torne inviável o exercício dos direitos
e liberdades constitucionais, como o direito à educação, cabendo ao Poder Judiciário, conforme
explica Pannunzio (2009, p. 70), “apontar a regulamentação aplicável até eventual edição da
norma” mediante decisão judicial de equidade.
Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantin-
do-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
LXXI – conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regula-
mentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das
prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.
A ação popular, prevista na Constituição Federal no art. 5.º, LXXIII, “tem por objetivo
anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade
administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, podendo ser manejada por
qualquer cidadão” (PANNUNZIO, 2009, p. 71), considerando-se ainda a isenção do pagamento
72
de custas judiciais e ônus da sucumbência ao autor, exceto nos casos de comprovada litigância
de má-fé.
LXXIII – qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular
ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à morali-
dade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o
autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência.
A ação civil pública, conforme explica Pannunzio (2009, p. 71), inicialmente prevista
na Lei 7.347/1985 e posteriormente no art. 129, III, fixada como uma das atribuições do
Ministério Público, volta-se à defesa e promoção de interesses difusos e coletivos.
No entanto, por meio dos dispositivos legais posteriores à sua edição original, a Lei
7.347/1985 teve sua redação ampliada, constituindo-se como um dos mecanismos que mais
sofreu alterações.
Entre outras inovações à redação original, encontram-se aquelas propostas pelas Leis
11.448/2007 e 13.004/2014 que incluíram, respectivamente, entre os legitimados, a Defensoria
Pública; a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; a autarquia; e, no caso das
associações, além do período de um ano de sua constituição, definiram como critério para
sua legitimação que, concomitantemente, apresentassem entre suas finalidades institucionais
a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao
patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.
Outra inovação apresentada ao mesmo art. 5.º da Lei 7.347/1985, em seu § 6.º, refere-
se à possibilidade, aos órgãos públicos legitimados, de tomarem dos interessados compromisso
de ajustamento de sua conduta às exigências legais, incluída pela Lei 8.078/1990.
Outro mecanismo que visa assegurar a efetividade do direito à educação é a ação direta
de inconstitucionalidade, que, prevista no art. 103 da Constituição Federal, regulamentada pela
Lei 9.868/1999, com redação atualizada pela Emenda Constitucional 45, de 08.12.2004, define
o rol taxativo dos legitimados à sua propositura, “destina-se a declarar a incompatibilidade de
lei ou ato normativo federal ou estadual frente a dispositivos da Constituição, incluindo aqueles
atinentes ao direito à educação”, conforme apontado por Pannunzio (2009, p. 71).
Art. 5.º O acesso à educação básica obrigatória é direito público subjetivo, podendo
qualquer cidadão, grupo de cidadãos, associação comunitária, organização sindical,
entidade de classe ou outra legalmente constituída e, ainda, o Ministério Público,
acionar o poder público para exigi-lo. (Redação dada pela Lei n.º 12.796, de 2013.)
[...]
75
§ 3.º Qualquer das partes mencionadas no caput deste artigo tem legitimidade para pe-
ticionar no Poder Judiciário, na hipótese do § 2.º do art. 208 da Constituição Federal,
sendo gratuita e de rito sumário a ação judicial correspondente.
§ 4.º Comprovada a negligência da autoridade competente para garantir o ofereci-
mento do ensino obrigatório, poderá ela ser imputada por crime de responsabilidade.
§ 5.º Para garantir o cumprimento da obrigatoriedade de ensino, o Poder Público cria-
rá formas alternativas de acesso aos diferentes níveis de ensino, independentemente
da escolarização anterior.
[...] para além da mera garantia de acesso ao sistema público e gratuito. Sustenta-se a
ideia de efetivar-se uma educação que atenda aos objetivos expressos na Constituição,
que são “o pleno desenvolvimento da pessoa humana”, “o seu preparo para o exercí-
cio da cidadania” e “a sua qualificação para o trabalho” [...] que resulta em autonomia
individual, fundada no princípio da liberdade, assim como do respeito ao valor e à
dignidade da pessoa humana (COSTA, 2011, p. 17).
Se por um lado a apreensão do carecimento que surge na esfera social pelo legislador
demanda intensa comunicação entre os segmentos que detêm poder e legitimação na esfera
social, por outro, a volta do carecimento positivado (constituído como parte do ordenamento
jurídico) também demanda intenso trabalho de comunicação para que possa ser apreendido pela
sociedade, uma vez que nem todos os atores participaram das instâncias de luta e de tomada de
decisões.
[...] uma coisa é proclamar esse direito, outra é desfrutá-lo efetivamente. A linguagem
dos direitos tem indubitavelmente uma grande função prática, que é emprestar uma
força particular às reivindicações dos movimentos que demandam para si e para os
outros a satisfação de novos carecimentos materiais e morais; mas ela se torna enga-
nadora se obscurecer ou ocultar a diferença entre o direito reivindicado e o direito
reconhecido e protegido. Não se poderia explicar a contradição entre a literatura que
faz a apologia da era dos direitos e aquela que denuncia a massa dos “sem-direitos”.
Mas os direitos de que fala a primeira são somente os proclamados nas instituições in-
ternacionais e nos congressos, enquanto os direitos de que fala a segunda são aqueles
que a esmagadora maioria da humanidade não possui de fato (ainda que sejam solene
e repetidamente proclamados).
76
Tratar dos modos como o direito à educação de crianças de 0 a 3 anos pode ser
assegurado e efetivado parece, portanto, mais complexo do que pressupôs Bobbio (2004).
Para tanto, propõe-se uma perspectiva de análise que, longe da ideia de causa e efeito,
permita compreender o direito à educação de crianças de 0 a 3 anos como produto cultural e
histórico que, marcado por avanços e retrocessos, constituiu-se como um saber especializado
e que foi, ao longo dos anos, transformado por meio da “reapropriação” de significados
historicamente consolidados, conforme explica Villas Bôas (2014, p. 587): “Embora os
conteúdos representacionais sejam ancorados no passado, sua manutenção no presente só
é realizada por meio de uma atualização seletiva assegurada pelas relações mantidas com a
memória social” (VILLAS BÔAS, 2014, p. 593).
A realidade de onde nasceram as exigências desses direitos era constituída pelas lu-
tas e pelos movimentos que lhes deram vida e as alimentaram: lutas e movimentos
cujas razões, se quisermos compreendê-las, devem ser buscadas não mais na hipótese
do estado de natureza, mas na realidade social da época, nas suas contradições, nas
mudanças que tais contradições foram produzindo em cada oportunidade concreta
(BOBBIO, 2004, p. 36).
3
A DIMENSÃO SIMBÓLICA DO DIREITO E AS CONTRIBUIÇÕES
DA TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
Considerando que o presente estudo tem por objetivo oferecer um quadro explicativo
sobre como os estudantes de Pedagogia compreendem e representam o direito à educação de
crianças de 0 a 3 anos e o espaço da creche, tem-se no caso em tela a delimitação de um fenômeno
a ser investigado numa abordagem epistemológica dialógica interacionista,18 orientada pelo
referencial teórico-metodológico da Teoria das Representações Sociais (MOSCOVICI, 2010;
2011; 2012; MARKOVÁ, 2017) e pelas áreas da Filosofia e da Antropologia do Direito,
respectivamente representados por Honneth (2009) e Oliveira (1992; 2008; 2010; 2011).
Marcados pela comunicação, própria de cada época, tanto o espaço da creche quanto
o direito à educação de crianças de 0 a 3 anos, no Brasil, sofreram modificações por meio de
normas jurídicas que determinaram públicos específicos de atendimento, estabeleceram regras
para sua fruição, organizaram socialmente os espaços públicos, regularam a vida em sociedade
e determinaram modelos de atuação profissional em diferentes épocas, ensejando distintas
compreensões entre os diversos atores envolvidos nessa temática.
Nesse sentido, conforme explica Vargas (2016), essas alterações empreendidas de forma
normativa na esfera social acabam por ser interpretadas, recortadas, adaptadas e incorporadas
nas formas individuais e coletivas de pensamento, repercutindo nas atitudes, opiniões e,
sobretudo, nas ações dos diferentes atores envolvidos, uma vez que o conhecimento de senso
comum comporta esquemas cognitivos, interações sociais, sistema simbólicos e afetivos que
permitem aos diferentes atores conhecer e desvelar uma dada realidade construída socialmente,
atendendo, desse modo, aos objetivos propostos neste estudo.
Embora o direito à educação, no Brasil, tenha previsão legal situada entre os direitos
fundamentais, o desafio que se verifica na prática cotidiana é a sua universalização e efetivação.
18
Abordagem dialógica – tendo como premissas a interdependência e a interação entre o Ego (sujeito) e o Alter
(Outro/Estado/Lei) e a “experiência engajada” enraizada no “pensamento de senso comum e no conhecimento
socialmente compartilhado” (MARKOVÁ, 2017, p. 23). Epistemologia interacionista volta-se para o estudo
dos “modos como os homens constroem e criam sentido e entendem os fenômenos sociais constituintes da
realidade social em que vivem. ” (MARKOVÁ, 2017, p. 118)
78
Configurado esse desafio como conflito que chega ao Judiciário em forma de demanda,
hão que se considerar as diferentes representações que envolvem o objeto deste estudo, uma vez
que o conflito delineado entre o direito normativo e sua efetivação pode ensejar compreensões
e ações distintas entre os diferentes atores envolvidos, constituindo-se tais representações
tanto como mecanismos de manutenção de um controle social, preservando o status quo de
invisibilidade da infância e o não reconhecimento do direito à educação das crianças de 0 a 3
anos, quanto para a mudança social, por meio do enfrentamento das condições que impedem
sua universalidade a partir do surgimento de novas representações.
“[...] o conflito é o ponto de partida e o meio para mudar os outros, para estabelecer
novas relações ou consolidar as antigas. A incerteza e a ambiguidade são conceitos e estados
que derivam do conflito” (MOSCOVICI, 2011, p. 111).
Conforme explica Moscovici (2011, p. 100), “grupos como a família, a igreja, a escola,
a indústria, o exército e certos partidos fazem o possível para manter o controle social como
forma dominante” por meio de ações que reforçam “o consenso e a submissão às normas”,
razões pelas quais justifica-se o empenho em analisar as diferentes representações sociais que
permeiam os conflitos que se constituem como atos sociais que podem provocar como resposta
uma mudança social (MOSCOVICI, 2011, p. 108).
Nesse cenário marcado pelo conflito entre um direito considerado de forma universal e
a incapacidade estatal em assegurá-lo mediante a disponibilização de equipamentos públicos que
atendessem a demanda por vaga, encontram-se compreensões diversas que podem ser ilustradas
a partir do posicionamento do Poder Judiciário e das famílias demandantes que reconhecem o
direito à educação de crianças de 0 a 3 anos a partir do seu caráter universal e da consideração
de que a ideia de cidadania se exerce por meio de um tratamento uniforme dispensado a todos
os que recorrem ao Judiciário. Contudo, será que tal medida é da mesma forma compreendida
pelos estudantes do curso de Pedagogia?
intelectuais, opiniões ou pontos de vista particulares, mas sim como reflexos objetivados de
uma realidade óbvia e indiscutível.
Tendo em vista que o espaço da creche tem sua origem histórica marcada por uma
política voltada para guarda e tutela de filhos de trabalhadores pertencentes às camadas mais
vulneráveis, o atual modelo de proteção integral à criança inaugurado pela Declaração dos
Direitos da Criança e seguido pela legislação brasileira ensejou nova reconfiguração do direito
à educação de crianças de 0 a 3 anos a partir de sua universalidade, de seu caráter educativo
aliado aos cuidados, bem como ao posicionamento da criança enquanto sujeito de direitos,
constituindo-se o fenômeno como terreno em que múltiplos significados podem ser atribuídos
conforme o grupo de atores envolvidos e, portanto, passível de ser submetido a diversos e, até
mesmo divergentes, tipos de representações.
80
Nesse cenário, Campos (1999, p. 125) explica que a definição de um direito social, sua
instituição jurídica como tal, não é apreendida da mesma forma pelos diferentes atores sociais.
Segundo a autora, a disseminação de novas concepções de direitos costuma ser “mais lenta e
descontínua do que fazem supor as lutas políticas responsáveis por seu reconhecimento legal”.
Tratando-se de objeto que envolve leis e normas jurídicas, conforme explica Carvalho
(2010, p. 299), ao mesmo tempo em que comporta uma linguagem prescritiva expressa por
meio de textos imperativos, o Direito se organiza como um conjunto de normas jurídicas que
necessita ser submetido ao processo de reelaboração por aquele que o interpreta, razões pelas
quais justifica-se a relevância do estudo aqui proposto.
81
A esse respeito, explica Honneth (2009) que as interpretações das normas e as relações
jurídicas imbricadas na esfera social implicam formas específicas de reconhecimento que
perpassam a abstração da norma e atingem a construção daquilo que o autor denomina de
autoconfiança, autorrespeito e autoestima, e que só podem acontecer dentro do tecido social.
Segundo revisão proposta por Honneth (2009, p. 194), parte-se da premissa de que
o autorrespeito se constrói na experiência coletiva empreendida por meio do reconhecimento
social de que determinado sujeito é um sujeito de direito e como tal possui a faculdade de “se
referir a si mesmo como uma pessoa moralmente imputável”.
Ter direitos nos capacita a manter-nos como homens, a olhar os outros nos olhos e nos
sentir, de uma maneira fundamental, iguais a qualquer um. Considerar-se portador de
direitos não é ter orgulho indevido, mas justificado, é ter aquele autorrespeito míni-
mo, necessário para ser digno do amor e da estima dos outros. De fato, o respeito por
pessoas [...] pode ser simplesmente o respeito por seus direitos, de modo que não pode
haver um sem o outro; e o que se chama dignidade humana pode ser simplesmente a
capacidade reconhecível de afirmar pretensões (HONNETH, 2009, p. 196).
Desenvolvida sob o aporte teórico das representações sociais, Béal et al. (2014)
apontaram que a interiorização de um status de total desqualificação social se colocava como
elemento que dificultava o próprio acesso aos direitos sociais e humanos pela via judicial
distributiva, justamente porque os sujeitos participantes se encontravam marcados por um
sentimento de estigmatização que decorria da não validação social de sua capacidade de possuir
direitos.
Nesse sentido, aproximam-se os resultados obtidos por Béal et al. (2014) e Honneth
(2009, p. 198), cujos dados demonstram que a negação de direitos e a “tolerância a subprivilégio
jurídico conduzem a um sentimento paralisante de vergonha social, do qual só o protesto ativo
e a resistência poderiam libertar”.
Essa situação só poderia ser transformada por meio da luta de poder que se trava
simbolicamente na esfera social, por meio da construção de uma linguagem comum que ofereça
suporte à nomeação, à identificação e ao reconhecimento do objeto positivado, tornando possível
transformar aquilo que não é familiar em algo que o seja, permitindo aos seus atores assumir
uma posição e elaborar um julgamento sobre sua pertinência ou não, uma vez que,
[...] quanto mais os movimentos sociais conseguem chamar a atenção da esfera pú-
blica para a importância negligenciada das propriedades e capacidades representadas
por eles de modo coletivo, tanto mais existe a possibilidade de elevar na sociedade o
valor social, ou, mais precisamente, a reputação de seus membros (HONNETH, 2009,
p. 207-208).
Para se ter uma ideia da magnitude que as representações sociais assumem na vida
cotidiana, Marcílio (2016) destaca que, com relação ao espaço da creche, por exemplo, havia
um vocabulário específico para designar seu público “menores”, absolutamente distinto do
termo “crianças”. O primeiro utilizado na indicação das crianças oriundas de famílias de baixa
renda, derivado do Código de Menores, e o segundo, especificamente, referindo-se às crianças
da elite, explicitando compreensões distintas concernentes ao espaço da creche e seu público.
Nesse sentido, a negação ou a não concretização das condições que asseguram o direito
à educação das crianças de 0 a 3 anos resultam, a partir do entendimento proposto por Honneth
(2009, p. 216-218), na própria degradação da sua integridade psíquica, uma vez que seu não
reconhecimento se materializa no rebaixamento e humilhação social, na degradação cultural de
suas formas de vida e resultam, estruturalmente, na exclusão da posse de determinados direitos
no interior de sua comunidade.
19
Oficial de carreira, francês, acusado de vender informações militares confidenciais aos alemães, no final do
século XIX.
84
que necessitam ser analisadas por se tratar de objeto que envolve um conflito que exige o
reconhecimento de um direito social positivado: 1. A dimensão do contexto cultural; 2. A
dimensão situacional do contexto; e 3. A dimensão contextual do caso específico (OLIVEIRA,
2010).
Por dimensão do contexto cultural define Oliveira (2010) o universo simbólico mais
amplo em que o conflito tem lugar. Nesse caso, encontram-se os elementos jurídicos definidos,
em épocas específicas, em relação à normatização do papel social da criança, da infância e da
educação dos mais jovens, no período de transição das sociedades pré-industriais em sociedades
industriais, apresentados no Capítulo 1.
[...] nunca devemos nos esquecer que nós adquirimos a marca do conhecimento do
senso comum cedo na infância, quando nós começamos a nos relacionar, comunicar e
falar. A maioria das pessoas fala muito bem sua língua materna, mesmo que elas não
tenham nenhum estudo. O conhecimento do senso comum, por isso, não pode ser tão
distorcido e errado, como algumas vezes se supôs. Ele serve muito bem a seus propó-
sitos na vida diária e chegou mesmo a encantar e a tornar a vida digna de ser vivida
por séculos (MOSCOVICI, 2010, p. 336).
com o objetivo de tornar familiar e passível de ser controlado tudo aquilo que se apresenta
como diferente, desconhecido e ameaçador à comunidade da qual fazem parte.
É por meio da construção de representações que se dá a ponte que lida com a distância
entre os atores sociais e objeto-mundo criando sentidos, ferramentas e entendimentos
que o domesticam e o tornam conhecido. Portanto, as representações criam familia-
ridade e respondem a profundas necessidades de se sentir em casa no mundo (JOV-
CHELOVITCH, 2011, p. 191).
É do lugar particular onde esses sujeitos se situam que se dá a separação dos conceitos
e percepções que, normalmente interligados, serão utilizados para tornar familiar aquilo que
para a comunidade é considerado não familiar.
Mesmo quando uma pessoa ou um objeto não se adéquam exatamente ao modelo, nós
o forçamos a assumir determinada forma, entrar em determinada categoria [...] sob
pena de não ser nem compreendido, nem decodificado (MOSCOVICI, 2010, p. 34).
87
Para nomear algo ou alguém, é preciso que os outros o reconheçam [...]. Somente se
os outros aceitam o nome que sugiro para algo em particular é que seu significado
se torna uma propriedade comum sobre a qual a comunidade pode agir [...] o Ego só
pode demandar justiça apenas na medida em que o Outro entenda o significado de
justiça [...] Se o Outro (seja um indivíduo ou o Estado) não compartilha o significado
de justiça do Ego, não há maneiras de suas demandas serem ouvidas (MARKOVÁ,
2017, p. 86).
Dá-se, portanto, a partir da ideia de representação social, especial destaque aos sistemas
comunicacionais estabelecidos entre os estudantes do curso de Pedagogia, uma vez que olhar
para o direito à educação de crianças de 0 a 3 anos e para o espaço da creche implica considerar a
maneira como tais objetos estão sendo compreendidos, recortados, interpretados, reformulados,
isto é, representados a partir das dimensões da informação, do campo de representação e das
atitudes.
[...] é permeada por certa plasticidade na medida em que cada geração altera, ou não,
o sentido e a compreensão dos conhecimentos preexistentes e dos significados his-
toricamente consolidados. Ou seja, cada contexto atual seleciona um conteúdo do
passado que será reatualizado por meio de um recorte e de uma interpretação própria,
89
Mais ainda, buscou-se a configuração de um grupo reflexivo que atendesse aos critérios
propostos por Wagner (1998, p. 10-11), ou seja, que se caracterizasse como unidade social
específica, marcada pela filiação de seus membros a partir de critérios próprios, tornando-se
possível a elaboração coletiva de regras, justificativas e razões para a construção de determinados
comportamentos dentro de suas práticas cotidianas, bem como o compartilhamento de
informações, imagens e atitudes que sustentariam as representações sociais de determinado
grupo sobre o objeto, nesse caso, as representações dos estudantes de Pedagogia sobre o direito
à educação de crianças de 0 a 3 anos e o espaço da creche.
20
Instrumento amplamente utilizado na área da avaliação educacional que permite, segundo Santos (2017, p.
146), “a estruturação de descritores na caracterização do objeto investigado, permitindo, por conseguinte, ao
pesquisador melhor delimitar o seu estudo focalizando específicos pontos do objeto/fenômeno investigado”.
91
Cabe, contudo, esclarecer que a opção por uma coleta organizada em etapas e com a
utilização de instrumentos também distintos teve por objetivo assegurar uma forma didática
de se analisar, separadamente, cada dimensão que compõe uma representação social, pois,
conforme explica Moscovici (2012, p. 62), é passível de se verificar no curso das análises
a ausência de uma dessas dimensões, resultando uma representação pouco coerente e pouco
estruturada.
Isso porque, conforme explica Renard (2009, p. 157), as opiniões, embora mais
instáveis, podem se apresentar de forma objetivada ou ser desveladas por meio das narrativas
empreendidas por esses participantes, permitindo, assim, o acesso a uma organização
subjacente ao conteúdo das representações, pois, conforme sinaliza Moscovici (2012,
93
p. 64-65), “as opiniões podem incluir o conjunto representado”, embora isso não signifique que
esse “conjunto seja ordenado e estruturado”.
Participaram dessa primeira etapa de coleta, realizada no início do ano de 2016, 124
estudantes. A cada um deles foi entregue um conjunto impresso contendo um questionário de
perfil, composto por dez questões que versavam sobre a caracterização do participante, e um
questionário com seis questões abertas relacionadas à estrutura da educação básica, ao direito à
educação e ao espaço da creche.
Por meio da seleção dos elementos destacados pelos estudantes nas respostas oferecidas
às questões abertas que compuseram a primeira etapa de coleta, foram elaborados três cenários
projetados na modalidade de situações-problema (Apêndice E).
Embora o estudo original realizado por Inaudi et al. (2014) oferecesse uma escala a
partir da qual algumas variáveis eram selecionadas e apresentadas aos participantes, para esta
pesquisa optou-se pelo cenário projetado no modelo de situação-problema, mas sem a definição
de uma escala, deixando espaço aberto para que os participantes formulassem livremente suas
hipóteses, soluções e justificativas.
sentidos aos objetos e relações sociais” que, marcada por seu aspecto imaginário, atribui sentido
às coisas, aos fatos sociais e ao mundo, justamente por decorrerem da organização de ideias,
imagens, crenças, opiniões e representações.
Para as respostas obtidas com o questionário de perfil optou-se por uma análise
quantitativa a fim de delinear características como idade, sexo, tempo de docência, cargo ou
função desempenhada por esses estudantes, semestre cursado e ter filhos ou não.
4
APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS COLETADOS
A apresentação dos dados coletados e suas respectivas análises estão em dois conjuntos,
considerados os objetivos definidos para cada etapa de análise:
No que tange à área de atuação, verificou-se que, dentre os 124 participantes, 78 deles
já atuavam na área da Educação (63%) e 46 atuavam em outras áreas (37%), configurando-se
um grupo experiência em espaços educativos.
Com relação à rede de ensino onde atuavam, dos 78 participantes verificou-se que 49
se encontravam na rede pública (63%): 48 participantes atuando em escolas da Prefeitura de
São Paulo (62%) e 1 em escola do Estado de São Paulo (1%); e 29 atuavam em escolas da rede
privada de ensino (37%), sinalizando maior presença nas escolas da rede municipal de ensino,
conforme indicado no Gráfico 7.
99
Considerando que o fato de ter filhos ou não pode ser um elemento da vivência
cotidiana que poderia favorecer a discussão sobre a educação de crianças de 0 a 3 anos, foram
levadas em conta as seguintes variáveis: ter filho que frequentou a creche pública ou filho que
não frequentou a creche pública.
Nesse aspecto, dentre os 87 participantes que declararam ter filhos 45 afirmaram que
seus filhos frequentaram a creche pública (52%), enquanto 42 indicaram outras formas de
atendimento (creche privada, casa de parentes, ou permanência no domicílio com um dos pais)
(48%).
Constituindo-se a estrutura da Educação Básica como um dos saberes que fazem parte
da formação inicial de um expert em Pedagogia, foram encaminhadas, aos participantes, as
seguintes questões: 1. Quais etapas compõem a Educação Básica no Brasil?; 2. A partir de qual
idade a matrícula torna-se obrigatória no Brasil?; 3. Quem é o principal responsável pela creche
pública?
Com relação às etapas que compõem a Educação Básica, dentre os 124 respondentes 42
deles indicaram as etapas corretas: educação infantil (creche e pré-escola); ensino fundamental
e ensino médio (34%); 63 responderam de modo incorreto (51%); e 19 não responderam à
questão (15%), sinalizando um desconhecimento acerca da estrutura que compõe a Educação
Básica nacional, conforme se observa no Gráfico 9.
102
Quanto à idade obrigatória para a matrícula de crianças observou-se que dentre os 124
estudantes que responderam à questão apenas 24 indicaram a idade correta de 4 anos (19%),
17 não responderam à questão (14%) e 83 mencionaram outras idades (63%), sinalizando
acentuado desconhecimento acerca de tal determinação, conforme demonstrado no Gráfico 10.
103
Na análise das respostas incorretas, verificou-se que havia uma tendência desses
estudantes a reconhecer a obrigatoriedade da matrícula apenas a partir dos 6 anos de idade, no
momento em que a criança ingressa no 1.º ano do Ensino Fundamental, sinalizando que esses
conhecimentos sobre a estrutura da Educação Básica não fizeram parte do repertório adquirido
por meio da formação inicial, tampouco da experiência desenvolvida nas práticas sociais,
embora devessem compor aquilo que se espera de um expert em Pedagogia e dissessem respeito
aos espaços onde 63% dos participantes declararam desempenhar as funções de Auxiliar de
classe ou de Estagiário.
Tal aspecto parece indicar uma visão que reduz os processos educativos aos processos
formais de escolarização, o que não coaduna com os dispositivos legais vigentes que incluíram
a educação infantil como primeira etapa da Educação Básica, a partir do pressuposto de
104
que a educação abrange todas as etapas da vida de um ser humano, numa perspectiva de
desenvolvimento integral e como parte daquilo que assegura o direito humano à dignidade.
Outro aspecto analisado acerca da estrutura que compõe a Educação Básica nacional
dizia respeito ao conhecimento que os participantes apresentavam sobre a estrutura/esfera
administrativa responsável pela manutenção da creche pública.
No conjunto dos dados coletados verificou-se que dos 124 participantes 91 indicaram
corretamente o governo municipal (73%); e os demais sinalizavam outras esferas administrativas,
sendo 16 como o governo estadual (13%); 1 apontou o governo federal (1%); 2 indicaram a
iniciativa privada (2%); e 14 não responderam à questão (11%), conforme segue demonstrado
no Gráfico 11.
Considerando que todo o ordenamento jurídico nacional vigente define uma modalidade
de responsabilidade pelas crianças e adolescentes compartilhada entre o Estado, a sociedade e
a família, envolvendo cuidados e educação, solicitou-se aos participantes que indicassem quais
seriam os principais responsáveis pela educação das crianças de 0 a 3 anos.
Notou-se a partir de suas escolhas que a responsabilidade pela educação das crianças
de 0 a 3 anos se encontrava pautada numa ideia de familiarismo (QVORTRUP, 2010), na qual
não se vislumbrava uma responsabilidade compartilhada e ampliada para o tecido social, no
qual os esforços empreendidos na formação da força laboral dos mais jovens são suportados
exclusivamente pelas famílias, sem que quaisquer benefícios lhes sejam revertidos e assegurem
condições mínimas de sobrevivência e dignidade.
O descomprometimento social com a educação dos mais jovens, indicado por esse grupo
de participantes, sinaliza a desconsideração dessa etapa geracional no suporte para a manutenção
de um mundo comum. Desconsideram, ainda, que essas crianças são parte fundamental daquilo
que Qvortrup (2011; 2014) definiu como pacto geracional, ou seja, a capacidade de sustentar as
macroestruturas políticas e sociais, por meio do trabalho e do cuidado tacitamente estabelecido
entre as diferentes gerações.
educar no sentido de ensinar regras sociais, valores morais e códigos de conduta e à escola
conferiu-se um caráter estritamente voltado à transmissão de conteúdos disciplinares, conforme
ilustra a fala do participante 122.
Educação se aprende em casa! Os pais devem desde cedo ensinar a respeitar, entender
quando é a sua vez e que o coleguinha também terá a sua. Hábitos de higiene também
devem ser ensinados e praticados em casa. A escola serve para ensinar português, ma-
temática e coisas sobre a cidadania, reforçando sempre o que lhe é ensinado em casa
(Suj. 122, 3.º/4.º semestre).
Dos pais, pois a creche e a escola são para escolarizar, socializar e orientar no apren-
dizado (Suj. 20, 5.º semestre).
Educação dos pais, escolarização dos professores (Suj. 68, 5.º semestre).
As implicações de tal separação, por sua vez, denotaram o não conhecimento, por
parte desses estudantes, das perspectivas legais que definem a educação de forma integral da
criança, na qual se impõe de maneira compartilhada entre o Estado, a sociedade e a família a
responsabilidade indissociável de educar, instruir e cuidar.
Quem educa é pai e mãe. Na escola a criança está para aprender a ler e escrever, e
outras atividades do dia a dia (Suj. 5, 5.º semestre).
Dessa perspectiva cindida entre educar e ensinar a creche foi colocada como
complementar ao trabalho dos pais ou como substituta no caso da ineficiência familiar na
realização de suas obrigações para com a criança, numa perspectiva reduzida e de caráter
assistencial, contrária aos textos legais que defendem o acesso universal, de caráter integral e
compartilhado, conforme se observa na fala dos participantes 10, 112 e 2:
109
Dos pais, porque eles têm que educar seus filhos. O professor pode auxiliar no desen-
volvimento das crianças, mas não educar (Suj. 10, 5.º semestre).
Os pais, pois nós educadores temos a função de ensinar e não educar. Porém, as crian-
ças nesta idade, a maioria, passa a maior parte do tempo e da vida dentro da escola,
onde os próprios pais cobram uma educação onde eles mesmos deveriam aplicar em
casa, mas, por acharem que pagam para isso, cobram demais da escola (Suj. 112,
3.º/4.º semestre).
Uma parte é dos pais, porém muitas das vezes muitos pais acabam transferindo essa
responsabilidade para a escola, sem saber que o professor está pronto para a escola-
rização e mesmo assim acaba fazendo parte da educação da criança por passar mais
tempo com o professor (Suj. 2, 5.º semestre).
Para mim, os pais. A creche tem uma pequena participação (Suj. 7, 5.º semestre).
A educação é de fato dos pais, porém com essa idade também fazemos parte disso
pois estão em uma fase de descobertas [...]. Nosso dever seria somente ensinar, po-
rém, para ter melhor convívio, acabamos educando também, pois existem famílias e
famílias (Suj. 1, 5.º semestre).
Acho que primeiramente dos pais. Os professores apenas reforçam o que as crianças
aprendem com os pais. [...] (Suj. 16, 5.º semestre).
Na minha opinião, são os pais em ambas as partes, pois a escola transmite autonomia,
mas nos dias de hoje os pais acham que a escola é quem deve educar, e não é isso.
Fizemos faculdade para transmitir conhecimentos, e não dar educação. Isso é dever
dos pais (Suj. 54, 5.º semestre).
[...] o professor é apenas o mediador do aprendizado do aluno (Suj. 41, 5.º semestre).
A escola e a creche são só um complemento para ajudar a criança a ter alguns limites
de espaços e convivência com outras crianças, onde elas possam brincar (Suj. 60, 5.º
semestre).
Uma vez que não se viam como parte de um contexto maior, no qual suas ações
pudessem ser consideradas educativas, descompromissavam-se com a autoridade que lhes
110
é devida com relação à educação dos mais jovens, excluíram-se voluntariamente do pacto
geracional que lhes determina compromisso e responsabilidade na iniciação dos mais jovens.
Hoje em dia, os pais acham que deve ser na escola, pois também passam um tempo
bastante considerável na escola. Como as crianças já vêm sem o comportamento, ou
seja, sem educação que presenciam em casa, fica difícil (Suj. 61, 5.º semestre).
Muitos pais deixam as crianças fazer o que querem e até mesmo não levam com fre-
quência as crianças nas aulas, isso atrapalha bastante o desempenho do professor (Suj.
53, 5.º semestre).
Não podemos jogar para a escola sozinha, porque a base vem de casa, com uma boa
base o professor pode desenvolver a criança com muita qualidade (Suj. 99, 3.º/4.º
semestre).
Colocando-se como sujeitos passivos, e até mesmo impotentes, quanto à educação das
crianças de 0 a 3 anos, abdicaram daquilo que Arendt (2011) e Marková (2017) definiram por
autoridade epistêmica. Na medida em que não se colocam como portadores de conhecimentos
específicos sobre o que significa educar e transferem tal responsabilidade para as famílias,
deixam também de exercer a influência que lhes caberia a partir dos conhecimentos adquiridos
em sua formação.
4.2.3 Campo de representação – O espaço da creche, seu papel social e o público atendido
Para essa etapa de análise, considerou-se uma dupla de questões que envolvia elementos
representacionais sobre o espaço da creche, seu papel social e o público atendido em tal espaço.
111
No tocante ao papel social da creche (para que existe a creche?), dentre os 124 estudantes
75 indicaram que o espaço da creche pública existia para atender famílias trabalhadoras,
sobretudo as mães trabalhadoras que se encontrassem em situação de vulnerabilidade (61%);
24 justificaram a existência da creche a partir do atendimento às famílias trabalhadoras e a
oferta de serviços educacionais às crianças (19%); e 25 dos respondentes justificou a existência
da creche a partir do atendimento oferecido exclusivamente às crianças (20%), conforme se
observa no Gráfico 13.
Outro aspecto a ser destacado dizia respeito à interpretação da pergunta em si, realizada
pelos participantes que, em vez de indicarem a quem o espaço da creche se destinava e o
papel educativo realizado em tal espaço, ofereciam respostas vagas que revelavam apenas uma
imagem de vulnerabilidade atribuída ao espaço e sua clientela.
Para mães que trabalham. Só que tem maioria que não trabalha que deixa a filha ou
filho na creche e acaba virando depósito de criança. É uma pena. A creche deixou de
ser social para ser institucional. Acho desnecessário creche para crianças muito pe-
quenas porque elas nem descobriram o mundo ainda. Prisão, opressão e tristeza, isso
é a creche para mim (Suj. 57, 5.º semestre).
Seria ótimo se as mães que verdadeiramente precisam usassem, mas as desocupadas
conseguem vaga primeiro do que as que trabalham (Suj. 29, 5.º semestre).
Tal posicionamento sugere ainda uma hierarquia do que seria considerado, por esse
grupo, o ideal de atendimento às crianças pequenas. Primeiro o domicílio como local ideal de
atendimento, seguido por instituições privadas e, em última instância, a creche como opção
para as famílias de baixa renda, conforme demonstra a fala dos participantes 11, 21, 15, 115 e
120:
A creche foi feita para crianças de 0 a 3 anos, de famílias de baixa renda. Os pais pre-
cisam trabalhar e não têm condições de pagar uma babá ou colocá-las em escola parti-
cular. Ali as crianças se alimentam, têm todo o conforto, são ensinadas a largar alguns
costumes, como por exemplo largar a chupeta e a fralda (Suj. 11, 3.º/4.º semestre).
Acolhe quem não tem condições de pagar uma escola particular ou até mesmo quem
precisa trabalhar (Suj. 21, 3.º/4.º semestre).
Para os pais que não podem pagar uma escola particular (Suj. 15, 3.º/4.º semestre).
As creches acabam suprindo muitas mães que precisam trabalhar e, muitas delas, não
têm com quem deixar seus filhos e, também, não têm condições de pagar [...] (Suj.
115, 5.º semestre).
113
A creche pública existe para acolher e auxiliar a criança no seu desenvolvimento pes-
soal e social. Existe também para ajudar as mães e pais que precisam trabalhar e não
têm condições de pagar uma escola particular [...] (Suj. 120, 5.º semestre).
A creche pública existe para que as famílias, as mães que trabalham possam ter um
lugar para deixar seus filhos, com o intuito de que tenham cuidados, como alimenta-
ção, higiene e muito mais, a socialização com outras crianças e o aprendizado (Suj.
96, 3.º/4.º semestre).
Para que os pais tenham onde deixar as suas crianças para poderem trabalhar. A cre-
che pensa nas crianças carentes que, muitas vezes, não têm o que comer e vão para a
creche ou para a escola para poderem se alimentar e receber carinho que muitas vezes
não têm dos pais (Suj. 54, 5.º semestre).
A creche é o lugar onde a mãe pode colocar o seu filho e deixar ele lá para poder
trabalhar sossegada. Lá ela sabe que tem quem cuide, tem alimentação e algum apren-
dizado (Suj. 5, 5.º semestre).
As creches públicas ajudam os pais que necessitam trabalhar e não têm com quem
deixar seus filhos. Muitos pais deixam seus filhos em creche para poder receber ajuda
do governo, como bolsa família, leve leite etc. (Suj. 53, 5.º semestre).
Para ajudar no desenvolvimento das crianças e para que os pais tenham mais oportu-
nidade de trabalhar. Têm muitas crianças que precisam da creche para ter uma alimen-
tação melhor, brincar e interagir com outras crianças (Suj. 10, 5.º semestre).
Para tirar as crianças da rua, do farol, ou ficar pedindo nas ruas e no farol. A creche
pública foi feita para que as crianças aprendam uma profissão, se adequar em uma
profissão de qualidade (Suj. 106, 3.º/4.º semestre).
Para auxiliar na socialização, na vivência oral e de mundo da criança. Para que já
tenham um conhecimento e familiarização da escola quando chegar no fundamental I
(Suj. 82, 3.º/4.º semestre).
114
Para acolher crianças que os pais trabalham e não têm onde deixar, para trabalhar o
desenvolvimento da criança e sua inserção na sociedade, e quebrar o apego da criança
com os pais, livrando assim de um sofrimento futuro (Suj. 38, 5.º semestre).
Gráfico 14. Para quem a creche pública foi feita, segundo os participantes
Quanto aos elementos destacados para justificar tais opções, observou-se entre os
participantes uma representação centrada no assistencialismo destinado às famílias de baixa
renda, não sendo reconhecida a titularidade do direito da criança, mas da família trabalhadora,
sobretudo da mãe trabalhadora.
Nesse sentido, aliada à compreensão da creche como local de custódia, associou-se uma
representação de uma suposta disfuncional idade familiar que, incapaz de cuidar adequadamente
de sua prole, exigia a atuação ativa do estado. A creche, nesse sentido, configurava-se como
última opção ou “mal menor”, em que as famílias vulneráveis poderiam depositar suas crianças
enquanto trabalhassem, conforme demonstra a fala dos participantes 66, 51, 11, 48 e 25:
Para as pessoas de baixa renda, uma pessoa que possui uma renda estável, automatica-
mente matricularia seu filho em escolas privadas (Suj. 66, 5.º semestre).
[...] para aqueles que não têm condições de colocar seus filhos em escolas particulares
(Suj. 51, 5.º semestre).
Para crianças de 0 a 3 anos de famílias de baixa renda. Os pais precisam trabalhar e
não têm condições de pagar uma babá ou colocá-las em escola particular [...] (Suj. 11,
5.º semestre).
A creche pública foi feita para todas as crianças que estão situadas naquela região,
principalmente aquelas de uma situação mais precária, pais de baixa renda que não
têm condições de pagar uma escola particular (Suj. 48, 5.º semestre).
Para pessoas de baixa renda que não têm condições de pagar uma escolinha particular
ou até mesmo uma babá (Suj. 25, 5.º semestre).
Para as crianças poderem ter um lugar seguro para estar enquanto não podem estar
com os pais, pois os pais encontram-se trabalhando. Na minha opinião, deveria existir
creche para isso e não para largar os filhos lá só por largar, mas para ser um lugar onde
você pode ficar um pouco mais tranquilo (Suj. 24, 5.º semestre).
116
Para as mães que realmente trabalham. Que bom que o Dória é prefeito porque agora
para fazer a matrícula eles vão pedir holerite e isso é ótimo, assim as desocupadas não
terão vez (Suj. 29, 5.º semestre).
Para a burguesia, pois o patrão só terá funcionários se as mães tiverem onde deixar as
crianças (Suj. 15, 5.º semestre)
Para que as crianças não fiquem sozinhas em casa e para os pais poderem trabalhar,
para que seus salários voltem para o governo (Suj. 91, 3.º/4.º semestre).
Para pública foi feita para pessoas de classe baixa, cujos filhos precisam ter carinho,
afeto e cuidado e ensinamentos, e para os pais que precisam deixar os filhos na creche.
Porém, tem muito pai que não trabalha e deixa as crianças o dia todo na creche, eu
acho errado (Suj. 80, 3.º/4.º semestre).
Para todos, é um direito social. Mas, infelizmente, temos pais que não trabalham e
simplesmente colocam os filhos na escola e acabam tomando a vaga de outro pai que
trabalha e, talvez, não tenha com quem deixar seu filho, ou não tenha condições finan-
ceiras para pagar alguém ou uma escola particular, então, o direito é de todos, a partir
do momento que as pessoas têm consciência (Suj. 114, 3.º/4.º semestre).
se uma maior tendência a um posicionamento que defendia a “espera” da mãe fictícia de obter
a vaga, como algo que devesse ser dado pelo Estado como uma espécie de favor, e não como
um direito.
[...] como Joana está desempregada e ainda não conseguiu vaga, ela tem que aguardar
seu bebê ser chamado, porque tem a sequência da lista para ser chamado, o correto é
aguardar a vaga (Suj. 5, 3.º/4.º semestres).
Como ela está desempregada, até arrumar a vaga, ela poderia ficar com seu bebê em
casa, quando precisasse ir em alguma entrevista, deixaria o bebê com algum parente
próximo (Suj. 9, 3.º/4.º semestres).
Joana poderia ficar com seu bebê em casa, pois se Joana está desempregada poderia
acompanhar seu bebê no seu desenvolvimento [...] (Suj. 11, 3.º/4.º semestre).
Pedir ajuda da família porque é necessário a ajuda de alguém. Nesse caso, primeiro a
família (Suj. 55, 5.º semestre).
Não tem vaga nas creches. Fica difícil trabalhar. Tem que esperar um ano (Suj. 68, 5.º
semestre).
[...] deveria deixar o bebê dela com algum parente pelo menos uma vez por semana
para procurar emprego, porque ela precisa de alguém para ajudá-la pelo menos até ela
ter condições de pagar uma creche ou babá (Suj. 69, 5.º semestre).
Outro aspecto que também reforçou uma postura menos ativa em relação à mãe
desempregada foi demonstrado pela indicação e naturalização de subempregos para a mãe
fictícia, absolutamente compatível com o processo de familiarismo proposto por Qvortrup
(2011), posto que a luta pela sobrevivência da prole deveria permanecer restrita ao âmbito
familiar, conforme demonstra a fala dos sujeitos 10, 14, 42, 58, 77 e 81:
No caso, Joana desempregada pode procurar trabalho para realizar on-line, até fazer
doces e salgados para revender, hoje em dia sabemos que a palavra desemprego exis-
te, mas só está quem não quer trabalhar (Suj. 10, 3.º/4.º semestre).
Joana provavelmente não terá a oportunidade de se empregar agora se considerar-
mos um parâmetro de mães que necessitam de creche para suas crianças pequenas e
não têm condições de pagar mensalidade para este fim. Se caso se enquadrar nisso,
pode-se analisar quais maneiras de renda e sobrevivência buscará e nesse contexto é
possível levantar a hipótese que trabalhará por conta, produzindo artigos artesanais,
de alimentação ou prestação de serviço informal (Suj. 14, 3.º/4.º semestre).
118
Joana deve ficar com o filho em casa e trabalhar dentro de casa fazendo doces e salga-
dos (Suj. 42, 3.º/4.º semestre).
Deve procurar alguém de confiança para que fique com seu bebê e fazer um bico ou
algum emprego temporário até que as coisas se ajeitem (Suj. 58, 5.º semestre).
Ela deve recorrer à secretaria de educação, expor sua situação e pedir ajuda. Enquanto
isso, uma alternativa seria trabalhar em casa (Suj. 77, 5.º semestre).
Trabalhar em qualquer coisa que possa gerar uma renda com o uso da internet, já que
seu bebê é tão pequeno, usar a internet seria uma maneira mais fácil de trabalhar sem
ter que deixar seu bebê (Suj. 81, 5.º semestre).
No entanto, em que pesem todos os normativos disponíveis para assegurar tal direito,
as ações de luta indicadas pelos participantes eram difusas e incipientes, conforme demonstram
as falas a seguir:
Se, por um lado, reconheciam o direito à educação, por outro, não indicavam os
caminhos adequados para empreender tal demanda. Considerando o amplo rol de medidas
judiciais cabíveis no caso em questão, apenas 1 dos participantes apontou a defensoria pública
como o órgão competente para instruir tal demanda.
Para que Joana consiga a vaga na creche a mesma teria que estar trabalhando confor-
me a nova lei da prefeitura. [...] pois as vagas são preferencialmente aos alunos de pais
que trabalham (Suj. 13, 3.º/4.º semestres).
Uma vez que o governo da cidade de São Paulo decretou que as mães que trabalham
têm prioridade nas vagas das creches para seus filhos, Joana só possui duas alternati-
vas para resolver seu caso: ou ela fica com seu bebê de seis meses em casa, responsa-
bilizando-se totalmente pelos cuidados com ele, ou vai à procura de emprego, sendo
mais fácil dessa forma conseguir uma vaga na creche (Suj. 29, 3.º/4.º semestre).
[...] deve procurar a secretaria da educação para que consiga uma vaga em creche
pública, é um direito que ela tem por pertencer a classe menos privilegiada (Suj. 51,
5.º semestre).
Cuidar dele em casa, porque a vaga é para mães que trabalham (Suj. 65, 5.º semestre).
Notou-se que em todos os casos a justificativa que autorizava a mãe fictícia a buscar
“ajuda” ou a demandar pelo “direito à educação” encontrava-se sempre pautada na condição
de vulnerabilidade e desemprego, sem jamais ter sido reconhecida a titularidade do direito da
criança.
Tais aspectos apresentados nesse cenário indicam que para o grupo de participantes a
legislação adquiriu interpretação diversa e contrária ao texto constitucional, de modo que fosse
possível legitimar a representação de que a creche é destinada prioritariamente às camadas
vulneráveis.
• Cenário projetado 2 – Mãe dona de casa que não consegue vaga na creche
Nesse cenário, 87 dos participantes defenderam que a mãe fictícia deveria cuidar do
seu filho em casa e apenas 5 sujeitos indicaram a creche como um direito da criança.
Na medida em que não validaram a creche como um espaço educativo onde se exerce
o direito à educação, os participantes passaram a defender posições que variavam entre a total
ausência de necessidade da creche, uma vez que a mãe fictícia não trabalhava e por essa razão
deveria cuidar do seu filho em casa, e a busca por uma vaga quando verificado que o trabalho
doméstico lhe exigia maior dedicação, podendo ameaçar a qualidade do atendimento destinado
à criança.
Ela deveria ficar com seu filho em casa, porque não trabalha, é dona de casa, pode
cuidar do seu filho (Suj. 84, 5.º semestre).
Bom se ela fica em casa, porque colocar a criança na creche que é um período integral,
sendo cuidada por outras pessoas, por qual necessidade? Acho que educação é essen-
cial e ela parte dos pais (Suj. 77, 5.º semestre).
Cuidar em casa, porque ninguém melhor que ela para cuidar (Suj. 65, 5.º semestre).
Ela é dona de casa, acho que não quer trabalhar, nesse caso acho que ela deve cuidar
de seu bebê (Suj. 63, 5.º semestre).
Julia deve ficar em casa com o seu bebê, porque o melhor desenvolvimento entre mãe
e filho é nessa fase etária, se ela tem a oportunidade de ficar em casa com o seu bebê,
isso é o melhor (Suj. 57, 5.º semestre).
A não ser que Julia faça algum trabalho extra, uma geração de renda em casa, ela
deve cuidar do filho, não há salário que pague a companhia da mãe, fase de desenvol-
vimento da criança se trabalha em casa, deve se adequar seus horários (Suj. 50, 5.º
semestre).
Laura deve ficar com seu bebê em casa para que receba os melhores cuidados, pois
ninguém cuida melhor que a mãe e quando sair a vaga de seu filho aí sim ela o coloca
na creche, vendo que ela não tem interesse no momento em arrumar emprego (Suj. 8,
3.º/4.º semestre).
Muitas mães gostariam de estar no lugar de Laura, não precisando deixar seus filhos
em creches ou com babás, para ir trabalhar ou estudar, mas sim dedicar seu tempo à
casa e à família, que não é tarefa tão simples e fácil como parece, mas supondo que
Laura não seja uma mãe tão dedicada, ou deseje que seu filho permaneça na creche
durante um certo período, a mesma deve comparecer à secretaria de educação para
solicitar a vaga (Suj. 25, 3.º/4.º semestre).
Destacou-se também a imagem de uma criança frágil que pouco ou nada teria a
aprender no espaço da creche, conforme se observa na fala dos participantes 4, 31, 40, 64 e 69:
O melhor para Laura é aguardar a vaga na creche, pois ela é dona de casa e seu bebê é
muito pequeno, ela tem tempo para ficar em casa, não precisa da creche, só no caso de
arrumar um emprego ou por necessidade e por fim o direito da criança de permanecer
numa instituição de ensino (Suj. 4, 3.º/4.º semestre).
Laura, por ser uma dona de casa, não precisaria de creche que por sinal faria um bem
enorme para seu bebê, que teria todo cuidado que uma mãe amorosa e zelosa pode dar
para seu filho (Suj. 31, 3.º/4.º semestre).
Sabendo se que Laura é dona de casa, não haveria a necessidade de Laura colocar o
seu bebê ainda tão pequeno na creche, pois ele ainda precisa dos cuidados da mãe, não
seria agradável para uma mãe ficar em casa e seu pequeno sendo cuidado por mãos
dos outros e num ambiente que contém muito barulho (Suj. 40, 3.º/4.º semestre).
Se Julia não pretende trabalhar, seria interessante considerar o ingresso de seu filho
mais tarde na vida escolar, seis meses ainda é muito novinho (Suj. 64, 5.º semestre).
121
Julia deveria cuidar do seu filho integralmente sem se preocupar com a creche, porque
o bebê é muito novinho para ser inserido na creche, quem sabe um pouco mais para
frente saia a vaga na creche e ela consiga um tempo para ela (Suj. 69, 5.º semestre).
Laura dona de casa, mesmo porque seria o 1.º emprego, então fica mais difícil mesmo
achar tão rápido, creio que deveria aproveitar o momento de cuidar do seu bebê e por
ser pequeno requer cuidados, afetos e zelo. E hoje em dia não dá para ficar sem fazer
nada, dá para ser representante Avon, Jequiti, Natura etc. (Suj. 10, 3.º/4.º semestre).
Já que é dona do lar e não encontra vaga para seu filho, além de procurar uma solução
deveria criar algo para ganhar dinheiro em casa, vendendo doces, bolos ou um traba-
lho artesanal, para obter o sustento (Suj. 89, 5.º semestre).
O critério de acesso à creche definido pelos participantes para a mãe fictícia dona de
casa permaneceu centrado na necessidade da mãe trabalhadora, sendo exigidos dela o “bom
senso” e a “consciência” de que, possuindo condições de permanecer em casa com o bebê ou
apresentando situação econômica que lhe permitisse pagar por um serviço privado, deixasse o
espaço da creche para as camadas populares, confirmando os dados obtidos na primeira etapa
de coleta, conforme se depreende da fala dos sujeitos 5, 9, 11, 12, 29 e 30:
Laura é dona de casa, ela tem tempo para ficar com seu bebê, ela tem que aguardar
o bebê ser chamado na lista de espera, só que ela é dona de casa e fica em casa, ela
estará tomando a vaga de uma mãe que precisa trabalhar e precisa da vaga, mas como
cada um tem seu cadastro único, então saindo a vaga e sendo chamado, ele começa na
creche, o resto ela tem que aguardar ser chamada (Suj. 5, 3.º/4.º semestre).
Como as creches dão preferência a mães e pais que trabalham, ela poderia ir à secreta-
ria de ensino também, mas ela já vai ciente que eles sempre dão preferência para quem
trabalha fora de casa (Suj. 9, 3.º/4.º semestre).
Laura deveria ficar com seu bebê em casa pois, se Laura é dona de casa, pode cuidar
do seu bebê, acompanhar seu desenvolvimento e deixar a vaga para quem realmente
precisa (Suj. 11, 3.º/4.º semestre).
No caso de Laura, se ela é dona de casa, não precisa colocar o filho na creche, pois,
se ela está em casa, ela tem disponibilidade de cuidar do seu filho, creche é para pes-
soas que não têm condições de pagar ou com quem deixar seu filho (Suj. 12, 3.º/4.º
semestre).
Laura, sendo dona de casa, não teria direito a uma vaga na creche, segundo o governo.
Entretanto, caso ela queira deixar seu bebê de seis meses com alguém, para que possa
cuidar de seus afazeres durante o dia, pode procurar uma pessoa de confiança (Suj.
29, 3.º/4.º semestre).
Ela teria consciência que, por ela ser dona de casa e não trabalhar, não precisaria dessa
vaga. Porque a vaga é para mães que trabalham fora e não têm onde deixar seu bebê
(Suj. 30, 3.º/4.º semestre).
Embora algumas indicações de luta pelo acesso à creche tenham aparecido na fala
dos participantes, elas se encontram justificadas sempre a partir da situação laboral da mulher
122
Ela deve procurar a diretoria de ensino do seu bairro e tentar uma vaga, explicando
que precisa de um tempo para poder fazer os trabalhos do lar e, se não conseguir,
procurar a defensoria pública e conseguir uma liminar, para conseguir a vaga, pois
mesmo sem trabalhar fora do lar tem direito de uma vaga em uma escola (Suj. 74, 5.º
semestre).
Também tem que ir buscar seus direitos, mesmo sendo dona de casa, a pessoa tem
uma vida e precisa de um lugar para deixar seu filho (Suj. 70, 5.º semestre).
Ela deveria continuar a procurar e persistir, pois ela é dona de casa, mas tem os seus
afazeres e não só olhar a criança (Suj. 61, 5.º semestre).
Deveria entrar na justiça em busca de seus direitos, ela paga imposto e deve correr
atrás da vaga e tem direito. No caso a criança tem direito (Suj. 59, 5.º semestre).
Ela também deveria ir à diretoria de ensino para buscar o direito do filho de frequentar
a escola pública, toda criança tem esse direito (Suj. 49, 5.º semestre).
Correr atrás da diretoria de ensino, pois, independente de trabalhar ou não, o direito é
da criança (Suj. 47, 5.º semestre).
A dona de casa deve buscar por direito a vaga do filho na creche, toda criança tem
direito de estudar, tira de onde está, vai ter que ter a vaga da criança (Suj. 44, 5.º se-
mestre).
Laura também deverá ir atrás de seu direito, independentemente de ser dona de casa e
ter disponibilidade para ficar com o bebê em casa (Suj. 7, 3.º/4.º semestre).
trabalhadoras e/ou crianças) e se posicionaram a favor da luta pelo seu reconhecimento mediante
a busca pelo conselho tutelar, defensoria pública ou diretoria de ensino para assegurar a vaga da
criança na creche pública, conforme demonstra a fala dos sujeitos 29, 47, 49 e 74:
Sendo diretora de uma empresa, deve trabalhar bastante, ela tem direito sim a uma
vaga na creche para seu filho de seis meses, mesmo que o governo entenda que ela
pode pagar por uma creche privada, a creche pública é para todas as mães que traba-
lham, independentemente de sua renda financeira (Suj. 29, 3.º/4.º semestre).
Se tem condições, o ideal seria pagar uma particular, mas depois de correr atrás, pois
rico ou pobre têm o direito a creche pública (Suj. 47, 5.º semestre).
Mesmo tendo condições de pagar uma escola particular, ela deveria correr atrás dos
direitos do seu filho, porque também é um dever e direito dele (Suj. 49, 5.º semestre).
Ela deve procurar a diretoria de ensino do seu bairro e tentar uma vaga, explicando
que ela trabalha e não tem com quem deixar a criança. Se não conseguir, procurar a
defensoria pública e conseguir uma liminar, pois todos temos direitos a vaga em uma
escola, pois todos pagamos impostos (Suj. 74, 5.º semestre).
Por meio expressões como “ter consciência”, “folgada”, “não tirar a vaga de quem
realmente precisa”, torna-se evidente que o direito à educação das crianças não é considerado
por esses participantes. Mais ainda, sendo um direito das famílias vulneráveis, não deve ser
requerido por mães que podem ficar em casa, assumindo a função materna que julgam ser
devida, ou que podem pagar por serviços privados, uma vez que a creche, segundo esses
participantes, seria o “mal menor” e a “última opção” destinada exclusivamente aos desvalidos.
Torna-se patente, a partir desse terceiro cenário, a não validação por esse grupo dos
normativos que regulamentam a Educação Básica e o espaço da creche e, portanto, do direito à
educação de crianças de 0 a 3 anos e o espaço da creche como local onde esse direito é exercido.
124
Ante o conflito instalado entre uma norma que prega a universalização e a incapacidade
estatal de assegurar tal direito, retomam um posicionamento que privilegia o acesso aos mais
vulneráveis, sem que qualquer consideração contrária a esse modelo seja passível de ser
ponderada.
Para essas mulheres/mães que, podendo cuidar de suas crianças, optam por investir
em projetos profissionais, pessoais e se dedicar a outras atividades fora do ambiente doméstico
defendem o pagamento privado de serviços que assumam as tarefas que supostamente lhes
seriam devidas.
ser cuidadas em seus aspectos mais elementares, como alimentação, higiene e socialização, em
substituição ao papel mãe que, de modo disfuncional e absolutamente contra a sua vontade, não
é capaz de assegurá-los ainda que minimamente, conforme sinaliza a fala dos sujeitos 70, 71,
90, 72 e 78, todos alunos do 5.º semestre de Pedagogia:
Deve pagar um berçário, afinal ela pode. Se é gerente de uma grande empresa e deixa
a creche pública para quem precisa mais do que ela (Suj. 70, 5.º semestre).
Como ela possui uma condição melhor que as outras mães, ela pode ceder sua vaga
para outras mães e colocar seu bebê numa escola privada (Suj. 71, 5.º semestre).
Como gerente de uma grande empresa ela teria condições financeiras de colocar seu
bebê em uma creche particular e assim não tiraria a vaga da creche pública de quem
realmente precisa (Suj. 90, 5.º semestre).
[...] sendo uma gerente, poderia pagar uma escola particular para seu bebê até conse-
guir uma vaga na creche, porque infelizmente, muitas vezes, há pais que podem pagar
uma escola e colocam os filhos em creches e acabam tirando a vaga daqueles que mais
precisam (Suj. 72, 5.º semestre).
Este caso é bem diferente do primeiro, a creche é para mães que precisam mesmo
de um lugar para deixar seus filhos e não têm condições de pagar. Ela poderia muito
bem colocar seu filho em uma escolinha e deixar a vaga para outra criança (Suj. 78,
5.º semestre).
O que se explicita por meio do conjunto das análises é um caráter ainda conservador
e pudico que se atribui à figura da mulher/mãe e que se sustenta, justamente, pela ausência
de um enfrentamento social e político, bem como pelo esvaziamento das lutas necessárias ao
reconhecimento de condições que lhe permitiriam tornar-se senhora do próprio destino, sem
que isso fosse tomado como uma ameaça à ordem do lar, à sobrevivência de sua prole e à
própria estrutura social.
126
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do conjunto das respostas oferecidas pelos participantes, tanto nas questões
abertas como nos cenários projetados, observou-se que o direito à educação de crianças de 0 a
3 anos foi substituído pelo direito de assistência à mãe trabalhadora de baixa renda.
Para esse grupo havia dois tipos de educação: um tipo realizado na escola que se
resumia à transmissão de conteúdos programáticos (educar como sinônimo de ensino), cuja
responsabilidade era atribuída ao professor; e outro tipo que, tomado como transmissão de
valores morais e éticos, caberia, segundo esse grupo, exclusivamente às famílias.
Colocaram-se, desse modo, fora de uma relação que pudesse ensejar um posicionamento
mais ativo ante a educação de crianças de 0 a 3 anos. Na medida em que não reconheciam o espaço
da creche como local educativo e atribuíam, exclusivamente, às famílias a responsabilidade pela
educação das crianças, destituíam-se, de forma voluntária, do papel que lhes caberia enquanto
educadores.
O consenso formado por esse grupo de estudantes defendia a creche pública apenas
para os casos nos quais a mulher não pudesse permanecer no papel que a natureza lhe havia
conferido, o de mãe. Sendo a mulher incapaz de obter o sustento da prole, por meio das condições
oferecidas por seu companheiro ou sua família, justificavam-se sua saída do ambiente doméstico
e a luta pelo acesso à creche pública.
Negou-se a todas as mães e crianças que fugiram dos critérios de pobreza determinados
pelo grupo de estudantes da Pedagogia não apenas o reconhecimento material de um direito,
mas o reconhecimento da própria autonomia do indivíduo que, diante do seu grupo, não é
considerado legitimado para levantar pretensões cuja satisfação social se considera, nesses casos,
injustificada (HONNETH, 2009, p. 197). Carecem de justificativas socialmente aceitas para
serem reconhecidas como sujeitos que possuem direitos, configurando-se tal posicionamento,
por parte dos participantes, uma violação de sua autonomia pessoal, que, segundo Honneth
(2009, p. 196), torna-se capaz de fazer desmoronar “a identidade da pessoa inteira”.
133
Configura-se tal rebaixamento social na medida exata daquela analisada por Moscovici
(2010, p. 265-266), em relação semelhante ao caso dos pró-Dreyfus, uma vez que, ainda que a
presença das crianças e suas mães seja notada, seu reconhecimento passa a ser condicionado a
determinadas circunstâncias e situações particulares, de modo arbitrário no tecido social.
Esse aspecto, embora não tenha sido suficiente para caracterizar a dimensão da
informação que compõe uma representação social, constitui-se como um possível espaço
de mudança ou, nas palavras de Arruda (2014, p. 47), “um campo representacional aberto à
controvérsia, fragmentação e negociação, cheio de incoerência, tensão e ambivalência [...]”.
Tal panorama destaca a importância da ampliação dos debates sobre tais representações
construídas em torno da mulher/mãe/dona de casa; da criança e do espaço da creche, bem
como do empenho do poder público em assegurar o direito à educação em seu caráter universal
conforme previsão constitucional, a fim de retirar da esfera social um conflito que deveria ser
enfrentado na esfera pública.
Do mesmo modo, torna-se patente a necessidade de abordar tais temáticas nos cursos
de formação de educadores a fim de assegurar-lhes espaços de conhecimentos mais amplos
sobre a estrutura e funcionamento da Educação Básica, sobre o direito à educação de crianças
de 0 a 3 anos e sobre o próprio papel social da creche.
134
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136
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2015.
141
APÊNDICES
144
APÊNDICE A
Detalhamento por Distrito/Setor da demanda por creche cadastrada na
Secretaria Municipal de São Paulo
APÊNDICE B
Termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE)
Prezado(a) estudante,
Você está sendo convidado(a) a participar desta pesquisa, cujo objetivo foi apresentado pelo pesquisador(a).
Ao integrar este estudo, estará permitindo, de forma voluntária e gratuita, a utilização dos dados fornecidos.
Você tem a liberdade de se recusar a participar ou deixar de participar em quaisquer das etapas previstas.
Tendo em vista o esclarecimento acima apresentado, eu manifesto livremente meu consentimento em participar
da pesquisa.
APÊNDICE C
Questionário 1 – Perfil dos participantes
1. Identificação: ___________________________
4. Idade: ____________________________________
( ) Outra ___________________
( ) Educação infantil
( ) Ensino Fundamental I
( ) Ensino Fundamental II
( ) Ensino Médio
( ) Ensino Superior
( ) Sim
( ) Não
159
APÊNDICE D
Questionário 2 – A estrutura da Educação Básica e o direito à educação
de crianças de 0 a 3 anos; o espaço da creche, seu papel social e o público
atendido
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4. Na sua opinião, de quem é a responsabilidade pela educação das crianças de 0 a 3 anos de idade? Justi-
fique.
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APÊNDICE E
Cenários projetados
Cenário projetado 1
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Cenário projetado 2
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Cenário projetado 3
Marina trabalha como gerente em uma grande empresa e tem um bebê de 6 meses de vida.
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