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IMPULSO ISSN 0103-7676 • PIRACICABA/SP • Volume 11 • Número 26 • P 1-217 • 1999

impulso 1 nº 25
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Universidade Metodista de Piracicaba


Reitor A revista IMPULSO é uma publicação quadrimestral
ALMIR DE SOUZA MAIA da Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP
(São Paulo, Brasil). Aceitam-se artigos acadêmicos,
Vice-reitor Acadêmico estudos analíticos e resenhas, nas áreas das ciências
ELY ESER BARRETO CÉSAR humanas e sociais, e de cultura em geral. Os textos
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DTP e produção: Gráfica UNIMEP da Universidade Metodista de Piracicaba
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Foto: Firo • reprodução arquivo • História do Quadrimestral/Quarterly
Pensamento, vol. 4, Ed. Nova Cultura ISNN 0103-7676
Impressão: Santa Edwiges Artes Gráficas
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Produzida em dezembro/1999 CDU – 3 (05)

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EDITORIAL

Sonhos – entre
o passado
e o futuro
Ao retratarem nossos desejos como realizados, os
sonhos decerto nos transportam para o futuro.

e
Mas esse futuro, que o sonhador representa
como presente, foi moldado por seu desejo in-
destrutível à imagem e semelhança do passado.
S. Freud

Em novembro de 1899, Sigmund Freud tinha em mãos o que vi-


ria a ser sua obra-prima: A Interpretação dos Sonhos (Traumdeutung).
Publicada simultaneamente na Áustria e na Alemanha, em sua primei-
ra página vinha impresso o ano de 1900, anunciando o descortinar de
um século novo, no qual as marcas da tese sustentada por aquela pu-
blicação iriam traçar uma revolucionária forma de subjetivação na his-
tória do pensamento da humanidade.
É dela que extraímos as palavras de Freud que encabeçam o pre-
sente Editorial. Elas podem nos ajudar a definir temas e discussões re-
levantes para um novo tempo que, neste início de ano 2000, também
vislumbramos: desvela-se o descortinar de um novo milênio, uma nova
era, que provoca a reflexão sobre o passado e o futuro, e nos leva pre-
cisamente à ousadia de sonhar o novo.
Quem estaria, porém, habilitado hoje em dia a falar de tal modo
sobre a atividade onírica, que por definição não pode ser reduzida à ob-

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jetividade e ao realismo? Que corrente, cientistas ou autores teriam


condições de escapar da notoriedade efêmera e determinar de modo
marcante esse campo? Caberia essa responsabilidade à metafísica, à fi-
siologia, à psicologia ou à neurologia? Eis as perguntas levantadas nesta
edição da IMPULSO.
A mais importante delas é colocada, logo de início, por Georges
Canguilhem. Sucessor de Gaston Bachelard e orientador de Michel
Foucault, ele dedicou sua vida acadêmica ao estudo das ciências da vi-
da. A partir de uma ampla perspectiva histórica por ele resgatada com
erudição, apresenta a provocativa questão, todavia atual, e que viria a
marcar todas as críticas dirigidas à cientificidade da psicologia na dé-
cada de 60: o que é psicologia?
Osmyr Gabbi Jr., tradutor desse texto clássico, aponta em seu ar-
tigo a profunda relevância da palestra proferida por Canguilhem em 18
de dezembro de 1956, demonstrando suas incidências sobre a psicaná-
lise de Freud e de Lacan. Maria Teresa Gimenez amplia ainda mais esse
movimento retroativo, resgatando a infância de Freud para submeter o
pai da psicanálise ao seu próprio crivo, mostrando como A Interpreta-
ção dos Sonhos reflete o luto e o processo criativo de seu autor. Márcio
Mariguela aprofunda tal questão, voltando a correspondências entre
Freud e Fliess, que se iniciam em 1887 e vão até 1904, revelando o pro-
cesso de escrita de sua obra-prima.
Mas esse centenário livro não é somente a obra-prima freudiana.
O médico austríaco chegou a expressar que seu livro deveria ser consi-
derado um registro histórico. De fato, como documento histórico a obra
fundadora da psicanálise anunciava os avatares da cultura ocidental no
século XX. Com sua original abordagem do fenômeno onírico, ele ins-
taurou uma discursividade que ainda nos dias de hoje não cessa de pro-
duzir efeitos polissêmicos na crítica contemporânea. Atravessando dife-
rentes zonas da produção do saber, a teoria psicanalítica potencializou a
ciência, a filosofia, a produção literária, entre outros aspectos de nossa
cultura, e definitivamente mudou a maneira como pensamos sobre nós
mesmos.
Indubitavelmente, esse desenvolvimento leva também a Lacan,
objeto central dos artigos de Regina Puglia e Franklin Goldgrub. O pri-
meiro apresenta, em uma visão lacaniana, algumas transformações
ocorridas com conceitos psicanalíticos, a partir de Freud, relacionados
ao processo analítico e à interpretação, enquanto o segundo desenvolve
uma detalhada reflexão sobre a diferença entre interpretação e conteú-
do, com o fim de resgatar a dimensão metafórica, muitas vezes banida
do âmbito discursivo.

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Erro, porém, seria pensar que Freud e Lacan são o alfa e ômega da
psicanálise. Se o texto de Canguilhem nos faz voltar a milênios na his-
tória, outros artigos da IMPULSO nos remetem a novas perspectivas, de-
cididamente atuais e mais próximas de questões concretas de nossa re-
alidade cotidiana. Maurício Lourenção Garcia argumenta que a psica-
nálise se presta a tais atualizações, pois é obra aberta, e dedica-se a ava-
liar o modo como a psicoterapia institucional de Félix Guattari acolheu
as contribuições do marxismo, do existencialismo e da fenomenologia
para repensar a subjetividade em termos sociais. Edson Olivari de Castro
dialoga com a filosofia, abordando o questionamento a respeito da
noção de consciência vigente na virada do século, que recebeu da feno-
menologia diferentes respostas. Márcia Maesso oferece um estudo teóri-
co-clínico sobre a criança especial, mostrando, por meio de estudos de
caso, que a linguagem infantil espelha condicionamentos familiares e so-
ciais, os quais devem ser objeto de uma psicanálise contextualizada.
A IMPULSO traz, ainda, dois artigos gerais. O primeiro, de Ana
Maria Carrão, apresenta-nos tema de relevância global, que trata do
Fordismo e do Toyotismo. Ela demonstra como ambos levaram a mu-
danças radicais no mundo do trabalho, ao estabelecerem novos para-
digmas de organização, produção e competitividade, e indica como tais
sistemas alteraram as relações de emprego e empregabilidade durante o
século XX. O segundo, de Nádia Kassouf Pizzinatto, tem uma dimensão
mais local: refere-se ao modo como o Curso de Administração da UNI-
MEP tem dialogado com o contexto nacional e como responde ao de-
safio de se adaptar ao sempre mutante perfil dos profissionais desta
área.
Complementando este número, incluem-se Resenhas e Comuni-
cações. A primeira destas seções apresenta dois livros: Crítica dos Fun-
damentos da Psicologia – a psicologia e a psicanálise, de Georges Po-
litzer, e A Inocência e o Vício – estudos sobre o homoerotismo, de J.
Freire Costa. A seção Comunicações, especialmente criada para receber
textos de ocasião, mais breves e mais livres em sua abordagem, bem
como críticas, comentários e discussões de interesse geral, em sua estréia
conta com César Cesarotto, psicanalista e professor de comunicação e
semiótica em São Paulo, notório por seus artigos em revistas especiali-
zadas e aqui nos traz o texto “A realidade onírica”, também referente à
efeméride neste número celebrada. E, encerrando esta edição, o advo-
gado e jornalista Hernán Maldonado Borda, boliviano radicado nos
EUA, trata, com sua experiência de quase meio século na imprensa la-
tino-americana, estadunidense e européia, a honestidade jornalística e
outros aspectos da ética no considerado “quarto poder” do Estado.

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Por fim, cabe expressar nossos agradecimentos ao psicanalista e fi-


lósofo Márcio Mariguela, do curso de Filosofia da UNIMEP, por sua ines-
timável assessoria editorial neste número 26 da revista. Foi dele a suges-
tão de pauta para o registro da vitalidade secular da teoria psicanalítica
feita nesta edição, dando continuidade a uma série de textos publicados
anteriormente na IMPULSO e na série “Filosofia & Psicanálise”, da Edi-
tora UNIMEP.
Isso nos leva de volta a Freud e ao seu A Interpretação dos Sonhos.
Ao longo dos últimos cem anos, leitores e leitoras das mais variadas ma-
tizes voltaram-se para a psicanálise apontando sua relevância e a cien-
tificidade de seus pressupostos, mas também suas incongruências e os
impasses que produziu, aflorando incontáveis discussões acirradas, que
marcam todo início de um novo ramo do saber. Este número da IM-
PULSO se lança nessa mesma direção, sem pretender antecipar o que se
dirá em cem anos. Constitui-se, assim, contribuição útil e oportuna a
qualquer tentativa de entendimento de nossa época, que em muito pou-
co se assemelha ao que, um dia, possamos ter sonhado.

COMISSÃO EDITORIAL

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Sumário
Artigos
Temáticos
Que é a Psicologia?
What is Psychology?
GEORGES CANGUILHEM 11
Pequenas Notas a “Que é a Psicologia?”
Small Notes to “What is Psychology?”
OSMYR FARIA GABBI JR. 27
A Escrita do Capítulo I do “Livro dos Sonhos”:
Freud, leitor de seu tempo
The Writing of Chapter I of the Book on Dreams:
Freud, a reader of his Time
MÁRCIO MARIGUELA 35
A Interpretação na Psicanálise Lacaniana
Interpretation in Lacanian Psychoanalysis
REGINA CLÁUDIA MELGES PUGLIA 47
Um Método sobre o Discurso, ou a Metáfora Opaca
A Method on Discourse or the Opaque Metaphor
FRANKLIN WINSTON GOLDGRUB 59
Luto e Criação em A Interpretação de Sonhos
Mourning and Creativeness in The Interpretation of Dreams
MARIA TERESA GIMENEZ 97
A Psicanálise como Obra Aberta
Psychoanalysis as an Open Work
MAURÍCIO LOURENÇÃO GARCIA 111
Existo, Penso. A filosofia e a questão do inconsciente:
algumas indicações
I am, I Think. Philosophy and the Unconscious: some indications
EDSON OLIVARI DE CASTRO 129
A Criança Especial na Psicanálise
The Special Child in Psychoanalysis
MÁRCIA CRISTINA MAESSO 139

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Sumário Artigos
Gerais
Fordismo e Toyotismo:
mudanças no mundo do trabalho
Ford and Toyota Systems: changes in the world of work
ANA MARIA ROMANO CARRÃO
Ensino de Administração e o Perfil do
Administrador: contexto nacional e o
curso de administração da UNIMEP
153

The Teaching of Administration and the Manager’s Profile:


national context and the Administration Course at UNIMEP
NÁDIA KASSOUF PIZZINATTO 173

...............................
Resenhas
Crítica dos Fundamentos da Psicologia –
A psicologia e a psicanálise, de Georges Politzer
FRANKLIN WINSTON GOLDGRUB 193
A Inocência e o Vício – Estudos sobre o
homoerotismo, de J. Freire Costa
DANIELA MAULE BALBUENO 197

...............................
Comunicações
A Realidade Onírica
Dream Reality
OSCAR CESAROTTO 205
Periodismo Honesto
Honest Journalism
HERNÁN MALDONADO BORDA 209

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Que é a Psicologia?*1
What is Psychology?
RESUMO – Neste texto, originado de uma conferência apresentada em 18 de de-
zembro de 1956 no Collège Philosophique (Paris) e publicado dois anos mais tar-
de, Georges Canguilhem propõem-se a discutir a psicologia, investigando a exis-
tência (ou não) de uma unidade de projeto que pudesse conferir sua unidade even-
tual aos diferentes tipos de disciplinas tidas então como psicológicas. Para respon-
der à questão “Que é a psicologia?”, considera necessário esboçar uma história da
psicologia. Mas enfatiza: “uma história considerada apenas nas suas orientações e
relacionada com a história da filosofia e das ciências, uma história necessariamente GEORGES CANGUILHEM**
teleológica, uma vez que destinada a transferir, para a interrogação proposta, o Trad. Osmyr Faria Gabbi Jr.
sentido originário suposto nas diversas disciplinas, métodos ou empreendimentos,
cuja disparidade atual legitima essa pergunta”.

Palavras-chave: psicologia – epistemologia da psicologia – história da psicologia.

ABSTRACT – In this article, originally presented at a conference on December 18,


1956 at the Collège Philosophique (Paris) and published two years later, Georges
Canguilhem discusses psychology by investigating the existence (or not) of a project
unity that could confer its eventual unity to the different types of disciplines con-
sidered as psychological. In responding to the question “What is psychology?”, it
is necessary to make a sketch of the history of psychology. But he emphasizes: “a
history considered only in its orientations and relations with the history of philo-
sophy and of sciences, a history which is necessarily teleological, since once destined
to transfer, for the proposed question, the supposed original meaning of the diverse
disciplines, methods or attempts, whose current disparity legitimates this question.”

Keywords: psychology – epistemology of psychology – history of psychology.

*1 Nota do Editor (N.E.): texto publicado originalmente na Revue de Métaphysique et de Morale (Paris, 1:
12-25, 1958), a partir de palestra proferida em 18 de dezembro de 1956, no Collège Philosophique de
Paris.
**N.E.: formado em medicina, o francês Georges Canguilhem (1904-1995) tornou-se um incomparável
professor de filosofia; dedicado à instituição acadêmica, foi professor da Universidade de Strasbourg e da
Sorbonne, na qual dirigiu o Instituto de História das Ciências. Deixou trabalhos profundamente originais
em filosofia das ciências da vida.

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A questão “Que é a psicologia?” aparenta ser mais incômoda


para o psicólogo do que a questão “Que é a filosofia?” para
o filósofo. Porque para a filosofia a interrogação sobre o seu
sentido e a sua essência serve mais para constituí-la do que a define
uma resposta a esta pergunta. O fato de a questão renascer incessan-
temente, por falta de uma resposta satisfatória, é, para aquele que gos-
taria de poder se dizer filósofo, uma situação de humildade e não de
humilhação. Mas, para a psicologia, a questão sobre sua essência, ou,
mais modestamente, sobre seu conceito, questiona ao mesmo tempo
a existência do psicólogo, na medida em que sua incapacidade de res-
ponder exatamente sobre o que ela é torna-lhe bem mais difícil res-
ponder sobre o que ele faz. Só lhe resta, então, procurar em uma efi-
cácia sempre discutível a justificativa de sua importância enquanto es-
pecialista, importância que ele não deploraria de nenhuma maneira
com este ou aquele se ela engendrasse no filósofo um complexo de in-
ferioridade.
Quando se diz que a eficácia do psicólogo é discutível não se pre-
tende dizer que ela seja ilusória; mas simplesmente assinalar que essa
eficácia está sem dúvida mal fundamentada enquanto não se provar
que ela resulta realmente da aplicação de uma ciência, ou seja, enquanto
o estatuto da psicologia for fixado de maneira tal que se deve avaliá-lo
mais como um empirismo heterogêneo que está codificado literaria-
mente com vistas a ser transmitido. De fato, muitos dos trabalhos de
psicologia dão a impressão de misturar uma filosofia sem rigor – por-
que eclética sob o pretexto de objetiva –, uma ética sem exigências –
porque associa experiências etológicas sem criticá-las, a do confessor,
a do educador, a do chefe, a do juiz etc. –, e uma medicina sem con-
trole – porque dos três tipos de doenças menos inteligíveis e menos
curáveis, doenças da pele, doenças nervosas e doenças mentais, o es-
tudo e o tratamento das duas últimas sempre forneceram hipóteses e
observações à psicologia.
Portanto, parece que ao perguntar “Que é a psicologia?” coloca-se
uma questão que não é nem impertinente nem fútil.
Durante muito tempo procurou-se a unidade característica do
conceito de ciência na direção de seu objeto. Este ditaria o método a
ser utilizado no estudo de suas propriedades. Mas, no fundo, isso era
limitar a ciência à investigação de um dado, à exploração de um do-
mínio. Quando se tornou patente que toda ciência dá mais ou menos
a si mesma seu dado e por essa razão apropria-se do que se chama seu
domínio, o conceito de ciência progressivamente se deslocou de seu

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objeto para seu método. Ou mais exatamente, a expressão “objeto de


uma ciência” recebeu um sentido novo. O objeto da ciência não é mais
somente o domínio específico de problemas, de obstáculos a resolver,
é também a intenção e a visada do sujeito da ciência, é um projeto
específico que constitui uma consciência teórica como tal.
Pode-se responder à questão “Que é a psicologia?” ao ressaltar a
unidade de seu domínio, apesar da multiplicidade de projetos meto-
dológicos. É desse tipo a resposta brilhante dada pelo professor Daniel
Lagache, em 1947, à questão formulada, em 1936, por Edouard Cla-
parède2. A unidade da psicologia é procurada aqui em sua possível de-
finição enquanto teoria geral da conduta: síntese da psicologia expe-
rimental, da psicologia clínica, da psicanálise, da psicologia social e da
etnologia.
Entretanto, quando se olha de perto, talvez se diga que essa uni-
dade se assemelha mais a um pacto de coexistência pacífica acordado
entre profissionais do que a uma essência lógica, obtida pela descober-
ta de uma constante numa variedade de casos. Das duas tendências en-
tre as quais o professor Lagache procura um acordo sólido – a natu-
ralista (psicologia experimental) e a humanista (psicologia clínica) –,
tem-se a impressão que a segunda parece ter preponderância para ele.
O que explica sem dúvida a ausência da psicologia animal nesse in-
ventário das partes em litígio. Sem dúvida, vê-se claramente que ela
está incluída na psicologia experimental – em grande parte uma psi-
cologia de animais –, mas aquela a contém como material ao qual apli-
ca seu método. Com efeito, uma psicologia só pode ser dita experi-
mental em razão de seu método e não de seu objeto. Enquanto, a des-
peito das aparências, é mais pelo objeto do que por seu método que
uma psicologia é dita clínica, psicanalítica, social, etnológica. Todos es-
ses adjetivos são indicativos de um único e mesmo objeto: o homem,
ser loquaz ou taciturno, ser social ou insocial. Assim sendo, pode-se ri-
gorosamente falar de uma teoria geral da conduta enquanto não se re-
solver a questão de saber se há continuidade ou ruptura entre lingua-
gem humana e linguagem animal, sociedade humana e sociedade ani-
mal? É possível que sobre esse ponto não caiba à filosofia decidir, mas
à ciência, de fato, a numerosas ciências, incluindo a psicologia. Porém,
nesse caso, a psicologia não pode, para definir-se, prejulgar o que ela
é chamada a julgar. Sem o que, é inevitável que a psicologia, ao propor
a si mesma como teoria geral da conduta, tome como sua alguma idéia
sobre o homem. Então é preciso permitir à filosofia interrogar a psi-
cologia de que lugar ela retira essa idéia e se não seria, no fundo, de
alguma filosofia.
2 L’Unité de la Psychologie. Paris: PUF, 1949.

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Desejamos abordar a questão fundamental apresentada por uma


via oposta – uma vez que não somos psicólogo –, ou seja, investigar se
há ou não uma unidade de projeto que poderia conferir sua unidade
eventual aos diferentes tipos de disciplinas ditas psicológicas. Mas nos-
so procedimento de investigação exige um retorno temporal. Para in-
vestigar em relação ao que se sobrepõem os domínios, pode-se fazer
sua exploração separada e sua comparação na atualidade (uma dezena
de anos no caso do professor Lagache). Investigar se os projetos se in-
terceptam exige que se explicite o sentido de cada um deles, não quan-
do ele se perdeu no automatismo de sua execução, mas quando surge
a partir da situação que o suscitou. Procurar responder à questão “Que
é a psicologia?” torna-se para nós a obrigação de esboçar uma história
da psicologia, mas, é preciso enfatizar, uma história considerada ape-
nas nas suas orientações e relacionada com a história da filosofia e das
ciências, uma história necessariamente teleológica, uma vez que desti-
nada a transferir, para a interrogação proposta, o sentido originário su-
posto nas diversas disciplinas, métodos ou empreendimentos, cuja dis-
paridade atual legitima essa pergunta.

I – A PSICOLOGIA COMO CIÊNCIA NATURAL


Embora psicologia signifique do ponto de vista etimológico ciência
da alma, é notável que uma psicologia independente esteja ausente, tan-
to como idéia quanto de fato, dos sistemas filosóficos da Antiguidade;
nos quais, entretanto, a psique, a alma, é considerada um ser natural. Os
estudos relativos à alma encontram-se divididos entre a metafísica, a ló-
gica e a física. O tratado aristotélico Da Alma é na realidade um tratado
de biologia geral, um dos escritos consagrados à física. Segundo Aristó-
teles, e de acordo com a tradição da escolástica, os cursos de filosofia do
início do século XVII ainda tratam da alma num capítulo da física.3 O ob-
jeto desta é o corpo natural e organizado que contém a vida como po-
tencialidade; logo, a física trata da alma como forma do corpo vivo, e
não como substância separada da matéria. Desse ponto de vista, um es-
tudo dos órgãos do conhecimento, ou seja, dos sentidos exteriores (os
cinco usuais) e dos sentidos interiores (senso comum, fantasia, memó-
ria), não difere em nada do estudo dos órgãos da respiração ou da di-
gestão. A alma é um objeto natural de estudo, uma forma na hierarquia
das formas, ainda que sua função essencial seja o conhecimento das for-
3 Cf. Scipion Du Pleix. Corps de Philosophie contenant la Logique, la Physique, la Métaphysique el l’Ethique.

Genève, 1636 (1éd, Paris, 1607).

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mas. A ciência da alma é um domínio da fisiologia no seu sentido ori-


ginal e universal de teoria da natureza.
É dessa concepção antiga que se origina sem ruptura um aspecto
da psicologia moderna: a psicofisiologia – considerada durante muito
tempo exclusivamente psiconeurologia (mas atualmente também
como psico-endocrinologia) – e a psicopatologia como disciplina mé-
dica. Dada essa relação, não parece ser supérfluo recordar que antes
das duas revoluções que permitiram o aparecimento da fisiologia mo-
derna, a de Harvey e a da Lavoisier, é devida a Galeno uma revolução
de não menos importância que a teoria da circulação ou da respiração,
quando ele estabelece, clínica e experimentalmente de acordo com os
médicos da Escola de Alexandria, Herôfilos e Erasístratos, e contra a
doutrina aristotélica, mas conforme as antecipações de Alcmêon, Hi-
pócrates e Platão, que o cérebro, e não o coração, é o órgão das sensa-
ções e do movimento, o lugar da alma. Galeno funda verdadeiramen-
te, durante séculos, uma filiação ininterrupta de pesquisas de pneuma-
tologia empírica, cujo elemento fundamental é a teoria dos espíritos
animais, destronada e substituída no fim do século XVIII pela eletro-
neurologia. Ainda que decididamente pluralista em sua concepção das
relações entre funções psíquicas e órgãos encefálicos, Gall procede di-
retamente de Galeno e domina, apesar de suas extravagâncias, todas
as pesquisas sobre localizações cerebrais durante os sessenta primeiros
anos do século XIX, até o próprio Broca.
Em suma, enquanto psicofisiologia e psicopatologia, a psicologia
atual sempre recua até o século II.

II – A PSICOLOGIA COMO CIÊNCIA DA SUBJETIVIDADE


O declínio da física aristotélica, no século XVII, assinala o fim da
psicologia como parafísica, como ciência de um objeto natural, e corre-
lativamente o nascimento da psicologia como ciência da subjetividade.
Os físicos mecanicistas do século XVII são os verdadeiros respon-
sáveis pelo aparecimento da psicologia moderna como ciência do su-
jeito pensante.4
Se a realidade do mundo não é mais confundida com o conteúdo
da percepção, se a realidade é obtida e exposta pela redução das ilu-
sões da experiência sensível usual, o resto qualitativo desta experiên-
cia, dado que é possível enquanto falsificação do real, envolve a res-
ponsabilidade própria do espírito, ou seja, do sujeito da experiência,
4 Cf. Aron Gurwitsch. Développement Historique de la Gestalt-Psychologie, in Thalès, IIe année, 1935, pp.
167-175.

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tendo em vista que ele não se identifica com a razão matemática e me-
canicista, instrumento da verdade e medida da realidade.
Mas essa responsabilidade é censurável aos olhos do físico. Por-
tanto, a psicologia é constituída como um empreendimento de remis-
são do espírito. Seu projeto é de uma ciência que, face à física, explique
o motivo do espírito, à primeira vista, ser coagido, devido a sua natu-
reza, a enganar a razão em relação à realidade. A psicologia faz-se física
do sentido externo para dar conta dos contra-sensos que a física me-
canicista imputa ao exercício dos sentidos na função cognitiva.
A. A física do sentido externo
Portanto a psicologia, ciência da subjetividade, começa como psi-
cofísica por duas razões. Em primeiro lugar porque não pode ser menos
do que uma física para ser levada a sério pelos físicos. Em segundo, por-
que deve procurar em uma natureza, ou seja, na estrutura do corpo hu-
mano, a razão da existência de resíduos irreais na experiência humana.
Mas, entretanto, essas razões não implicam um retorno à con-
cepção antiga de uma ciência da alma, ramo da física. A nova física é
um cálculo. A psicologia tende a imitá-la. Ela procurará determinar as
constantes qualitativas da sensação e as relações entre essas constantes.
Aqui Descartes e Malebranche são os corifeus. Nas Regras para
Direção do Espírito (XII), Descartes propõe a redução das diferenças
qualitativas entre dados sensórios a uma diferença de figuras geomé-
tricas. Trata-se aqui de dados sensórios na medida em que são, no sen-
tido próprio do termo, as informações de um corpo por um outro cor-
po; os sentidos externos informam um sentido interno, “a fantasia,
que nada mais é que um corpo real e figurado”. Na Regra XIV, Des-
cartes trata expressamente do que Kant chamará da grandeza intensiva
das sensações (Crítica da Razão Pura, analítica transcendental, anteci-
pação da percepção): as comparações entre luzes, entre sons etc., só
podem ser convertidas em relações exatas por analogia com a exten-
são do corpo figurado. Se se acrescenta que Descartes, que não é exa-
tamente nem o inventor do termo nem do conceito de reflexo, afir-
mou, no entanto, a constância de ligação entre a excitação e a reação,
vê-se que uma psicologia, entendida enquanto física matemática do
sentido externo, começa com ele para chegar em Fechner, graças ao
apoio de fisiólogos como Hermann Helmholtz, apesar e contra as re-
servas kantianas, criticadas por sua vez por Herbart.
Essa variedade de psicologia é ampliada por Wundt às dimensões
de uma psicologia experimental, apoiada em seus trabalhos pela espe-
rança de fazer aparecer, nas leis dos “fatos de consciência”, um deter-

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minismo analítico do mesmo tipo daquele que a mecânica e a física


permitem esperar de toda ciência de validade universal.
Fechner morreu em 1887, dois anos da tese de Bergson, Ensaios
sobre os Dados Imediatos da Consciência (1889). Wundt faleceu em
1920, tendo formado muitos discípulos, dos quais alguns ainda estão
vivos, e não sem ter assistido aos primeiros ataques dos psicólogos da
Forma contra a física analítica do sentido externo, simultaneamente
experimental e matemática, conforme as observações de Ehrenfels so-
bre as qualidades da forma (Über Gestaltqualitäten, 1890), observa-
ções aparentadas às análises de Bergson sobre as totalidades percebidas
enquanto formas orgânicas que prevalecem sobre as partes supostas
(Ensaio, cap. II).
B. A ciência do sentido interno
Mas a ciência da subjetividade não se reduz à elaboração de uma
física do sentido externo; ela se propõe e se apresenta como a ciência
da consciência de si ou a ciência do sentido interno. Data do século
XVIII o termo psicologia no sentido de ciência do eu (Wolff). Toda a his-
tória dessa psicologia pode ser escrita como aquela dos contra-sensos,
na qual as Meditações de Descartes, sem serem responsáveis, deram o
motivo.
Quando Descartes, no início da Terceira Meditação, considera
seu “interior” para procurar torná-lo o mais conhecido e o mais fa-
miliar para si mesmo, essa consideração visa o pensamento. O interior
cartesiano, consciência do Ego cogito, é o conhecimento direto que a
alma tem de si mesma enquanto entendimento puro. As Meditações
são chamadas por Descartes de metafísicas porque elas pretendem
atingir diretamente a natureza e a essência do Eu penso na apreensão
imediata de sua existência. A meditação cartesiana não é uma confi-
dência pessoal. A reflexão que dá ao conhecimento do Eu o rigor e a
impessoalidade das matemáticas não é aquela observação de si que os
espiritualistas, no início do século XIX, tiveram a ousadia de tomar Só-
crates como patrono, a fim de que o sr. Pierre-Paul Royer-Collard pu-
desse dar a Napoleão I a garantia de que o Conhece a ti mesmo, o co-
gito e a introspeção forneciam seu fundamento inexpugnável ao trono
e ao altar.
O interior cartesiano não tem nada em comum com o sentido in-
terno dos aristotélicos “que concebem seus objetos interiormente e
dentro da cabeça”5 e que, como se viu, Descartes considera como um
aspecto do corpo (Regra XIII). Por essa razão Descartes diz que se co-
5 Scipion Du Pleix, op. cit., Physique, p. 439.

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nhece a alma direta e mais facilmente que o corpo. É uma afirmação


acerca da qual se ignora muito freqüentemente a intenção explicita-
mente polêmica, uma vez que para os aristotélicos não se conhece a
alma diretamente: “O conhecimento da alma não é de nenhuma ma-
neira direto, mas apenas por reflexão; dado que a alma é semelhante
a um olho que tudo vê e que só pode ver a si mesmo por reflexão
como em um espelho (…) e a alma de modo semelhante não se vê e
só se conhece por reflexão e pelo reconhecimento de seus efeitos”.6
Tese que suscita a indignação de Descartes quando Gassendi a retoma
nas suas objeções contra a Terceira Meditação, e contra as quais ele
responde: “Não é de nenhuma maneira nem o olho que vê a si pró-
prio nem o espelho, mas o espírito, o único que conhece o espelho, o
olho e a si próprio”.
Ora, essa réplica decisiva não derrota esse argumento escolástico.
Maine de Biran, mais de uma vez, utiliza-o contra Descartes em Me-
morial sobre a Decomposição do Pensamento. A. Comte invoca-o con-
tra a possibilidade de introspeção, ou seja, contra esse método de co-
nhecimento de si mesmo que Pierre-Paul Royer-Collard emprestou de
Reid para fazer da psicologia a propedêutica científica da metafísica,
ao justificar pela via experimental suas teses tradicionais, próprias do
substancialismo espiritualista7. Mesmo Cournot, na sua sagacidade,
não desdenha o argumento quando o retoma para apoiar a idéia de
que a observação psicológica se refere mais à conduta do outro que à
do eu do observador, de que a psicologia se aparenta mais à sabedoria
do que à ciência e de que “é da natureza dos fatos psicológicos serem
melhor traduzidos em aforismos que em teoremas”.8
Conheceu-se de forma equívoca o argumento de Descartes
quando simultaneamente se constitui contra ele uma psicologia empí-
rica como história natural do eu – de Locke a Ribot, passando por
Condillac, os ideólogos franceses e os utilitaristas ingleses – e, segundo
se acreditou, de acordo com ele, uma psicologia racional fundada so-
bre a intuição do Eu substancial.
Kant tem ainda hoje a glória de ter estabelecido que, se Wolff pôde
batizar esses recém-nascidos pós-cartesianos (Psicologia Empírica, 1732;
Psicologia Racional, 1734), no entanto não conseguiu fundamentar suas
pretensões de legitimidade. Kant mostra, de um lado, que o sentido in-
terno fenomenal é apenas uma forma da intuição empírica, que tende a
confundir-se com o tempo, e, de outro, que o eu, sujeito de todo juízo
6 Ibid., p. 353.
7 Cours de Philosophie positive. 1ère Leçon.
8 Essai sur les Fondements d enos Connaissances, 1851, §§ 371-376.

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de apercepção, é uma função de organização da experiência, mas do


qual não se poderia fazer ciência, dado que é a condição transcendental
de toda ciência. Os Primeiros Princípios Metafísicos da Ciência da Na-
tureza (1786) contestam que a psicologia possa ser uma ciência, seja à
imagem das matemáticas, seja à imagem da física. Não há psicologia
matemática possível no sentido em que há uma física matemática. Mes-
mo que se aplique às modificações do sentido interno, em virtude da
antecipação da percepção relativa às grandezas intensivas, as matemá-
ticas do contínuo, não se obterá nada de mais importante do que seria
uma geometria limitada ao estudo das propriedades da linha reta. Tam-
bém não há psicologia experimental no sentido em que a química se
constitui através do uso da análise e da síntese. Não podemos realizar
experiências nem sobre nós mesmos nem sobre o outro. Além do que,
a observação interna altera seu objeto. Querer surpreender a si mesmo
ao se observar conduziria à alienação. A psicologia só pode ser descri-
tiva. Seu lugar verdadeiro é em uma Antropologia, como propedêutica
a uma teoria da aptidão e da prudência, coroada por uma teoria da sa-
bedoria.
C. A ciência do sentido íntimo
Se se chama psicologia clássica aquela que se pretende refutar, é
preciso dizer que em psicologia há sempre clássicos disponíveis para
qualquer um. Os ideólogos, herdeiros dos sensualistas, tomaram como
clássica a psicologia escocesa que pregava, como eles, um método in-
dutivo para poder melhor afirmar, contra eles, a substancialidade do
espírito. Mas a psicologia atomista e analítica dos sensualistas e dos
ideólogos, antes de ser rejeitada como psicologia clássica pelos teóricos
da psicologia da Gestalt, já era tida como tal por um psicólogo ro-
mântico como Maine de Biran. Para ele, a psicologia torna-se a técnica
do diário íntimo e a ciência do sentido íntimo. A solidão de Descartes
é a ascese de um matemático; a de Maine de Biran, a ociosidade de um
delegado. O Eu penso cartesiano fundamenta o pensamento em si; o
Eu quero de Biran, a consciência para si contra a exterioridade. Em seu
escritório calafetado, Maine de Biran descobre que a análise psicológica
não consiste em simplificar, mas em complicar; que o fato psicológico
primitivo não é elementar, porém uma relação, relação vivida em um
esforço. Ele chega a duas conclusões, inesperadas em um homem cujas
funções são de autoridade, ou seja, de comando: a consciência requer
o conflito entre um poder e uma resistência; o homem não é, como
pensou Bonald, uma inteligência servida por órgãos, mas uma orga-
nização viva servida por uma inteligência. É necessário que a alma es-

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teja encarnada, portanto, não há psicologia sem biologia. A observação


de si mesmo não dispensa nem o recurso à fisiologia do movimento
voluntário nem à patologia da afetividade. A situação de Maine de Bi-
ran é única entre os dois Royer-Collard: dialogou com o doutrinário
e foi julgado pelo psiquiatra. Temos de Maine de Biran um Passeio
com o sr. Royer-Collard nos Jardins de Luxemburgo e de Antoine-Atha-
nase Royer-Collard, irmão caçula do primeiro, um Exame da Doutri-
na de Maine de Biran.9 Se Maine de Biran não tivesse lido e discutido
Cabanis (Relações entre o Físico e o Moral no Homem, 1798) e Bichat
(Pesquisas sobre a Vida e a Morte, 1800), a história da psicologia
patológica tê-lo-ia ignorado, o que ela não pode. O segundo Royer-
Collard é, depois de Pinel e junto com Esquirol, um dos fundadores
da escola francesa de psiquiatria.
Pinel havia defendido a idéia de que os alienados são simultanea-
mente doentes como os outros – nem possuídos nem criminosos – e
diferentes dos outros, devendo, portanto, ser tratados separadamente
dos outros e, de acordo com os casos, em serviços hospitalares espe-
cializados. Pinel fundou a medicina mental como disciplina autônoma
a partir do isolamento terapêutico de alienados em Bicêtre e em Sal-
pêtrière. Royer-Collard imita Pinel na Maison Nationale de Charen-
ton, onde se tornou chefe dos médicos em 1805, o mesmo ano em
que Esquirol defendeu sua tese de medicina sobre as “Paixões consi-
deradas como causas, sintomas e meios de cura da alienação mental”.
Em 1816, Royer-Collard torna-se professor de medicina legal na Fa-
culdade de Medicina de Paris, depois, em 1821, primeiro titular da ca-
deira de medicina mental. Royer-Collard e Esquirol tiveram como alu-
no Calmeil, que estudou a paralisia entre os alienados, Bayle, que reco-
nheceu e isolou a paralisia geral, e Félix Voisin, que iniciou o estudo do
retardo mental em crianças. É em Salpêtrière que, depois de Pinel, Es-
quirol, Lelut, Baillarger e Falret, entre outros, Charcot torna-se em 1862
chefe de um serviço, cujos trabalhos serão continuados por Théodule
Ribot, Pierre Janet, o cardeal Mercier e Sigmund Freud.
Vimos que a psicopatologia começou de forma positiva com Ga-
leno, vemos que ela conduz até Freud, criador em 1896 do termo psi-
canálise. A psicopatologia não se desenvolveu isolada de outras disci-
plinas psicológicas. Com base nas pesquisas de Biran, ela coage a filo-
sofia a interrogar-se, há mais de um século, em qual dos dois Royer-
Collard ela deve procurar a idéia que é preciso ter da psicologia. As-
sim, a psicopatologia é ao mesmo tempo juiz e parte do debate inin-
9 Publicado pelo seu filho Hyacinthe Royer-Collard (em Annales Médico-Psychologiques, 1843, tomo II, p.1).

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terrupto que a metafísica legou à direção da psicologia, sem ter, aliás,


renunciado a dizer sua palavra sobre as relações entre o físico e o psí-
quico. Essa relação foi formulada durante muito tempo como somato-
psíquica antes de tornar-se psicossomática. Aliás, essa inversão é a mes-
ma que operou na significação dada ao inconsciente. Se se identifica
psiquismo e consciência – recorrendo de forma errada ou acertada à au-
toridade de Descartes –, o inconsciente é de ordem física. Se se pensa que
o psiquismo possa ser inconsciente, a psicologia não se reduz à ciência da
consciência. O psíquico não é tão-somente o que está escondido, mas
o que se esconde, o que escondemos, o que não é mais apenas o ín-
timo, mas também – de acordo com um termo retirado por Bossuet
dos místicos – o abissal. A psicologia não é apenas a ciência da intimi-
dade, mas a ciência das profundezas da alma.

III – A PSICOLOGIA COMO CIÊNCIA DAS


REAÇÕES E DO COMPORTAMENTO
Maine de Biran, ao propor que se defina o homem como orga-
nização viva servida por uma inteligência, demarca de antemão – me-
lhor, aparentemente, do que Gall, segundo o qual, de acordo com Le-
lut, “o homem não é mais uma inteligência, porém uma vontade ser-
vida por órgãos”10 – o terreno sobre o qual se constituirá no século
XIX uma nova psicologia. Mas, ao mesmo tempo, ele assinala seus li-
mites, visto que, na sua Antropologia, ele situa a vida humana entre a
vida animal e a vida espiritual.
O século XIX assiste à constituição – ao lado da psicologia como
patologia nervosa e mental, como física do sentido externo, como ciên-
cia do sentido interno e do sentido íntimo – de uma biologia do com-
portamento humano. As razões desse evento nos parecem ser as se-
guintes. Inicialmente, razões científicas, a saber, a constituição de uma
biologia como teoria geral das relações entre os organismos e os meios,
o que marca o fim da crença na existência de um reino humano se-
parado; em seguida, razões técnicas e econômicas, ou seja, o desen-
volvimento de um regime industrial que dirige a atenção para o caráter
industrioso da espécie humana, o que marca o fim da crença na dig-
nidade do pensamento especulativo; por fim, razões políticas que se
resumem no fim da crença em valores de privilégio social e na difusão
do igualitarismo: o alistamento e a instrução pública tornam-se ques-
tão de Estado, a reivindicação de igualdade em relação às tarefas mi-
10 Qu’est-ce que la Phrénologie? ou Essai sur la signification et la valeur des systèmes de psychologie en géné-
ral et de celui de Gall en particulier. Paris, 1836, p. 401.

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litares e às funções civis (a cada um de acordo com seu trabalho, suas


obras ou seus méritos) é o fundamento real, ainda que freqüentemente
despercebido, de um fenômeno próprio das sociedades modernas: a
prática generalizada da especialização, entendida em sentido amplo
enquanto determinação da competência e revelação da simulação.
Ora, o que caracteriza, para nós, essa psicologia dos comporta-
mentos em relação aos outros tipos de estudos psicológicos é sua inca-
pacidade constitutiva de apreender e exibir com clareza seu projeto ins-
taurador. Se, entre os projetos instauradores de alguns tipos anteriores
de psicologia, uns podem passar por contra-sensos filosóficos, aqui, ao
contrário, uma vez que se recusa toda relação com uma teoria filosó-
fica, coloca-se a questão de saber de onde essa pesquisa psicológica
pode retirar seu sentido. Ao aceitar-se que ela se torne, de acordo com
o padrão da biologia, uma ciência objetiva das aptidões, das reações e
do comportamento, essa psicologia e seus psicólogos esquecem total-
mente de situar seu comportamento específico em relação às circuns-
tâncias históricas e aos meios sociais nos quais foram levados a propor
seus métodos ou técnicas e a tornar aceitáveis seus serviços.
Nietzsche, ao esboçar a psicologia do psicólogo do século XIX,
escreve: “Nós, psicólogos do futuro (…) consideramos quase como
um signo de degeneração o instrumento que procura conhecer a si
mesmo: somos os instrumentos do conhecimento e precisamos ter
toda ingenuidade e precisão de um instrumento; conseqüentemente
não temos o direito de analisar a nós mesmos, de nos conhecer”.11 Um
mal-entendido espantoso, mas como é revelador! O psicólogo quer ser
apenas um instrumento, sem procurar saber de quem ou do que é ins-
trumento. Nietzsche parecia melhor inspirado quando se inclina, no
início da Genealogia da Moral, sobre o enigma que os psicólogos in-
gleses representam, ou seja, os utilitaristas, preocupados com a gênese
dos sentimentos morais. Ele se interrogou na ocasião sobre o que teria
levado os psicólogos na direção do cinismo, isto é, na explicação das
condutas humanas pelo interesse, utilidade e esquecimento dessas mo-
tivações morais. E eis que, diante da conduta dos psicólogos do século
XIX, Nietzsche renuncia provisoriamente a todo cinismo, ou seja, a
toda lucidez!
A idéia de utilidade, como princípio de uma psicologia, resultava
da tomada de consciência filosófica da natureza humana enquanto po-
tência de artifício (Hume, Burke), mais prosaicamente, enquanto fa-
bricante de ferramentas (os enciclopedistas, Adam Smith, Franklin).
11 La Volonté de Puissance. Trad. Blanquis, livro III, § 355.

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Mas o princípio da psicologia biológica do comportamento não pare-


ce ter sido desprendido, da mesma maneira, de uma tomada de cons-
ciência filosófica explícita; sem dúvida, porque só pôde ser posto em
prática sob a condição de permanecer sem ser formulado. Esse prin-
cípio é a definição do próprio homem enquanto ferramenta. O utili-
tarismo, que implica a idéia de utilidade para o homem, a idéia do ho-
mem enquanto juiz da utilidade, foi sucedido pelo instrumentalismo,
que implica a idéia da utilidade do homem, a idéia do homem como
meio da utilidade. A inteligência não é mais aquilo que fez os órgãos
e serve-se deles, porém o que serve aos órgãos. Não é impunemente
que as origens históricas da psicologia das reações devem ser procu-
radas nos trabalhos suscitados pela descoberta da equação pessoal pró-
pria aos astrônomos que utilizam o telescópio (Maskelyne, 1796). O
homem foi inicialmente estudado enquanto instrumento do instru-
mento científico antes de o ser enquanto instrumento de todo instru-
mento.
As pesquisas sobre as leis de adaptação e da aprendizagem, sobre
a relação entre aprendizagem e as aptidões, sobre a detecção e a men-
suração de aptidões, sobre as condições de rendimento e de produti-
vidade (quer se trate de indivíduos, quer de grupos) – pesquisas inse-
paráveis de suas aplicações em seleção ou orientação – admitem todas
um postulado comum e implícito: a natureza do homem é ser um ins-
trumento, sua vocação é ser colocado em seu lugar, em sua tarefa.
Nietzsche, sem dúvida, tem razão quando diz que os psicólogos
querem ser os “instrumentos ingênuos e precisos” desse estudo do ho-
mem. Eles se esforçaram para chegar a um conhecimento objetivo,
mesmo se o determinismo que procuram nos comportamentos não
seja mais hoje em dia o determinismo de tipo newtoniano, familiar aos
primeiros físicos do século XIX, mas um determinismo estatístico, pro-
gressivamente baseado nos resultados da biometria. Mas qual é, enfim,
o sentido desse instrumentalismo de segunda potência? O que leva ou
inclina os psicólogos a tornar-se, entre os homens, os instrumentos da
ambição de tratar o homem como instrumento?
Nos outros tipos de psicologia, a alma ou o sujeito, forma natural
ou consciência de interioridade, é o princípio que se dá para justificar
enquanto valor uma certa idéia de homem em relação à verdade das
coisas. Todavia para uma psicologia na qual a palavra ‘alma’ faz fugir
e a palavra ‘consciência’ faz rir, a verdade do homem está dada pelo
fato de que não há mais nenhuma idéia de homem enquanto valor di-
ferente daquela de um instrumento. Ora, deve-se reconhecer que é

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preciso, para que se possa questionar a idéia de um instrumento, que


nem todas as idéias sejam da ordem de um instrumento, e que é pre-
ciso exatamente, para que se possa atribuir algum valor a um instru-
mento, que nem todos os valores sejam o de um instrumento, cujo va-
lor subordinado consiste em encontrar um outro. Por conseguinte, se
o psicólogo não esgota o seu projeto de psicologia em uma idéia de
homem, acredita ele que possa legitimá-lo através de seu comporta-
mento de utilização do homem? Nós dizemos claramente: através de
seu comportamento de utilização, apesar de duas objeções possíveis.
Com efeito, podemos ser advertidos, de um lado, que esse tipo de psi-
cologia não ignora a distinção entre teoria e aplicação; de outro, que
a utilização não é feita pelo psicólogo, mas por aquele ou aqueles que
lhe pedem relatórios ou diagnósticos. Responderemos que, a não ser
que se confunda o teórico da psicologia com o professor de psicologia,
é preciso reconhecer que o psicólogo contemporâneo é, na maior par-
te das vezes, um praticante profissional cuja “ciência” é na sua inteireza
inspirada pela pesquisa de “leis” de adaptação a um meio sócio-técnico
– e não a um meio natural –, o que sempre confere a suas operações
de “medida” um significado de avaliação e uma importância de espe-
cialista. De modo que o comportamento do psicólogo do comporta-
mento humano encerra, de forma quase obrigatória, uma convicção
de superioridade, uma boa consciência diretora, uma mentalidade de
dirigente das relações entre os homens. Por essa razão, é preciso co-
locar a questão cínica: quem designa os psicólogos como instrumentos
do instrumentalismo? Como se reconhecem os homens dignos de atri-
buir ao homem instrumental seu papel e sua função? Quem orienta os
orientadores?
Evidentemente não nos colocaremos no terreno das capacidades e
da técnica. A questão não é saber se há bons ou maus psicólogos, ou seja,
técnicos hábeis que aprenderam ou incapazes que fazem tolices não pre-
vistas pela lei. A questão é que uma ciência ou uma técnica científica não
contém por si só qualquer idéia que lhe confira seu sentido. Na sua In-
trodução à Psicologia, Paul Guillaume fez a psicologia do homem sub-
metido a um teste. O testado defende-se contra essa investigação, teme
que se exerça sobre ele uma ação. Guillaume vê nesse estado de espírito
um reconhecimento explícito de um reconhecimento implícito da efi-
cácia do teste. Mas também se poderia ver aí um embrião da psicologia
do testador. A defesa do testado é a repugnância em se ver tratado como
um inseto por um homem a quem ele não reconhece nenhuma autori-

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dade para lhe dizer o que é e o que deve fazer. “Tratar como um inseto”,
a palavra é de Stendhal, que a tomou emprestada de Cuvier.12 E se nós
tratarmos o psicólogo como um inseto; se nós aplicarmos, por exemplo,
a recomendação de Stendhal ao morno e insípido relatório Kinsey?
Dito de outra maneira, a psicologia da reação e do comporta-
mento, nos séculos XIX e XX, acreditou que se tornaria independente
ao separar-se de toda filosofia, ou seja, da especulação que pesquisa
uma idéia de homem para além do horizonte dos dados biológicos e
sociológicos. Mas essa psicologia não pode evitar a recorrência de seus
resultados sobre o comportamento daqueles que os obtêm. A questão
“Que é a psicologia?”, na medida em que se interdita a psicologia de
procurar sua resposta, torna-se “Onde querem chegar os psicólogos
fazendo o que fazem? Em nome de quem se declaram psicólogos?”.
Quando Gedeão recrutou o comando dos israelitas e chefiando-os re-
pele os madianitas para além do Jordão, ele utiliza um teste em duas
etapas que lhe permite, inicialmente, escolher dez mil homens entre
trinta e dois mil, e depois trezentos entre os dez mil. Mas este teste é
devedor do Eterno, tanto em relação ao objetivo de sua utilização
quanto ao procedimento de seleção usado. Para selecionar um seleci-
onador, é preciso normalmente transcender o plano dos procedimen-
tos técnicos de seleção. Dada a imanência da psicologia científica, per-
manece a questão: quem tem, não a competência, mas a missão de ser
psicólogo? A psicologia repousa realmente sobre um desdobramento
– que não é mais aquele da consciência de acordo com os fatos e as
normas que a idéia de homem comporta –, uma massa de “sujeitos”
e uma elite corporativa de especialistas que investem a si mesmos de
sua própria missão.
Em Kant e em Maine de Biran, a psicologia está situada em uma
antropologia, ou seja, apesar da ambigüidade, atualmente muito em
voga desse termo, em uma filosofia. Em Kant, a teoria geral da habi-
lidade humana permanece relacionada a uma teoria da sabedoria. A
psicologia instrumentalista apresenta-se como uma teoria geral da ha-
bilidade, fora de qualquer referência à sabedoria. Se não podemos de-
finir essa psicologia por uma idéia de homem, ou seja, situá-la dentro
da filosofia, certamente não temos o poder de interditar a quem quer
que seja de se dizer psicólogo e de chamar psicologia ao que faz. Mas
ninguém pode mais interditar a filosofia de continuar a interrogar-se
12 “Ao invés de odiar o pequeno livreiro da cidade vizinha que vende o Almanaque Popular, dizia eu ao meu
amigo Senhor de Ranvelle, aplique-lhe o velho remédio indicado pelo célebre Cuvier; trate-o como inseto.
Investigue seus meios de subsistência, procure adivinhar suas formas de acasalamento” (Mémorires d’un
Touriste, ed. Calmann-Lévy, tomo II, p. 23).

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sobre o estatuto mal definido da psicologia, tanto do lado das ciências


como do lado das técnicas. A filosofia, quando procede assim, conduz-se
de acordo com sua ingenuidade constitutiva, tão pouco assemelhada
ao simplismo que não exclui um cinismo provisório, o que a leva a
voltar-se mais uma vez para o lado popular, ou seja, para o lado
natural dos não-especialistas.
Por conseguinte, é de forma muito vulgar que a filosofia inter-
roga a psicologia e diz: para aonde ides, para que eu saiba quem sois?
Mas o filósofo também pode dirigir-se ao psicólogo sob a forma de um
conselho – uma única vez não cria o hábito – e dizer: quando se sai
da Sorbonne pela rua Saint-Jacques pode-se subi-la ou descê-la; quan-
do se sobe, chega-se ao Panteão, o Conservatoire de alguns grandes ho-
mens, mas quando se desce, certamente se chega à delegacia de polícia.

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Pequenas Notas a
“Que é a Psicologia?”
Small Notes to
“What is Psychology?” OSMYR FARIA GABBI JR.
Departamento de
Filosofia da Unicamp
RESUMO – A séria crítica de Canguilhem à psicologia também pode ser estendida osmyr@cle.unicamp.br
tanto à psicanálise de Freud quanto a de Lacan. Apontamos algumas das questões
que deveriam ser elucidadas antes de realizar essa tarefa.
Palavras-chave: psicologismo – epistemologia da psicanálise – inconsciente.
ABSTRACT – The serious critique of psychology by Canguilhem can be extended
also to Freud and Lacan’s psychoanalysis. We designate some of the problems that
should be elucidated before undertaking such a task.
Keywords: psychologism – epistemology of psychoanalysis – unconscious.

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Kant tem ainda hoje a glória de ter estabelecido que,


se Wolff pôde batizar estes recém-nascidos pós-cartesi-
anos (Psicologia Empírica, 1732; Psicologia Racional,
1734), no entanto não conseguiu fundamentar suas
pretensões de legitimidade.1

E ssa conferência de Georges Canguilhem que apresentamos


pela primeira vez para o público brasileiro é um marco para a
epistemologia da psicologia. Enquanto as objeções que ela co-
loca à possibilidade da psicologia não forem adequadamente respondi-
das, pesa contra todo e qualquer projeto psicológico a tríplice objeção:
medicina sem controle, ética sem exigências, filosofia sem rigor. Todas
nascem de uma mesma suspeita e apresentam uma mesma origem.
Para entendê-la, é preciso atentar para o fato de o horizonte da
crítica esboçada por Canguilhem ser delineado pela tese kantiana so-
bre a impossibilidade de fundamentar de modo científico qualquer psi-
cologia, seja ela assemelhada à psicologia racional, seja à psicologia em-
pírica. No primeiro caso confunde-se a condição da experiência com
a própria experiência, e assim tenta-se fazer ciência da coisa de si.2 No
segundo, não se leva em conta que as categorias da psicologia são his-
tóricas e assim não podem ser nem universais, nem necessárias, con-
dição básica para todo projeto que se pretenda científico.3 Se a psico-
logia fosse uma ciência, ela não seria de forma intrínseca uma ética,
uma vez que para Kant a questão do conhecimento e a questão ética
estão em esferas distintas e envolvem usos distintos da Razão.
Canguilhem, sem duvidar de que a psicologia seja eficaz – mas
visto que, de maneira minimamente consensual, ela não é ciência de
fato –, interroga-se sobre a origem dessa eficiência. Acreditamos que a
conferência pretenda mostrar, entre outros pontos,4 que essa eficácia
reside na operação que transforma normas éticas derivadas de certas

1 Que é a Psicologia?, p. 18, desta revista.


2 Algo semelhante a confundir estudos sobre fundamentos da matemática com pesquisas sobre a forma
pela qual as crianças aprendem a tabuada.
3 A psicologia, no melhor dos mundos possíveis, pode dizer-nos algo sobre como os homens em uma certa
sociedade, em um tempo histórico preciso, em uma determinada classe social compreendiam a si mesmos e
aos outros. Toda tentativa de tornar esses ensinamentos universais é enganosa. Ela opera a famosa subs-
tituição sublinhada pelos marxistas: substitui a história pela psicologia. Nesse sentido, não faz mais do que
os desenhos americanos que encontram a mesma família americana de classe média tanto no futuro longín-
quo como na pré-história.
4 Um dos outros pontos é exibir a natureza antifilosófica da psicologia como ciência das reações e do com-
portamento.

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práticas antropológicas inerentes à psicologia em enunciados cientí-


ficos fictícios.5 Assim, a mutação do “deve ser”, presente na norma,
em um “é” descritivo que teria o aval de ciência – porém não tem –
leva toda concepção psicológica a ser uma ética sem exigências, justa-
mente porque se ignora enquanto tal, ou seja, sua eficácia decorreria
de ser uma ética transfigurada em saber efetivo. Na tentativa inglória
de obter esse aval de efetividade, a psicologia recorre, sem se dar con-
ta, a fragmentos de diferentes filosofias, recolhidos de tal maneira que
perdem sua história e especificidade, e conseqüentemente ela desem-
boca em numerosos contra-sensos filosóficos, no seu reconhecido ecle-
tismo filosófico, ou seja, em filosofia sem rigor.
Passados cem anos da publicação de Traumdeutung, podemos en-
contrar as mesmas dificuldades na psicanálise de Freud? A resposta,
como indicaremos adiante, parece ser afirmativa. Entretanto, para al-
guns simpatizantes da psicanálise de Lacan, elas não parecem existir.6 A
razão para tanto otimismo pode estar na tentativa de Lacan de pensar
uma psicanálise liberada de quaisquer traços de psicologismo. Esta dou-
trina perniciosa pode ser definida provisoriamente como toda tentativa
de reduzir as entidades psicanalíticas, tais como, por exemplo, o incons-
ciente, a estados ou atividades mentais. Portanto, entendemos os
esforços de Lacan de conceituar o inconsciente enquanto discurso do
Outro, entre tantos outros, como uma forma de remover o psicologis-
mo, patente em Freud. Mas realmente basta removê-lo para que uma
psicanálise assim depurada esteja livre das críticas formuladas por Can-
guilhem?
Se nos voltarmos para Fonction et champ de la parole et du lan-
gage en psychanalyse,7 encontramos como obstáculos a uma teoria psi-
canalítica fundamentada na função da palavra a pedagogia maternal,
a ajuda samaritana e a mestria dialética.8 No entanto, mesmo que acei-
temos que a psicanálise de Lacan não vise promover a cura, que ela re-
conheça a dimensão ética em que se move, que, no limite, seja enten-
dida qua teoria ética, e que ela, de alguma maneira – supondo que pos-
5 A psicologia é considerada uma ética sem exigências “porque associa experiências etológicas sem criticá-
las, a do confessor, a do educador, a do chefe, a do juiz etc.”, Ibid, p. 12. Em outras palavras, essas experiên-
cias não aparecem como são, elas são descritas de tal maneira que se tornam inerentes ao desempenho pro-
fissional do psicólogo, desempenho esse que seria justificado pelo fato de a psicologia ser uma “ciência”.
Assim, por exemplo, na psicologia clínica, se o “paciente, cliente ou analisando” vê a relação entre ele e o “o
clínico, o conselheiro ou o analista” como ela é realmente, ou seja, como assimétrica, essa visão é decodifi-
cada “cientificamente” como sintoma.
6 A conferência de Canguilhem, proferida em 18 de dezembro de 1956 e publicada em 1958 na Revue de
Métaphysique et de Morale em 1958, foi reeditada em 1966 pelo Cahiers pour l’Analyse.
7 O chamado Discurso de Roma, proferido na Universidade de Roma nos dias 26 e 27 de setembro de
1953 por Lacan, é um divisor de águas na tentativa de conceber uma psicanálise com inconsciente, porém
sem psicologismo (LACAN, J. Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse. In Écrits,
Paris: Seuil, 1966, pp. 237-322).

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sa ser lida dessa forma apropriada –, possa ter seu horizonte filosófico
perfeitamente equacionado, escaparemos, assim, às críticas de Kant
em relação à possibilidade de uma psicologia científica? Afinal, está
aqui o nó da questão. Não pretendemos desatá-lo, mas apenas ressal-
tar alguns dos nós prévios que precisam ser desfeitos para quem se dê
a esta tarefa hercúlea e temerária.

AS REFERÊNCIAS DE CANGUILHEM À PSICANÁLISE


A psicanálise presente na descrição de Canguilhem sobre os pro-
jetos filosóficos é inequivocamente a de Freud. Segundo ele, essa teoria
estaria localizada na interseção de dois projetos bastante distintos: en-
quanto psicopatologia, remontaria ao século II, a Galeno; ou seja, estaria
ligada ao projeto de constituição de uma psicologia enquanto ciência na-
tural. Mas também teria como origem a tentativa de fundar uma psico-
logia como ciência da subjetividade. Nessa última derivação, a psicaná-
lise teria operado a passagem de um inconsciente físico para um in-
consciente psicológico,9 de modo a pensar que “O psíquico não é tão-
somente o que está escondido, mas o que se esconde, o que esconde-
mos, o que não é mais apenas o íntimo, mas também – de acordo com
um termo retirado por Bossuet dos místicos – o abissal. A psicologia
não é apenas a ciência da intimidade, mas a ciência das profundezas da
alma”.10 Na medida em que a psicologia como ciência da subjetivida-
de nasce da tentativa de explicar o motivo de a razão enganar-se em
relação à realidade,11 a teoria psicanalítica pode ser entendida como
aquela que encontra esse motivo na oposição entre a consciência cog-
nitiva e a consciência moral.12
Essa dupla inserção da psicanálise é problemática. Sem examinar
a questão prévia de saber se as condições epistemológicas a serem sa-
tisfeitas para que ambos os projetos sejam considerados científicos são
as mesmas, pode-se entender, sem muito esforço, que no primeiro
8 Não é um exercício inútil tentar articular esses três obstáculos com três dos quatro discursos que Lacan
distinguiu mais tarde (ver LACAN, J. Le Seminaire, Livre xx: Encore. Paris: Seuil, 1975): o da universidade,
o da histérica e o do mestre. Ou seja, é interessante procurar mostrar como esses três discursos, presentes
nas práticas analíticas que Lacan critica, impedem o único discurso que seria produtor da verdade no regis-
tro do simbólico: o discurso do analista.
9 Pode-se apreender essa passagem no significado de inconsciente em Entwurf einer Psychologie (FREUD,
S. GW, Nachtragsband, pp. 373-477). Aliás, a grande novidade de Freud é considerar que sintomas psicoló-
gicos podem ter causas psicológicas – mesmo sabendo que, em última análise, elas são fisiológicas – e tratá-
los como se tivessem efetivamente causas psicológicas. O preço a ser pago para tanto é romper com a iden-
tidade entre o psíquico e a consciência.
10 CANGUILHEM, op. cit., p. 20.
11 Ibid., pp. 15-16.
12 A psicanálise de Freud até 1920 compreende o sintoma como uma má representação construída a partir
da oposição entre essas duas consciências. Em outras palavras, a questão cognitiva é mediada pela questão
ética. No entanto, os limites da ética freudiana são os limites de toda concepção naturalista da moral.

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caso estamos tratando com causas e no segundo com motivos. Não há


sentido em falar em causas inconscientes, mas sem dúvida é razoável
expressar-se em termos de motivos inconscientes.13
Muitos comentadores referem-se a essa característica problemá-
tica da psicanálise de Freud: uma contínua passagem de um vocabu-
lário causal para um vocabulário intencional, e vice-versa.14 Essa pas-
sagem já está presente em Studien über Hysterie, de 1895. Nesta obra
podemos constatar uma diferença marcante entre o caso de Emmy
von N. e todos os outros casos clínicos descritos. No primeiro, é pos-
sível ater-se a um modelo causal e patológico para que o caso se torne
inteligível. A história da paciente só é relevante para apresentação dos
seus sintomas e para a descrição dos procedimentos utilizados. Nos
outros casos, a história das pacientes é essencial para a compreensão
da gênese dos próprios sintomas. Em outras palavras, passa-se de uma
dimensão causal para uma dimensão intencional.15
Por conseguinte, quem desejar submeter a psicanálise de Freud às
mesmas críticas formuladas por Canguilhem – seja para rejeitá-las, seja
para aceitá-las – deve inicialmente se interrogar se é viável manter as
duas dimensões ou se é preciso optar entre elas. Para os que se incli-
narem pela hipótese de que é vital contemplar as duas dimensões, a ta-
refa será mostrar a possibilidade de construir, sem gerar paradoxos,
uma máquina intencional.16 Caso tenham sucesso, o nó seguinte a ser
desatado é apontar como essa teoria seria capaz de fazer predições –
esta é a característica marcante de uma ciência sem adjetivos – apesar
do seu caráter intencional.17 A opção pela dimensão causal parece ser
a menos interessante, pois, além de não poder assimilar uma parte re-
levante da teoria freudiana, também fracassa na tentativa de mostrar
13 Podemos ter a pretensão de estender a nossa responsabilidade ao inconsciente, mas não a eventos natu-
rais. Uma das premissas da ciência moderna é o abandono de qualquer teleologia no plano da natureza, ou
seja, já faz algum tempo que não atribuímos intenções aos eventos naturais.
14 Ver, por exemplo, BOUVERESSE, J. Philosophie, Mythologie et Pseudo-Science: Wittgenstein lecteur de
Freud. Combas: Éditions de L’Éclat, 1991, em especial o quarto capítulo, pp. 82-96.
15 O próprio Freud assinala que os seus casos se assemelham mais a contos do que a casos clínicos: “Nem
sempre fui um psicoterapeuta (…) e ainda me impressiona de forma peculiar que os históricos de caso que
escrevo são para ser lidos como contos e que lhes falta, por assim dizer, a estampa séria do que é científico.”
GW, I. Frankfurt: S.Fischer, 1977, p. 227.
16 Acreditamos que, pelo menos até 1920, a psicanálise de Freud possa ser reconstruída como a tentativa de
formular de modo consistente uma teoria do aparelho psíquico enquanto máquina intencional. Essa
máquina também padece desse mesmo engano assinalado por Canguilhem em relação à psicologia como
ciência da subjetividade: transforma a teoria da conhecimento que se origina em Descartes em teoria empí-
rica quando constitui uma história natural do eu (Ich).
17 A psicanálise parece ser construída de forma a fazer retrodições e não predições, ou seja, a teoria não
seria capaz de prever, mas apenas de justificar as ações de um agente. Se houver acordo sobre este ponto, a
tarefa desloca-se para mostrar que teorias desse tipo podem ser científicas; demonstração que não é de
nenhuma maneira trivial. Se, por outro lado, a teoria fosse capaz de prever, ela não poderia conter numa
dimensão intencional sem gerar paradoxos, pois ou a teoria preveria intenções e estas não seriam mais
intenções ou a teoria não seria capaz de prever intenções e, por conseguinte, não preveria.

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sua adequação a padrões reconhecidos de cientificidade. Resta priori-


zar a dimensão intencional, como ocorre por exemplo com Lacan.

A PSICANÁLISE DE LACAN
Estamos supondo que, se não for possível provar sua cientifici-
dade, a psicanálise é passível de cair sob a tríplice objeção formulada
por Canguilhem. Assim, para que se revele isenta de tal crítica – como
querem alguns simpatizantes da psicanálise lacaniana –, é preciso in-
dicar os motivos pelos quais o afastamento do psicologismo, por parte
de Lacan, estariam ligados ao projeto de uma psicanálise realmente
científica. Para entendê-los, basta recordar as críticas de Politzer contra
a psicologia clássica.18 Essa crítica – igualmente inspirada em Kant –,
pode ser resumida em poucas palavras: a psicologia padece de um pro-
fundo engano, pois ela resulta da transformação indevida da teoria do
conhecimento que nasce com Descartes em teoria empírica.19 Assim,
a psicologia teria abandonado o estudo dos atos de homens concretos
para consagrar-se à análise de processos abstratos, ela tentaria ser a im-
possível ciência da coisa em si. No caso de Freud, Politzer acredita que
seria justamente a teoria sobre o inconsciente que levaria a psicanálise
para o caminho da psicologia clássica, o que contraria a sua tendência,
presente na clínica, de ser uma psicologia concreta no sentido de pri-
vilegiar a dimensão intencional. O psicologismo de Freud estaria pre-
sente na sua metapsicologia, na sua teoria do aparelho psíquico que,
pelo menos até 1920, é uma teoria da representação. Por conseguinte,
um dos nós a desatar consiste em estudar as relações entre Politzer e
Lacan, de modo a mostrar que a crítica do segundo ao modelo repre-
sentativo da psicanálise clássica seria feita no sentido da crítica do pri-
meiro a Freud. Em outras palavras, Lacan teria suposto que a remoção
do psicologismo da teoria psicanalítica abriria o caminho para uma psi-
canálise científica. Removê-lo significaria afastar as cinco teses da psi-
cologia clássica sobre o fato psicológico: a tese de que a forma última
do psicológico seria atomista (T1); de que o psicológico é apreendido
de forma imediata pela percepção (T2); de que o psicológico é de na-
tureza representativa (T3); de que o psicológico é o que resulta de pro-
cessos, e não de atos concretos de agentes (T4); e finalmente de que a
função da palavra é denotar o psicológico (T5). Assim, outro nó para
ser desatado é certificar-se se é possível mostrar que a psicanálise la-
caniana pode ser concebida enquanto crítica a essas cinco teses da psi-
18POLITZER, G. [1928] Crítica dos Fundamentos da Psicologia. Piracicaba: Editora UNIMEP, 1998.
19Como bem observa Canguilhem, “A meditação cartesiana não é uma confidência pessoal”, ou seja, ela
não é de natureza empírica, mas metafísica. Op. cit., p. 17.

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cologia clássica. Um outro ainda, talvez mais árduo, consiste em veri-


ficar se a remoção dessas teses é suficiente para garantir a possibilidade
de uma psicanálise realmente científica.

CONCLUSÃO
Como qualquer leitor atento de “Que é a Psicologia?” pode
constatar, essa conferência é plena de pistas e sugestões para pensar a
psicologia nas suas mais diversas formas. No nosso caso, foi a opor-
tunidade para apresentar algumas reflexões epistemológicas sobre a
psicanálise de Freud e de Lacan.

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A Escrita do Capítulo I
do “Livro dos Sonhos”:
Freud, Leitor de seu
Tempo
The writing of Chapter I
of the Book on Dreams:
Freud, a Reader of his Time
RESUMO – A correspondência de Sigmund Freud com Wilhelm Fliess é um vasto
arquivo para investigação do processo de escrita do livro A Interpretação dos So-
nhos. Através do registro epistolar, com freqüência cotidiana, Freud narra as difi- MÁRCIO MARIGUELA
culdades que enfrentou na edificação da teoria psicanalítica: o processo de deslin- Doutorando em Filosofia (Unicamp),
analista praticante, membro da Escola
dar a estrutura das neuroses conduziu-o aos problemas relativos à formação oní- Lacaniana de Psicanálise de Campinas
rica. O presente ensaio tem como objetivo acompanhar pelas cartas, a escrita do e professor da Faculdade de Filosofia
História e Letras (UNIMEP)
capítulo I “A Literatura Científica que trata dos Problemas dos Sonhos”. Por exi- m.mariguela@zaz.com.br
gência de Fliess, Freud assumiu a árdua tarefa de preparar esse capítulo, que, ao
final, revelou-se um entrave para os leitores. Nossa posição é demonstrar que o ca-
pítulo I é apropriado para revelar o leitor Freud na demarcação de seu campo teó-
rico pelos embates com a literatura científica e filosófica de seu tempo.

Palavras-chave: cartas de Freud a Fliess – psicanálise – sonhos – sintomas.

ABSTRACT – Sigmund Freud’s correspondence with Wilhelm Fliess is a vast file for
investigating the process of writing the book The Interpretation of Dreams. Throu-
gh this registered epistle, Freud narrated daily the difficulties that he faced in the
construction of psychoanalytic theory: the process of discovering the structure of
neuroses drove him to the problems related to dream formation. The present ar-
ticle aims to follow the letters he wrote while writing chapter I “The Scientific Li-
terature About the Problems of Dreams”. Because of Fliess’ demands, Freud as-
sumed the arduous task of preparing this chapter that, ultimately, has revealed it-
self as a problem for readers. Our position is to demonstrate that chapter I is ap-
propriate in revealing Freud as a reader in the demarcation of its theoretical field
through the debates with the scientific and philosophical literature of his time.

Keywords: letters from Freud to Fliess – psychoanalysis – dreams – symptoms.

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INTRODUÇÃO

A correspondência de Sigmund Freud com Wilhelm Fliess


transcorreu no período de 1887 a 1904. O histórico da re-
lação entre ambos é marcado por avatares que atravessam a
esfera das afinidades eletivas, do âmbito familiar de descrição cotidia-
na, alojando-se no cenário da construção da psicanálise. Dois aspectos
na escrita do livro A Interpretação dos Sonhos podem ser verificados
com propriedade no conjunto das cartas: os problemas relativos à
montagem do aparelho psíquico, como apresentado no capítulo VII,
“A Psicologia dos Processos Oníricos”, e as dificuldades que Freud en-
frentou na pesquisa bibliográfica para a definição do capítulo I, “A Li-
teratura Científica que trata dos Problemas dos Sonhos”. O propósito
deste ensaio limita-se a acompanhar o segundo aspecto.
A primeira versão das cartas que Freud enviou a seu amigo foi pu-
blicada em 1950. As informações biográficas atestam que Freud des-
truiu as cartas que Fliess enviou-lhe. Em 1928, após a morte de Fliess,
sua esposa decide vender o material, juntamente com toda a biblioteca,
a Reinhold Stahl, escritor e negociante de obras de arte de Berlim. Ao
todo, a coleção era composta por 284 cartas, mais os rascunhos de tra-
balhos que Freud desenvolvia no período.
Por sua condição judaica, Stahl refugia-se em Paris em decorrên-
cia do regime nazista. Lá procura Marie Bonaparte para negociar a
venda das cartas, com a estrita condição de que não fossem parar nas
mãos de Freud, que certamente iria destruí-las. Numa carta à Freud de
30/12/1936, ela comunica a compra do lote por 12 mil francos, im-
pedindo assim que esse material fosse parar na América do Norte: “Pa-
ra que permaneçam na Europa e em minhas mãos, ele chegou até a
conceder-me um preço mais baixo (...) Estou contentíssima por ter po-
dido fazer isso, pois lamentaria ver tudo exposto ao mundo em geral.
Não há dúvida de que o material é seu. Afinal, conheço sua letra!”.1
Freud respondeu: “Nossa correspondência foi a mais íntima que você
possa imaginar. Seria altamente embaraçoso que viesse a cair nas mãos
de estranhos. Assim, é uma extraordinária obra de amor que você as
tenha conseguido e livrado do perigo (...). Não quero que nenhuma
delas seja conhecida pela chamada posteridade”.2
Marie Bonaparte convence Freud que as cartas e os rascunhos
são um valioso arquivo para estudos sobre as origens da psicanálise.
Ele insistia na necessidade de destruir o material pois, “considerando

1 Apud MASSON, 1986, p. 7.


2 MASSON, 1986, p. 7.

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a natureza íntima de nosso relacionamento, é claro que essas cartas


versam sobre tudo e nada, sobre questões factuais e pessoais. As ques-
tões factuais dizem respeito a todos os palpites e pistas falsas ligadas ao
nascimento da análise, e desse modo são também bastante pessoais”.3
Por que Freud afirma serem falsas as pistas que conduzem aos proble-
mas centrais no processo histórico de construção da psicanálise? Cer-
tamente, as “questões factuais” referem-se ao percurso de Freud na
montagem de sua psicologia dos processos oníricos em toda sua ra-
mificação, desde o manuscrito Projeto de uma Psicologia, enviado à
Fliess em 1895, até a publicação de A Interpretação dos Sonhos, em
novembro de 1899. No entanto, o caráter íntimo dos escritos é a gran-
de preocupação de Freud, daí seu desejo de impedir que viesse a pú-
blico.
Na célebre biografia de Freud, Ernet Jones narra o percurso das
cartas adquiridas por Marie Bonaparte. Afirma que ela “teve a cora-
gem de desafiar seu analista e mestre e as depositou no Banco Roths-
child, em Viena, durante o inverno de 1937-1938, com a intenção de
estudá-las melhor quando retornasse no verão seguinte”.4 A saga do
material é contada pelos percalços da expansão nazista pela Europa:
de banco em banco, as cartas chegaram intactas em Londres. Anna
Freud e Ernest Kris fizeram uma rigorosa seleção e publicaram 168 de-
las. Definiram o seguinte critério: “A seleção foi feita com base no prin-
cípio de tornar público tudo aquilo que se relaciona com a obra e com
os interesses científicos do autor, bem como tudo o que se refere às
condições sociais e políticas em que se originou a psicanálise, e de omi-
tir ou abreviar tudo aquilo cuja publicação pudesse ser incompatível
com o sigilo profissional e pessoal”.5 No fim da década de 70, Masson
procura Anna Freud para convencê-la a publicar as cartas restantes.
Todos os originais delas, bem como todos os manuscritos de Freud,
encontram-se guardados na Biblioteca do Congresso Americano, em
Washington.6

O SONHO NO PROJETO DE 1895


A intenção de escrever A Interpretação dos Sonhos aparece, pela
primeira vez, na carta de 15/05/1897:
3 Carta a Marie Bonaparte de 10/01/1937, apud MASSON, p. 9.
4 JONES, 1970, p. 291.
5 Apud MASSON, 1986, p. 12.
6 Em 1980, Anna Freud doou os originais das cartas, bem como os manuscritos de Freud, para a Biblioteca
do Congresso Americano, em Washington. O público brasileiro poderá conhecer parte desse arquivo na
exposição “Sigmund Freud: cultura e conflito”, agendada para o período de 26 de setembro a 28 de
novembro de 2000, no Museu de Arte de São Paulo.

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(...) não importa onde comece, estou sempre voltando


às neuroses e ao aparelho psíquico. Com certeza, não
é por uma indiferença pessoal nem objetiva que não
consigo fazer com que minha pena escreva nada além
disso. As coisas estão fermentando, borbulhando den-
tro de mim; só estou à espera de um novo ímpeto (...)
estou novamente pensando no livro sobre o sonho. Te-
nho examinado a literatura e me sinto como o diabi-
nho celta: “Ah, como estou contente porque ninguém
sabe!”. Ninguém sequer suspeita de que o sonho não
é nenhum absurdo, e sim uma realização de desejo.7

A elaboração do “livro sobre o sonho” constitui a matriz da teoria


psicanalítica, isso porque nele encontramos o delineamento da estrutura
e do funcionamento do aparelho psíquico. A tese de que o sonho realiza
desejos permitiu a montagem dessa estrutura.
É possível averiguar que as premissas centrais, que definem o
campo da argumentação de Freud, podem ser remetidas ao manuscri-
to Projeto de uma Psicologia. Nos últimos itens que compõem a parte
I do manuscrito, encontra-se a afirmação de que os sonhos são pro-
cessos primários que irrompem todos os dias durante o sono. O que
é o sono?

A condição essencial do sono claramente se reconhece


na criança. A criança dorme enquanto não é atormen-
tada por nenhum carecimento ou estímulo externo (fo-
me e frio devido à umidade). Dorme com satisfação (no
seio). Também o adulto dorme facilmente post coenam
et coitum. Condição do sono é, assim, o abaixamento
da carga endógena no núcleo de psi, que torna supérflua
a função secundária.8

Se o sono implica um abaixamento da energia psíquica, por que


sonhamos? Qual a fonte de estimulação das imagens oníricas que às
vezes podemos recordar ao despertar?
No mesmo Projeto, Freud enumera as seguintes características
do sonho:

1. Os sonhos carecem de eliminação motora, assim co-


mo, na sua maior parte, de elementos motores. No so-
nho está-se paralisado. (...) 2. As ligações do sonho são
em parte contra-sensos, em parte imbecis, ou também

7 MASSON, 1986, p. 244.


8 FREUD, 1995, p. 49.

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sem sentido, raramente insensatas. O último caráter ex-


plica-se pelo fato de que no sonho domina a compul-
são associativa, como primariamente na vida psíquica
em geral (...) 3. As representações do sonho são do tipo
alucinatório, despertam a consciência e encontram
crença (...) 4. O objetivo e o sentido dos sonhos (pelo
menos, dos normais) pode-se determinar com certeza.
Eles são realizações de desejo, portanto processos pri-
mários segundo as vivências de satisfação e só não são
reconhecidos como tais porque neles a liberação de
prazer (reprodução de traços de eliminação de prazer)
é pequena, porque decorrem em geral quase sem afeto
(sem liberação motora) (...) 5. É notável a má memória
e o prejuízo dos sonhos em comparação com outros
processos primários (...) 6. Ademais, é interessante que
a consciência no sonho forneça a qualidade de forma
tão imperturbável quanto na vigília (...).9

Temos assim estabelecidos os itens que irão compor a estrutura


argumentativa de A Interpretação dos Sonhos. As características defi-
nidas demarcam o território da investigação de Freud: a gramática dos
sonhos e dos sintomas. O funcionamento do aparelho psíquico obe-
dece às mesmas coordenadas, estejamos dormindo ou acordados. Ou
seja, sonho e sintoma são atos psíquicos portadores de sentido.

A LITERATURA CIENTÍFICA SOBRE OS SONHOS


No que tange ao capítulo I, “A Literatura Científica que trata dos
Problemas dos Sonhos”, podemos observar o modo de organização do
material oriundo da pesquisa bibliográfica empreendida por Freud. A
composição desse capítulo ocorreu após a escrita dos demais que com-
põem A Interpretação dos Sonhos. Através da correspondência com
Fliess, vemos o quanto a montagem desse capítulo tornou-se proble-
mática para Freud.
Na carta de 09/02/1898, encontramos: “Estou profundamente
imerso no livro dos sonhos, escrevendo-o com fluência, e gosto da
idéia de todas as ‘cabeças balançando’ por causa das indiscrições e ou-
sadias que contém. Se ao menos não fosse necessário ler tanto! Já estou
farto da escassa literatura que existe”.10 No fim de fevereiro afirma
9 FREUD, 1995, pp. 51-53. Vale ressaltar que a matriz da interpretação do clássico sonho da injeção de
propil em Irma é apresentada nos parágrafos finais da parte I do Projeto. Freud define esse sonho como
modelo para demonstrar a tese de que o sonho realiza desejos. O capítulo II de A Interpretação dos Sonhos
é construído a partir da distinção entre o método de interpretação simbólica e o método de interpretação
por decifração. A escolha de Freud recai sobre o segundo.
10 MASSON, 1986, p. 299.

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que diversos capítulos do livro já estavam completos: “ele está saindo


primorosamente e me leva muito mais a fundo na psicologia do que
eu havia imaginado”.11 No dia 15/03 escreve para dizer que estava
sentindo-se embotado, desorientado quanto ao problema da histeria e
que o primeiro capítulo ainda não foi escrito. Nessa carta apresenta
um esquema previsto para a composição do livro dos sonhos.
No dia 01/05, envia o capítulo III, “O material onírico” – que na
publicação recebe o título da tese fundadora da obra, “O sonho é Rea-
lização de um Desejo” –, solicitando apreciação de Fliess. Freud consi-
dera que, apesar de seu empenho na escrita do livro, sente-se “comple-
tamente estúpido no que diz respeito a ele”. A parte sobre a psicologia
do processo onírico achava-se em estado primário de escrituração. Al-
guns dias depois, reconhece que a elucidação do processo psíquico do
sonho é a tarefa mais difícil a ser realizada. Em 24/05 afirma que o ca-
pítulo sobre a formação dos sonhos foi concluído, e, no dia 09 do mês
seguinte, novamente volta a mencionar seu estado emocional:

É terrivelmente difícil expor a nova psicologia no que


tange ao sonho; ela é necessariamente fragmentada, e
todas as partes obscuras que, num estado de inércia,
fui adiando até o momento, reclamam elucidação. Pre-
ciso de muita paciência, de um estado de espírito ele-
vado e de algumas boas idéias. Estou emperrado na re-
lação entre os dois sistemas de pensamento; preciso
abordá-los com afinco. Mais uma vez, durante algum
tempo, não terei serventia para ninguém. A tensão da
incerteza responde por um estado abominavelmente
desagradável, que se chega a sentir quase fisicamen-
te.12

Nos meses seguintes, o ânimo de Freud permanece inalterado.


Afirma que se perdeu do caminho traçado, que o livro está inerte, fal-
tando-lhe incentivo para terminá-lo para publicação. Abatido em sua
luta para elucidação da relação entre “os dois sistemas de pensamen-
to”, dedica-se ao estudo da literatura científica procurando depreender
os elementos de sua metapsicologia. Na carta de 26/08, por exemplo,
afirma:

Que ando fazendo por aqui? Ficando um tanto ente-


diado em Aussee, onde conheço bastante bem todas as
trilhas. Não consigo ficar totalmente desprovido de

11 Ibid., p. 301.
12 Ibid., p. 316.

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material. Outorguei a mim mesmo a tarefa de cons-


truir uma ponte entre a minha metapsicologia embri-
onária e a que está contida na literatura especializada
e, por conseguinte, mergulhei no estudo de Lipps, que
suspeito ter a mente mais lúcida entre os escritores
filosóficos da atualidade. Até aqui, as coisas vão indo
muito bem no tocante à compreensão e à aplicação a
minhas próprias hipóteses. Naturalmente, este é um
período de poucas explicações. Estou ficando cada vez
mais inseguro quanto ao trabalho sobre a histeria; seu
valor me parece menor, como se eu tivesse deixado de
fora diversos fatores fundamentais, e abomino real-
mente a idéia de ter que retomá-lo.13

Quais os diversos fatores fundamentais para o deslindamento do


sintoma histérico que Freud deixou de fora? Por que abomina a pos-
sibilidade de retomá-los? Na carta de 23/10 expressa o desejo de re-
encontrar o caminho “para a verdade, saindo de erros graves”. Até en-
tão, o capítulo I e o capítulo VII de A Interpretação dos Sonhos não es-
tavam escritos. No entanto, disse que aprendeu uma lição que fez de
si um velho: “Se a discriminação dos poucos aspectos necessários à ex-
plicação das neuroses implica tanto trabalho, tempo e erro, como pos-
so ter esperança de obter, um dia, a compreensão de toda atividade
mental, que foi em certa época minha orgulhosa expectativa?”.14 A
referência ao Projeto de 1895 é clara. Freud procura representar os
processos psíquicos patológicos e normais, abrangendo assim toda a
atividade mental.
Quanto à escrita do capítulo I, na carta de 05/12 vemos Freud la-
mentar sua tarefa:

A literatura [sobre o sonho] que estou lendo no mo-


mento deixa-me completamente embotado. É uma
punição terrível para aqueles que escrevem. Nesse pro-
cesso, tudo o que se tem de próprio se esvai. Muitas
vezes, não consigo lembrar-me o que foi que descobri
de inédito, já que tudo nessa descoberta é inédito. A
leitura vai-se estendendo para diante, sem que haja um
fim à vista. Chega disso!15

Dois dias depois, volta a falar sobre o “tédio pavoroso da litera-


tura sobre os sonhos, que, mesmo assim, precisa ser lida”.16
13 MASSON, 1986, p. 325.
14 Ibid., p. 333.
15 Ibid., p. 336.

impulso 41 nº26
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Em 28/05/1899, após meses de intensa batalha na elucidação dos


problemas relativos aos processos psíquicos nos sonhos e nos sintomas
na escrita do capítulo VII, Freud retoma a tarefa de escrever o capítulo
I. Mas agora sente-se vitorioso: “o livro do sonho está tomando forma,
de repente, sem nenhuma motivação especial, só que, desta vez, tenho
certeza dele. Decidi que não posso usar nenhum dos disfarces, nem
dar-me o luxo de abrir mão de coisa alguma, pois não sou rico o bas-
tante para guardar só para mim minha melhor descoberta e, prova-
velmente, a única duradoura”.17
Após a derradeira constatação, o problema da literatura científica
sobre os sonhos é encarado de frente por Freud. Está convencido que
não há motivo para emperrar nela:

Infelizmente, só para assustar, os deuses puseram a li-


teratura [sobre o sonho] antes da exposição. Na pri-
meira vez, fiquei emperrado nela. Desta vez, abrirei ca-
minho à força até o fim; de qualquer maneira, não há
nada de importante ali. Nenhum outro de meus tra-
balhos foi tão completamente meu, meu próprio mon-
te de esterco, meu arbusto e, ainda por cima, uma
nova especies mihi.18

Em fins de junho, afirma que o capítulo I estava mais extenso do


que fora previsto, “e não será agradável, nem frutífero. Contudo, é um
dever prepará-lo. Nesse processo, não passei a gostar mais do assun-
to”.19 No dia 22 desse mês, Freud registra o término do trabalho sobre
a literatura especializada e apresenta como Introdução ao livro do so-
nho: “Ela foi escrita, constituiu uma tarefa amarga para mim e não
saiu muito satisfatória. A maioria dos leitores ficará retida nesse mata-
gal espinhoso e jamais chegará a ver a Bela Adormecida por trás de-
le”.20 Dias depois, volta afirmar que “esse capítulo se revelará uma
dura prova para o leitor”.
Após ter enviado em 06 de agosto o capítulo para Fliess apreciar,
partilham o seguinte: “(...) esse primeiro capítulo é capaz de impedir
que uma porção de leitores prossiga para os capítulos subseqüentes”.21
Freud explicita que o capítulo sobre a literatura foi uma exigência de
16 MASSON, 1986, p. 337.
17 Ibid., p. 354.
18 Ibid., p. 354.
19 Ibid., p. 358.
20 Ibid., p. 363.
21 Ibid., p. 366.

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Fliess e que o realizou a contragosto. Ao final, ambos não gostaram


nem um pouco do resultado.
Freud apresenta uma metáfora bem apropriada para o leitor de
seu livro:

A coisa foi planejada segundo o modelo de um passeio


imaginário. No começo, a floresta escura dos autores
(que não enxergam as árvores), irremediavelmente
perdido nas trilhas erradas. Depois, uma trilha oculta
pela qual conduzo o leitor – meu sonho exemplar,
com suas peculiaridades, pormenores, indiscrições e
piadas de mau gosto – e então, de repente, o planalto
com seu panorama e a pergunta: em que direção você
quer ir agora?22

Afinal, o que há de tão pantanoso no capítulo I, capaz de afastar


o leitor? Se a literatura especializada não fornece elementos sobre os
aspectos essenciais dos sonhos, por que Freud decidiu realizar um ex-
tenso trabalho de pesquisa bibliográfica? O que Freud pôde depreen-
der da leitura que realiza das obras selecionadas? O capítulo é apre-
sentado “à guisa de prefácio, uma revisão do trabalho empreendido
por autores anteriores sobre o assunto, bem como a posição atual dos
problemas dos sonhos no mundo da ciência, visto que, no curso de
meu exame, não terei muitas ocasiões de voltar a esses tópicos”.23
Quais são os tópicos que Freud recorta do que leu? Após demar-
car a visão pré-científica dos sonhos na Antiguiade Clássica, apresenta
as idéias dos especialistas que publicaram sobre os sonhos no decorrer
do século XIX. Agrupa os autores em torno de oito tópicos, na seqüên-
cia: a relação dos sonhos com a vida de vigília; o material dos sonhos
– memória nos sonhos; os estímulos e as fontes dos sonhos; por que
nos esquecemos dos sonhos após o despertar?; as características psi-
cológicas distintivas dos sonhos; o sentido moral nos sonhos; teorias
do sonhar e de sua função; e as relações entre os sonhos e as doenças
mentais. Estabelecidos os tópicos, Freud nomeia um a um os autores
que contribuíram para esclarecer o que está em questão. Há uma ex-
tensa bibliografia, que foi revista a cada nova edição do livro.
A seleção desses tópicos demarca o campo da problemática iden-
tificada no Projeto de 1895. A conclusão do percurso na literatura é
enunciada desde o segundo parágrafo:
22 MASSON, 1986, p. 366.
23 FREUD, 1987, p. 39.

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(...) apesar de muitos milhares de anos de esforço, a


compreensão científica dos sonhos progrediu muito
pouco (...). Nesses escritos, dos quais consta uma rela-
ção ao final de minha obra, encontram-se muitas ob-
servações estimulantes e uma boa quantidade de ma-
terial interessante relacionado ao nosso tema, porém
pouco ou nada que aborde a natureza essencial dos so-
nhos ou ofereça uma solução final para qualquer de
seus enigmas.24

São mais de 70 páginas dedicadas à literatura que, segundo o au-


tor, em nada contribuem para estabelecer a natureza essencial dos so-
nhos: realização de desejos. Nelas podemos depreender o Freud leitor
e incansável decifrador de enigmas, que cumpriu a tarefa de um re-
censeamento bibliográfico, transformando-se em exigência para qual-
quer interessado no tema.

CONCLUSÃO
Na Conferência V, “Dificuldades e Abordagens Iniciais”, de 1916,
Freud situa com precisão os problemas relativos à literatura científica
sobre os sonhos. Estabelecendo a premissa que sustenta A Interpretação
dos sonhos, pergunta: “qual deve ser a verdadeira origem do desprezo
no qual são mantidos os sonhos nos círculos científicos? Acredito que
se trata de uma reação contra a supervalorização dos sonhos em épocas
antigas”.25 A posição científica sobre os sonhos é marcada pelas teorias
fisiológicas, que não consideram os sonhos como atos psíquicos, mas
sim como expressão de estímulos somáticos.
Freud admite que “os estímulos incidem sobre a mente e ela
deve reagir a eles. Um sonho, pois, é a maneira como a mente reage
aos estímulos que a atingem no estado de sono”.26 Isso prova que a
vida psíquica não consegue dormir, isto é, está em atividade ininter-
rupta. Por outro lado, a linguagem predominante nos sonhos é com-
posta de imagens visuais, e isso os distingue da atividade de vigília, ou
seja, dos processos de pensamento por meio de palavras. Aqui ficam
estabelecidos os dois processos psíquicos constitutivos: o primário e o
secundário.
Os sonhos são representantes dos processos primários, ao passo
que os pensamentos de vigília são secundários. Eis o argumento deci-
sivo para sustentar a analogia entre os sonhos e os sintomas:
24 FREUD, 1987, p. 39.
25 Idem, 1976, p. 108.
26 Ibid., p. 112.

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(...) os sonhos, por si mesmos, são um sintoma neuró-


tico que nos oferece, ademais, a inestimável vantagem
de ocorrer em todas as pessoas sadias. Na verdade, su-
pondo-se que todos os seres humanos fossem normais
contanto que sonhassem, nós, partindo de seus so-
nhos, poderíamos chegar a quase todas as descobertas
a que nos levou a investigação das neuroses.27

A relação entre os sonhos e os sintomas neuróticos é estabelecida


como objetivo central do “Livro dos Sonhos” e as citações que fez de
Kant e Schopenhauer atestam que “o louco é um sonhador acordado”
e “os sonhos são uma loucura breve, e a loucura um sonho longo”. No
Prefácio à primeira edição de A Interpretação dos Sonhos, declara que
suas investigações mostram ser o sonho o primeiro membro de uma
classe de fenômenos psíquicos anormais, e faz a seguinte advertência:
“(...) quem quer que tenha falhado em explicar a origem das imagens
oníricas dificilmente poderá esperar compreender as fobias, obsessões
ou delírios, ou fazer com que uma influência terapêutica se faça sentir
sobre eles”.28
Convém pôr em cena a advertência de Freud no festim das
comemorações do centenário da obra fundadora da psicanálise, e re-
tomar, assim, as rupturas que a psicanálise realiza nos discursos cientí-
ficos de seu tempo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREUD, S. [1895] Projeto de uma Psicologia. Trad. Osmyr Faria Gabbi Jr. Rio de
Janeiro: Imago, 1995.
FREUD, S. L’Interprétation des Rêves. Traduit en français par I. Meyerson, nouve-
lle édition augmentée et entièrement révisée par Denise Berger, 7ª tirage,
Press Universitaires de France: Paris, 1993.
FREUD, S. [1900] A Interpretação dos Sonhos. Edição Standard Brasileira das
Obras Completas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Imago, 1987, v. 4-5.
FREUD, S. [1916-1917]. Conferências Introdutórias sobre Psicanálise Edição Stan-
dard Brasileira das Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. 15.
JONES, E. Vida e Obra de Sigmund Freud. Trad. Marco Aurélio de Moura Mattos.
Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970, v. 1.
MASSON, J.M. [1887- 1904] Correspondência Completa de Sigmund Freud para
Wilhelm Fliess. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Imago, 1986.

27 FREUD, 1976, p. 105.


28 Idem, 1987, p. 29.

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A Interpretação na
Psicanálise Lacaniana
Interpretation in
Lacanian Psychoanalysis REGINA CLÁUDIA MELGES PUGLIA
Psicóloga formada pelo Instituto
de Psicologia (USP). Psicanalista,
RESUMO – O artigo apresenta, em uma visão lacaniana, as transformações ocor- membro-correspondente da
ridas com alguns conceitos psicanalíticos, a partir de Freud, relacionados ao pro- Escola Brasileira de Psicanálise-SP
pusch@sti.com.br
cesso analítico e à interpretação. Discute a função do analista enquanto intérprete.
Faz distinção entre psicoterapia e psicanálise, apontando algumas de suas diferen-
ças.
Palavras-chave: Lacan – psicanálise – interpretação – processo analítico.
ABSTRACT – This article presents a Lacanian perspective on the changes that have
occurred since Freud’s statement of principles in some psychoanalytical concepts
related to both the analytical process and interpretation. It also discusses the func-
tion of the analyst as an interpreter, distinguishing psychotherapy from psychoa-
nalysis.
Keywords: Lacan – psychoanalysis – interpretation – analytical process.

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INTRODUÇÃO

A psicanálise hoje em dia é bem diferente daquela que Freud


exercia em seu tempo. Tanto a prática como o contexto mu-
daram. Lacan, porém, nunca deixou de recorrer a Freud e a
seus ensinamentos, sempre deles partindo para então propor algo no-
vo. Atualmente, nós, analistas, temos de fazer movimentos duplos e
até triplos para que a psicanálise se mantenha e seja eficaz, isto é, pre-
cisamos recorrer a Freud, a Lacan, a teóricos e a psicanalistas de nossa
época, para daí propormos alguma modificação em nossa prática ana-
lítica, que os tempos presentes exigem.
O que se percebe com freqüência é que os sujeitos que sofrem
procuram encontrar um Outro que lhes dê respostas para o seu sofri-
mento. Em nossa sociedade não faltam alternativas e práticas que se
propõem a fornecer respostas prontas. Para Lacan, entretanto, o ana-
lista é o único que tem a oportunidade de “responder”. E aqui se vê
como Lacan é cauteloso: “não é certeza, não é garantido, mas o ana-
lista é o único que tem a chance de ser intérprete”. Mas o que é ser
intérprete, como o analista interpreta, a partir do quê?

ENTREVISTAS PRELIMINARES E ANÁLISE


Um sujeito dirige-se ao consultório do analista numa posição de-
mandante e espera, num primeiro momento, que este lhe dê soluções
imediatas, que eliminem seu mal-estar. Chega numa posição de ques-
tionamento por estar chocado com algo do Real com que se defron-
tou, quer se trate de um acontecimento quer da insistência de um sin-
toma. Deseja saber o que a psicanálise pode oferecer contra aquilo que
está lhe ocorrendo, contra o seu sofrimento. Pergunta ao analista: “Vo-
cê sabe o que eu tenho?”; ao que o analista responde: “Sim”. De al-
guma forma existe aí uma promessa, e o analista só “promete” por sa-
ber que a resposta é anterior à pergunta.
Ele propõe ao analisando a regra fundamental da psicanálise:
“diga o que lhe vier à mente, fale sem restrições”. E essa regra é fun-
damental porque é daí que a resposta emergirá.
O que se busca nas entrevistas preliminares, com a introdução da
regra fundamental, é identificar a consistência da demanda e qual a es-
trutura do sujeito. O texto do analisando não traz a resposta completa,
de modo linear, mas, os elementos da resposta que o analista saberá
pescar. O analista escuta na fala do sujeito o que ele não pede e nem
pode pedir, o que ele deseja, o peso de seu gozo, o peso pulsional que

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está em jogo, e visa deslocar o sujeito da posição na qual tinha certeza


sobre o objeto.
O diagnóstico estrutural é fundamental, nesse momento, e só
será possível estabelecê-lo na relação transferencial. As considerações
que faço neste texto são aplicáveis apenas à neurose. Tanto a psicose
quanto a perversão requerem que manejos na transferência sejam fei-
tos, com modificações importantes, para que as análises de sujeitos
com essas estruturas se tornem possíveis. Todos os atos do analista le-
varão em conta a singularidade de cada caso. Os casos de depressão,
toxicomania, anorexia, bulimia e alcoolismo serão considerados a par-
tir da estrutura do sujeito em questão.
O sujeito, ao ocupar uma nova posição inconsciente ao mesmo
tempo vinculada à verdade e ao gozo, promove a retificação subjetiva,
e se implica em seu dizer, assumindo a responsabilidade por suas es-
colhas. Suas queixas se transformam em sintoma analítico e então a
análise, efetivamente, tem início. O sujeito, estando implicado no dis-
curso analítico, defronta-se com a verdade na qual acreditava até en-
tão, e a põe em jogo nas relações que estabelece com a ordem simbó-
lica. A associação livre, que não é da ordem da asserção, supõe e con-
firma, durante este século de prática, que a resposta está escrita no in-
consciente. Nos equívocos da língua surge a denúncia de um gozo
instalado. Nos lapsos, nos chistes,1 nos sonhos, no sintoma, se eviden-
cia a dimensão da verdade e do gozo e, a partir deles, a série de sig-
nificantes primordiais, o desenvolvimento da cadeia significante, tão
particular a cada sujeito, a relação do sujeito com o vazio, com o Real,
com o objeto-causa mais além das identificações.
Para o sujeito, que se dirige ao analista – sujeito suposto saber –
e que com ele estabelece uma relação transferencial, esse analista trans-
mite uma mensagem: “É você quem detém o texto e as respostas que
procura, mas sou eu que o dirigirei a elas, pois encontra-se aqui o seu
analista”. Em “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”,
Lacan afirma: “(...) é pelo que o sujeito imputa de ser (ser que está em
outro lugar) para o analista que é possível o alcance da interpretação”.2

FANTASIA E SINTOMA
Freud observou como o sujeito não podia dizer nada sobre sua
fantasia, uma vez que falar sobre ela lhe causa vergonha e vai contra
seus valores ideais. Dificuldade esta que só poderia ser resolvida atra-
1 Ver também alguns comentários sobre a construção de chistes em FREUD, 1969c, p. 280s.
2 LACAN, 1998a, p. 591.

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vés de uma nova abordagem, que será proposta por Lacan, abordagem
fundada na diferenciação dos três registros: o Real, o Simbólico e o
Imaginário. Com a conceituação dos três registros, a fantasia se trans-
formou também num conceito fundamental para o avanço da psica-
nálise.
Freud, em seus últimos textos, e em particular em Análise Ter-
minável e Interminável, se perguntava o que fazer com a inércia frente
ao trabalho analítico. A questão da fantasia comprometia a psicanálise
quanto a seu fim e quanto a seu estatuto em relação a outras discipli-
nas. Lacan elaborará para a fantasia um matema fundamental. Este
matema aparece como um dos elementos que estruturam a direção do
tratamento no discurso analítico. Ao introduzir o objeto Real (a) na
fantasia ($<>a)[articulação do sujeito barrado com o objeto causa do
desejo (para sempre perdido)], Lacan dá à fantasia uma causalidade so-
bre o sintoma.
Lacan, durante seu ensino, fez inúmeras modificações na sua for-
ma de pensar o funcionamento psíquico. Num primeiro momento,
pensou que a imagem, e não o significante, atraía a libido. Haveria
uma inércia da libido articulada à imagem bloqueando o funciona-
mento da cadeia significante. Foi o momento da predominância do
Imaginário em seu ensino.
Num segundo momento, Lacan abordou o aspecto do gozo,
vendo que havia uma conexão direta entre significante e libido. O que
atraía a libido, então, seria uma imagem significantizada, a qual cha-
mou de identificação fálica. Existiria um significante especial, que no
Simbólico, atrairia o investimento libidinal. Lacan fez do falo esse sig-
nificante investido pelo fator quantitativo da libido.
A terceira maneira que Lacan pensou essa relação significante/li-
bido trouxe a fantasia como o lugar onde estes se juntam, pois a fan-
tasia é uma articulação significante na qual, de um lado, está presente
o sujeito dividido ($) e, de outro, a quantidade libidinal (a), sendo a
pulsão o articulador deles ($<>a).
A única forma de fazer com que o sujeito se desembarace desse
gozo presentificado na imagem, no significante e na fantasia, é dar
condições para que, em sua análise, ele ultrapasse o Imaginário, dei-
xando cair as identificações idealizadas, e atravesse a fantasia que cons-
truiu. É justamente na fantasia que incide o destino do investimento li-
bidinal, e o final da análise depende do desinvestimento libidinal da
fantasia.
Lacan, no Seminário 11: os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise, não inclui a fantasia entre os quatro conceitos fundamen-

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tais da psicanálise. Paradoxalmente, é um termo muito utilizado por


ele. A fantasia se opõe às formações inconscientes. As fantasias não são
decifradas da mesma maneira: não constituem um texto organizado
pelas leis de codificação do inconsciente. A oposição entre o sonho (via
régia do inconsciente) e as fantasias conscientes permitiu a Lacan criar
esse novo conceito, ao qual deu ênfase durante todo seu ensino. Fan-
tasia e sintonia, entretanto, têm algo em comum: ambos surgem a par-
tir do enigma. Freud nos ensina que ao longo da infância o sexual faz
enigma para a criança. O enigma surge a partir de um gozo pulsional,
vivido no corpo e impossível de dizer. O enigma leva as crianças a
construírem teorias sexuais que têm um lugar capital na construção
das fantasias e no surgimento de sintomas. É no deciframento dos sin-
tomas e na construção das fantasias, na análise, que encontramos res-
tos destas teorias infantis, construídas a partir de um postulado de go-
zo, ainda ativas no inconsciente.
A trajetória desenvolvida por Lacan para a fantasia ilustra, de
modo exemplar, o movimento que animou seu ensino, conduzido
pela via do matema. O matema foi um artifício inventado por Lacan
bastante eficiente, pois permite que se vá do universal ao particular, do
mito à estrutura. Desse modo, do mito freudiano organizador da fan-
tasia fundamental a partir da repressão originária, Lacan passa a uma
lógica da fantasia cujo esforço se centra em articular a castração com
o objeto-causa do desejo: objeto este necessário ao sujeito para ser –
apesar da falta-a-ser que o constitui – e a partir do qual se faz possível
um gozo para sempre parcial e a-sexual.
Na análise se pode aspirar a desmontar a fantasia, mas não a in-
terpretá-la. A fantasia não está submetida às leis da interpretação. Não
é interpretável, mas é pivô da interpretação, não na vertente dialética
que descansa na repetição significante, mas a partir do amor de trans-
ferência, em sua vertente de enigma, portanto, que reaviva a falta no
Outro. A fantasia fornece ao analista a chave do lugar que ele ocupa
para o sujeito, o lugar do Real. A intervenção do analista no discurso
do sujeito deve responder à necessidade de atualizar na transferência
a pergunta relativa ao desejo do sujeito. Porém, essa resposta não é do
significante, pois o significante leva consigo apenas a falta-a-ser, mas do
Real: é a fantasia que responde à pergunta do desejo.
O sujeito não se satisfaz com o que é. Por outro lado, sem dú-
vida, o que é, o que vive, seus sintomas mesmos, lhe dão satisfação.
Freud não dizia menos do que isso. Lacan o recorda dizendo: “(...) os
pacientes não se satisfazem, como se diz, com o que são. E, no entanto,
sabe-se que tudo o que eles são, tudo o que vivem, mesmo seus sin-

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tomas, depende da satisfação. (…) eles dão satisfação a alguma coisa.


Eles não se contentam com seu estado, mas, estando esse estado tão
pouco contentador, eles se contentam assim mesmo”.3 Sendo tão pou-
co contentáveis, se contentam. Lacan introduz nessa satisfação para-
doxal a categoria do impossível e, opondo o Real ao possível, define
precisamente o Real como esse impossível. Para Freud o Real aparecia
como obstáculo ao princípio do prazer: o Real estava ali, mas as coisas
não se ajustavam de imediato, mesmo tendo-as à mão. Lacan consi-
dera demasiado restritiva essa concepção de Real e, indo além do prin-
cípio do prazer, insiste na separação do conceito de Real do campo
desse princípio: por sua dessexualização, pelo fato de que sua econo-
mia admite algo novo que é da ordem do impossível, que concerne
também à relação sexual. De acordo com o aforismo lacaniano “não
há relação sexual”, isto é, não há, no inconsciente, a inscrição de sig-
nificantes capazes de fazer uma elaboração de saber sobre a relação en-
tre um homem e uma mulher. Isso quer dizer que não há complemen-
tariedade, falta um significante no Outro. O Outro como lugar da sin-
cronia significante é um lugar com uma fenda, um vazio, uma incom-
pletude. Não se pode representá-lo por um círculo que se fecha, pois
haverá sempre um espaço aberto, um buraco. Disso, aliás, Freud já fa-
lava em relação ao recalque original. Portanto, um significante falta no
Outro. Lacan o disse de muitas maneiras. É o que ele escreve com o
seu S(A/), é o que ele diz com sua fórmula “não há Outro do Outro”,
é o que ele expressa com sua proposição “a mulher não existe”. Falta
pois um significante (e o significante é o que representa o sujeito para
outro significante) que permitiria fundar uma relação entre dois signi-
ficantes. Não há gozo senão do um, gozo fálico.
O sintoma aparece como a tentativa realizada para invalidar a
proposição: “não há relação sexual”. O sintoma indica que há algo
que não funciona no Real, tanto que o neurótico encontra seu gozo no
sintoma, por pouca satisfação que exista nele.
Para Freud, somente poder-se-ia formar uma idéia da importân-
cia da descoberta que a interpretação dos sonhos teria para o funcio-
namento da vida mental ao se perceber que a construção onírica é “o
modelo segundo o qual os sintomas neuróticos se formam”.4 Num
primeiro tempo para Lacan, a concepção do sintoma como formação
inconsciente – num estatuto comparável ao do sonho, o lapsus ou o
chiste (em que o deciframento interpretaria a realização do desejo) –, é
3 LACAN, 1988, p. 158.
4 FREUD, 1976, p. 138.

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contemporânea às suas elaborações sobre a constituição do Eu através


do estádio do espelho. O sintoma se fazia palavra de uma verdade, de
um sentido reprimido (uma forma desviada de satisfação sexual).
Em 1953, em Função e Campo da Palavra e da Linguagem, La-
can já assenta o inconsciente do lado da linguagem (ele já havia de-
senvolvido o conceito de inconsciente estruturado como uma lingua-
gem) e a palavra ali articulada já não se sustenta no Imaginário, mas
sobre um sistema Simbólico. Lacan não reduzirá o sintoma exclusiva-
mente ao campo Simbólico. O laço mantido pelo sintoma com o Ima-
ginário, pelo menos através do corpo, e com o Real, enquanto impos-
sível de dizer, continuará sendo considerado, mas existirá uma supre-
macia do Simbólico na abordagem do sintoma.
Em RSI, Lacan define sintoma como “a maneira como cada um
goza do inconsciente”5 e afirma que o sintoma surge como resposta a
um gozo que o princípio do prazer não conseguiu assimilar. O gozo,
termo conceituado por Lacan, está do lado do objeto e se distingue do
desejo.
Para Lacan os sintomas têm constância, estabilidade e resistência,
e alguma relação com as funções do corpo. Ressalta que, em Freud,
Simbólico, Imaginário e Real são independentes e que justamente o
sintoma seria capaz de atar em nó essas três estruturas. Nos três regis-
tros encontram-se: ex-sistência, consistência e buraco. O sintoma,
como o quarto elemento, seria responsável pela amarração e diferen-
ciação dos três registros. O sintoma é a forma que o sujeito encontra
para “lidar” com a incompletude do significante, com o não poder di-
zer tudo.
A questão que se coloca na conclusão da análise é: como o su-
jeito pode se haver com o fator pulsional? E o que está em questão é
ainda a pergunta formulada por Lacan desde 1964, sobre o destino da
pulsão no final da análise: “como o sujeito, que atravessou a fantasia
radical, pode viver a pulsão?”.6 O sintoma, para Lacan dos anos 70,
toma o lugar da pulsão (em Freud o sintoma está entre o psíquico e
o somático), aparecendo como uma fixação significante da pulsão. No
sintoma, a pulsão aparece como cativa e aí apreende sua função sim-
bólica de falo. O sintoma vai além da fantasia e se refere ao corpo vi-
vificado pelo significante. O sintoma, após a travessia da fantasia, co-
loca-se como resto irredutível de gozo. Porém, não basta dizer que ao
sujeito resta seu modo de gozo. O que importa é a economia libidinal
5 LACAN, aula de 17/12/74.
6 Idem, p. 174.

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do sujeito, ou seja, a melhor maneira que o sujeito encontra para se ha-


ver com esse resto irredutível de gozo – é o que Lacan chamou de
identificação ao sintoma, o “saber fazer” com o sintoma, o Synthome,
do qual o sujeito não pode se livrar, e com o qual ele terá de conviver.
No final da análise ocorrerá a destituição subjetiva e o sujeito
passará a ocupar uma nova posição em relação ao Outro, haverá o
desvanecimento do Outro, desvanecimento da demanda: não há Ou-
tro que possa satisfazer a demanda, há uma falta originária que jamais
será suprida. O sujeito viverá com responsabilidade, encarregando-se
do que produz. A pulsão não cessará jamais de dividir o sujeito: é im-
possível separar-se disso, mas é perfeitamente possível viver como su-
jeito desidealizado, porém responsável pelo seu modo de gozo.

A INTERPRETAÇÃO
Freud, no início de suas descobertas, concebia a interpretação
dos sonhos e das formações inconscientes como a busca de um signi-
ficado, obtido apenas pelo próprio sonhador através das associações
que fizesse, que proporcionariam acesso a algum conteúdo recalcado,
oculto. O sujeito, com certeza, estabeleceria essas associações com o
que originasse diretamente de sua vida mental, de fontes que lhe eram
desconhecidas, derivadas provavelmente de algum complexo. Todo
trabalho interpretativo considerava que as lembranças que acometidas
ao sujeito a partir do sonho trazido para a análise eram dependentes
de idéias e de emoções inconscientes. O trabalho interpretativo visava
tornar consciente o inconsciente. Para Freud, a elaboração onírica7 é
o trabalho que o sujeito faz para transformar o sonho latente em so-
nho manifesto. Para tanto, lança mão de condensações, deslocamentos
e transformações regressivas de pensamentos em imagens. O trabalho
que opera em sentido oposto e que é realizado numa sessão de análise,
em que a transferência está instalada, é o trabalho interpretativo. Freud
nos alerta, entretanto, que, “quanto mais o sujeito adquire conheci-
mento neste campo, tanto mais obscuros serão seus sonhos”.8 A cen-
sura leva em conta o saber adquirido com a interpretação dos sonhos.
O trabalho de elaboração do sonho incorpora esse saber, o que pro-
voca um fechamento do inconsciente, ou uma alienação do sujeito no
significante.
Lacan, em “Função e campo da palavra e da linguagem em psi-
canálise”, retoma uma afirmação feita por Freud na Traumdeutung: “o
7 A totalidade do cap. VI de A Interpretação dos Sonhos (mais de um terço de todo o livro) dedica-se ao
estudo da elaboração onírica (FREUD, 1969a, p. 297s).
8 FREUD, 1969b.

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sonho tem a estrutura de uma frase, ou melhor, atendo-nos à sua letra,


de um rébus (enigma)”.9
Esse enigma está instalado no inconsciente e o inconsciente pre-
cisa de tempo para se manifestar, necessitando, para tanto, ser provo-
cado. Ele não tem hora marcada. O inconsciente nem sempre fala, às
vezes também descansa. Lacan considera que ocorre um processo de
abertura e fechamento do inconsciente. Assim, não há de se trabalhar
com o tempo cronológico nas sessões de análise, e sim com o tempo
lógico do sujeito, que leva em conta momentos fecundos do incons-
ciente desse sujeito. Ao analista cabe o ato analítico, desvinculado do
tempo standartizado, definido a priori.
A interpretação, numa visão lacaniana, pode visar três pontos: o
significado; fazer aparecer significantes que estavam ocultos; e a inter-
pretação do “dizer”, e não dos “ditos”. Lacan acaba considerando que
a interpretação fundamental, aquela que incide, provocando efeitos na
estrutura do sujeito, só deve ocorrer no nível “do dizer”. Com Lacan
fica evidente que a interpretação deve ir além “do que se diz”. O que
cabe ser interpretado não são os ditos do sujeito, mas “o dizer”.
Para que fique bem claro a qual interpretação se está aqui refe-
rindo, talvez seja preciso diferenciar psicanálise de psicoterapia. Pode-
se até afirmar que com a psicanálise se consegue efeitos terapêuticos,
mas com finalidades bem distintas.
A psicoterapia tem como meta restaurar a “base abalada” do su-
jeito, restaurar seu ego. Se um sujeito busca uma psicoterapia ou uma
análise é porque sua divisão subjetiva está afetada, e o psicanalista pre-
cisa estar advertido disso. Com a psicoterapia o sujeito conseguirá ape-
nas que sua fantasia seja substituída por outra, o que permitirá que sua
divisão e castração sejam acobertadas por novas fantasias carregadas
de significações.
Para Lacan, assim como para Freud, a clínica é soberana e sem-
pre antecede a teoria. Se assim não fosse, a psicanálise estaria estagna-
da. Se a teoria fosse anterior à clínica, a psicanálise se orientaria pelo
logos, pelo conhecimento teórico inferido a priori. A psicanálise laca-
niana se orienta pelo Real em jogo na posição que cada sujeito, a seu
modo, ocupa.
No texto L’Étourdit Lacan afirma que a psicanálise tem meta
oposta à da psicoterapia. O objetivo da psicanálise não é eliminar a
angústia, nem fortalecer o ego do sujeito, tampouco adaptar o sujeito
à realidade. A psicanálise visa, justamente, que o sujeito se separe do
9 LACAN, 1998b, p. 238.

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objeto que sustentava sua “verdade” e com o qual tamponava a falta.


A análise busca que o sujeito investigue, no atravessamento ou na des-
construção de sua fantasia, o gozo e a inconsistência do Outro, dis-
tanciando-se da fantasia por ele construída, e que passe a conviver com
o seu modo de gozo, conquistando, no final de sua análise, um saber
sobre a verdade.
Durante este século de existência, a psicanálise ficou, e ainda es-
tá, à mercê das respostas que os psicanalistas possam dar. Os psicana-
listas são responsáveis não apenas pela posição do inconsciente, mas
sobretudo pela existência e pela manutenção do discurso analítico. O
analisando não é responsável pelo discurso analítico. Evidentemente
ele tem um trabalho a fazer: manter a existência mesma desse discurso.
Porém, cabe ao analista sustentar o laço analítico (suportando a trans-
ferência) e a função da análise (fazer o sujeito se defrontar com a cas-
tração, com sua divisão subjetiva e com a posição estrutural que ocupa
em seu inconsciente). O analista só consegue realizar essa tarefa levan-
do em conta sua análise pessoal e seu desejo decidido, onde a Ética do
bem-dizer da psicanálise está evidenciada.
Se formos rigorosos com as definições de Lacan, a interpretação
é do dizer sem dito, em que não se faz o uso da palavra, e sim da letra,
e esse dizer se conecta ao próprio dizer do analisando. Para Lacan o
analista se auto-elimina, se subtrai em seu discurso, apesar de pagar
com seu ser. Em L’Étourdit, Lacan chegou a expressar que a interpre-
tação deveria ser exclusivamente um equívoco, mantendo essa tese até
o final de seu ensino. Com a interpretação como equívoco, consegue-
se que uma via fique aberta para diversos sentidos. O equívoco é um
instrumento não sugestivo, que deixa aberta a escolha do sentido que
o analisando queira dar. No nível da prática psicanalítica, pode-se con-
siderar que essa forma de interpretar evitaria o discurso do mestre e
que a maneira de ver do analista não seria imposta. A afirmação que
Lacan faz é: “nada opera [no inconsciente] a não ser o equívoco sig-
nificante”.10 É possivel enumerar três tipos de equívocos: equívoco
por homofonia, equívoco gramatical e equívoco dos paradoxos.
Colette Soler cita diferentes maneiras de interpretar no decorrer
de uma análise.11 Remete a Lacan, que fala em interpretação desper-
cebida e também em interpretação involuntária, uma vez que o ana-
lista pode interpretar até com o seu humor, com sua expressão, com
a cara que tem, com a maneira como se veste etc.
10 LACAN, 1973, pp. 11-12.
11 SOLER, 1995, p. 28.

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O que faz com que uma intervenção seja interpretação? Toda in-
terpretação provoca efeitos, é operante. Mas somente “no depois”
(après-coup) se saberá quais serão esses efeitos.
Lacan não é diretamente contra a interpretação significativa.
Apenas afirma não ser ela capaz de resolver de modo algum o enigma
do sujeito: ela apenas o desloca. O que não quer dizer que seja proi-
bida ou de todo descartada. Ela pode ser útil. Para Lacan (Seminário
11), o que uma interpretação como significação possui de mais inte-
ressante não é a significação por ela produzida, mas os significantes pe-
los quais é formulada. Sua conclusão é a seguinte: “o interesse da in-
terpretação significativa é o decifrar, fazer aparecer um significante que
estava faltando ao sujeito, mas que se encontrava latente em seu dis-
curso”.12
Lacan evoca a pontuação como um modo de interpretação. A
pontuação garante a significação, marcando uma enunciação do sujei-
to em particular.
O corte da sessão, como oposto à pontuação, recorta as signifi-
cações, entalha-as, esculpe-as. Interromper o sujeito no meio de uma
frase impedindo que as significações, que as explicações proliferem,
causa um efeito de perplexidade e até de desagrado. Para lançar mão
desse modo de interpretação é preciso levar em conta as diferenças in-
dividuais. Num sujeito que tem dificuldade em falar ou naquele que
está muito aderido à significação, pode não provocar os efeitos dese-
jados. O intuito é provocar um efeito non sense. O não-senso possui
a sua fecundidade.
Outra maneira de intervir é por alusão, um enunciado que par-
ticipa do silêncio, que deixa a entender sem formular, que designa, que
mostra. Lacan também fala em recorrer à polissemia, à pluralidade de
sentidos.
Em seu Seminário 17: o avesso da psicanálise, Lacan fala em cita-
ção, que consiste em sublinhar algo enunciado pelo sujeito, como se se
colocasse aspas em seu dizer; e também em enigma: um enunciado
sem mensagem, um dizer sem proposição.
O que esses modos de interpretar têm em comum é um “dizer
nada”. O que não significa que eles nada profiram. O dizer do analista,
na interpretação, deve ser esquecido na medida em que é silencioso.
Lacan afirma que o discurso do analista é um discurso sem palavras.
Pela interpretação, conduz-se o sujeito, no percurso da experiência
12 LACAN, 1988, p. 231.

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analítica, em direção ao limite da palavra, ao impossível de dizer. A in-


terpretação aponta para a divisão do sujeito, para sua falta-a-ser.
Se quiséssemos inventar uma fórmula para o dizer da interpre-
tação, segundo Collete Soler, ela seria: “Você fala sozinho, você está só
com seu gozo; portanto, exatamente o contrário de uma promessa de
diálogo”.13

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREUD, S. A Interpretação dos Sonhos. Edição Standart Brasileira das Obras Psico-
lógicas Completas, Rio de Janeiro: Imago, 1969a, v. 5.
_________. Análise Terminável e Interminável. Edição Standart Brasileira das
Obras Psicológicas Completas, Rio de Janeiro: Imago, 1969b, v. 23.
_________. Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente. Edição Standart Brasi-
leira das Obras Psicológicas Completas, Rio de Janeiro: Imago, 1969c, v. 8.
_________. O Uso da Interpretação dos Sonhos na Psicanálise. Edição Standart
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de
Janeiro: Imago, 1969d, v. 5.
_________. Conferências Introdutórias sobre a Psicanálise, Sonhos. Livro 21,
Pequena Coleção das Obras de Freud (extraída da edição Standart Brasi-
leira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud). Rio de Janeiro:
Imago, 1976.
LACAN, J. O Seminário, Livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1992.
_________. A direção do tratamento e os princípios de seu Poder. In: Escritos. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1998a.
_________. Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise. In: Escri-
tos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998b.
_________. O Seminário, Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicaná-
lise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
_________. L’Etourdit. Scilicet, nº 4. Paris: Seuil, 1973.
_________. RSI (Real, Simbólico e Imaginário). Aula de 17/12/74. Paris. [Seminá-
rio inédito]
SOLER, C. Interpretação: as respostas do analista. Opção Lacaniana, São Paulo,
(13), 1995.

13 SOLER, 1995, p. 34.

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Um Método Sobre
o Discurso, ou a
Metáfora Opaca
A Method on Discourse
or the Opaque Metaphor FRANKLIN WINSTON GOLDGRUB
Mestre em Filosofia e doutor em
Lingüística pela PUC-SP. Professor
da Faculdade de Psicologia da
PUC-SP. Área de atuação: Psicanálise.
sanlorenzo@mail.com
RESUMO – O presente texto propõe uma reflexão sobre o método psicanalítico,
primeiramente a partir da distinção entre dois procedimentos geralmente indife-
renciados, a análise de conteúdo e a interpretação, que visam respectivamente a
causa (do sintoma) e o sentido (do discurso). Na seqüência, a interpretação é de-
finida como “procedimento de desmetaforização”; para tanto, são desenvolvidos
os conceitos de metáfora transparente e de metáfora opaca, ou discursiva. A res-
pectiva argumentação se baseia numa releitura da teorização freudiana acerca do
sonho e na crítica à concepção de metáfora elaborada por Jacques Lacan.

Palavras-chave: método – interpretação – metáfora.

ABSTRACT – This article proposes a discussion on the psychoanalytical method,


starting from the distinction between two generally undistinguished procedures,
content analysis and interpretation, that seek causation (of symptom) and sense (of
speech) respectively. Next, interpretation is defined by means of “demetaphoriza-
tion” which leads to the development of the concepts of transparent and opaque
(or discursive) metaphor. The respective argumentation is based both upon a new
reading of Freudian theorization on dreams and a critic of the Lacanian concept
of metaphor.

Keywords: method – interpretation – metaphor.

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INTRODUÇÃO
E, no entanto, a interpretação é o ato pelo qual se re-
conhece o analista; podemos mesmo nos perguntar o
que mais ele poderia fazer. Não obstante, essa questão
é particularmente negligenciada. Ela só foi aprofunda-
da a propósito dos sonhos, e isso também pode colo-
car muitos problemas curiosos...1

E ntre as várias reflexões a que convida a efeméride centenária


d’A Interpretação dos Sonhos, há uma que parece imprescin-
dível. Trata-se da questão do método psicanalítico. Efetiva-
mente, quanto à teoria, a teoria do sujeito, o seu prosseguimento se
deu sem interrupção, tanto sob a pena de Freud quanto na obra de
seus contemporâneos e sucessores. Basta mencionar os nomes de
Abraham, Ferenczi, Reich, Klein, Winnicot, Bion, Lacan, Laplanche,
os Mannoni, Dolto e Aulagnier para ter uma idéia do quanto as pri-
meiras descobertas foram estendidas e aprofundadas, sobretudo (mas
não apenas) nos territórios da infância e da psicose. Tudo leva a crer
que há um descompasso, uma defasagem enorme entre o desenvolvi-
mento da teoria do sujeito e o da teoria do método; razão que talvez
explique a constante invasão da prática psicanalítica por intervenções
fundadas em hipóteses teóricas.
Com referência à epistemologia e à ética, Lacan encarregou-se da
difícil empresa de desvencilhar a psicanálise das amarras que a pren-
diam ao enfoque darwiniano, responsável, entre outros efeitos, pela
tendência ao adaptacionismo presente em certas abordagens, como a
do culturalismo em voga nos Estados Unidos. A aproximação com a
revolução promovida por Saussure em lingüística, que levou à redefi-
nição do inconsciente como linguagem, operou profunda transforma-
ção na teoria do sujeito e repercutiu igualmente nas diretrizes da for-
mação do analista. Conseqüentemente, a pauta da reformulação laca-
niana não poderia deixar de incluir a questão metodológica.
Entretanto, com relação a esse último aspecto, cabe afirmar que
a contribuição da escola francesa não cumpriu a promessa de fazer
avançar a compreensão do que o termo interpretação sempre conser-
vou de enigmático, desde o seu aparecimento no próprio título da-
quele que talvez seja o livro mais impactante de Freud. Lacan passou

1 MANNONI, 1982, p. 82.

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sem escalas da crítica à alarmante precariedade da literatura psicana-


lítica dedicada ao tema, crítica consubstanciada num texto apimentado
que deplorava a notável fragilidade das definições propostas,2 para a
desautorização, década e meia depois, do próprio procedimento in-
terpretativo, como é possível depreendê-lo da prática freudiana. Sem
escalas: no artigo de 1958 a interpretação é valorizada e se lamenta seu
abandono ou secundarização com relação à transferência;3 quatorze
anos depois, em L’Etourdit, ela é redefinida pelos procedimentos da
pontuação, da escansão e do corte, operações que desde então tipifi-
cam o modo de intervenção lacaniana. Quer aceitemos ou questione-
mos tal emprego do termo – Lacan é notoriamente conhecido pela
torção que imprime aos conceitos dos quais se apropria –, é inegável
que esse termo difere totalmente do procedimento descrito n’A Inter-
pretação dos Sonhos.
Nessa trajetória, fica patente uma lacuna: Lacan não explicita,
em nenhum momento, o que entende por concepção freudiana do
procedimento interpretativo. Pode-se estender tal afirmação à literatu-
ra psicanalítica como um todo. Isso não ocorre por acaso. Se o livro
cujo centenário comemoramos é pródigo em exemplos que descrevem
como o enigmático conteúdo onírico se transmuta no mais compreensí-
vel dos relatos, graças aos efeitos não menos enigmáticos resultantes da
associação livre e da atenção flutuante, é preciso reconhecer que nas pá-
ginas do clássico freudiano se encontra tudo, menos uma teoria do mé-
todo interpretativo. Que tal afirmação possa parecer surpreendente se
deve a pelo menos dois motivos. O primeiro decorre de uma confusão
habitual, a de tomar as regras técnicas estipuladas para interpretar o
sonho por uma teoria que dê conta dessa ainda inexplicável proprie-
dade da linguagem, a saber, a simultaneidade de seus níveis manifesto
e latente. O segundo está ligado à suposição de que a descrição das
operações denominadas pela locução “elaboração onírica” constitua
implicitamente uma teorização do método interpretativo. Discordare-
mos dessa suposição assinalando que, se de fato a regra fundamental
cria as condições para que a impressão de absurdo produzida pelos
efeitos do deslocamento, da condensação e da figurabilidade4 seja re-
vogada pela decifração, é precisamente o ato interpretativo, ou seja, a
passagem da significação ao sentido graças a certo tipo de escuta, que
permanece inexplicado e misterioso.
2 A Direção do Tratamento e os Princípios de seu Poder (1958).
3 “A transferência, nessa perspectiva, torna-se a segurança do analista e a relação com o real o terreno em
que se decide o combate. A interpretação, adiada até a consolidação da transferência, fica desde então
subordinada à consolidação desta” (LACAN, 1998, p. 602).
4 A elaboração secundária, quarta operação, visa precisamente racionalizar o conteúdo onírico.

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Uma das principais conseqüências dessa lacuna se revela nas di-


ferentes diretrizes estipuladas pelas correntes psicanalíticas com
referência ao processo de formação do psicanalista, que refletem, por
outro lado, concepções divergentes acerca do que seja o ‘tratamento’,
tanto em termos de procedimento, como de critérios de avaliação ou
de finalidade. Mesmo assim, e paradoxalmente, todas concordam em
impor ao candidato a regra da obrigatoriedade da análise. Acentua-se,
assim, a importância da vivência por assim dizer “iniciática” (cf. crítica
de Lévi-Strauss, aproximando a psicanálise do xamanismo), do prose-
litismo e da filiação corporativista às expensas do método; estratégia
prudente, aliás, já que deitar num divã é algo tão certo como a ma-
ternidade, enquanto o domínio do método por parte do candidato,
como a paternidade, permanece inafiançavelmente incerto. Situação
que atribuiremos igualmente à inexistência de uma teoria da interpre-
tação.5 O movimento lacaniano chega a uma espécie de demonstração
por absurdo dos abusos embutidos nesse requisito ao propor, como
critério de uma boa análise, a passagem da condição de analisando
para a de analista. Lembremos que Freud, quando se manifestou a res-
peito, afirmou que quem fosse capaz de interpretar os próprios sonhos
poderia ser considerado apto a ocupar a poltrona auscultante, acres-
centando a exigência “de que todos que desejem efetuar análises em
outras pessoas terão primeiramente de ser analisados por alguém com
conhecimento técnico”.6 A primeira estipulação enfatiza a importância
do método, exigência que comparece algo atenuadamente na segunda,
através da locução “conhecimento técnico”; infelizmente, Freud não
nos diz em que consiste ou de que maneira podemos ter acesso a ele.
A partir dessa lacuna, a condição necessária concernente à superação
dos próprios recalques começa a usurpar o lugar da condição sufi-
ciente referente à proficiência metodológica.
De qualquer maneira, e retomando o fio da meada, o método in-
terpretativo se apresenta como uma descoberta de facto à qual falta a
dimensão de jure, ou seja, a legitimação teórica. Como aconteceu tan-
tas vezes na história do conhecimento, a experiência auspiciou uma
prática antes da compreensão de suas condições de possibilidade. O
problema não é tanto a ausência de uma teoria da interpretação mas
a não-percepção do que isso significa. Ainda que se pretenda esquecer
a questão, a radical diferença que separa as correntes psicanalíticas a
respeito da prática clínica tem o condão de lembrar incomodamente
sua persistência. Uma das conseqüências desse estado de coisas se ex-
5 Nada parece ter mudado desde que Lacan escreveu A Direção do Tratamento... “Pois é no seio da preten-
são deles se bastarem com a eficácia que se eleva uma afirmação como esta: a de que o analista cura menos
pelo que diz e faz do que por aquilo que é” (LACAN, 1998, p. 593).
6 FREUD [1912], 1969, v. XII, p. 155.

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pressa pela babelização do discurso psicanalítico, dividido em dialetos


votados à incomunicabilidade. O confronto de idéias, necessário ao
desenvolvimento de qualquer ciência, é assim inviabilizado.
Em suma, se cada corrente psicanalítica formulou ciosamente a
sua teoria do sujeito, torna-se inevitável reconhecer que, em relação ao
método, não há nada semelhante. A esse respeito, o pesquisador en-
contrará conceitos, descrições, recomendações, estipulações de regras,
históricos de casos, mas não uma teoria do método, ausente igualmente
em Freud, Lacan e Klein. Ela permanece informulada desde o momen-
to inaugural, isto é, a descoberta da associação livre, e nada se modifica
a partir do emprego ‘heurístico’ da contra-transferência ou na esteira da
respectiva crítica. Tampouco as propostas metodológicas lacanianas
formuladas nos anos 70 comparecem no âmbito de uma teorização do
método. Salvo engano, toda a literatura psicanalítica dedicada ao tema
ilustra a vigência do problema; estratégias como a de elidir a interro-
gação acerca da interpretação, substituindo-a pela análise da transferên-
cia ou a indigitação do significante, constituem tudo, menos uma solu-
ção ou um encaminhamento da questão.
Voltando a Lacan: em A direção do tratamento..., as críticas à im-
propriedade das concepções vigentes são tão precisas que parecem
conduzir por si sós à iminência do momento em que o nó górdio será
finalmente desatado. Tal expectativa é frustrada quando o leitor depa-
ra com as seguintes linhas: “Poupar-nos-emos de fornecer as regras da
interpretação. Não que elas não possam ser formuladas, mas suas fó-
rmulas pressupõem desenvolvimentos que não podemos tomar como
conhecidos, na impossibilidade de condensá-los aqui”.7 As duas frases
prenunciam o que aconteceria nos anos 70, quando Lacan fará uso da
mesma espada com que Alexandre Magno se desvencilhou do incô-
modo desafio..., fazendo pensar que o termo corte, tão típico do la-
canismo, seja menos uma analogia do que uma confissão de impotên-
cia diante dos problemas colocados pelo ato interpretativo. Em poucos
textos é possível surpreender tão próximos o talento demolidor e a di-
ficuldade de construir igualmente característicos do modus operandi
lacaniano. (Quem sabe se explique dessa maneira a peculiaridade das
preconizações metodológicas lacanianas como o meio dizer, o “oracu-
lismo” e a mimetização com o non-sense do mestre zen).
Resumamos enfim os raciocínios que subjazem à premissa em
torno da qual se perfila a discussão proposta neste texto: se o método
psicanalítico se define pela interpretação, se o texto principal para in-
terrogar a interpretação é A interpretação dos sonhos, se em 1899 são
7 LACAN [1966], 1998, p. 601.

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estipulados os conceitos fundantes do referido método mas não sua te-


orização, se a tentativa mais rigorosa de inquirir a questão renuncia no
meio do caminho à tarefa de elucidar a concepção freudiana e enve-
reda pelo atalho do descompromisso, forçoso se faz reconhecer que
esse ponto tão crucial permanece em aberto. (E não por acaso: trata-
se de um vespeiro, cuidadosamente evitado). Admitiremos de bom
grado que a caracterização do método psicanalítico pela conjugação da
associação livre com a atenção flutuante, bem como a descrição das
operações oníricas (cuja generalização para a compreensão da
estruturação do discurso é incipientemente empreendida por Lacan
em 1957), constituem efetivamente marcos fundamentais; contudo, é
preciso lembrar que não passam de alicerces. Se soubermos distinguir
entre condições necessárias e suficientes, evitaremos tomar a pedra
fundamental pela edificação propriamente dita.
A via real permanecendo intransitável, proliferam os atalhos. Às
constantes proclamações, proferidas por autores lacanianos, acerca da
obsolescência da interpretação, descrevendo-a como procedimento su-
perado, resquício meramente pedagógico da pré-história psicanalítica,
artifício que alimenta o desejo de saber do analisando com o cardápio
da teoria etc., pode-se responder citando o próprio Lacan clássico, o
Lacan de 1958:

Nem por isso estamos denunciando o que a psicanálise


tem hoje de antifreudiano. Pois, nesse aspecto, deve-se
reconhecer que tirou a máscara, uma vez que ela se
vangloria de ultrapassar aquilo que aliás ignora, guar-
dando da doutrina de Freud apenas o suficiente para
sentir o quanto lhe é dissonante o que ela acabou de
enunciar de sua experiência.8

Assim, partimos da suposição de que o programa de um “retor-


no a Freud”, bandeira da subversiva renovação lacaniana, ficou incom-
pleto na medida em que deixou de abranger as importantes embora
incipientes estipulações metodológicas presentes n’A Interpretação dos
Sonhos. Tal afirmação, porém, exige a seguinte ressalva: um outro ar-
tigo, escrito na mesma década de 50,9 fase em que Lacan deu mostras
de uma fecundidade ainda não devidamente reconhecida,10 disponi-
biliza instrumentos de um valor heurístico inegável para o acometi-
mento dessa difícil empreitada.
8 LACAN [1966], 1998, p. 592.
9 “A instância da letra no inconsciente ou a Razão desde Freud” (LACAN, 1998, pp. 496-533), publicado
originalmente em 1957 e incluído na primeira edição dos Escritos (1966).
10 Os lacanianos, como os testamenteiros, preferem as disposições derradeiras.

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METODOLOGIA, TEORIA E EPISTEMOLOGIA


Há uma outra forma de defesa que aquela que provo-
ca uma tendência ou uma significação proibida. É a
defesa que consiste em não se aproximar do lugar em
que não há resposta à questão. Fica-se mais tranqüilo
assim e, no fim das contas, é essa a característica das
pessoas normais. Não nos coloquemos questões – en-
sinaram-nos, e é por isso que estamos aqui.11

O encaminhamento da discussão proposta na introdução deste


texto será empreendido a partir da teorização da metáfora e da inda-
gação acerca de seu papel na interpretação psicanalítica – enquanto ob-
jeto da interpretação. O procedimento adotado para proceder a essa
interrogação é o de pensar, mediante um questionamento, a conce-
pção lacaniana de metáfora. As razões dessa escolha são as seguintes:
há poucos motivos para duvidar que, mais do que qualquer outro au-
tor, Lacan foi quem aferiu, proclamou e teorizou a metáfora enquanto
fenômeno de importância fundamental para a psicanálise, produzin-
do, sob mais de um aspecto, conceituações sobre essa figura de lingua-
gem. Por outro lado, é igualmente notório o seu papel em relação à
(fecunda) aproximação entre psicanálise e lingüística. Diríamos que tal
aproximação constitui a condição sine qua non tanto para a reflexão
psicanalítica sobre a metáfora como em relação a outras elaborações
similares. Tais estudos e seus resultados refletem a importância funda-
mental da linguagem para o campo psicanalítico. Sem eles, a episte-
mologia, a teoria e a metodologia da disciplina fundada por Freud per-
maneceriam muito aquém das exigências mínimas que se impõem a
uma ciência – ou a um campo de estudos que pretenda alcançar um
conhecimento minimamente sólido de seu objeto. A aceitação da per-
tinência dessas diretrizes12 – cujas dimensões epistemológicas, teóricas
e metodológicas são portanto reivindicadas – não impede que se dis-
corde da solução que Lacan deu à questão da metáfora, discordância
que se estende à crítica lacaniana do procedimento interpretativo freu-
diano.13 Visto a predominância de uma atitude do tipo “tudo ou na-
da” no que se refere ao posicionamento dos psicanalistas face à obra
11 LACAN, 1985, p. 229.
12 Na medida em que foram mantidas pelo próprio Lacan. O que significa que nos distanciamos do Lacan
que, a pretexto das diferenças entre lingüística e psicanálise (como se não soubesse dessas diferenças antes,
ou pior, como se entre duas ciências diferentes pudessem não existir diferenças...), enfatiza sobretudo as
barreiras entre as duas disciplinas para justificar uma guinada em direção à lógico-matemática e à topologia.
De qualquer maneira, é o “Lacan da lingüística” que protagoniza o presente texto.
13 Crítica que, salvo engano, nunca é expressa inequivocamente, e cujos argumentos tampouco foram siste-
matizados.

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lacaniana,14 não será inútil insistir em que o questionamento da res-


pectiva concepção da metáfora não afeta a concordância com as dire-
trizes expressas na fórmula segundo a qual o inconsciente está estru-
turado como linguagem,15 que nos parece de fato recuperar, como
afirma o próprio Lacan, o cerne da inspiração freudiana. Tal fórmula,
muito pelo contrário, constitui um dos pressupostos desta reflexão.
Por outro lado, o presente texto constitui evidentemente uma crítica
à metodologia lacaniana, visto que ela está em grande medida fundada
na concepção de metáfora (e de metonímia) do referido autor. Em ou-
tras palavras, assumimos sem ressalvas a posição de que a prática clí-
nica lacaniana não representa uma derivação conseqüente, coerente ou
adequada da respectiva posição epistemológica. A intenção principal
desta reflexão é a de abordar o aspecto teórico da relação entre me-
táfora, discurso e interpretação, mas as respectivas implicações, no que
se refere à metodologia, não deixarão de ser indicadas.
No transcorrer do texto serão apresentados os argumentos rela-
tivos à importância da metáfora (enquanto objeto) para a teoria da in-
terpretação psicanalítica, questão que, como já dito, entendemos não
ter sido desenvolvida por Freud nem por seus sucessores, a não ser de
maneira indireta e incipiente.16

ANÁLISE VS. INTERPRETAÇÃO, OU CAUSA VS. SENTIDO


Temos incluído duas coisas como “sentido” de um sin-
toma: o seu “de onde” e seu “para quê” ou sua “fina-
lidade” – ou seja, as impressões e experiências das
quais surgiu e as intenções a que serve (...) não é de
grande importância se a amnésia influenciou também
o “de onde” – as experiências em que o sintoma se ba-
seia – como acontece na histeria; é no “para quê”, no
propósito do sintoma, que pode ter sido inconsciente
desde o início, que se baseia sua dependência do in-
consciente – e não menos firmemente na neurose ob-
sessiva do que na histeria.17

Na obra freudiana o termo interpretação surge precisamente a


propósito dos sonhos. Se ele se impôs, e tanto que participa do grupo
seleto de “palavras-chave” evocadas automaticamente pela referência
à psicanálise (como trauma, complexo de Édipo, libido, sexualidade),
14 De um lado a adoração e o sectarismo, de outro a indiferença e o desconforto.
15 Propomos retirar da célebre fórmula o artigo definido “uma”.
16 Bem mais comum na literatura psicanalítica é a idéia, simetricamente oposta à defendida neste texto, de
que a interpretação é que teria um caráter metafórico.
17 FREUD [1912], 1969, v. XVI, p. 335.

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seria preciso não esquecer que a prática clínica está longe de confor-
mar-se a seu modelo. Na contramão da interpretação, e apresentando
uma adesão bem mais intensa, apresenta-se um outro procedimento,
que poderia ser designado pelo qualificativo “conteudístico”. A grande
maioria dos autores faz da interpretação e da análise conteudística pro-
cedimentos complementares; ao longo deste texto pretende-se de-
monstrar sua incompatibilidade. Enquanto a análise tem por objeto
qualquer conteúdo do discurso que se entenda privilegiar, a interpreta-
ção tem por único objeto o próprio discurso.
Como habitualmente acontece, a hesitação e também o conse-
qüente ecletismo procedem do próprio Freud. A preconização freudi-
ana de que o psicanalista corresponda com “atenção flutuante” à “as-
sociação livre” constitui uma indicação clara de que o objeto da escuta
é o discurso, e não determinado aspecto do seu conteúdo. Por outro
lado, a própria denominação “psicanalista” poderia ser vista como um
indicativo em sentido contrário..., para não falar da ênfase concedida
à análise das recordações da infância, das fantasias derivadas do com-
plexo de Édipo, das modalidades de defesa, da resistência e da trans-
ferência em diferentes momentos da teorização freudiana.
Pela expressão análise conteudística designar-se-á o privilégio
concedido a tal ou qual tema nas diferentes etapas que marcaram a ela-
boração do método psicanalítico, dando a entender qual seria o seu
objeto – o seu objeto por excelência ou o seu objeto preferencial. As-
sim, de acordo com os diferentes momentos da “história da técnica
psicanalítica” e da “linha” ou das preferências pessoais do analista, pri-
vilegiou-se (exclusivamente ou não) a análise de: recordações infantis,
sintomas, fantasias, “conteúdos” edipianos, resistências, transferências,
incongruências entre o conteúdo e a forma da fala, acting outs, e quem
sabe ainda outros aspectos, pois nessa perspectiva procede-se por
exaustão e é difícil saber onde se deve parar – se é que se deve. (Trata-
se, aliás, de um enfoque cumulativo, que costuma aceitar ou propor
inovações, as quais serão por sua vez somadas ao acervo existente). A
palavra análise merece especial atenção; sua função talvez seja a de
prover o psicanalista de um “objeto concreto”, que poderia ser “exa-
minado”, e que faria as vezes dessas outras análises costumeiramente
pedidas pelo médico: sangue, urina, fezes... Há bons motivos para sus-
peitar que a conhecida influência do modelo médico sobre a psicaná-
lise seja ainda maior do que se tem reconhecido. Não nos dedicare-
mos, contudo, a indagar pelas raízes teóricas do enfoque conteudísti-
co. O interesse reside em argumentar convincentemente acerca do que

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nos parece constituir uma oposição irredutível entre os conceitos de


interpretação e análise.
A conseqüência mais deplorável da análise conteudística é a de
promover a interferência da teoria na prática clínica. Corresponden-
temente, ela rastreia a causa – muito compreensivelmente, pois a teoria
tem um compromisso, variável segundo a posição epistemológica ado-
tada, mas mesmo assim um compromisso – com a etiologia. A busca
da causa situa o discurso do analisando no registro da informação,
procedimento que julgamos incompatível com a aferição do sentido.
Essa última frase exige a explicitação do seu pressuposto, que é o se-
guinte: A análise, cujo objeto é tal ou qual conteúdo do discurso, tem
por finalidade estabelecer a etiologia do sintoma, ou, expressando a
idéia menos nosograficamente, da queixa, enquanto a interpretação,
cujo objeto é o discurso, visa unicamente o sentido. Postular a incom-
patibilidade entre análise de conteúdo e interpretação implica fazer ou-
tro tanto no que se refere à relação entre causa e sentido, atitudes que
o presente enfoque estima resultarem em práticas clínicas opostas.
Eis a argumentação. O rastreamento da causa permanece orien-
tado pela preocupação teórica, mesmo quando a causa hipostasiada
apresenta alguma novidade em relação à teoria existente; tratar-se-á,
então, de uma contribuição ao desenvolvimento da teoria. Inversa-
mente, a busca de sentido renuncia a tudo o que não seja a singulari-
dade considerada absoluta, não apenas do sujeito em questão, mas so-
bretudo do discurso de tal ou qual sessão. Apesar da evidente impli-
cação entre as noções de discurso e “pessoa” (“paciente”, “analisan-
do”), é importante distingui-las, operação que julgamos imprescindível
do ponto de vista da prática clínica. Nessa perspectiva, o discurso deve
ser diferenciado daquele que o profere (“personalidade”), tendo em
vista que a interpretação somente pode ter por objeto o sentido do dis-
curso e nunca as “características” de fulano de tal, a respeito de quem
o psicanalista não teria como manifestar-se sem assumir uma atitude
diagnosticante (conotando avaliação e julgamento), estranha à postura
interpretativa. Assim, o trabalho de cada sessão se circunscreve e se de-
fine pela interpretação dos respectivos enunciados; os das sessões pré-
vias – salvo se retomados pelo analisando, e somente nessa medida –
tampouco se integram à interpretação atual; se tal recurso fosse ado-
tado, a interpretação ficaria novamente subordinada, dessa vez a um
outro tipo de teoria, aquela que o psicanalista teria elaborado sobre
seu “analisando” a partir das sessões anteriores.
A injunção de recordar o trauma seria o exemplo por excelência
do procedimento conteudístico. Se o elemento causalista e a subordina-

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ção do método à respectiva hipótese teórica (trauma infantil como cau-


sa do sintoma manifesto após a puberdade) são absolutamente eviden-
tes no referido procedimento, é preciso assinalar que, mesmo se de ma-
neira menos nítida, essa abordagem continua governando a prática clí-
nica após a descoberta da sexualidade infantil e ainda permanece ativa
nos bastidores quando o Édipo entra em cena. A substituição da busca
do trauma (primeiramente pelo interesse em recuperar as lembranças
relativas a uma educação repressiva e posteriormente pela exumação
das fantasias ligadas ao arcabouço edipiano) não liberta Freud de um
duplo recurso aos elementos referenciais do discurso do paciente: os
dados biográficos, de um lado, e, de outro, a própria teoria (a teoria
que situa nas fases da sexualidade infantil a fons et origo do sintoma).
Certamente a importância auferida pela fantasia promove um
distanciamento em relação aos elementos referenciais citados, tanto os
teóricos como os biográficos, que são de certa forma substituídos por
uma nova modalidade de referencialidade, a da própria fantasia, con-
substanciada na teorização do Édipo. As mudanças metodológicas re-
sultantes detêm-se, porém, no hibridismo entre detecção da causa e exe-
gese do sentido, hibridismo claramente denotativo da não-consolidação
da teoria da interpretação incipientemente formulada n´A Interpreta-
ção dos Sonhos. Combinando uma postura médica resquicial – causa-
lista e subordinada a um saber prévio – com a concepção oposta, con-
sistente em ater-se às associações do paciente, a abordagem clínica
freudiana paga tributo a essa indefinição epistemológica18 que a con-
dena ao ecletismo metodológico.
Nesse quadro, a descoberta da transferência representa a tenta-
tiva – quase desesperada – de encontrar o chão da realidade, depois
que a fantasia, ou, mais precisamente, a compreensão de suas impli-
cações, volatizou a verossimilhança das experiências infantis relatadas
nas sessões. O psicanalista passa a apoiar-se na prova testemunhal, for-
necida pelas emoções, do que o paciente sente a seu respeito, o que lhe
permitiria deduzir a relação que ele mantinha com seus pais ou subs-
titutos..., relação que simultaneamente teria funcionado como causa
de suas dificuldades atuais e cuja revelação, efetuada através da
inserção dos conflitos do paciente no quadro teórico pertinente, teria
valor terapêutico.
Outra vantagem das emoções para um tal enfoque: elas osten-
tam uma ruidosa autenticidade, em contraposição à palavra, sempre
18 Indefinição epistemológica e conseqüente ecletismo, que em última análise se referem à pergunta pelo
estatuto (biológico e/ou ambiental e/ou lingüístico?) do inconsciente.

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tida por enganosa, lacunar, omissa, dissimulada... Segundo a aborda-


gem em questão, não se emocionar abundantemente é cometer o pe-
cado capital de recusar envolvimento com a análise e seu representan-
te. De acordo com essa valorização das secreções de alto teor afetivo
(como a lágrima e a coriza), os consultórios passam a incorporar um
novo tipo de equipamento obrigatório: os lenços de papel. Concebida
dessa forma, a transferência visa dar acesso ao passado da maneira mais
fidedigna possível. Objeto por excelência da teoria, a infância final-
mente poderia ser exumada de maneira confiável, desde que porte o
selo de garantia da relação transferencial.
O resultado – paradoxal – é que para recuperar a “causa” dos
conflitos o ocupante do divã é submetido a um notável processo de in-
fantilização. Sentado em seu posto de observação, o psicanalista per-
manece à espreita de qualquer indício que possa justificar a análise
transferencial e tende a referir toda fala que revele certa intensidade
emocional à própria situação analítica. O passo seguinte é a dedução
da natureza das relações primordiais (ou primárias) do paciente.
Quando isso não ocorre (ou seja, quando falta a intensidade emocio-
nal do lado do divã), os sentimentos próprios (acionados freqüente-
mente por essa decepção) são utilizados pelo psicanalista para propi-
ciar a referida operação dedutiva (“identificação projetiva”). Não é ne-
cessário acrescentar que tais procedimentos são característicos da abor-
dagem kleiniana. Desse ponto de vista, dá-se por certo que, com a
aferição das imagos materna e paterna do paciente graças ao decalque
transferencial, ter-se-ia chegado à “causa” dos seus conflitos e dificul-
dades.
Em outras palavras, há bons motivos para suspeitar que a pro-
moção da transferência a principal conteúdo da análise – operação teó-
rico-metodológica que mereceria o nome de “hipertrofia da transferên-
cia” – tem por finalidade amenizar a insegurança gerada no psicanalista
pela areia movediça da fantasia. A constatação da sua subordinação ao
desejo retira da memória qualquer resquício de confiabilidade e faz da
psicanálise uma prática puramente conjetural em termos factuais. Trata-
se de uma situação difícil para uma abordagem medicalizante. A fantasia
“transferencializada” passa a ter uma função específica: a de revelar as
características das primeiras relações, concebidas como um tipo de con-
dicionamento emocional. Situação “real” que teria gerado os atuais con-
flitos, os dados biográficos são referidos por sua vez quer à teoria edipiana
concebida em termos genéricos (ortodoxia freudiana), quer à teoria das
relações estabelecidas no primeiro ano de vida (doutrina kleiniana). De
qualquer maneira, recupera-se, retroagindo à “causa” da fantasia, um

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“real”, teórico ou biográfico. Em ambos os casos ter-se-ia alcançado,


mesmo se com a respiração arfante, a ardorosamente perseguida origem
(dos conflitos, inibições, sintomas, inadequações, dificuldades etc.).

O SONHO
Eu lhes digo o que Freud fez. Digo-lhes como procede
seu método. E, na verdade, basta abrir em qualquer
página o volume da Traumdeutung para encontrar o
equivalente.19

Mas se a fantasia pode ser “recapturada” após alguns esperneios,


o sonho parece invulnerável enquanto baluarte do sentido. É impor-
tante compreender a razão dessa inexpugnabilidade.
Antes de mais nada, o sonho é referenciado primeiramente às
respectivas associações..., e, se estas costumam remeter aos restos diur-
nos, tais elementos da “realidade” (ou seja, da vivência do sonhador)
são, por sua vez, solenemente desconsiderados por Freud como “cau-
sa”, pois constituem apenas um material apropriado de que o sonho
se serve para veicular sua “mensagem”, esta sim fundamental..., e ex-
clusivamente discursiva. No sonho, a predominância do sentido sobre
a causa é uma evidência, e não será demais insistir em que, por essa ra-
zão, o termo interpretação surge a propósito do sonho e é com relação
a ele que mantém a sua principal referência.
Em nenhuma outra parte de sua teoria Freud trata o “real”20 (a
experiência, a vivência) de maneira tão despiciente. A mesma atitude
prevalece em relação ao orgânico. A vontade de urinar, uma dor de
dentes ou o som estridente do despertador são outros tantos estímulos
que o sonho, enquanto cumpre sua tarefa de proteger o sono, confi-
gura de acordo com os interesses do “capitalista” do sonho, isto é, o
desejo inconsciente.
Como se não bastasse, na contramão do senso comum que vê na
fadiga a via de ingresso ao reino de Morfeu, Freud atribui o próprio
ato de dormir à frustração que a vida de vigília impõe ao princípio do
prazer; tal seria a razão da proteção exercida pelo sonho em relação
ao sono. Com essa afirmação, ele reitera a subordinação do fisiológico
ao inconsciente, gesto que em sua teorização anterior só tem paralelo
no que se refere à sexualidade.
19 LACAN, 1985, p. 270.
20 O real “antes de Lacan”, que o redefinirá como desejo. A “experiência”, a “vivência”, constituirão, para
o teórico francês, o cerne do imaginário.

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Por outro lado, se a teoria do sonho recupera compreensivel-


mente a noção de causa assinalando o caráter arcaico do desejo res-
ponsável pelo onirismo (os “imorredouros desejos infantis”), não é
menos verdade que tais desejos já não são os “desejos concretos”, que
aliás Lacan proporá designar pelo vocábulo demanda; estão muito
mais próximos do “estrutural” e, nesse sentido, sem dúvida, sua matriz
é a situação edipiana. Assim, se a teoria do sonho supõe uma causali-
dade, por outro lado a define por subordinação à noção de estrutura
– ou seja, a estrutura desejante, cujas possibilidades (diferentes moda-
lidades de conflito e sublimação) obedecem às regras da gramática edi-
piana ao mesmo tempo em que se manifestam no dialeto da singula-
ridade.
O sonho representa assim um raro – ou mesmo único – caso de
limite imposto à etiologia na obra freudiana. Julgamos que tal restrição
à noção de causalidade deve-se precisamente ao procedimento inter-
pretativo formulado para dar conta do sentido do sonho. A própria in-
terpretação tem por implicação o abandono da preocupação com a
origem (do sintoma, do conflito), já que sua referência é o discurso, e
para além do discurso só há esse vazio ao qual Freud aludiu mediante
a afirmação de que o umbigo do sonho está ligado ao desconhecido.
Subentende-se igualmente que o acesso à causa seja totalmente irrele-
vante para a finalidade terapêutica – embora estejamos ainda muito
longe de saber “como” a interpretação produz seus efeitos. Quando
Freud define o discurso como objeto e a interpretação como método,
cessa a possibilidade de aferir a etiologia de sintomas ou conflitos. A
afirmação de que o sonho está umbilicalmente ligado ao desconhecido
conduz ao abandono da idéia de causalidade. Poderíamos propor a se-
guinte leitura para essa atitude metodológica: “Para além do sentido,
cerne do discurso, nada é possível saber – e nem é necessário”.
De forma que a célebre asserção “o sonho é a via real para o in-
consciente” poderia perfeitamente significar: “Já que o sonho, tal
como comparece na clínica, não é senão o relato verbal do sonho, já
que o que interessa em relação ao sonho é unicamente o seu sentido,
já que somente a interpretação pode alcançar o sentido, é precisamen-
te em relação ao sonho que o método psicanalítico – a interpretação
– alcança plena e legítima expressão”. Caso em que a expressão via
real referiria menos o próprio sonho e mais o método formulado para
interpretá-lo. No capítulo “Terceira lição de psicanálise” de Cinco
Conferências sobre Psicanálise (1909),21 Freud escreve: “(...) análise de
21 FREUD [1912], 1969, v. XI.

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sonhos, cuja técnica se confunde com a da própria psicanálise”. Freud


emprega aqui o termo análise (seria necessário consultar o original em
alemão) e não interpretação, o que pode tanto indicar que ele privile-
gia a interpretação como procedimento por excelência da psicanálise
quanto, inversamente, demonstrar sua condescendência com essa indi-
ferenciação entre análise e interpretação que supomos subjacente ao
impasse metodológico ora examinado.
De qualquer maneira, na prática freudiana a “teoria” é outra... (e
isso literalmente, na medida em que a teoria invade o terreno meto-
dológico). Nos dois sonhos de Dora (Fragmento da Análise de um
Caso de Histeria, 190522) encontramos a mais clara expressão do con-
flito entre as duas tendências, a interpretativa e a analítica. Esta última
se ocupa, como sempre, do rastreamento da causa, manifestando-se
através de um verdadeiro interrogatório a que Dora é submetida, es-
pecialmente sobre acontecimentos de sua infância mas também com
relação à origem de seus conhecimentos acerca da sexualidade. Apesar
da inquirição, sobram algumas lacunas, que são preenchidas pelas as-
sociações do próprio Freud... Inversamente, quando ele se atém à prá-
tica interpretativa, emergem os elementos que fornecem finalmente os
índices mais rigorosos do sentido. Exemplifiquemos com o segundo
sonho: Dora, a duras penas (a dificuldade em alcançar a estação onde
tomará o trem de volta para Viena), renuncia ao senhor K. (deixando
a cidade desconhecida que metaforiza “casamento”), e troca a sexua-
lidade “prática” (bosque, lago, sr. K) pela “teórica”... (sobe as escadas
[= negação de gravidez], entra em seu quarto e abre um grande livro).
O sentido do sonho é pois o retorno de Dora à condição de filha, à
qual é sacrificada – mesmo se penosamente – a de mulher. Escapa tal-
vez a Freud o caráter metafórico da “morte do pai”, informação que,
comunicada pela carta da mãe, constitui o elemento decisivo para que
a moça volte.23
22 FREUD [1912], 1969, v. VII.
23 A carta contém, após a informação sobre a morte do pai, a expressão “Se você quiser?”, escrita no meio
de uma frase com um ponto de interrogação, expressão idêntica à usada pela sra. K. na carta em que convi-
dava Dora a L., o que pode ser interpretado como o “oferecimento”, por parte da mãe de Dora, do marido
à filha. Correspondentemente, através das demais associações fornecidas por Dora, cabe interpretar a
morte do seu pai, no sonho, como “ele aceitou separar-se da senhora K”, enquanto outras associações
acrescentariam a explicação “para não perder sua filha”. As associações mais importantes para sustentar
essa hipótese são: o pai só consegue dormir, estando longe da sra. K., se beber. Dora perguntou à mãe “cem
vezes” pela chave do aparador onde estavam as bebidas (para oferecer uma ao pai). No sonho, ela pergunta
“cem vezes” pela estação. Assim, o retorno de Dora está ligado ao seu papel de ministradora do soporífero
que substitui, para o seu pai, a mulher amada. Além disso, se “dormir” significa “separação transitória da
mulher amada”, “morte” bem poderia significar “separação definitiva”. E Dora, sempre nas associações,
refere-se a um brinde à saúde do pai, descrevendo sua fisionomia abatida e perguntando-se quanto tempo
ele teria de vida (significando provavelmente nesse âmbito = “quanto duraria sua relação com a sra. K.”).

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Ainda que o sonho também permita, se considerado enquanto


“conteúdo” da sessão, a prática da análise, isso ocorre apenas num se-
gundo momento, quando Freud se empenha em buscar os “índices de
realidade” associados ao que para ele constitui uma exigência teórica:

Mas havia ainda uma dúvida, em cuja solução eu devia


insistir. Estou convencido de que um sintoma desta espé-
cie24 só aparece quando tem um protótipo infantil. Até
aqui, minha experiência levou-me a afirmar com convic-
ção que as lembranças originadas das impressões de anos
posteriores não possuem força suficiente para fazê-las es-
tabelecerem-se como sintomas. Eu mal ousava esperar
que Dora me fornecesse o material que desejava de sua
infância, pois a verdade é que ainda não me encontro em
posição de afirmar a validade total desta regra, embora
desejasse profundamente poder fazê-lo. Mas, neste caso,
surgiu uma confirmação imediata. Sim, disse Dora, quan-
do criança ela torcera aquele mesmo pé; escorregara em
um dos degraus quando descia as escadas”.25

Assim, Freud impõe-se o dever de buscar o respaldo teórico para


sua interpretação, e se o sintoma é lido como literalização da metáfora
“dar um mau passo”, esta por sua vez exige um evento real como ori-
gem. Mais uma vez é invocado o apoio dos fatos para sustentar a incô-
moda diafanidade do discurso. O procedimento interpretativo, contu-
do, dispensaria perfeitamente a chancela da teoria que teria tornado
obrigatória a recordação do acidente da infância. Para aferir o sentido
de “subir escadas com facilidade”, bastaria que Dora fornecesse – o que
de fato ocorreu – “material” para que esse elemento do sonho fosse
desmetaforizado enquanto negação da gravidez, visto que esta se asso-
ciava por sua vez à pseudo-apendicite (manifesta pela dificuldade de su-
bir escadas). A expressão “dar um mau passo” deve-se a uma associação
do próprio Freud e, apesar de sua plausibilidade, é desnecessária para
a interpretação – além de representar, do ponto de vista da “técnica”,
um procedimento totalmente incorreto. (Freud forneceu a metáfora
em vez de limitar-se a interpretar aquela criada pela própria Dora).
Em suma, trata-se de saber se em psicanálise a pesquisa teórica
“direta” é de fato compatível com a metodologia interpretativa. Por
tudo quanto já foi argumentado, pesquisar a origem de um sintoma
que só aparece (como só pode aparecer) no discurso, é desconsiderar
o discurso enquanto objeto e colocar em seu lugar a respectiva referên-
cia. Em outros termos, a pergunta pela etiologia caracteriza a preva-
24 Freud refere-se aqui à fantasia de parto, representada por uma crise de apendicite que, entre suas conse-
qüências, fazia Dora arrastar uma perna e ter dificuldade em subir escadas.
25 FREUD [1912], 1969, v. 8, p. 100.

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lência da significação (isto é, do caráter referencial do discurso) sobre


o seu sentido; insistamos: este último não poderia ser captado senão
pelo procedimento interpretativo, que é, por definição, totalmente
“agnóstico” em relação à existência da causa.26
Aqui se faz necessário mencionar uma questão bastante espinho-
sa, a da relação entre prática e teoria. Esse ponto, extremamente im-
portante, não poderá, contudo, ser abordado neste trabalho. Admiti-
remos de bom grado que a análise de conteúdo se presta realmente
bem melhor ao desenvolvimento da teoria do sujeito inerente à psica-
nálise do que o procedimento interpretativo e que, sob esse aspecto,
a “primeira técnica” freudiana teria constituído, se privilegiarmos a
perspectiva teórica, um “erro” de conseqüências favoráveis. Erro vai
entre aspas porque, evidentemente, a notável descoberta do próprio
procedimento interpretativo não poderia deixar de ser tributária dos
passos anteriores associados ao que temos designado por “análise de
conteúdo”. O sonho, por exemplo, “sede” do procedimento interpre-
tativo, advém, a princípio, como mais um “conteúdo”, antes de exigir
a elaboração do método que subverteria o modelo médico causalista
predominante até então. De qualquer forma, é possível duvidar do teor
da conhecida afirmação freudiana relativa à feliz coincidência que faria
do tratamento psicanalítico uma afortunada conciliação entre o objeti-
vo do pesquisador (conhecimento teórico) e o objetivo do paciente (a
“cura”). Poderíamos dizer que durante muito tempo a teoria se desen-
volveu “à custa” do método (portanto da “cura”) e que, se de um lado
esse procedimento trouxe beneficios fundamentais (no que se refere
ao estabelecimento da nosografia psicanalítica, por exemplo), ele não
se justifica mais atualmente.
Supondo a plausibilidade dos comentários anteriores sobre Do-
ra, seremos obrigados a reconhecer que o sonho, tampouco ele, esca-
paria totalmente de uma “recaptura” pela análise conteudística. Cabe
assinalar, porém, que a recaída em questão só acontece após a inter-
pretação ter sido efetuada, e obedece claramente à intenção de dar um
lastro factual/etiológico ao sentido encontrado. Os dois procedimentos
utilizados por Freud ao abordar o sonho permitem ilustrar, portanto,
o contraste entre as práticas interpretativa e analítica. Enquanto a di-
mensão do presente e a inquirição do sentido conferem ao discurso o
papel de objeto do método psicanalítico, a dimensão do passado e a
preocupação etiológica reafirmam a primazia teórica da causalidade.
Mas, e isto é decisivo, é preciso levar em conta que, quando o Édipo
se transforma graças à teorização das fantasias originárias e das teorias
sexuais infantis, a noção de estrutura (oposta à de causalidade e cor-
26 Aliás, Alexandre Koyré, em seus estudos sobre história da ciência, já assinalava a correlação entre as
noções de “Deus” e “causa”.

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respondentemente próxima à de sentido) se institui também em rela-


ção ao “passado”.
Embora Freud pareça não perceber tais modificações e nem o ca-
ráter contraditório dos respectivos procedimentos, utilizando todo o
seu arsenal metodológico e teórico simultaneamente, a distinção entre
interpretação e análise de conteúdo parece-nos imprescindível para
compreender a indefinição entre método e teoria em sua prática.

LACAN E AS OPERAÇÕES ONÍRICAS FREUDIANAS


Aquella noche corrí,
el mejor de los caminos,
montado en potra de nácar,
sin bridas y sin estribos27

Sabe-se que a teorização freudiana acerca da elaboração onírica


foi objeto de uma releitura por parte de Lacan, orientada de acordo
com a clave lingüística. Das quatro operações descritas por Freud, La-
can priorizou a condensação e o deslocamento, definindo-as a partir
das figuras de linguagem (ou tropos), conhecidas como metáfora e
metonímia. As outras duas noções propostas por Freud, “consideração
de figurabilidade” (Rücksicht auf Darstellbarkeit) e elaboração secun-
dária, não foram objeto do interesse lacaniano.
O questionamento das correspondências acima mencionadas
(metáfora e condensação, metonímia e deslocamento), postuladas por
Lacan, envolve uma preliminar, a de entender como condensação e
deslocamento são definidos por Freud. Em princípio, Freud designa
pelo termo “condensação” a compactação dos pensamentos latentes
numa determinada imagem onírica. O “sonho do tio José”, em que
um rosto emoldurado por uma barba loura representa simultanea-
mente um amigo do sonhador, “R.” (que, como o próprio Freud, es-
perava uma nomeação para um cargo universitário), e o aludido pa-
rente, é um exemplo de condensação.28 As associações de Freud con-
duzem ao seguinte: se o professor em questão fosse como o referido
tio (a quem se atribuía um deslize financeiro), haveria razões suficien-
27 GARCIA-LORCA, F. “La casada infiel”. Dificilmente poder-se-ia achar melhor metáfora para a metá-
fora. A palavra (o discurso) como esposa do significado e amante do sentido.
28 Freud apresenta esse sonho como um exemplo de condensação pela convergência, na mesma imagem
(significante), de dois “significados”. Entretanto, o conceito de condensação não repousa necessariamente
nessa característica, que seria eventual. Mais estruturalmente, condensação designa o fato de ser possível
extrair, de cada elemento do sonho, uma (ou várias) linha(s) associativa(s), muito mais ampla(s). Nesse sen-
tido, a condensação consiste na operação pela qual a elaboração onírica isola e separa um significante per-
tencente a determinada cadeia de “pensamentos latentes”, justapondo-o a outros significantes submetidos à
mesma operação. Essa concatenação seqüenciada de fragmentos ou excertos (merecendo um neologismo,
como frankensteinização) provoca o efeito de estranhamento e ininteligibilidade típicos do sonho.

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tes para que o primeiro não fosse nomeado, caso em que Freud po-
deria continuar alimentando esperanças nesse sentido, já que sobre ele
não pesaria qualquer imputação semelhante. A “grande afeição” pelo
tio, sentimento integrante do sonho, constitui para Freud um exemplo
de deslocamento, tendo em vista que disfarça uma das idéias centrais,
ou seja, a “calúnia” endossada pelo sonhador contra R. e N. (um outro
amigo de Freud, igualmente interessado num cargo universitário, e
que por esse motivo aparece nas respectivas associações).
Poder-se-ia dizer que Freud usa o termo condensação para referir
uma operação que seria revertida com certa facilidade, desde que a re-
cordação dos “restos diurnos” responsáveis pelas imagens oníricas não
fosse bloqueada pela resistência. De fato, com referência a esse mesmo
sonho, ele confessa uma “má vontade” inicial em associar, atitude mais
apropriada, comenta, num paciente; uma vez superada a barreira, os
pensamentos latentes acorrem com relativa fluência. Assim, o sonha-
dor percebe sem grande dificuldade, mesmo se com certo desagrado,
que a associação entre R. (e N.) e o tio José obedece possivelmente a
um “desejo” de manter as esperanças de nomeação. A condensação
em questão, portanto, tem certamente um caráter metafórico, institu-
indo uma semelhança obtida por comparação, cujo teor, aqui, seria se-
melhante ao de uma difamação.
Mas outro tanto ocorre com o que Freud chama de deslocamen-
to. “Sinto uma grande afeição por ele(s)”, metaforiza o não querer sa-
ber da “calúnia” veiculada pelo sonho. Esse procedimento de despis-
tamento poderia representar uma operação onipresente nos processos
de elaboração onírica, escreve Freud, e nesse caso seria “uma desco-
berta de validade geral” para a teoria dos sonhos.29
A partir dessas formulações iniciais, diríamos que a condensação
colabora com a censura, subsumindo uma vasta cadeia discursiva
(“pensamentos latentes pré-conscientes”) em elementos mínimos, per-
fazendo uma miniaturização ocultante, enquanto o deslocamento cha-
ma a atenção para os “elementos mínimos” menos importantes ou
mesmo intercala imagens despistadoras em relação ao sentido do
enunciado onírico (no presente sonho, através de uma estratégia de
maximizar um sentimento e omitir outro). Mais importante, porém, é
considerar que as regras propostas por Freud dão a entender que a con-
densação e o deslocamento somente poderiam ser superados por inter-
médio de associações. Essas cadeias verbais progressivamente deixariam
de se restringir aos restos diurnos responsáveis pelas imagens oníricas,
29 FREUD [1912], 1969, v. 4, p. 151.

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mergulhando decididamente no âmbito discursivo. Se a condensação é


“desfeita” quando as imagens oníricas (significantes) são relacionadas
com os respectivos restos diurnos, o deslocamento apenas seria supera-
do através do exercício da discursividade não limitada a qualquer te-
mática. Nesse caso, “sinto uma grande afeição por ele(s)”, apesar de
manifestar-se no sonho como uma emoção (ou um “pensamento”),
permanece funcionando como imagem (conteúdo manifesto) e, por-
tanto, como condensação. Freud dá-lhe porém o nome de desloca-
mento porque seu poder de ocultação (de mascaramento) parece bem
maior do que o da imagem que representava simultaneamente o tio e
o amigo.
Diríamos, não obstante, que em ambos os casos se trata de me-
táforas, uma mais “transparente” e outra mais “opaca”. Entende-se en-
tão porque Freud compara o sonho ao delírio; as imagens oníricas são,
como as do delírio, significantes separados das respectivas cadeias dis-
cursivas em que se encontram simultaneamente sua significação, res-
trita (metáfora transparente) e o seu sentido, abrangente (metáfora
opaca). A diferença reside em que o relato (a recordação) do sonho
permite eventualmente restituir essa relação, na medida em que a ati-
tude do sonhador para com sua “alucinação noturna” se distingue da
de uma pessoa em surto psicótico com referência ao delírio.
Portanto, tanto em relação à condensação como ao deslocamen-
to, cabe a hipótese de que se trata de uma substituição por metafori-
zação, substituição essa que ocorre no âmbito discursivo (e não mor-
femático ou sintagmático). Assim, a segunda metáfora (que Freud de-
signa por “deslocamento”) – e cuja possível tradução seria “Eu não
gostaria de saber que estou interessado em difamar meus amigos para
manter minhas esperanças de nomeação” – para ser compreendida, tal
qual a primeira metáfora (“meu amigo R. [N.], como meu tio José, co-
meteu um deslize, logo não merece o cargo”), precisaria ser reinserida
no discurso ao qual pertence. De fato, apenas após essa reinserção é
que Freud poderá notar o contraste entre o que sente “realmente”
pelo tio (nenhuma afeição) e o apreço constante do conteúdo mani-
festo do sonho, bem como o exagero da afeição onírica pelos amigos,
que tampouco tem correspondência com o relacionamento mantido
com eles.
Algumas páginas após os primeiros comentários sobre o sonho
do tio José, Freud propõe uma interpretação diferente, ao mesmo
tempo em que critica a anterior. Segundo a nova hipótese, o sonho ex-
pressaria um anseio, que remonta aos tempos de adolescência, de ser
ministro. (De fato, o sonho confere a Freud o direito de julgar despi-

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cientemente seus amigos, como quem tem o poder de decidir sobre a


nomeação dos mesmos). Essa associação, por sua vez, promove uma
recordação de infância, em que um adivinho teria predito o futuro de
“um grande homem” para o menino de onze anos que almoçava com
seus pais num restaurante às margens do Präter.
As novas associações conduzem à constatação de que o anseio de
obter o cargo de professor não constitui o elemento principal do so-
nho (é “apenas” uma metáfora transparente); mais importante seriam
as condições de obtenção do cargo, isto é, que R. (e também N.) sejam
excluídos. (Cabe lembrar, aliás, que Freud, R. e N. não estão dispu-
tando o mesmo cargo). Nesse caso, trata-se menos de calúnia a serviço
da manutenção de uma esperança (metáfora transparente), e mais da
reivindicação do privilégio, única razão para que a exclusão dos rivais
se torne imprescindível (metáfora opaca).
Percebe-se, então, que a primeira interpretação (a da calúnia) é
obtida com relativa facilidade (de fato, os “pensamentos latentes” lhe
dão acesso), enquanto a segunda seria obscurecida pela primeira – ain-
da que não a contradiga como pretende Freud.30 A oposição entre am-
bas se restringe ao fato de que a interpretação inicial se afigura como
perfeitamente satisfatória, impedindo, assim, o acesso ao sentido mais
“profundo”. Efetivamente, a primeira tradução propunha a seguinte
enunciação: “Preciso excluir (caluniar) R. e N. para aceder ao cargo,
mas tenho vergonha de fazê-lo”. E a segunda: “Desejo aceder ao cargo
para excluir R. e N., mas tenho vergonha de fazê-lo”. A primeira in-
terpretação constitui um passo em direção à segunda, à qual poderia
ainda acrescentar-se uma enunciação paralela de modo a incluir a ex-
plicação do sonhador para seus sentimentos, ou seja, o desejo de cum-
prir as expectativas parentais: “o meu anseio de ser superior a todos
para satisfazer meus pais faz com que eu entre em choque com meus
pares”.
Portanto, levando em consideração não apenas o sonho, mas to-
dos os comentários de Freud, inclusive e notadamente suas duas hi-
póteses interpretativas, obter-se-ia um enunciado ainda mais abrangen-
te. Trata-se afinal de uma oposição entre necessidade e desejo, isto é,
entre justificar por uma situação externa certo sentimento desagradá-
vel, de um lado, ou admitir que ele é intrínseco ao sonhador, de ou-
tro... Assim, o sonho do tio José apontaria para uma interpretação em
que o sentido parece emergir do contraste entre duas atitudes: a de
atribuir os próprios sentimentos às circunstâncias ou, em oposição, ad-
30 FREUD [1912], 1969, v. 4, pp. 203-204.

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mitir que o sonhador é responsável por eles. Seria, digamos, um sonho


de ressonâncias teóricas ou mesmo epistemológicas...

METÁFORA TRANSPARENTE E METÁFORA OPACA


A metáfora não é a coisa no mundo das mais fáceis de
falar.31

Em outro texto,32 mediante as noções de “metáfora transparen-


te” e “metáfora opaca”, procuramos estabelecer uma distinção entre a
metáfora “manifesta” ou evidente (o melhor exemplo seria o da me-
táfora coloquial: “cada macaco em seu galho”, “a vaca foi pro brejo”,
“não dar ponto sem nó” etc.) e a metáfora discursiva, em princípio to-
talmente indiscernível enquanto tal. A metáfora transparente é direta-
mente aferível, sendo facilmente identificada, tendo em vista que se
expressa através de uma palavra ou expressão cujo caráter incompre-
ensível, do ponto de vista literal, exige a decifração por parte do des-
tinatário. De fato, este substitui a palavra ou expressão figurada por
aquela que constituiria seu sentido apropriado – desfazendo, assim, a
operação metafórica mediante um procedimento análogo ao de uma
interpretação, mas que deveria ser designado mais apropriadamente
por tradução.33 Desse modo, “não (se deve) invadir o espaço alheio”,
“o problema tornou-se insolúvel”, “ser precavido” seriam as significa-
ções atribuídas às metáforas coloquiais ou transparentes supra. Esse
enfoque, aliás, coincide com a definição de metáfora adotada por La-
can: “uma palavra por outra”.34 O contexto seria necessário – apenas
– para a aludida operação.
Entretanto, uma tal definição, certamente bastante comum, con-
fina a metáfora à dimensão do que é plenamente explícito. Uma pa-
lavra ou expressão explicitamente metafórica, quer seja enigmática,35
poética, chistosa ou coloquial, pede também explicitamente a atitude
interpretativa, ou melhor, a tradução, por parte do destinatário. É a
partir de Freud que sintomas, sonhos e atos falhos ingressam no ter-
ritório anteriormente circunscrito aos discursos poético e cômico, na
exata medida em que a respectiva leitura de sentido toma o lugar do
rastreamento etiológico. Mas apesar disso, e mesmo em Lacan – que a
31 LACAN, 1985, p. 248.
32 “Fenomenologia da Metáfora”, publicado em Psicologia Revista (PUC/SP), número I, setembro de 1995.
33 A diferença entre interpretação e tradução reside em que no segundo caso a substituição tem por con-
texto a língua (universal), enquanto no primeiro incide sobre o discurso (singular).
34 Em “A instância da letra no inconsciente ou a Razão desde Freud” (texto de 1957, publicado em Escri-
tos), em que propõe também as fórmulas da metáfora e a metonímia, procedimento aliás muito semelhante
ao de Lévi-Strauss em “A estrutura dos mitos” (1955, in Antropologia Estrutural I).
35 Como o sintoma, por exemplo, ou as imagens oníricas.

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recuperou para a psicanálise, dando-lhe estatuto epistemológico –, a di-


mensão lingüística “esquecida” na era pós-freudiana, o sentido, defini-
do enquanto efeito eminentemente metafórico,36 é, não obstante, refe-
rido a uma transposição de palavra por palavra ou expressão por ex-
pressão, ou seja, é confinado à substituição explícita – e, portanto, a um
âmbito não discursivo.
Um exemplo à mão é o da releitura do “caso Dora” por Lacan,
que propõe como mola propulsora do conflito o amor inconfesso da
moça pela sra. K. O enfoque lacaniano difere do de Freud uma vez
que este identifica na paixão recalcada de Dora pelo sr. K. o fator elu-
cidativo das atitudes “defensivas” da sua paciente.37 Mas, na contra-
mão tanto da análise de Freud como da análise (insistamos: análise, e
não interpretação) de Lacan, é possível “desmetaforizar”, não os sen-
timentos de Dora por quem quer que seja, mas (apenas e tão-somente)
o próprio relato de Freud, enquanto indicativo da dificuldade da pro-
tagonista de passar da condição de filha para a de mulher, uma vez que
a posição de esposa, representada tanto pela mãe como pela sra. K.,
afigura-se para Dora como equivalente a não ser amada, ao menos
pelo próprio marido. Seria, portanto, justamente por acreditar que K.
queria desposá-la (indício da “seriedade” de que K. teria dado mostras,
como afirmava Freud) que Dora sentiu-se ameaçada... e interrompeu
tanto o romance, que corria o risco de tornar-se casamento, como a
própria análise com um Freud casamenteiro que pretendia convencê-
la das delícias e conveniências do himeneu...38 O relato no qual Dora
corta com um tapa a frase em que K. destituía a própria esposa do seu
amor (“Ela não significa nada para mim...”) talvez aponte para o que
a sra. K. significava para Dora: a possibilidade de conjugar os atributos
de “ser mulher (‘mulher’ significando ‘não-filha’)” e “ser amada” (visto
que era amante do pai, de um pai impotente, o que não é um dado
insignificante). Dora se indigna não por estar apaixonada pela sra. K.
– não há nenhum indício disso no relato39 –, mas porque a sra. K. lhe
permitia conjugar feminilidade com valorização afetiva, construção
que desmorona quando K., em sua declaração de amor, menospreza
a esposa. (Não se trata, porém, de conceber esse acontecimento como
36 O que foi estabelecido primeiramente pelo próprio Lacan (ver “A instância da letra no inconsciente...”).
37 Numa nota de rodapé posterior ao trabalho clínico, Freud aventa a possibilidade de não ter percebido a
natureza dos sentimentos amorosos de Dora pela sra. K., o que poderia parecer um bom argumento a favor
da reinterpretação lacaniana.
38 Há poucas dúvidas de que, junto a Dora, Freud se incumbiu do papel de schatche, ou seja, do agente
casamenteiro das pequenas comunidades judaicas da Europa Oriental, personagem que protagoniza algu-
mas piadas do livro sobre o chiste.
39 O que constitui mais uma razão para julgar que a releitura de Lacan é orientada pela teoria, no caso a
teoria da histeria.

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decisivo; Dora poderia estar perfeitamente à espreita de qualquer jus-


tificativa para “retornar” ao pai). Assim, a tentativa de convencer Dora
de seu amor por K. e da viabilidade de um casamento com ele é o que
teria afastado Dora da análise. Tudo leva a crer que, para a paciente,
o próprio Freud, preconizando o casamento, faria parte do complô
masculino tendente a colocá-la no papel de esposa, ou seja, de mulher
não amada...40 É nesse sentido que julgamos lícito afirmar que as duas
leituras, tanto a de Freud como a de Lacan, na medida em que foca-
lizam os “sentimentos”, “as reações”, o “desejo”, “o conflito”, ou “a
histeria” de Dora de preferência ao seu discurso como aparece no re-
lato das sessões, se inscreveriam muito mais no âmbito de uma análise
de conteúdo do que de uma interpretação.
Diferentemente, a metodologia proposta por Freud para inter-
pretar o sonho, ao deter-se por um tempo considerável nos limites do
próprio discurso – condição sine qua non para a aferição do respectivo
sentido –, suspende momentaneamente a referência à pessoa do ana-
lisando, para poder percorrer a via real para o (seu) inconsciente...
Momentaneamente, mas por um tempo suficiente para que se possa
isolar o enunciado/enunciação da voz que o profere. O sonho provê,
assim, a diferença fundamental entre as noções de discurso e persona-
lidade, distinção absolutamente imprescindível para o exercício do mé-
todo interpretativo. Resta estender o mesmo enfoque a todo e qual-
quer “tipo” de discurso, deixando de confinar o procedimento inter-
pretativo ao próprio sonho. Assim, cabe afirmar que o “material” das
sessões pertence de direito à jurisdição da interpretação desmetafori-
zante. O que significa entender como manifestação metafórica tam-
bém o que Freud designou por deslocamento, ou seja, o discurso como
um todo. Nessa perspectiva, toda sessão seria tratada como sonho e
todo sonho, como sessão – em outros termos, ambos seriam conside-
rados sempre e invariavelmente na perspectiva discursiva, única capaz
de justificar a intervenção psicanalítica.
De fato, se aceitarmos considerar as imagens oníricas como me-
táforas (metáforas transparentes singulares41), segue-se que elas estru-
turam um discurso específico e restrito, o onírico, que por sua vez se
integra a outro discurso (chamado por Freud de “pensamentos laten-
tes”, relacionados primeiramente aos “restos diurnos” e posteriormen-
40 Insistamos: essa interpretação tem por referência apenas e tão-somente o próprio texto de Freud e não
pretende apontar para as “verdadeiras razões” da interrupção da análise por parte de “Dora”.
41 “Metáforas transparentes singulares” ou pertencentes ao sujeito, isto é, discursivas, que se diferenciam
das metáforas transparentes “universais” pertencentes à língua, caso em que já se encontram codificadas
(“puxar o tapete”, “pegar o boi pelo chifre”, “fazer das tripas coração” etc.), e são sintagmáticas.

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te às suas derivações). Esse “outro discurso” não é senão o discurso


propriamente dito que, entendido em sua totalidade (jamais plena-
mente acessível), coincidiria com a pessoa (“paciente”, “analisando”).
Segundo o enfoque adotado neste texto, a palavra analisando
(paciente) refere, portanto, a totalidade do discurso, totalidade que
permanece inacessível, embora representada parcialmente pelo discur-
so de cada sessão. Esse é o sentido que poderia ser dado ao termo
metonímia quando aplicado a deslocamento (Lacan), ou seja, o de que
o discurso manifesto é sempre parcial em relação ao “discurso total”
(ou seja, à pessoa), parcialidade oculta pela sua lógica (ou “elaboração
secundária”, como dizia Freud), que lhe confere a aparência de com-
pletude e coerência. O discurso seria metonímico por não possuir a
autonomia e abrangência às quais aspira (não há primazia da consci-
ência, como também dizia Freud), e seria metafórico porque aponta
para um discurso subjacente, não necessariamente oposto mas, de
todo modo, diferente, o discurso metaforizado, este mais próximo da
“lógica inconsciente”. Sendo o discurso metonímico, entendemos que
apenas interpretamos o fragmento acessível em cada sessão; por ser
metafórico, interpretar é o mesmo que desmetaforizar, operação pela
qual se acede ao sentido. Não ao sentido “total” – apenas ao dos enun-
ciados de determinada sessão.
(Seria o caso de ilustrar essa situação com a anedota dos alfaiates.
Conta-se que em certa cidade do interior um surto de desenvolvimen-
to acelerado atraiu grande número de profissionais requisitados pelo
enriquecimento dos fazendeiros da região. Um número crescente de
alfaiatarias foi-se enfileirando na rua principal, que permanecia a única
asfaltada do lugar. O último alfaiate a chegar deparou com os slogans
de seus concorrentes: “A melhor alfaiataria da cidade”, “a melhor do
Estado”, “a melhor do país”, “a melhor do mundo”. Só lhe restou es-
crever em seu cartaz: “A melhor da rua”.).

METÁFORA, METONÍMIA, CONDENSAÇÃO E DESLOCAMENTO


É preciso insistir nessa questão, pois trata-se de um ponto fun-
damental: se o conteúdo manifesto do sonho declara sem rodeios sua
dimensão enigmática e exige assim uma “tradução” (como o chiste, o
sintoma, o ato falho), o conteúdo latente (ou seja, o sonho em con-
junto com as suas associações), “esconde” ou não manifesta sua
estruturação decididamente metafórica. Essa diferença tem uma im-
portância crucial em termos metodológicos. O conteúdo manifesto,
claramente metafórico, condensa o universo discursivo subjacente,
mas simultaneamente e, ao contrário do que propõe Lacan, também

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pode ser pensado em relação à metonímia, visto ser uma “parte” que
representa o “todo” das associações. Diríamos então que, do ponto de
vista das considerações de figurabilidade (Rücksicht auf Darstellba-
rkeit), ou seja, do caráter imagético do sonho, a condensação seria de
fato metafórica, mas em relação ao conteúdo latente (associações), re-
lação essa caracterizada pela oposição “parte/todo” e prefigurada, ali-
ás, pela elaboração secundária, a condensação evocaria muito mais a
metonímia, por constituir um discurso dentro de um discurso.
Em oposição, o termo deslocamento parece aplicar-se muito me-
lhor à operação de mascaramento ou disfarce, conforme ilustrado pelo
sonho do tio José. (Um bom exemplo de deslocamento seria o da ope-
ração “desfeita” por Freud quando passou da primeira para a segunda
interpretação, procedimento que exigiu um novo conjunto de associ-
ações, ou seja, a inserção das metáforas transparentes singulares do so-
nho no âmbito discursivo). Na terminologia ora proposta e apresen-
tada acima, o deslocamento se expressa através da metáfora discursiva
ou opaca, em contraposição à metáfora sintagmática ou transparente,
mecanismo por excelência da condensação. O aspecto metonímico as-
sinalado por Lacan designaria, de acordo com nosso ponto de vista, o
fato de que toda sessão (todo discurso de uma sessão) seria “parte” de
um conjunto virtual, jamais plenamente aferível, embora certamente
“representado” pelo fragmento ouvido e interpretado, ou seja, o mes-
mo tipo de relação que Freud descreveu entre os conteúdos manifesto
e latente do sonho. Diríamos, portanto, que tanto a condensação como
o deslocamento são metafóricos (diferenciando-se respectivamente pela
transparência e pela opacidade), na medida em que exigem a interpre-
tação para que seu sentido seja explicitado, embora também sejam
metonímicos, porquanto a mencionada explicitação de sentido perma-
neceria assintótica – ou seja, jamais equivaleria à totalidade do discurso
do sujeito.
Em relação às duas interpretações de Freud acerca do sonho do
tio José, caberia supor, de acordo com a conceituação anterior, que a
primeira se inscreve no âmbito da metáfora transparente singular (ten-
do correspondência com a noção lacaniana de demanda), enquanto a
segunda se manifesta no nível discursivo (metáfora opaca, apontando
para o que Lacan define como desejo). A primeira desmetaforização
(interpretação da metáfora transparente, ou seja, a expectativa da não-
nomeação dos amigos, por serem semelhantes ao tio, traduzida por
“calúnia” e, conseqüentemente, por “rivalidade”) é seguida de uma se-
gunda, que representa, por sua vez, algo de caráter mais genérico e
abstrato: desejo de exclusividade (ser o único ministro judeu), meta-

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forizado “opacamente” pelo anseio da nomeação em questão. Assim,


do circunstancial (disputa de um cargo) passa-se ao estrutural (busca
de primazia em toda e qualquer situação).
Considerar que o conteúdo latente está estruturado tão metafo-
ricamente como o conteúdo manifesto do sonho significa que todo dis-
curso, não importa qual seja o seu conteúdo, está estruturado metafo-
ricamente; implica igualmente considerar que por essa razão o proce-
dimento interpretativo constitui o próprio método psicanalítico, defi-
nido como busca de sentido (isto é, desmetaforização) e não de causa.
Tal procedimento atribui ao sentido do discurso pronunciado no mo-
mento da sessão o papel de testemunhar o que se revela nesse momen-
to.42 Essa atribuição de uma função determinante ao sentido do dis-
curso se estenderia, por sua vez, a toda e qualquer manifestação dis-
cursiva, definindo a interpretação como desmetaforização, analoga-
mente ao que foi estabelecido pela metodologia instituída para a
interpretação de sonhos, embora Freud tenha geralmente limitado a
aplicação dessa prática à relação entre o conteúdo manifesto e suas as-
sociações imediatas. Tal abordagem implica igualmente não considerar
qualquer conteúdo como privilegiado em relação ao próprio discurso.
O próprio sonho perderia tal privilégio.43 Assim, não haveria interpre-
tação “de sonho”, mas apenas interpretação de sessão (ou seja, do dis-
curso de tal ou qual sessão, cujo conteúdo pode ou não ser um sonho).
Se tais raciocínios forem plausíveis, a conseqüência é que não só
as correspondências entre condensação e metáfora, deslocamento e
metonímia, ficam questionadas, mas também a própria conceituação
de metáfora por parte de Lacan, visto que ela se apóia numa definição
de metáfora explícita (ou seja, a metáfora, como se manifesta na poesia,
no chiste, na fala coloquial, na proverbialização, na parábola, nos con-
tos com “moral”) e numa concepção de substituição restrita (termo a
termo ou sintagma a sintagma). Ou seja, por definir o discurso unica-
mente pela metonímia e limitar o papel da metáfora à produção das
imagens oníricas44 (condensação), restringindo assim a metáfora à sua
manifestação mais elementar (metáfora transparente45), entende-se
que a concepção metodológica lacaniana acabe por desconsiderar o
42 Ao analisando caberia a “outra parte” do trabalho, isto é, relacionar a interpretação, sempre parcial e
relativa ao discurso de uma sessão, a ele como “pessoa”.
43 O sonho permanece em posição fundamental apenas no que se refere ao papel que desempenhou em
relação ao desenvolvimento do método psicanalítico. E não é pouco.
44 As palavras, faladas ou escritas, que porventura compareçam no conteúdo manifesto do sonho, devem
ser tratadas igualmente como imagens, ou seja, como significantes separados de seu significado referencial
habitual para cumprir a função de porta-vozes da mensagem onírica.
45 Quer lingüística singular em registro comunicativo (exemplos da poesia e do chiste), quer discursiva sin-
gular em registro enigmático (condensação onírica).

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procedimento interpretativo freudiano, confundindo-o presumivel-


mente com análise de conteúdo.
Mas a noção de “metáfora paterna” permite reconhecer que em
Lacan também há uma outra conceituação de metáfora, dessa vez for-
mulada no âmbito da teoria – a teoria do processo de constituição do
sujeito. É possível discernir nessa noção lacaniana uma das caracterís-
ticas mais importantes da metáfora, a saber, a substituição do abstrato
pelo concreto ou, em termos freudianos, a representação da lógica (ou
da estrutura – inconsciente) pela vivência (consciente), ou ainda, na
própria terminologia lacaniana (referida a outro aspecto teórico), a re-
lação de correspondência/substituição/representação entre o grande
outro (“A” – simbólico) e o objeto “a” (imaginário). Uma das implica-
ções mais fundamentais desse conceito (metáfora paterna) refere-se ao
fato de que tanto a condição de infans (não falante, bebê) como a pos-
se do pênis, em momentos lógicos diferentes, metaforizariam o falo (a
completude). Isto é, seriam metáforas do desejo de não desejar, a pri-
meira concretizando a condição de “ser” o falo (ou seja, posição de
objeto absoluto) e a segunda, a condição de “ter” o falo (ou seja, po-
sição de sujeito absoluto). Por outro lado, e talvez esse seja seu aspecto
mais evidente, “metáfora paterna” designa a concretização do abstrato
da lei (interdição do incesto pela cultura/linguagem) através do empí-
rico (proibição efetuada pelo “pai” ou outro agente da função pater-
na).
Essa representação/substituição/deslocamento e ao mesmo tem-
po indício (“sintoma”) de deslocamento, que em termos lingüísticos se
expressa através da oposição abstrato/concreto, em termos freudianos,
pela oposição inconsciente/consciência (latente/manifesto) e em ter-
mos lacanianos, pela oposição simbólico/imaginário, assume, no dis-
curso, a forma da oposição entre sentido e significação. A passagem da
segunda ao primeiro dar-se-ia mediante a desmetaforização – opera-
ção efetuada sobre a metáfora discursiva ou opaca.

ESCANSÃO, PONTUAÇÃO, INTERPRETAÇÃO


(...) a mensagem não se reduz a uma sucessão de uni-
dades que devem ser identificadas separadamente; não
é uma adição de signos que produz o sentido, é, ao
contrário, o sentido (o “intencionado”), concebido
globalmente, que se realiza e se divide em “signos”
particulares que são as palavras.46

46 BENVENISTE, 1989, p. 65.

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(...) eles reclamam algo mais do que uma escansão, um


matema ou um cronômetro.47

A redefinição de condensação como metáfora transparente (des-


de que inserida nas associações do sonhador, o que acarreta sua trans-
formação em algo semelhante a uma metáfora coloquial singular), e de
deslocamento como metáfora discursiva (pelo que se entende que todo
discurso “manifesto” metaforiza um discurso “latente”), permite enfim
precisar melhor nossa crítica à posição metodológica lacaniana. A hi-
pótese de que o discurso seja metafórico tem por implicação que, uma
vez adquirida a linguagem, significante e significado entrem em corres-
pondência – com todas as ambigüidades, mal-entendidos, efeitos poé-
ticos e cômicos, sintomas etc., que se quiser. Em outros termos, a aqui-
sição de linguagem se funda justamente no estabelecimento dessa cor-
respondência, decerto mais plurívoca e equívoca do que unívoca, mas
enfim correspondência, tanto em nível semântico como discursivo.
Efetivamente, apenas na origem (isto é, no momento que prece-
de a aquisição da linguagem, ou seja, no estado de paralelismo entre
algaravia e palavra especular, ocasião em que a rede fonológica [o fu-
turo significante] e o comportamento comunicativo [o futuro signifi-
cado] coexistem separados48) poder-se-ia pensar em algo semelhante a
um significante puro. Além disso, unicamente em estados de “deses-
truturação” psicótica (perda de sintaxe) e de afasia49 ter-se-ia um qua-
dro eventualmente parecido. A referida desestruturação parece restau-
rar a situação “originária” (ou seja, a separação entre o que precede as
futuras cadeias do significante e do significado), ou pelo menos produz
um efeito similar. Entretanto, uma vez constituído o discurso (e en-
quanto continua estruturado), significante e significado permanecem
intrinsecamente ligados, e é com esse amálgama instável mas sempre
refeito que o psicanalista se depara. Pretender desfazê-lo não leva a
nada que não seja seu pleno restabelecimento e ignorá-lo conduziria a
algo tão vão como tentar cortar uma folha no anverso sem atingir o
verso (metáfora saussuriana, aliás, relativa a essa mesma soldagem sig-
nificante/significado).
O significante é, sem dúvida, condição da linguagem, logo, do
discurso. Mas, uma vez instituído, o discurso se subdivide em manifesto
e latente (e este, por sua vez, em pré-consciente/inconsciente); o seu ní-
47 ROUDINESCO, 1994, p. 439.
48 Cf. GOLDGRUB, 1997, cujo tema central é precisamente a relação entre a aquisição da língua materna
e o processo de constituição do sujeito.
49 O que não significa evidentemente propor qualquer relação de similaridade estrutural entre psicose e
afasia; nesta última a perda seria orgânica e, portanto, instrumental.

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vel inconsciente não jaz no significante.50 Se este (significante) produz


seus efeitos a partir do recalque primário (pura diferença do infans em
relação aos seus desejantes), é preciso não esquecer que ele fica subsu-
mido no discurso por ocasião da aquisição de linguagem (passagem de
infans a sujeito como identidade desejante = discurso). Desde então,
torna-se (o significante) inacessível. Não assim a relação entre os dis-
cursos; ela se institui em virtude das articulações produzidas pela me-
taforização transparente (conteúdo manifesto/discurso pré-consciente)
e pela metaforização opaca (conteúdo manifesto-discurso pré-consci-
ente/discurso inconsciente). Se intervir sobre o significante com “exclu-
são” do significado parece-nos mais impossível do que improvável, re-
conheceremos por outro lado de bom grado que nem por isso a inter-
venção psicanalítica concebida como interpretação é menos enigmáti-
ca, tanto em suas condições como em seus efeitos, reconhecimento
pelo qual se admite que a questão é extremamente complexa e se furta
a soluções simplistas. Esse é, precisamente, um dos problemas funda-
mentais com que se depara a psicanálise desde sempre, e agora mais do
que nunca.
Assim, supondo que a estratégia clínica lacaniana possa ser defini-
da como uma intervenção sobre o significante através da pontuação e da
escansão, que descontroem a palavra (morfema) em seus fonemas cons-
titutivos e suspendem o significado “manifesto” da frase (enunciado) ao
suprimir a indicação de sua forma (afirmativa, exclamativa, negativa, in-
terrogativa), pode-se objetar que tais procedimentos não fazem senão
relançar o discurso/fala do analisando, promovendo outra cadeia de
enunciações/enunciados em que significante/significado permanecem na
sua habitual relação de independência/dependência, ou seja, ambigüida-
de/correspondência, como habitualmente. Não é diferente do que acon-
tece numa postura freudiana ortodoxa, em que o psicanalista costuma
sugerir, implícita ou explicitamente, o procedimento associativo com
base numa palavra ou frase (algo muito comum com referência à “aná-
lise” de sonhos). O que separa claramente a clínica lacaniana da prática
ortodoxa é a sua recusa da análise de conteúdo, que ambas, aliás, con-
fundem com interpretação; equívoco indicativo, aliás, de que a distinção
entre análise de conteúdo e interpretação não foi efetuada nem por uns
nem por outros. Conseqüentemente, a criança do procedimento inter-
50 A relação “figura/fundo” entre elemento e sistema (a parte e o todo), como proposta por Saussure, tem
por implicação tanto a homogeneidade (todo fonema evoca o sistema fonológico do qual faz parte, qual-
quer morfema denuncia o conjunto de morfemas-lexemas que o contém) como a hierarquização (pirâmide
fono-morfo-sintático-semântica da língua), em que o nível precedente é englobado pelo seguinte. Por esse
duplo motivo – regras da homogeneidade e da hierarquia – o discurso manifesto não poderia reportar-se ao
significante puro (fonema, letra) senão, pelo contrário, integrar-se a um sistema discursivo.

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pretativo é jogada fora juntamente com a água usada do banho conteu-


dístico. As críticas lacanianas à interpretação parecem depender dessa
sinonímia, que julgamos totalmente indevida. Salvo engano, Lacan não
aborda a questão e nem em seus seguidores é possível encontrar uma
discussão sobre a metodologia freudiana, com os argumentos que, seria
de se esperar, justificassem as críticas dirigidas ao procedimento inter-
pretativo.
Uma ilustração da forma quase distraída com que uma questão
desse porte tem sido tratada na literatura lacaniana consta de um livro
sob outros aspectos bastante sério. Em Introdução à Leitura de Lacan
(1˚ v.), e após citar a passagem em que Freud utiliza a metáfora da co-
municação telefônica – transformação de ondas sonoras em vibrações
e vice-versa – para descrever a maneira pela qual o psicanalista recebe
o material verbal, Joël Dor escreve:

Tal processo induz, inevitavelmente, a uma questão mais


ampla: no exercício da atenção flutuante, como pode o
analista desvencilhar-se da influência de suas próprias mo-
tivações inconscientes?51 Outro problema que decorre do
precedente: a partir de que elementos específicos o ana-
lista intervirá, se nenhum dos materiais é a priori privile-
giado em sua escuta?52

A descrição do “primeiro problema” supõe a constatação – que


Dor não faz – de que o ato interpretativo ou o tipo de escuta a que
Freud se refere denota uma relação entre dois discursos, e não duas
pessoas, idéia que transparece tanto nos conceitos associação livre e
atenção flutuante, como na própria metáfora telefônica mencionada.
Já o comentário relativo ao segundo problema parece mostrar que de
fato Dor pensa na prática clínica a partir da análise de conteúdo e que,
sem essa bússola, não vê como estipular critérios para escolher os “ma-
teriais específicos” sobre os quais se fará a intervenção. Admite assim
– na verdade proclama – que a intervenção de inspiração lacaniana su-
põe uma escolha de material e que não é de natureza discursiva.
Na seqüência do mesmo texto – e após reconhecer que “Se as con-
cepções metapsicológicas elaboradas por Lacan não permitem solucio-
nar profundamente esses diferentes problemas”, concessão atenuada
pela observação de que “pelo menos introduzem um ponto de vista téc-
nico original a esse respeito” –, ele afirma que a “atenção flutuante apa-
51 É interessante que não tenha ocorrido a Dor fazer-se essa mesma pergunta.
52 DOR, 1992, p. 119.

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rece sobretudo no nível do enunciado e de seu sujeito”, sem maiores ex-


plicações... Em oposição, a postura clínica lacaniana consistiria em

(...) estar receptivo aos significantes que advêm, através


do dizer, para além dos significados que se organizam
no dito (...) A intervenção analítica isola-se, nesta me-
dida, tanto da problemática de uma compreensão que
se deveria incentivar no paciente como de uma cons-
trução a ser elaborada a partir do material que ele traz.
Nesta perspectiva, a intervenção do analista, que se
subtrai igualmente à esterilidade da interpretação ex-
plicativa, ater-se-á, ao contrário, exclusivamente a
pontuar o dizer do paciente por meio de uma escansão
que fará surgir, no próprio lugar da enunciação, a
abertura significante que ali se faz ouvir, quando está
destinada a se fechar novamente na conclusão do
enunciado.53

A correspondência suposta entre escuta de enunciado e sujeito


da consciência vai contra a mais elementar das concepções do ato in-
terpretativo, que visa notoriamente atingir o que quer que seja da or-
dem do inconsciente... Se Dor considera que a interpretação freudiana
contradiz seu próprio objetivo, ele fica devendo uma demonstração,
em vez de apresentar, nos limites de uma única frase, essa hipótese
como uma obviedade, um truísmo ou um ponto pacífico. A partir d’A
Interpretação dos Sonhos sabe-se que o procedimento interpretativo,
independentemente de todos os problemas inerentes às suas condições
e ao respectivo rigor, parte do manifesto para atingir o latente. Defen-
der o oposto requer um arrazoado minimamente consistente.
A inexistência de uma reflexão prévia sobre a interpretação freu-
diana e a história da técnica psicanalítica prejudicam bastante a refe-
rida argumentação de Dor, conferindo-lhe uma superficialidade de-
plorável. Descrever a interpretação como “explicativa” e atribuir-lhe
um papel “esterilizante”, sem qualquer explicitação que auxilie o leitor
a julgar a validade dessas afirmações é, no mínimo, correr seriamente
o risco da gratuidade... Se deixarmos de lado o aspecto crítico da
argumentação, passando à preconização, a situação tampouco melho-
ra. Procurando elucidar melhor a postura lacaniana a respeito, ele cita
o Discurso de Roma:54 “Para liberar a palavra do sujeito, o introduzi-
53 DOR, 1992, pp. 119-120.
54 “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, LACAN, 1953, in: DOR, 1992. Na tradução
brasileira do texto de Dor, fala (parole) aparece como palavra. A melhor tradução seria (em termos do sen-
tido do título lacaniano) discurso.

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mos à linguagem de seu desejo, ou seja, a linguagem primeira, na qual,


para além do que ele nos diz de si, desde já ele nos fala sem que o saiba
e antes de mais nada nos símbolos do sintoma”.55 A expressão lingua-
gem primeira constitui obviamente uma metáfora,56 o que não teria
nada de mais se (Lacan? Dor?) não pretendesse(m) fazê-la passar por
explicação... Por outro lado, símbolos do sintoma é uma expressão
precária para o que conviria designar por discurso.
Quanto à dificuldade de aceder ao puro significante, sobre a qual
temos insistido, pelo menos numa ocasião Lacan parece tê-la reconhe-
cido com todas as letras:

O significante deve ser concebido em primeiro lugar


como distinto da significação. O que o distingue é o
fato de ser em si mesmo sem significação própria. Ten-
tem imaginar em conseqüência o que pode ser a
aparição de um puro significante. Naturalmente, nem
mesmo podemos imaginá-lo, por definição. E no en-
tanto, pois que nos colocamos questões de origem, é
preciso ainda assim tentar se aproximar do que isso
pode representar.57

A releitura do caso Dora por Lacan, porém, parece mostrar que


a análise de conteúdo permanece vigente em sua metodologia (“na
prática a teoria é outra”). Se, por outro lado, forem levadas em conta
apenas as críticas e as preconizações, considerando-se a escansão e a
pontuação como modalidades de intervenção por excelência, enquan-
to práticas que incidem sobre o significante e se distinguem do que no
lacanismo se entende como interpretação (mas que, conforme
argumentação supra, não seria senão análise de conteúdo ou aplicação
da teoria ao discurso), resta que essa metodologia não faz senão esco-
lher, com base numa escuta que visa isolar o significante do significado
e a partir do que o psicanalista considera chamativo desse ponto de
vista, um outro desencadeante para as associações do analisando. Daí
os procedimentos de, por exemplo, “anagramização” (inversão dos fo-
nemas de uma palavra: pata/tapa, barro/rabo, trapo/parto), “segmenta-
ção” ou “trocadilho” (ali-viado, amar-ela, pica-pau, de-monstro), “po-
55 LACAN, 1953, in: DOR, 1992, p. 157.
56 E uma metáfora que aponta, nada mais nada menos, para o objetivo de atingir o “âmago” do inconsci-
ente. Neste mesmo texto, na seção precedente, explicitamos as razões pelas quais julgamos irrealizável essa
finalidade. Conceber o inconsciente como linguagem implica restringir o sujeito ao discurso. O inconsci-
ente, desse ponto de vista, se manifestaria enquanto sentido presente numa determinada relação discursiva,
precisamente na relação entre significação (manifesta) e sentido (latente). Com o que torna-se possível pres-
cindir da noção de um “inconsciente metafísico”, a cujo “âmago” recôndito a análise deveria aceder.
57 LACAN, 1985, p. 227.

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lissemização” (doninha [animal e mulher, pejorativamente], sardinha


[peixe e pequena sarda], gamada [apaixonada, símbolo do nazismo]),
que não deixam ser tributários de uma atitude interpretativa ou con-
teudística (ambas inconfessas), conforme o caso. Alguns exemplos fa-
zem mesmo pensar numa espécie de extensão da noção de ato falho
(ou de equívoco) à totalidade do discurso, através do apontamento in-
cessante da ambigüidade das palavras e expressões que se prestam a
esse procedimento.
Assim como é possível dizer que Freud eventualmente associava
por seus pacientes (cf. caso Dora), e constatar que na abordagem klei-
niana o conceito de identificação projetiva legitima a utilização das
próprias emoções por parte do psicanalista para captar movimentos
transferenciais de outra forma indetectáveis, não é descabido supor
que a técnica lacaniana autoriza e incentiva seus praticantes a perceber
argutamente o ato falho ou o equívoco que o pérfido analisando (in-
corrigível, pelo visto) deixou de cometer.
Tudo leva a crer que, da mesma forma que o conceito de trans-
ferência e seu papel na prática clínica passaram por um processo de hi-
pertrofia na abordagem kleiniana, outro tanto aconteceu com a noção
de significante na prática lacaniana. Essas exorbitações têm lá suas ra-
zões. De fato, é inegável que da existência de um estado transferencial
prévio depende o próprio estabelecimento do contrato psicanalítico,
do mesmo modo que desde Saussure se conhece o papel estruturante
desempenhado pelo significante na linguagem, descoberta enfatizada
por Lacan e transposta heuristicamente por ele para o âmbito da teoria
e da epistemologia psicanalíticas. Assim, ambas as condições “originá-
rias” (a da própria situação psicanalítica e a do seu solo epistemoló-
gico), dependeriam respectivamente da transferência e do significante.
De acordo, mas é preciso não esquecer que tais fenômenos condicio-
nantes perdem totalmente o seu caráter privilegiado quando a “análise”
se põe em marcha. A transferência se integra, então, ao discurso, que
a abrange, como acontece com qualquer outro conteúdo, da mesma
forma que o nível significante – constitutivo da linguagem – só poderá
manifestar-se pela conjunção enunciação/enunciado, ou seja, será sol-
dado discursivamente ao significado, convergência cujo resultado é o
discurso organizado metaforicamente, objeto por sua vez do procedi-
mento interpretativo desmetaforizante.
As práticas clínicas dessas vertentes tão contrastantes da psicaná-
lise constituídas pelo kleinismo e pelo lacanismo aproximam-se assim
de uma maneira paradoxal, na medida em que ambas “arcaízam” a si-
tuação analítica. Na abordagem kleiniana, isso se dá pela priorização

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(ou mesmo absolutização) do primeiro momento do processo de cons-


tituição do sujeito (ou seja, quando ele se encontra em posição de ob-
jeto), etapa considerada como fundamental para entender seu estado
atual, com o correspondente desprezo por todas as decorrências re-
sultantes da construção da posição desejante,58 em especial a aquisição
de linguagem. Tal aliás é a razão conceitual do privilégio concedido
pelo kleinismo à emoção. Assim, o sentido do discurso é reduzido (e
nessa medida empobrecido até a indigência) ao código maniqueísta59
das “emoções básicas”, referidas por sua vez a um estado de depen-
dência absoluta (a do bebê), estado cuja repetição é postulada consti-
tuir o cerne da situação psicanalítica. O personagem do psicanalista
como “mãe continente” encontra sua raison d’être precisamente nesse
quadro.
Na abordagem lacaniana, a arcaização incide sobre a própria lin-
guagem. A dimensão do enunciado/significado é confiscada do discur-
so do analisando mediante uma escuta depurada que se proclama ser-
va exclusiva do significante puro. Conseqüentemente, o analisando é
reconduzido à condição de infans pela decomposição da argamassa de
que é feita sua produção discursiva. A lâmina que pretende cortar sa-
gitalmente a cadeia do significante separando-a da do significado sus-
citaria uma espécie de “desaquisição” da língua materna.60 A atmos-
fera “zen” da asséptica sessão lacaniana proveria assim a condição ne-
cessária para superar o conflito (“atravessar a fantasia”), eliminando o
significado vigente, tão imprescindível ao imaginário como o ar a um
incêndio. A relação enunciação/enunciado existente seria dessa forma
dissolvida em benefício de uma outra (“melhor” ou menos conflitiva),
possibilidade dependente por sua vez da intervenção em estilo oracu-
lar. Pois, tendo confundido o discurso com a pessoa (ou seja, com o
moi, o “eu da consciência”), só resta ao praticante evitar qualquer con-
tato com o enunciado, do qual foge como o diabo da cruz – ou o in-
verso. O analista lacaniano encarnaria dessa maneira o “pai castrado”
(autodestituído do instrumento discursivo), que efetua o corte cirúrgi-
co do falo envergando o manto de sumo sacerdote do significante e
oficiante de seus mistérios.
58 Ou seja, o momento em que o infans passa efetivamente à condição de sujeito (primeiro absoluto, depois
‘castrado’); na terminologia kleiniana, o momento posterior (day after) às posições esquizo-paranoide e
depressiva.
59 Seio bom/seio mau, idealização/projeção.
60 Essa primazia concedida ao significante em detrimento do discurso parece não conhecer limites, e cami-
nha lado a lado com uma desenvoltura e uma precisão desconcertantes no campo do diagnóstico. A propó-
sito da aprendizagem de um segundo idioma, um autor lacaniano escreve: “Pode-se mesmo mudar de
neurose passando de uma língua à (a) outra. Por exemplo, de obsessivo em origem, tornar-se histérico com
traços fóbicos” (MELMAN, 1992, p. 33).

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Que tais práticas impliquem uma concepção particularmente re-


gressiva e infantilizada do protagonista da situação psicanalítica está
longe de ser mera coincidência... Pois há bons motivos para crer que
as notáveis inovações teóricas do kleinismo e do lacanismo (neste úl-
timo acrescidas de uma reformulação epistemológica tão radical como
heurística) não puderam deter-se no limite da teoria e invadiram o
campo metodológico.61 Os conceitos elaborados a partir dos estudos
sobre o processo de constituição do sujeito, cenário por excelência da
notável contribuição dessas duas obras, foram transpostos para o ter-
reno clínico mediante o esquecimento (ou a desconsideração) de que
o “paciente” ou o “analisando” – alguém plenamente capaz de cele-
brar o contrato psicanalítico – se define como sujeito já constituído,
isto é, “alguém” dotado de um discurso,62 discurso que é, no enfoque
interpretativo freudiano, o objeto da intervenção. Do ponto de vista
freudiano, não há como (e nem seria necessário) remontar a um esta-
do prévio ao discurso – ou seja, a um estado prévio à condição de su-
jeito. Talvez as metodologias kleiniana e lacaniana constituam o em-
brião de uma vertente do método psicanalítico dedicada ao tratamento
da psicose – especialmente da psicose infantil em que, comparativa-
mente à psicose do adulto, as possibilidades de transformação são pre-
sumivelmente maiores. Se essa hipótese for plausível, tratar-se-á de
uma inovação metodológica verdadeiramente crucial.
Mas no que se refere à situação psicanalítica “clássica”, as refe-
ridas práticas clínicas do kleinismo e do lacanismo catapultam o ocu-
pante do divã à sua pré-história, assumindo e supondo que seria pos-
sível “começar tudo de novo” mediante a erradicação dos fatores cau-
sais vigentes (etiologia). A essa desconstrução da relação originária
com as figuras parentais (não importa se concebidas como “reais”,
“imagos”, “modelos” ou “suportes lingüísticos”, pois sob o aspecto
ora examinado a distinção é irrelevante), tidas como responsáveis pelo
conflito, seria atribuída a possibilidade de transformação. A “mãe”
kleiniana e o “pai” lacaniano, modelos cujas falhas teriam conduzido
o paciente/analisando ao divã, seriam assim substituídos pelo respec-
tivo analista para que o processo de reconstituição do sujeito possa ser
efetuado. Nessa perspectiva, a psicanálise é retratada como uma “má-
quina do tempo”, concepção cuja semelhança com a da teoria do trau-
ma não precisa ser ressaltada – a única diferença é que o acontecimen-
to único e decisivo fica substituído aqui pela idéia de “processo”.
61 Talvez devido à ausência de distinção entre teoria e prática, ou entre teoria do sujeito e teoria do método.
62 Seria talvez mais exato dizer um discurso dotado de “alguém”, reconhecendo o papel da linguagem no
estabelecimento da identidade.

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De nossa parte, consideramos que as propostas metodológicas


kleiniana e lacaniana se devem à suposição de que os conceitos for-
mulados a respeito da teoria do sujeito, na medida em que explicam
como se estrutura a “personalidade” ou o “discurso”, seriam igual-
mente válidos para a prática clínica. O resultado dessa suposição se ex-
pressa coincidentemente pela desvalorização do discurso enquanto ob-
jeto da intervenção e pela correspondente desautorização do procedi-
mento interpretativo, atitude comum ao kleinismo e ao lacanismo. As
metodologias kleiniana e lacaniana visam um pré-sujeito e, portanto,
não podem ter por objeto o discurso – equívoco ao qual pelo menos
não falta coerência, pois discurso equivale a sujeito. A fecunda inves-
tigação acerca desse momento da vida marcado pela dependência ir-
restrita em relação ao Outro acarretou uma série de avanços teóricos
fundamentais, mas parece ter cobrado um preço exorbitante em ter-
mos metodológicos, até porque sua transposição para a prática clínica
investiu o psicanalista de um poder que, evocando a famosa afirmação
de Freud, faz da psicanálise uma profissão impossível.
(Boutade, aliás, das mais fecundas. Poucas frases de Freud moti-
varam tantos comentários. A eles acrescentaremos o seguinte, inspira-
do em Camões, e pelo qual propomos seu entendimento ao pé da le-
tra: interpretar é possível, psicanalisar não é possível).
Trata-se, contudo, de algo desnecessário. Já é hora de desfazer a
convivência incestuosa entre teoria e método, herdada do modelo mé-
dico, terreno no qual essa relação é legítima.63 Em se tratando de psi-
canálise, o método exige uma teoria específica – a teoria do método,
a ser claramente distinguida da teoria do sujeito. É possível afirmar que
tanto Klein como Lacan, que enfatizaram – e com toda justiça – a do-
lorosa necessidade da separação para a construção da identidade, man-
tiveram unidos em conflitiva simbiose tanto a teoria e a prática clínica
psicanalíticas como, correspondentemente, o modelo psicanalítico e
sua matriz médica.
Resta reconhecer mais uma vez que a análise de conteúdo, no-
tadamente no que se refere ao papel que teve no estabelecimento da
nosografia psicanalítica, foi extremamente valiosa, do ponto de vista
histórico, para a teoria do sujeito, sobre cuja importância não há ne-
cessidade de insistir. Uma metodologia interpretativa não teria permi-
tido o contato direto com a “realidade” (isto é, a referência) dos sin-
tomas, impedindo a correspondente teorização. Entretanto, uma das
peculiaridades marcantes da psicanálise é a de que sua prática conduz
63 Mesmo assim, pense-se na homeopatia e nas suas semelhanças com a psicanálise.

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à constatação da singularidade absoluta do discurso, confinando assim


a nosografia à teoria do sujeito, necessariamente genérica e universal,
e exigindo, em contrapartida, uma metodologia voltada exclusivamen-
te para a busca desse sentido absolutamente singular presente em cada
manifestação discursiva específica (“sessão”), cuja teoria – a teoria do
método – resta a ser feita.64

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENVENISTE, E. [1969] Problemas de Lingüística Geral II. Campinas: Pontes
Editores, 1989.
DOR, J. Introdução à Leitura de Lacan: o inconsciente estruturado como lingua-
gem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.
FREUD, S. [1912]. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas
de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969.
GARCIA-LORCA, F. Antologia Poética. Buenos Aires: Losada, 1957.
GOLDGRUB, F. Fenomenologia da metáfora. Psicologia Revista, (1): 19-31,
1995.
________. A máquina do fantasma. PUC-SP: LAEL, 1997. [Dissertação de douto-
rado]
LACAN, J. [1955/56]. O Seminário, Livro III: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1985.
________. [1966] Escritos. São Paulo: Perspectiva, 1978.
________. [1966] Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
MANNONI, O. Isso não Impede de Existir. Campinas: Papirus, 1982.
MELMAN, C. Imigrantes. São Paulo: Escuta, 1992.
POLITZER, G. [1928] Crítica dos Fundamentos da Psicologia. Piracicaba: Editora
UNIMEP, 1998.
ROUDINESCO, J. Lacan, Esboço de uma Vida, História de um Sistema de Pensa-
mento. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

64 A “dobradiça” articulando a teoria do sujeito e a teoria do método poderia ser enunciada aproximada-
mente assim: se o inconsciente se estrutura como linguagem, o sujeito se manifesta como discurso. Em
decorrência, se a teoria das leis gerais da linguagem (isto é, do inconsciente) requer a perspectiva do univer-
sal, a pesquisa do sentido presente no discurso (isto é, no sujeito) requer o reconhecimento da singularidade
de suas manifestações.

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Luto e Criação em
A Interpretação de Sonhos*
Mourning and Creativeness in
The Interpretation of Dreams
RESUMO – Em 23 de outubro de 1896, o professor Sigmund Freud vivenciou a
experiência da morte de seu pai. O propósito do presente trabalho é trazer à su-
perfície alguns movimentos psíquicos do mundo interno do pai de A Interpretação
de Sonhos, em especial aqueles que se referem ao doloroso processo de elaboração
do luto normal. Percorrendo as cartas de Freud a Fliess no período de 1896 a
1900, foram seguidas as pegadas das etapas do luto de Freud pela morte do pai,
desde a idealização inicial do objeto perdido, a culpa do(s) sobrevivente(s), os sen-
timentos de ódio que transtornam a idealização, o triunfo sobre o morto e a culpa.
Abraçando o aporte teórico de Klein sobre o luto e suas relações com os estados
MARIA TERESA GIMENEZ
maníaco-depressivos, destacam-se os passos do luto de Freud, desembocando nos Professora da Faculdade de Psicologia
movimentos de reparação, sublimação e criação. Foi pela análise dos próprios so- da UNIMEP, supervisora de Estágio
nhos e sob a força da elaboração do luto que nasceu a obra que lançou a psica- e mestre em Psicologia Clínica.
fp@unimep.br
nálise no mundo.
Palavras-chave: luto – reparação – sublimação – criação.
ABSTRACT – On October 23rd, 1896, Professor Sigmund Freud lived through the
experience of the death of his father. This paper intends to uncover some psychic
movements within the inner world of the father of The Interpretation of Dreams,
especially those relating to the painful process involved in normal mourning. By
investigating his letters to Fliess from 1896 to 1900, the stages of Freud’s mour-
ning process for his father’s death are followed, from the initial idealization of the
lost object to the guilt felt by the survivor(s), the feelings of hate that disturbs ide-
alization, the triumph over the deceased and guilt. Applying Klein’s theoretical ap-
proach to mourning and its relationship to maniac-depressive states, the stages of
Freud’s mourning are thrown into relief, culminating in movements of reparation,
sublimation and creativeness. It was through the analysis of his own dreams and
under the stress of mourning that Freud prepared the book that brought psycho-
analysis into the world.
Keywords: mourning – reparation – sublimation – creativeness.1

1 * Nota do editor (N.E.): a autora deste artigo opta pelo título original da obra, A Interpretação de Sonhos,
seguindo as primeiras traduções para o português e guardando fidelidade à versão inglesa, The Interpreta-
tion of Dreams, bem como ao original alemão Die Traumdeutung.

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6978_Impulso_26.book Page 98 Wednesday, October 1, 2003 1:07 PM

Num final de tarde do inverno de 1898, o professor


Sigmund Freud entrou no cemitério de Viena para
colocar um ramo de flores na sepultura de seu pai
Jacob. Encontrou casualmente um ex-amigo, encami-
nhou-se para o túmulo paterno e confidenciou, amar-
gurado: “Meu pai morreu. Meus pais espirituais
estão enterrados. Estou sozinho diante de mim e não
odeio mais ninguém. Agora o pai sou eu”. Talvez a
cena de Freud decifrando o mistério da paternidade
não tenha sido exatamente esta, mas foi assim que
Jean-Paul Sartre decidiu terminar o roteiro cinemato-
gráfico que fez em 1959, um gigantesco trabalho,
publicado em 1984, em Paris, com o título Le Scena-
rio Freud.

O CENÁRIO

Q uando Jacob Freud desposou Amalia Nathansohn, sua ter-


ceira mulher, em 1855, ele estava com quarenta anos, vinte
a mais que sua esposa. Tinha dois filhos do primeiro casa-
mento – o mais velho, Emanuel, casado e com filhos, e Philipp, sol-
teiro. Moravam vizinhos. Emanuel era mais velho do que a jovem e
atraente madrasta que o pai trouxera de Viena, ao passo que Philipp
tinha apenas um ano menos do que ela. Igualmente intrigante era o
fato de que um dos filhos de Emanuel fosse um ano mais velho que
o próprio Sigismund, nome original que se alteraria mais tarde na vida
do pai de A Interpretação de Sonhos. Portanto, ao nascer, Freud já era
tio de John, que se tornaria amigo inseparável, companheiro de brin-
cadeiras e também seu principal inimigo de infância.2
Em 6 de maio de 1856, na pequena vila de Freiberg, nasceu o
primogênito dessa união – Sigismund. Sendo o pai, Jacob, comerciante
de lãs, pobre, os Freud moravam numa casa simples, de dois andares,
acima dos aposentos do proprietário do imóvel, um ferreiro. Ali, sobre
uma ferraria, nasceu Freud.
Os Freud não ficaram muito tempo em Freiberg. Em 1859 mu-
daram-se para Leipzig e, no ano seguinte, para Viena. As dificuldades

2 “Um amigo íntimo e um inimigo odiado sempre foram requisitos necessários de minha vida emocional”,
confessou Freud em A Interpretação dos Sonhos. “Eu sempre soube me prover constantemente de ambos”
(FREUD [1899], 1980b, p. 516). Na sua primeira infância este duplo papel foi desempenhado pelo sobri-
nho. Mais tarde, durante a década de suas descobertas iniciais, Freud converteu Wilhelm Fliess nesse neces-
sário amigo e, depois, inimigo.

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financeiras da família eram presentes. Numa passagem autobiográfica


que inseriu em um artigo de 1899, ele descreveu a si mesmo como “fi-
lho de pais originalmente abastados que, creio eu, viviam naquele bu-
raco de província com bastante conforto”.3 O uso dessa hipérbole é
um prenúncio do que Freud viria a chamar mais tarde “romance fa-
miliar”, essa disposição generalizada entre as pessoas de achar seus pais
mais prósperos ou mais famosos do que na realidade são. Escreveu ele:
depois de uma “catástrofe no ramo industrial em que meu pai estava
empregado, ele perdeu sua fortuna”.4 Na verdade, não se poderia di-
zer do pai que fosse alguém que tivera e não conseguira conservar.
Por outro lado, a fertilidade procriadora da mãe – Amalia Freud
– não contribuía para aliviar a precária situação financeira da família.
Por ocasião da mudança para Viena, havia dois filhos – Sigismund e
Anna. Um outro filho, Julius, morrera aos sete meses. Então, numa se-
qüência rápida, entre 1860 e 1866, Freud foi presenteado com quatro
irmãs – Rosa, Marie, Adolfine e Pauline – e com o caçula, Alexander.5
Seguiu-se uma catástrofe familiar, com a prisão do tio paterno, in-
diciado por negociar com rublos falsos. Esse tio não benquisto por
Freud, que invadia seus sonhos, foi lembrado em A Interpretação de So-
nhos, numa passagem na qual menciona que os cabelos de seu pai em-
branqueceram de desgosto em poucos dias. Além do desgosto, prova-
velmente se somava a angústia, porque, ao que tudo indica, Jacob e seus
filhos mais velhos teriam alguma participação nos negócios desse tio.

O PAI
Os sentimentos dúbios de Freud em relação ao pai foram alcan-
çando cada vez mais a superfície. Conta ele: “Devia contar dez ou
doze anos, quando meu pai começou a levar-me em seus passeios e a
revelar-me em suas conversas seus pontos de vista sobre as coisas do
mundo em que vivemos”.6 Um dia, para mostrar como a vida havia
melhorado para os judeus da Áustria, Jacob Freud contou esse caso
para o filho: “Quando eu era jovem, fui dar um passeio, certo sábado,
pelas ruas do seu lugar de nascimento; estava bem vestido e usava um
novo gorro de pele. Um cristão dirigiu-se a mim e, com um só golpe,
jogou meu gorro na lama e gritou: ‘Judeu, fora da calçada!’” Com ávi-
da curiosidade, Freud perguntou ao pai: “E que fez o senhor?”. E ob-
3 FREUD [1899], 1980a, p. 343.
4 Ibid., p. 343.
5 O nome Alexander foi escolhido pelo menino Freud, então com dez anos, baseado na lembrança da mag-
nanimidade de Alexandre e sua bravura como líder militar macedônio.
6 FREUD [1899], 1980b, p. 208.

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teve a calma resposta: “Desci da calçada e apanhei meu gorro”. A rea-


ção do pai, diria ele, “não me pareceu heróica”.7 Veio a dúvida: então,
o pai não era “um homem grande e forte?”

Estabeleci um contraste entre essa situação e outra que


se ajustava melhor aos meus sentimentos: a cena em
que o pai de Aníbal, Amílcar Barca, fez seu filho jurar
perante o altar do lar em tirar vingança dos romanos.
Desde aquela época, Aníbal ocupara um lugar em mi-
nhas fantasias.8

Alfinetado pelo espetáculo de um judeu covarde rebaixando-se


frente a um cristão, Freud parece ter buscado um líder corajoso com
quem se identificar – o magnífico e intrépido semita Aníbal, que jurou
vingar Cartago, por mais poderosos que fossem os romanos. Fantasias
de vingança desenvolveram-se no seu íntimo. Nunca veriam a ele,
Freud, apanhando seu gorro da sarjeta imunda.
A escolha do imortal comandante como seu herói favorito traz
como razão básica ter Aníbal, contra todas as possibilidades, quase
conquistado a odiada e odiosa Roma. Ao dar nome de Alexander ao
seu irmão mais novo, ele estava também reverenciando um conquis-
tador cuja fama tornara-se maior do que a de seu pai, Felipe da
Macedônia; da mesma forma, com Aníbal ele poderia identificar-se
imaginariamente com outra poderosa figura cuja fama sobrepujara a
de seu pai, Amílcar. Ambos os heróis suplantaram os feitos dos pró-
prios pais.
Em A Interpretação de Sonhos, Freud incorreu num lapso curioso,
ao chamar o pai de Aníbal de Asdrúbal, em vez de Amílcar, e ele pró-
prio julgou mais tarde que tal lapso se relacionava com sua insatisfação
pela conduta de Jacob Freud frente aos anti-semitas.9 Mas, muito pro-
vavelmente, havia ainda um elemento edipiano intenso nas escolhas de
seus heróis: ele poderia se mostrar superior a seu pai – quer dizer, ven-
cer a luta edipiana – sem precisar rebaixá-lo demais. Com isso, no âm-
bito familiar, Freud seria vitorioso, ao mesmo tempo respeitando seu
“inimigo”.
Para se alcançar uma noção mais abrangente da dimensão da luta
edipiana de Freud, é interessante seguir um dos mais tocantes indícios,
disperso em A Interpretação de Sonhos: o tema de Roma. Era uma ci-
dade que ele queria avidamente conhecer, mas seu desejo acabava sub-
7 FREUD [1899], 1980a, p. 209.
8 Ibid.
9 Vide a compreensão integral do lapso em FREUD [1901], 1980c, p. 266.

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vertido por uma espécie de proibição fóbica. Mais de uma vez passou
férias na Itália mas, paradoxalmente, o lugar mais próximo da capital
italiana a que chegara fora o lago Trasimeno, a setenta e cinco quilô-
metros de Roma. Era o lugar em que Aníbal também se detivera.
No fim de 1897, sonhou que ele e Fliess poderiam organizar um
de seus “congressos” em Roma. E, no início de 1899, sugeriu de lá se
encontrarem na Páscoa. Roma aparece na temática freudiana como a
recompensa máxima, mas também como a incompreensível ameaça.
“A propósito”, disse a Fliess, “meu anseio por Roma é profundamente
neurótico. Ele está ligado ao meu entusiasmo dos tempo de escola pelo
herói semita Aníbal”.10 Na verdade, conquistar Roma era triunfar no
próprio quartel-general. Freud interpretava sua ambivalência por
Roma como o contraste entre a tenacidade do povo judeu e a orga-
nização da Igreja Católica. Porém, sugere algo mais: conquistar Roma
seria triunfar na sede, dominar o pai, subjugá-lo, castrar ou ser castra-
do. Um sério conflito, uma séria batalha!
Freud mesmo sugeriu que sua fobia tinha uma natureza edipiana
quando evocou o antigo vaticínio apresentado aos Tarquínios, de o
primeiro a beijar a mãe se tornar o governante de Roma. A implicação
psicanalítica desse beijo, embora Freud não o diga explicitamente, é a
vitória sobre o pai. Roma representava os mais fortes desejos eróticos
e também os mais intensos impulsos agressivos – estes apenas menos
ocultos do que aqueles. Ao publicar A Interpretação de Sonhos, Freud
ainda não chegara a conhecer Roma. Numa metáfora, não “conquis-
tara” Roma.11

A MORTE DO PAI
Na primavera e no verão de 1896 seu pai esteve à morte, e isso
foi muito mais absorvente para Freud do que seus afazeres neurológicos
e até mesmo do que as neuroses. Informou a Fliess no fim de junho de
1896: “Meu velho pai (81 anos) está em Baden”, uma estância a meia
hora de Viena, “no mais frágil estado, com insuficiência cardíaca, pa-
ralisia da bexiga e coisas semelhantes”.12
Pouco mais adiante, escreveu: “realmente creio que são seus úl-
timos dias”. A perspectiva, quase certeza, da morte do pai não o de-
10 MASSON, 1986, carta de 3 de dezembro de 1897, p. 286.
11 A natureza edipiana das fobias foi amplamente descrita por Freud ([1909] 1980d), postulando que o
ponto de fixação delas localiza-se nos conflitos em torno da situação triangular da fase fálica do desenvolvi-
mento libidinal. Igualmente, Gimenez (1983) aponta esse fator psicodinâmico predominando em uma das
quatro classes de fobia escolar em estudo. Ir à escola ou... “ir a Roma”, ambas podem evocar profunda con-
flitiva emocional de caráter edípico, com resultados semelhantes.
12 MASSON, 1986, carta de 30 de junho de 1896, p. 194.

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primiu a princípio. Expressou que não relutava em admitir seu mere-


cido descanso. Disse dele “Ele era um ser humano interessante, inte-
riormente muito feliz”,13 num lúgubre pretérito, enquanto Jacob
Freud ainda respirava. Mas, em 23 de outubro de 1896, Jacob Freud
morreu, “sustentando-se corajosamente até o fim, pois, de modo geral,
era um ser humano fora do comum”.14 Não era o momento para
apreciações críticas equilibradas; o homem que apanhara seu gorro da
sarjeta e não conseguira se sair bem em Viena foi afetuosamente es-
quecido. Por algum tempo, Freud sentiu apenas orgulho pelo pai.

O LUTO
Um fenômeno que Freud observou em si mesmo durante esses
primeiros dias de pesar foi a culpa do sobrevivente. Na carta a Fliess de
2 de novembro de 1896, escreveu sobre “a auto-recriminação que re-
gularmente surge entre os sobreviventes”.15 Klein16 estabelece ligações
entre o luto normal e a posição depressiva infantil. Aponta que, na afli-
ção do indivíduo em luto, a pena pela perda real da pessoa querida é
em grande parte aumentada pelas fantasias inconscientes de ter perdido
também os objetos bons internos. Surge o sentimento de que predo-
minam seus objetos internos maus e seu mundo interno está em perigo
de romper-se. A perda da pessoa amada leva o indivíduo enlutado a
reinstalar no ego esse objeto amado perdido. Não só o objeto perdido,
mas junto com ele outros objetos bons interiorizados, os quais são sen-
tidos como destruídos. Então, a posição depressiva mais primitiva, e
com ela as ansiedades, os sentimentos de culpa, de perda e aflição, da
situação edipiana e de outras fontes – tudo isso é reativado.
Como sabemos, a pessoa enlutada consola-se recordando a bonda-
de e as qualidades do morto, devido à tranqüilidade que experimenta ao
conservar idealizado o seu objeto amado. As fases passageiras de elação
são devidas ao sentimento de possuir dentro de si o perfeito objeto ama-
do, porém idealizado. Entretanto, a qualquer momento os sentimentos
de ódio podem irromper e transtornar o processo de idealização.
Então, a inevitável reação se manifestou. Freud sentiu dificulda-
des até em escrever cartas. Agradecendo as condolências de Fliess, afir-
ma que “a morte do velho me comoveu muitíssimo. Eu o estimava
profundamente, entendia-o muito bem e ele teve grande efeito na mi-
13 MASSON, 1986, carta de 15 de julho de 1896, p. 196. Nessa tradução para o português, o tempo de
verbo utilizado por Freud teria sido o passado, “ele foi”; na tradução de GAY (1989, p. 96), a ênfase
repousa no tempo pretérito. De qualquer forma, Freud já contava com o pai morto.
14 Ibid., carta de 26 de outubro de 1896, p. 202.
15 Ibid., carta de 2 de novembro de 1896, p. 203.
16 KLEIN [1940], 1981.

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nha vida, com sua típica mescla de profunda sabedoria e sua fantástica
despreocupação”.17 Subseqüente à morte do pai, Freud experimentou
um intenso bloqueio no processo que vinha empreendendo de sua
auto-análise. Em maio de 1897, escreve a Fliess que “algo está fer-
mentando e fervilhando em mim”.18 Em meados de junho, confessou
estar preguiçoso, intelectualmente estagnado. Logo mais, comunica:
“estou num casulo, e sabe Deus que tipo de bicho vai sair dele”.19 Ain-
da a Fliess: “Algo proveniente das mais recônditas profundezas de mi-
nha neurose opõe resistência contra qualquer progresso na compreen-
são das neuroses (...)”.20
O grande risco na elaboração do luto provém do reverso contra
si mesmo, do ódio pela pessoa amada. Uma das formas como se ex-
pressa o ódio é através do triunfo sobre a pessoa morta. A morte, em-
bora acabrunhadora, é sentida como uma vitória, originando triunfo,
mas também culpa. Klein21 observa que os sentimentos de triunfo têm
o efeito de retardar a superação do luto e contribuem ainda mais para
as dificuldades e penas do enlutado. Isso não só torna o ente querido
perseguidor mas também abala a crença nos objetos bons. Perturba si-
multaneamente o processo de idealização, necessário para se salva-
guardar dos objetos maus e vingativos.
A morte de seu pai tinha redespertado todo o passado em seu ín-
timo. “Agora sinto-me totalmente desenraizado”.22 Klein23 afirma que,
durante o luto normal, reativam-se as primeiras ansiedades psicóticas.
Observa que o indivíduo de luto atravessa um estado maníaco-depres-
sivo modificado e transitório, e consegue sobrepujá-lo, repetindo as-
sim os processos que a criança atravessa normalmente em seu desen-
volvimento. Alternam-se os estados de perseguição, em que o objeto
odiado pode infligir as mais terríveis penas ao sujeito, e os estados de
idealização, através dos quais o sujeito exalta maniacamente as quali-
dades do objeto perdido. Essas duas espécies de estados mentais cor-
rem paralelas e dissociadas.
Dificilmente seria essa a reação comum de um filho de meia-ida-
de diante do fim de um pai idoso. A tristeza de Freud foi excepcio-
nalmente intensa. E foi excepcional também pela forma como ele a
empregou para uso científico, distanciando-se um tanto de sua perda
17 MASSON, 1986, carta de 2 de novembro de 1896, p. 203.
18 Ibid., carta de 16 de maio de 1897, p. 244.
19 Ibid., carta de 22 de junho de 1897, p. 255.
20 Ibid., carta de 7 de julho de 1897, p. 256.
21 KLEIN [1940], 1981.
22 MASSON, 1986, carta de 2 de novembro de 1896, p. 203.
23 KLEIN [1940], 1981.

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e, ao mesmo tempo, reunindo material para suas teorias. Se por um


lado contava com seus quarenta anos de idade, de outro estava sob as
pressões dos ataques contra seus lances teóricos sobre a etiologia da
histeria, as chacotas e zombarias de seus pares, inclusive do mestre
Charcot e de Krafft-Ebbing, com seus comentários de que “parece um
conto de fadas científico”, referindo-se ao que Freud apresentara na
Associação de Psiquiatria e Neurologia, em abril de 1896. Além disso,
a instabilidade financeira e a escassez de sua clientela particular repre-
sentavam não só privações econômicas, mas sobretudo um golpe à sua
auto-estima.

GUINADAS NAS FORMULAÇÕES TEÓRICAS


Antes que pudesse extrair benefícios de sua dolorosa perda,
Freud foi encurralado a duvidar, questionar e, por fim, abandonar a
sua teoria da sedução. Se até meados de 1890 a asserção de que todas
as neuroses seriam resultantes do abuso sexual de uma criança, prati-
cado por um adulto, geralmente o pai, a clínica dos casos de histeria,
um sonho erótico que ele mesmo teve com uma de suas filhas, além
dos casos de histeria existentes dentro da própria família Freud, con-
duziram-no a absolver o pai. Se as investidas paternas eram as únicas
fontes de histeria, precisaria que tal conduta fosse praticamente uni-
versal. Tal perversão generalizada contra as crianças é pouco provável,
raciocina Freud. Além disso, atina que não estava claro distinguir entre
a verdade de um lado e, de outro, a ficção carregada pela emoção. Es-
tava pronto para adotar o ceticismo de método que a experiência clí-
nica lhe ensinava. Portanto, concluiu que as “revelações” dos pacientes
eram, pelo menos em parte, produtos da imaginação deles.
Em outubro de 1897, abriu-se o caminho para uma mescla de
autoconhecimento e clareza teórica. “Há quatro dias”, informou a Fli-
ess, “minha auto-análise, que considero indispensável para o esclare-
cimento de todo o problema, tem continuado em sonhos e me ofere-
cido as mais valiosas explicações e pistas”.24 Foi quando ele lembrou
a respeito da babá católica de sua infância, o vislumbre de sua mãe
nua, seus desejos de morte contra o irmão mais novo e outras lem-
branças infantis reprimidas. Quem já passou pelo doloroso processo
de elaboração de um luto sabe do que se está falando. Segredos muito
tristes da vida remontam até suas primeiras raízes; muitos orgulhos e
privilégios são remetidos às suas origens mais modestas.
24 MASSON, 1986, carta de 3 de outubro de 1897, p. 269.

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6978_Impulso_26.book Page 105 Wednesday, October 1, 2003 1:07 PM

Após os dias em que se arrastava à toa por não conseguir enten-


der o sentido de um sonho ou uma fantasia, vieram “os dias em que
o clarão de um relâmpago iluminou as ligações e me permite entender
o que se passara antes como um preparativo do presente”.25 Como
num jogo de quebra-cabeças, ele reconhecia que sua lembrança da pai-
xão pela mãe e ciúmes do pai era mais do que uma idiossincrasia pes-
soal. Pelo contrário, afirmou que a relação edipiana da criança com os
pais era “um acontecimento generalizado na primeira infância”.26 Pa-
ralelamente, identificava com clareza esse complexo amoroso na situ-
ação triangular de Édipo e Hamlet.
Outras descobertas surpreendentes povoavam seus dias. O sen-
timento inconsciente de culpa, as fases do desenvolvimento sexual, o
elo causal entre mitos gerados internamente e a crença religiosa, o ro-
mance familiar em que tantas crianças desencadeiam fantasias gran-
diosas sobre seus pais, a natureza reveladora dos lapsos e das ações
descuidadas, o poder dos sentimentos agressivos reprimidos e, last but
not least, os intrincados mecanismos de produção do sonho. E foi
pelos sonhos, via régia do inconsciente, que Freud iniciou o complexo
percurso da elaboração do luto pela morte do pai; e pela via da subli-
mação, fez sua (mais importante) criação.

LUTO, SUBLIMAÇÃO E CRIAÇÃO


Com a morte do pai, com o avanço da auto-análise e o ritmo
mais acelerado de sua teorização psicanalítica, Freud parece ter revi-
vido seus conflitos edipianos com singular intensidade. Ao escrever A
Interpretação de Sonhos, ele desafiava seus pais substitutos – os pro-
fessores e colegas que o haviam adotado, mas que agora ele deixava
para trás.27
Acerca desse movimento no processo de elaboração do luto,
Klein28 sugere que gradualmente, ganhando confiança nos objetos ex-
ternos e em valores de várias espécies, é possível fortalecer a confiança
na pessoa amada e perdida. Daí, então, o enlutado pode aceitar a
imperfeição do objeto, conservar a fé nele e não temer sua vingança.
Quando isso se realiza, é sinal de que foi dado um passo importante
no trabalho do luto e na sua superação.
25 MASSON, 1986, carta de 27 de outubro de 1897, p. 275.
26 Ibid., carta de 15 de outubro de 1897, p. 273.
27 Freud havia elevado seus mentores a uma posição inatacável e estabelecera um vínculo de dependência
com eles para com isso dominar os sentimentos de inferioridade que o assolavam. Ele idealizou seis figuras
que desempenharam importante papel em sua vida: Brücke, Meynert, Fleisch-Marxow, Charcot, Breuer e
Fliess.
28 KLEIN [1940], 1981.

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Ao mesmo tempo que fica intensa a dor e o desespero frente à


prova da realidade de que o objeto não mais existe, surge a crença de
que o objeto pode ser conservado internamente. Nesse estágio do luto,
o sofrimento pode tornar-se produtivo. As experiências dolorosas de
toda espécie estimulam a reparação e a sublimação, conduzindo a cria-
ções artísticas, literárias, científicas, a partir de frustrações e pesares. A
aquisição de maior segurança no mundo interno e a permissão de que
os sentimentos e os objetos internos bons voltem a surgir fazem com
que se estabeleçam os processos de criação.
Quando a perseguição diminui, a dependência hostil e o ódio
também decrescem e as defesas maníacas relaxam. Então, o anseio
pelo objeto amado e perdido serve de incentivo para a reparação e a
criatividade. O anseio é recriar o objeto perdido pelo amor a ele.
Cada avanço no processo do luto tem por resultado um apro-
fundamento da relação do indivíduo com seus objetos internos, tan-
gencia a felicidade de reconquistá-los depois de haver sentido sua per-
da. As fases no trabalho do luto, quando as defesas maníacas se dis-
tendem e uma renovação interna se estabelece, promovem maior in-
dependência tanto dos objetos externos como dos internos.
Assumindo os riscos, Freud estava seguindo seu próprio caminho.
Rompia com seus pais substitutos, mergulhava nos recônditos de sua
mente, expunha seus desejos, conflitos e fantasias mais ocultos, devas-
sava-se publicando seus próprios sonhos. Pudera criar profunda intimi-
dade com a agressividade e o poder que ela encerra. Afinal, foi ele
quem revelou seu funcionamento em si mesmo: em suas cartas a Fliess,
no âmbito privado, e publicamente em A Interpretação de Sonhos. Se
não tivesse publicado suas confissões, os desejos de morte contra seu ir-
mãozinho, seus sentimentos edipianos hostis contra seu pai, ou a ne-
cessidade de um inimigo em sua vida, todo esse universo poderia con-
tinuar para sempre conhecido apenas por ele mesmo.
Em setembro de 1901 aconteceu, então, a primeira visita de
Freud a Roma. Foi o selo de sua independência. Ao mesmo tempo, seu
estado emocional tangenciava a derrota. O livro dos sonhos não alcan-
çara a acolhida desejada. A ira, a decepção e o tédio predominavam no
seu interior. Em 1901, escreveu A Psicopatologia da Vida Cotidiana,
fez a redação do caso Dora, só publicado em 1905, e estava alinha-
vando as idéias sobre os chistes. O trabalho era-lhe uma forma de en-
frentar o luto.
Quando em 191529 escreve sobre a natureza da melancolia,
comparando-a com o afeto normal do luto, Freud já estava a longa dis-
29 FREUD [1917], 1980e.

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tância do que percorrera intimamente naquele fim de século. Guar-


dando visível distanciamento é que ele se põe a afirmar que “o luto,
de modo geral, é a reação à perda de um ente querido, à perda de al-
guma abstração que ocupou o lugar de um ente querido (...)”.30
Tecendo considerações sobre a melancolia, como seus traços dis-
tintos aponta: desânimo profundo e penoso, cessação de interesse pelo
mundo, perda da capacidade de amar, inibição de toda e qualquer ati-
vidade e diminuição dos sentimentos de auto-estima, culminando
numa expectativa delirante de punição. Prossegue afirmando que o
luto profundo, a reação à perda de alguém que se ama, encerra o mes-
mo estado de espírito penoso, a mesma perda de interesse pelo mundo
externo, a mesma perda da capacidade de adotar novo objeto de amor
e o mesmo afastamento de toda e qualquer atividade que não esteja li-
gada a pensamentos sobre ele.
Continuando suas teorizações, ele se autoriza a afirmar que o tra-
balho do luto se calca na necessidade de retirar a libido das relações
com o objeto perdido. “As desvinculações do objeto só podem ser exe-
cutadas pouco a pouco, com grande dispêndio de tempo e de energia
catexial. O objeto perdido fica presente ainda neste meio de tempo.
Várias das lembranças, expectativas, através das quais a libido está vin-
culada ao objeto são evocadas e hipercatexizadas.”31
Sobre o processo de elaboração do luto, Freud postula que “as
lembranças e expectativas se defrontam com o veredicto da realidade
de que o objeto não mais existe; e o ego é persuadido pela soma das
satisfações narcisistas que deriva da constatação de estar vivo, a rom-
per sua ligação com o objeto perdido”.32 E propõe que o trabalho de
rompimento é bastante lento e gradual, a ponto de, quando concluído,
o dispêndio de energia necessária para tal também ter se dissipado.
Conclui que “o luto compele o ego a desistir do objeto, declarando-
o morto e incentivando o próprio ego a viver”.33
Ao escrever sobre o luto, salta aos olhos o cunho teórico e o em-
blema da prática clínica que Freud imprime às suas proposições. In-
discutivelmente estava muito distanciado de suas próprias vivências
pregressas. Entretanto, algumas passagens biográficas trazem à luz
aquele Freud do ano de 1900. Quando em 1920 Freud apresentou
suas condolências a Ernest Jones pela morte de seu pai, ao mesmo
30 FREUD [1917], 1980e, p. 275. O termo alemão Trauer bem como o inglês mourning podem significar
tanto o afeto da dor como sua manifestação externa.
31 Ibid., p. 277.
32 Ibid., p. 288.
33 Ibid., p. 290.

impulso 107 nº26


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tempo advertiu-o delicadamente sobre os duros momentos que esta-


vam por vir. “O senhor logo vai descobrir o que isso significa para si”.
O acontecimento relembrou-lhe a tristeza que sentira por seu pai, qua-
se vinte e cinco anos antes. “Eu tinha mais ou menos a sua idade quan-
do meu pai morreu e isso revolucionou minha alma”.34
A morte do pai foi uma profunda experiência pessoal da qual
Freud extraiu implicações universais; ela funcionou como um seixo
atirado a um lago tranqüilo, provocando sucessivos círculos de amplos
raios. Ao refletir sobre o acontecimento em 1908, no prefácio à se-
gunda edição de A Interpretação de Sonhos, ele comentou que, para si,
o livro tinha um forte significado “subjetivo”, o qual havia “consegui-
do entender após sua conclusão”. Ele passara a vê-lo como “um frag-
mento da minha auto-análise, minha reação à morte de meu pai – isto
é, ao evento mais importante, à perda mais pungente da vida de um
homem”.35
Aquela morte em outubro de 1896 proporcionou a Freud um vi-
goroso impulso para edificar a estrutura que começava a se transfor-
mar na obra de sua vida. Como diria ele mais tarde, em 1931, no pre-
fácio à terceira edição inglesa: “Ela encerra, mesmo segundo meu atual
juízo, a mais valiosa de todas as descobertas que tive a felicidade de fa-
zer. Compreensão (insight) dessa espécie ocorre no destino de alguém
apenas uma vez na vida”.36
O orgulho de Freud não era descabido. Todas as suas descobertas
dos anos 80 e 90 do século passado confluíram para A Interpretação de
Sonhos. E mais. A obra prenuncia tudo o que seria escrito depois. Cons-
titui uma fonte ímpar para se compreender o autor. O livro resume tudo
o que Freud aprendera – na verdade, tudo o que ele era –, recuando di-
retamente até o labirinto de sua complexa infância.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREUD, S. [1899] Lembranças Encobridoras. Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
1980a, v. 3.
_________. [1899] A Interpretação de Sonhos. Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
1980b, v. 4-5.

34 Apud. GAY, 1989, p. 358.


35 FREUD [1899], 1980b, p. XXXiV.
36 Ibid., p. XLi.

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FREUD, S. [1901] A Psicopatologia da Vida Cotidiana. Edição Standard Brasileira


das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
Imago, 1980c, v. 6.
________. [1909] Análise de uma Fobia em um Menino de cinco anos. Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.
Rio de Janeiro: Imago, 1980d, v. 10.
________. [1917] Luto e Melancolia. Edição Standard Brasileira das Obras Psicoló-
gicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980e, v. 14.
GAY, P. Freud: uma vida para o nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras,
1989.
GIMENEZ, M.T. Estudo clínico da fobia escolar. Instituto de Psicologia PUC-
Camp. Campinas, 1983. [Tese de mestrado]
KLEIN, M. [1940] O luto e sua relação com os estados maníaco-depressivos. In:
Contribuições à Psicanálise. São Paulo: Mestre Jou, 1981.
MASSON, J.F. A Correspondência Completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess.
Jeffrey Moussaieff Masson. Rio de Janeiro: Imago, 1986.

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A Psicanálise como
Obra Aberta
Psychoanalysis as an
Open Work
RESUMO – Este artigo traz algumas reflexões acerca da contemporaneidade da teoria
e da prática psicanalíticas. Para tanto, são utilizados alguns dispositivos conceituais e
teóricos advindos da psicoterapia institucional. Esses dispositivos, que posteriormen-
te foram traduzidos, incorporados e ampliados ao institucionalismo, trouxeram
contribuições importantes às rupturas já produzidas pela psicanálise. Tomando-se
MAURÍCIO LOURENÇÃO GARCIA
como referência a idéia de descentramento do sujeito produzido pela teoria freudi- Mestre (PUC-SP) e doutorando
ana, a própria noção de sujeito do inconsciente e a primazia da palavra no trabalho em Psicologia Clínica (PUC-SP).
Docente da Faculdade
psicanalítico, pretende-se esboçar elementos que ofereçam condições de se continuar de Psicologia da UNIMEP.
problematizando o alcance, os avanços e as estagnações da obra freudiana. Ao per- mlgarcia@mandic.com.br
correr-se algumas brechas do universo psicanalítico, é possível apropriar-se das crí-
ticas e das contribuições necessárias para que se possa continuar pensando e prati-
cando a psicanálise de forma crítica.

Palavras-chave: psicanálise – inconsciente – subjetividade – institucionalismo.

ABSTRACT – This article brings some reflections to bear upon the current relevan-
ce of psychoanalytic theory and practice, using concepts and theories derived from
institutional psychotherapy. These concepts, originally developed under the rubric
of institutionalism, led to both important contributions and ruptures within
psychoanalysis. Taking as references the idea of the decentralization of the subject
as proposed by Freudian theory, concepts of the unconscious subject, and the im-
portance of the word in clinical practice, the goal of this paper is to draft elements
which will facilitate our continued questioning into the achievements, advance-
ments, and stagnations of Freudian work. By bridging some of the gaps in the
psychoanalytic universe, it is possible to incorporate the necessary criticisms and
contributions, enabling us to continue thinking about and practicing psychoanaly-
sis in a critical fashion.

Keywords: psychoanalysis – unconscious – subjectivity – institutionalism.

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INTRODUÇÃO

E ste artigo procura refletir sobre algumas questões da psica-


nálise, tomando como referência as indagações geralmente
empreendidas ao se buscar uma reavaliação do percurso
freudiano. O interesse por esse tipo de questionamento – que tenta po-
tencializar as brechas do pensamento psicanalítico até forçá-lo a ser re-
visto na contemporaneidade – parece ser uma potência da própria psi-
canálise, na medida em que não cessa de ser revisitada. A questão dos
desafios teóricos e/ou clínicos que se colocam hoje em dia – ou ainda
hoje em dia – à psicanálise remete-me a uma afirmação de André Gre-
en, por ocasião de uma conferência proferida no Rio de Janeiro. Ele
inicia dizendo: “Se me perguntassem (...) o que há de novo na psica-
nálise, eu lhes responderia: Freud”.1 Trata-se da possibilidade, sempre
em aberto, que a obra de Freud oferece de se fazer trabalhar o discurso
psicanalítico.
Lembremos os numerosos textos em que Freud retoma as bases
de sua doutrina para ressaltar os seus aspectos essenciais, como fez, por
exemplo, no seu último escrito, em 1938, “Esboço de psicanálise”.2 O
que ocorreu então? Ao escrevê-lo, Freud inventou ainda novos con-
ceitos, mostrando aos seus leitores que a volta aos fundamentos com-
porta muitas vezes a gestação inesperada do novo, que o ensino se
transforma em pesquisa e o saber antigo, em verdade nova.
O conceito de inconsciente está completando um século de exis-
tência. Não é uma idade excessivamente avançada para um conceito,
embora cem anos não sejam pouco tempo: mostram que o conceito
sobreviveu e que essa sobrevivência está indissociavelmente ligada à
sobrevivência da teoria à qual pertence, em que pese as transformações
sofridas por ele, conceito, ou por ela, teoria. Já foi dito que os verda-
deiros conceitos trazem a assinatura do seu autor;3 e poucos são aque-
les que portam uma assinatura tão nítida quanto o conceito de incons-
ciente de Freud.
Por não serem puras abstrações formais produzidas artificialmen-
te, por responderem a problemas reais, os conceitos estão sujeitos a
transformações e mutações, a renovações, que caracterizam a história
do saber. Houve uma sensível mudança no conceito de inconsciente,
como historicamente introduzido por Freud em 1900, no capítulo VII
de A Interpretação dos Sonhos,4 até os textos finais da chamada “se-

1 GREEN, 1990, p. 13.


2 FREUD, 1981b, tomo III.
3 DELEUZE & GUATTARI, 1992, p. 16.
4 FREUD, 1981b, tomo I.

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gunda tópica”. O modo como ele é pensado atualmente, após as


contribuições da lingüística, da lógica e da etnologia, sobretudo a par-
tir da leitura feita da obra de Freud por Jacques Lacan, também nos
mostra visíveis modificações.
E, de qualquer forma, um século passou e os processos de inda-
gações continuam a ser empreendidos em múltiplas direções, funda-
mentalmente naquelas colocadas a partir dos momentos de rupturas
decisivas na psicanálise teórica e institucional, nos levando a uma re-
avaliação do percurso freudiano.
Numa outra perspectiva, essa potência da obra freudiana dá-se
também pelo fato de que, segundo Rolnik,

(...) a vocação mesma do dispositivo psicanalítico é (...)


a de constituir condições de escuta das diferenças que
se produzem no tempo, cujo surgimento desestabiliza
as coordenadas vigentes do pensamento e da existên-
cia, o que se faz sentir na subjetividade através de um
mal-estar.5

Partindo-se dessas perspectivas, torna-se atribuição necessária


dos que pretendem continuar veiculando a teoria inaugurada por
Freud, situar a psicanálise no terreno histórico-conceitual em que ela
emerge. Essa tarefa exige um mapeamento das condições em que a
psicanálise surge e das peculiaridades que reivindica. Em outras pala-
vras, significa entender em que medida a psicanálise está implicada no
seu tempo e o quanto ela significa ruptura, descontinuidade, inovação.
A abrangência de uma abordagem como essa é evidente. No pre-
sente artigo, o que se pretende é fazer um recorte, percorrer um fio
desse vasto tecido de questões. Para tanto, serão abordados alguns as-
pectos do chamado descentramento do sujeito produzido pela psica-
nálise, tomando para tanto algumas considerações acerca do conceito
de inconsciente na obra freudiana, a primazia da palavra no disposi-
tivo psicanalítico e as contribuições do institucionalismo que, através
da corrente esquizoanalítica, oferece elementos para se ampliar o cam-
po da subjetividade.

CONSIDERAÇÕES SOBRE A REVOLUÇÃO NA


CONCEPÇÃO DE HOMEM PRODUZIDA PELA PSICANÁLISE
Se admitimos que a psicanálise envolve idéias, instituições, prá-
ticas e agentes que existem e se movimentam num mundo atravessado
5 ROLNIK, 1994, p. 1.

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por complexas redes de determinação, não podemos nos furtar a aco-


lher a crítica externa, a pensar sua pertinência e a fazê-la render em
nosso proveito tanto quanto possível.
Uma das proposições polêmicas com as quais a psicanálise vem
se defrontando é aquela que a descreve como uma das técnicas de aná-
lise do psiquismo tributárias da formação do “homo psychologicus”
moderno. Nascida no momento de consolidação do individualismo
como ideologia hegemônica no Ocidente, ela seria a versão mais so-
fisticada das práticas que, durante séculos, foram moldando certa ex-
periência subjetiva compartilhada pelos sujeitos humanos. Essa expe-
riência se funda numa consciência de si enquanto universo único, do-
tado de uma dimensão interior insondável e articulada por uma im-
bricação entre subjetividade, sexualidade e verdade interior.
Conseqüência desse formidável processo de construção do homem
moderno, a psicanálise, vista por esse prisma, estaria longe de ser a
inovação surpreendente, a peste subversiva.6
Retirado o brilho de uma originalidade indevidamente reivindi-
cada, restaria a ela apenas o papel da prática sofisticada de auto-exa-
me, técnica de autoconhecimento que afirma e corrobora certa mo-
dalidade histórica de viver a subjetividade.
Para discutir a validade dessa proposição, seria necessário, pri-
meiramente, retomar a perspectiva histórica e acompanhar a constru-
ção da concepção de homem que se tornou característica nas socieda-
des ocidentais modernas. O tema é evidentemente extensíssimo e por
razões óbvias não me debruçarei sobre ele.
Salientarei, outrossim, o aspecto da noção de sujeito da psicaná-
lise, que nos remete imediatamente ao pensamento cartesiano. Como
observa Garcia-Roza,

Desde Descartes, a representação é o lugar da morada


da verdade, sendo o problema central o de saber se
chegamos a ela pela via da razão ou pela via da expe-
riência. Racionalistas e empiristas diferem sobretudo
quanto ao caminho a tomar, mas ambos já sabem
onde querem ir: ao reino da verdade, da universalida-
de, da identidade.7

Com essa afirmação, o autor segue argumentando ser assim que


a filosofia moderna constrói uma subjetividade-representação no inte-
6 Alusão à psicanálise como uma das três “feridas narcísicas”, imagem criada por Freud, às quais associa os
efeitos de sua teoria àqueles produzidos pelas idéias de Copérnico e de Darwin.
7 GARCIA-ROZA, 1991, p. 9.

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rior da qual mantém as mesmas exigências e os mesmos objetivos do


discurso platônico.
Uma das questões internas a esse modo de pensar do platonismo
é a ênfase na subjetividade, embora sua emergência só tenha se dado
com Descartes, no século XVII. Foi esse filósofo que formulou a noção
de sujeito contida no racionalismo, que supõe um agente pensante se-
gundo uma razão consciente, ou seja, o cogito.
Se a psicanálise produziu uma derrubada da razão e da consciên-
cia do lugar sagrado em que se encontravam – ao fazer da consciência
um mero efeito de superfície do inconsciente –, podemos afirmar que
Freud operou uma inversão do cartesianismo que dificilmente pode ser
negada.
Cabe-nos, no entanto, concordar com a afirmação de Garcia-Roza:

(...) depois de tanto tempo e de tanta revolução pro-


metida, aprendemos a ser cautelosos. Em primeiro lu-
gar, aprendemos que inversão não é diferença; em se-
gundo lugar, aprendemos também que revolução não
é guerra. Enquanto a primeira é disfarçadamente car-
tesiana, implicando promessas, planos, programas e
realizações futuras, a guerra é realmente produtora de
ruptura.8

Epistemologicamente – tal qual nos mostrou Foucault –, a psi-


canálise não se encontra em continuidade com saber algum, apesar de
arqueologicamente estar ligada a todo um conjunto de saberes sobre
o homem. Produz um jeito de entender a subjetividade, não mais iden-
tificada com a consciência e a racionalidade, mas como uma realidade
dividida em dois grandes sistemas e dominada por uma luta interna
em relação à qual a razão é apenas um efeito de superfície.
Diante do saber dos séculos XVII e XVIII, a psicanálise se apresenta
como uma teoria e uma prática que pretendem falar do homem en-
quanto ser singular.9
A mudança significativa operada pela psicanálise foi o descentra-
mento do sujeito. É o sujeito do conhecimento que a psicanálise vai
desqualificar como referencial privilegiado a partir do qual a verdade
aparece. Melhor dizendo: a psicanálise não vai pôr em questão qual
seria o sujeito da verdade; pelo contrário, questionará sobre a verdade
8GARCIA-ROZA, 1991, p. 20.
9Assim é que, por exemplo, na história da psiquiatria, se no fim do século XVIII Pinel desacorrenta o corpo
dos loucos, no começo do século XX, Freud desacorrenta seu discurso.

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de cada sujeito. Irá perguntar exatamente por esse sujeito do desejo


que o racionalismo recusou.
Mas esse mesmo descentramento, que marca um importante
passo dado na direção de se constituir como uma outra teoria da sub-
jetividade, convoca a outras questões igualmente reveladoras e insti-
gantes. Mesmo surgindo como opositora à soberania da razão, a psi-
canálise, diversas vezes, deixa-se levar por um desvio iluminista: colo-
cando-se como a criação última e definitiva sobre a subjetividade, pre-
tende ser a teoria que detém e esgota tudo o que possa ser dito a
respeito do sujeito.

FREUD: OBSERVAÇÕES SOBRE O INCONSCIENTE


E A CONSTITUIÇÃO DAS INSTÂNCIAS PSÍQUICAS
Uma das contribuições fundamentais da psicanálise foi demons-
trar que o ser humano se constitui como ser psíquico numa relação in-
terpessoal. No texto “Projeto para uma psicologia científica”,10 escrito
em 1895, mas só publicado postumamente, já encontramos Freud
atento a essa questão, ao enfatizar as conseqüências psíquicas decor-
rentes do estado de desamparo da criança. Com isso ele pretende de-
monstrar que para a supressão da tensão provinda do interior do or-
ganismo (p. ex., a fome) é necessária uma ação específica no mundo
externo. Observa que a criança não é capaz de executá-la, dependendo
para isso da assistência alheia. Quando o adulto efetua a ação especí-
fica no mundo externo (p. ex., fornecendo-lhe o alimento), a criança
pode ter uma vivência de satisfação. Essa experiência estabelece o re-
gistro de toda uma seqüência de eventos, iniciada no estado de neces-
sidade e que se finda com a gratificação propiciada pelo objeto; ela dá
origem ao desejo e ao lugar privilegiado que nele tem o objeto.
A relação interpessoal, como elemento fundamental na consti-
tuição do sujeito, aparece em várias outras concepções de Freud. Para
relembrar, basta lembrar complexo de Édipo e seu papel na estrutura-
ção da personalidade e na orientação do desejo, bem como a gênese
do ego e do superego, que a partir dos trabalhos de 1914/15 são con-
cebidos como resultantes das identificações.
Freud percebeu, através do estudo dos sonhos, dos sintomas e
dos atos falhos, que o fenômeno psíquico não poderia ser identificado
exclusivamente por sua existência consciente. Descobre a eficácia do
inconsciente e organiza a primeira tópica, definindo o aparelho psí-
quico como formado por dois grandes sistemas, ou instâncias. Mas
10 FREUD, 1981a, tomo I.

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identifica que o inconsciente tem outras implicações, além disso, para


a pessoa, o que se passa é desconhecido. Refere-se a um tipo de fun-
cionamento mental, sobre o qual, em seu texto de 1915 (“O incons-
ciente”11), afirma: nos processos mentais pertencentes ao sistema in-
consciente, encontramos as características de falta de contradição, o
processo primário, a independência do tempo e a substituição da reali-
dade exterior pela psíquica; essa última, regulada exclusivamente pelo
“princípio do prazer”.
No quadro da segunda tópica, as características do sistema in-
consciente são atribuídas ao id, embora também reconheça no ego e
no superego uma origem e uma parte inconscientes. O id é concebido
como pólo pulsional. Ao procurar explicar a gênese do ego, Freud os-
cila: de um lado, toma-o como diferenciação adaptativa, a partir do id,
por influência da realidade externa; de outro, como produto das iden-
tificações. Nesse caso, com a introjeção do objeto na realidade, toda
uma relação é interiorizada. Para o desenvolvimento desse ponto, ve-
jamos “Luto e Melancolia” (1915).12 Nesse texto, também o supere-
go, parte clivada do ego, é personificado e se opõe ao ego, julgando-
o, criticando-o, aprovando-o, ou seja, tomando-o como objeto.
Essas breves considerações acerca de alguns aspectos da meta-
psicologia freudiana indicam-nos um caminho para perceber caracte-
rísticas claras da prática freudiana na clínica psicanalítica: o próprio de
uma prática freudiana é pensar que a verdade do sujeito, a sua verdade
inconsciente, é suscetível de ser convertida em um saber, e que esse sa-
ber pode ser evidentemente formulado e devolvido ao sujeito, que não
sabia ou que sabia sem saber. O essencial é a idéia de que a verdade
possa vir a ser um saber (ou o saber que já era). É certo que essas ques-
tões em Freud são bem mais complexas do que isso; é certo também
que, a partir dos escritos sobre a técnica, Freud volta sobre essa ques-
tão e sua prática muda: torna-se mais silenciosa e ele pára de comu-
nicar aos pacientes o saber psicanalítico.
A partir desse ponto de vista, existe uma oposição da prática
freudiana com a prática lacaniana, pois esta última parte justamente do
contrário: separar verdade e saber, por a verdade não ser suscetível de
transformar-se em um saber. Não parar de tentar transformar-se em
um saber é um efeito da neurose, na medida em que a constituição edí-
pica, então neurótica do sujeito, implica ele apostar num pai como su-
jeito de um saber. A idéia mesma de que a sua verdade possa ser um
11 FREUD, 1981a, tomo II.
12 Idem, 1981b, tomo II.

impulso 117 nº26


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saber é uma idéia sustentada pela função paterna. Trata-se de um pon-


to extremamente importante, pois se a prática freudiana é fundada
nessa idéia – que a verdade pode converter-se num saber – isso nos ex-
plica a constatação decepcionada de Freud ao fim de sua vida, quando
no texto “Análise terminável e interminável”,13 de 1937, ele constata
que a psicanálise, de certa forma, irremediavelmente, não consegue le-
var um sujeito além da confrontação com a “rocha da castração”. É
dessa concepção que surge a aposta lacaniana a partir dos anos 60,
quando Lacan começa a pensar um além da rocha da castração, que
separe as noções de verdade e de saber. Por que tal necessidade? Se na
prática é sustentada a idéia de a verdade poder se converter num saber,
a prática analítica só pode fortalecer a função paterna que justifica a
suposição de a verdade ser um saber passível de ser conhecido.

A PRIMAZIA DA PALAVRA
Constituindo parte do material que um analisando apresenta
para ser analisado, encontramos alguns elementos privilegiados, como
sonhos, atos falhos, lapsos de memória, entre outros. Esses fenômenos
designam o que a psicanálise classicamente concebeu como derivados
do inconsciente ou formações do inconsciente. São fenômenos resul-
tantes de uma combinação, da articulação de uma transição/transação
entre as instâncias do id, do ego e do superego. Em psicanálise esses
efeitos têm por característica, pelo menos fenomênica ou técnica, ex-
primir exclusivamente a problemática de um indivíduo, manifestá-la,
denunciá-la. Na aparência desses fenômenos, na materialidade
fenomênica, privilegiam-se, fundamentalmente, os efeitos verbais.
Sem querer adentrar no mérito das várias interpretações e defi-
nições que se fazem da linguagem e de sua importância na clínica psi-
canalítica, salientarei apenas que essa ênfase ao verbal está referida à
idéia de que as relações da psicanálise com a linguagem e o discurso
são fundamentais. Tendo em vista que a fala constitui a matéria-prima
da experiência psicanalítica, não se pode representar o ato psicanalíti-
co na exterioridade do campo do discurso. Tais relações, no entanto,
são múltiplas e implicam diferentes ordens de problemas, já que não
se trata apenas de constatar o óbvio – isto é, que o processo analítico
se realiza pelo discurso –, mas também de indagar sobre o modo de se
ordenar a estrutura do psiquismo para que o ato psicanalítico fundado
na palavra seja uma experiência possível.
13 FREUD, 1981a, tomo III.

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6978_Impulso_26.book Page 119 Wednesday, October 1, 2003 1:07 PM

A psicanálise, como uma experiência entre alguém que fala e um


outro que escuta, constitui um espaço intersubjetivo fundado na trans-
ferência, na qual a linguagem é a condição de possibilidade, pois funda
a regra fundamental dessa experiência. O espaço analítico é constituído
por um eixo básico que se funda na oposição entre crença e verdade,
pois, se existe a exigência da livre associação sem censura para a figura
do analisando, é para que ele possa enunciar verdades sobre o seu de-
sejo que lhe surpreendam, já que estão além de suas crenças.
A atenção flutuante, porém, é a contrapartida disso no lugar do
analista, pois a exigência de deslizamento pela escuta impossibilita que
este se fixe num sistema de crenças, teórico ou pessoal, que seria um
obstáculo epistemológico para que a verdade singular do analisando
pudesse se articular pela escuta na cena analítica.
Depois dos trabalhos de Lacan, a importância da linguagem na
reinterpretação de noções como inconsciente, sujeito, desejo, sexuali-
dade e outros tornou-se evidente. Relendo Freud de maneira original,
Lacan mostrou como a psicanálise pode ser bem mais interessante
quando dispensa o velho equipamento cientificista e positivista de pro-
dução de teorias. Após essa releitura, a interpretação, a técnica, a clí-
nica e o próprio processo psicanalítico passaram a ser vistos de modo
radicalmente diverso.14
Como observa Naffah Neto, na psicanálise francesa vamos en-
contrar exemplos de como a noção de significante funciona como
princípio transcendente, herança da tradição platônica.

Digo princípio transcendente porque, na medida em


que é posto como inconsciente, ele será em si mesmo
até mais inacessível do que a Idéia platônica: não será
nem mesmo evocável; funcionará na sua inacessibilida-
de, simplesmente como princípio ordenador e doador
de sentido. É o caso, por exemplo, do papel outorgado
ao significante falo em certas formulações lacanianas.15

Percorrendo o pensamento nietzscheano, Naffah Neto nos ad-


verte para “o quanto há de enganoso na crença de que os signos ver-
bais possam dar conta de qualquer realidade”.16 Nessa perspectiva, a
14 Retomadas de um outro ponto de vista, mas ainda como produto da virada lingüística em psicanálise, a
questão da linguagem é abordada por Jurandir Freire Costa e outros, naquilo que denominam de pragmá-
tica da linguagem. À luz da pragmática, criticam temas como a “concepção representacional da linguagem,
a imagem realista-essencialista da mente ou do psiquismo, a idéia de uma substância universal e a história
do sujeito”. Partem da idéia de que a linguagem nada mais é do que uma habilidade particular dos organis-
mos humanos, desenvolvida na interação com o ambiente. Cf. FREIRE COSTA et al., 1995.
15 NAFFAH NETO, 1991, pp. 17-18.
16 Ibid., p. 22.

impulso 119 nº26


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linguagem só se presta à comunicação de objetos socializados, enquan-


to palavras úteis nas relações sociais. Vista por esse ângulo, à lingua-
gem liga-se a consciência.17
Mas o que nos interessa de imediato é a relação existente entre
a análise do material inconsciente e a linguagem. Ao recorrer a Niet-
zsche, através de algumas leituras de Naffah Neto, o faço somente
para evidenciar que, embora no quadro do pensamento nietzscheano
o inconsciente enquanto conceito não exista, ele seria justamente essa
região que não se expressa em palavras, o domínio que escapa à lin-
guagem, domínio, pois, do indizível.
Apoiado no conceito de inconsciente primordial, Naffah Neto
nos dirá que esse

(...) será, pois, a experiência do devir, como um sim,


um deixar-se inicial, antes que a linguagem ordinária e
a consciência abstraiam e fixem os fluxos em represen-
tações e as recalquem, formando um sistema secundá-
rio. Será, após isso, a indivisão do sentir que subsiste,
num domínio marginal às representações da consciên-
cia. Buscar contato com esse domínio não implica, en-
tretanto, um trabalho de desvelar o oculto. O psicana-
lista que se ocupa dessa tarefa detetivesca não sai do
domínio da consciência, das suas representações, dos
seus códigos morais; (...) Há um inconsciente (...) que
designa antes aquelas dimensões do sentir que resistem
aos processos de representação, que não cabem nos
códigos, que permanecem marginais a eles (...) [Esse
inconsciente] designa um universo indizível e invisível,
marginal à consciência (...), porque é fluxo, devir sem
forma ou representação definida, campo de forças
móveis e vibráteis.18

Essa forma de abordar o inconsciente, desgrudado das amarras


do significante, produz, necessariamente, muitas ressonâncias na clíni-
ca. Na medida em que todos os demais analisadores – que na prática
clínica habitual ficam rechaçados – possam porventura instaurar-se, o
17 Reproduzo aqui a citação que Naffah Neto faz de Nietzsche: “O homem como toda criatura viva, pensa
sem cessar, mas o ignora; o pensamento que torna consciente é somente a ínfima parte, digamos: o mais
superficial, o mais medíocre: pois somente esse pensamento consciente se produz em palavras, quer dizer
em signos de comunicação pelos quais se revela, por si mesma, a origem da consciência. Em suma, o desen-
volvimento da linguagem e o desenvolvimento da consciência (mas não da razão) caminham lado a lado.
(...) A consciência, em geral, só pôde se desenvolver sob a pressão da necessidade de comunicação – desde o
começo, era somente nas relações de homem a homem, particularmente entre o que comanda e o que obe-
dece, que a consciência era necessária, útil, e foi em função do grau dessa utilidade que ela chegou a se
desenvolver.” Cf. NAFFAH NETO, op. cit, p. 25.
18 Ibid., pp. 33-34.

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“material selvagem” apresentado pelo analisando desencadeia um pro-


cesso gerador da diferença, da invenção, da criação, avesso a uma de-
terminada forma instituída, historicamente localizada.

REPENSANDO A SUBJETIVIDADE:
ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DO INSTITUCIONALISMO
Nos itens anteriores, foram abordados de forma sintética alguns
elementos que compõem o tecido da teoria e da prática psicanalítica.
Para que seja possível conduzir o texto a uma ampliação das questões
inerentes ao saber psicanalítico, vai-se apontar aqui de que forma o
institucionalismo oferece elementos preciosos para potencializar a psi-
canálise como uma obra aberta. Essa opção dá-se pelo fato de que o
institucionalismo é movido pela vontade de produzir novos proble-
mas, pela necessidade de criação; sendo originalmente um dispositivo
de desnaturalização e de desarticulação das totalizações instituídas e re-
conhecidas, o institucionalismo dedica-se a fazer uma genealogia das
formas históricas de produção, para expor manifestamente os poderes
que estas envolvem, ao invés de orientar-se por uma visão epistemoló-
gica, ou seja, por critérios de verdade, sejam estes revelados, especu-
lativos ou experimentais.
O institucionalismo pode ser considerado um conjunto aberto e
internamente diversificado de correntes que mostram certos valores
em comum, assim como marcadas diferenças. Trata-se de um universo
não totalizável, sem limites precisos, que compreende inúmeros sabe-
res e fazeres que tomam por objetivo os coletivos sociais no que se re-
ferem à lógicas que os regem, às subjetividades que produzem e/ou re-
produzem, às formas concretas em que estas se materializam, às fina-
lidades que perseguem, assim como aos expedientes que se dão para
obtê-las.19
Muito sumariamente mencionada, a gênese social mais circuns-
crita do institucionalismo fala de uma passagem que ocorreu no campo
da saúde mental no início da década de 40: o impacto recebido pela
psiquiatria tradicional, positivista e classificatória, proveniente sobretu-
do da psicanálise, da pedagogia libertária e da antipsiquiatria. A partir
daí houve um questionamento de todos os aparatos da psiquiatria e
apareceram tentativas de operar eficiência terapêutica, utilizando as
próprias organizações da psiquiatria; deu-se o questionamento da ins-
19 Baseado no ideário da análise institucional, desenvolvi em minha dissertação de mestrado o conceito de
clínica ampliada, clínica essa comprometida com a crítica, construção e produção de uma subjetividade
heterogenética, aliançada com a escuta daquilo que propicia a criação e potencializa os processos de trans-
formação do cotidiano. Cf. GARCIA, 1996.

impulso 121 nº26


6978_Impulso_26.book Page 122 Wednesday, October 1, 2003 1:07 PM

tituição psiquiátrica e a utilização dos hospitais como instrumento de


ressocialização e cura. O objetivo primordial naquele momento de
questionamento era transformar o hospital, que funcionava como uma
organização carcerária, e convertê-lo em um instrumento terapêutico.
Era preciso reorganizar a vida hospitalar de modo tal que se pudesse
formar aí dispositivos institucionais que favorecessem a desalienação.
Algumas práticas detonaram esse movimento de mudança do
hospital psiquiátrico, denominado, em 1952, psicoterapia institucio-
nal. Teoricamente a psicoterapia institucional recolhe, de maneira bas-
tante eclética, contribuições do marxismo, do existencialismo, da fe-
nomenologia etc. Um momento decisivo, no que diz respeito aos no-
vos caminhos da psicoterapia institucional, é a sua relação com a psi-
canálise, cuja contribuição opera deslocamentos importantes na forma
de se conceber o “não dito e o não sabido institucional”. A dimensão
inconsciente da organização passa a ser evidenciada a partir do mo-
mento em que se começa a perceber que o âmbito microssocial não
tem um poder autônomo de cura.
Um grupo de profissionais na França – do qual fazia parte Félix
Guattari – dá início a uma rearticulação da prática hospitalar com o
pensamento psicanalítico, na qual, segundo Rolnik – que traduziu, or-
ganizou, prefaciou e comentou o livro Revolução Molecular, de Félix
Guattari –, é feita toda uma crítica à utilização da psicanálise,

(...) que a reduz a mero apoio externo, análise de um


especialista, psiquiatra, pedagogo, ou mesmo de um
grupo analítico constituindo uma formação de poder.
A análise passa a ser vista como uma dimensão de toda
experimentação social, tendo como objeto o conjunto
de um complexo de processos sociais. Nessa perspec-
tiva a análise não pode ser mais considerada uma es-
pecialidade da Saúde Mental, correndo o risco de ser
reificada como uma técnica da psicoterapia institucio-
nal. É no seio dessa problemática que Guattari sugere
o termo “análise institucional” (...) pela exigência de
um trabalho interdisciplinar entre a psicoterapia insti-
tucional e as práticas similares em outros campos: a
pedagogia, o urbanismo, o militantismo, o movimento
estudantil.20

Nesse desdobramento da psicoterapia institucional, identifica-


mos o momento em que esta concebe o efeito terapêutico como efeito
20 GUATTARI, 1987, p. 103.

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6978_Impulso_26.book Page 123 Wednesday, October 1, 2003 1:07 PM

institucional, e não como ato (médico ou psicanalítico). Ao abandonar


o isolamento técnico do analista tradicional pela convivência com os
loucos numa organização psiquiátrica, os psicoterapeutas tiveram que
se defrontar com as realidades do político e da política, abrindo dessa
forma um rico campo para a pesquisa e experimentação sobre as re-
lações entre inconsciente e instituição, desejo e história.
Numa coletânea de artigos redigidos entre 1955 e 1970, Guat-
tari21 conforma as bases de uma nova disciplina, a análise institucional,
que visaria precisamente estudar e intervir nas relações reais que os
grupos mantêm com as instituições.
Com a perspectiva assim aberta, a análise institucional consiste
em ver que, por trás da hierarquia indivíduo/grupo/sociedade e suas
várias modalidades sociológicas, movem-se interminavelmente
constelações fluidas e instáveis de forças ativas e de forças inertes, que
se organizam e desorganizam ao sabor das crises, dos desejos e dos
comprometimentos sempre provisórios.
Essa posição tem como conseqüência uma não-separação das es-
feras do político, econômico, psíquico. Essas esferas, assim isoladas en-
tre si, referem-se às formas molares, nas quais, diferentemente do nível
molecular,22 a produção e o desejo são uma e mesma coisa; equivale
dizer que a substância ou a matéria última de todo real (social, psíqui-
co, natural etc.) é a produção, é o produzir.
É praticamente impossível não reconhecer o fato de que a
invenção do inconsciente, tal qual Freud o descreveu no decorrer de
sua obra, contém uma riqueza efervescente e inquietante que não cessa
de produzir efeitos. Mas, ao mesmo tempo, faz-se mister reconhecer
que, segundo Guattari,

(...) atualmente não se podem dissociar as teorias do


inconsciente das práticas psicanalíticas, psicoterapêuti-
cas, institucionais, literárias etc, que a elas se referem.
O inconsciente se tornou uma instituição, um equipa-
mento coletivo compreendido em um sentido mais
amplo.23

21 GUATTARI, 1976.
22 Molar: ordem de realização do real em que as entidades características são os extratos e os grandes blo-
cos representativos dos territórios constituídos. É o lugar dos códigos, da “forma sujeitos e objetos” defini-
dos. É o campo da regularidade, da estabilidade, da conservação e da reprodução. É o mundo do macro.
Molecular: caracteriza os elementos que compõem a superfície da produção. É o lugar das matérias não for-
madas e das energias não vetorizadas, em que as máquinas se formam ao mesmo tempo em que funcio-
nam.
23 GUATTARI, 1992, p. 21.

impulso 123 nº26


6978_Impulso_26.book Page 124 Wednesday, October 1, 2003 1:07 PM

Esse mesmo inconsciente que deixou-se esfriar, recentrando-se


na análise do eu, na adaptação à sociedade ou na conformidade a uma
ordem significante, em sua versão estruturalista, passa a ser visto como

(...) um inconsciente que superpõe múltiplos estratos


de subjetivações, estratos heterogêneos de extensão e
de consciência maiores ou menores. Inconsciente, en-
tão, mais “esquizo”, liberado dos grilhões familiaristas,
mais voltado para práxis atuais do que para fixações e
regressões em relação ao passado. Inconsciente de flu-
xo e de máquinas abstratas, mais do que inconsciente
de estrutura e de linguagem.24

Se a psicanálise, como Freud a concebeu, já operou um descen-


tramento do sujeito, rompendo com a tradição racionalista, observa-
mos que numa perspectiva esquizoanalítica esse descentramento atin-
ge maior extensão porque remete a um alargamento da noção de sub-
jetividade. Esta é considerada como “produzida por instâncias indivi-
duais, coletivas e institucionais (...), plural, ‘polifônica’ (...) que não
reconhece nenhuma instâncias dominante de determinação que guie
as outras instâncias segundo uma causalidade unívoca”.25
Do ponto de vista da esquizoanálise, é possível pensar a subjeti-
vidade no marco de uma “produção desejante”. Para descrever essa
produção, Deleuze e Guattari26 irão circunscrevê-la segundo uma teo-
ria que considera o desejo como pertencendo a sistemas maquínicos al-
tamente complexos. Um desejo, cuja natureza é implacavelmente dis-
ruptiva e que precisa estar sempre sendo favorecida, liberada de suas
constrições. Um desejo que pode ter infinitas possibilidades de monta-
gem, uma “máquina-desejante” ou uma “produção-desejante”.
Sinteticamente dizendo, a atividade esquizoanalítica – naquilo
que contribui para o alargamento dos sentidos dados ao conceito de
inconsciente – consistiria, então, em revelar “o pólo revolucionário, es-
quizóide, criativo”, em detrimento “do pólo paranóico reacionário in-
cluso no investimento libidinal” e, por conseguinte, em todos os in-
vestimentos do social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que o institucionalismo nos mostra – em especial na vertente
esquizoanalítica que o compõe – é que sempre é possível buscar outros
24 GUATTARI, 1992, p. 23.
25 Ibid., p. 11.
26 DELEUZE & GUATTARI, 1976.

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6978_Impulso_26.book Page 125 Wednesday, October 1, 2003 1:07 PM

movimentos que impeçam as cristalizações e as ortopedias do pensa-


mento. Como um caldeirão efervescente, a lógica do pensamento psi-
canalítico aponta para a possibilidade de um desvencilhamento das
amarras de uma suposta acomodação histórica. Com isso, quero afir-
mar que pode ser desde a psicanálise, também, que se abra a possibi-
lidade de um casamento entre a psique inconsciente e o indivíduo so-
cialmente fabricado, entre a organização psíquica e a instituição da so-
ciedade. Romper-se-ia, assim, a antinomia e a exclusão mútua que no
campo da subjetividade separa o indivíduo e o social, o público e o pri-
vado, e que posssibilitaria, a partir daí, pensar a subjetividade “desvin-
culada de qualquer instância dominante que guie as outras instâncias
segundo uma característica unívoca”.27
Nesse sentido, se podemos considerar a teoria psicanalítica como
um modo de produção de subjetividade entre outros, podemos igual-
mente reconhecer que esta contribuiu (e continua contribuindo) para
que a humanidade possa continuar pensando sobre a vida. Através da
psicanálise o homem pôde refletir sobre si e sobre os sentidos do vi-
vido. Separar esse aspecto, digamos, subjetivo das circunstâncias polí-
ticas, econômicas e sociais é o que constitui erro de investigação, equí-
voco de interpretação, deformação técnica e científica.
Embora Freud considere enfaticamente as peculiaridades indivi-
duais do homem, o que ele não desconsidera é que esta individuali-
dade compõe e é composta pelo conjunto das suas relações com o
mundo. Apesar do pessimismo do seu criador, a psicanálise nos ofe-
receu um modelo científico de entendimento do humano que habilita
o homem, enquanto tal, à percepção de uma vida coletiva humaniza-
da. Ou seja, uma vida que se abre na perspectiva de um trabalho in-
terno (porque tem o desejo como aquilo que anima o inconsciente) na
busca da construção do coletivo.
Freud fez a psicanálise para o homem, não para uma determi-
nada categoria social de homens. Atualizá-la, contemplá-la e proble-
matizá-la com elementos históricos, políticos, sociais e institucionais
tem sido tarefa de seus seguidores.
Utilizando a figura de linguagem do livro de Vidermam,28 po-
demos afirmar que a psicanálise sempre está por se construir e nunca
por se assentar como uma obra pronta e acabada. É próprio à psica-
nálise basear-se nos modos e nos meios de construir e não de solidificar
a construção acabada. Possuindo um estatuto não totalmente definido
27 GUATTARI, 1992, p. 11.
28 VIDERMAN, 1990.

impulso 125 nº26


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e determinado, a psicanálise prossegue seu caminho como uma disci-


plina indisciplinada, na qual, mais do que responder, ela nos ensina a
perguntar, e com isso novos campos de referência tendem a constituir-
se. O que sustenta as perguntas que a cada momento aparecem não é
a rigidez das possíveis respostas, mas sim um horizonte inesgotável de
possíveis caminhos para respondê-las.

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Brasileiro de Psicanálise, Belo Horizonte, 1994. [Mimeo]
VIDERMAN, S. A Construção do Espaço Analítico. São Paulo: Escuta, 1990.

impulso 127 nº26


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Existo, Penso.
A Filosofia e a Questão
do Inconsciente:
Algumas Indicações*
I am, I Think. Philosophy and the
Unconscious: some indications
RESUMO – Este artigo faz algumas indicações sobre as relações entre filosofia e psi-
canálise. O questionamento a respeito da noção de consciência vigente na virada
do século, período em que a noção de inconsciente foi formulada por Freud, re- EDSON OLIVARI DE CASTRO
cebeu da fenomenologia diferentes respostas, que são apontadas nos trabalhos de Psicanalista, professor em regime
de dedicação da Faculdade de
Husserl, Heidegger, Sartre e Merleau-Ponty. O diálogo com esses autores permite Psicologia (UNIMEP), doutorando
demarcar o campo epistemológico da descoberta freudiana. em Psicologia Clínica (PUC-SP),
sócio-titular do Centro de Estudos
Palavras-chave: inconsciente – filosofia – fenomenologia – psicanálise. Fenomenológicos de São Paulo e
sócio-fundador da Associação
ABSTRACT – This article indicates the relationships between philosophy and Livre – Instituto de Cultura e
psychoanalysis. The questions about the notion of the conscience present at the Psicanálise – Piracicaba/SP.
edson.oc@uol.com.br
turn of the century when the notion of the unconscious was formulated by Freud,
received from phenomenology different answers that are shown in the works of
Husserl, Heidegger, Sartre and Merleau-Ponty. Dialogue with these authors allows
the demarcation of the epistemological field of Freudian discovery.
Keywords: unconscious – philosophy – phenomenology – psychoanalysis.1

1 * Originalmente escrito para participação da mesa-redonda “Sou onde não me penso – A destituição do
Cogito”, da 7ª Semana de Estudos Filosóficos da UNIMEP, que teve como mote Razão e Existência, este
artigo foi ligeiramente adaptado para a presente publicação.

impulso 129 nº26


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Brincava a criança
com carro de bois.
Sentiu-se brincando
e disse: eu sou dois!
CARNEIRO LEÃO

D elimitemos, primeiro, os marcos deste artigo: opto por não


escrever a partir da clínica, mas provocar (no sentido etimo-
lógico do termo: pro-vocare) um diálogo entre a filosofia e a
psicanálise, ensejado pelo centenário das publicações de dois
mestres, ex-alunos de Franz Brentano2: A Interpretação dos Sonhos, de
Sigmund Freud, em que o fundador da psicanálise formula a dinâmica
do inconsciente, e Investigações Lógicas, de Edmund Husserl, na qual
o filósofo postula a intencionalidade da consciência – a destituição do
cogito cartesiano estava “na ordem do dia” naquela virada do século.
Destaco, então, dois pontos: um deles refere-se ao fato de mi-
nhas indicações, para produzir contrapontos, serem feitas a partir da
fenomenologia, uma certa filosofia decorrente das obras de Husserl,
que em sua constituição mesma, enquanto método, depara-se com a
condição à qual se atribuiu, ou na qual se ancorou, a noção de incons-
ciente; o outro: convém também situar o leitor em relação à conce-
pção de filosofia que me orienta, a saber: em O Metafísico no Homem,
Merleau-Ponty afirma que
Não se deve dizer que a filosofia é compatível com a
ciência, mas sim que lhe é necessária, como lembrança
contínua de suas tarefas (...). A filosofia não é um certo
saber, é a vigilância que não deixa esquecer a fonte de
todo saber. (...) A metafísica não é uma construção de
conceitos, por cujo intermédio tentaríamos tornar nos-
sos paradoxos menos sensíveis (...) é uma interrogação
que não comporta respostas que a anulem, mas so-
mente ações resolutas que a transportam para mais
longe. Não é um conhecimento que viria terminar o
edifício dos conhecimentos; é o saber lúcido daquilo
que os ameaça e a consciência aguda de seu preço.3

Nesse sentido, se há um inconsciente, penso que o problema


para os filósofos poderia colocar-se assim: Que é o inconsciente? Um

2 Professor de Filosofia da Universidade de Viena, autor de A Psicologia do Ponto de Vista Empírico, 1874.
3 MERLEAU-PONTY, 1984a, p. 190.

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postulado científico? Um mito? Uma desculpa para nossa falibilidade?


Um reflexo de nossa consciência errante? Uma armadilha da lingua-
gem?4 Há alguma realidade filosófica que o funda? Que lugar ocupa
na trama social? Qual o seu estatuto ontológico? E por fim, mas não
menos importante, quais as implicações desse conceito para a episte-
mologia e as ciências humanas de modo geral? Qual seria o rigor pos-
sível ao conhecimento científico?
Não é sem propósito que citei Merleau-Ponty, contemporâneo de
Lacan – autor do aforismo: sou onde não me penso –, e que, assim como
ele, se empolgou com as obras de Husserl e Heidegger, filósofos que, en-
tre outros e cada um a seu modo, destituíram o cogito cartesiano, em-
bora não tenham considerado necessário postular um inconsciente.5

I
Mesmo com todos os problemas que um resumo nos traz, diga-
mos que, em Husserl, o cogito (o pensar) é irredutível a um pensar ra-
cional e não é confundido com a cogitatio (o pensado), pois se funda
num compromisso com o pré-temático vivido, por ele denominado de
“mundo da vida”, em que uma intencionalidade operante age e é agi-
da, e em que só por um esforço de retomada deste vivido o sentido se
esclarece em diferentes níveis de constituição. Um desses níveis é o
pensar reflexivo, de uma consciência transcendental, não tética de si
(ou seja, que não supõe a si mesma em seu próprio ato), sempre parcial
e provisória, e que só se encontra nos matizes noemáticos dos objetos
que se lhe apresentam.6
Podemos, então, dizer que a descrição fenomenológica de Ed-
mund Husserl – contanto que não a forcem a um sentido idealista com
o qual não concordo7 – pode fornecer-nos elementos para as questões
sobre o que se convencionou chamar de inconsciente, pois sua epochê
4 Essa questão, especificamente, se coloca porque a descoberta de que, quando falamos, sempre dizemos
algo a mais do que queremos explicitamente dizer não é um troféu da psicanálise. Com certeza desde Pla-
tão, e talvez mesmo antes dele, sabe-se que todo discurso é acompanhado por uma franja marginal de
significações, que pode ser mais ou menos densa, embora na comunicação cotidiana exista uma convenção
tácita no sentido de suspender a atenção a essa franja conotativa, para concentrar o foco sobre o conteúdo
manifesto ou denotativo daquilo que é dito. Como sabemos, apenas na situação analítica, e por autorização
explícita dada pelo paciente ao analista, é que o chamado argumento ad hominem tem direito de cidadania.
A interpretação legitima-se pela referência do discurso ao seu emissor e não ao seu objeto designado.
5 Cf. ROUDINESCO, 1994.
6 Cf. BEIRÃO, 1984, pp. 27-34.
7 Acompanho a compreensão que Merleau-Ponty manifesta em O Filósofo e sua Sombra (1960): a partir
dos Inéditos (quando se dedica à elucidação do Lebenswelt – ou mundo-da-vida) há, em Husserl, um
impensado que é muito seu e que, no entanto, abre para uma outra coisa, uma nova abordagem que indica
que nem o Espírito nem a Natureza são fundantes, mas que ambos são manifestações de uma “terceira
dimensão”, abaixo deles, anterior à objetividade e à subjetividade e que os constitui. Indico a leitura aos que
só conhecem os objetos de pensamento de Husserl e insistem em mantê-lo exclusivamente limitado ao eixo
cartesiano de uma filosofia da consciência.

impulso 131 nº26


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nos leva a saber que na experiência humana, o sentido é, sempre, cons-


tituído do implícito, do referencial, do alusivo, do virtual etc., e que a
consciência é sempre uma tarefa, e não uma aquisição.8
Assim, se a consciência se separa da ordem natural pela intencio-
nalidade, poder-se-ia pensar que o inconsciente se caracterizará por um
modo particular e original de intencionalidade, ou seja, por uma institui-
ção de sentido do tipo sui generis; maneira de ver, aliás, que coincide
exatamente com a de Freud, que não percebeu os serviços que a noção
de intencionalidade (já insinuada nas aulas de Brentano) lhe prestaria –
embora também não fosse essa sua tarefa, pois o criador de um novo sa-
ber não tem de averiguar segundo que tipo de ontologia se integrará esse
saber à antropologia filosófica.

II
Também podemos realizar aproximações desde a analítica exis-
tencial de Martin Heidegger.9 Sem tratar de resumir suas proposições
essenciais, gostaria de destacar especialmente aquelas sobre a inauten-
ticidade – situação inicial, espontânea e ineludível do Dasein (Estar-aí):
como ser-para-a-morte, vivemos em evidências que consideramos na-
turais, resultando de nossa incessante e ante-predicativa interpretação;
cremos que a fisionomia afetiva dos outros e do mundo dependem de-
les, enquanto de outro lado, não adquirimos dos outros e do mundo
mais do que um conhecimento universal, público, baseado no “falató-
rio” (Gerede), que não nos desprende de nosso modo de ser “a gente”
(Das man) – ao contrário, disfarça nossa finitude.
Apenas na angústia – que nos arranca da inautenticidade para um
ser-si-mesmo, autêntico – e, por um triz, subjetivamos a morte, singu-
larizando-nos. Mas, imediatamente, mergulhamos de novo na situação
(dimensão) anterior, pois no modo de ser autêntico também nos damos
conta do quão inarredável é nossa pertença ao mundo comum.10
Não estou equiparando o que Heidegger chama de inautentici-
dade ao que Freud ou Lacan chamaram de inconsciente, porém, mais
uma vez, tentando posicionar o problema nos termos da filosofia: as
indicações acima nos mostram que o homem não pode viver sem dis-
8 Cf. LYOTARD, 1986. Ver também BEIRÃO, in CASTRO & BEIRÃO, 1992, pp. 135-48.
9 Na perspectiva da ontologia fenomenológica, a novidade de Heidegger, em relação ao seu mestre Hus-
serl, é ter tentado resolver o problema do fundamento sem recorrer à consciência, mesmo transcendental, o
que seria sem dúvida idealista demais, mesmo subjetivista, pois Heidegger recusa partir de intuições, mas
parte da compreensão da vida concreta: do contrário, passar-se-ia ao lado da vida na sua realidade e no
complexo dos significados do mundo – Heidegger parte da vida na sua facticidade no mundo, da vida que
é em última análise histórica e se compreende historicamente.
10 Cf. HEIDEGGER, 1968, § 26. Sobre Heidegger e Freud, ver LOPARIC, 1990 e LOPARIC, In KNO-
BLOCH, 1991, pp. 43-58.

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farçar o que é, ou melhor, que ele não existe se não se apreende a si


mesmo em sua exterioridade e sem saber que é a si mesmo a quem
apreende desse modo.
Além desses pontos, toda reflexão heideggeriana sobre a lingua-
gem (e em seu horizonte, sobre a temporalidade, da qual é insepará-
vel), desvelada como a compreensão do ser do existente que caracte-
riza o Estar-aí, poderia certamente fecundar o diálogo entre a psica-
nálise e a fenomenologia. Afora a condição existencial de estar-lançado
para o futuro que a noção psicanalítica de desejo implica, o caráter ab-
solutamente desrealizante da linguagem (porque a encontramos já aí e
jamais chegamos a dominá-la) apontado por Heidegger parece-me
bastante próximo à afirmação de Lacan de que “o inconsciente é essa
parte do discurso concreto, enquanto transindividual, que falta na dis-
posição do sujeito para restabelecer a continuidade de seu discurso
consciente”.

III
Cabe, ainda, fazer referência a dois outros fenomenólogos que,
embora discordantes entre si, aclaram alguns pontos que dizem res-
peito à noção de inconsciente: Jean-Paul Sartre e Maurice Merleau-
Ponty.
Ao interrogar-se descritivamente sobre o ser do homem, Sartre
nos mostra que através da reflexão não podemos alcançar o modo do
ser para-si – ou uma qualificação própria que nos seja interior –, pois
é através do outro, e, mais particularmente, mediante o olhar do ou-
tro, que o homem se dá conta de que tem um ser (que escapa à liber-
dade absoluta) e que este não se lhe é revelado de outra maneira, nem
pode recusá-lo.
É isso que assegura a possibilidade do que Sartre denominou má-
fé: negando seu ser a pretexto de que o recebe de outrem, de que não
pode aceitar um ser que não receba de si mesmo, tenta negar o fato
em si e não só tal ou qual qualificação, escondendo-se de toda espe-
cificação de seu ser. Porém, a única forma de provar o “erro” de uma
qualificação recebida (por exemplo: “Tal pai, tal filho!”) seria “traba-
lhar” para impor ao outro uma modificação, o que implica, finalmen-
te, restituir-lhe o lugar de atribuidor.
É certo que as teses de Sartre exigiriam uma discussão mais apro-
fundada, não apenas para verificarmos se realmente haveria, e como,
uma destituição do cogito, mas também no sentido de elucidar as re-
lações entre a ambigüidade do ser do homem e nossos diagnósticos,
que são uma maneira de atribuir certa qualificação ao ser de nossos pa-

impulso 133 nº26


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cientes. Todavia, a tese de que o homem para si mesmo não é nada e


que seu ser lhe é atribuído por outrem não é absolutamente estranha
à questão do inconsciente (vide as formulações de Jacques Lacan sobre
o estádio do espelho) e mereceria ser fertilizada no interior mesmo da
filosofia.11
Pode-se, ainda, via Paul Ricoeur – outro filósofo que realiza uma
reflexão no sentido do que tratamos aqui –, indicar o caminho aberto
por Merleau-Ponty. Em História e Verdade, afirma Ricouer:

O mundo não é mais a unidade de um objetivo abs-


trato, de uma forma da razão, mas o horizonte mais
concreto de nossa existência. Pode-se tornar isto sen-
sível de maneira muito elementar: é ao nível da per-
cepção que se destaca esse horizonte único de nossa
vida de homem. A percepção é a matriz comum de to-
das as atitudes. É no mundo percebido, no mundo
que envolve minha existência carnal, que se erguem os
laboratórios e se realizam os cálculos do sábio, as casas,
as bibliotecas, os museus e as igrejas. Os “objetos” da
ciência estão nas “coisas” do mundo (...). Mas que sig-
nifica isso? Essa unidade também não a posso apreen-
der, dominar, entendê-la e exprimi-la em discurso co-
erente. Pois essa camada primordial de toda experiên-
cia é a realidade prévia de todas as circunstâncias; ela
é sempre-já-antes e chego tarde demais para exprimir.
O mundo é a palavra que tenho na ponta da língua e
que jamais pronunciarei; está presente, mas apenas co-
meço a proferi-la, já se tornou mundo do cientista,
mundo do artista e mundo de tal artista: mundo de
Van Gogh, de Cézanne (...). A unidade do mundo é
por demais preliminar para poder ser possuída, por
demais vivida para ser sabida. Desaparece mal é reco-
nhecida. É talvez por isso que uma fenomenologia da
percepção, que aspirasse a dar-nos a filosofia de nosso-
estar-no-mundo, é algo tão difícil quanto a busca do
paraíso. A unidade do mundo a partir da qual se des-
dobram todas as atitudes é apenas o horizonte de to-
das essas atitudes.12

Como se sabe, a fenomenologia da percepção foi o caminho


aberto por Merleau-Ponty para começar a explorar aquilo que, segun-
11 Sobre o estádio do espelho, Cf. Dicionário Enciclopédico de Psicanálise: o legado de Freud e Lacan, 1996,
pp. 157-61, e sobre a má fé, SARTRE & FERREIRA, 1978.
12 Apud. VON ZUBEN, in BEIRÃO, 1984, pp. 55-68 (grifo acrescentado).

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do seu entendimento, ficou à sombra do pensamento husserliano:13 o


inconsciente seria o sentir mesmo, já que o sentir (o sensível) não é a
possessão intelectual “daquilo” que é sentido, mas, sim, despossessão
de nós mesmos em seu proveito, abertura àquilo que em nós não é ne-
cessário pensar para compreender. Merleau-Ponty não chegou a for-
mular uma conceituação clara do inconsciente, embora em suas notas
de trabalho, publicadas postumamente por Claude Lefort – O Visível
e o Invisível – denomine o inconsciente de pivô existencial (o que retira
a noção de inconsciente do plano do psíquico, do mental, de ser o in-
verso da consciência, para situá-lo no mundo, quase como uma at-
mosfera, “instalado” para além ou aquém de qualquer subjetividade,
presente na articulação dos corpos entre si, no entre o psíquico e o fí-
sico) e apareçam indicações de como pretendia fundá-lo na experiên-
cia sensível – ontologicamente primordial –, já que para ele o sentido
e o não-sentido estão inextrincavelmente imbricados, e surgem de nos-
sa relação com o mundo e com os outros, tendo como berço a per-
cepção: somos feitos da mesma carne (chair) do mundo, dizia ele,
compreendendo-a como elemento, no mesmo sentido em que o ter-
mo era empregado para se falar do fogo, da terra, da água e do ar, isto
é, como uma coisa geral, meio caminho entre o indivíduo espaço-tem-
poral e a idéia...14
Por fim, é oportuno assinalar nesse diálogo a posição de Merleau-
Ponty, ressaltada no prefácio ao livro A Obra de Freud, de A. Hesnard:

A concordância da fenomenologia e da psicanálise não


deve ser compreendida como se “fenômeno” dissesse
de forma clara o que a psicanálise o disse de forma
confusa. É, ao contrário, pelo que ela subentende ou
desvela até seu limite – por seu conteúdo latente ou
seu inconsciente – que a fenomenologia está em con-
sonância com a psicanálise.15

13 O filósofo procura mostrar, nesse momento de sua reflexão, que a consciência não se define inicialmente
como cogito e faculdade intelectual da representação, mas como percepção, que não seria sequer um ato,
mas o fundo sobre o qual se destacam todos os atos e é pressuposto por eles. Merleau-Ponty foi, nessa obra,
obrigado a retomar a problemática husserliana para fundar sua fenomenologia da percepção como recusa,
justamente, de uma filosofia da consciência.
14 Cf. MERLEAU-PONTY, 1984b. Sobre o inconsciente em Merleau-Ponty, vide COELHO JR. in KNO-
BLOCH, op. cit., pp. 123-145. De qualquer modo, vale assinalar que, para o filósofo, a ciência e a filosofia
da consciência nunca foram capazes de dar conta da peculiaridade e da ambigüidade da relação corpo-
mundo (pois sempre manteve como apanágios exclusivos da consciência e do objeto, respectivamente, a
reflexividade e a visibilidade), nem da intersubjetividade (pois para a primeira cada um é um autômato igual
a uma coisa ou à matéria inerte, enquanto, para a segunda, é um “eu penso” único e total, não havendo
como sair de si e encontrar o outro), nem sequer da linguagem (já que para a primeira ela sempre foi um sis-
tema convencional e econômico de sinais e, para a Segunda, uma tradução imperfeita do pensamento), o
que o levou à critica do “pensamento de sobrevôo” tanto numa como noutra.
15 Cf. MERLEAU-PONTY, 1960, p. 9.

impulso 135 nº26


6978_Impulso_26.book Page 136 Wednesday, October 1, 2003 1:07 PM

IV
Sem dúvida, há outros caminhos na própria fenomenologia e na
filosofia contemporânea que concorrem para a destituição do cogito.16
Penso, porém, que já estão indicadas questões suficientes para se ini-
ciar, notadamente no nosso meio acadêmico (já que em outros ele não
é nada novo), um diálogo profícuo entre filosofia e psicanálise que,
por vezes, tem sido incentivado a deixar de lado os debates fundados
nos clássicos e voltar sua atenção para querelas corporativistas, moti-
vadas por razões mercadológicas; ou ainda, o que é pior, se reduz a fi-
losofia ao desejo do filósofo de um lado e, de outro, a psicanálise a
uma pseudociência ou a um saber em-si que não se permite ser inter-
rogado pela filosofia, quer pelo viés epistemológico, quer pelo viés éti-
co-político ou ontológico.
Que a comemoração do centenário dessas obras nos enseje a
busca de respostas a questões como as que Paul Ricoeur formulava há
trinta anos: como devemos repensar e re-fundamentar o conceito de
consciência, de maneira tal que o inconsciente possa ser seu outro?
Como conduzir uma crítica – no sentido kantiano – referente aos mo-
delos que a psicanálise constrói, necessariamente, para dar conta do in-
consciente? E, para além da revisão do conceito de consciência impos-
ta pela ciência do inconsciente: em que visão de mundo e de homem
são possíveis essas coisas? O que deve ser o homem para ser, de uma
só vez, responsável por um pensar razoável e capaz da loucura? Ser
obrigado por sua humanidade a uma maior consciência e capaz de de-
pender de uma tópica e economia, porquanto o “isso fala n’ele”? Que
nova visão sobre a fragilidade humana – e, ainda mais radicalmente,
sobre o paradoxo da responsabilidade e da fragilidade – é exigida por
um pensamento que aceita ser descentrado da consciência por uma re-
flexão sobre o inconsciente?17
E, uma questão, ou é tomada como própria, ou se faz de conta
que a responde!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BEIRÃO, M.F. et al. Temas Fundamentais de Fenomenologia. Editado pelo Centro
de Estudos Fenomenológicos de São Paulo, São Paulo: Moraes, 1984.

16 Confira, por exemplo, os trabalhos sobre linguagem do fenomenólogo e psicanalista de WAELHENS, in


EY, 1970, pp. 401-16, e, de outro lado, os trabalhos, por exemplo, de DELLEUZE & GUATTARI, 1976.
Para o iniciante, podem ser esclarecedoras as leituras de NAFFAH NETO, 1985 e 1991.
17 Cf. RICOUER, in EY, 1970, pp. 440-454.

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CASTRO, E.O. & BEIRÃO, M.F. (org.) et al. Vida, Morte e Destino. Editado pelo
Centro de Estudos Fenomenológicos de São Paulo. São Paulo: Cia. Ilimi-
tada, 1992.
DELLEUZE, G. & GUATTARI, F. O Anti-Édipo. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE PSICANÁLISE: O Legado de Freud e
Lacan. Editado por Pierre Kaufmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
EY, H. El Inconsciente – Coloquio de Bonneval. México: Siglo XXI, 1970.
HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. México: Fondo de Cultura Econômica, 1968.
KNOBLOCH, F. (org.) et al. O Inconsciente: várias leituras. São Paulo: Escuta,
1991.
LOPARIC, Z. Heidegger Réu: um ensaio sobre a periculosidade da filosofia. Cam-
pinas: Papirus, 1990.
LYOTARD, J.F. A Fenomenologia. Lisboa: Ed. 70, 1986.
MERLEAU-PONTY, M. O Metafísico no Homem. Os Pensadores. São Paulo:
Abril Cultural, 1984a.
________________. O Visível e o Invisível. São Paulo: Perspectiva, 1984b.
________________. Prefácio. In: L’Ouvre de Freud. HESNARD, A. Paris: Payot,
1960.
NAFFAH NETO, A. O Inconsciente: um estudo crítico. São Paulo: Ática, 1985.
________________. O Inconsciente como Potência Subversiva. São Paulo: Escuta,
1991.
ROUDINESCO, E. J. Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de pensa-
mento. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
SARTRE, J.P. & FERREIRA V. O Existencialismo é um Humanismo. Lisboa:
Presença, 1978.

impulso 137 nº26


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A Criança Especial
na Psicanálise
The Special Child in Psychoanalysis

RESUMO – Esta pesquisa fez-se necessária pelas questões surgidas a partir de aten-
MÁRCIA CRISTINA MAESSO
dimentos clínicos psicológicos realizados no CEPAC, em Jacareí-SP, instituição que Psicanalista, especialista em
recebe crianças especiais, submetidas a diversos tipos de comprometimentos físicos Psicanálise e Linguagem (PUC-SP).
maesso_bernardes@uol.com.br
e ou mentais, sobretudo algumas síndromes e paralisia cerebral. Trata-se de um es-
tudo teórico-clínico segundo o referencial psicanalítico, envolvendo a problemá-
tica do déficit orgânico sobre a constituição psíquica da criança. Resultou de uma
pesquisa que teve como ponto de partida a seguinte questão: como uma insufici-
ência orgânica sobrevém nas condições de constituição da subjetividade? Na ten-
tativa de respondê-la, tomamos como referência teórica Freud, Lacan e outros psi-
canalistas contemporâneos, articulada a três resenhas de casos.

Palavras-chave: criança especial – constituição psíquica – clínica psicanalítica.

ABSTRACT – The need for the present research came from the questions that arose
in the clinical psychological treatments at CEPAC in Jacareí-SP, Brazil, an institution
which assists special children with physical and mental disabilities, syndromes and
cerebral paralysis. This is a clinical theoretical study based on psychoanalysis, in-
volving the problem of organic disabilities and the child’s psychic constitution.
The article resulted from research based on the question of how an organic insu-
fficiency affects the conditions of subject formation. In our attempt to respond, we
used as our theoretical framework the works of Freud, Lacan and other contem-
porary psychoanalysts which were articulated in the discussion of three case stu-
dies.

Keywords: special children – psychic constitution – psychoanalytical clinic.

impulso 139 nº26


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INTRODUÇÃO

A o ser convidada a prestar serviço de atendimento clínico


numa instituição que recebia crianças chamadas especiais, de-
vido aos comprometimentos físicos e ou mentais, comecei a
me fazer uma série de questionamentos. Já havia anteriormente tra-
balhado com crianças em consultório, mas diante da possibilidade de
encontrar na clínica uma marca real tão evidente quanto o déficit or-
gânico, perguntei-me sobre a viabilidade do tratamento psicanalítico
com crianças nessas condições. Na mesma época, estava por concluir
a especialização em psicanálise, portanto, cabia-me a tarefa de realizar
um trabalho de pesquisa, que resultou em um estudo teórico-clínico
envolvendo a problemática da incidência do déficit real sobre a cons-
tituição psíquica da criança. O conteúdo que examinaremos a seguir
está diretamente relacionado ao entrecruzamento de dois movimen-
tos: Questionamento pelo impasse clínico e pesquisa teórica.
Aprendemos com Lacan a discernir, ao afirmamos que a criança
é um sujeito em constituição, que não estamos nos referindo apenas à
realidade de sua imaturidade orgânica em desenvolvimento, mas es-
pecialmente ao “sujeito do desejo”, aquele descoberto por Freud nos
sonhos, chistes e atos falhos, e por Lacan, na linguagem, através dos
significantes surgidos pela operação da castração.
Para ascender à posição de desejante, independentemente das
condições deficitárias reais às quais alguém possa estar submetido, sem
que haja adestramento privilegiando apenas a adaptação social, a re-
lação com o outro deve-se fazer propiciadora das condições necessá-
rias ao devir de sujeito na criança, a partir de uma suposição de sua
existência. É o que de costume as mães, ou quem se ocupa dessa fun-
ção, fazem com os bebês, ou seja, em algum momento resolvem en-
tender uma manifestação qualquer da criança, que por vezes ainda não
fala, como um apelo de sua própria autoria, e podem endereçar a eles
uma pergunta fundamental: “O que você quer?”.
Entretanto, é notável que na maioria das vezes as crianças, sob
condições especiais de comprometimento orgânico, estão comprome-
tidas também em sua subjetividade, como se houvesse uma predispo-
sição à insanidade psíquica, relacionada à própria insuficiência orgâ-
nica. É notável também que esta tão constitutiva pergunta formada
com poucas palavras (“O que você quer?”) muitas vezes não é feita pe-
los pais às crianças com déficit orgânico, como se a elas não fosse pos-
sível saber, enquanto saber que se diferencia do que esperam seus pais,
dada sua condição orgânica. A observação dessa recorrência me per-

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mitiu formular a seguinte questão: Como uma insuficiência orgânica


sobrevém nas condições de constituição da subjetividade?
Ocorre que nem sempre o contexto que envolve a chegada de
uma criança ao mundo é passível de uma oferta favorável ao seu pleno
surgimento como sujeito desejante. Esse contexto ao qual nos referi-
mos está condensado de significantes que antecedem o nascimento do
bebê e do que o bebê real oferece, correspondendo ou não ao bebê es-
perado pelos pais. A observação de Freud em “Sobre o narcisismo:
uma introdução” é precisa:

Se prestarmos atenção à atitude dos pais afetuosos


para com seus filhos, temos de reconhecer que ela é
uma revivescência e reprodução de seu próprio narci-
sismo, que há muito abandonaram. [...] Assim eles se
acham sob a compulsão de atribuir todas as perfeições
ao filho – o que uma observação sóbria não permitiria
– e de ocultar e esquecer todas as deficiências dele. [...]
A criança concretizará os sonhos dourados que os pais
jamais realizaram...1

Mas, se há o impacto pela incidência de uma condição real que


trai imediatamente essa expectativa, pode ocorrer que a criança nem
seja imaginarizada como tal. A possibilidade de perpetuação de si e da
realização de sonhos através de um filho pode ser prejudicada quando
o bebê real é impossibilitado de corresponder aos ideais parentais por
uma insuficiência orgânica. Usando uma metáfora bem simples, seria
como a primeira roupinha preparada com esmero, para vestir o filho
esperado, mas que não serve ao corpinho do bebê que nasceu com de-
feito. Que efeitos são produzidos sobre a criança e seus pais quando a
roupinha-significante, que deveria ser preenchida pelo corpo da crian-
ça, por circunstâncias especiais, não lhe cabe? A resposta pode parecer
óbvia, mas não é sem fundamento: ou outra roupa lhe é dada para ves-
tir, ou a criança fica nua. Tanto em um quanto em outro há desvio da
rede significante primordial.
Freud, no mesmo texto, declara:

(...) uma pessoa atormentada por dor e mal-estar or-


gânico deixa de se interessar pelas coisas do mundo
externo, na medida em que não dizem respeito ao seu
sofrimento. Uma observação mais detida nos ensina
que ela também retira seu interesse libidinal de seus
objetos amorosos: enquanto sofre deixa de amar.2

1 FREUD [1914], 1990, pp. 107-108.


2 Ibid., p. 98.

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É claro que, ao fazer essa afirmação, Freud refere-se a uma pessoa


em relação à sua própria doença, mas não deve ser menos verdade
quando a doença localiza-se em uma pessoa amada, um filho (mesmo
porque a idéia central desse texto de Freud é o investimento narcísico
dos pais sobre o filho, que revela a extensão da própria imagem, pro-
jetada no filho). O que pretende-se inferir é que, ao nascer uma criança
com um déficit orgânico ou este se fazer precocemente presente, o
olhar dos pais se desloca da criança para a doença da criança, sua de-
ficiência, ou sua má formação, que torna-se uma metonímia da totali-
dade de seu ser. A peregrinação dos pais pelos médicos e especialistas,
com vistas à melhora da insuficiência da criança, nos dá mostra desse
desvio do olhar, pois, na maior parte dos casos, é com base nas orien-
tações recebidas pelos profissionais ou nos manuais de ensinamentos
específicos que os pais irão estabelecer suas relações com o filho doente,
ou com a parte doente do filho que lhes cabe habilitar. É bastante co-
mum escutar no discurso desses pais palavras técnicas usadas pelos es-
pecialistas, para dizerem de seus filhos.
Veremos, através de três resenhas de casos, alguns efeitos produ-
zidos a partir do real, que sobrevém inapreensível no corpo da criança,
provocando a suspensão da estrutura significante parental, concernen-
te à sua constituição enquanto sujeito do desejo.

CASO I
Lucas, menino de cinco anos, que sofreu AVC (derrame cerebral)
com um ano e oito meses de idade, apresenta um quadro de hemipa-
resia e de constantes convulsões. Em algumas entrevistas sua mãe de-
clara que, pelo fato de Lucas ter convulsões diárias, ela teme deixá-lo
sozinho; sua presença é constante para o caso de ter de socorrê-lo.
Quando é convocada a dizer como é sua relação com o filho, nota-se
que é através das convulsões que ela se faz. O menino não pode ficar
sozinho; quando quer jogar bola com o irmão e os amigos (que ela diz
serem do irmão), a mãe tem medo; só pode brincar na rua quando ela
tem condições de olhá-lo; além disso, sente-se penalizada pelo fato das
outras crianças notarem e comentarem que Lucas não sabe brincar di-
reito. Entretanto, mesmo com tantos cuidados e a presença da mãe,
Lucas teve uma crise convulsiva e caiu da escada. Ao relatar o fato, a
mãe se explica dizendo que estava perto do filho, mas a proximidade
não foi suficiente para alcançá-lo a tempo. Essa “necessidade” de se-
gurá-lo configura-se em outra situação: quando estão na rua a mãe se-
gura bem forte a mão de Lucas; se soltar, ele sai correndo e ela teme
que algo ruim possa acontecer.

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Nota-se que o olhar da mãe está dirigido à doença; em nenhum


momento ela se refere ao que seu filho sabe ou gosta de fazer. Ao falar
da escola do filho (uma sala de estimulação criada para atender crian-
ças com dificuldades semelhantes), ela apenas diz: “Lá ele é muito tí-
mido, como conta a doutora, isto é, a professora”. Esse ato falho re-
mete à ênfase que a doença tem sobre a criança, já que doente precisa
de médico, não de professora.
Podemos supor que na linguagem materna, bem como em seus
atos, há um saber que remete à doença e que, a partir deste saber, o
filho é mantido mesmo com seus esforços de separação. A antecipação
feita pela mãe à criança está relacionada à insuficiência de sua condição
orgânica, provocando, através do temor de sua independência, a ma-
nutenção de seu lugar de doente, pelo qual a mãe conserva-se exer-
cendo a função do filho, conduzindo-o na rua, assistindo suas brinca-
deiras e, sobretudo, sofrendo por ele quando suas inabilidades são no-
tadas e comentadas por outra criança.
O modo como o laço dessa criança é estabelecido com a mãe
permite supor que há uma adjacência, uma contigüidade da criança à
doença, pela qual é tomada metonimicamente. A supervalorização da
doença sobre a criança delimita o campo de articulação significante
que a circunscreve no discurso, definindo sua posição na rede signifi-
cante, posição esta que lhe atualiza a parcela deficitária e a faz perma-
necer na condição que lhe é dada desde o real de sua insuficiência, cul-
minando na destituição de suas outras possíveis capacidades, como,
por exemplo, a de promover sua independência, sua separação da
mãe.

CASO II
Uma mulher grávida tropeça e bate a barriga; sua filha Jhullya
nasce normalmente e, aos seis meses de idade, a mãe nota que a criança
não consegue sentar-se, mantendo-se em movimentos descoordenados,
sacudindo o corpo. A criança é levada ao pediatra, que a encaminha ao
neurologista; através de exames é diagnosticado que a criança tem sí-
ndrome de West criptogênica, com prognóstico de não andar e não fa-
lar. Entretanto, Jhullya anda aos três anos e fala aos cinco anos, idade
com a qual é levada a freqüentar uma pré-escola pública convencional,
mas na qual não lhe é dado continuar, devido ao seu comportamento
“hiperativo” e mau aproveitamento. Jhullya começa, então, a ser assis-
tida por mim, aos seis anos e meio; suas manifestações resumem-se na
criação de palavras inexistentes (glossolalia) e em jogos que desenvol-
vem-se em deslocamentos metonímicos: um animal chama o outro

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para falar, que por sua vez chama outro animal, que chamará outro, e
assim por diante. Às vezes falava imperativamente consigo, como se
fosse um outro e respondia com um ato.
Através das conversas com a mãe, soube-se que, a seu ver, o fato
de ter batido a barriga durante a gestação ao correr de um homem por
ela considerado louco poderia ter causado o problema de Jhullya. E,
a respeito do exame genético, ela considerava o “gen” do pai o res-
ponsável, já que o pai não podia ter filhos. Depois de Jhullya ouvir es-
ses relatos da mãe, começou a estender seus jogos, produzir desenhos,
desdobrar significantes e pedir que eu desenhasse seu pai levando-a à
escola.
Notamos nesse curto relato que Jhullya ficou sem um lugar de-
finido: a batida durante a gestação talvez tivesse contribuído para que
o bebê real não fosse identificado como o bebê esperado; o bebê so-
freu um acidente e deste esperava-se algum efeito, mas que não se sa-
bia qual. O nome escolhido para a criança durante a gravidez, Tânia,
não lhe foi dado; outro nome (Jhullya) surgiu quando a mãe folheava
uma revista no hospital. Jhullya refere-se a si própria como Tânia (o
nome que teria e que sua prima recebeu) e à sua irmã como Marcos,
o nome de seu primo. Além de apontar o ideal de filha em sua prima
por parte de mãe, através de sua tentativa de nomeação, Jhullya apon-
ta a insatisfação que representa. Para a mãe, Jhullya é um nome que
“não se escreve, ninguém sabe escrevê-lo”, nem mesmo ela.
Estamos tratando da alienação fundamental proposta por Lacan,
que se faz necessária à estruturação da realidade, bem como constitui a
imagem refletida de si, na relação com o outro, na forma de eu-ideal.3
No caso dessa menina, a roupa tecida durante a gestação – seu nome,
entre outras coisas – não lhe coube; talvez a mãe já não soubesse como
lhe chamar, por não saber “como” a criança nasceria a partir do aciden-
te. Recorrendo a uma revista no hospital e ao médico, pôde oferecer
uma suplência ao significante que ficara suspenso. O nome da síndrome,
dado pela ciência, alude à incidência paterna como responsável geneti-
camente pelo comprometimento da filha. Podemos supor que essa reve-
lação médica tenha permitido à mãe reconhecer a filiação da criança a
partir do referencial paterno, e à criança a possibilidade de ocupar um
lugar na cadeia significante, identificando-se à sua insuficiência herdada
da insuficiência do pai. Entretanto, a referência ao significante paterno
possibilita à criança avançar sobre sua doença, não correspondendo ao
prognóstico de não andar e não falar, estabelecido pela medicina, na
3 Cf. LACAN, 1979, p. 148.

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mesma medida em que seu pai supera o mandato de sua esterilidade.


É possível supor que o desejo de Jhullya ir à escola esteja diretamente
relacionado à lei que lhe outorga o pai: a da superação em nome do
desejo.

CASO III
O atraso no nascimento de David tem como conseqüência
anóxia neonatal, que o leva à internação imediata por alguns dias; as-
sim, passa a ter cuidados especiais, pelo receio dos pais de que algo lhe
acontecesse. Aos dois anos, a mãe começa a notar o atraso no seu de-
senvolvimento motor e cognitivo; é encaminhado a vários médicos e
especialistas para se saber a causa de seu problema. Aos três anos co-
meça a falar; a primeira palavra que pronuncia é caminhão, quando
tem início sua primeira fixação – quer saber o que contêm os cami-
nhões que vê na rua. Até os cinco anos não fala eu, referindo-se a si
usando seu nome próprio, e manifesta-se basicamente através de per-
guntas. Os pais permaneceram na busca de especialistas que justificas-
sem as manifestações de David, sem contudo aceitar nenhuma delas,
declarando a insuficiência dos profissionais, ao mesmo tempo que não
sabiam o que fazer com seu filho.
David chega para tratar-se comigo aos onze anos e meio. Sua fala
resume-se a perguntar se é amado, sobre cenas de filmes e sobre fitas
de vídeo, as quais coleciona. Mas não pode contar sequer uma cena de
algum filme que tenha assistido, tampouco relacioná-los de acordo
com sua preferência, pois parece não possuir nenhuma. A mãe relata
que ele mal acaba de ganhar uma fita, já começa a pedir outra e que
não fica satisfeito quando ganha a fita que pediu.
O contexto permite considerar a hipótese de que não há para
David uma articulação significante que lhe confira um lugar. As con-
dições especiais de seu nascimento talvez tenham contribuído para o
modo como o laço com os pais fora estabelecido. A declaração dos
pais de “não saber” o que se passa com o filho na procura incessante
por diversos especialistas, sem contudo reconhecer ou autorizar o co-
nhecimento científico desses especialistas, leva-nos a supor que a fun-
ção que deveria ser ocupada pelos pais – a de saber sobre o filho, an-
tecipando-lhe, através do período especular, a crença de que ele “é” –
não lhes foi instituída, e que talvez a busca pelo saber científico esti-
vesse muito mais relacionada à possibilidade de encontrar alguém que
lhes instituísse esse saber, do que a saber sobre o déficit do filho. Ma-
nifestando-se, da mesma maneira que os pais, a partir unicamente de
perguntas, David atualiza as perguntas dos pais, que não sabem quem

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6978_Impulso_26.book Page 146 Wednesday, October 1, 2003 1:07 PM

é seu filho nem o que ele contém; possivelmente as perguntas de Da-


vid denotam a intenção pelo saber que lhe concerniria um lugar na ar-
ticulação significante parental, pela busca de uma afirmação passível de
aliená-lo ao significante “você é...”, ao trazerem a pergunta “Quem é
você?”. Nota-se que, nesse caso, a interferência do Real sobre o signi-
ficante primordial implica que nenhum lugar seja oferecido à criança na
rede significante, impossibilitando a alienação fundamental e conse-
qüente construção do eu.

MARCAS DE PREJUÍZO SUBJETIVO


Ao serem essas crianças muito precocemente atravessadas em
suas vidas por algo inesperado que chamamos de Real – seja esse Real
uma síndrome, uma paralisia cerebral, nascimento prematuro ou com
atraso, ou qualquer outro acidente de percurso –, os modos específicos
de laço entre dessas crianças e os seus pais constituíram também mar-
cas de prejuízo subjetivo. Pode-se observar através dessas resenhas que,
além das particularidades de cada um, há algo em comum entre eles,
ou seja, a suspensão da cadeia significante, que é composta pelo que
os pais idealizaram para seus filhos, a partir de seu próprio narcisismo.
O esforço de distinguir os modos de incidência do déficit orgâ-
nico na estruturação subjetiva indicaram algumas possibilidades de po-
sicionamento da criança na articulação significante, por meio do Ou-
tro primordial. Deparamo-nos, através dos casos, com modos especí-
ficos de circunscrição da criança frente à alteridade; sinteticamente
consistem em:
• no primeiro caso, localizou-se a indistinção entre criança e do-
ença, pela supervalorização da doença sobre a criança, que não
é tomada em sua totalidade, tornando a doença o deslocamen-
to metonímico de seu ser; em outras palavras, a criança passa
a ser considerada a partir de seu déficit real, quando o laço
com o outro se faz em torno deste;
• no segundo, a criança identifica-se ao significante que surge em
suplência ao significante primordial – ou seja, o significante de
sua insuficiência real – que lhe é conferido, geralmente pelos
diagnósticos dos especialistas;
• e, no terceiro, depara-se com a impossibilidade de identifica-
ção da criança ao significante primordial, pela suspensão da ca-
deia significante do Outro materno, que não se institui em sua
função, pelo não-reconhecimento narcísico ao filho submetido
ao déficit real.

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Na esfera dessas considerações, a relação de “saber” referente à


criança constitui-se em relação ao déficit real. O “saber” ao qual nos
referimos não condiz ao cognitivo, mas ao saber inconsciente, que não
se sabe a priori. Verificou-se que o modo como o Outro materno ins-
titui o saber sobre a criança é condição essencial para o devir ou o im-
pedimento de sua subjetividade.
Ao instituir-se no lugar do saber, é a mãe quem determina o lugar
que o filho deverá ocupar, o que ocorre no início de toda relação entre
mãe e filho; mas na situação particular de uma criança com lesão real
esse domínio se estende, dificultando a separação da criança de sua
mãe, quando não há suposição de um saber próprio da criança e a in-
cidência do terceiro – o pai.
No caso de Lucas, enquanto a mãe configura-se como detentora do
saber que concerne à sua doença, ele é mantido no lugar – de doente –,
que surge pela suposta correspondência ao saber materno de seu com-
prometimento real. A consideração de Maud Mannoni a respeito de
crianças com diagnóstico de debilidade mental esclarece o que seria essa
posição da criança conectada ao saber da mãe:

Nem todos dão tão nitidamente a chave da sua debi-


lidade. Mas todos eles indicam, de modo mais ou me-
nos confuso, a sua maneira de se situar diante do Ou-
tro. É raro que eles se oponham a este Outro: procu-
ram de preferência se moldar no seu desejo. Todo con-
fronto é recusado, e a provação de castração é a pedra
na qual tropeçam todos os débeis. Esta provação, o dé-
bil vive-a na sua realidade corporal, porque é um su-
jeito diminuído, mas não pode vivê-la no nível do sim-
bólico. Com efeito, não pode dar testemunho dela e
menos ainda, a partir daí, lançar um apelo ao Outro.4

Por outro lado, é possível delegar o saber do Outro primordial


em relação ao filho à terceira instância – o pai –, quando se faz através
da ciência, que de certa maneira atribui à criança um lugar significante
pela revelação do nome da sua doença. Esse saber, ainda que não se
constitua como próprio dos pais, ao ser autorizado e reconhecido por
eles pode imputar à criança uma delimitação significante que permita
a identificação ao significante de sua doença. Desse modo a função pa-
terna, se não é excluída, é tornada anônima, quando o saber reconhe-
cido é equivalente ao conhecimento médico. É o que ocorre com
Jhullya: ao não poder lhe ser dado o nome escolhido durante a gesta-
4 MANNONI, 1995, p. 101.

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ção, outro nome veio substituí-lo, entretanto, preenchido pelo signifi-


cante de sua síndrome, supostamente originária do gen paterno.
No caso de David, a mãe não se institui em sua função, de modo
a não saber nada sobre o filho, e tampouco delega o saber a outra ins-
tância, nem ao pai ou ao que poderíamos considerar como uma lei pa-
terna anônima, dada pelos especialistas; portanto a criança torna-se
detentora do saber, ao qual ninguém tem acesso. Sem antecipação es-
pecular, que deveria ser conferida pelo saber dos pais, a criança torna-
se um enigma. Talvez o real interrompa tão abruptamente a cadeia sig-
nificante do Outro primordial que não permita uma suplência a ponto
de ofertar um lugar de identificação à criança, que se mantém como
“coisa” obscura. Nas palavras de Mannoni,

A irrupção na realidade de uma imagem de corpo en-


fermo produz um choque na mãe: no momento em
que, no plano fantasmático, o vazio era preenchido
por um filho imaginário, eis que aparece o ser real que,
pela sua enfermidade, vai não só renovar os trauma-
tismos e as insatisfações anteriores, como também im-
pedir posteriormente, no plano simbólico, a resolução
para a mãe do seu próprio problema de castração.5

O real da insuficiência da criança atualiza para a mãe a própria


castração, privilegiando que a criança seja reencontrada na posição de
insuficiente, determinada pela mãe (mesmo sem saber) através do pró-
prio esvaziamento simbólico, que não opera recobrindo o real. O que
a mãe pode saber de seu filho limita-se ao real imposto pelo déficit or-
gânico. Essas mães diriam: “Sei que meu filho tem algo, mas não sei
o que tem”.

CONCLUSÃO
É importante considerar que mesmo o infans (que não fala, cuja
fala não tem estatuto) está submetido a uma linguagem que vem da al-
teridade, linguagem esta que reside na pré-história familiar e dos an-
tepassados, e que constitui mitos e antecipações à criança mesmo antes
de nascer.6 Na concepção de Lacan, a criança só pode aceder à lin-
guagem através do desejo do Outro, que lhe confere uma posição no
discurso por meio do significante, tornando-lhe possível a identifica-
ção a essa posição, a de eu-ideal. Para poder contextualizar enquanto
articulação significante as manifestações infantis, é imprescindível a es-
5 MANNONI, 1995, p. 101.
6 Cf. RODULFO, 1990.

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cuta do discurso parental, bem como as transposições de registro que


se repetem na estrutura dos jogos da criança, evitando dessa maneira
a objetivação ou adestramento da criança através de procedimentos de
vê-la, treiná-la a partir da compreensão do que é observável. O relato
de Elza Coriat demonstra a possibilidade de um trabalho psicanalítico
com crianças submetidas ao déficit orgânico, considerando sua subje-
tividade:

Nossas intervenções com os pais almejam a possibili-


dade de realização da criança como sujeito do desejo.
(...) com seus próprios desejos e com uma construção
própria do caminho para atingi-los, mesmo que seu ní-
vel de inteligência não lhe permita resolver determina-
das operações matemáticas ou que sua afecção motora
congênita lhe faça requerer certo tipo de ajuda alheia
para mobilizar-se.7

As hipóteses levantadas no decorrer deste estudo, fizeram-se ne-


cessárias a partir dos componentes colocados pela clínica, permitindo
operar minimamente na intervenção clínica, com vistas a criar condi-
ções de circulação da criança na ordem simbólica, conferindo perti-
nência à transposição de registro que ela faz ou tenta fazer, sustentan-
do o campo para a incidência da linguagem, permitindo-lhe sair da
condição de infans à de sujeito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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FELDSTEIN, R. et al. Para Ler o Seminário 11 de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge
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FREUD, S. [1900] A Interpretação dos Sonhos. Edição Standard Brasileira das
Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1990, v. 4.
_________. [1914] Sobre o Narcisismo: uma introdução. Rio de Janeiro: Imago,
1990, 3a edição, v. 14.
LACAN, J. Os Escritos Técnicos de Freud, O Seminário, Livro 1. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1979.
________. As Psicoses, O Seminário, Livro 3. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
________. Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise, O Seminário, Livro
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________. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

7 CORIAT, 1997, p. 134.

impulso 149 nº26


6978_Impulso_26.book Page 150 Wednesday, October 1, 2003 1:07 PM

________. O estádio do espelho formador da função do eu. Escritos. Rio de


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________. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. Escritos. Rio de
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________. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose,
1955-56. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
________. Duas notas sobre a criança. Ornicar?. Revista do Campo Freudiano,
(37), abr./jun., 1986.
LERUDE, M. Coleção Psicanálise da Criança: o sujeito, o real do corpo e o casal
parental. Salvador: Álgama, 1998.
MANNONI, M. A Criança Retardada e a Mãe. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
RODULFO, R. O Brincar e o Significante: um estudo psicanalítico sobre a consti-
tuição precoce. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
VALLEJO, A. & MAGALHÃES, L. Lacan: operadores da leitura. São Paulo: Pers-
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VORCARO, A.M.R. A Criança na Clínica Psicanalítica. Rio de Janeiro: Compa-
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6978_Impulso_26.book Page 151 Wednesday, October 1, 2003 1:07 PM

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Fordismo e Toyotismo:
Mudanças no Mundo
do Trabalho
Ford and Toyota Systems:
changes in the world of work
RESUMO – As mudanças introduzidas no mundo do trabalho pelos modelos for-
dista e toyotista de produção geraram situações em que se alternaram a rigidez e
a flexibilidade. Ao primeiro associa-se o pleno emprego e, ao segundo, a redução
de postos de trabalho. A tecnologia, atuando tanto a favor como contra a socie-
dade, gerou um clima de instabilidade geral que, embora não poupe os países cen-
trais, é mais acentuada nos periféricos. Nesse contexto, em que a responsabilidade
maior compete às empresas, o discurso controvertido da empregabilidade, apre- ANA MARIA ROMANO CARRÃO
senta-se como alternativa para a recuperação dos empregos perdidos. Enquanto Mestre em Administração pela PUC-SP e
doutoranda em Ciências Sociais
para alguns tornar-se empregável é responsabilidade do próprio trabalhador, ou- (PUC-SP). Professora da Faculdade de
tros vêem como única saída o preparo da força de trabalho através de uma ação Gestão e Negócios e coordenadora do
Centro de Estudos e Pesquisa em
conjunta das partes interessadas: empresas, governo e sindicatos. O crescimento Administração-CEPA, ambos da UNIMEP.
da economia informal e a precarização das condições de trabalho são um alerta do carrao@merconet.com.br

esgotamento do sistema vigente.

Palavras-chave: fordismo – toyotismo – empregabilidade – desemprego.

ABSTRACT – The changes introduced by the Ford and Toyota systems of pro-
duction created alternating situations of rigidity and flexibility. The first is associ-
ated with full employment and the second with the reduction of job posts. Tech-
nology, working both for and against society, produced a climate of general ins-
tability, which although present in wealthy nations, is more accentuated in the pe-
ripheral countries. In a context in which the main responsibility belongs to the
firms, the controversial discourse of employability is presented as an alternative for
the recuperation of lost jobs. Although some consider employment the responsi-
bility of the worker, others consider the preparation of the work force through the
joint action of interested parties (firms, government and unions) as the best solu-
tion to the problem. The growth of the informal economy and the precarious
working conditions are proof of the fragility of the present system.

Keywords: Ford system – Toyota system – employability – unemployment.

impulso 153 nº26


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INTRODUÇÃO

A s mutações impostas ao mundo do trabalho são reflexo de al-


terações que Toffler1 denomina mudanças nas bases do po-
der. Ao longo dos dois últimos séculos as transformações
econômicas produziram períodos cíclicos em que se alternaram mo-
mentos de conquistas e de perdas para os trabalhadores.
Com o advento do capitalismo, o trabalho, necessidade natural
do homem, deslocou-se do ambiente familiar para ser realizado quase
que totalmente dentro das empresas. O desenvolvimento industrial
atingiu o seu auge ainda neste século, mais precisamente nas três dé-
cadas posteriores à Segunda Guerra Mundial, proporcionando as mais
elevadas taxas de emprego já conhecidas. Entretanto, na última década
do século XX houve uma reversão desse quadro, que passou de fartura
para a escassez de emprego, sem que a redução dos postos de trabalho
tivesse afetado a capacidade produtiva das empresas, configurando um
período de crise social.
Em um mesmo século, portanto, acompanhamos, num primeiro
momento, um processo de profundas transformações sociais, econô-
micas, institucionais e tecnológicas, desenvolvido paralelamente a um
mercado de trabalho em ampla expansão; num segundo instante, o
início da crise, quando as curvas do crescimento da produção indus-
trial e da geração de empregos passaram a se distanciar. A primeira
curva mantendo sempre a tendência ascendente, enquanto a segunda,
a de queda. Com a introdução da informática e da microeletrônica nas
empresas, a queda da segunda curva continua se acentuando, gerando
um elevado contingente de desempregados, desfazendo a relação di-
reta existente em outros tempos entre o volume de produção e a força
de trabalho em atividade. A automação da produção, fruto das inova-
ções tecnológicas, tornou a indústria cada vez mais independente da
mão-de-obra direta que, liberada, aos poucos foi sendo absorvida pelo
setor de serviços. A expressão sociedade pós-industrial, empregada
para designar a realidade de nossos dias, decorre da crescente pro-
porção de empregos no setor de serviços paralelamente à redução dos
postos de trabalho no setor industrial. Para alguns autores, como An-
tunes,2 essa terminologia não está correta, se considerarmos que o se-
tor de serviços é um prolongamento do setor industrial, isto é, não só
está apenas a ele atrelado, mas dele depende.

1 TOFFLER, 1998.
2 ANTUNES, 1998.

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Este artigo procura levantar algumas questões no sentido de con-


tribuir para a compreensão da situação atual do mundo do trabalho,
destacando para isso o compromisso das organizações – públicas, pri-
vadas ou sem fins lucrativos – nesse contexto. Dadas as proporções as-
sumidas pelo problema, o debate sobre o tema ultrapassou os limites
do campo das ciências sociais e econômicas, envolvendo outras cate-
gorias profissionais.
Antes, porém, para que se possa compreender a passagem de si-
tuações antagônicas em um mesmo século, faz-se necessária a recupe-
ração, ainda que superficialmente, de alguns aspectos que se encon-
tram na origem dessas mudanças.
Nas três décadas imediatamente posteriores à Segunda Guerra
Mundial, como havia garantia de emprego, era possível escolher uma
profissão, educar-se para ela e a ela dedicar-se durante toda a vida. As
pessoas eram admitidas por uma empresa, nela faziam carreira e per-
maneciam até a aposentadoria. Era natural os funcionários se aposen-
tarem e serem substituídos por familiares. São muitos os registros de
gerações de uma família de empregados que se sucederam em uma
mesma empresa. Nessa época, era igualmente possível trocar de em-
pregos mantendo a mesma faixa salarial. Os empresários eram um si-
nônimo de criadores de empregos e oportunidades.
No decorrer deste século, o mercado de trabalho sofreu trans-
formações profundas, de forma que, cotejadas as conquistas e as per-
das, o saldo social pende mais para o negativo. Novas tecnologias fo-
ram incorporadas aos processos produtivos determinando cortes sem
precedentes dos postos de trabalho. Nesse novo contexto, os empre-
sários, de criadores de emprego e oportunidades, passaram à posição
de destruidores de postos de trabalho e oportunidades. Impulsionadas
pelas forças de um mercado altamente competitivo, as empresas de-
senvolveram métodos de trabalho cada vez mais sofisticados de modo
a garantir ganhos crescentes de produtividade, que provocaram mu-
danças na estrutura do mercado de trabalho, do que decorre, mais do
que escassez progressiva de empregos, uma mudança radical da natu-
reza do trabalho e de suas fontes.3
É necessário, portanto, analisar as origens do período áureo de
geração de empregos, acompanhando a sua evolução, que culmina na
atual escassez de postos de trabalho. O presente estudo confere um
tratamento sociológico ao tema, que vem igualmente despertando o
interesse dos estudiosos de administração, em especial pelo envolvi-
3 VAZ MUSA, 1997.

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mento direto das empresas nas duas extremidades da curva evolutiva


do mercado de trabalho. As empresas estão diretamente envolvidas
com o problema, tanto do seu ponto de vista quantitativo como do
qualitativo, ou seja, no referente aos postos de trabalho criados/elimi-
nados assim como à qualidade daqueles mantidos.
Na raiz da evolução do mundo do trabalho estão os modelos
fordista/taylorista e o toyotista como paradigmas da produção capita-
lista, cujas características são apresentadas a seguir.

FORDISMO, DESENVOLVIMENTO
INDUSTRIAL E GERAÇÃO DE EMPREGOS
O fordismo firmou-se como um modelo baseado no conceito de
produção de massa, concebido e adotado por Ford em sua fábrica de
veículos no início deste século. Perseguia a obtenção de ganhos cres-
centes de produtividade através de economia de escala, de forma a re-
duzir os custos unitários de produção e permitir a definição de preços
de venda sempre mais atraentes. Ford incorporou ao seu trabalho as
idéias desenvolvidas por Taylor, conhecidas como administração
científica, baseadas na divisão do trabalho, especialização do operário,
separação entre as atividades de planejamento e de produção, em bus-
ca de padronização de produção. A metodologia de Ford transfor-
mou-se em um modelo amplamente difundido, cujas características
básicas são: produtos mais homogêneos gerados através de produção
de massa e linhas de montagem; unidades fabris concentradas e ver-
ticalizadas; e constituição e consolidação do trabalhador coletivo fa-
bril.4 Eliminando tempos ociosos, a linha de montagem indiretamente
aumentava o tempo produtivo do operário e prolongava a duração da
jornada efetiva do trabalho. Paralelamente, a complexidade do traba-
lho era reduzida mediante a fragmentação dos processos produtivos,
resultado da subdivisão do trabalho.5
Esse sistema provocou mudanças na reprodução da força de tra-
balho, gerando nova política de controle e gerência do trabalho, nova
estética e nova psicologia, caracterizando “um novo tipo de sociedade
democrática, racionalizada e populista”.6
Difundindo-se rapidamente, a produção de massa tornou-se a
metodologia dominante na indústria manufatureira dos países desen-
volvidos. Com a produção padronizada, a competitividade das em-
presas transferiu-se para os preços, o que exigia ganhos crescentes de
4 ANTUNES, 1998.
5 VELAZQUEZ, s/d.
6 HARVEY, 1992, p.121.

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produtividade de modo a tornar possíveis novas reduções de custos. A


padronização dos produtos exigia trabalhadores igualmente especiali-
zados em tarefas específicas, base para o desenvolvimento de um sis-
tema rígido, com operários e máquinas especializados, comprometi-
dos com índices de produtividade que dependiam de ganhos constan-
tes de economia de escala. Entretanto, a produção em larga escala exi-
gia, para seu escoamento, um consumo igualmente de massa,
explicando-se assim as estratégias de estímulo ao consumo, implemen-
tadas a partir desse período. O abastecimento do mercado requeria da
indústria a manutenção de estoques de reposição para evitar
interrupções de abastecimento, imprimindo o mesmo ritmo aos for-
necedores.7
Os resultados do modelo de produção de massa, positivos à pri-
meira vista, manifestaram-se, inicialmente, na sociedade norte-america-
na. Nos anos 30, a produtividade das fábricas de automóveis de Ford
era três vezes maior do que a de suas concorrentes inglesas, berço da
Revolução Industrial. A linha de montagem do modelo T, por exem-
plo, o primeiro grande sucesso de Ford, com início em 1909, teve um
salto de produção, nos primeiros cinco anos, de 17.771 carros para
202.667, atingindo 1,8 milhão de unidades no 11º ano. Simultanea-
mente, o preço final do produto, inicialmente de 950 dólares, caiu para
550 e, por fim, para 355 dólares.8 Com tal aumento no volume de pro-
dução, a Ford tornou-se grande empreendedora, de forma que, em
1914, empregava 14 mil operários,9 chegando a 200 mil nos anos 20.10
O aumento do salário de 2 para 5 dólares por dia concedido aos
empregados da Ford representava uma estratégia da empresa com du-
plo propósito: estimular o consumo e reduzir o absenteísmo, que caiu
em 85%, como meio de garantir o consumo e a produção de massa.
Em contrapartida a esse aumento salarial, a empresa passou a estabe-
lecer um nível de comportamento para os funcionários, que deveriam
se enquadrar num modelo que Ford denominava de “hábitos saudá-
veis”. Estes contemplavam o uso adequado dos banheiros, a proibição
do uso de bebidas alcoólicas, o estímulo à poupança e o cumprimento
das responsabilidades com a família. De acordo com esse padrão de
disciplina, os empregados eram enquadrados em categorias, cada qual
com compromissos próprios. Por exemplo, os homens casados deve-
riam “viver em companhia de suas esposas e sustentá-las”; os solteiros,
7 TAPIA & VALENZUELA, 1995.
8 COLEÇÃO DINHEIRO, 1998, p. 14.
9 Ibid., p. 19.
10 Ibid., p. 27.

impulso 157 nº26


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maiores de 21 anos, deveriam “levar uma vida sã e decente”; e os ra-


pazes e as moças mais jovens “deveriam ser o único arrimo de parente
próximo”. Incluíam orientação moral aos empregados, para o que
fora designado um padre.11
O automóvel, a maior inovação do período, imprimiu mudanças
marcantes na vida norte-americana. Entre elas, a construção de rodo-
vias, a abertura de avenidas largas e pavimentadas, a moderna sinali-
zação de tráfego e a expansão do turismo.12 Um leque muito grande
de oportunidades de negócio abriu-se, dando força ao capitalismo e
expandindo o mercado de trabalho com uma vitalidade tal, que pa-
recia interminável.
Porém, a grande depressão dos anos 30 abalou o capitalismo. Na
análise de Harvey,13 nela está a verdadeira razão do aumento salarial
concedido por Ford, como um meio para estimular a demanda, fun-
damental para o escoamento da produção de sua fábrica. O clima de
instabilidade, então instalado, perdurou até a primeira metade dos
anos 40; após 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial, a indús-
tria conheceu grande desenvolvimento nos seus vários setores – au-
tomobilístico, naval, de equipamentos de transporte, aço, petroquími-
ca, borracha, eletrodomésticos e construção –, estimulando o cresci-
mento econômico de vários países, notadamente Estados Unidos, Ale-
manha, Grã-Bretanha, Japão e França. A reconstrução da Europa no
pós-guerra, financiada em sua maior parte por capital norte-america-
no, deu início à expansão mantida a taxas elevadas até meados da dé-
cada de 70, período em que teve início a reversão da curva, como
mostram os dados expostos a seguir.

Tabela 1. Taxas de crescimento econômico (1960-1985).


PAÍSES 1960-1968 1968-1973 1973-1979 1979-1985
Japão 10,4% 8,4% 3,6% 4,0%
Estados Unidos 4,4% 3,2% 2,4% 2,5%
França 5,4% 5,9% 3,1% 1,1%
Alemanha Ocidental 4,1% 4,9% 2,3% 1,3%
Inglaterra 3,1% 3,2% 1,5% 1,2%
Fonte: Harvey (1992:126).

Os dados da tabela constatam a pujança da economia japonesa


nos quatro períodos analisados, acompanhada pela francesa, até o fim
da década de 70. Os Estados Unidos, por sua vez, mantiveram taxas de
11 COLEÇÃO DINHEIRO, 1998, p. 19.
12 Ibid., p. 21.
13 HARVEY, 1992.

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crescimento econômico moderadas se comparadas às do Japão, con-


servando a terceira colocação nos períodos 1960-1968 e 1973-1979.
No qüinqüênio 1968-1973, perdeu uma posição quando sua taxa de
crescimento econômico foi superada pela da Alemanha. No último dos
períodos em análise, 1979-1985, os Estados Unidos assumiram a se-
gunda colocação, perdendo apenas para o Japão, não por terem tido
crescimento significativo, mas em função das baixas taxas de crescimen-
to econômico dos demais países, pouco acima de 1%. A partir de 1973,
a taxa média14 de crescimento desse conjunto de países, que atingira
5,5% no primeiro período e 5,1% no segundo, caiu para 2,6% e para
2,0% no terceiro e quarto, respectivamente. Houve retração de 64%
nas taxas médias entre o primeiro e o último períodos. A maior queda
nas taxas de crescimento15 foi registrada na França (80%), seguida pe-
las da Alemanha (68%), Japão (62%) e Inglaterra (61%). Os Estados
Unidos apresentaram a menor queda na taxa de crescimento econômi-
co (41%). Dessa forma, a relativa estabilidade das taxas de crescimento
econômico dos Estados Unidos nos quatro períodos, embora projete o
país no máximo em segundo lugar no período em análise, coloca-o em
posição vantajosa com relação aos demais.
O ano de 1973 aparece como o ponto de ruptura entre a fase de
crescimento da economia mundial e a de instabilidade. Entre os fatores
que mais concorreram para esse rompimento, foi o aumento dos pre-
ços do petróleo pela OPEP que, associado à decisão dos países árabes de
embargar as exportações do petróleo para o Ocidente, provocou a co-
nhecida crise energética e seus reflexos na economia mundial. As rea-
ções nos países ocidentais a essa alta de custos transformou a redução
do consumo num propósito que desencadeou o desenvolvimento de
inovações tecnológicas e a busca de fontes alternativas de energia.
Nas organizacionais, o surto de mudanças instaurado desde en-
tão é igualmente fruto da mesma necessidade de redução de custos. Os
investimentos passaram a ser revistos, pois o modelo de produção de
massa que se apoiava na expectativa de manutenção de mercados es-
táveis e crescentes havia levado a uma imobilização maciça de capital.
Igualmente, as relações de trabalho e os compromissos do Estado re-
fletiam a estabilidade do sistema produtivo. Os contratos de trabalho
por prazo indeterminado eram produto dessa estabilidade.
Às tentativas de flexibilização introduzidas a partir da década de
70, os trabalhadores reagiram especialmente através dos movimentos
14 Média aritmética dos valores registrados em cada coluna.
15 Resultado da diferença entre as taxas do último período (1979-1985) e do primeiro (1960-1968).

impulso 159 nº26


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grevistas. Da parte do Estado, a maior dificuldade consistia na manu-


tenção dos programas sociais pelas vias normais, a não ser pela emis-
são de moeda, medida inflacionária que desencadeou um processo de
destruição das próprias conquistas da força de trabalho obtidas no pe-
ríodo de expansão pós-guerra.16
O fenômeno, entretanto, não se restringiu apenas aos aspectos
econômicos. Outros fatores concorreram para a instabilidade do sis-
tema. Igualmente importantes foram os movimentos sociais ocorridos
no fim dos anos 60 e início dos anos 70, desencadeados pelos setores
que se sentiram excluídos da esfera fordista e que passaram a reivin-
dicar sua inserção no sistema. Esses grupos, chamados minoritários ou
marginais, eram constituídos pelos grupos feministas, étnico-raciais e
políticos.
Entretanto, foram as variáveis econômicas que determinaram as
mudanças nas organizações. Estas procuraram ajustar-se adotando es-
tratégias baseadas na inovação tecnológica, na ampliação de mercados
e em fusões de empresas, dando início, na história, a um período con-
turbado (anos 70 e 80) de reestruturação econômica e de reajustamen-
to social e político. Em meio século, constatam-se no fordismo, que as-
cendera apoiado na expectativa de crescimento ininterrupto da pro-
dutividade do trabalhador, sinais de esgotamento. Novas metodologias
passaram a ser desenvolvidas em substituição ao modelo taylorista/
fordista de produção. É no Japão que surge um novo modelo, a acu-
mulação flexível,17 baseado em pressupostos que contrariam os do
modelo fordista.

AS DUAS FACES DO MODELO DE ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL


O modelo de acumulação flexível, ou toyotismo, tem como
princípio a flexibilidade, seja dos processos de trabalho, dos mercados,
dos produtos ou dos padrões de consumo, originando padrões de de-
sempenho e valores diferentes daqueles alimentados pelo modelo for-
dista. Nascido na Toyota, esse sistema originou-se da necessidade pre-
mente, no Japão, de produzir pequenas quantidades de produtos va-
riados, como a única forma de enfrentar a situação caótica em que se
encontrava o país recém-saído da Segunda Guerra Mundial. O toyo-
tismo tornou-se referência de modelo de flexibilização por tratar-se de
um sistema altamente competitivo baseado na diversificação, em con-
16HARVEY, 1992.
17 A acumulação flexível é um modelo de produção conhecido também como sistema Toyota, ou
Ohnismo, em referência ao sobrenome do engenheiro que o desenvolveu, Ohno, ou ainda como produção
enxuta.

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traposição ao fordismo, um modelo de produção em série, refratário


a mudanças.
Ao contrário do fordismo, gerador de unidades fabris concen-
tradas e verticalizadas, o toyotismo idealizou uma nova metodologia
de trabalho baseada na associação entre tecnologia e desconcentração
produtiva, tomando como referência as pequenas e médias empre-
sas.18 A indústria automobilística japonesa incorporou, assim, meto-
dologias adotadas em outros setores.
Comparando-se os dois modelos, o japonês e o norte-americano,
tem-se que o segundo visa a redução de custos através da produção de
grandes volumes de uma restrita variedade de itens, enquanto o mo-
delo japonês visa bons preços para bens fabricados em pequenas quan-
tidades de produtos diferentes. Sem se utilizar dos recursos de econo-
mia de escala e de padronização de produtos, os japoneses obtiveram
ganhos expressivos a partir da introdução do conceito de investimento
mínimo em estoques, materiais, equipamentos, espaço e em força de
trabalho. Apóia-se também na flexibilização do trabalho, na organiza-
ção do processo produtivo, de modo a obter um fluxo contínuo e co-
erente com a demanda. Para o modelo japonês, o mercado passa a ter
um mecanismo de auto-regulação que reduz a possibilidade de super-
produção.19
A origem da flexibilização dos processos produtivos está relacio-
nada à introdução, na Toyota, da experiência desenvolvida no ramo
têxtil japonês, em que o trabalhador operava duas máquinas simulta-
neamente, obtendo ganhos de produtividade significativos para aquele
momento de crise financeira do pós-guerra. Paralelamente às mudanças
no processo produtivo, o modelo incorporou técnicas de gestão utili-
zadas em supermercados norte-americanos, o que deu origem ao kan-
ban,20 modelo em que a produção é determinada pela necessidade de
reposição dos estoques. O emprego de tal modelo de produção visava
a flexibilização da produção, tornando a empresa apta a atender ao
mercado japonês que, em condições limitadas do pós-guerra, caracte-
rizava-se por pedidos pequenos e diferenciados.21
Em resumo, toyotismo e fordismo diferenciam-se quanto a seus
respectivos graus de flexibilização. Enquanto o primeiro tem em vista as
exigências de um mercado instável e mais exigente quanto à qualidade,
18 ANTUNES, 1998.
19 TAPIA & VALENZUELA, 1995.
20 A palavra japonesa kanban significa cartão, ficha. Como sistema de controle produção, o kanban prevê a
eliminação dos estoques de produtos acabados ou de componentes utilizados no processo do produto ou
na montagem, com vistas a trabalhar com estoque zero (RIBEIRO, 1984).
21 ANTUNES, 1998.

impulso 161 nº26


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o segundo pressupõe a estabilidade do mercado e a padronização. O


toyotismo rompe com a relação fordista de um homem para cada má-
quina, substitui o trabalhador especialista pelo multifuncional, polivalen-
te, capaz de combinar as tarefas de acordo com as necessidades de cada
pedido, ao passo que no fordismo a especialização do trabalhador de-
corre do desmembramento do trabalho em tarefas conforme orienta-
ções da administração científica. Contrapondo-se a essa rigidez, o toyo-
tismo flexibiliza a organização do trabalho ao propor a atuação em equi-
pes, formadas por pessoal polivalente, menos especializado, porém mais
capacitado. O toyotismo define o homem como ponto central, de cujas
habilidades depende a produtividade, enquanto no fordismo a ênfase é
dada à máquina.
Os modelos organizacionais decorrentes dos dois sistemas mos-
tram-se, portanto, antagônicos. O fordismo, baseado na auto-suficiên-
cia, gerou empresas complexas e verticalizadas, já o toyotismo, rom-
pendo com esse modelo, transferiu parte das tarefas produtivas para
empresas subcontratadas, originando o outsourcing, processo que no
Brasil recebeu o nome de terceirização. As empresas subcontratadas,
por sua vez, para atender às exigências de manutenção de qualidade
da empresa-cliente, foram forçadas a seguir os mesmos métodos de
trabalho, difundindo o modelo para além da Toyota, isso porque
técnicas como just-in-time, para darem os resultados esperados, de-
pendem de colaboração em cadeia.
Na origem dos avanços tecnológicos introduzidos pelo sistema
Toyota nos processos produtivos está a necessidade de ajuste das
máquinas objetivando torná-las adaptáveis a diferentes usos, projeto
viabilizado pelo desenvolvimento da microeletrônica. O modelo de
acumulação flexível apóia-se, portanto, na revolução tecnológica, ca-
racterizada pela utilização do microprocessador e das interfaces eletrô-
nicas do próprio processo produtivo.22 As máquinas-ferramentas de
controle numérico são um exemplo da multifuncionalidade de que
dispõem as indústrias atualmente.
O sistema Toyota também introduziu modificações radicais nas
relações no ambiente de trabalho. Os operários tomam parte nas de-
cisões sobre a produção, o que pressupõe um outro nível de compe-
tência profissional, que vai além das habilidades rotineiras exigidas
pelo sistema fordista. A flexibilidade exige profissionais polivalentes,
aptos a identificar qualquer anormalidade durante o processo de fa-
bricação e a interromper o fluxo produtivo para que o problema seja
22 VELAZQUEZ, s/d.

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imediatamente resolvido. Essa é a base conceitual de controle de qua-


lidade do toyotismo: identificar o problema no momento em que este
surge, evitando perdas maiores. No modelo fordista, o controle de
qualidade é realizado através da análise de amostras de produtos aca-
bados, o que gera desperdícios de material e de horas trabalhadas.
A liberdade de ação promovida pelo sistema de acumulação fle-
xível pode ser interpretada como um meio de reintegração do homem
ao ambiente de trabalho, recuperando parte das perdas impostas pela
divisão do trabalho no modelo fordista/taylorista. Entretanto, o novo
modelo, ao depender do aprimoramento contínuo do trabalhador,
impõe à força de trabalho novas responsabilidades, das quais passa a
depender seu emprego.
Ao ser adotado pelas empresas ocidentais, o sistema japonês so-
freu adaptações, transformando-se em um modelo híbrido que gerou
efeitos negativos em função das novas condições de trabalho, da in-
tensificação do ritmo de produção, dos horários de serviço prolonga-
dos, do enfraquecimento dos sindicatos e do clima de tensão criado
entre empregados e empregadores. Na maioria dos casos, as empresas
ocidentais não implantaram o modelo japonês em sua totalidade, des-
caracterizando a proposta original.23
Do ponto de vista dos ganhos empresariais, os resultados da ado-
ção do sistema Toyota podem ser considerados positivos; entretanto,
o modelo de “produção enxuta”, como é também conhecido no Oci-
dente, resultou em perdas significativas para a força de trabalho.
No Japão, o sistema de acumulação flexível mostrou-se um mo-
delo que permitiu a redução das diferenças entre os níveis hierárqui-
cos, como afirma Velazques: “Tudo indica que não há divisão de tra-
balho entre operários e engenheiros, o que se observa nas pequenas di-
ferenças salariais entre eles e nas possibilidades de promoção a longo
prazo oferecidas aos operários”.24 Ao que tudo indica, a versão oci-
dental do modelo concentrou-se em um dos aspectos da proposta de
flexibilização, a redução de custos. A análise a seguir focaliza os efeitos
da produção enxuta no Ocidente e seus reflexos sociais.

OS EFEITOS DA “PRODUÇÃO ENXUTA”


NAS RELAÇÕES DE TRABALHO

A onda de inovação tecnológica desencadeada pela necessidade


de se buscar formas alternativas de redução de custos, aliada à capa-
23 VELAZQUEZ, s/d.
24 Ibid., p. 5.

impulso 163 nº26


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cidade de auto-regulação do mercado, vem sendo apontada como cau-


sa dos elevados índices de desemprego na última década. A flexibili-
zação da unidade fabril afetou profundamente as condições do mer-
cado de trabalho que, desregulamentado e reestruturado, provocou o
enfraquecimento dos organismos de representação: os sindicatos e os
partidos. Aos poucos, os sindicatos foram substituindo sua posição
ofensiva, característica da era fordista, por outra mais defensiva, em
função das limitações em sua capacidade de ação impostas por um
contexto que priorizou o direito ao trabalho. O sindicalismo de par-
ticipação tomou o lugar do sindicalismo de classe, dada a impossibili-
dade de lutar pelo controle social da produção, como ocorrera nos
anos 60 e 70. Os sindicatos passaram a assumir papel conciliador nas
negociações entre as partes interessadas, empregador e empregados.25
Isso se deu porque as características do mercado de trabalho mu-
daram significativamente. Paralelamente ao desaparecimento dos pos-
tos de trabalho, multiplicou-se o número de vagas para trabalho par-
cial, temporário ou subcontratado. A segmentação do mercado de tra-
balho passou, então, a ser composta por três categorias, cujas caracte-
rísticas originaram-se da dinâmica imposta pelo modelo de
acumulação flexível no Ocidente. A primeira delas corresponde ao
“grupo central”, composta pelos trabalhadores formais, de número
cada vez mais reduzido, mas que ainda conserva vínculo empregatício
e goza de maior segurança no emprego, oportunidades de promoção
e acesso a benefícios. Em contrapartida a essa aparente segurança, es-
ses trabalhadores devem dispor de grande capacidade de adaptação e
assimilação das mudanças exigidas pelo trabalho. A segunda categoria,
mais periférica, é constituída por empregados igualmente dedicados a
trabalho em tempo integral, portadores, porém, de habilidades facil-
mente disponíveis no mercado. São pessoas que desempenham traba-
lho rotineiro ou manual e menos especializado, com poucas possibili-
dades de ascensão na escala hierárquica organizacional. Finalmente, a
terceira categoria é formada por trabalhadores em tempo parcial, con-
tratados por prazo determinado ou ainda subcontratados. Das três ca-
tegorias, essa é a que vem apresentando maior crescimento.26
No entanto, as perdas não estão restritas ao mercado de trabalho
ocidental. Apesar das diferenças culturais entre as sociedades ocidental
e oriental e da influência dessas culturas nos estilos de administração
das empresas, a força de trabalho japonesa vem igualmente acumulan-
25 ANTUNES, 1998.
26 HARVEY, 1992.

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do perdas. O emprego vitalício, por exemplo, foi instituído no início


dos anos 60, nas grandes corporações, com o objetivo de garantir a
permanência dos trabalhadores na empresa para que a qualidade dos
produtos e a produtividade pudessem ser mantidas. Esse instituto, na
prática, beneficia atualmente apenas 30% dos trabalhadores japoneses,
além de estar sendo revisto pela Organização Nacional das Empresas,
devido à recessão que atingiu a economia japonesa a partir da segunda
metade dos anos 90, com possibilidade de ser definitivamente aboli-
do.27
A precarização das condições de trabalho é, portanto, de âmbito
mundial. Além da difusão dos regimes de trabalho parcial e temporá-
rio, contribuíram para essa situação as reestruturações das organiza-
ções. O outsourcing, ou terceirização,28 é um exemplo de metodologia
largamente adotada pelas empresas brasileiras a partir dos anos 80,
cujo efeito maior foi a redução da média salarial,29 uma vez que a
mão-de-obra, liberada no processo, ao ser absorvida pela empresa que
passaria a assumir a prestação do serviço terceirizado via de regra re-
cebe salários mais baixos. Na maior parte dos casos, os “terceiros”,
como são chamados os novos fornecedores, são empresas menores,
muitas vezes do setor de serviços, sem condições de manter os salários
no nível pago pela empresa contratante.30
Por essas razões, o toyotismo passou a ser interpretado como um
instrumento de intensificação da exploração do trabalho, uma vez que
a responsabilidade do trabalhador foi aumentada sem uma contrapar-
tida aos aumentos de produtividade obtidos, ao imprimir maior velo-
cidade à produção e colocar mais que uma máquina sob o controle de
um mesmo operário; ao incorporar técnicas de controle de qualidade
que permitem a identificação e a imediata solução dos problemas du-
rante o processo produtivo, reduzindo perdas e a necessidade de re-
trabalho; ao eliminar paradas desnecessárias na produção, promoven-
do a intensificação do ritmo de trabalho dos operários e do controle
da direção fabril sobre os operários.31
Os efeitos negativos da flexibilização dos processos produtivos
sobre o mercado de trabalho podem ser quantitativamente dimensio-
nados pelos índices crescentes de desemprego na última década deste
27 ANTUNES, 1998.
28 A expressão terceirização é tipicamente brasileira.
29 ANTUNES, 1998.
30 No Brasil, os processos de terceirização também sofreram adaptações que distorceram a proposta origi-
nal, pela qual os novos fornecedores, os terceiros, deveriam ser encarados como parceiros da empresa con-
tratante e por ela assessorados, de forma a manter o mesmo nível de qualidade dos produtos ou serviços
prestados como condições de trabalho.
31 GOUNET, apud. ANTUNES, 1998.

impulso 165 nº26


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século. No início dos anos 90, a revista Time já denunciava a onda de


desemprego que surpreendia os Estados Unidos, fragilizava o mercado
de trabalho e impunha perdas significativas aos trabalhadores norte-
americanos. Estimava-se, na época, perdas financeiras aos trabalhado-
res da ordem de 47% por ocasião de recolocação, correspondentes a
reduções salariais, perdas de benefícios e outras garantias. No mesmo
período, aproximadamente 50% das grandes empresas norte-ameri-
canas estavam passando por processos de reestruturação, eliminando
níveis hierárquicos, procurando moldar-se às exigências do mercado.
As empresas haviam descoberto ganhos em substituir produção pró-
pria por aquisição de bens e serviços de empresas menores (outsour-
cing). Delineava-se, assim, um novo cenário para a iniciativa privada,
com a predominância de pequenos negócios operando como forne-
cedores de empresas praticamente virtuais. No que se refere à mão-de-
obra, a expectativa era de tendência de transformação em força de tra-
balho temporária. Vislumbrava-se o fim do emprego “tipo casamen-
to”,32 prognósticos que se confirmaram ao longo da década.
Além dos prejuízos financeiros, os analistas apontavam os danos
psicológicos causados pelas mudanças. Alertavam para o choque a que
se submeteriam os profissionais egressos das grandes corporações,
obrigados a adaptar-se às novas condições do mercado de trabalho e
a ajustar-se às novas situações oferecidas pelas pequenas e médias em-
presas. Acostumados a estruturas sofisticadas, deveriam agora executar
serviços operacionais com os quais não estavam familiarizados e que
não dominavam, já que não podiam contar com o suporte de secre-
tárias, equipes de vendedores e outros recursos disponíveis nas grandes
empresas.33
Para uma força de trabalho que havia conhecido os benefícios do
pleno emprego, como a norte-americana, era difícil admitir a perda até
mesmo da liberdade de escolher o empregador. Nesse período, em-
presas japonesas como a Toyota, a Honda e a Nissan instalavam-se nos
Estados Unidos, transformando-se em grandes empregadoras, exigin-
do do trabalhador norte-americano um duplo ajuste: ao novo sistema
de produção e ao cultural.
Entre as décadas de 70 e 80, o número de pessoas vinculadas a
empregos em tempo integral já havia reduzido significativamente. Nas
500 maiores empresas elencadas pela revista Fortune, a participação
dos trabalhadores full-time era de 10% da força de trabalho norte-
32 CHURCH, 1993.
33 Ibid.

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americana dos anos 80, ao passo que, na década anterior, atingira


19%. O emprego de trabalhadores temporários tornou-se uma estra-
tégia lucrativa, pois permitia à empresa manter a capacidade compe-
titiva sem necessidade de cumprir exigências trabalhistas nem gastos
com planos de saúde e de pensão. No início dos anos 90, a maior em-
pregadora norte-americana possuía 560.000 funcionários. Tratava-se
de uma agência de trabalhadores temporários.34 A força de trabalho
havia, então, se transformado em sinônimo de custos para as empresas
e, dada a difusão dessa nova modalidade de contratação, estima-se que
até o fim deste século a parcela dos trabalhadores em regime parcial
deva ultrapassar a dos trabalhadores em regime integral. Para a maioria
dos empresários, essa é uma tendência irreversível, e ao mesmo tempo
fundamental, para a sobrevivência das empresas, que, para tal, neces-
sitam de autonomia para expandir e retrair sua força de trabalho de
acordo com as necessidades dos negócios.
Há dúvidas, porém, quanto à eficácia de tal modelo a longo pra-
zo, considerando que o esforço para livrar-se do trabalhador full-time
pode ser tão negativo para o empregador quanto para o empregado.
O aprofundamento do movimento de globalização econômica tem
mostrado que tanto o capital como a produção são realmente “por-
táteis” e, não havendo fixação de capital, as nações se tornam vulne-
ráveis a expectativas alheias e sua capacidade de superação passa a de-
pender em grande parte das habilidades e da capacidade intelectual de
seu povo. É nesse ponto que se inserem os programas de atualização
e treinamento como instrumentos de desenvolvimento intelectual,
fundamental para o fortalecimento da força de trabalho dos países me-
nos desenvolvidos.

O DISCURSO DA EMPREGABILIDADE
A crise do mercado de trabalho no Brasil pode ser medida pela
participação da economia na absorção da força de trabalho, que, se-
gundo Pastore,35 retém 57% da PEA. Uma grande parcela desses tra-
balhadores é fruto da reestruturação do mercado de trabalho que pro-
vocou o deslocamento dessa massa de trabalhadores do setor formal
para a economia informal. Se a recolocação no mercado formal é di-
fícil, dentro do mesmo setor é uma luta ainda mais árdua. Apesar da
indisponibilidade de dados sobre a recolocação dos desempregados no
mesmo setor de onde saíram, sabe-se que esse índice é muito baixo,
34 CASTRO, 1993, p. 40.
35 PASTORE, 1998, p. 251.

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motivo pelo qual o trabalhador se sente forçado a aceitar qualquer


tipo de atividade que lhe seja oferecido. No setor de bebidas, por
exemplo, a recolocação é de apenas 26% e, no referente às montado-
ras de veículos, o índice é de 7%.36 O baixo nível da educação básica
no Brasil e o avanço tecnológico contribuem em parte para essa situ-
ação, uma vez que o conhecimento é componente básico da capaci-
dade de adaptação do profissional a um novo setor. Caso contrário, o
trabalhador é forçado a procurar algum tipo de ocupação na econo-
mia informal.
A medir pelo nível médio de escolaridade do brasileiro – em tor-
no de quatro anos –, a tendência é de agravamento dessa situação,
mormente porque as indústrias em expansão no momento são as tec-
nologicamente mais avançadas, cujas exigências, em matéria de edu-
cação, são cada vez maiores.
É nesse contexto que se insere o debate sobre a empregabilidade,
expressão aqui utilizada com o sentido de capacidade intelectual desen-
volvida e necessária para que a pessoa consiga manter-se profissional-
mente preparada para enfrentar novos desafios, aprendendo e desa-
prendendo a velocidades cada vez maiores.37 O termo empregabilidade
pode ser também equiparado à “estrutura de competências que irá per-
mitir a qualquer indivíduo assalariado manter-se no emprego, qualquer
que seja a empresa na qual tal emprego encontre expressão”.38 Nesse
sentido, pode ser também desenvolvida dentro do próprio ambiente de
trabalho, ainda que sem garantia de manter o emprego. A empresa,
pressionada pelas mudanças do ambiente externo globalizado, introduz
modificações estratégicas, interrompe programas de treinamento e dis-
pensa trabalhadores nos quais haviam investido.
Como ao longo do tempo os vínculos entre empresas e traba-
lhadores tornaram-se cada vez mais sutis, desenvolveu-se um outro
conceito de empregabilidade baseado na concepção de autogerencia-
mento profissional,39 e é nesse ponto que algumas opiniões divergem.
Para uma corrente, com cujas idéias comunga Vaz Musa,40 cabe à em-
presa a responsabilidade pelo treinamento dos empregados por tratar-
se de preparação profissional para o exercício de tarefas na própria or-
ganização, enquanto compete ao Estado garantir educação básica de
boa qualidade, base para um bom desenvolvimento profissional.
36 PASTORE, 1998, p. 15.
37 GRUBISICH, in CASALI, 1997.
38 MINVIELLE, in CASALI, 1997, p. 179.
39 Ibid.
40 VAZ MUSA, in CASALI, 1997.

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Ocorre, porém, que o discurso da empregabilidade vem sendo


empregado com um tom que transfere ao desempregado a culpa pela
perda do emprego. A empregabilidade não deve, pois, ser acatada pas-
sivamente como alternativa única ao desemprego sem que se tenha
claro a competência necessária, para que e para quem, em particular
se for levada em consideração a baixa expectativa de se conseguir em-
prego num mercado em que predomina a tendência de redução dos
postos de trabalho, de empregos em tempo parcial e do trabalho sem
vínculo empregatício.
Uma outra barreira ao discurso da empregabilidade, ainda que
no sentido de preparo real da força de trabalho, reside no nível do en-
sino brasileiro. Entre as críticas ao sistema de ensino nacional destaca-
se a posição de Izquierdo,41 que chama a atenção para a defasagem en-
tre o que se ensina na escola e a realidade vivenciada pelo aluno. O en-
sino deve contemplar as habilidades exigidas para que o aluno se torne
um profissional em potencial. Frigotto,42 por sua vez, classifica essa vi-
são de utilitarista por reforçar a influência fordista/taylorista, produ-
zindo um ensino destinado à formação de valores, atitudes e desen-
volvimento de habilidades e conhecimentos necessários ao “capital hu-
mano”.
Uma proposta alternativa é apresentada por Casali,43 segundo a
qual o projeto de empregabilidade não pode ficar restrito a um simples
treinamento voltado às necessidades da empresa, mas sim assumir ca-
racterísticas de construção coletiva, envolvendo o governo, os sindica-
tos e instituições da sociedade civil.

CONCLUSÃO
O papel das empresas está diretamente ligado ao desenvolvimen-
to da sociedade; deve-se admitir, entretanto, que nas últimas décadas
elas vêm abandonando um dos pilares de sustentação de seu compro-
misso social (a geração de empregos), em defesa de interesses próprios,
em detrimento dos legítimos direitos da sociedade. Ao condicionarem
os empregos à qualificação dos trabalhadores, as empresas demons-
tram uma posição contraditória, visto que a redução das oportunida-
des de trabalho resulta de suas próprias estratégias. Desenvolveram
modelos de produção ao longo deste século que evoluíram da rigidez
para a flexibilidade.
41 IZQUIERDO, in CASALI, 1997.
42 FRIGOTTO, in CASALI, 1997.
43 CASALI, 1997.

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Acompanhando essa evolução, o mundo do trabalho, que che-


gou a conhecer período de pleno emprego nos países industrializados,
convive hoje em dia com precarização das condições de trabalho.
Igualmente, a mesma força de trabalho, que na primeira metade do sé-
culo mobilizou-se e conquistou benefícios trabalhistas, atualmente,
tendo perdido seu poder de barganha, fragilizada, luta apenas pela ma-
nutenção dos empregos.
Nesse novo cenário, entre as alternativas de solução para os pro-
blemas do desemprego, aponta-se para um projeto no qual as empre-
sas aparecem não apenas como usuárias da força de trabalho, mas
também como agentes ativas do processo de formação de mão-de-
obra. A proposta trabalha com a idéia de uma participação conjunta,
envolvendo empresas, governo, sindicatos e trabalhadores, partindo
do pressuposto que a empregabilidade somente será possível com o
envolvimento de todas as partes interessadas. Trabalha com uma con-
cepção de empregabilidade no sentido de preparo das pessoas para o
mercado de trabalho dentro de uma concepção de cidadania.
Compete às empresas contribuir para a elevação da qualificação
da força de trabalho e, ao mesmo tempo, adotar estratégias voltadas
para a manutenção dos postos de trabalho. Do governo espera-se o
desenvolvimento de políticas públicas voltadas tanto para a melhoria
da qualidade do ensino, ao qual todos devem ter acesso, como para o
incentivo a investimentos geradores de oportunidades de trabalho.
Aos sindicatos compete o papel de mediadores do diálogo entre a for-
ça de trabalho, as empresas e o governo, procurando desenvolver uma
relação que não necessariamente resulte no enfraquecimento de sua
posição e em perdas para os seus representados.
Nesse sentido, aponta-se no horizonte a compreensão de que o
envolvimento de todos no sentido de promover o aprimoramento do
conhecimento da força de trabalho e a garantia de oportunidades de
trabalho, qualquer que seja a forma assumida, deve ser interpretado
como investimento, e não como custo.

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dezembro 172 99
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Ensino de Administração e
o Perfil do Administrador:
Contexto Nacional e o
Curso de Administração
da UNIMEP
The Teaching of Administration
and the Manager’s Profile:
national context and
the Administration Course
at UNIMEP
NÁDIA KASSOUF PIZZINATTO
RESUMO – Qual o perfil ideal de um administrador? Como definir os objetivos de Doutora em Administração, área
um curso de forma que reflitam as diretrizes da Política Acadêmica da instituição de Marketing, professora da UNIMEP
que o oferece? Notadamente, como fazer isso e ainda garantir a formação de um e consultora do Ministério da
Educação na área de Administração.
profissional competente? Eis a abordagem deste ensaio, que resgata inicialmente nkp@merconet.com.br
a história do ensino da administração no Brasil, dos primórdios às mais recentes
inovações promovidas pelo Ministério da Educação, como o Exame Nacional de
Cursos (ENC), tentando identificar o perfil do profissional. Nesse contexto histó-
rico, expõe a evolução do Curso de Administração da Universidade Metodista de
Piracicaba (UNIMEP), apresentando a interação de seus agentes, em particular li-
deranças acadêmicas, alunos e professores, no processo de atualização do curso,
e adaptação do perfil do futuro profissional às exigências da sociedade, em con-
formidade com a política acadêmica da UNIMEP. Tratando a realidade presente,
analisa ainda as alterações na atual estrutura do curso e o acúmulo de discussão
que se tem até esse momento com relação ao papel do administrador e de seu per-
fil para atuação diante das inovações históricas nacionais.
Palavras-chave: administração – ensino – curso – perfil profissional – currículo.
ABSTRACT – What is the ideal profile of a manager? How are the course objectives
defined in order to reflect the Academic Policy of its Institution? Primarily, how
can this be done while still guaranteeing the formation of a competent professio-
nal? This essay first discusses the history of the teaching of Administration in Bra-
zil, from the beginning to the most recent innovations promoted by the Education
Ministry, such the National Examination of Courses (ENC), in an attempt to iden-
tify the manager’s profile. In this historical context, the evolution of the course

impulso 173 nº26


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taught at the Methodist University of Piracicaba (UNIMEP) is presented, showing


the interaction among its agents, principally academic leaders, students and pro-
fessors in the course modernization process and the adaptation of the professional
profile to societal requirements. Dealing with the present reality, the changes in the
actual structure of the course are analyzed along with the discussions that have
taken place up to this time about the manager’s role and profile for work within
the national and historical innovations.
Keywords: administration – teaching (instruction, education) – course – professio-
nal profile – curriculum.

INTRODUÇÃO

A formação universitária é um processo complexo que exige


pesquisas constantes para definir, primeiramente, as caracte-
rísticas ideais do perfil de um profissional e, em seguida, a
composição curricular adequada a essa formação. Nesse processo, in-
teragem – ou pelo menos deveriam interagir – lideranças acadêmicas
institucionais, representações estudantis, docentes do mercado de tra-
balho e associações de classe, tendo como referências as definições le-
gais mínimas do curso em questão, a visão e a missão da instituição su-
perior de ensino, refletidas em sua política acadêmica. Todos esses fa-
tores levam à formulação dos objetivos do curso, concretizados em sua
grade curricular e demais atividades extra-curriculares de seu projeto
pedagógico.
No caso específico do curso de administração, no Brasil, a discus-
são sobre o perfil do profissional passou por várias etapas, exigindo das
instituições de ensino superior adaptações constantes, em especial por-
que o egresso desse curso atua em cenários em constantes mutações.
Este estudo relata a inserção do curso de administração no ce-
nário brasileiro diante das diversas definições do perfil do administra-
dor historicamente definidas, e analisa a questão do Curso de
Administação da Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP) nes-
se processo, apresentando a interação de suas lideranças acadêmicas na
discussão sobre o perfil do administrador desejado e as alterações cur-
riculares realizadas.

HISTORICIDADE DO CURSO DE ADMINISTRAÇÃO


NO BRASIL E O PERFIL DO ADMINISTRADOR
Pode-se apontar a Fundação Getúlio Vargas, criada em 1954,
como a pioneira, enquanto instituição de ensino superior, na criação

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6978_Impulso_26.book Page 175 Wednesday, October 1, 2003 1:07 PM

do primeiro currículo especializado em administração, tanto pública –


através da Escola de Administração Pública (EBAP/FGV- 1952) – quanto
de empresas: Escola de Administração de Empresas de São Paulo (ea-
ESP/FGV, 1954).
Antes disso, “estudos sistemáticos de administração no Brasil”
ocorriam desde 1930, com a fundação do Instituto de Organização
Racional do Trabalho (IDORT) e do Departamento Administrativo do
Serviço Público (DASP), em 1931.1
O governo prestigiou a administração pública ao criar, em 1938,
o Departamento Administrativo do Serviço Público (dasp), com sua
Escola de Serviço Público formando técnicos de administração, que
eram enviados para a busca do aperfeiçoamento no exterior.2
A FEA/USP (Faculdades de Economia e Administração) surgiu em
1946, com o objetivo de “formar funcionários para os grandes esta-
belecimentos de administração pública e privada”.3
Desde essa época, até a década de 40, com o processo de
industrialização, iniciou-se o delineamento do perfil do administrador
profissional no Brasil. Segundo Martins,

o desenvolvimento de uma sociedade, até então basi-


camente agrária que passava gradativamente a ter seu
pólo dinâmico na industrialização, colocou como pro-
blema a formação de pessoal especializado para anali-
sar e planificar as mudanças econômicas que estavam
ocorrendo, assim como incentivar a criação de centros
de investigação vinculados à análise de temas econô-
micos e administrativos.4

O pioneiro curso da Fundação Getúlio Vargas nos anos 50 teve


sua primeira turma formada em 1958. Esse currículo especializado em
administração tinha forte influência americana, dado que a FGV firma-
ra, para concretizar a criação dos cursos, convênio com a USAID (De-
senvolvimento Internacional do Governo dos Estados Unidos) e a Uni-
versidade Estadual de Michigan.5
A ampliação dos cursos de graduação em administração está vin-
culada a uma idéia de desenvolvimento econômico pertinente àquele
contexto histórico que se insere na contradição entre um projeto na-
cional e a formação monopolista do capital.6
1 HENRIQUE, 1993.
2 DOCUMENTA, 1993, p. 289.
3 ANDRADE, 1997, pp. 19-20.
4 MARTINS, in ANDRADE, 1997, p. 16.
5 ANDRADE, 1997, p. 19.
6 COVRE, 1990, p. 65.

impulso 175 nº26


6978_Impulso_26.book Page 176 Wednesday, October 1, 2003 1:07 PM

O perfil do profissional da administração, bem como a definição


legal dos seus direitos, prerrogativas e deveres, foram especificados no
artigo 3º da Lei 4.769, de 09/09/65, como compreendendo:

a) elaboração de pareceres, relatórios, planos, projetos,


arbitragens e laudos, em que se exija a explicação de
conhecimentos inerentes às técnicas da organização;
b) pesquisas, estudos, análises, interpretação, planeja-
mento, implantação, coordenação e controle dos tra-
balhos nos campos de administração e seleção de pes-
soal, organização, análise, métodos e programas de
trabalho, orçamento, administração de materiais e fi-
nanceira, relações públicas, administração mercadoló-
gica, administração da produção, relações industriais,
bem como outros campos em que estes se desdobrem
ou com os quais sejam conexos;
c) exercício de funções e cargos de Técnicos de Admi-
nistração do Serviço Público Federal, Estadual, Muni-
cipal, Autárquico, Sociedades de Economia Mista, em-
presa estatal, paraestatal e privada, em que fique ex-
presso e declarado o título do cargo abrangido;
d) o exercício de funções de chefia ou direção,
intermediária ou superior, assessoramento e consulto-
ria em órgãos, ou seus compartimentos, da Adminis-
tração Pública ou de entidades privadas, cujas atribui-
ções envolvam principalmente a aplicação de conheci-
mentos inerentes às técnicas de administração;
e) o magistério em matérias técnicas do campo de ad-
ministração e organização.7

A fixação do currículo mínimo do curso de graduação em admi-


nistração pelo Conselho Federal da Educação (CFE) ocorreu mediante
Parecer 307/66. Por ele foi definido o núcleo de matérias considerado
o mínimo indispensável para uma adequada formação profissional:
matemática, estatítica, contabilidade, teoria econômica, economia bra-
sileira, psicologia aplicada à administração, sociologia aplicada à admi-
nistração, instituições de direito público e privado (incluindo noções de
ética administrativa), legislação social, legislação tributária, teoria geral
da administração, administração financeira e orçamento, administração
de pessoal, administração de material.8
Na época, o aluno poderia também optar entre direito adminis-
trativo, administração da produção e administração de vendas, sendo-
7 PIZZINATTO, 1986, pp. 5-6.
8 CONSELHO FEDERAL DE ADMINISTRAÇÃO, 1993, p. 289.

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6978_Impulso_26.book Page 177 Wednesday, October 1, 2003 1:07 PM

lhe, ainda, exigido um estágio supervisionado de seis meses.9 Na visão


de Andrade, “o surto de ensino superior, e em especial o de adminis-
tração, é fruto da relação que existe, de forma orgânica, entre esta
expansão, e o tipo de desenvolvimento econômico adotado após
1964, calcado na tendência para a grande empresa”.10
A década de 70 pautou-se pela expansão dos cursos do ensino su-
perior, e a administração ocupou lugar especial em tal processo, pois se
caracteriza como um dos cursos que mais cresceu na época. “No período
de 1969/74, enquanto as matrículas totais nos cursos superiores cresce-
ram de 162%, as do curso de Administração, Economia e Ciências afins,
no Estado de São Paulo aumentavam em 372%.”11
Por ocasião da fixação do currículo mínimo do curso, a carga ho-
rária mínima estabelecida era de 2.700 horas e o formando na área de-
nominava-se técnico em administração. Havia muita prevenção de to-
dos os que atuavam na área com relação ao título que o diploma de
graduação outorgava. O Conselho Federal de Administração iniciou
movimento no sentido de obter sua substituição pelo título de “admi-
nistrador “, o que ocorreu em 13/06/85, através da Lei 7.321, a qual,
entretanto, não alterou seu “campo e a atividade profissional”. O mo-
delo de desenvolvimento do período de 1969/74 apontava para a ne-
cessidade do administrador enquanto profissional gestor do capital.
Para a autora, o crescimento das matrículas, nessa época, manteve-se
de forma contínua em virtude de um mercado de trabalho em
expansão, caracterizado pela necessidade de profissionais que pudes-
sem enfrentar a realidade da expansão das empresas e seu conseqüente
processo de centralização e burocratização.

(...) o destaque do administrador, como tecnólogo so-


licitado por excelência, que se realizaria não só pelas
oportunidades reais de emprego, mas também pelas
necessidades específicas que são colocadas no contexto
sócio-econômico-político do Capitalismo Monopolis-
ta, requerendo técnicos que lidem com áreas funda-
mentais do mecanismo de sua manutenção, tais como
finanças e marketing.12

Ciente de que a administração é implementada em uma realida-


de social abrangente e em permanente mutação, a Secretaria de Edu-
cação Superior (SESU), do MEC, constituiu em 1982 um grupo de tra-
9 ANDRADE, 1997, p. 22.
10 Ibid., p. 17.
11 COVRE, 1990, p. 82.
12 Ibid., p. 84.

impulso 177 nº26


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balho “com o propósito de produzir um anteprojeto de Reformulação


Curricular dos Cursos de Administração e submetê-lo à avaliação crí-
tica de universidades, faculdades, associações de profissionais e seg-
mentos outros da área de Administração”.13
Nesse processo, houve a participação do Conselho Federal de
Administração, que realizou seminário nacional de 28 a 31 de outubro
de 1991, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, com o objetivo
não somente de definir novo currículo mínimo para o curso, mas so-
bretudo de difundir, entre as instituições de ensino superior, a impor-
tância do currículo pleno, tanto no atendimento às necessidades do
mercado de trabalho, como também para “mudar seu enfoque de so-
lucionador de problemas, reprodutor das forças produtivas e das re-
lações sociais, para promotor de novas relações produtivas e sociais.”14
Mesmo do ponto de vista da história dos cursos de administra-
ção revelaram-se concepções múltiplas sobre a atuação do profissional
de administração. As posições, expostas em reportagens e entrevistas,
variavam desde os que afirmavam que, “ao se interessar mais por Du-
rkheim que por Morita, as escolas do ramo se esquecem de que devem
formar não sociólogos, mas gerentes”, até aqueles que defendiam a
carga horária de ensino de disciplinas da área de humanas (como o
prof. Marcos Cintra, então diretor da EAESP/FGV), com larga utilização
de textos de teóricos como Marx, Weber e Keynes, justificando: “um
bom administrador tem de estar aberto e conhecer todas as correntes
de pensamento” para “gerenciar conflitos dentro de sua empresa e en-
tender o que acontece na sociedade”. Com outras preocupações, o
prof. Alexander Berndt (então chefe do Departamento de Administra-
ção da FEA-USP), conclamava ao combate “à visão utilitária”, comple-
tando: “não nos interessa criar executivos tipo Charles Chaplin, mas
sim gente que pense”.15 A preocupação com a qualidade mobilizou di-
versas instituições: “a ANGRAD – Associação Nacional dos Cursos de
Graduação em Administração – e o CFA – Conselho Federal de Ad-
ministração/ENC – trabalharam conjuntamente para a aprovação do
novo currículo mínimo de Administração”.16
A Resolução 02/93 sintetizou o resultado de todo o debate, de-
finindo cargas horárias para categorias de conhecimentos:
a) formação básica e instrumental – 720 horas, ou 24% do cur-
rículo;
13 CONSELHO FEDERAL DE ADMINISTRAÇÃO, 1993, p. 290.
14 Ibid., p. 291.
15 REVISTA EXAME, 1990.
16 ANDRADE, 1997, p. 25.

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6978_Impulso_26.book Page 179 Wednesday, October 1, 2003 1:07 PM

b) formação profissional – 1.020 horas, ou 34% da duração in-


tegral do curso;
c) complementares – 960 horas, ou 32% da duração total do
curso;
d) atividades de estágio supervisionado – 300 horas, ou 10% da
duração do curso, que deverá integraliza 3 mil horas.
A proposta teve como maior mérito a disponibilização de espaço
para adequações curriculares às necessidades regionais, através da for-
mação complementar e do estágio supervisionado, estimulando as
instituições à “proposição de novas habilitações, algumas delas, talvez,
já reclamadas hoje pela fecunda área de Administração”.17
As instituições de ensino de graduação tiveram até janeiro de
1995 para adequarem a oferta das disciplinas de seus cursos, efetuan-
do, assim, a implantação do perfil do novo currículo, aprovado pela
Resolução 02/93. Hoje em dia as universidades têm maior autonomia
na definição de seus currículos, o que lhes coloca o desafio de definir
o perfil do profissional que, ao mesmo tempo, atenda aos anseios da
utopia institucional e encontre colocação no mercado de trabalho.
A pesquisa “Perfil e habilidades do administrador” (PHAD), rea-
lizada pela ANGRAD em 1996, ouviu cem coordenadores de cursos, en-
tre os vinculados à Associação. Os conceitos mais citados foram os li-
gados a:
a) visão global e humanística: para tomar decisões num mundo
diversificado e interdependente;
b) formação técnica: em administração, tanto de aspecto técni-
co quanto científico e prático;
c) ética: internalizando valores de responsabilidade social, justi-
ça e ética profissional;
d) empreendedorismo: no sentido de antecipar e promover
transformações;
e) aperfeiçoamento profissional: necessidade de estudo contí-
nuo;
f) interdisciplinariedade: visão abrangente na formação do pro-
fissional, dado o amplo mercado de atuação.
Para atingir esse perfil, os coordenadores ouvidos na Pesquisa
PHAD/96 ANGRAD identificaram algumas habilidades, tidas como ne-
cessárias ao profissional, tais como:
a) compreensão do todo: visão sistêmica e holística;
17 CONSELHO FEDERAL DE ADMINISTRAÇÃO, 1993, p. 294.

impulso 179 nº26


6978_Impulso_26.book Page 180 Wednesday, October 1, 2003 1:07 PM

b) espírito crítico: uso de raciocínio lógico e analítico na análise


de problemas e tomada de decisões;
c) comunicação: interpessoal, tanto escrita quanto verbal;
f) flexibilidade: para adaptação a situações inesperadas;
g) estratégias adequadas: habilidade de seleção das estratégias
que mais atendam a interesses interpessoais e institucionais;
h) capacidade de decisão: saber decidir entre estratégias alterna-
tivas, através da identificação e dimensionamento de riscos;
i) inovação: para proposição de modelos de gestão inovadores,
o que aponta para outra habilidade necessária, a criatividade;
l) interação: buscando formas de atuação em prol de objetivos
comuns, o que também leva a outra habilidade, capacidade
de trabalho em equipe.
A última influência ambiental de peso que atingiu as instituições
de ensino de administração foi a inclusão dessa área de saber entre
aquelas cujos formandos deveriam ser submetidos ao Exame Nacional
de Cursos (ENC) – popularmente denominado Provão –, em 1996,
como parte do processo de avaliação do ensino superior no Brasil.
Fonte de controvérsias, o ENC foi criado em 24 de novembro de 1995,
pela Lei 9.131, aprovada no Congresso Nacional e regulamentada
pela Portaria 249, de 18 de março de 1996. O Provão, entretanto, não
é o único sistema para avaliar as instituições de ensino superior: desde
dezembro de 1993, foi lançado também pela SESU o Programa de Ava-
liação Institucional das Universidades Brasileiras (PAIUB), sistema de
avaliação interna e externa para desenvolver uma “cultura de avalia-
ção” a partir de um processo contínuo e sistemático de aprimoramen-
to da qualidade de ensino.18
Assim, o ENC ainda é um instrumento de avaliação do processo
do ensino-aprendizagem ligado ao aluno, em fase de aperfeiçoamento,
complementado por verificações das condições de oferta dos cursos,
pelas instituições de ensino de graduação em administração, realizadas
por comissões de especialistas designadas pelo Ministério da Educação
especificamente para esse fim. A primeira experiência do ENC ocorreu
em 10 de novembro de 1996, prestando o exame alunos de adminis-
tração, direito e engenharia civil que se formaram no segundo semes-
tre desse ano. A prova realizou-se novamente em 1997 e 1998, em ní-
vel nacional, avaliando todos os formandos dos cursos de graduação
em administração do país.
18 MEC, 1996.

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6978_Impulso_26.book Page 181 Wednesday, October 1, 2003 1:07 PM

O CURSO DE ADMINISTRAÇÃO DA UNIMEP


Enfocando agora a realidade específica do Curso de Administra-
ção da UNIMEP implantado em 1964, em plena efervescência política:
“(...) foi exatamente a 1º de abril de 1964, quando as interrogações co-
meçavam a ser lançadas sobre o que representaria a movimentação
dos militares do país, que teve início a história da primeira turma dos
cursos superiores do Instituto Educacional Piracicabano”.19
O curso recebeu autorização formal pelo Decreto 66.054 do
CFE, de 13/01/70; entretanto, o reconhecimento final do CFE somente
viria em 04/12/72, publicado na Documenta do MEC como processo
265/72. O curso funcionou inicialmente vinculado à Faculdade de
Economia, Contabilidade e Administração de Empresas (ECA) do Ins-
tituto Educacional Piracicabano. Os três primeiros anos do currículo
eram comuns, havendo a diferenciação apenas no último ano.
A experiência prática do alunado junto às organizações ocorria
sem a interferência da instituição, bastando que o aluno trouxesse um
documento declarando haver realizado estágio em determinada orga-
nização. O estágio foi regulamentado como disciplina constante de
currículo apenas em 27 de novembro de 1979. Inicialmente com um
único professor responsável pela orientação a todos os discentes (prof.
Dorgival Henrique), a atividade foi sofrendo diversos aperfeiçoamen-
tos com a definição de áreas: marketing, recursos humanos, finanças,
produção e materiais, com professores orientadores em cada uma de-
las e a função de supervisão assumida pela profª. Dalila Alves Correia,
dando os rumos da atividade.
O Curso de Administração passou por algumas alterações curri-
culares, no intuito de dar-lhe características próprias, já que, antes do
primeiro reajuste curricular, ocorrido em 1981, a área de administra-
ção propriamente dita participava com apenas 20,2% de sua carga ho-
rária.20
As intervenções curriculares efetuadas na oferta de disciplinas do
Curso foram reflexo não apenas de imposições legais do Ministério da
Educação, como também fruto de debates internos sobre o perfil do
profissional que se pretendia formar na Universidade, gerados em pri-
meiro lugar no Colegiado do Departamento de Administração, em se-
guida pelo Colegiado de Curso (cujo regulamento foi aprovado pelo
Conselho de Coordenação do Ensino, Pesquisa e Extensão em 30/11/
19 ACONTECE, 1994.
20 PIZZINATTO, 1986.

impulso 181 nº26


6978_Impulso_26.book Page 182 Wednesday, October 1, 2003 1:07 PM

81) e, por fim, norteados pela Política Acadêmica da Universidade Me-


todista de Piracicaba, em 1992.
O plano da primeira Reforma Curricular do Curso, aprovada
pelo Conselho de Coordenação do Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE)
em 1986, discutia o perfil do profissional que se deveria atingir com
a proposta curricular encaminhada aos órgãos colegiados, e conside-
rava: a) o Ofício Circular do Ministério da Educação e Cultura e do
Conselho Federal da Educação de número 001.783/84, através do
qual se buscava “coletar posições das Instituições a respeito da Refor-
ma Curricular em Estudos” pelo Grupo de Trabalho instituído pelo
MEC em 1982; b) as posições do prof. Moura Castro: o técnico, o as-
sessor, de um lado, e, de outro, o tomador de decisões (decision
maker); c) as habilidades propostas por Katz & Khan para o adminis-
trador – humana, conceitual, técnica. O documento finalizava suge-
rindo o perfil do profissional de administração da, já então, Universi-
dade Metodista de Piracicaba como:

O Administrador é um profissional comprometido


com as mudanças sociais, em função do que deve ter
uma formação humana que lhe dê capacidade de di-
rigir, motivar, coordenar seus colaboradores, enfim, de
trabalhar em equipe, na tarefa de adaptar a empresa às
exigências de uma sociedade em constante mutação.
Nesse trabalho de adaptação necessita utilizar conhe-
cimentos técnicos diversificados em Administração,
encarando a empresa sob uma visão sistêmica, isto é,
reconhecendo a interdependência estrutural dos seus
vários departamentos, bem como agindo no inter-re-
lacionamento empresa X meio ambiente, o que exige
capacidade estratégica de enfrentar situações comple-
xas e tomar decisões adequadas.21

Os debates não se encerraram com a aprovação da Reforma


Curricular. Em 1988, o coordenador do curso (prof. Roberto Tayar)
propunha a discussão do processo de ensino-aprendizagem conside-
rando: a filosofia do curso, o perfil profissional do administrador, os
reflexos da filosofia e do perfil nas disciplinas e no relacionamento do-
cente/discente, bem como o quadro curricular do curso. Lembrava,
então, o perfil aprovado em 1986, acrescentando que “o administra-
dor é um profissional que age para mudar. Não existe administração
e nem administrador para manter as coisas como estão”. Afirmava que
21 PIZZINATTO, 1986.

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6978_Impulso_26.book Page 183 Wednesday, October 1, 2003 1:07 PM

essa mudança deveria ocorrer “no sentido do seu compromisso com


os interesses comunitários”.22 Foram realizadas reuniões com Conse-
lhos de Classe e identificados vários pontos como influentes na quali-
dade do processo de ensino: o grande número de alunos em sala, o au-
toritarismo por parte de alguns professores, a conceituação destoante,
por parte de professores e alunos, do “entendimento do que seja teoria
e prática”, a metodologia utilizada, enfatizando o monólogo docente
e impedindo o diálogo com o discente, reforçando, por fim, o posicio-
namento de 1988:

Os alunos em sua maioria não entendem que a reali-


dade para o trabalho administrativo é um referencial e
não um modelo a ser seguido. A postura do Adminis-
trador deve partir da realidade para mudá-la e não
para dar continuidade a ela.23
Criticava “toda uma visão corporativa e por isso mes-
mo fragmentada e embasada em conhecimentos espe-
cializados”, em que “seu charme era a eficiência”.24

Desde então podia-se perceber que as lideranças acadêmicas e


docentes do Curso de Administração da UNIMEP já constatavam a ne-
cessidade de se aprofundar o debate sobre a função do administrador
e o tipo de profissional que a Universidade poderia formar, tanto no
sentido de sua contribuição para a sociedade, como também no que
concerne à sua competência para sobrevivência no mercado.
Inicialmente o curso era oferecido apenas no período noturno;
entretanto, em julho de 1992, foi oferecida a primeira turma no pe-
ríodo matutino, o que ampliou o potencial do curso e, em conseqü-
ência, sua complexidade.
Nesse mesmo ano, em 9 de setembro, o Curso de Administração
requereu sua filiação junto à ANGRAD, entidade sediada em São Paulo,
com a missão de contribuir para a melhoria da qualidade do ensino da
administração no país. A divulgação externa do Curso de Administra-
ção da UNIMEP passou a acontecer não só pela representação docente
nos encontros nacionais e regionais da ANGRAD – identificados, respec-
tivamente, pelas siglas ENANGRAD e EPANGRAD –, como também pela
apresentação de trabalhos de docentes do curso nesses eventos e pela
organização, na UNIMEP, de tais encontros. Em 1993, ocorreu o III
EPANGRAD – Encontro Paulista dos Cursos de Graduação em Adminis-

22 TAYAR, 1988.
23 Ibid., 1990a.
24 Ibid., 1990.

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6978_Impulso_26.book Page 184 Wednesday, October 1, 2003 1:07 PM

tração – e, em setembro de 1994, o V ENANGRAD (Encontro Nacional


dos Cursos de Graduação em Administração), congregando 175 par-
ticipantes, representando instituições de todas as partes do país.
Em trabalho preparado para apresentação no II EPANGRAD, na
PUC-Campinas, o prof. Dorgival Henrique alertava para a necessidade
de se “construir um Projeto Pedagógico” que levasse as disciplinas do
curso a trabalhar “com dupla competência: a profissional propriamen-
te dita (docente especializado numa área de saber, nas exigências do
mercado etc.) e a “competência crítica”, que ultrapassasse o paradigma
funcionalista e a idolatria do mercado”. Começava a repercussão ex-
terna da preocupação com a dupla competência, tão discutida no âm-
bito da comunidade universitária unimepiana.25
O perfil do estágio supervisionado também foi divulgado em ní-
vel nacional, no III ENANGRAD, ocorrido em Belo Horizonte (29/08/92),
quando as profas. Nadia K. Pizzinatto e Dalila A. Correa apresentaram
trabalhos a respeito. Da mesma forma, estratégias de ensino-aprendi-
zagem utilizadas no curso, na disciplina Administração Mercadológica,
foram apresentadas e debatidas no VI ENANGRAD, em Natal.26

A POLÍTICA ACADÊMICA DA UNIMEP E SEUS


REFLEXOS NO CURSO DE ADMINISTRAÇÃO
No âmbito da UNIMEP, ocorriam os debates culminando com a
aprovação pelo Conselho Universitário, em 24/04/92, da Política Aca-
dêmica da instituição, definindo diretrizes para as atividades unimepia-
nas: a construção da cidadania enquanto patrimônio coletivo da socie-
dade civil, a indissociabilidade do processo de ensino-pesquisa-extensão,
o direcionamento das atividades acadêmicas para os aspectos regionais,
os estágios dos cursos como a oportunidade de contato teoria/prática e,
por fim, os Projetos Pedagógicos como “a concretização da Política Aca-
dêmica”.27
A Reitoria assumia como uma das propostas básicas de seu Plano
de Trabalho 95/98:

Prosseguir, tendo como eixo a Política Acadêmica, no


processo de institucionalização da Universidade, prio-
rizando a definição dos projetos pedagógicos de todos
os cursos, departamentos e centros, de modo a se apri-
morar a qualidade da formação científica, política e
profissional do corpo discente, na base dos parâmetros

25 HENRIQUE, 1993.
26 PIZZINATTO, 1995.
27 UNIMEP, 1992.

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6978_Impulso_26.book Page 185 Wednesday, October 1, 2003 1:07 PM

do Processo de Ensino que baliza os programas e ações


relacionados.28

As lideranças acadêmicas do Curso de Administração tinham o


primeiro semestre de 1995 como prazo para implantação da reforma
curricular aprovada em 05/08/93 no CFE (MEC). Mas a Universidade
definia seus próprios caminhos, não estando somente a reboque das
pressões ambientais. Assim, as lideranças acadêmicas assumiam seu pa-
pel na construção do Projeto Pedagógico do curso, definido como pro-
posta básica do Plano de Trabalho da Reitoria. No documento apro-
vado em junho de 1994 pelo CEPE, que apontava a Inovação Curri-
cular como metodologia para orientar os cursos em suas práticas aca-
dêmicas, alertava-se que, na construção dos Projetos Pedagógicos dos
cursos, deveriam ser consideradas quatro dimensões:
a) universidade e sociedade – para dar sentido social e político à
ação educativa;
b) ética – para que a formação profissional, alicerçada em parâ-
metros sociais, políticos, técnicos e científicos, possibilitasse
aos indivíduos fazerem escolhas sob a égide de uma ética ci-
dadã;
c) historicidade da instituição – ou seja, o Projeto Pedagógico
deveria refletir as expectativas futuras e o passado Institucio-
nal;
d) o processo de conhecimento – em que se definissem quais co-
nhecimentos deveriam ser socializados e por quais métodos.
Assim, a “Proposta de Reformulação Curricular” do Curso de
Administração que cumpriu as determinações da Resolução 02/93, le-
vando à implantação, em 1995, do currículo reformulado, foi elabo-
rada considerando não apenas as definições legais do Ministério da
Educação, como também os pressupostos da Política Acadêmica da
UNIMEP, a priorização do Projeto Pedagógico como meta da Univer-
sidade e as orientações do CEPE para seu delineamento. Desse modo
foi aprovada pelo CEPE em 24/10/94, como processo 068-04/94.
Reconhecia que “a função administrativa de alto nível envolve
capacitações voltadas para estratégia, processo decisório, racionalida-
de administrativa, liderança e habilidades interpessoais”, ao mesmo
tempo em que também assumia a dificuldade de se “transformar o
processo de ensino em ‘laboratórios de estratégias e de decisões simu-
ladas’, considerando que um ‘curso de graduação em administração
28 UNIMEP, 1995, pp. 56-57.

impulso 185 nº26


6978_Impulso_26.book Page 186 Wednesday, October 1, 2003 1:07 PM

competente pode, no máximo, trabalhar com fundamentos de habili-


dades de gestão’”.29
No bojo da Reforma Curricular, as atividades do estágio super-
visionado foram revistas, com a designação, pelo Departamento de
Administração, de um grupo de trabalho autodenominado GTESA, em
abril de 1996, para construção das novas diretrizes, encaminhadas aos
órgãos colegiados em 1997. O documento definiu tipologias de pro-
jetos monográficos para a atividade, previu a constituição do Núcleo
do Estágio Supervisionado em Administração (Nuclesa), instância ca-
talisadora de discussão das problemáticas do ESA, descentralizando o
processo decisório; ampliou a carga horária do ESA, discutiu a forma-
ção de assessorias para o estágio e outros aperfeiçoamentos, com vistas
a melhorar a qualidade do estágio supervisionado em administração,
e contribuir para a formação do administrador previsto na reforma
curricular implantada em 1995.

OS OBJETIVOS DO CURSO E O PERFIL


PROFISSIOGRÁFICO DO ADMINISTRADOR DA UNIMEP

O Projeto Pedagógico do Curso de Administração, que definiu


seus objetivos bem como o perfil profissiográfico do profissional de
administração a ser formado, considerou princípios da Política Acadê-
mica, em particular os ligados à ética que rege o projeto pedagógico
da UNIMEP – a construção da cidadania enquanto patrimônio coletivo
da sociedade civil.30 Assim, os objetivos do curso, embora implícitos
nos debates e considerados na reforma curricular, foram, enfim, defi-
nidos concretamente no Projeto Pedagógico aprovado em 1998, re-
fletindo todos os pressupostos legais e teóricos já resgatados, mas tam-
bém, e especialmente, as diretrizes da Política Acadêmica da UNIMEP,
aprovada em 1992. Definiu-se, assim, que todo o esforço do Curso de
Administração estaria voltado a estabelecer, com os discentes, o desen-
volvimento de habilidades de gestão, tanto as ligadas às técnicas ad-
ministrativas quanto às ligados à postura do profissional: empreende-
dorismo, competência contextual (compreensão do meio social, polí-
tico, econômico, cultural em que o administrador está inserido), con-
ceitual (integração da teoria à prática), ética, postura para educação
continuada, comunicação interpessoal, atuação multidisciplinar e em
equipe. A preocupação com a responsabilidade social também trans-
pareceu como objetivo do curso, em reflexo aos princípios da Política
29 HENRIQUE, 1994.
30 Projeto Pedagógico do Curso de Administração, 1998, p. 68.

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6978_Impulso_26.book Page 187 Wednesday, October 1, 2003 1:07 PM

Acadêmica institucional, bem como a articulação do ensino com a pes-


quisa e a extensão, comprometidos com a realidade brasileira.31
O perfil profissiográfico também é reflexo da ética unimepiana,
que busca a formação de um profissional que se atenha não somente
aos “objetivos organizacionais”, porém que nesse esforço, aja com éti-
ca, seja promotor de novas relações produtivas e sociais, que levem à
melhoria da qualidade de vida e que reflita um administrador com res-
ponsabilidade social.32

CONCLUSÕES
Toda a evolução ocorrida no ensino da administração no país
mostra as preocupações com a necessidade de um aperfeiçoamento
constante, na busca de uma adequação a uma sociedade em contínua
mutação, devendo, ainda, envolver-se com a ideologia e filosofia de
educação da IES que oferece o curso. O currículo deve não só adequar-
se às necessidades do mercado de trabalho, mas também constituir-se
em “agente transformador” e “promotor de novas relações produtivas
e sociais”.33
Refletidas no Curso de Administração da UNIMEP, tais preocupa-
ções materializaram-se com apoio nas diretrizes da Política Acadêmica
da instituição, que definiu sua preocupação em dar ao formando a du-
pla competência: a técnica e a do administrador enquanto cidadão e
agente de mudanças para uma sociedade mais justa. Tais diretrizes nor-
tearam as discussões sobre perfil do profissional pretendido, a reforma
curricular realizada e o projeto pedagógico definido.
Na reforma curricular implantada em 1995, novas disciplinas fo-
ram incluídas no sentido de atender a tais preocupações. Refletem
também algumas das características do perfil do administrador e de
suas habilidades, identificadas na pesquisa PHAD/96. Dessa forma, en-
tre outras alterações curriculares, foram incluídas:
a) criação de novos negócios: buscando desenvolver no aluno o
espírito empreendedor;
b) ética profissional: contemplando não só as diretrizes da Polí-
tica Acadêmica da UNIMEP, como também as características
do perfil citado na pesquisa PHAD;
c) seminários em administração: nessa disciplina, uma ementa
flexível permite a atualização permanente do currículo, con-
dizente com as alterações nos cenários nacional e internacio-
31 UNIMEP, 1992, pp. 75-76.
32 Ibid., p. 77.
33 ANDRADE, 1997, p. 25

impulso 187 nº26


6978_Impulso_26.book Page 188 Wednesday, October 1, 2003 1:07 PM

nal. Em 1999, por exemplo, o conteúdo abordado está vin-


culado aos estudos ligados ao comércio exterior.
As alterações do estágio supervisionado, convalidando a elabo-
ração da monografia de conclusão de curso, a partir da redação de um
projeto de pesquisa inicial, ligado a uma situação prática de uma or-
ganização, reforçaram o esforço em oferecer ao aluno algumas das ha-
bilidades identificadas na pesquisa PHAD: espírito crítico, capacidade
de comunicação, decisão, entre outras.
Resumindo, o ensino da administração no Brasil evoluiu de um
sistema pragmático, pré-definido, estático, praticamente padronizado
em nível nacional, através da definição inicial do currículo mínimo,
para um ensino voltado às necessidades regionais, na medida em que
a Resolução 02/93 flexibilizou o conceito do currículo mínimo, am-
pliando a carga horária à disposição das instituições de ensino para a
adequação ao perfil pleiteado pela sociedade em que elas se inserem.
Nessa abertura, as discussões sobre o perfil do profissional levaram ao
surgimento de uma maior preocupação com o organismo social das
organizações e a formação mais humanística – leia-se cidadã – do pro-
fissional da área. O processo de avaliação iniciado pelo Ministério da
Educação, embora não seja prerrogativa unicamente do curso, cons-
tituiu-se numa alavanca que impulsiona as lideranças acadêmicas na
busca de uma melhoria permanente na qualidade do ensino, englo-
bando todo o sistema social envolvido na formação de profissionais –
professores, dirigentes, alunos, funcionários e organizações –, numa
dinâmica de atuação conjunta e co-responsável pela formação de pro-
fissionais de administração dos quais a sociedade possa se orgulhar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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UNIMEP – Universidade Metodista de Piracicaba. Diretrizes para o Plano de Tra-
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Resenhas
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Crítica dos Fundamentos


da Psicologia –
A Psicologia e a Psicanálise
GEORGES POLITZER

Editora UNIMEP: Piracicaba, 1998. Trad. Marcos Marcio-


nilo e Yvone Maria de Campos Teixeira da Silva; rev. téc.
Márcio Mariguela; e prefácio de Osmyr Gabbi Faria Jr.,
194p., ISBN 85-85541-08-3
Título original: Critique des Fondements de la Psychologie –
La psychologie et la psychanalyse (PUF, 1994 [Rieder
1928]).

Q uer no original francês ou bem mais freqüentemente na tra-


dução em espanhol, o clássico de Politzer constituiu talvez o
principal texto de natureza epistemológica a que os profes-
sores de filosofia dos cursos de psicologia da década de 60 recorriam
FRANKLIN WINSTON GOLDGRUB
Mestre em Filosofia e doutor em
Lingüística (PUC-SP). Professor da
Faculdade de Psicologia da PUC-SP.
Área de atuação: Psicanálise.
sanlorenzo@mail.com
para propor aos alunos a discussão ineludível acerca dos fundamentos
de sua ciência. A referência politzeriana foi-se perdendo lenta e lamen-
tavelmente ao longo dos anos, caindo num esquecimento cujas razões
são de natureza variada. Talvez Politzer tenha sido relegado ao limbo
dos autores tão mencionados quanto ignorados em virtude da profun-
didade de sua análise, que exigia uma atitude diferente da habitual lei-
tura dinâmica predominante em nossos dias (não apenas no meio
universitário), ou quem sabe por tomar a psicanálise como tema pri-
vilegiado de sua reflexão, ou eventualmente pelo tom aberta e acer-
bamente crítico com que denunciava os simulacros de ciência forne-
cidos pelas teorias psicológicas em voga. Tais alternativas certamente
não são excludentes entre si nem em relação a outras explicações pos-
síveis.
Entretanto, e contra toda expectativa, o exílio pode ser benéfico.
Borges dizia que os clássicos devem sua condição a uma espécie de re-
conhecimento tão inexplicável como infalível, cujo efeito mais cons-
tante é a sensação de que certos livros não poderiam absolutamente

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não ter sido escritos. Seja tal descrição aplicável ou não à Crítica..., o
certo é que sua publicação em português se reveste de um valor ines-
timável. O primeiro argumento para justificar a afirmação anterior é
o de que, no que se refere à questão epistemológica, a psicologia per-
manece na mesma posição descrita por Politzer em 1928, ou seja, sob
tutela. Quer seduzida pela eficácia das ciências naturais no plano me-
todológico, quer engajada eticamente à atitude crítica das ciências so-
ciais face a uma realidade socioeconômica caótica, ela continua inca-
paz de “estudar fatos irredutíveis aos objetos de outras ciências” (Crí-
tica..., p. 182). Poder-se-ia mesmo dizer que a situação se agravou, na
medida em que a revolução farmacológica tem oferecido novos argu-
mentos ao reducionismo orgânico enquanto a globalização da econo-
mia, com suas seqüelas, realimenta a crença de que o consultório do
psicólogo não passa de uma “ilha da fantasia” escapista em meio ao
turbulento mar dos conflitos sociais.
Por outro lado, se a inquirição preconizada por Politzer encon-
trou eco na subversão lacaniana que na década de 50 pôs de manifesto
as insuficiências epistemológicas da psicanálise, propondo uma discus-
são extremamente fecunda, a partir dos anos 70 as teses revolucionárias
foram adquirindo progressivamente um caráter dogmático ao mesmo
tempo em que a aliança com a lingüística e a antropologia estrutural era
abandonada em detrimento de uma aproximação com a lógica, a mate-
mática e a topologia. Esse movimento teórico derivou numa espécie de
sistema filosófico (que já foi chamado de “teologia negativa”), cuja re-
lação com a psicanálise é sobretudo enigmática, permanecendo even-
tualmente caucionada pela trajetória anterior de Lacan.
A Crítica... já propunha a discussão epistemológica no fim da dé-
cada de 20 e concretizava essa preconização pela análise de um outro
clássico, A Interpretação dos Sonhos, publicado no penúltimo mês do
último ano do século xix. Salvo engano, Politzer inaugura um tipo de
leitura crítica em relação à obra de Freud caracterizada pelo exame da
coerência interna do texto freudiano, enfatizando como inovação fun-
damental do fundador da psicanálise o que podemos chamar hoje em
dia de teoria do sujeito. A releitura do livro em seu septuagésimo ano
mostra-o absolutamente atual. Como assinala Osmyr Gabbi Faria Jr.
no prefácio da edição brasileira, boa parte da temática e das propostas
lacanianas encontra aí a sua fonte. Para dar alguns exemplos, lembre-
mos as invectivas dirigidas ao pseudocientificismo das correntes psico-
lógicas (p. 38), a denúncia da redução da psicanálise ao campo da afe-
tividade (p. 50), a crítica ao organicismo (p. 59), a distinção entre o je
e o moi (p. 68), o assinalamento da dilaceração imposta ao pensamen-

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to de Freud pelo contraste entre as descobertas devidas à experiência


clínica e o arcabouço teórico-epistemológico positivista em que elas
não poderiam deixar de ser veiculadas na época (pp. 51-78), o ques-
tionamento da noção de inconsciente enquanto designação de algo
“interiormente separado” do sujeito (capítulo IV), impasse que Lacan
efetivamente reconheceu e trabalhou via argumentação metaforizada
pela banda de Moebius, e a insistência em prover a psicanálise de uma
teoria do sujeito definida pelo sentido (p. 68), em cujo horizonte se di-
visa a questão da linguagem.
Como o prefácio assinala e já se tornou notório, Lacan é
pouquíssimo propenso a aceitar questionamentos (característica igual-
mente presente no kleinismo) e revela uma dificuldade incomensurá-
vel em reconhecer dívidas teóricas. A leitura de Politzer dificulta as coi-
sas para os hagiógrafos que vêem no teórico francês um gênio causa
sui; com referência ao dogmatismo, a Crítica... proporciona, com sua
atitude indagadora e insubmissa, um excelente antídoto à subserviên-
cia intelectual. De fato, é chamativa a distância que separa as correntes
psicanalíticas contemporâneas, cujos chefes de escola se arrogam o
dom da infalibilidade, da atitude freudiana, fundamentalmente auto-
crítica. A atual divisão da psicanálise em seitas incomunicáveis, cujo
vernáculo se assemelha mais a uma litania recitada com o corpo incli-
nado na direção de Paris ou Londres, constitui talvez o indício mais
evidente do esprit de corps e da atitude de veneração perante o mestre
de ocasião. O estilo de Politzer lembra o Lacan dos anos 50 quanto à
ironia demolidora e à irreverência; por outro lado, e na contramão do
hermetismo que recomenda o turvamento das águas para simular pro-
fundidade, o livro alia a transparência estilística à solidez argumenta-
tiva e à originalidade. Com o que fica demonstrado que a inteligibili-
dade de um texto não é refém da complexidade de seus temas.
Bem traduzido e editado de maneira atraente, o volume é valo-
rizado por um prefácio instigante de Osmar Gabbi Faria Jr, que res-
salta com inteira propriedade a dívida politzeriana do autor dos Escri-
tos e cujos aspectos polêmicos não é possível comentar nesta resenha,
na medida em que se referem à complexa questão da relação entre in-
consciente e linguagem, objeto de um célebre debate entre Laplanche
e Lacan. A contracapa, a “orelha” e as notas da revisão técnica, a cargo
de Márcio Mariguela, situam o leitor, dando-lhe a referência adequada
tanto em termos biográficos como conceituais. Conforme menciona-
do na “orelha”, a publicação da Crítica dos Fundamentos da Psicologia
no ano em que se comemora a efeméride centenária d’A Interpretação
dos Sonhos é extremamente oportuna, já que alimenta e enriquece a
reflexão suscitada pela obra-prima freudiana.

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A Inocência e o Vício:
Estudos Sobre o
Homoerotismo
J. FREIRE COSTA

Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2ª ed., 1992, 195p.,


ISBN: 85-85427-17-5

A exemplo de seus trabalhos anteriores,1 Jurandir Freire Costa


não se revela um psicanalista que se acomodou na repetição
dos postulados freudianos, em vista de situar a psicanálise
como mais uma produção cultural. A preocupação do autor em elu-
cidar por quais vias perpassa o discurso psicanalítico; verifica-se em
suas obras, pelo exemplo da noção freudiana de perversão. Na elabo- DANIELA MAULE BALBUENO
ração desse conceito, Freud teria se contaminado com o preconceito Psicóloga pela UNIMEP
dbalbueno@yahoo.com.br
psiquiátrico do século XIV.
Apoiando-se em uma visão psicanalítica na qual as idéias, funcio-
nando como instrumentos de ação, só têm validade se produzem efei-
tos práticos, Costa considera que a noção de homossexualidade como
perversão é indefensável. Indefensável pela impossibilidade da existên-
cia de uma estrutura homossexual definida.
O autor demonstra que, ao utilizarmos o termo homossexualis-
mo, nos vemos implicados no constructo histórico-ideológico-político-
econômico-libidinal burguês do século XIX, o qual caracteriza a huma-
nidade como dividida em hetero e homossexuais, correlativo à normal/
patológico, que transforma as vivências da experiência sexual desses su-
jeitos em desvio de personalidade. Remete à construção histórica a fi-
gura imaginária do homossexual como uma modalidade do humano
(ou desumano) com perfil psicológico único. Falar de homossexualidade
é falar de uma personagem imaginária que teve historicamente a função
de ser a antinorma do ideal de masculinidade burguês.

1Ordem Médica e Norma Familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1979; Violência e Psicanálise. Rio de Janeiro:
Graal, 1984; Psicanálise e Contexto Cultural. Rio de Janeiro: Campus, 1989; entre outros.

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Costa faz um adendo sobre a produção de subjetividade e a lin-


guagem em uma explanação sobre a carga significativa do vocabulário
deste século enquanto prática lingüística que engendra a produção de
subjetividade. Aponta que a tarefa da linguagem não é a de representar,
como defende a psicanálise, mas criar laços discursivos que produzam
subjetividades, o que justifica a escolha do termo homoerotismo ao se
referir a indivíduos homoeroticamente inclinados, em contraposição
ao corrente termo homossexualismo. Analisa qual a ligação da homos-
sexualidade com o problema da Aids: o preconceito sexual que advém
da associação da doença aos homoeroticamente inclinados contém sig-
nificados históricos criados pela linguagem, que passam por diversas
conotações. Podemos visualizá-las no discurso médico como anoma-
lia; no psiquiátrico como neurose; no psicanalítico como perversão; no
senso comum como indecência. Esses discursos incidem na moral des-
ses sujeitos e refletem na maneira como lidam com o contágio da Aids.
Essas etiquetas, atreladas aos sujeitos, garantem o direito da maioria
(heterossexuais) sobre a minoria no que tange às regras e normas estabe-
lecidas no imaginário social de felicidade (ou satisfação) sexual e afetiva.
O homoerotismo é, portanto, uma questão de prática lingüística: não
existe objeto sexual instintivamente adequado. Não há como medir ou
classificar quem é, ou não, mais ou menos homossexual.
No primeiro capítulo, Costa demonstra que, após a primazia
dada à composição da família e a divisão e expansão dos bens, aquilo
outrora tido como um vício que não tinha nome, transformou-se em
um amor que não ousa dizer seu nome pelo medo da exclusão, da
condenação de Deus ou dos homens. Ao iniciar o estudo histórico na
literatura do século XIX sobre o erotismo, o autor sinaliza que o ho-
mossexual era instrumento de denúncia social: por exemplo, a obra de
Balzac revela o homossexual marginal na luta contra o preconceito, fi-
gura que, ao servir de apoio ao contemporâneo movimento gay corre
o risco de universalizar a identidade dos homoeroticamente inclina-
dos, não idêntica a que conhecemos em qualquer tempo ou espaço.
No segundo capítulo, Costa se atém aos impasses da ética natu-
ralista de Gide na fundamentação da vida moral: o imoral é anti-na-
tural. Se a natureza segue sempre seu curso natural, fugir a essa ten-
dência é vício e doença, o que em outros tempos significava crime. A
ideologia que atravessa o pensamento de Gide é a de afirmar a supe-
rioridade do liberalismo burguês; o homossexual é o parasita, dispen-
sável lugar fantasmagórico de outro do homem normal.
O autor continua sua exposição apontando que o ideal moral as-
sociado às práticas sexuais nem sempre esteve ligado à relação conju-

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gal, como na Grécia Clássica na qual imperava moralmente as relações


pederásticas como modelo de satisfação sexual. Após a expansão da
moral cristã no emburguesamento das relações, a ética sexual se con-
solidou, no imaginário social, na conjugalidade, o que é patente na fala
dos homens adultos que procuraram análise com a queixa de homos-
sexualismo.
Como clínico, Costa observa a teoria psicanalítica de perversão
nos pontos em que se contradiz. Atenta que a concepção da perversão
ligada às inclinações homoeróticas está sujeita a uma dupla crença: a
da existência de um homossexualismo definido e a de que todo tipo
de homossexualismo é perversão. Para o autor, Freud se “contami-
nou” com a idéia psiquiátrica e preconceituosa de seu momento his-
tórico e não defende a conceituação por não haver uma teoria sobre
o fenômeno que seja coerente: nem o efeito da autonomia das pulsões
parciais frente ao primado genital, nem uma falha identificatória na
travessia do Édipo, nem tampouco a posição subjetiva de desafio e
transgressão à lei da castração, ou ainda a recusa em aceitar a diferença
dos sexos são elementos específicos da chamada perversão: podemos
encontrá-los em outras estruturas clínicas como neuroses e psicoses.
No capítulo que se segue, Costa afirma que Gide e Proust em
seus textos confirmam a idéia de que a humanidade se divide em he-
teros e homossexuais. O autor comenta nas obras de Proust a lingua-
gem da inocência e do vício. No seu capítulo último, parte de um olhar
de perceber como os indivíduos se rotulam. Explicita que a identidade
sexual dos sujeitos da pesquisa são apreensões da cultura. Distingue, a
partir de outros autores, os quatro estágios de aquisição dessa identi-
dade, ressaltando que nem todo indivíduo obrigatoriamente chega ao
último. Resumidamente os estágios são os seguintes: sentir-se diferen-
te; dar sentido (significado) a essa diferença; reconhecer-se pelo outro
e postumamente ter aceitação de si mesmo.
Nas entrevistas o autor constata que independente da educação
dos sujeitos, estes sempre se confrontam com a desaprovação da
inclinação sexual. Se a educação é liberal, a desaprovação é de ordem
natural. Segundo ele, na parceria homoerótica pesquisada não se en-
controu um vocabulário de expressão amorosa comum aos heterosse-
xuais. O indivíduo homoeroticamente inclinado acata a interdição da
maioria se sentindo “sujo” e usurpador ao apropriar-se do vocabulário
dessa maioria. Assim, o homoerótico está fadado a não poder se can-
didatar ao ideal do amor romântico e conjugal.
Nota também que a prática sexual masculina por si já carrega a
identidade do sujeito de aspectos afeminados. Não há relação entre

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homens na qual estes possam ser identificados como tais. A desvalo-


rização da relação homoerótica se encontra na incapacidade de repro-
dução. Constata ainda que a diversidade de práticas, conduta e desejos
homoeróticos revela que não há homogeneidade de respostas frente à
Aids.
A diversidade de realidades afetivas e sexuais declara que o termo
homossexual estigmatiza condutas e desejos por tais realidades se afas-
tarem do código moral dominante. A identidade gay, que promove ao
indivíduo rotulação positiva de sua conduta, permite respostas diante
do risco da Aids. Aqueles que se identificarem com a ideologia do agres-
sor não estão habilitados a perceber que não fazem fronteira com a nor-
malidade da conduta sexual.
O autor separa os indivíduos que, identificados com as regras
morais oitocentistas, apresentaram preconceito como proteção contra
o risco de contágio, pois o risco da Aids seria a revelação de suas iden-
tidades. Aqui o próprio preconceito é aliado na resguarda contra a Aids.
O outro grupo seria aquele que se protege contra o preconceito e se
inclui na identidade gay como modelo de identidade estratégica de re-
sistência, que, apesar de reforçar a idéia de existência de uma identi-
dade homossexual, ao combater a Aids se protegendo do risco está ao
mesmo tempo lutando a favor do direito de livre expressão social do
homoerotismo.
Nos outros indivíduos, a realização do projeto do eu ideal está
afastada. O uso da proteção contra a Aids é um estorvo ou não faz sen-
tido. Ao contrário, o incluído na identidade gay utiliza de recursos aos
quais a preservação da vida é aliada pela luta na possibilidade de ex-
pressão e satisfação sexual.
Aos psicoterapeutas e analistas sugere-se que observem os sujei-
tos que procuram análise, queixando-se de homossexualismo, como
indivíduos inseridos em um determinado contexto histórico-econômi-
co-político-libidinal e/ou quantas ordens mais estiverem atravessadas
em suas queixas. Ou a atuação clínica pode tornar-se dispositivo de
controle do status quo, na medida em que se torna sistema reprodutor
de ideologia colocando o inconsciente enquanto fator individual,
como isentor dos problemas socioeconômicos, podendo ser agente
docilizador dos sujeitos.
Sabendo que a subjetividade é um efeito das práticas lingüísticas
e do sujeito pertencente a essa rede lingüística, torna-se inconcebível
ao terapeuta uma prática que pretenda encaixar o paciente sob um
modelo ou estrutura de personalidade. Dessa maneira, avaliar de
modo maniqueísta se o sujeito é perverso ou não, dentro das possibi-

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lidades de satisfação sexual, é utilizar de psicanalismo, descontextua-


lisando a vivência de cada sujeito como se este apresentasse uma es-
trutura comum a todos.

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A Realidade Onírica
Dream Reality

O s sonhos nunca mais seriam os mesmos... depois de Freud.


Nos estertores de uma centúria que acaba junto com um mi-
lênio, apenas cem anos nos separam do início daquilo que
deve ser considerada uma das mais importantes odisséias do espírito,
agora tão familiar como outrora surpreendente. Atualmente pode-se
dizer que o novecento foi, sem dúvida, uma época freudiana; ontem,
porém, não havia certeza alguma que permitisse prever até que ponto
o século XX seria permeado, moldado e transfigurado pela descoberta
do inconsciente.
Numa cama imperial num quarto burguês da belle époque vie-
nense, o Dr. Sigmund Freud dormia e, para além de roncos, bocejos e
poluções noturnas, também sonhava, igual ao mais comum dos mor- OSCAR CESAROTTO
tais. No dia seguinte, talvez lembrasse alguma coisa da vivência notur- Psicanalista, doutor em Comunicação
& Semiótica (PUC-SP). Autor de Um
na; em todo caso, o pouco que conseguia rememorar não lhe resultava Affair Freudiano e No Olho do Outro,
ambos pela Editora Iluminuras.
indiferente nem o deixava impassível. Como tantos outros, antes e de-
pois, tinha a intuição de que, mesmo sem entender muito, algo nele –
durante o sono – lhe dizia respeito, ainda que de forma misteriosa e in-
sensata.
Naqueles tempos, o discurso competente dos saberes positivos,
científicos e universitários, consideravam o fenômeno do sonho como
um subproduto da atividade cerebral no estado de repouso. Um pa-
radoxo era formulado, mas sem que lhe fosse outorgado quase ne-
nhum relevo: o corpo, sedente, precisando de descanso, permaneceria
imobilizado por algumas horas; enquanto isso, a mente continuaria
funcionando por inércia. Sem o controle racional da volição, porém,
acabava provocando imagens e sensações sem lógica nem coerência,
carentes de qualquer nexo. Ideologicamente, tanto a Medicina quanto
a incipiente Psicologia de então eram coincidentes na depreciação da
atividade onírica.
Mas a discussão seria bem outra, de suma importância
epistemológica, desdobrada ao longo de duas perspectivas convergen-

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tes. Em primeiro lugar, existia, para o Dr. Freud, um desafio clínico.


Desde os começos da sua prática, defrontou-se com a histeria, entida-
de patológica que não apenas o confrontou com uma freqüente
impotência profissional, como também o obrigou a apurar uma tera-
pêutica inédita para evitar contínuos fracassos. Tratava-se dos primó-
rdios da análise; o marco inaugural, tanto de uma escuta inaudita
quanto de uma procura etiológica insólita, tendo a sexualidade na mi-
ra, como hipotética causa das neuroses.
Momentos heróicos, nos quais tudo estava em questão, a come-
çar pelas insuficiências dos tratamentos tradicionais. As figuras de
Charcot, Breuer e Fliess eram os vultos com os quais Freud dialogava
transferencialmente, na persistência dos seus esforços. A certa altura
dos acontecimentos, suspeitava que os sintomas eram efeitos de trau-
mas; estes, quase sempre vividos na infância, e ainda por cima, de níti-
do conteúdo erótico. Mais: adultos mal-intencionados seriam os res-
ponsáveis pelas marcas do sexo na alma dos futuros sujeitos histéricos.
A teoria da sedução, rapidamente formulada, presto foi abando-
nada, quando ficou evidente que nem sempre os relatos dos pacientes
poderiam ser confiáveis e/ou verossímeis. Assim, as noções de realida-
de psíquica e de fantasia foram os saldos a favor a partir do abandono
das idéias prévias. Contudo, Freud não deixou de ouvir o que as his-
téricas lhe contavam, em especial seus sonhos. Considerando tal ma-
terial significativo para a resolução do enigma neurótico, o que antes
seria desprezado foi elevado à categoria de imprescindível para a di-
reção da cura. Seria possível apontar, aqui, um deslizamento signifi-
cante que ilustraria, de maneira concisa, esse período da gesta freudi-
ana: do trauma ao traum (sonho, em alemão), na busca ininterrupta
da etiologia das neuroses.

______

Em segundo lugar, estava em jogo o próprio Freud, sua verdade


e seu destino. Por isso, assim como prestava atenção aos sonhos dos
outros, ficou também particularmente atento aos seus. Esse capítulo,
tanto da sua história, quanto do movimento psicanalítico, convencio-
nou-se chamar de auto-análise. A soma de todos essas tentativas, con-
jecturas, constatações e inferências desembocou, no fim do século XIX,
na redação, e posterior publicação, de A Interpretação dos Sonhos,
obra-prima de uma nova e específica disciplina de aplicação prática e
cunho científico, a Psicanálise.

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Naquele livro, Freud postulou inúmeros assuntos, todos de re-


levante envergadura: os sonhos não são produtos desprezíveis do psi-
quismo; podem parecer ininteligíveis, mas têm um sentido; o simbo-
lismo pelo qual são construídos é o mesmo da poesia e dos hieróglifos,
ou seja, retórica da melhor qualidade; há uma lógica, tanto na feitura
do conteúdo manifesto quanto na ocultação do conteúdo latente; de
fato, teriam uma utilidade, que é preservar o dormir; para tanto rea-
lizam desejos, e essa seria sua função primordial. A resultante disso tem
uma denominação – inconsciente –, conceito fundamental e nome
próprio da outra cena.
Nesse ponto, convém fazer um rápido recenseamento da coisa
freudiana. A realização de desejos é o âmago de tudo, o que poderá ser
compreendido desde que seja definido o que entender por desejo e,
obviamente também, por realização.
No texto de Freud, em que a quase totalidade dos exemplos é
constituída pelos sonhos do próprio autor, nem sempre é possível
achar uma absoluta uniformidade a respeito. Às vezes o desejo que um
sonho realiza tem a ver com o conforto do sonhante; outras vezes, es-
taria em pauta uma vontade antiga, para nada contemporânea, apesar
de atualizada pelos restos diurnos; ainda, pode se tratar de um voto
(wunsch), uma expressão desiderativa que em algum momento foi
formulada, mas nunca concretizada. Também entrariam na mesma al-
çada aquele tipo de intenções desde sempre e para sempre inviáveis,
como seria o caso das tendências edipianas.
O campo freudiano do desejo dista muito de ser homogêneo, e
a teoria psicanalítica precisou esperar algumas décadas até que outro
praticante, Jacques Lacan, a incrementasse com um panorama bem
mais completo, abrangente e minucioso. Deve-se a Lacan, nesse par-
ticular, uma citação que serve como referência, não só primeva como
derradeira, do filósofo Spinoza: O desejo é a essência do homem.
Para concluir de maneira apropriada a homenagem que a centúria
que acaba deve a Freud, à interpretação dos sonhos e ao inconsciente,
lembremos mais uma vez um exemplo clássico. O sonhante – Herr
Sigmund – deitou na cama já sentindo sede, a ponto de beber antes de
dormir o copo d’água costumeiramente localizado no seu criado-mudo.
Ainda sedento durante a noite, sonhou que beberia do copo da sua es-
posa, que estaria do lado dela. Mas Frau Martha lhe oferece um vaso
cinerário etrusco, trazido por ele da última viagem à Itália, e dado de
presente. Ali, então, o líquido contido estava tão salgado que, mais do
que aplacar a sede, acabou por acordá-lo.

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Muito bem: este sonho parece ser o paradigma da categoria dos


chamados “de comodidade”, na qual interessa que a realização onírica
de uma necessidade faça o sonhante não precisar acordar para resolver
sua urgência. Entretanto, seria apenas isso, sede tão-só, sem nenhuma
conotação outra? Como Freud nunca deitou num divã, nunca sabe-
remos. Qualquer analista abelhudo, porém, desconfiaria daquele gosto
salgado do recipiente feminino oferecido à boca do sedento...
Porque, no fim das contas, mesmo que toda realização seja me-
diada pela significação, portanto deslocada e metaforizada, a realidade
do inconsciente é sempre sexual. Freud teria dormido no ponto?

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Periodismo Honesto
Honest Journalism

U n domingo en la tarde de la primavera paceña de 1955, Jorge


Carrasco Villalobos, uno de los dueños de El Diario, el de-
cano de la prensa boliviana, se asomó por la sección deportes
del periódico mostrando en el rostro su enfado. Su equipo de fútbol
favorito, el de la familia, había perdido un encuentro del torneo local.
El que en 10 años más sería el director-propietario indiscutido del pe-
riódico, siguiendo una tradición familiar que se remonta a principios
de siglo, se apoyó con un brazo en el marco de la puerta como para
impedir que nadie saliera o entrara.*
¿Cómo andas Jorge?, le tuteó el jefe de la sección deportes, don
Julio Borelli Viteritto, mientras los otros dos periodistas de la sección,
Horacio Corro Geldrez y Carlos Carrasco Ballivián, doblaban sus es- HERNÁN MALDONADO BORDA*
paldas sobre sus máquinas Hermes en un tecleteo feroz. Jornalista e advogado, licenciado
em Ciências Políticas e Sociais
Sentado en la oficina en mi condición de aprendiz de periodis- bomaher@aol.com
mo, casi pude palpar la tensión del momento. Parecía que situaciones
similares se habían vivido ya anteriormente.
Carrasco Villalobos dijo: “Don Julio, quiero ver mañana en
grandes letras que Always Ready perdió por culpa del árbitro”.
– Discúlpame Jorge, pero yo no puedo escribir nada de eso, por-
que no corresponde a la verdad – le dijo don Julio.
Carrasco Villalobos no respondió. Se dio media vuelta furioso y
apresuró el paso hacia su vivienda, ubicada en el mismo edificio.
Don Julio, sereno, se quedó sentado en su escritorio con la ca-
beza gacha entre las palmas de las manos. Nadie se atrevía a interrum-
pir sus pensamientos, cualesquiera que fueran.
Yo pensé que quizás estaba reconsiderando la situación. Talvez
había un ángulo desde el que podría satisfacerse a Carrrasco Villalo-
bos. Recordé que, con don Julio como entrenador, Always Ready ha-

* Nasceu em La Paz, Bolívia, onde trabalhou nos jornais El Diario, Presencia e La Tarde e nas rádios
Amauta e Fides. Por quase um quarto de século foi correspondente das agências Ansa, EFE e United Press
International em diversas cidades de América Latina e nos Estados Unidos, país em que reside atualmente.
Sua página na Internet é http://members.tripod.com/˜Bolivia_TL/

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bía conquistado su único título en el fútbol boliviano. Quizás el noble


uruguayo amaba también a Always Ready.
Pensé también en los años en que estaba en el cargo; que El Di-
ario era su única fuente de ingresos...
De pronto don Julio se incorporó para dar el mensaje que me ha
inspirado en este casi medio siglo de trajinar periodístico:
– Jamás venderé mi opinión al vil precio de la necesidad – pro-
clamó.
Don Julio perdió el cargo y yo, casi un chiquillo, me uní a él en
una relación de maestro-amigo-alumno que duraría 15 años o, lo que
es lo mismo, una década y media de formación en la escuela de la ho-
nestidad periodística.
A la luz de esta anécdota me pregunto: ¿actualmente cuántos pe-
riodistas podrían decir lo mismo que don Julio Borelli? Porque en los
umbrales del nuevo siglo una de las grandes interrogantes es saber si
la ética periodística sobrevivirá a los peligros que la acechan.
En la mayor parte de los países latinoamericanos, el llamado
“cuarto poder” del Estado es todavía uno de los más confiables para
nuestras sociedades, pero el periodismo honesto es bombardeado to-
dos los días por los intereses políticos, económicos, la tenaz compe-
tencia etc.
La sobrevivencia periodística misma está en juego. Ya han desa-
parecido los diarios vespertinos y la fuente que los nutría de noticias
allende los mares cerró sus puertas este primero de julio al cancelar la
United Press International sus operaciones en América Latina tras casi
un siglo de existencia. El avance de la tecnología es brutal y el Internet
con su prodigio contribuye al cierre de más diarios. Hace rato que ya
han desaparecido fuentes de trabajo y hasta profesiones completas,
como la de los antiguos cajistas, teletipistas, tituladores, correctores de
prueba, de galera, fundidores de plomo, linotipistas etc.
Los periódicos, tal como hoy los conocemos, parecen ser una es-
pecie en extinción y para sobrevivir se aferran a medicinas de dudosa
legalidad, como aquellos seropositivos y asmáticos que hallan alivio a
su mal en la marihuana. Por eso cabe preguntarse, ¿hasta dónde esa
presión por la sobrevivencia no afectará la ética? ¿Hasta dónde el pe-
riodista mantendrá incólume su moral?
Al entrar a un nuevo siglo vemos ya una mayor predisposición
a hipotecar lo que conocemos como periodismo independiente a los
grandes intereses económicos, basada en la premisa de los expertos de
mercadeo según la cual al público hay que darle lo que le gusta, o ha-
cerle escuchar o ver lo que quiere, especialmente en el terreno depor-

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tivo, el filón que hace vender más a los periódicos y que tiene mayores
patrocinadores en radio y televisión.
Por eso asistimos al florecimiento de los equipos periodísticos al
servicio de clubs con dudoso apego a la imparcialidad. El mercado, se-
gún aquellos expertos, demuestra que el hincha enfrenta diariamente
sus propias tragedias como para restregarle también en las narices el
más reciente fracaso de su equipo favorito.
Entonces lo que hay que hacer, según esos mismos expertos, es
sembrar nuevas ilusiones, abrir nuevas esperanzas. La derrota del úl-
timo domingo es apenas un traspié. Hay otro encuentro a la vista, una
nueva Copa Libertadores, Mercosur, Comebol, Supercopa etc.
Está ocurriendo que esos “periodistas” toman tan a pecho su tra-
bajo para satisfacer al “marketing” que de pronto ni ellos mismos se
dan cuenta que se han puesto la camiseta del club al que representan.
Y ni qué decir cuando en los compromisos internacionales se envuel-
ven con la bandera de su país exacerbando ese nacionalismo malsano
que ha traido consigo a lo largo y ancho del mundo esa cadena de
muertos y heridos.
En Estados Unidos es común que los equipos de football, balon-
cesto, béisbol y fútbol tengan sus propios equipos de radio y televisión
sin que, en términos generales, la imparcialidad haya sufrido menos-
cabo, algo que no está ocurriendo en América Latina donde se exti-
ende cada vez más la moda.
En casos extremos se está llegando al “periodismo taurino” en la
que empresarios inescrupulosos quieren que “su” periodista hable “só-
lo” lo que conviene a sus intereses.
Anecdótico es el caso del empresario Rafito Cedeño que en los
años 70 manejaba casi todo el negocio boxístico en Venezuela. Según
Cedeño, el venezolano Luis “Lumumba” Estaba debía reinar entre los
campeones mundiales del peso minimosca por siempre jamás y por
tanto “sus” periodistas debían ensalzar los grandes merecimientos del
púgil, a pesar de las limitaciones que le imponían sus 38 años a cuestas.
Tan ridículo resultó todo esto que una noche en que Estaba ex-
ponía su cetro ante el mexicano Miguel Canto, sonaba a risa que el re-
lator de Cedeño se esforzara en hacernos ver una pelea que no se daba
en la realidad: “Izquierda de Lumumba, derecha de Lumumba. Lu-
mumba está entero. Lumumba domina la pelea... ¡Epa!; ¿Qué pasó?
¡Se cayó Lumumba! Noqueado Lumumba...” terminó el hombre su
relato.
Y no solamente los empresarios están contratanto cada vez más
a “sus” periodistas, sino los dirigentes en lo que parece una onda epi-

impulso 211 nº26


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démica. Con motivo de la última Copa América, la Federación Boli-


viana de Fútbol admitió haber pagado pasajes, viaticos y estadia a dos
periodistas.
Obviamente estos periodistas no advirtieron que la delegación
oficial de 35 personas fue abusivamente abultada a 65 y tampoco se
enteraron de algunos asuntillos como el de los tres jugadores que se re-
cogieron bastante entrada la madrugada tras el empate sin goles contra
Paraguay.
En materia política, la “imparcialidad periodística” está hacién-
dose más rara. Muchos de los “imparciales” de hoy son los que apa-
recen más tarde como funcionarios públicos.
En otros casos la imparcialidad se ha desvirtuado por el deno-
minado periodismo militante en tanto y cuanto se apoya una causa
que, a juicio del periodista, es la correcta. Se sostiene con cierta lógica,
como afirmaba el argentino Jorge R. Massetti, fundador de Prensa La-
tina que: “somos objetivos, pero no imparciales. Consideramos que es
una cobardía ser imparcial, porque no se puede ser imparcial entre el
bien y el mal”.
Digo cierta lógica, porque si bien no se puede ser imparcial entre
el bien y el mal, tampoco es el periodista quien debe imponer a su lec-
tor, su radio-oyente o televidente, una manera de pensar, y una ma-
nera de actuar.
Esto es tan aborrecible, como la pretensión del empresario, del
promotor, o el dirigente de contratar periodistas que escriban sólo lo
que les interesa, con un gran perdedor: el periodismo honesto.

Miami, julio 1999

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REVISTA IMPULSO
Normas para Publicação
PRINCÍPIOS GERAIS
1 A Revista IMPULSO publica artigos de pesquisa e reflexão acadêmicas, estudos analíticos e re-
senhas nas áreas de ciências sociais e humanas, e cultura em geral, dedicando parte central do
espaço de cada edição a um tema principal.
2 Os temas podem ser desenvolvidos através dos seguintes tipos de artigo:
• ENSAIO (12 a 30 laudas) – reflexão a partir de pesquisa bibliográfica ou de campo sobre de-
terminado tema;
• COMUNICAÇÃO (10 a 18) – relato de pesquisa de campo, concluída ou em andamento;
• REVISÃO DE LITERATURA (8 a 12 laudas) – levantamento crítico de um tema, a partir da bi-
bliografia disponível;
• COMENTÁRIO (4 a 6 laudas) – nota sobre determinado tópico;
• RESENHA (2 a 4 laudas) – comentário crítico de livros e/ou teses.
3 Os artigos devem ser inéditos, vedado o seu encaminhamento simultâneo a outras revistas.
4 Na análise para a aceitação de um artigo serão observados os seguintes critérios, sendo o autor
informado do andamento do processo de seleção:
• adequação ao escopo da revista;
• qualidade científica, atestada pela Comissão Editorial e por processo anônimo de avaliação
por pares (peer review), com consultores não remunerados, especialmente convidados,
cujos nomes são divulgados anualmente, como forma de reconhecimento;
• cumprimento das presentes Normas para Publicação.
5 Uma vez aprovado e aceito o artigo, cabe à revista a exclusividade em sua publicação.
6 Os artigos podem sofrer alterações editoriais não substanciais (reparagrafações, correções gra-
maticais, adequações estilísticas e editoriais).
7 Não há remuneração pelos trabalhos. O autor de cada artigo recebe gratuitamente 03 (três)
exemplares da revista; no caso de artigo assinado por mais de um autor, são entregues 05 (cin-
co) exemplares. O(s) autor(es) pode(m) ainda comprar outros exemplares com desconto de
30% sobre o preço de capa. Para a publicação de separatas, o autor deve procurar diretamente
a Editora UNIMEP.
8 Os artigos devem ser encaminhados ao editor da Impulso, acompanhados de ofício, do qual
constem:
• cessão dos direitos autorais para publicação na revista;
• concordância com as presentes normatizações;

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• informações sobre o autor: titulação acadêmica, unidade e instituição em que atua, ende-
reço para correspondência, telefone e e-mail.

ESTRUTURA
9 Cada artigo deve conter os seguintes elementos, em folhas separadas:
a) IDENTIFICAÇÃO
• TÍTULO (e subtítulo, se for o caso), em português e inglês: conciso e indicando claramente
o conteúdo do texto;
• nome do AUTOR, titulação, área acadêmica em que atua e e-mail;
• SUBVENÇÃO: menção de apoio e financiamento recebidos;
• AGRADECIMENTO, se absolutamente indispensável.
b) RESUMO E PALAVRAS-CHAVE
• Resumo indicativo e informativo, em português (intitulado RESUMO) e inglês (denomi-
nado ABSTRACT), com cerca de 150 palavras cada um;
• para fins de indexação, o autor deve indicar os termos-chave (mínimo de três e máximo de
seis) do artigo, em português (palavras-chave) e inglês (keywords).
c) TEXTO
• texto deve ter uma INTRODUÇÃO, um DESENVOLVIMENTO e uma CONCLUSÃO. Cabe ao au-
tor criar os entretítulos para o seu trabalho. Esses entretítulos, em letras maiúsculas, não são
numerados;
• no caso de RESENHAS, o texto deve conter todas as informações para a identificação do livro
comentado (autor; título; tradutor, se houver; edição, se não for a primeira; local, editora;
ano; total de páginas; título original, se houver). No caso de TESES, segue-se o mesmo prin-
cípio, no que for aplicável, acrescido de informações sobre a instituição na qual foi pro-
duzida.
d) ANEXOS
• Ilustrações (tabelas, gráficos, desenhos, mapas e fotografias).
e) DOCUMENTAÇÃO
NOTAS EXPLICATIVAS:1 serão dispostas no rodapé, remetidas por números sobrescritos no cor-
po do texto.
CITAÇÃO com até três linhas: deve vir no bojo do parágrafo, destacada por aspas (e não em
itálico), após as quais um número sobrescrito remeterá à nota de rodapé com as indicações do SO-
BRENOME do autor, ano da publicação e página em que se encontra a citação.2
CITAÇÃO igual ou maior a quatro linhas: destacada em parágrafo próprio com recuo de qua-
tro centímetros da margem esquerda do texto (sem aspas) e separado dos parágrafos anterior e
1 Essa numeração será disposta após a pontuação, quando esta ocorrer, sem que se deixe espaço entre ela e o número sobrescrito da nota. Como o
empregado nas Referências Bibliográficas, nas notas de rodapé o SOBRENOME dos autores, caso necessário, deve ser grafado em maiúscula,
seguido do ano da publicação da obra correspondente a esta citação. Ex.: CASTRO, 1989.
2 FARACO & GIL, 1997, pp. 74-75.

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posterior por uma linha a mais. Ao fim da citação, um número sobrescrito remeterá à nota de ro-
dapé, indicando o SOBRENOME do autor, ano da publicação e a página em que se encontra esta
citação.3
Os demais complementos (nome completo do autor, nome da obra, cidade, editora, ano de
publicação etc.) constarão das REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, ao fim de cada artigo, seguindo o pa-
drão abaixo.
A lista de fontes (livros, artigos etc.) que compõe as Referências Bibliográficas deve aparecer
no fim do artigo, em ordem alfabética pelo sobrenome do autor e sem numeração, aplicando-se
o seguinte padrão:

LIVROS
SOBRENOME, N.A. (nomes do autor abreviados, sem espaçamento entre eles; nomes de
até dois autores, separar por “&”, quando houver mais de dois, registrar o primeiro de-
les seguido da expressão “et al.”). Título: subtítulo. Cidade: Editora, ano completo, vo-
lume (ex.: v. 2). [Não deve constar o número total de páginas]. Ex.:
FARACO, C.E. & MOURA, F.M. Língua Portuguesa e Literatura. São Paulo: Ática, 1997,
v. 3.
FARIA, J. A Tragédia da Consciência: ética, psicologia, identidade humana. Piracicaba: Edi-
tora Unimep, 1996.
GARCIA, E.E.C. et al. Embalagens Plásticas: propriedades de barreira. Campinas: CETES/
ITAL, 1984.
GIL, A.C. Técnicas de Pesquisa em Economia. São Paulo: Atlas, 1991.
• MAIS DE UMA CITAÇÃO DE UM MESMO AUTOR: após a primeira citação completa, introduzir
a nova obra da seguinte forma:
• _________. Empregabilidade e Educação. São Paulo: Educ, 1997.
• OBRAS SEM AUTOR DEFINIDO:
• Manual Geral de Redação. Folha de S.Paulo, 2ª ed. São Paulo, 1987.
PERIÓDICOS
NOME DO PERIÓDICO. Cidade. Órgão publicador. Entidade de apoio (se houver). Data.
Ex.:
REFLEXÃO. Campinas. Instituto de Filosofia e Teologia. PUC, 1975.
• ARTIGOS DE REVISTA:
SOBRENOME, N.A. Título do artigo. Título da revista, Cidade, volume (número/fas-
cículo): páginas incursivas, ano. Ex.:
FERRAZ, T.S. Curva de demanda, tautologia e lógica da ciência. Ciências Econômicas
e Sociais, Osasco, 6 (1): 97-105, 1971.
3 FARIA, 1996, p. 102.

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• ARTIGOS DE JORNAL:
SOBRENOME, N.A. Título do artigo, Título do jornal, Cidade, data, seção, páginas,
coluna. Ex.:
PINTO, J.N. Programa explora tema raro na TV, O Estado de S.Paulo, 08/02/1975, p.
7, c. 2.
10 Os artigos devem ser escritos em português, podendo, contudo, a critério da Comissão Edi-
torial, serem aceitos trabalhos escritos em outros idiomas.
11 Os artigos devem ser digitados no EDITOR DE TEXTO WORD, em espaço dois, em papel branco,
não transparente e de um lado só da folha, com 30 linhas de 70 toques cada lauda (2.100 to-
ques).
12 As ILUSTRAÇÕES (tabelas, gráficos, desenhos, mapas e fotografias) necessárias à compreensão do
texto devem ser numeradas seqüencialmente com algarismos arábicos e apresentadas de modo
a garantir uma boa qualidade de impressão. Precisam ter título conciso, grafados em letras mi-
núsculas. As tabelas devem ser editadas na versão Word.6 ou 7, com formatação necessaria-
mente de acordo com as dimensões da revista. Devem vir inseridas nos pontos exatos de suas
apresentações ao longo do texto. As TABELAS não devem ser muito grandes e nem ter fios ver-
ticais para separar colunas. As FOTOGRAFIAS devem ser em preto e branco, sobre papel bri-
lhante, oferecendo bom contraste e foco bem nítido. GRÁFICOS e DESENHOS devem ser incluí-
dos nos locais exatos do texto. No caso de aprovação para publicação, eles precisarão ser en-
viados em disquete, e necessariamente em seus arquivos originais (p. ex., em Excel, CorelDraw,
PhotoShop, PaintBrush etc.) em separado. As figuras, gráficos e mapas, caso sejam enviados
para digitalização, devem ser preparados em tinta nanquim preta. As convenções precisam apa-
recer em sua área interna.
13 ETAPAS de encaminhamento dos artigos: ETAPA 1. Apresentação de três cópias impressas para
submissão à Comissão Editorial da Revista e aos consultores. Os pareceres, sigilosos, são en-
caminhados aos autores para as eventuais mudanças; ETAPA 2. Se aprovado para publicação,
o artigo deve ser reapresentado à Editora, já com as devidas alterações eventualmente sugeridas
pela Comissão Editorial, em uma via em papel e outra em disquete, com arquivo gravado no
formato Word. Devem acompanhar eventuais gráficos e desenhos suas respectivas cópias
eletrônicas em linguagem original. Após a editoração final, o autor recebe uma prova para aná-
lise e autorização de impressão.

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6978_Impulso_26.book Page 217 Wednesday, October 1, 2003 1:07 PM

CONSULTORES DA IMPULSO EM 1999


ADEMIR GEBARA JÚLIO ROMERO FERREIRA

AMÓS NASCIMENTO MÁRCIO DANELON

ANTÔNIO LUÍS CHAVES CAMARGO MÁRCIO MARIGUELA

BRUNO PUCCI MARCOS CASSIN

CLÉIA M. DA LUZ RIVERO MARIA BEATRIZ BIANCHINI BILAC

DAGMAR CASTRO MARIA CECÍLIA C. FERREIRA

DOMINGOS ALVES DE LIMA NETO MARIA CECÍLIA RAFAEL DE GOES

DOROTHEE SUSANNE RUDIGER MAURÍCIO LOURENÇÃO GARCIA

EDSON DE CASTRO OLIVARI NABOR NUNES FILHO

EDUARDO ISMAEL MURGUIA MARANON OSMYR FARIA GABBI JR.

EDIVALDO JOSÉ BORTOLETO RINALVA CASSIANO SILVA

ELIAS BOAVENTURA ROSA GITANA KROB MENEGHETTI

ELISA P. GONSALVES ROSANA DO CARMO NOVAES PINTO

EVERALDO TADEU QUILICI GONZALEZ ROSELI SCHNETZLER

FRANCISCO COCK FONTANELLA RUBENS MURÍLLIO TREVISAN

FRANKLIN WINSTON GOLDGRUB RUTH ADELE DAFOE

HEITOR AMÍLCAR DA SILVEIRA NETO SEBASTIÃO NETO R. GUEDES

HEITOR GAUDENCI JR. SÍLVIO DONIZETTI O. GALLO

HUGO ASSMANN SUELI MAZZILLI

JOÃO DOS REIS SILVA JR. TÂNIA MARIA VIEIRA SAMPAIO

JOSÉ LIMA JR. VALDEMIR A. PIRES

JOSIANE MARIA DE SOUZA ZULEICA DE CASTRO COIMBRA MESQUITA

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