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1 | Giovanni Sartori Partidos e Sistemas | Partidarios SIP S\ We ! PREFACIO A EDICAO BRASILEIRA —— A edicdo brasileira deste livro representa, na realidade, uma edigao revista e atualizada e ndo apenas uma simples tradu¢do do volume publicado ori- ginalmente em 1976. Mais exatamente, os dados foram modernizados até principios de 1980. Além disso, ela inclui, ao final do titimo capitulo, uma nova secdo que defende, ao que me parece, uma das principais teses deste trabalho, ou seja, a de que a varidvel isolada mais decisiva para o entendimento da politica de massas de nossos dias é o grau de polarizagao — isto é, de distancia e heterogeneidade ideolégicas — entre as pessoas de _ qualquer sistema politico. Ao atualizar os dados ¢ as provas empiricas para esta edicdo, surpreendeu-me agradavelmente o fato de que minhas novas evidéncias pouco afetavam a interpretac¢ao e, em especial, as previsGes feitas anteriormente. Nao estou pretendendo virtudes proféticas, mas sim- plesmente observar, em geral,' que os trabalhos tedricos tendem a ser resis- tentes ao tempo. Isso porque meu trabalho — tenho de reconhecé-lo — vol- ta-se para a teoria. Minha intengdo era, originalmente, a de realizar uma obra que fosse, acima de tudo, uma investigag4o empirica de proporgdes mundiais, interes- sada em avaliagdes comparativas e em generalizagoes. Durante a execucdo do plano, porém, a énfase tedrica acabou tendo procedéncia, a contragos- to, sobre a empirica. Nao é dificil compreender a razdo disso. As com- Paragdes pressupdem medidas comuns — e portanto a inclusdo de uma ter- minologia comum — que:mal existem no estado atual da literatura sobre © assunto. Temos hoje grande volume de dados e também excelentes estu- dos sobre nagées, e até mesmo sobre areas isoladas; mas todos eles séo demasiado condicionados aos seus proprios objetivos, seus conceitos € ca- "tegorias so demasiado imprecisos e, em conseqiéncia, é quase impossivel ajunté-los de qualquer maneira cumulativa para fins de formulagdo de hi- poteses, comprovagdo e avango de nossa percepedo geral do processo po- Iitico. Fui obrigado, portanto, a construir uma estrutura te6rica a.partir da qual derivei categorias descritivas comuns de andlise — maneiras de Separar o que é semelhante e, inversamente, 0 que é diferente — e, em Giltima instancia, conceitos explicativos ¢/ou varidveis. ‘ 17 18 INTRODUCAO A América Latina é a drea menos abordada neste volume. A parte © Chile e 0 México, dos quais me ocupei mais detalhadamente, a maioria dos outros paises latino-americanos s4o tratados apenas de passagem. Isso acontece por ser este apenas o primeiro volume de uma ol tomos, e porque nele tratei de sistemas partidarios, e ndo de ladamente, nao de partidos per se. A tipologia e 0 mapeamento dos par- tidos como tal foram adiados para o proximo volume. Ora, com umas pou- cas excegGes, a maioria dos pafses sul-americanos tém longa experiéncia de partidos, mas o sistema que dai resultou (0 sistema partidério Tigorosa- mente definido) raramente teve uma consolidagdo estrutural. Isso se ex- plica pelo fato de terem os sistemas partiddrios sul-americanos, em geral, sido intermitentes, partidos que desaparecem e voltam a existir, que sdo congelados e depois voltam a atuar. Parece-me, portanto, que a unidade ” crucial de andlise, nessa drea, é 0 partido e nao o sistema partidario. E essa, pois, a principal e Gnica razdo que me leva a adiar um exame mais detalhado do continente latino-americano para 0 segundo yolume, isto é, deixar para fazé-lo com referéncia a movimentos especificos e ao nivel partidario de anilise. Embora a intermiténcia ciclica do sistema partiddrio venha sendo, ha muito, a caracteristica mais freqiiente em toda a América do Sul, cabe- me reconhecer imediatamente que o Brasil representa, desde 1964, o aban- dono mais destacado e significativo desse padrdo. Jé ndo é 0 caso, no Brasil, da tomada de poder por uma junta com um entendimento tacito de que no devido tempo o status quo antea civil sera testabelecido. Em notavel contraste com o ciclo de intermiténcia, as autoridades militares brasileiras mantiveram um Congresso baseado nos partidos, ao mesmo tempo em que se empenhavam, em vdo, numa engenharia constitucional, i id ari: i disposigdo de chegar a uma reestrutura- eleitoral e partiddria, e isso com a disposi¢: Ara prt ¢do fundamental do sistema politico. Tenho consciéncia, Po natureza inovadora e sem precedentes da experiéncia que se faz = 2 Nao obstante, do ponto de vista deste livro, perdura a conclusio ae . 6 sistema partiddrio brasileiro (e, concretamente, sua Sead temas) nfo revela uma consolidacdo estrutural, ¢ es ah Conjuntas: os partidos brasileiros nfo podem ser quali oC a valitigentS subsistema auténomo e, segundo, eles n3o tiveram um nih aude espontaneo. Assim sendo, o observador sé pode ite Ga detalhe™ coisas volatil, que no pode ser inclufdo (por motivos ae rtiddrios estru- no capitulo 8) nas categorias que se aplicam aos nea eleitorados, que turados. O Brasil tem partidos que realmente mo! mimente dese? pent realmente estabelecem elos importantes, ae resentam (embora sob fungdes expressivas € legitimas e que realmen' teas antigas € ar “. totulos e recombinagoes varidveis) tradic¢bes po! ma, permanece em esta Nio obstante, seu sistema partiddrio, como sistema, bra em dois Partidos iso- >. INTRODUGAO 19 portanto, incapaz de examind-lo sob o enfoque sis- “9 adotado neste volume. Apesar disso, espero que o leitor brasileiro na perspectiva comparativa deste trabalho critérios de orientagfo 4 os rumos que seu pais vem seguindo. . Continuo, G.s. Columbia University, janeiro de 1982 Parte I ss A RATIONALE: POR QUE PARTIDOS? optoes ¢ seeerael peat par o inten. \ I PARTIDO COMO PARTE ee ee 1.1 Da facgdo ao partido 0 termo “partido” entrou em uso, substituindo gradualmente a expressdo depreciativa “facgdo”, com a aceitacado da idéia de que um partido nao € necessariamente uma fac¢io, que nao é necessariamente um mal e que ndo perturba necessariamente 0 bontim commune, 0 bem-estar comum. A tran- siggo de facco para partido foi, na verdade, lenta e tortuosa, tanto no dominio das idéias como no dos fatos. A segunda metade do século XVIII mal havia comegado quando Voltaire’ escreveu concisamente naEncyclo- pédie: “A palavra partido nao é, em si, repulsiva; a palavra facgdo sempre é.”! Com o seu versdtil génio para a sintese, Voltaire resumiu nessa frase um debate iniciado por Bolingbroke em 1732 € que se desenrolaria ainda por cerca de um século.? A afirmacdo de que a palavra faccdo era repulsiva ndo exigia, desde 0s tempos romanos até o século XIX, provas. Em toda a tradic¢do do pensa- ménto politico ocidental dificilmente-haverd um autor que no tenha ado- tado a mesma opinido. A parte interessante da frase é, portanto, aque- la em que Voltaire admite que os partidos podem ser diferentes, que a Palavra partido ndo tem necessariamente uma conotacdo negativa. Nao se Ee Porém, dar a Voltaire 9 crédito de ter sustentado essa diferenca. A faccdo, escreveu ele, é “un parti séditieux dans un état” (“um partido se- icioso num Estado”). A palavra partido parece, assim, aplicdvel as facgdes SS no so'sediciosas. Mas Voltaire continuou, explicando, em lugar dis- cee uma‘facgdo € “um partido sedicioso quando ainda fraco, quando ieee [partage] de todo o Estado”. Assim, “a facgao de César tor- fica anaes um partido dominante que engoliu a Repiblica”. Ba distingao 4 que. mais enfraquecida, se nfo destruida, pela observacao de Voltaire wh ‘um chefe de um partido é sempre um chefe de faccao”. ga? Sei tase ent&o de uma distingdo que ndo tem base em uma diferen- este injusto fazer tal critica a Voltaire, que apenas reflete as ambigili- levantay prPexidades de todo o século XVIII. Justificar-se-ia, nesse caso, €ssa questo em relacdo a todos os autores que se ocuparam do 23 24 PARTIDOS E SISTEMAS PARTIDARIOS problema: Bolingbroke, Hume, Burke e os Francesa e Americana. Primeiro, porém, terminologia. Protagonistas das Revolucées devemos compreenderthes g , €m dire doings (atos terriveis). Assim, 0 sig. nificado primordial transmitido pela raiz latina 6 uma idéia de hubris, de comportamento excessivo, impiedoso e. Portanto, daninho. tagdo etimoldgica muito Parecida, é “seita” que significa separar, cortar €, com isso, dividir. Como “seita” jd existiae estava consolidada como transmissora do significado Preciso de partire, “partido” prestou-se a um uso mais impreciso e obscuro. “Partido” trans- mitia, entdo, basicamente a idéia de parte,'e parte nado é, em si, uma pala- vra depreciativa: é um construto analitico. E certo que a sociedade culta dos tempos antigos — quer falasse italiano, espanhol, francés, alemdo ou inglés — compreendia a terminologia que usava através do latim (€ grego). Portanto, a derivacao etimologica de partido de partire, isto é, separacdo, ndo passou despercebida dos autores dos séculos XVile XVIII. Nao Obstan- te, “parte” havia hd muito perdido sua conota¢ao original. A palavra “parte’ estd no verbo francés partager, que significa partilhar, tal como entra no inglés partaking (participacao, partilha) (para nao falarmos de partnership [associagao] e Participation [participagao]). Quando “parte” se torna “partido” temos, entdo, uma palavra su- jeita a duas influéncias seminticas: a derivacdo de partire, dividir, de un lado, e a associagdo com tomar parte, e portanto com Participacdo, Outro. Esta ultima é, na verdade, mais forte do. que a primeira gerasta Devemos observar, porém, uma complicacao. Enquanto partie SU i no vocabulario da politica, “seita” dele safa. Durante o séc lo a i igi cialmente ao sectarismo pro- expressdo passou a ligar-se a religido, e especialme: bém, pelo menos, testante. Por esse caminho, a palavra partido adquiriu ane Helo termo €m parte, o significado antes transmitido na arena poli A Tia ds apace Seita, E isso reforcou a ligacdo original de “partido” com Go e divisdo. ‘ ab ue “parti- O que dissemos acima contribui muito Coppatey ie ““faccdo” do” teve, desde 0 inicio, uma conotagdo menos eximo. desta. NEO hd €, ndo obstante, continuou sendo um sean oe a parte, realmente davidas de que nenhum.autor do século XVIII, i » Palavra vinda do latim secare, es O PARTIDO COMO PARTE 2s distinguiu os dois conceitos, Ainda assim, todos os nossos autores — e notadamente Bolingbroke e Hume — lutaram, num dado momento, com uma distingZo que encerrava uma diferenga. Se ao lermos seus trabalhos prestarmos atencdo a escolha das palavras, as duas nao s4o usadas indife- rentemente: facg4o aplica-se a um grupo concreto, ao passo que “partido” é muito mais uma divisdo analitica, um construto mental, do que uma entidade concreta. E isso explica por que a distingdo se perde rapidamente e nfo se mantém. Se facgdo é 0 grupo concreto e partido o agrupamento abstrato, a referéncia ao mundo real torna os dois indistingutveis. Essas observagGes também nos alertam para o fato de que os autores que falavam de “partes” mas ndo usavam a palavra “partido” nao estavam realmente enfrentando o problema. E o que ocorre especialmente com Maquiavel e Montesquieu, muito citados como precursores da idéia de partido num sentido favordvel. Mas eles néo usaram a palavra. O trecho de Maquiavel relevante nesse contexto diz que os “distirbios entre pa- tricios e plebeus (...) foram uma das principais causas que mantiveram Roma livre”, com a observacdo complementar de que em toda repiblica encontram-se “dois temperamentos [umori] diferentes, um do povo e ou- tro dos poderosos [grandi]”, de modo que “todas as leis feitas em favor da liberdade resultam de sua desunifio”. Mas Maquiavel deixou bem claro ime- diatamente em seguida, que n4o se inclinava a aplicar essa generalizagdo 4 sua propria época, e nem mesmo, na verdade e segundo suas palavras, aos “partiddrios dos quais nascem as partes da cidade”, pois essas “partes” levam a cidade a sua “ruina”.? Na realidade, quando Maquiavel se referiu a um grupo concreto, subscreveu ardorosamente a condenagdo das seitas e do facciosismo. Montesquieu foi, prima facie, um pouco mais longe do que Maquia- vel. Em suas considérations sobre as causas da grandeza e da decadéncia dos romanos, escreveu: O que se chama de unido do corpo polftico é algo muito ambiguo: a verdadeira unio & uma unido de harmonia, em conseqiléncia da qual todas as partes [toutes les par- ties], mesmo que paregam Opor-se, concorrem para o bem geral da sociedade, tal como algumas dissonancias na misica concorrem para a harmonia geral £ como nas partes deste universo, eternamente ligadas pelas suas agdes e reagdes. Ora, esse argumento é altamente abstrato, e as imagens — harmonia musical e cosmoldgica = muito antigas.. Se Montesquieu parece ter ido um passo além de Maquiavel, é porque estava disposto a estender aos ingleses de sua época a aplicacdo da observacio feita pelo italiano sobre os roma- nos.5 Nao obstante, € preciso ler toda a obra de Montesquieu para encon: trar umas poucas indicagdes alusivas a um entendimento favordvel das “partes’’ de uma republica, nfo sendo possivel registrar qualquer referéncia a partidos no capitulo fundamental de L'esprit des lois em que Montes: 26 PARTIDOS E SISTEMAS PARTIDARIOS quieu delineia a constituiggo inglesa.* E nao ha dtivida, por outro lado de que Montesquieu estava plenamente de acordo com a Condenacao geraj das “facgdes"".7 Maquiavel e Montesquieu no entraram Tealmente no Proble: que o passo crucial — na transigdo de “parte” Para “partido” objeto, isto é, como um ma por. — estava Substan- dividem um povo “segundo os principios”.1° ingbroke, h4 uma diferenga real, e ndo nomin: nais” do século XVII, que refletiam uma “di designios”, e as divisdes de sua 6; com Os “‘interesses nacionais” pessoais” — sendo essa “ broke também usou, sem se fossem sinénimos. Mas gumento de que a degener: ‘iferenga real de Principios e ‘poca, na qual j4 ndo havia Preocupacdo » que passavam a “subordinar-se aos interesses. a verdadeira caracteristica da faccdo”."" Boling- divida, partido e faccao indiferentemente, como isso estd, com freqiiéncia, de acordo com seu ar- ‘agdo dos partidos em faccbes é inevitavel, e quan- do as duas coisas se fundem, as duas palavras também se devem fundir.!? Devemos. reconhecer, porém, que a nogo que Bolingbroke tinha de partido é um tanto ambivalente, dependendo de se estar ele referindo 40s partidos da Grande Rebelido que levou a Constituigdo de 1688, ou 40 “partido do pais” de sua €poca, isto é, o partido que era o seu. Sua po- Sigdo. com relagdo a este ultimo é muito interessante. De um lado, ele se aproxima muito de sua legitimagao, pois afirma que “um partido do dine deve ser autorizado pela voz do pais. Deve ser formado sobre principi . do interesse comum’?. Por outro lado, Bolingbroke apressa-se a aaa tar que 0 partido do pats é “impropriamente chamado de partido. F ? nacdo falando e-agindo no discurso e na conduta de alguns pe oat Nao obstante, o ‘pattido do pais é, mesmo que apenas para nee admit uma necessidade, uma necessidade para uma boa causa. Bolinghs ae te que hd partidos que “precisamos ter”’;!4 mas estes so es inimigos dos, ou a coalizio de partidos, que fazem causa comum Se a consti- da constituiggo. E esse 0 caso do partido do pais, que O PARTIDO COMO PARTE 27 ua usurpacdo pela facgdo cortest (que ¢ realmente uma -.zq contra S' ; a. ‘ : ti ‘Assim, 0 partido do pafs ndo € um partido entre outros (em a sentido) mas — como palavras de Bolingbroke deixam implicito — ig contra a corte, OS stiditos contra um soberano que agiu errado para e ies Se o reindo age erradamente, se governa no Parlamento como eri a constituigZ0, entao o pais ndo tem razdo para se tornar um ertid0. Temos ai a nogdo do partido ndo-partido, isto é, de um partido ue deve acabar com todos os partidos, '§ E esse, na verdade, o objetivo de Bolingbroke. Na dedicatéria que serve de introdugdo a Dissertation upon Parties (Dissertagdo sobre os Partidos), ele apresenta seu trabalho como a “tentativa de extinguir as animosidades, e mesmo os nomes dos partidos que dividiram a nagdo, por tanto tempo, de maneira tdo fatal a principio, e tao tola, por fim.” Em suma, a intengdo de Bolingbroke é “reconciliar 0s partidos e abolir distingSes odiosas”.! © Sera justo concluir, portanto, que Bolingbroke era antipartido. Co- mo o governo pelo partido acaba sempre em governo pela facgdo, e como os partidos nascem da paixdo e do interesse, e ndo da raz4o e da eqiiidade, segue-se que os partidos enfraquecem e colocam em perigo o governo pela constituigdéo. E 0 governo constitucional era o preferido de Bolingbroke, cujo ideal era o de unidade e harmonia. Nao obstante, ele estabeleceu, mais do que qualquer outro antes, uma distingdo entre facgdes € partidos. E sua apaixonada e prolongada andlise, repetida em numerosos escritos, colocou 0s partidos em primeiro plano e forcou seus contempordneos ¢ sucesso- res a enfrentar o problema.'? Prova disso é o fato de Hume ter se ocupado a on pouco depois; foi, alids, o primeiro entre os grandes filésofos a a2é-lo, Hume colocou-se a meio caminho entre Bolingbroke ¢ Burke, embo- 1a estivesse mais proximo do primeiro do que do segundo — tanto no que diz respeito as idéias como em termos cronoldgicos, Os primeiros Essays €Ensaios) de Hume sobre os partidos surgiram menos de dez anos depois a Disermtion de Bolingbroke, ao passo que Burke ocupou-se do assunto a 70, cerca de 30 anos depois, Hume €, como seria de esperar, menos é ante em suas definigdes do que Bolingbroke. S6 com telagdo as facgdes 3 se ele Mostra a mesma veeméncia, pois as “facgSes subvertem 0 gover- crnomam impotentes as leis e geram as mais acesas animosidades entre ze Day da mesma nacdo”.!® Quanto aos partidos, Hume ¢ mais toleran- aaa i verdade, um importante passo além de Bolingbroke, pols admite heme oa todas as distingdes de partido pode ndo ser praticdvel, talvez me aa vel num governo livre’’. Nao obstante, © ideal de Hume conti- ficiais ¢ re semelhante ao de Bolingbroke: 0 fim das distingSes a abolir exc oe2S: Em sua época Hume percebia “um desejo universal de Ssas distingdes de partido”, isto ¢, aqueles “que mantinham opinides Oj Postas em relacio ao que é essencial no governo”, Dew a esse desejo 0 28 PARTIDOS E SISTEMAS PARTIDARIOS nome de “tendéncia a coalizdo” e viu, nessa coalescéncia, “ ‘a mais agrad4- vel perspectiva de felicidade futura”.!® Embora admitindo que os partidos da Grande Rebelido eram “partidos de principio”, nao via a mesma ten- déncia nos “partidos novos” surgidos subseqtientemente sob a denomina- gao de Whig e Tory,* pois quanto a eles “estamos desorientados para di- zer da natureza, das pretensGes e dos principios das diferentes facgdes” 29 A principal contribuiggo de Hume foi a tipologia que delineou no ensaio de 1742, Of Parties in General (Dos Partidos em Geral). O leitor fica um tanto confuso, nesse e em outros ensaios, pelo uso indiferente que faz Hume de “partido” e “facgdo”?!, pois ele foi, sem duvida, menos coerente do que Bolingbroke no uso dessas duas palavras. Devemos ter presente, portanto, que Hume estava fazendo uma classificagdo, e que a distinggo entre partido e faccdo, tal como Bolingbroke a havia estabele- cido, era insuficiente para sustentar essa classificagdo. Se o partido também acaba em facgdo, pareceu a Hume — presumivelmente — que sua tipologia tinha de ser de qualquer e de todos os agrupamentos politicos. Digamos, entdo, que Hume estabelece uma tipologia de partidarismo que comeca com uma distingdo basica entre (i) grupos pessoais e (ii) grupos reais — sendo os ultimos as facg6es e/ou os partidos “baseados em alguma diferenga teal de sentimento ou interesse”.2? Enquanto os partidos “raramente se encontram puros e sem mistura”, Hume diz-que “‘as facgdes pessoais’” so tipicas das pequenas repiblicas e, em geral, do passado, ao passo que as “facgSes reais” sGo tipicas do mundo moderno. Portanto, a andlise de Hume concentra-se nas “facgSes” reais, que estao subdivididas em trés classes: facc6es de (i) interesse, (ii) principio e (iii) afeigao. No juizo de Hume, as facgGes de interesse so “tas mais racionais e as mais desculpaveis”, e, embora “freqiientemente ndo aparecam” em go- vernos despéticos, “nem por isso s40 menos reais, ou antes, s4o mais reais e mais perniciosas por essa mesma razdo”’. E Hume continua (observe-se 0 uso de “partido”): “Os partidos de principio, particularmente principio especulativo abstrato, s6 s4o conhecidos nas épocas modernas e talvez se- jam 0 fendmeno mais extraordinario e inexplicavel j4 surgido nas questdes humanas”. Esse novo fendmeno é muito menos justificavel. Mas Hume esta- belece neste ponto, embora como ilustragio, uma distingdo crucial entre principios “politicos” e “religiosos’’. Estes ultimos s4o a meta real de Hume: “Nos tempos modernos, os partidos religiosos sfo mais furiosos ¢ irados do que as mais cruéis facgSes jamais surgidas a partir do interesse e da ambigdo”. Os primeiros, os partidos de principio politico, recebem um tratamento diferente: “Onde principios diferentes geraram uma con- trariedade de comportamento, como é 0 caso de todos os diferentes princi- 20 a nieds De modo geral, Liberal e Conservador, respectivamente.(N. doT) ——_——e O PARTIDO COMO PARTE 29 ode ser explicada mais facilmente”. E esse iticos, a quest@0 P ‘0 diferente e mais tranquilo resulta, bem claramente, do ensaio que? segue, Of ‘Parties in Great Britain (Dos Partidos na Gra-Bretanha). No essencial, Hume aceitou os partidos como uma conseqiiéncia de- sagradavel, ‘mas dificilmente como uma condigo, do governo livre. E ha, sem duvida, um mundo de diferengas entre considerar-se os partidos como itaveis?* € a visd0 burkeiana de que os partidos sdo ao mesmo e um instrumento do governo livre. Ndo obstante, tempo respeitaveis Hume fornecev parte do material com que Burke construiria sua argumen- tagao. A tipologia de Hume nao s6 permi tico do assunto como também proporcionou — CO! sificagdo, pela sua propria natureza — elementos estaveis que servem de fundamento a novos raciocinios. Como autor politico, Hume nao foi pro- fético, de modo algum. Sua classe de “facgdes de principio politico” esta ainda muito distante daquilo que chamaremos de partidos ideolégicos, mas constitui uma ponte através da qual 0 partido sera visto € concebido como grupo concreto- Os partidos ultrapassam as facgdes porque se baseiam nao apenas em interesses, ¢ no apenas em afetos (a “afeigao” de Hume), mas também, e principalmente, em principios comuns. Isso € Burke. Mas Hume abriu o caminho, mostrando que as facgdes baseadas em principios eram uma nova entidade na cena politica e que os principios politicos deviam ser distinguidos dos principios religiosos.?* ‘A definigao de Burke, muito citada embora pouco compreendida, & “O partido é um grupo de homens unidos para 4 promogdo, pelo seu esfor- go conjunto, do interesse nacional com base em algum. principio com © qual todos concordam”. Os fins exigem meios, © OS partidos sao © “meio adequado” que permite @ esses homens “levar seus planos comuns a prd- tica, com todo o poder & autoridade do Estado”’.?® Evidentemente, © pat tido de Burke ndo é apenas um meio respeitavel: é um partido com todas as diferengas que um partido tem de uma parte, isto €, Um agéncia con- creta, algo tao real como as mesmo tempo, facgoes & partidos j4 nfo podem ser confundidos: tornaram-se diferentes Por definigao. Se- gundo as proprias palavras de Burke, “essa generos® Juta pelo poder [do partido] (...) seré facilmente distinta da luta mesquinha ¢ interessada por cargos e emolumentos” — sendo esta altima Jjente definig#© dos propdsitos das facgdes nao é 0 de que 0 partido ter- jos PO entendiment tiu um entendimento mais anali- mo faz qualquer clas- "27 Q argumento jé ‘i ‘ 0, 0 partido nao é um parti- aate sempre na facgo, mas o de que, nesse cas lo. Quando Burke quer dizer facgao, ele diz facg03 quand partido, diz partido. As iiltimas frases n@o s40 Burke tratou detalhadament® da questdo. Tinha um alvo bem s homens do rel. E os homens do rei argumentavam que © “parti mente eliminadsi com todos os males que causa’. Os Tho! s) de Burke sf0 ocasionais. definido: ©: ‘do deveria ser ughts (Pensamento: 30 PARTIOOS E SISTEMAS PARTIDARIOS uma refuta¢do meticulosa desse argumento, que o denuncia como elabora- do por “uma facg4o que governa pela inclinagdo particular de uma cor- te".2® Os homens do rei estavam propagando a doutrina de que “todas as ligagdes politicas sdo, pela sua propria natureza, facciosas”, Burke obser- vou que era essa a receita propagada em todas as épocas pelos que ser- viam a fins “inconstitucionais”, pois é somente “numa ligagdo”, isto é, quando se ligam entre si, que os homens “podem facil e tapidamente dar © alarme em relac¢do a designios maléficos”. Ligacdo era, na verdade, a palavra-chave de Burke, “As ligagdes em politica”, argumentou ele, sio “essencialmente necessdrias ao pleno desempenho de nosso dever publico”. Embora essas ligagdes sejam “acidentalmente passiveis de degenerarem em facedo", ainda assim “os melhores patriotas na maior comunidade sempre elogiaram e promoveram tais ligagdes”.?9 Os homens, admitia ele, “que pensam livremente pensardo, em certos casos, de maneira diferente”. Mas isso ndo é um argumento para se langar “um 6dio contra as ligagGes poli- ticas”’, pois, se o homem que se ocupa das coisas publicas “‘ndo concordar com esses principios gerais em que se baseia o partido (...), deveria, desde 0 inicio, ter escolhido alguma outra ocupagdo...” E Burke conclui: “Pa- Tece-me totalmente incompreensivel que os homens Possam passar sem “qualquer ligagdo”.3 Como j4 se argumentou de maneira convincente, o governo de parti- do na Gra-Bretanha nao foi criado pelos grandes partidos do século XVII. Tal governo pressupunha a dissolucdo dos grandes partidos e foi, na reali- dade, criado pelos pequenos partidos do século XVIII.3! Bolingbroke iden- tificou algo de distintivo (em relagdo a faccdo) nos grandes partidos. Mas © problema era localizar esse algo de distintivo do “partido” nos Pequenos partidos que tomavam forma na Camara dos Comuns do século XVIII. E foi essa a abertura de Burke. As circunstancias ndo foram, de forma algu- ma, irrelevantes para essa realizagdo. A vantagem de Burke foi escrever quase que um século depois dos anos de 1688-1689, isto é, quando a crise teligiosa e a crise constitucional haviam sido totalmente resolvidas. Bol- ingbroke e Hume ainda tinham de argumentar em favor de um consenso quanto aos aspectos fundamentais, e com isso eram antipartido em prin- cipio e antifacedo em esséncia. Na época de Burke, porém, era bastante evi- dente que os grandes partidos que lutavam a favor ou contra a constitui- g4o haviam desaparecido e que as faccdes do longo reinado de Jorge III apenas lutavam pelos despojos do governo. Bolingbroke e Hume viram que @ ameaca anticonstitucional vinha da formula divide et impera, de os ho- mens do rei se aproveitarem de um Parlamento assolado por facgdes, de- sunido e, com isso, impotente. Burke compreendeu — e nisso foi genial — que, como o Parlamento ndo podia ser monolitico, estaria em muito me- Ihor posi¢do de resistir 4 coroa se seus membros estivessem ligados, isto 6, organizados em “ligagdes honrosas’’. OPARTIDO COMO PARTE 4 Em esséncia, Portanto, com Burke 0 ei volta. Bolingbroke justificara o partido! a do necesséria) do pais ao soberano inconstitucion colocou 0 “partido” dentro do ambito do gover uma divisdo que ja nao se fazia entre sditos e ranos.32 Havia, €m sua €poca, um consenso sob: co entendimento © consenso ainda menor quanto a maneira pela qual o governo constitucional devia ser conduzido, e por quem. Burke propés que isso poderia caber aos partidos, desde que se tormassem partidos. Burke propunha — pois concebeu o “partido” antes que este viesse a existir e, na verdade, langou a idéia que ajudou os partidos a superarem as facgdes, com 0 correr do tempo.33 Muitas décadas, porém, haveriam de transcor- Ter antes que sua visdo fosse perfeitamente compreendida. Nao se passara muito tempo desde a abertura intelectual de Burke, € o continente europeu foi varrido pela Revolugdo Francesa. Os girondi- nos, jacobinos e outros grupos politicos que, na realidade, movimentaram Os acontecimentos de 1789-1794 bem poderiam ter usado Burke para legi- timar suas ligag6es e seus principios, isto é, sua existéncia. Nao o fizeram. Quase todos os pontos de vista politicos foram apresentados durante o vortice daqueles memoraveis cinco anos. Sob um aspecto apenas os revolu- ciondrios franceses déo mostras de um mesmo dnimo e falam com a mes- ma voz: foram unanimes e persistentes em sua condenacao dos partidos. Em todas as suas batalhas verbais, e finalmente mortais, a acusagao reci- proca mais séria era a de chef de parti, chefe de partido, 0 que equivalia a dizer chefe de uma facgao.>* “ Condorcet, ao aconselhar os girondinos sobre seu projeto consti- ‘tucional, argumentou — contra os partidos ingleses — que “uma das neces- sidades primordiais da repiblica francesa é nao ter nenhum’ . Danton de- clarou: “Se nos fossemos exasperar mutuamente, acabariamos formando partidos, ao passo que necessitamos devapenss um, o da aa goles pierre afirmou ser 0 “interesse pessoal” que provoca uma plurali rie partidos, e que “em toda a parte onde vejo ambicdo, Be ta ee maquiavelismo, ali reconhego uma facgdo; ¢ a natureza de to Nee “Todo é sacrificar o interesse geral”. Saint-Just foi ainda mais dras ‘ a he partido é criminoso.(...) Toda facgdo é portanto criminosa. (3 i ”, E ai is concisamente, ¢Go procura enfraquecer a soberania do povo”’. E ainda mais con' . é y ‘aria d disse: “Ao dividir um povo, as facgSes substituem a liberdade pela furia do partidarismo.’’35 5 ve Trés raz6es sfo apresentadas geralmente para esol Seats i nime: primeiro, os revoluciondrios de | 1789 estavam ee ai Rousseau; segundo, seu deus era La Raison, a Razio; ter’ aa aradel bufdos de uma filosofia individualista, se ndo totalmente a ee esas razbes so bastante validas, mas no devemos esque argumentagao deu uma como a oposicao (quan- al. Burke, em lugar disso, NO, reconcebendo-o como soberano, mas entre sobe- BE 32 PARTIDOS E SISTEMAS PARTIDARIOS real importante: a dura realidade e a viruléncia do facciosismo, As fac foram também condenadas por pressupostos totalmente diferentes, Os voluciondrios franceses declaravam-se “‘patriotas”. Para eles, Partidos facgSes eram 0 mesmo que para Halifax, o Oportunista, um século ai uma “conspiracdo contra a nagao”’. E talvez a principal ligdo a ser apren. dida desse salto de volta ao estado de espirito inglés do século anterior é a de que os partidos pressupdem — pela sua aceitacdo e seu funcionamen. to adequado — a paz sob um governo constitucional, e na i _- M&O uma guerra interna que investe, entre outras coisas, contra o préprio estabelecimento de uma constituigdo. Se ndo é de surpreender que os revoluciondrios franceses nao pudes- sem aceitar ou compreender Burke, poderfamos esperar que tal ndo acon- tecesse com os Founding Fathers dos Estados Unidos. Mas, em 1787-1788, Madison ainda falava muito de “facgdes”, e muito no sentido classico, de- preciativo, da palavra, embora num contexto diferente e mais amplo. Sua defini¢do era a seguinte: Por uma faccdo, entendo um certo niimero de cidaddos, quer sejam uma maioria ou uma minoria do todo, unidos e ativados por um impulso comum de paixio, ou de interesse, adverso aos direitos de outros cidaddos ou aos interesses permanentes € globais da comunidade. E pretendia que a Unido ajudaria a “dominar e controlar a violéncia da facgdo”, que havia sido, e continuava sendo, 0 “vicio perigoso” dos go- vernos populares.37 A novidade estd em ser 0 problema visto constitucio- nalmente € no contexto de como uma grande “repablica” est4 melhor ade- quada a controlar os efeitos — e nao remover as causas das facgdes. O que Burke deixou as intengdes nobres, Madison enfrentou em termos de enge- nharia constitucional. Quanto ao resto, ndo h4 duvidas de que Madison usou o termo faccao num sentido negativo e que faccdo e partido eram ainda considerados como equivalentes, ou quase.°8 Madison nao foi o tnico a condenar © que Burke havia louvado. No discurso de despedida de Washington, de 1796 — baseado num rascunho de Hamilton — lé-se: A liberdade (...) pouco mais é na realidade do que um nome, quando o governo € demasiado fraco para suportar as iniciativas da facedo (...) Permitam-me (...) uma ad- verténcia solene: sobre os efeitos prejudiciais do espirito de partido (...) H& ve opinido de que os partidos nos paises livres so controles iiteis (...) ¢ servem par manter vivo © espitito da liberdade, (...) Isso é provavelmente verdade, dentro 5 Certos limites (...). Mas em governos puramente eletivos é um espirito que nao de’ ser estimulado,39 5 O texto est realmente muito distante dos escritos dos revoluciont: Hos franceses, mas est4 igualmente longe de Burke. As facg6es he iguais a0 “espirito do partido”, e, onde Washington admite que 0s P: O PARTIDO Como PaRTE 33 dos poderiam manter vivo o espirito da liberdad tindo do que Hume.*° Isso porque a énfase de W; te na adverténcia contra o espirito do partido, : O caso de Jefferson é ainda mais interessante. Se a moderna idéia do partido foi primeiro identificada por Burke, 0 primeiro partido moderno tornou-se realidade, ainda que para desintegrar-se pouco depois, nos Est: dos Unidos sob a lideranga de Jefferson. Ele organizou “ligagdes” e eval o programa do Partido Republicano a vitéria com seu apelo a0 pais como um todo, passando por cima dos federalistas. Ainda assim seria um erro supor que, com o partido de Jefferson, a mensagem de Burke havia, final- mente, langado_ raizes. Por mais paradoxal que parega, Jefferson concebeu seu partido mais ou menos como Bolingbroke concebia o partido do pais: como um partido que deveria pdr fim 4 legitimidade do partidarismo, ou pelo menos enfraquecé-la, quando os “principios republicanos” houves- sem sido postos em ago e estivessem perfeitamente consolidados.*! Enquanto isso, as idéias e os acontecimentos no se movimentavam mais depressa, e sim mais devagar, no continente europeu. Foram neces- sdrios mais de 30 anos para que se fechassem as feridas da Revolucao Fran- cesa. O “espirito do partido” de Washington foi, no mesmo ano do seu discurso, objeto de uma deniincia apaixonada de Madame de Staél.*? S6 em 1815 o grande pensador constitucional francés Benjamin Constant reconheceu a impossibilidade de “esperar excluir as facgdes de uma orga- nizagdo politica onde as vantagens da liberdade costumam ser preserva- das”. Mas acrescentou imediatamente: “Devemos portanto empenhar-nos em tornar as facgdes o mais inofensivas possivel.’4? Constant estava ape- nas se atualizando com Madison. E mesmo essas palavras eram demasiado avangadas para a Restauragdo, que deveria durar até 1830. Burke é, evi- dentemente, o ponto crucial na historia intelectual. Mas 0 rumo dos acon- tecimentos é outra questdo. Somente cerca de 50 anos depois de seu Dis- course é que os partidos, tais como ele os havia definido, suplantaram as facgdes e comecaram a existir no mundo de lingua inglesa. le, pouco mais est4 admi- ‘ashington recai claramen- 12 Pluralismo Quando Burke chegou a ver que os partidos tinham um uso BS ae cessdrio, nfo havia nenhuma teoria para apoiar sua opinido. Mas 0 Be cet havia sido preparado. A transigfo da facedo ao partido baseia-se ia Cesso paralelo: a transigdo ainda mais lenta, mais enganosa € ais - ssensiio da intolerdncia para a tolerincia, desta para a dissensfo, € da dis avail Para a crenca na diversidade. Os partidos ndo se tornaram ar cont Porque Burke assim tenha declarado. Chegaram @ ser Seale Clentemente, e mesmo assim com uma formidavel relutancia Bee sce 4 compreensdo de que a diversidade ¢ a dissensa0 nfo sao nece: 34 PARTIDOS E SISTEMAS PARTIDARIOS incompativeis com a ordem politica, nem necessariamente a perturbam. Nesse sentido ideal, os partidos sfo correlatos com a Weltanschauung do liberalismo, e dela dependem. Sao inconcebiveis na visio que Hobbes ou Spinoza tinham da politica, e nao sdo admitidos na cidade de Rousscau,43 S6 se tornam concebiveis, e foram concebidos na pratica, quando o “hor- ror da desunido” é substituido pela crenga de que um mundo monocroma- tico ndo € a unica base possivel da formacdo politica. E isso equivale a dizer que, idealmente, os partidos e o pluralismo se originam do mesmo sistema de crengas e do mesmo ato de fé. Surge imediatamente a questéo de o que entendemos por plura- lismo. Vamos, primeiro, fazer uma pausa para observar que 0 pluralismo partiddrio foi precedido pelo pluralismo constitucional e que este ultimo ndo abriu o caminho para o primeiro. O constitucionalismo havia louvado e buscado — desde Aristételes — 0 governo misto, no o governo partidd- tio. Em particular, o pluralismo constitucional — a divisio do poderea doutrina do controle ¢ do equilibrio de poderes — antecedeu de muito o pluralismo partiddrio e foi construido sem os partidos e contra eles. Constitucionalmente falando, um corpo politico nado sé podia como devia ser separado em partes; mas a analogia, ou o principio, nao foi levado aquelas partes que eram “partidos’’.** A teoria do governo constitucional nfo teve acolhida de Locke a Coke, de Blackstone a Montesquieu, do Federalist a Constant, e certamente nao lhes era necessdria. Quando os juristas constitucionalistas comegaram a se ocupar da teoria constitucio- nal, os partidos foram mantidos, ainda mais, no limbo: s6 adquiriram de- finigdo legal depois da Segunda Guerra Mundial, e mesmo assim em pou- cas constituigdes.47 Possivelmente a dificuldade de estender aos partidos a Weltanschau- ung do constitucionalismo liberal foi dupla. Primeiro, os partidos néo eram partidos € sim facgdes, isto é, partes contra o todo, e nao partes do todo. A segunda dificuldade foi o postulado acentuadamente individualista do Tluminismo. Talmon nos Iembra que “aquilo que € hoje considerado como ‘concomitante essencial da democracia, ou seja, a diversidade de opinises .£ interesses, estava longe de ser considerado essencial pelos pais da de- mocracia do século XVIII, cujos postulados originais eram a unidade e a unanimidade”.*® Nao é de surpreender que isso acontecesse com os pais da democracia do século XVIII, que tinham como referéncia a democracia antiga — e no a democracia liberal — e mais os espartanos e os romanos do que os atenienses.*” O que é menos dbvio é por que o mesmo se aplica aos pensadores liberais dos séculos XVII e XVIII. Uma explicagao impor- tante esta no seu individualismo extremo, que atendeu a necessidade e libertar sua época dos lacos medievais, de uma estrutura de corporaca fechada e imével.°° — i Evidentemente a relacdo entre o pluralismo e os partidos é sutil &, O PARTIDO COMO PARTE 35 com freqiiéncia, enganosa. O pluralismo é uma hinterlandia, um elemento de background, e sua ligagdo com o pluralismo partiddrio [mente serd Gizeta. Nao obstante, o pluralismo partidadrio foi, com toda a certeza, uma “exportacdo dos paises nos quais o pluralismo foi implantado em primeiro lugar — mais os paises protestantes. do que os da Contra-Reforma. E € bastante claro que © pluralismo partiddrio nao teve um bom desempenho, nem prolongado — com pouquissimas exce¢es — além da area impregnada por uma Weltanschauung pluralista.S' Nao é coisa simples operar um sis- tema politico no qual muitos partidos ndo venham a desorganizar uma formagao politica. Esta dificuldade foi sempre subestimada pelos estudio- sos ocidentais, como também pelos elaboradores de politicas que queriam exportar a democracia. E, portanto, essencial que tal dificuldade seja com- nndida 4 luz de seu substrato. Permanece a indagacdo: o que entendemos por pluralismo? A palavra é, sem duvida, uma abreviatura para uma grande riqueza de conota¢Ges, riqueza que se transformou num pantano desde que adotamos a opinizo de que “todas as sociedades em grande escala sao, inevitavelmente, pluralis- tas em certo grau”.5? De acordo com essa generalizagdo, o pluralismo nasce de e, em grande parte, coincide com a divisdo do trabalho ea dife- renciagdo estrutural, que S40, por sua vez, as companheiras inevitdveis da modernizagdo. O argumento torna-se assim quase tautoldgico, sua conclu- So é verdadeira por definig&o,5? e o “pluralismo” é facilmente estendido a cenérios africanos e, na verdade, 4 maior parte do mundo. Na minh opinido, este ¢ um exemplo tipico de aplicagao forgada ¢ imperfeita de um Se nos agrada, podemos amontoar 0 pluralismo ocidental moder- 0 de status hierérquico medieval, o sistema hindu de castas e “ama fragmentagdo tribal do tipo africano, e chamar tudo isso de plurali- dade, ou de uma sociedade plural. Mas ndo confundamos esse bazar com ne pree! o “pluralismo” e com o que estamos tentando dizer quando as sociedades 2 ocidentais sdo chamadas de pluralistas. ver A expressao “pluralismo” pode ser conceituada em trés aiveis@) ocietal e (fii))politico. No primeiro nivel podemos falar de . uma cultura_pluralista_na_mesma latitude de s nificado que as no paralelas da cultura secularizada e de cultura homogenea- Uma cultura plu- ralista_mostra_uma visao do mundo baseada, em esséncia, na convicgdo de que a di una VS a ead atime a Mudanca e ndo a imutabilidade, levam a uma vida melhor. Pode-se dizer que isso é um pluralismo filos6fico, ou a teoria filosdfica do pluralismo, em sua diferenga da realidade do pluralismo.S* Mesmo assim, deve-se en- tender que, quando os filésofos se ocuparam dos assuntos do mundo pra- ica, ~ como o fizeram em sua teorizagdo politica —, estavam ao mesmo ‘empo interpretando e dando forma ao curso do mundo real. Assim, 0 Que tem origem como a teoria do pluralismo reflete-se posteriormente, em » Conn religtio ao segundo nivel, o pluralismo societal deve ser distin- guido da diferenciagdo societal. Ambos sao estruturas societais ou, mais exatamente, principios estruturais que resumem configuragdes Sdcio-es. truturais. Mas, do fato de que toda sociedade complexa se revela “dife- renciada”, ndo se segue de modo algum que todas as sociedades sejam diferenciadas “‘pluralisticamente”. Como eu disse antes, uma sociedade plural néo é uma sociedade pluralista, pois esta ultima é apenas um dos muitos tipos possiveis de diferenciagdo societal. Com relag4o ao terceiro nivel, pode: tico indica uma “‘diversificagao do poder” e, mais precisamente, a existén- cia de uma “pluralidade de grupos que sio a0 mesmo tempo independentes e nao-inclusivos”.57 J4 fiz men¢do a como esse pluralismo se estende as partes que sdo partidos. Mas hd varios Pontos ad hoc que merecem, agora, um desenvolvimento. O primeiro relaciona- “se dizer que o pluralismo poli. Se com a situagao do ponto de vista pluralista em relagdo ao consenso e ao conflito. Entediados com demasiado consenso € ante tanto conflito, estamos atualmente Tessaltando que a base da de- mocracia nfo € o consenso E ia, que coloca a base pluralis- ta das democracias liberais singularmente fora de foco. Pois a palavra que melhor transmite a visdo pluralista é dissensdo. Lorde Balfour fez uso da linguagem moderada“dos britanicos 2 que ‘ ne Washington bus- carem uma ; coalizdo de partidos”. Sempre que 0 conflito Significa_o que de fato Significa, os partidos erdem em Teputacdo. Ressaltemos portanto, uc _O que ¢ central para'a We li Gi p luralista ndo é 0 consenso nem 9 conflito _mas_ ioe 0 louvor da di do. Caracteristicamente ~ © que € muito revelador — a dissensfo nfo foi nu dida como 0 oposto do consenso. A Aissensdo jem tanto do consense eemo do Sonflito, sem coincidir com nenhum deles.69) : y O consenso bem pode esta = relacionado com o conflito, mas somente — SE 36 PARTIDOS E SISTEMAS PARTIDARIOS ainda que apenas em parte e imperfeitamente, na realidade do Pluralismo, Eu diria, entdo, que, mesmo quando chegarmos a usar 0 Pluralismo coms termo descritivo (e ndo normativo), ndo podemos ignorar o fato de que ele indica estruturas societais e politicas que nascem de uma Orientagag de valor, de uma crenga em valores.5* O pluralismo, tal como agora permeig as sociedades ocidentais, deixaria de existir se deixdssemos de acreditar em seu valor. Com relagdo ao segundo nivel, o pluralismo societal deve ser distin. guido da diferenciagdo societal. Ambos sio estruturas soci exatamente, principios estruturais letais Ou, mais que resumem configuracdes sécio-es. truturais. Mas, do fato de que toda sociedade complexa se revela “dife. Tenciada”, nfo se segue de modo algum que todas as sociedades sejam diferenciadas “pluralisticamente”. Como eu disse antes, uma sociedade plural nao € uma sociedade pluralista, pois esta ultima é apenas um dos muitos tipos possiveis de diferenciagao societal. Com relagao ao terceiro nivel, pode-se dizer que 0 pluralismo poli- tico indica uma “‘diversificagao do poder” e, mais precisamente, a existén- cia de uma “pluralidade de grupos que sdo ao mesmo tempo independentes €_ndo-inclusivos”.57 Ja fiz mengdo a como esse pluralismo se estende as partes que sdo partidos. Mas hd varios Pontos ad hoc que merecem, agora, um desenvolvimento. O primeiro relaciona-se com a situagdo do ponto de vista pluralista em rela¢do ao consenso e ao conflito. Entediados com demasiado consenso € ante tanto conflito, estamos atualmente Tessaltando que a base da de- mocracia ndo € 0 consenso, mas na verdade o conflito.S® Isso me surpre- ende como um uso descuidado de terminologia, que coloca a base pluralis- ta das democracias liberais singularmente fora de foco. Pois a palavra que melhor transmite a visio pluralista é dissensfo. Lorde Balfour fez uso da linguagem moderada“dos britdnicos ao escrever que, na Inglaterra, “a mé- quina politica pressupde um Povo tao fundamentalmente unanime que aqueles que dele fazem parte podem, com toda a Seguranca, permitir-se altercar.” Mas estamos indo demasiado longe na direcao do exagero, quan- do afirmamos que a democracia Postula 0 conflito. Foi 0 conflito que levou Hobbes a ansiar pela paz sob o governo despotico de seu Leviata, e foi também o que fez Bolingbroke e Hume e Madison ‘e Washington bus- carem uma “coalizdo de partidos’’. Sempre que 0 conflito ) significa o que de fato significa, os partidos perdem em reputac4o. Ressaltemos, 10, ue _O que ¢ central para a Weltanschauung pluralista ndo é o consenso nem @ conllito, mas a dissensio eo louvor da dissensio, Caracteristicamente = © que € muito revelador — a dissensfo no foi nui dida como 0 oposto do consenso. A dissensao tanto do consenso como do Conflito, sem coincidir com nenhum de eo aa cel O consenso bem pode estar relacionado com © conflito, mas somente O PARTIDO COMO PARTE 37 em diferentes niveis de convicgdes e comportamento. istit i tantes, no caso, fazem-se entre (i) nivel eeitiaoe Sines por (politicas) e/ou entre (ii) questdes fundamentais ¢ questdes de momento. Mesmo havendo consenso em nivel comunitdrio e sobre questdes funda- mentais — € em particular sobre as regras para a solugao de conflitos — é possivel 0 conflito_quanto a_politicas. Isso porque 0 consenso quanto aos pontos fundamentais proporciona a autocontengdo que torna 0 con- flito algo menos do que um conflito, como interminavelmente, embora uase sempre demasiado tarde, redescobrimos sempre que enfrentamos ealidade em que as balas se cruzam de um lado a outro. O confli- to quanto as questdes fundamentais nfo ¢ uma base possivel para a de- mocracia nem, na realidade, para qualquer formagio politica: esse conflito, isto é, 0 conflito real, demanda uma guerra interna e a secess4o como sua tinica solugao. Por outro lado, o consenso nao deve ser concebido como um parente proximo da unanimidade. ‘A diferenga pode ser descrita da seguinte manei- ra: 0 consenso é uma “unanimidade pluralista”. Nao consiste de uma visio tinica postulada pela interpretagao monocromatica do mundo, antes evoca um _processo intermindvel de ajuste de muitos esprritos (¢ interesses) dis- cordantes em sempre transformadas “coaliz6es” flextveis de persuasdo reciproca.*! Isso equivale a dizer também que, enquanto o “dissenso € 0 estado entropico de natureza societal, o consenso ndo existe naturalmente, mas_deve ser_produzido”.© E a importancia do consenso — assim con- cebido — para nosso mundo atual é comprovada pelo fato de provavelmen- te ndo ser coincidéncia que os sistemas partiddrios do Ocidente nao tenham tido nenhum papel na criagdo do Estado-nagdo, s6 se tornando operativos quando a crise de legitimidade — isto é, a aceitagdo do governo constitu- cional — foi resolvida.® Talvez a estrutura politica deva existir primeiro, talvez a unificagdo tenha de anteceder a “divisio”, a “partig#0” pelo par- tido, e talvez seja essa condi¢do que faga dos partidos uma subdivisdo com- pativel com a unidade, e ndo uma divisdo que a desorganiza. Isso € confir- mado pela experiéncia da maioria das sociedades em desenvolvimento empenhadas na criacdo de uma identidade e de uma integracdo nacionais, que recorreram sem demora ao partido unico ou a0 governo militar, €, em ambos os casos, proibi¢do da dissensdo organizada, isto é,da oposigZio. ela qual o pluralismo Um segundo ponto refere-se 4 maneira i que nao ¢ gu: ao principio tico relaciona-se com a regra* da maionia fonético com responsible © responsive “govern responsive”), © “tegra”, “regulamento”, “dominio”. Assim, “regra”” “dominio” uma © ga Teegeio fark adiante;(p_ 39) um joro sone fa (governo responsdvel ¢ governo sensfvel ou “ Taceiet aqui, com a polissemia de rule, ao mesmo tem| Kaley aotetge ererae ie ce ruling, ato de governar” ¢ Ging ree entendida como preceito ¢, a0 mesmo tempo, govern’ , Como 0 ato de dominar ¢ o de governar. (N. do T-) 38 PARTIDOS E SISTEMAS PARTIDARIOS da maioria. Se a regra majoritdria é entendida como Madison, Tocqueville e¢ John Stuart Mill a entenderam — ou seja, como a ameaga de uma tirania da maioria, de um governo ou “dominio” da maioria concreta no Sentido literal e forte da expressdo — entao pode-se dizer que 0 pluralismo ¢ con. trdrio 4 regra majoritdria. Isso ndo equivale a dizer que ° pluralismo Tejeite © principio da maioria como um principio tegulador, isto é, como uma técnica de tomada de decisdo.™ E claro que isso nao Ocorre. Nao obstante, © pluralismo continua sendo o melhor terreno no qual o principio majori. tdrio limitado — 0 de que os componentes da maioria devem Tespeitar os direitos da minoria — pode ser mantido e legitimado.65 Um terceiro ponto, merece igualmente ati conseqiiéncia € uma superacdo das guerras e das perseguicoes Teligiosas — como bem se pode perceber através dos debates que levaram ao Principio de tolerancia — e nfo se pode dizer que exista nquanto o reino de Deus e 0 reino de César estiverem divididos.6 Isso significa, em Primeiro lugar, que nem o bispo nem o principe tém qualquer direito sobre as almas de seus stiditos. Mas significa também que nenhuma Pretensao a direito ¢ legitima. Com o passar do tempo, e com a crescente diferenciagao estru- tural e especializacao, chega-se a uma etapa ‘en¢do. O pluralismo ¢ uma vida — religito, politica, riqueza —e uma Prote¢do suficiente do individuo como tal, haverd na controvérsia Politica algo demasiado importante para que os politicos abram mao de seu poder como determinam as Tegras de um sistema partidério competitivo. Em quarto lugar} e voltando ao esteio estrutural do conceito, deve-se entender claramente que o pluralismo nio consiste simplesmente de asso- ciagdes miltiplas. Estas devem Ser, em primeiro lugar, voluntarias (e nfo atributivas) e, em segundo, nfo exclusivas, isto é, baseadas em afiliagdes muiltiplas — sendo estas o trago marcante crucial de uma estruturagio Pluralista.67 4 Presenga de um grande numero de grupos identificdveis nfo comprova, de modo algum, a existéncia do pluralismo, mas apenas um estado desenvolvido de articulagdo e/ou fragmentagao. As sociedades _ ultigrupais sto “pluralistas”” Se, € apenas se, os os forem associati- Yos (¢ nto “consuetudindrios Ou institucionais) €, o que é mais, s6 quando se_puder Constatar que as associagoes se _desenvolveram naturalmente, ndo_sio “impostas”-*°1ss0- excIT Hotadamente o chamado plura- .que fia Téalidade gira sobre grupos comunais consuetudi- @ em uma cristalizacao fragmentada. Exclui igualmente 0 sistema de estratificacao por castas. © PARTIDO como pan TE ¢ uma estrut i pluralista? Segundo Janda, o pluralismo Pode ser definido, open mente, como “a presenca de cortes transversais” (e nao, Tessalte-se, de pressOes transversais). Trata-se, certamente, de uma Operacionaliza 5 adequada, pois basta para colocar de lado todas as sociedades amet culagdo gira principalmente em torno de tribo. » Taga, casta, relig - pos locais fechados e consuetudindrios, Janda observa também queo a, que 0 contexto de valor do pluralismo ngo deve ser esquecido e que muitos Pressupostos anteriores (e causais) ficam implicitos no nivel Operacional de definigaol®) E certo, portanto, falar em pluralismo partiddrio, A expresso tem na realidade mais profundidade de significado do que the atribuimos Be- ralmente. Tomado por seu valor aparente, o pluralismo partiddrio indica simplesmente a existéncia de mais de um partido; mas a conotacdo é a de que os partidos no plural so 0 produto do “pluralismo”. Mas 0 fato de que a legitimacao e 0 funcionamento normal do pluralismo partiddrio se ba- seiam na aceitago do pluralismo tout court, sem adjetivos, continua sendo um fator secunddrio. Nao contribui para explicar, entre outras coisas, Por que os sistemas partiddrios se desenvolveram de uma determinada maneira, nem o papel que o sistema partiddrio chegou a desempenhar dentro do sistema politico geral. 1.3 Governo responsével e governo sensivel Até aqui, demos énfase ao curso das idéias. Na verdade, essas idéias Tespon- deram a acontecimentos no mundo real, embora Burke, quando definiu © Partido, tenha-o feito a frente da historia. A partir de Burke, porém, os fatos assumem a lideranga. Copiando Oakeshott, “grandes TealizagOes sfo levadas a cabo em meio a névoa mental da experiéncia pritica”.” Foi o Que Tealmente ocorreu com a maneira pela qual os partidos ingressaram na esfera de 8overno e nela se tornaram operativos. Para que server os par- tidos, isto €, quais as suas fungdes, posi¢do e peso no sistema politico ma Mo foram questdes fixadas por uma teoria, mas uma decorréncia de nes tecimentos concorrentes. Por exemplo, a expressdo “a SE eee ijestade”” foj cunhada apenas em 1821, de uma s6 vez, € come Seqliéncia de uma complicada e elaborada discussfo sobre uma aa "ormal no poder de dois partidos. Mas ndo foi uma realizacdo sem impor ae tancia. Grande parte do que se seguiu aconteceu sem ser antes compreen. dido, e menos ainda desejado intencionalmente. Ouve-se dizer com freqiiéncia que, no século XVIII, os ingleses co. meg¢aram a colocar em prdtica o governo partiddrio.”2 Mas “Boverno Parti. dirio” € uma expressdo ambigua. Pode ser usada para significar “Partido no governo”, ou seja, que os partidos entram na esfera do Boverno como um de seus elementos componentes de relevo. Isso j4 € um grande Passo a frente, pois os partidos podem ser apenas elos entre um Pe 40 PARTIDOS E SISTEMAS PARTIDARIOS ms OVO € um go- yerno — como foram por muito tempo na Alemanha Imperial — sem qual- quer acesso real as tomadas de decisio governamentais. De qualquer modo, © partido no governo, como acima definido, estd muito lo: partiddrio literalmente entendido, isto €, como significad do governa, de que a fungdo de governo é, na pratica, to: lizada pelo partido vitorioso ou por uma coalizdo de parti mnge do governo lo de que o partj- mada € monopo- idos. Vamos distinguir entre (i)}o partido que continua fora da esfera de governo e sem envolver-se nela, o Partido-embaixador, por assim dizer; (ii) o partido que Opera no dmbito do governo, mas nado governa; e © partido que realmente governa, que assume a fungdo governament: Observemos também que hd muitas formulas intermedidrias ndo sé entre esses trés casos como dentro de cada um deles; e especialmente que a dis- tancia entre partido no governo, ¢ governo partiddrio é, na verdade, muito longa. E certo que nada semelhante ao governo partiddrio ocorreu real- mente, na Inglaterra ou em outros paises, no século XVIII. E é passivel de dtivida se, durante o longo reinado de Jorge III, os ingleses realmente cruzaram a linha entre o partido-embaixador e o partido com um lugar no governo. Burke nfo chegou a ver, durante sua vida, o partido que havia definido. Se assim é, o “‘governo partidério” nao se aplica, nem mesmo em seu sentido mais amplo, por falta de exemplos. O que os ingleses comecaram a colocar em pratica no século XVIII nao foi, portanto, o governo partidério, mas o governo responsdvel. Este . antecede no tempo_o governo idari é dele uma conseqiéncia._ O-governo responsavel consiste da Tesponsabilidade dos ministros para com © parlamento. Isso pode ser chamado, num sentido muito amplo ¢, nova- mente, ambiguo, de sistema parlamentar, isto é, um sistema baseado no apoio parlamentar do governo. Mas nada nesse tipo de arranjo implica, por necessidade, um sistema de governo baseado em partidos. Isso é muito cla- ro em Burke. Sua posi¢do era: “A virtude, espirito e esséncia de nals mara dos Comuns consiste em ser a imagem expressa dos sentimentos nacao. N4o foi instituida para ser um controle sobre 0 povo.(. +) Foi a jada como um controle para 0 povo.”?4 Mas para o povo ndo implica ata | Povo. O parlamento foi concebido por Burke como um orgio See tivo, mas a representaco de que falava era muito mais “virtual soaal eleitoral. Segundo essa opinido, os partidos nfo s6 eram estranhos ee, 40 PARTIDOS E SISTEMAS PARTIDARIOS tancia. Grande parte do que se seguiu aconteceu sem ser ante: dido, menos ainda desejado intencionalmente. Ouve-se dizer com freqiiéncia que, no século XVIII, os ingleses co. megaram a colocar em prdtica o governo partiddrio.”2 Mas “governo parti- dirio” € uma expresso ambigua. Pode ser usada para significar “partido no governo”, ou seja, que os partidos entram na esfera do governo como um de seus elementos componentes de relevo. Isso Ja é um grande passo a frente, pois os partidos podem ser apenas elos entre um povo e um go- yerno — como foram por muito tempo na Alemanha Imperial — sem qual- quer acesso real 4s tomadas de decisio governamentais. De qualquer modo, © partido no governo, como acima definido, est4 muito longe do governo partiddrio literalmente entendido, isto €, com 0 significado de que o Parti- do governa, de que a fungdo de governo é, na prdtica, tomada e monopo- lizada pelo partido vitorioso ou por uma coalizao de partidos. Vamos distinguir entre (i)}o partido que continua fora da esfera de Boverno e sem envolver-se nela, o Partido-embaixador, por assim dizer; (ii) 0 partido que Opera no ambito do governo, mas ndo governa; e © partido que realmente overna, que assume a fungdo governamental: Observemos também que hd muitas formulas intermedidrias ndo sé entre esses trés casos como dentro de cada um deles; e especialmente que a dis- tancia entre partido no governo, e governo partiditio é, na verdade, muito longa. E certo que nada semelhante ao governo partiddrio ocorreu real- mente, na Inglaterra ou em outros paises, no século XVIII. E é passivel de duivida se, durante o longo reinado de Jorge III, os ingleses realmente cruzaram a linha entre o partido-embaixador e o partido com um lugar no governo. Burke ndo chegou a ver, durante sua vida, 0 partido que havia definido. Se assim é, 0 “governo partiddrio” nao se aplica, nem mesmo em seu sentido mais amplo, por falta de exemplos. O que os ingleses come 'S compreen. garam a colocar em pratica no século XVIII nao foi, portanto, o governo Partiddrio, mas 0 governo responsdvel. Este antecede no tempo_o governo partidario, que é_ dele uma conseqiiéncia. O governo responsavel consiste da Tesponsabilidade dos ministros para com © parlamento. Isso pode ser chamado, num sentido muito amplo e, nova- mente, ambiguo, de sistema parlamentar, isto é, um sistema baseado no apoio parlamentar do governo. Mas nada Nesse tipo de arranjo implica, pot Necessidade, um sistema de governo baseado em partidos. Isso é muito cla- ro em Burke. Sua posi¢do era: “A Virtude, espirito e esséncia de uma Cé- mara dos Comuns consiste em ser a imagem expressa dos sentimentos da nagdo. Nao foi instituida para ser um controle sobre o povo.(...) Foi plane- jada como um controle para 0 povo.”74 Mas para 0 povo nfo implica pelo Povo. O parlamento foi concebido por Burke como um 6rgdo representa: tivo, mas a representac4o de que falava era muito mais “virtual” do que eleitoral. Segundo essa opiniao, os partidos no sé eram estranhos ao pro- | O PARTIDO COMO PARTE 41 cesso de representagdo como inimigos dele. O Tepresentante de Burke nao era um delegado atado pelas instrugdes de seus eleitores.75 Pela mesma razio, Burke se teria horrorizado com as instrugdes e a disciplina partidrias Por outro lado, o partido de Burke Organizava “ligacdes” no parlamen- to. Ndo organizava, nem era essa a sua intencdo, os membros fora do par- lamento. Isso ocorreria mais tarde, e nao foi Previsto nem defendido por Burke. Na terminologia de Tocqueville, o partido de Burke era ainda um partido “‘aristocratico”, e ndo “democratico”. A diferenca é importante. Como Tocqueville observou, com sensibilidade: “E natural, nos paises democraticos, que os membros das assembléias se Preocupem (songent) mais com seus eleitores do que com 0 Partido, ao passo que nas aristocra- cias preocupam-se mais com o partido do que com seus eleitores.”’”© Cor- respondentemente, esta a pergunta que pode ser formulada da seguinte maneira: como passamos do partido aristocratico, fechado no grupo, par- lamentar, para o partido eleitoral, voltado para fora do grupo e, em ulti- ma anilise, orientado para a democracia? Levando-se na devida conta a maneira tortuosa e desigual pela qual essa transigdo ocorreu historicamente, de forma légica a seqiiéncia pode ser reconstituida com clareza. De maneira geral, o governo responsdvel an- te as Camaras também se torna, a longo prazo, um governo responsavel Pperante © povo e, com isso, um governo sensivel, atento 4 voz do povo e por ela influenciado. Mas essa descrigdo é demasiado ampla. Como e por que ocorreram tais fatos é 0 que devemos ver com maiores detalhes e isso pode ser representado como diagrama do Quadro | (entendendo-se que as setas indicam apenas os principais vetores causais). Quadro 1. Joba Do governo respons4vel ao governo partidario Partido no Parlamento (orientado internamente) Governo responsavel <——- | Primeiro direito de voto Partido eleitoral (granjeador de votos) Governo sensivel Solidificagiio partidaria ce Wino verno partiddrio Sistema partiddrio Direito de voto generalizado ————> Partido de massa (orientado externamente) 42 PARTIDOS E SISTEMAS PARTIDARIOS Em si, e por si, 0 governo responsdvel significa apenas que os Minis tros devem obter recursos do parlamento, a cujas criticas estao Sujeitos, Mas os deputados podem continuar atomizados, isto é, sem as ligacdes do tipo partidadrio defendidas por Burke. Uma vez que este explicou por De era vantajoso para os membros da Camara dos Comuns unirem-se em linhas partiddrias, j4 entdo esse primeiro passo pode ser considerado como dado Nao obstante, isso nos deixa com um “governo dos cavalheiros”’ constity. cional, para 0 povo. As coisas ficam mais ou menos como : Burke teria de. sejado, a menos e até que o eleitorado adquira significa cdo, tanto em ta. manho como em qualidade, ou em ambos. Nao é necessdrio examinar as miltiplas forgas que levaram a primeira ampliagdo do sufragio e, na Ingla- terra, 4 Lei da Reforma de 1832. Houve, sem diivida, uma crescente pres. sao de baixo para cima. Como diz Daalder: “O moderno partido politico (...) pode ser descrito, sem grande exagero, como filho da Revolucdo In. dustrial””.77 Ndo obstante, o processo foi, de inicio, provocado de cima, Provavelmente os deputados acharam que sua voz ganharia peso se sua re- presentatividade fosse menos presuntiva e mais eleitoral. Acima de tudo, porém, 0 eleitorado foi envolvido em conseqiiéncia da concorréncia entre © parlamento e o governo. Um governo que enfrentasse um parlamento intratavel recorreria, passando Por cima dele, ao voto do eleitorado, como fez William Pitt. E o parlamento pode retaliar NO mesmo terreno. O pro- cesso foi provocado, portanto, Pelo desenvolvimento endégeno, pela dia- lética interna entre o parlamento e o gabinete, mas ganhou impulso e foi subseqiientemente determinado por forcas exégenas. A parte os Estados Unidos, as primeiras ondas de ampliagdo do su- frégio ficaram muito aquém do sufrdégio masculino universal.78 Mesmo assim, a ampliagdo do sufrdgio se destaca, qualquer que sejam os ntimeros envolvidos, como um ponto crucial e importante. Foi a redistribuiggo em distritos dos “burgos podres’* e a entrada de eleitores que ndo podiam ser subomnados, ou ja nao ol bedeciam as instrugGes de seus superiores, que fizeram o partido progredir do Ponto onde Burke 0 colocara. Quanto mais os membros do parlamento precisavam de votos, mais 0 partido-no-pal- lamento, isto é, 0 partido aristocratic, tinha de ampliar 0 alcance dos seus tentaculos, ou seja, mais o Partido parlamentar precisaria, ainda que apenas nas épocas de eleicdo, de um Partido eleitoral, um instrumento ¢O- letor de votos e, em altima andlise, angariador de votos. O partido coletor de votos pode nao Tepresentar grande diferenca, mas o partido angaria- dor de votos, sim. Se os votos devem ser angariados, é necessério atender as queixas, e as teivindicagdes devem, até certo ponto, serem satisfeitas. poe ee * Rotten boroughs, as circunscrigSes eleitorais inglesas que, antes da reforma 4 1832, embora tivessem um nimero infimo de eleitores, continuavam enviando 1 Presentantes ao Parlamento. (N. do T.) 7 O PARTIDO COMO PARTE 43 Dois feedbacks est4o, portanto, implicitos quand is nam reais. Um deles € a solidificagao do Sade. anion ee determinados momentos os partidos mantém-se unidos ndo s6 pelos “‘prin- cipios” mas também pelas vantagens eleitorais de se estabilizarem, aa de se tornarem mais estaveis. Muita oscilagao, divisdo ou mudanga de nome acaba tornando-se negativa. E a essa altura que os protopartidos, ou as “partes” que eram antes divis6es do circulo interno (e superior), se tornam partidos em nosso sentido, isto é, divisées dovpais em geral. E isso 0 que Duverger quer dizer quando afirma — corretamente — que “os verdadeiros partidos tém apenas um século de idade”.79 O segundo feedback é 0 que leva do governo responsavel ao governo sensivel — ou pelo menos a uma combinagdo dos dois. Um governo res- ponsdvel no precisa responder além de sua responsabilidade técnica: seu dever € comportar-se de maneira_responsdv tente. Um governo sensivel €, em Tugar disso, um governo que tel 1 flexivel ds exigén- ‘cias. Avaliado pelo_comportamento_competente ¢ tecnicamente respon- s4vel, um governo sensivel bem pode ser declarado “irres vel”, isto 6 como tendo abdicado de sua propria responsabilidade independente. As duas coisas sfo portanto muito diferen seu equil thio, aifll. NEo obstante, s6 se pode falar de um partido democratico — significando com isso uma orientagdo para fora, deméfila — quando a énfase se desloca da responsabilidade para a sensibilidade politica. Logicamente, pareceria que 0 governo €é o que existe no ‘idario (0 deve ser. O partido dificilmente poderd atender | as reivindicac6es através-das_quais luta por votos 2 nfo puller sores der governar — \ dai, governo_partid4rio. Historicamente, porém, a sequéncia deria ser invertida, pois muitas circunstancias pesam sobre tal evolugao. Pode- mos afastar a questo dizendo que © governo sensivel ¢ 0 governo parti- dério sf contérminos. Também poderiamos dizer, com mais cautela ain- da, que nao hé razo premente para um governo de partidos até que 08 par- tidos realmente tenham de “produzir” resultados eleitorais. Quando todas es é co 1, temos no _s6 0 partido _moderno, como também o sistema partidério como uma exigencia estru- tural do sistema politico e portanto como um de seus subsistemas. Embo- Ta os partidos se tivessem tornado partidos na esteira da primeira uly ¢4o do sufragio — ou seja, em condigées de uma participagdo muito r Us zida e de direito muito limitado de voto — 0 mesmo nfo ocorreu com estabelecimento do sistema partidério. ‘A estruturagdo da formagao es litica como sistema partidério s6 surge quando 0 direito de pate peut condic6es atingem uma “massa critica” e envolvem uma Pers : a es ae cial da comunidade. Temos de ser vagos quantoi® ee exit ee nho devido a sua grande variagdo no tempo ¢ t s claro que o sufragio universal, ou quase universal, nfo é uma condigao ne- 44 PARTIDOS E SISTEMAS PARTIDARIOS cessdria para que os partidos se tornem um subsistemne do sistema politico. a Inglaterra € um exemplo destacado disso. O su! ragio universal traz partidos de massa ¢ 0 partido “criado externamente 8° Modifica, Portan. to, o sistema partiddrio, mas nao é necessdrio ao seu aparecimento. Quan. to a sequéncia, 0 registro historico nado indica uma progressao clara ©u uni. forme para todas as fases lembradas no Quadro 1, mas parece existir uma ordem n4o-reversivel para trés fatos principais:((i) governo Tesponsével, (ii) a “realidade’’ das eleigGes, (iii))o estabelecimenito dos partidos como “um subsistema. Essa seqiiéncia éndo-reversivel uma vez que as eleicdes ¢ a participacdo apenas, isto é, sem governo constitucional e Tesponsdvel, nao conduzem necessariamente a uma formagdo politica baseada no Par. tido — a um sistema partiddrio. Vistos retrospectivamente, todos esses fatos parecem bastante Obvios, Mas ndo foram Obvios, nem percebidos, quando estavam acontecendo, Consideramos evidente por si mesmo que, se uma sociedade é consultada, € quanto mais amplamente isso ocorre, mais a expressdo e a articulacgo de suas exigéncias exigem elos intermedidrios e correias de transmissao. Mas que esses elos tomariam a forma e ganhariam a natureza de uma es- trutura do tipo partido nao s6 nao foi previsto, como também em grande medida ndo foi uma possibilidade bem compreendida. Todos os fatos que descrevemos ocorreram — repetimos — em meio 4 névoa mental da expe- riéncia prdtica, produto muito mais da forga dos fatos do que da previsdo das idéias, e muito menos de seu designio. Ao voltar dos Estados Unidos, onde viu os primeiros partidos mo- dernos que nasciam e funcionavam sob condigGes democraticas, 0 comen- tario geral de Tocqueville foi o de que “os partidos sao um mal inerente aos governos livres”.8! Nao estava dlzendo multetals do que Washington havia~ditoE~embora Tocqueville percebesse a diferenca entre partidos aristocraticos e democraticos, sua énfase recaia claramente em outro aspec- to, ou seja, na disting&o qualitativa (ndo quantitativa) entre partidos “gran- des” e “pequenos”, os primeiros baseados em principios e idéias gerais ¢ Os segundos nao diferindo, em nenhum. aspecto, das “facgdes perigosas”.®? N&o 86 0 interesse de Tocqueville pelos partidos era muito periférico, cO- mo também sua preocupagdo era mais ou menos igual 4 de todos os seus Predecessores: os partidos ndo deviam ser facgdes.83 Em 1888, James Bryce fez, em seu American Commonwealth (A Comunidade Americana) uma ampla descrigéo de como as méquinas partiddrias funcionavam nos Estados Unidos; sua contribuigdo teérica ndo foi, porém, muito além da afirmagdo (em 1921) de que “os partidos so inevitdveis. Nenhum pais grande e livre passou sem eles, Ninguém mostrou como o governo repre- sentativo poderia funcionar sem eles’”.84 Até a Primeira Guerra Mundial, os dois autores que se ocuparam €s* icamente da questdo do partido foram Ostrogroski®® e Michels.% Ape’ pecifi O PARTIDO Como Parte 45 sar de grandes diferengas, ambos se Preocupavam ~ e se consternavam — com a natureza ndo-democratica e oligérquica dos Partidos, e nao com a maneira pela qual os partidos se situavam — como um subsistema — na teo- ria e na pratica da democracia. O problema desses autores era a democra- cia sem partidos ou dentro dos partidos, e nio a democracia como sistema politico que € resultado dos partidos e neles se baseia. Michel descreveu seu livro como uma “‘sociologia’’ dos partidos, Nao obstante, o fundador da sociologia dos partidos, rigorosamente falando, nao foi Michels, mas Max Weber.8” Foi Weber quem chamou a atengao — com muito mais su- tileza do que Marx e Engels — para as bases sociais da politica em geral e dos partidos em particular, e as observagGes que faz quanto a isso sdo téo penetrantes quanto numerosas. Com relacdo aos aspectos aqui examina- dos, porém, Weber foi em grande parte Tesponsdvel pela sugestdo de uma perspectiva historica enganosa. Sua inclinagdo sociologica levou-o a afir- mar, por exemplo, que “também os partidos da Antiguidade ou da Idade Média podem ser designados por esse nome’’,8® perpetuando dessa forma a confuso entre facg6es e/ou antigas “partes” (como os guelfos e os gibe- linos) e os partidos modernos. O fato de que os partidos sao partidos por- que fazem parte de uma construgdao politica totalmente nova e so, por sua vez, por ela modelados, no foi percebido por Weber, como nao 0 foi pelos seus antecessores e contemporaneos. Podemos repetir, portanto, que a expressdo “partido” se torna mar- cante e adquire uma conota¢do positiva porque indica uma entidade nova. O nome é diferente porque a coisa é diferente. Mansfield introduz, de ma- neira eloqiiente, a novidade do caso: “Devemos avaliar a quase-ubiqiiidade do governo partiddrio, hoje, 4 luz de sua total auséncia no passado”. Mas devemos fazer restrigGes a sua explicagdo subseqiiente: “De acordo com esse indicio, parece necessdrio distinguir os partidos do governo partida io. (...) Porque a razdo do partidarismo € tao simples e forte, a respeitabilida- de,e ndoa existéncia, do partido é a marca caracteristica do governo par- tidario."8° B muito certo que as raz6es do partidarismo sao simples e for. {es, mas ndo geraram, no decorrer dos milénios, os partidos: produziram “facgdes”. Portanto, é a existéncia do partido, nao a sua respeitabilidade, que € necessdrio explicar. 14 Uma racionalizagdo Podemos formular, entdo, a seguinte pergunta: que relevancia tem hoje ot antecedentes? Por que remontar as origens? A resposta é que ° passat Constitui o mapa original, a planta das fundagoes. Com 0 decorret lo a Po 0 edificio cresce, e as fundagdes ficam encobertas. E por isso que, , tempos em tempos, é bom voltar o olhar para a planta original, Entre ou: ij sar de grandes diferengas, ambos se preocupavam — e se consternavam — com a natureza nao-democratica e oligarquica dos partidos, e nfo com a maneira pela qual os partidos se situavam — como um subsistema — na teo- ria e na pratica da democracia. O problema desses autores era a democra- cia sem partidos ou dentro dos partidos, e ndo a democracia como sistema politico que € resultado dos partidos e neles se baseia. Michel descreveu seu livro como uma “sociologia’’ dos partidos. Nao obstante, o fundador da sociologia dos partidos, rigorosamente falando, ndo foi Michels, mas Max Weber.87 Foi Weber quem chamou a atengdo — com muito mais su- tileza do que Marx e Engels — para as bases sociais da politica em geral e dos partidos em particular, e as observag6es que faz quanto a isso séo tao penetrantes quanto numerosas. Com rela¢do aos aspectos aqui examina- dos, porém, Weber foi em grande parte responsdvel pela sugest@o de uma perspectiva historica enganosa. Sua inclinagdo sociolégica levou-o a afir- mar, por exemplo, que “também os partidos da Antiguidade ou da Idade Média podem ser designados por esse nome”’,8* perpetuando dessa forma a confusio entre faccdes e/ou antigas “‘partes” (como os guelfos e os gibe- _ linos) e os partidos modernos. O fato de que os partidos sdo partidos por- que fazem parte de uma construgdo politica totalmente nova e sdo, por sua vez, por ela modelados, nao foi percebido por Weber, como nao o foi pelos seus antecessores e contemporaneos. Podemos repetir, portanto, que a expresso “partido” se torna mar- cante e adquire uma conota¢do positiva porque indica uma entidade nova. Onome é diferente porque a coisa € diferente. Mansfield introduz, de ma- neira elogiiente, a novidade do caso: “Devemos avaliar a quase-ubiqiiidade do governo partidario, hoje, 4 luz de sua total auséncia no passado”. Mas devemos fazer restrig6es a sua explicagao subseqiiente: “De acordo com esse indicio, parece necessario distinguir os partidos do governo partiddrio (..) Porque a razdo do partidarismo € tao simples e forte, a respeitabilida- de, € ndo a existéncia, do partido € a marca caracteristica do governo par- tidario.”8? E muito certo que as razdes do partidarismo sao simples € for- tes, mas ndo geraram, no decorrer dos milénios, os partidos: produziram facgdes”, Portanto, é a existéncia do partido, ndo a sua respeitabilidade, que € necessério explicar. O PARTIDO COMO PARTE 45 1.4 Uma racionalizagao Podemos formular (0, a seguinte pergunta: que relevancia tém hoje os antecedentes? Doane een’ as origens? A resposta é que 0 passado SOnstitui o mapa original, a planta das fundagdes. Com 0 decorrer do tem- PO 0 edificio cresce, e as fundagdes ficam encobertas. E por isso que, de tempos em tempos, é bom voltar o olhar para a planta original. Entre ou- 46 PARTIDOS E SISTEMAS PARTIDARIOS tras razdes, acabamos por nos envolver de tal modo COM Sutilezas demos de vista os aspectos fundamentais. Raramente Petguntamoe © qué? Qual o propésito de um sistema partiddrio? Os pa idos porque havia necessidade deles, porque atendiam a um p servem a esse propésito? Se nao, ou se estdo sendo objetivos, devemos deixar isso claroypois ndo_estd claro, " vez mais pela sempre crescente Selva das estruturas Partiddrias sem «, realmente onde comegamos, e muito menos para onde vamos, Ha cerca de 150 anos, os partidos se comportaram e se de tam muito mais como uma pratica do que como uma teoria. Por isso, outras coisas, a mensagem tende a se perder. E pretendo que tal m possa ser recapturada e a justificativa da era do partido reconstit embora apenas em seu arcabougo — a base das trés premissas 1. Os partidos nao sao facgoes. 2. Um partido é parte-de-um-todo. 3.Os partidos sdo canais de expressao. © TOPSsitg 1, Os partidos ndo so facgbes, isto é, se o partido nao for difere da faccdo, ndo serd um partido (mas uma faced). Essa distinggo servada ainda pela maioria das linguas e sem diivida seu uso € coi . partidos sfo criticados, com freqiiéncia, mas nao so um mal por A facgdo tem sempre, pelo menos na linguagem comum, uma pejorativa, e as facgdes séo um mal. Os partidos — diz-se-cc ~ sao uma necessidade. As facedes ndo sZo umia necessidade, - existem. Ao que tudo indica, a palavra“facgao” ndo perdéu, na li habitual, sua conotacdo original, ou seja, a de que é apenas 2 de conflitos pessoais, de um comportamento auto-referido e que publico. Nas palavras de Burke, a luta faccional Tepresenta apenas | mesquinha e interessada por cargos e emolumentos.”! $ ___ E certo que os membros dos Partidos ndo so altruistas, ¢ cia de partidos nao elimina, de modo algum, as motivagGes egoisté crupulosas. As moti i z que varia sao o Processamento e as limitagOes impostas motivagdes. Mesmo que o politico partidario seja motivado pelo im! pessoal apenas, seu comportamento deve disfarcar — se as restrigbes 4 erativas — tal motivacao. A diferenga est4, ent, ° 0s partidos sdo instrumentos das vantagens coletivas, de um fim 4 € apenas a vantagem privada dos competidores. Os partidos ligam ° um governo, as facedes nao. Os partidos estimulam uma série 4° | lidades do sistema, as faccbes nao. Em suma, os partidos 40 ins funcionais — servem ‘a Objetivos e desempenham papéis -e nGo.® E isso, em ultima andlise Ibe

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