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TensOes entre estado e propriedade nos Dois tratados sobre o governo de Locke Tensions between state and property in Locke's Two treatises of government Thiago Gruner Universidade Federal do Rio Grande do Sul ARTIGOS John Locke é frequentemente pensado como pai de um liberali mo que colocow a economia no centro do problema politico, contribuindo para 0 que hoje entendemos por economias de mercado. Porém uma lei- pode desfazzer tal cliché e revelar outras respostas: afinal, até aonde pode ir o Esta do na geréni a da propriedade de seus cidadaos? O presente artigo pretende expor trés leituras interpretativas dos Dois tratados que respon dem a essa pergunta: uma primeira, de vids libertério, que acredita em direitos irrevogiveis de propriedade justamente adquirida; uma segunda, cunhada como comunalista, que acredita na distribuigao inclusiva da pro- priedade pelo Estado; ¢ uma terceira, que se apresenta como alternativa critica as suas anteriores. E com esta tiltima que este artigo alinhar buscando defender que nio ha direito absoluro de propriedade nos Dois rratados — seja de bens, agao livre ou vida. Dadas certas condigdes reiters das por Locke, o Estado poderia, sim, agit nao sé nos bens materiais, mas também na vida e na liberdade dos cidadaos, uma vez que existem reivin- dicagdes possiveis sobre todos esses direitos. PALAVRAS-CHAVE: propriedade: Estado; justica: liberdade; direito. Primeiros Escritos, Sao Paulo. n.9, 2018 65 ARTIGOS ABSTRACT: John Locke is usually thought of as the father of a certain liberalism that put the economy at the heart of the political question, contributing to what we nowadays understand as market economies. But a more problematic rendering of Locke's greatest work, Two treatises on government, may dissolve such cliché and reveal other answers: how far can the State go in managing its citizens’ property? This paper will present three interpretations of the Tivo creatises that answer such question: the first one, of a libertarian bi . which believes in irrevocable rights in prop- erty fairly acquired; a second one, called communalist, that believes in an inclusive distribution of property by the State; and a third one, that pres- tibe ents itself as an alternative to the previous ones. This paper will sub to the last one, trying to make the case that there is no absolute right in property in the Tivo rrearises — either in goods, action or life. Given certain conditions reiterated by Locke, the State could, yes, act not only on the but also on the life and freedom of its citizens, since there material goods are possible claims on all these rights. KEYWORDS: property: State; justice; freedom; right. Primeiros Escritos, Sao Paulo. n.9, 2018 cs ARTIGOS INTRODUCAO Até aonde vai a autoridade do Estado na geréncia da propriedade de seus cidadaos? Em seus Dois eatados sobre o governo, John Locke apresenta res- postas cujos ecos so sentidos até hoje. Locke é inclusive tido pela maioria como pai do liberalismo que hoje sabemos ter levado as economias de mercado. Porém uma leitura mais problematizante de sua opus magna nos leva a repensar esse lugar comum. Por um lado, Locke diz que “todo homem, quando se incorpora a qualquer sociedade politica, cambém incorpora e submete a sociedade, por esse ato, as posse: que tenha ou venha adquirir”, Essas posses, afirma, “de verio ser regulamentadas pelas leis dessa sociedad” (II, §120'). Mas, por outro lado, Locke declara que o poder ‘nao pode ter outro fim ou medida, quando estiver nas mios do magistrado?, que o de conservar os membros da sociedade cm suas vidas, liberdades ¢ posses” (II, §171). Ele ¢ bastante claro aod yer que “0 poder supremo nao pode tomar de homem algum nenhuma §138). Afinal, o Estado tem 0 direito de taxar 0 cidadao? De desapropriar parte de sua propriedade sem o seu proprio consentimento” (I ou redistribuir a terra? 1 Seguindo notagao consagrada, indicarei o tratado por mimetos romanos (I ou II) ea respectiva segi0 em mimeros ardbicas 2 Individuo investido de autoridade politico-administrativa. Primeiros Escritos, Sao Paulo. n.9, 2018 67 ARTIGOS is em trés leituras in- Levanto aqui possiveis respostas, resumindo: terpretativas: uma de viés libertdrio, saida de Anarchy, State and Utopia (1974) de John Nozick, para quem Locke prevé um Estado com poder re- duzidissimo sobre a propriedade dos cidadaos; uma segunda, que chama- rei de comunalista, s: ida de A Discourse on Property (1980) de James Tully, gue acredita que a terra sempre permanece a disposigao da comunidade, cabendo ao Estado constantemente redistribui-la de maneira a que todos cenham sua poredo% ¢ uma terceirs The Right oP. . que denominarei critica, originada de vate Property (1988) de Jeremy Waldron, que questiona as duas anteriores, relativizando 0 problema. Tais autores centram-se muito no que contemporaneamente enten- demos por propriedade, a saber: a propriedade de bens materiais — e, mais ainda, a propriedade da terra. Isso nio é 3 toa, jd que esse é o inico da dace e bens mate- trade lockeana de direitos de propriedade (vida, liberd riais) que precisa ser adquirido — ¢ que em sus pormenores gerou mais disedrdia interpretativa. Ainda assim, tratarei de expor, ao final, algumas s stidito: ALEITURA LIBERTARIA A primeira teoria defende que o direito a propriedade ¢ conquistado para sempre ainda no estado de natureza, quando trabalham-se os recursos na- turais: 0 que ¢ apropriado “nao pertence em comum a outros” (II, §44), sendo, portanto, um dircito exclusivo daquele que se apropriou da coisa. E apropriar-se de algo, para o libertario, é aumentar seu valor, Isto poten- 3 Este seria um sistema de propriedade individual (diteito exclusiva de uso) sada (direito inclusive de apropriacic). ainda que nao pri- Primeiros Escritos, Sao Paulo. n.9, 2018 8 ARTIGOS cialmente melhora a vida de outros — compensando a perda de liberdade que teriam de serem donos aquela coisa (NOZICK, 1974, p. 17588). Ainda que chegue © momento em que nao reste o suficiente para os demais apro- priarem (II, §27), eles poderao usar daquilo que ja estara apropriado, nao vendo sua situagio piorada. A leitura libertaria acredita que o direito de propriedade nao é anu- lado na passagem para o Estado civil, pois esce ¢ criado exatamente para liberdade e bens de seus suditos: garantir a preservacao da vide “o poder supremo nao pode tirar a qualquer homem parte da sua propriedade sem consentimento dele” (IL, §1384) Para o libertario, o Estado que Locke defende & aquele que toma apenas as posses do stdito necessarias para a preservacio dos préprios bens, vida e liberdade — por exemplo, para financiar a policia ¢ © sistema penal, Se cobrar mais impostos do que necessario, 6 Estado forca o cida- dao a usar suas horas de vida para um fim alheio (NOZICK, 1974, p. 16785). Se o Estado tentar ir além, distribuindo as posses dos cidadaos, cle restringira demasiado sua liberdade ¢ interferira continuamente na vida das pessoas - seja confiscando bens, impedindo-as de fazerem trocas, de se darem presentes ou doar (NOZICK, 1974, p. 1608s). Mas se alguém tem direito sobre X, entao ¢ este alguém (c nao 0 governo) quem tem o direito de dar uso a X — desde que nao violando a vida ¢ a liberdade alheia. ALEITURA COMUNALISTA . comunali A segunda teori a, defende que, para Locke, quando todos os recursos sto apropriados, mas ainda ha homens sem a chance de apropriar, 4 Cfe. também II, §87, 88, 94, 95, 223, 24,432,59€ 40 5 “Enatural que todos que gozam de uma parcela de protecao paguem do que possuern a propor do necessiria para manté-la” (II, §240) Primeiros Escritos, Sao Paulo. n.9, 2018 69 ARTIGOS todos os direitos de propriedade sao suspensos, uma vez que i) “Deus deu o mundo aos homens em comum” e ii) a lei natural manda observar a preser- vaio de Toda Humanidade®. Ou seja, ¢ a humanidade como um todo, criada por Deus, quem tem direito a0 mundo. James Tully (1980, p. 109) caracteri- za tal direito, portanto, como inclusivo: um direito geral, j4 que todo homem é um possuidor em comum que, se excluido das chances de apropriacao, pode reivindicar ser inclufdo (TULLY, 1980, p. 129). Por isso, quando acabam os recursos, todas as propriedades nacural- mente adquiridas devem ser revertidas para as maos do governo, que pass entdo a atribut-las convencionalmente. De fato, Locke afirma que “todo homem, quando primeito se incorpora a qualquer sociedade politica, tam- bém incorpora e submete 4 sociedade, por esse ato, as posses que tenha ou venha a adqui ir” (II, §120). Tully (1980, p. 166) explana que, quando isso acontece, o Estade ‘6 obrigado a distribuir a cada membro os direitos civis a vida, & liberdade de preservar a si ¢ aos outros, ¢ de demandar os bens ou meios para isso”, Esse dever é conforme o que manda a lei natural da preservagio maxima da humanidade. Tal distribuigao da propriedade assegura, por um lado, que todos tenham os meios necessirios para a subsisténcia ¢ que, por outro, todos possam trabalhar na terra, aproveitando scus frutos. Se o libertatio diss r que isso infringe a liberdade individual, o comunalista respondera que a liberdade humana de agir sobre os recursos da terra consiste exatamente na “Liberdade de usd-los, que Deus permitiu’ (I, 939). Agir de acordo com essa liberdade, ditada pela lei natural, nao é nem poderia ser um ataque & liberdade de ninguém. Pelo contrario, é agir conforme 0 propésito que Deus tem para a Criagao. 6 CEI, $6, 11,16, 25, 128, 129, 154, 149, 159, 168 € 382. Primeiros Escritos, Sao Paulo. n.9, 2018 70 ARTIGOS Para o comunalista, a propriedade regulada e distribufda em estado civil visa ao bem publico (TULLY, 1980, p. 162) —¢ Locke teria usado “bem piblico” no sentido distributive: a porgao de bem a que cada membro da sociedade tem direito. Como o bem maximo seria a preservacao de todos, © bem publico seria 0 bem/preservacao de cada um (SII, 6). Em outras pa- Lavras, ¢ assegurar a vida, a liberdade e as posses de cada um dos cidadaos te (TULLY, 1980, p. 163). —e nio sd de uma ALEITURA CRITICA Uma terceira leitura do texto de Locke busca relativizar a tensio entre © que 0 Estado pode ¢ nao pode fazer em relagio 4 propriedade de seus stiditos. Por um lado, critica a teoria libertdria por ter menosprezado aquilo que est4 na primeirissima linha do capitulo sobre a propriedade a lei natural nos manda preservar 6 maximo de seres humanos, que “tem direito 4 propria preservagio ¢, consequentemente, (...) a tudo quanto a natureza fornece para a subsisténcia” (II, §25). Esse direito de subsistén- cia, que ¢ geral, acaba, por isso, impondo restrigdes de bem-estar geral [welfiare] em qualquer sistema de propricdade, privada, compartilhada ete (WALDRON, 1988, p. 4). O problema da teoria libertaria foi pensar que a propricdade tem prioridade sobre a subsisténcia. Mas como a razio de ser da propricdade (em sentido amplo) é a subsisténcia humana, direitos de propricdade nao sio importantes a ponto de prejudicar ou impedir a subsisténcia (WALDRON, 1988, p. 216). Locke confirma isso ao dizer que © poder legislativo pode fazer leis para que o individuo aja “conforme exi- gir o bem publico da sociedade” (II, §89). Isso pode se dar pagando mais impostos do que 0 libertario queria, por exemplo Jaa teoria comunalista colapsou direito 4 subsisténcia com direito de propriedade. A “liberdade de usar” os recursos da terra nao é a garan- Primeiros Escritos, Sao Paulo. n.9, 2018 nm ARTIGOS tia de se apropriar deles. Ou seja: do direito 4 subsisténcia nao se segue o direito & propriedade. Locke inclusive defende que, para com 6 homem necessitado, exista um dever de caridade. Além disso, os homens também podem trabalhar como empregados, o que garantiria sua subsisténcia. No que vale a terra, especialmente, Deus de fato manda o Homem trabalhar — mas nem por isso manda apropriar. a Jeremy Waldron, ¢ importante levar em conta que o direito natural de propriedade ¢ apenas contingente e que surge de uma relagio particular especial”) com um recurso. Ja 0 direito natural 4 subsisténcis (a vida) é direito geral, que vale independentemente das relagdes dos individuos com 0 mundo. Falta, ento, responder 0 que Locke quis dizer com regular a pro- priedade. Para essa terceira interpretagao, os direitos de propriedade ad- quiridos no estado de natureza sio retificados, confirmados na letra da lei do estado civil. O que antes era impreciso ¢ inseguro, juridicamente falando, passa a ter uma forma, com forga para se fazer cumprit, ¢, se nao se fizer, com penalidade prevista (II, §13Y. Com efeito, a lei civil, além de garan- tir a propricdade, serve para que “todos saibam o que thes pertence” (II, §136). Para Waldron, nada disso envolve revogar direitos, como previam os comunalistas Tampouco, porém, nada impede que as leis venham a mudar os eri- térios para a aquisigao de fucwros direitos de propriedade. Por exemplo, governo pode vir a regular a propriedade: a) de uma drea comum positiva- da (uma horta comunitaria)® b) de uma area comum e negativada, pronta para apropriagao individual — caso do mar para pesca, ou area de mata 7 © polémico caso da chegada de aplicativos de wansporte particular individual foi zesolvido nesses parimetros. 8 No.caso de Locke, o exemplo de sistema de propriedade da terra é o English Common (II, $35) Primeiros Escritos, Sao Paulo. n.9, 2018 Rp ARTIGOS para caca (II, §30); ou c) dando uso para uma heranga que nao foi assumida por ninguém (I, §90). Locke afirma que a preservagao sera “tanto quanto posstvel” (II, §88), pois, j2 que “a lei fundamental da natureza [é] a preservagao dos homens, nao ha sano humana que seja valida ou aceitavel contra ela”, Assim, se um direito de uma propriedade atentar contra a pr servacado humana, ele nao tera validade (II, $135). Logo, se preciso for, os impostos podem ser aumentados acima do minimo necessério, bastando 0 consen- timento da maioria (II, §142; LASLETT, 1988, p. 105) Portanto, para Waldron, os limites naturais impostos a. um governo gue busca o bem publico sao: primeiramente, o direito geral a subsistén- cia; e, em seguida, os direitos especiais de apropriagées anteriores a0 es- tado civil CONSIDERAGOES A teoria libertiria, como apresentada por Novick, faz. um recorte bastante enviesado das ideias lockeanas. Ele toma a liberdade ¢ a independéncia ab- solutas do ado de natureza como referéneias intocdveis para o estado ci- vil. Mas, a0 fazer isso, ignora precisamente a complexidade do viver-em-so- cicdade cas concessdes que caracterizam a passagem para o estado civil, que sé existem na medida em que buscam garantir a seguranga ¢ propriedade (cm sentido amplo) de todos. O ponto fraco da leitura libertatia em relagao ao texto de Locke ¢ superestimar a identificagao das condigoes para a cir- ios morai: culacao de bens com critérios de valor, ¢ nao tanto com crité Jaa teoria comunalista reforca o fato de que Locke “defende a lei natural como fundacao moral contra aqueles que vem a moralidade como Primeiros Escritos, Sao Paulo. n.9, 2018 2B ARTIGOS baseada no interesse préprio ou na utilidade” (TULLY, 1980, p. 101). Em outras palavras, adonar-se conforme tal lei nao é moral porque vantajoso se a vi ista nozi (0 que talvez configura: 0 produti iana). Pelo contrario: q St iB Cinoeal perrectertet lerecerinteee nial eit wsraeeeter Nat eteerkcenitsyoee também. Tully aposta fichas na prioridade maxima do trabalho sobre a terra, com a consequente apropriacio de bens, como meio para que todos encontrem subsi Jo comunali éncia. E visando a isso que seu Es ta age. Waldron muda o centro da discussi0, minimizando a importanci; da denominada Condigao de Suficiéncia para Apropriagio® e chamando atengo para o que seria o Direito Geral 4 Subsisténcia (¢ nao necessari mente 4 Propriedade). O Estado nao é necessario para legitimar a proprie dade (como supunha o comunalista), pois, se a Condigio de Suficiénci fosse uma restrigio de necessidade (endo uma condigo minima sufic te), morrer-se-ia de fome numa situagio de escassez, o que negaria ¢ mente o direito e o dever de garantir a vida (WALDRON, 1988, p. 213). E esse Direito Geral de Subsisténcia, ¢ nao a Condigao de Sufic éncia, que ssez, 0 exeedente de recursos & sobrevi- propde que, em tais casos de es véncia nao va para 0 “conforto” do proprictario (o que estaria enquadrado no mero “uso” dos recursos da terra), mas diretamente para a subsisténcia dos demais (WALDRON, 1988, p. 214). Além das objeg6es ja elencadas contra as duas primeiras leituras, Waldron (1988, p. 137) também minimiza 0 peso da discussao a respeito da propriedade, j4 que “o argumento de Locke sobre a propriedade nao ¢ tanto um fim em si mesmo, mas uma parte de seu objetivo maior de fun- damentar o direito popular a revolta contra qualquer governo”. O esfor ro. “Apropriar-se na medida em que haja.o suficiente em igual quancidade e qualidade para todos” (U, §: Primeiros Escritos, Sao Paulo. n.9, 2018 a ARTIGOS de Locke ¢ mirar i) nos inconvenientes do estado de natureza, em que cada homem é juiz de seu proprio caso: i) nos inconvenientes do estado civil constituido em forma de monarquia absoluta, em que o Soberano ¢ juiz de seu préprio caso: “sempre que lhe invadam a propriedade por ordem ow vontade do monarea, [o stidito] nio terd meios de apelar como os que estado em sociedade devem ter” (II, §91). Se Locke prope mecanismos contra a inseguranga relativa aos bens, avida ea liberdade humana, ¢ porque acredita que a monarquia absoluta o maior risco a eles (IT, §go e 94). Somente no estado civil representative e democ ico & que se encontram seguranca e cranquilidade (II, §94), j4 que nel mente, 1 decisdes nao sao feitas despotic por consenso. Assim, 0 gue os libertarios superestimam como preservagio absoluta da proprieda de material seria, para Locke, tio somente estabilidade, garantia de defesa e salvaguarda contra o arbitrio. As segies 158 ¢ 139 deixam claro que o discurso de Locke sobre a propricdade deve ser lido relativamente a esses riscos de um governo ab- soluto ~c que o diteito a propricdade, cle mesmo, tampouco é absoluto: “9 principe ou o scnado, nao obstante renha poder para promulgar leis no sentido de regular a propriedade enere os stiditos, uns em relagiio aos outres, entretanto nunca podera ter o poder de tomar para si, no todo ou em parte, a propric- dade do stidito, sem consentimento dele” (II, §139, meus destaques). Portanto, 0 que 0 governo nao pode ¢ “romar para si, no todo ou em parte, a propriedade do stidito sem 0 consentimento dele” (II, §139). Mais precisamente: o poder supremo nao tem o direito de “proceder como bem entenda e dispor arbitrariamente dos haveres dos stiditos”, “aumentar suas proprias riquezas e poder, tomando do poyo o que achar conveniente”, nem de tomar a “propriedade que lhe aprouver, dela se servir e dispor segundo © que The convenha’ (II, §138, meu destaque). Primeiros Escritos, Sao Paulo. n.9, 2018 B ARTIGOS Porém 0 governo pode “regular a propriedade dos stiditos uns em 0 de recursos via impostos — consentida pelos stiditos, obviamente, pelo que relagdo aos outros” (II, §139). Esse ¢ exatamente 0 caso da distribuica foi visto*. Os impostos nao compdem um tesouro dos prdéprios magis trados, mas, uma vez recolhidos, sAo devolvidos aos suiditos na forma de benfeitorias que promovam seu bem-estar. Waldron valoriza 0 Locke que acreditava, com otimismo, . Mesmo o capacidade do povo de legis recolhimento de impostos visando ao puro e simples actimulo, como uma poupanga de Estado, poderia em tese ser feito — desde que com 0 consen- timento da maiori: Deixo agora a discussio da propriedade material de lado. De todo modo, acredito que a validade do direito de liberdade segue os mesmos moldes do outro: o governo nao poder4 “arbitrariamente” cercear a agio humana (seja por toque de recolher, mandando prender ou restringindo o direito de ir-e-vir), conforme for “conveniente” ou “lhe aprouver”. Mas, ainda assim, tais ac¢ es ser am posstvcis desde que decididas por consenso, visando ao bem publico. Tais casos no deveriam nos soar estranhos, jé que mesmo as constituigdes de algumas das mais avangadas democracias preveem o uso do toque de recolher, por exemplo#, Por fim, o mesmo pode-se dizer do direito a vida, cuja prova de sua validade apenas relativa é a defesa que Locke faz da pena de morte em arti- culacao com a fungio do Estado, resumida jd no inicio do segundo tratado: x2 Locke ¢ muito mais claro no Ensaio sobre a tolerdncia (anterior aos Dois tratadcs):“O magistrado que tem o poder de determinar formas de transferix [eransférring] propriedades de um homem para outro, pode escabelecer qualquer uma, para que sejam universais, iguais e conforme [suited t2] 0 bem-estar da sociedade.” (B MS 28) 12 Desde os ataques terroristas de 2015 até novemibro de 2017, a Franga viveu sob estado de urgén- cia, Nossa “constituigao cidada” de 1988 prevé na figura do estado de sitio a “suspensao da liberdade de reunido”e a “restricio a liberdade de imprensa’, além da “requisicio de bens Primeiros Escritos, Sao Paulo. n.9, 2018 76 ARTIGOS O poder politico ¢ 0 direito de editar k qucntemente, todas as penas menores, com vistas a regular ¢ a pre- com pena de morte, ¢ conse- a do Estado na execugio contra os danos exter- sewvar a propriedade, ¢ de empregar a fo de tais leis e na defesa da sociedade polit nos, observando tifa somente o bem publice. (Il, §3, meus destaques) A pena capital sera admitida em casos de afronta (“danos externos”) a triade de direitos, especialmente 0 préprio direito a vida — casos esses que serao previstos por “leis promulgadas ¢ estabelecidas, que nao poderao variar nos casos particulares” ¢ que “nao devem destinar-se a outro fim que nao, em ultima analise, 0 bem do powo” (II, §142, destaque do original). Coneluo, portanto, que nao ha propriedade absoluta nos Dois tra- tados — seja de bens, de agao livre ou da vida. Dadas certas condigoes rei- teradas por Locke, o Estado poderia, sim, agir na vida, na liberdade ¢ nos bens materiais dos suditos uma vez que existem reivindicacoes possiveis sobre todos esses direitos — ¢ bastante razoaveis, até, ja que relacionadas 4 integridade fisica dos cidadaos. mal de tais rei- Locke pretende que o Estado seja apenas 0 meio vindicagdes. Decidir pelo toque de recolher, a prisdo ou a pena de morte, quando estabelecidos por um Legislativo visando ao bem puiblico, devem ser entendidos como cau: defendidas por aqueles que se unem em so- ciedade civil e que buscam através dela sobreviver a agressdes ¢ outros inconvenientes. As tensées apontadas nos Dois cratados hoje nos parecem problemd- ticas em ra 30 da oposigio socialismo/capitalismo liberal. No entanto, se guisermos ler Locke 4 margem dessas ideologias que lhe foram posteriores, é necessdrio dar um passo atras dessa dicotomia. Enfim, o autor simples- mente no reconhece um conflito entre o papel do governo e a integridade da propriedade dos stiditos (ASHCRAFT, 1994, p. 237). John Locke “nao Primeiros Escritos, Sao Paulo. n.9, 2018 7 ARTIGOS era, claro, nem socialista nem capitalista, mas ¢ fascinante encontrar ele- mentos de ambas atitudes em sua doutrina da propriedade” (LASLETT, 1988, p. 106). Primeiros Escritos, Sao Paulo. n.9, 2018 we ARTIGOS REFERENCIAS ASHCRAFT, R. Locke's political philosophy. In: CHAPPELL, V. The Cambridge companion to Locke. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. LASLETT, P. Locke's Two ‘Treatises of Government, Cambridge: Cambridge University Press, 1988. LOCKE, J. Two rreatises of government. Notas ¢ introducao de Peter La c. Cambridge: Cambridge University Press, 1988. Dois tratados sobre o governo. Trad. Julio Fischer. Sio Paulo: Martins Fontes, 1998. NOZICK, R. Anarchy, state and utopia. Oxford: Blackwell, 1974. TULLY, J. A discourse on property: John Locke and his adversaries. Cambridge: Cambridge University Press, 1980. WALDRON, J. the right co private property. Oxford: Clarendon Press, 1988. Primeiros Escritos, Sao Paulo. n.9, 2018 79

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